Foi sob um clima de expectativa e incertezas quanto ao futuro que foi elaborada a série Promethea, do muitas vezes premiado roteirista Alan Moore e de um dos mais talentosos artistas de quadrinhos da atualidade, Jim H. Williams III. Seu lançamento foi quase concomitante ao do filme Matrix (1999), dos irmãos Wachowski. Ambas as obras, cada qual à sua maneira, tratam em parte de suposições acerca da criação de “realidades” através de códigos escritos e visuais. Em Matrix, os códigos computadorizados representam pessoas, cidades, comportamentos, circunstâncias. Em Promethea, os códigos são as narrativas que se mantêm numa dimensão imaginária que é acessada de tempos em tempos por pessoas muito criativas que terminam por trazer ao mundo esses aspectos e o transformam de algum modo. Igualmente, os códigos imaginários referenciados pelos autores da série remetem a mitos em torno da criação do universo (mitos cosmogônicos) e de crenças que têm como matrizes temas oriundos do neoplatonismo, do gnosticismo e do hermetismo renascentista, apropriados por estudiosos de ocultismo do século XIX, que serão citados mais adiante. Moore e Williams enveredam por um sincretismo simbólico, sobretudo através de concepções esotéricas em torno da Alquimia, da Cabala, do Tarot e da Astrologia, cujos símbolos e correlações são representados visualmente na série com recursos estéticos capazes de comunicar com originalidade as analogias com os mundos intangíveis e surreais descritos na narrativa.
Moore é autor de outras séries de sucesso, algumas delas transformadas em obras cinematográficas como “V de Vingança”, “Liga Extraordinária” e “Watchmen”. Tal como em seus demais roteiros, ele impôs em Promethea um de seus principais diferenciais: um final previsto. A maioria das histórias em quadrinhos de personagens fixos e outras produções midiáticas como séries televisivas são mantidas indefinidamente. À medida que continuam dando lucro e estimulando a demanda dos consumidores destes gêneros, elas seguem sendo publicadas. O modus operandi de Moore difere substancialmente das demais produções do gênero, que recriam situações típicas e contextos repetitivos à exaustão.
Sua personagem tem como base visões pertencentes a organizações iniciáticas e entre suas inspirações encontram-se os já referidos arcanos do Tarot, que constituem grande parte da estrutura da HQ. Mais especificamente o deck de Tarot (“Tarot de Toth”) pintado por Frieda Harris (1877-1962), entre 1938 e 1945, sob a supervisão de Aleister Crowley (1875-1947), mago britânico que fundou e participou de organizações iniciáticas como a Golden Dawn e a Ordo Templi Orientis (O.T.O.). O roteiro privilegia o modelo de distribuição dos arcanos maiores daquele deck na Árvore da Vida segundo as premissas de seu supervisor, Crowley.
Um panorama geral
Para que haja um maior entendimento sobre o que aqui será tratado, eis um breve panorama da série e do perfil de sua protagonista: Sophie Bangs, jovem estudante de literatura, faz pesquisa sobre Promethea, uma figura literária que surge de tempos em tempos a partir de autores diferentes, em relatos, contos, quadrinhos antigos etc. Ela acessa a dimensão imaginária em que habita a personagem e passa a manifestá-la no mundo físico. Promethea é uma expressão dos deuses da comunicação e da escrita, o egípcio Toth e o grego Hermes. A personagem viaja por níveis diferentes de realidade, todos representando manifestações de uma ideia multifacetada de divindade, expressão ecumênica que admite modelos pagãos europeus, budismo, hinduísmo etc. e uma visão da condição humana sob a mística judaico-cristã, os arcanos do Tarot e símbolos astrológicos. Na HQ, ela alcança essa unidade divina e, ao final, promove o Apocalipse e a libertação da humanidade de maneira muito peculiar às crenças de Alan Moore. Além de tudo isso, promove a ideia de que a realidade pode ser criada também pela escrita/código e pela imaginação, como já visto na menção a Matrix. Tudo ocorre simultaneamente a situações mundanas, numa Nova Iorque imaginária de 1999 em que a tecnologia é muito mais avançada do que a realmente existente naquele fim do século. O nome Sophie Bangs contém propositalmente “sofia”, “conhecimento”, “saber”, em grego, radical de “Filosofia” (“amor ao saber”, etimologicamente falando) e Big Bang. A interpretação dificilmente seria diferente, já que na HQ, em sua supressão de sentido entre palavras, contextos e imagens, a temática oferece como foco central um esquema hermético da criação do universo, algo análogo e alusivo ao Big Bang proposto pela ciência (uma espécie de “momento zero” da Criação). “Sophia” é também parte do mito gnóstico de criação do universo e seria, em resumo, segundo essa doutrina, a geradora do mundo “ilusório” com o qual lidamos cotidianamente (o mundo da forma) devido à intenção de igualar-se ao “Deus Pai”, então a fonte de toda a existência (Rudolph, 1987, p. 53-88). Esta personagem mítica é análoga a uma das transformações pelas quais passa a protagonista numa parte adiantada da série e sua redenção equivale ao processo que levará à redenção da humanidade ao final da HQ.
Estes são pontos importantes na decodificação dos signos visuais e linguísticos da obra dos autores em questão para prosseguirmos com o foco no tema proposto no título: a crítica à “conversão ao standing”, nas palavras de Jean Baudrillard, em seu O sistema dos objetos. Na série, a edição número 11 (dezembro de 2000) é um tanto expressiva quanto ao processo que, entre outras particularidades, indica a publicidade como elemento de consumo, mais do que apenas os objetos que anuncia. Igualmente, apresenta de maneira sutil e em imagens o modo como o elemento coercitivo do imaginário suscitado pela propaganda leva a uma espécie de imposição do consumo. Visto isso, analisemos adiante o modo como os autores representam a supracitada coercitividade em torno dos “produtos do momento”.
“Patricinha” em busca de identidade
As necessidades humanas seriam, como vimos, deslocadas e respondidas, aparentemente, pelo consumo de mercadorias que prometem mais do que o produto pode oferecer. É o que Baudrillard vai chamar de separação entre produto (historicamente produzido) e bem de consumo, um objeto que se apresenta com uma “personalidade” própria que, no momento da compra, classifica seus consumidores, numa inversão de dominação, onde os objetos nomeiam homens, “um sistema de objetos”. Os produtos vão estabelecer hierarquias sociais, então, de forma que podemos pensar o consumo, num primeiro momento, como um modelo de concorrência, pela qual buscamos o “mais avançado”, o “último tipo” – “fetiche imperativo da valorização social (ZILIOTO, 2003, p. 29-30).
A passagem acima guarda profunda relação com boa parte das representações da edição número 11, sobretudo com a segunda figura mais importante em toda a série: Stacia Vanderveer. Ela é a amiga mais próxima de Sophie Bangs e uma espécie de seu oposto complementar. É a figura de consumo e alienação, a adaptação extrema a uma sociedade guiada pelos símbolos de status, pelo domínio das marcas e do “último modelo”. Enquanto Sophie se preocupa com sua interiorização e com questões transcendentes, Stacia mantém-se no nível imanente, vinculada às coisas do mundo. Entretanto, esse mundo no qual Stacia se encontra tão à vontade, independente de ser paupável, é na verdade construído por um intenso processo de simbolização. Todavia, trata-se de uma simbolização que distancia o indivíduo de qualquer reflexão acerca das condições em que vive. Não há “realidade” nesse mundo, exceto a realidade dos símbolos e de sua manipulação em torno do consumo, da inserção no sistema.
Stacia, neste caso, assume o posto de protagonista, especialmente quando o tema ora tratado representa um sistema de consumo da linguagem publicitária e a emergência do desejo, dirigido por esta última à assimilação das normas do grupo.
Stacia vive em busca de identidade e seus objetos de consumo, cada qual vinculado retoricamente a temporalidades diferentes (vestido anos 60, cabelo cor-de-rosa, enfeites punk dos anos 70) representam a desreferencialização pós-moderna (ver figuras 1 e 4). Seus excessos consumistas equivalem a nenhum referencial identitário específico, correspondem, no âmbito coletivo, ao que Stuart Hall diz a seguir:
A identidade plenamente identificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente (Hall, 2002, p.7-22).
Stacia é o protótipo da adesão ao imperativo e os indicativos publicitários e da profusão de identidades, algo constatável pela convivência de diversas “temporalidades” e elementos estéticos contrastantes em suas vestimentas e comportamento.
Vimos acima alguns jogos de palavras com o nome de Sophie Bangs, bastante contextualizados às ideias inerentes à série. Podemos fazer algo semelhante com Stacia. Uma breve análise de seu nome já introduz o que será verificado, logo em seguida, nas imagens da cidade e da inserção da personagem no meio urbano, além do uso de um produto que, no contexto da HQ, está plenamente na moda e que mais adiante será analisado. “Stacia” pode provir de “stack”, em inglês, que significa “pilha”, “monte”, ou coloquialmente “grande quantidade”, “abundância”, ao que se pode acrescentar “exagero”, dadas as características a serem detalhadas. Seu sobrenome, “Van der Veer”, numa primeira observação, mostra parentesco com holandeses (“van”). Entretanto, o final “veer”, em inglês significa “mudança”, “mudar de direção”, “guinada”, “giro”. Stacia mantém-se em constante e profusa mutação, a propósito. Seus cabelos, de rosa passam ao verde e de um tipo de penteado a outro em questão de capítulos ou algumas páginas. Suas vestimentas cada vez mais exóticas a cada aparição, mesclam casacos de pele de onça com motivos plásticos (ver Figura 5). Van der Veer, em holandês vem de “da passagem”, e é traduzido por “ferry”, no inglês: “passagem”, “balsa”, “barco de passagem”, “travessia”. Podemos acrescentar “transição”. Nos dicionários holandeses Veer também pode significar “pena”, “pluma”, “penacho”, “plumagem”, “enfeite”. Dá origem ao verbo “emplumar-se”. De fato, Stacia é “toda emplumada”, alguém que na gíria brasileira poderia receber a alcunha de “perua”. Os resultados das combinações seriam semelhantes a “muito efêmera” e “exageradamente enfeitada”. É como Stacia sempre se encontra, ao usar tudo aquilo que se adéqua à sua suposta individualidade. Entre esses usos está o do produto que simboliza o maior dos fetiches de valorização social e dos avanços tecnológicos cujo consumo é menos uma necessidade do que uma identidade outorgada temporariamente: o Elastagel.
O Elastagel: “último modelo” e signo de personalidades amorfas
Quais as relações entre Stacia e o Elastagel? Para compreendermos, antes é preciso analisar o modo como este último é representado. Produto fictício, um dos referenciais sígnicos dos avanços científicos da realidade alternativa daquelas personagens, o Elastagel funciona simultaneamente como reiteração visual de algumas das propriedades “mercuriais” da HQ e como substituto para diversos outros materiais. Ele ocupa o lugar de plásticos, borrachas, tecidos, vidros e é programado em conformidade com as necessidades e/ou desejos de cada consumidor. É reaproveitável e sua estrutura é construída em bases nanotecnológicas. Disso decorre sua plasticidade e possibilidade de programação tal qual um software. Como vestimenta, amolda-se ao corpo, permite o ajuste a cada usuário pelo tamanho e pela especificidade da forma. É indeformável: se rasgado ou danificado, sua “nanoprogramação” imediatamente se prontifica a reparar o dano, tornando a vestimenta nova em folha. O Elastagel seria, afinal, a suprema personalização num sistema de objetos, nos termos de Baudrillard:
(…) em uma era de consumo ou que assim se pretende, é a sociedade global que se adapta ao indivíduo. Não somente vai ao encontro de suas necessidades, como toma bastante cuidado em se adaptar não a esta ou àquela necessidade sua, mas ao indivíduo próprio pessoalmente (Baudrillard, 2002, p. 178).
A questão é tratada, como se pode ver, numa obra ficcional e certamente não se possui, até o momento, algum material com tamanha versatilidade e praticidade. Entretanto, a suposta personalização ideal daquele produto é o mote para uma crítica à conversão ao standing. No roteiro, não há a menor necessidade de substituição dos materiais existentes. Entretanto, as medidas publicitárias estimuladoras do consumo contribuem fortemente para o uso desse último modelo, desse material mais “moderno”, mais “condizente com o estilo da época”. A publicidade com sua função gratificante, infantilizante, satisfaz as instâncias imaginárias, enquanto o progresso técnico e o produto visam satisfazer as necessidades materiais. No entanto, que necessidades seriam essas? A publicidade constrói e responde a outras construções, cria necessidades que não as fisiológicas ou as de sobrevivência, mas sim as de convivência e de conformidade ao imperativo coletivo, a autoinserção na massa, ainda que através do discurso da diferenciação e da formação identitária. Baudrillard a esse respeito cita textos publicitários como “materiais novos para afirmar o estilo de nossa época. (…) Depois da idade da pedra e da madeira, vivemos, em matéria de mobiliário, a idade do aço” (Baudrillard, 2002, p.178). Se a publicidade fosse realizada na HQ, o final do texto seria substituído por “a idade do Elastagel”. O sentido é basicamente o mesmo.
Uma obra de ficção, como qualquer outra que expressa o imaginário da época de sua produção, comporta os anseios, preocupações, temores e expectativas que fazem parte das práticas e representações sociais vigentes, assim como seus tabus e exclusões. Não é aleatório o uso dessa figura retórica e também visual, nem tampouco se encontraria ali apenas com a finalidade de ocupar espaço na narrativa e entreter seus leitores. Mais do que isso, constitui um discurso de quem vive um momento em que as produções industriais e a publicidade atingem um nível de sedução das populações em prol de um consumo muito além das necessidades físicas. É a discussão acerca do que é realmente necessário, a indicação literária de uma dependência do desejo e do seu avassalador estímulo via meios de comunicação. Vai-se além, ainda, das necessidades de integração social, tal como em décadas anteriores. O sistema de obsolescência planejada recria e impõe uma outra necessidade de integração, com mecanismos de inserção do indivíduo não num grupo que se identifica pela classe ou por um paradigma ideológico, mas sim pelo ingresso numa poderosa corrente de desejo e descarte, de autogratificação e insatisfação ininterruptos. Saciam-se vontades, não necessidades (Campbell, 2006, p. 49). Na edição 11, essas representações fazem eco ao que diz Denise Macedo Ziliotto:
(…) se consumimos signos e não objetos, o consumo é uma prática idealista total que faz com que não haja fim para o consumo, que ele não seja saciável. Dinamizado por um projeto sempre frustrado e subentendido no objeto, o consumo se fundaria, então, numa ausência irreprimível (Ziliotto, 2003, p. 33).
É esta a questão. Mesmo inexistente, pelo menos por enquanto, o fabuloso material da moda na HQ, que teria suas virtudes, a propósito, é a imagem retórica de mais um contributo à obsolescência de numerosos materiais. Objetos que tornar-se-iam sucata em favor da satisfação provisória dos desejos, e não exatamente das necessidades, até que fosse produzida uma nova substância cujas propriedades e diferenciais substituíssem as do Elastagel. Não seria, portanto, o material em si ou aquilo no que ele se transforma, mas o símbolo que ele carrega e seus aspectos inovadores, o diferencial, o fator que os demais não possuem e que pode possibilitar o exprimir de uma identidade.
Num ponto mais adiantado do capítulo, todos os artefatos feitos de Elastagel sofrem um “defeito” e ganham vida nos corpos de seus usuários, nas ruas, em todos os objetos e estruturas, que então somam milhões de toneladas, unindo-se em algo comparável a um oceano de massa amorfa esverdeada (ver Figuras 2 e 3). Ao tornar-se amorfo e monstruoso, o que passa a ser representado é o caos subjacente àquela aparente ordem. Naquele ponto, eis a deixa para a entrada em cena da heroína.
A “Pseunami”, título dado ao capítulo ora estudado, uma mescla de “pseudo” (falso) e “tsunami” (onda gigante), se por um lado inscreve-se nos temores coletivos do final do século XX de catástrofes naturais, por outro representa a ilusão veiculada pela publicidade, que é consumida como uma segunda coisa, além do próprio produto. Tsunami, devido à gigantesca produção de objetos de consumo cuja necessidade é duvidosa, mas que inserem o consumidor individual num sistema universal, o standing. Seria essa conversão ao standing, que ao mesmo tempo propõe a suprema individualização/personalização, mas condiciona à aquiescência dos códigos de valores coletivos submetidos às normas do consumo do capitalismo industrial. A função da publicidade seria, segundo Baudrillard, converter-nos a tais valores. Quanto ao standing e aos códigos supracitados, o autor acrescenta:
Este código é totalitário, ninguém lhe escapa: escapar a ele em caráter privado não significa que deixamos de participar a cada dia de sua elaboração no plano coletivo. Não crer nele é ainda crer que os outros nele creiam o bastante para entrar, mesmo ironicamente, no jogo. Mesmo as condutas refratárias a tal código são consideradas em função de uma sociedade que a ele se conforma (Baudrillard, 2002, p. 203-203).
Como crítica, a representação de uma Pseunami formada pela liquefação de um “último modelo”, como uma massa homogênea que submerge no caos todas as identidades (homogeneidade por trás da particularidade), elimina as possibilidades de identificação e traz à tona a matriz cultural do temor diluviano ou do julgamento. Ali, porém, o dilúvio é o da perda de referenciais. Seria preciso uma super-heroína para tornar a fazer sentido e exaltar o que seria subjacente ao consumo.
Conforme indicado inicialmente, a Figura 4, logo acima, apresenta a personagem Stacia Vanderveer, amiga de Sophie Bangs logo na primeira edição da série. Desde o início, a propósito, nota-se a representação do grande apelo ao consumo ao longo da cidade através dos outdoors e luminosos. Aqui, finalmente, encontramos as relações entre os significados do nome e da visualidade de Stacia e a conversão ao standing na forma do uso generalizado do Elastagel. Excesso de mudanças, usos de objetos em profusão, a identificação com o último modelo, individualismo, desreferencialização identitária e assim sucessivamente, tornam Stacia, da edição 1 a 11, o protótipo do consumidor pós-moderno e o Elastagel seu mais perfeito indicador de personalidade.
No primeiro dos quadros acima, em primeiro plano, lendo uma revista, está ela, exótica e superficial, cujo visual, não custa reiterar, é marcado pelo consumismo e hibridismo, além do sincretismo/inclusivismo. Nela convivem um comportado cabelo armado ao estilo dos anos 50-60, com uma flor como enfeite conferindo um toque infantil ao visual que mescla sensualidade, adolescência e agressividade. Stacia usa uma gargantilha com rebites ao estilo Heavy Metal, um maroto vestido curto quadriculado, com as pernas à mostra e uma jaqueta de couro à moda “bad boy”. Seus óculos, cujo desenho remete ao visual “gatinha”, são acompanhados de duas excêntricas lâmpadas para ler em locais escuros sua estranha revista do “Gorila Chorão”. A seu lado, a nada extravagante Sophie, acentuando, por contraste, o exotismo da amiga. A imagem pede uma breve análise como a que se segue, visando estabelecer os nexos entre ela e as questões aqui associadas à pós-modernidade e à crítica ao consumo e conversão ao standing.
A cena é composta por duas sequências, uma de ambiente externo outra no interior do táxi flutuante, futurista, mas cujo design da carroceria é o de um carro que lembra os anos 1970, inclusive com seu parachoques metálico, pouco comum no final do século XX, em que a indústria automobilística passara a produzir mais frequentemente essa peça em material plástico. A diagramação e a sequencialização transmitem a ideia de simultaneidade entre os dois ambientes. O recurso situa o leitor no contexto em que vivem as personagens ao mesmo tempo em que oferece uma dimensão do plano psicológico das mesmas, apresentando-as em alguns de seus maneirismos ao leitor. Sophie, com suas características icônicas sugerindo simplicidade, pouco afins com o ambiente externo e com Stacia, se destaca mais pela diferenciação que pelo “olhar da câmera” do artista. Este mantém a vista em contre-plongée, isto é, de baixo para cima, gerando a impressão de superioridade, enormidade, alongamento. Isso ocorre tanto na representação do trânsito e dos grandes prédios quanto na comparação entre Stacia e Sophie. A primeira aparece “dignificada”, perfeitamente identificada com a totalidade do ambiente. Note-se que as falas do primeiro quadro confirmam a ideia de que o consumo e a superficialidade seriam mais atraentes para os habitantes daquele mundo do que a busca por sentido que motiva Sophie. Numa tradução livre, ali se lê: “Promethea, o mesmo nome de poemas do século XVIII, tiras de jornal, revistas pulps e em quadrinhos. Isto é que é interessante! ‘Gorila Chorão’ não faz sentido!”, diz Sophie. “Não há sentido, esta é a genialidade do ‘Gorila Chorão’”, retruca Stacia, vista de baixo para cima. Esta é a fala da personagem, a princípio, inconsciente das “artimanhas” dos autores, que situam o Gorila Chorão numerosas vezes, nesta e noutras edições, em outdoors e publicações. Sutil e estrategicamente, colocam-no em cenas nas quais suas falas criam um clima de ironia sobre o que dizem e vivem os demais personagens naqueles momentos. Na cena em questão, por exemplo, o Gorila da revista de Stacia diz: “choke – Modern life makes me feel so alone! (“suspiro”, a vida moderna me faz sentir tão sozinho!), uma dica a respeito do excesso de individualismo das sociedades pós-modernas representadas ali por Stacia, que parece perfeitamente adaptada, mas que requer as compensações dos objetos a preencherem seu “vazio identitário”.
Ainda em relação aos códigos visuais, há plongée, vista de cima para baixo, achatando as personagens, apenas no quadro intermediário do detalhe da conversa e no terceiro quadro, à direita, em que Sophie se encontra de costas. A forma de Stacia, no entanto, permanece bem maior que a de Sophie, que nesse quadro, devido ao plongée, acentua sua pequenez. É interessante notar que a pequena e humilde Sophie tornar-se-á, algumas páginas depois, uma semideusa de quase dois metros de altura, com poderes incalculáveis. A proposta de Moore, afinal, também abarca a ideia de que a imaginação suplanta todo tipo de limitação e é a verdadeira ponte de ligação entre a potencialidade e a realidade, o mecanismo, por excelência, que possibilita o conhecimento ou o “fazer sentido”. Os objetos de consumo representados na obra da mesma forma fazem parte desse universo do sentido, quando, por intermédio das construções midiáticas e da propaganda, suprem as “necessidades”, ou melhor, representam identidades e satisfazem “vontades”. No entanto o fazem sem saciar necessidades propriamente ditas. De fato aquela sequência revela a seguinte relação salientada por Baudrillard:
Os que negam o poder de condicionamento da publicidade (dos mass media em geral) não apreenderam a lógica particular de sua eficácia. Não mais se trata de uma lógica do enunciado e da prova, mas sim de uma lógica da fábula e da adesão. Não acreditamos nela e todavia a mantemos. No fundo a demonstração do produto não persuade ninguém: serve para racionalizar a compra que de qualquer maneira precede ou ultrapassa os motivos racionais. Todavia, sem “crer” neste produto, creio na publicidade que quer me fazer crer nele (Baudrillard, 2002, p. 175-176).
Assim, Stacia, na verdade, não “acredita”, naquilo que consome, mas sim naquilo que o produto representa enquanto construção publicitária.
A visão em contre-plongée também enfatiza os “discos voadores” da cena, na verdade veículos policiais daquela Nova Iorque alternativa, que direcionam seus fachos de luz para uma minúscula figura humana no alto de uma construção. É como se o sujeito no espaço urbano fosse aniquilado pelas marcas, pela monumentalidade das edificações. A imagem ainda sugere que aquela figura humana está sob suspeita de um controle absoluto dos poderes vigentes ou submetida aos imperativos da visibilidade e do desejo: não se escapa do sistema, não se fica na penumbra impunemente.
*Carlos Hollanda é doutor em Artes Visuais pela EBA/UFRJ com tese ganhadora do Troféu HQMIX e mestre em História Comparada (IFCS/UFRJ). Coordenador e professor da pós-graduação em História da Arte da UCAM Ipanema, professor de Semiótica no IED-RIO e editor da revista “História, imagem e narrativas”.
Referências
BARBOSA, Lívia & CAMPBELL, Colin. Cultura, consumo e identidade. Rio de Janeiro: FGV 2006.
BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. São Paulo: Perspectiva, 2002.
DOUGLAS, Mary. O mundo dos bens – para uma antropologia do consumo. Rio de Janeiro: UFRJ, 2004.
GODWIN, David. Cabalistic encyclopedia. Saint Paul: Llewellyn Publications, 1997.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
MOORE, Alan, WILLIAMS III, J.H. Promethea # 11: Promethea under attack. USA: America’s Best Comics, 2000.
MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX – o espírito do tempo – 1 – Neurose. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1981.
RUDOLPH, Kurt. Gnosis, the nature & history of gnosticism. New York: Harper-Collins 1987, p. 53-88.
ZILIOTO, Denise Macedo. O consumidor: objeto da cultura. Petrópolis: Vozes, 2003.
Fanpage sobre o selo America’s Best Comics: disponível em http://www.leguy.de/comics/abc/. Acesso em 3 ago. 2009.
Artigo acerca do documentário sobre Alan Moore, do diretor Dez Vylenz: disponível em http://www.omelete.com.br/cine/100002225/_i_The_mindscape_of_Alan_Moore__i_.aspx. Acesso em 4 ago. 2009.
Referência do sobrenome Van der Veer em holandês: disponível em http://www.veerhuis.org/genealogy/VanDerVeer.html. Acesso em 14 ago. 2009.