Resumo: Este texto é um exercício para pensar o que é habitar uma fronteira sem deixar de lado o feminino que está, historicamente, enclausurado e silenciado dentro da mulher. Um movimento no sentido da batalha da linguagem, um gesto de investigação d’O livro das comunidades, de Maria Gabriela Llansol, e sua interlocução com uma outra que podemos ser, um outro também.
Palavras-chave: Fronteira; feminino; mulher; linguagem.
Abstract: This paper is an exercise to think about inhabiting a border, not forgetting the feminine that is, historically cloistered and silenced within the woman. A movement towards the battle of the language, a gesture of investigation of The Book of the Community, by Maria Gabriela Llansol, and its dialogue with the other that we can be.
Keywords: Border; feminine; woman; language.
0.
O exercício de tentar percorrer, com o dedo, a Fita de Moebius, explicita seu mistério. A sinuosidade da linha mobiliza o corpo num impasse, um não poder seguir enquanto a imagem ali afirma uma ambivalência do que é dentro e do que é fora. A Fita tem sido, talvez de modo mais contundente depois de Caminhando, exercício-obra de Lygia Clark, de 1964, um argumento no sentido do que está para além das dualidades e oposições – que não dão conta das muitas formas de existência.
Essas dualidades, no entanto, continuam sendo a fórmula encontrada nos muitos discursos com os quais nos deparamos: esquerda versus direta, homens/mulheres, homens/bichos, crianças/adultos, “cidadãos de bem” x “bandidos”, nós versus eles, enquadramentos, enfim. Como a existência se faz possível quando é costurada por tantas limitações? Mas, do mesmo modo, como evidenciar a violência cotidiana sofrida por quem não se enquadra nas normas? Como respirar nesse desconforto? Impedir o sufocamento? Habitar a imprecisão e a fronteira? “Havia pensado antes de fazer esta psicanálise em me tornar analista, mas agora quero continuar na ‘fronteira’, pois é isso que sou e não adianta querer ser menos fronteira”, escreve Lygia em carta para Hélio Oiticica (1998, p. 254). O ano era 1974 e a artista, morando em Paris, executava seus experimentos em que grupos compartilhavam situações na beira arte-psicanálise. Ser artista ou psicanalista já não era uma escolha.
1.
Lygia e outras de suas obras continuam, neste momento, a percorrer o caminho proposto por este trabalho, que intenta uma interlocução com outra artista, a escritora portuguesa Maria Gabriela Llansol. Mantenho Lygia por perto, depois de um pequeno preâmbulo, em que fica anunciado o solo mesmo em que pisa esse texto, por conta de seus Bichos e suas engrenagens de ferro, manuseáveis dado a junção de suas partes por dobradiças. Os Bichos não têm avesso, escreve Lygia (1960), e não tendo avesso não têm direito. Requerem do pensamento uma disponibilidade para o outro – a outra – que podemos ser.
A outra, no feminino, principalmente – esse feminino violentado, silenciado, vilipendiado. Um feminino entendido aqui na borda do gênero, na beira, que habita muitos mundos e que é, também, inventor desses mundos: o feminino que gera – não (apenas) filhos, mas cosmogonias. É dessa porção dos seres, numa conversa com O livro das comunidades (2014) de Llansol, que se encarregam as páginas que seguem. Uma tentativa no sentido de conversar com as obras e montar perguntas que orbitam essas categorias. Que feminino é possível? Que animal é o bicho-mulher? Que existência?
Por isso a lembrança aqui dos Bichos, de Lygia: o manuseio das suas partes, das suas placas de metais, é produtor de uma terceira coisa. Se transforma pela ação de quem o movimenta, mas, ao mesmo tempo, o Bicho não se entrega à passividade, e o que vem a ser depende de ambos – quem manuseia e ele próprio: “Acontece um tipo de corpo-a-corpo entre duas entidades vivas” (Clark, 1960). A batalha, o enfrentamento, o texto, o feminino, todos presentes n’O livro das comunidades (LC), aqui se encontram na ativação de um pensamento pelas beiras, sobreposições, fragmentos. Mais uma vez: que feminino é possível? Que animal é o bicho-mulher? Que existência?
2.
Durante a tempestade, uma mulher e ser vivo sentou-se no solo arenoso por detrás do cavalo; tinha todo o comprimento das pernas tapado por uma longa saia, o busto assente num supedâneo de pedra preta ou ardósia. Com o primeiro relâmpago, a saia abriu-se numa rosa: a pétalas multiplicaram-se tantas quantas as areias do deserto. (…)
Enquanto cozinhava sobre as brasas, o mestre na arte de pensar experimentou o sentimento de ser rosa, de constantemente se abrir em pétalas e perfumes, de ser dama onde a fome monstruosa se acaba e de poder com rapidez ter filhos, tirá-los debaixo da saia, um instante apenas entre fazer amor e lançar crianças (Llansol, 2014, p. 38).
Essa mulher vestida de rosa é também feita de carne e pedra, articulando imagens já conhecidas. Llansol joga também com os artigos definidos: entre os dois parágrafos aqui demonstrados, ela escreve: “o homem deve abdicar do poder e a mulher do homem, pensou a mulher que cozinhava na areia e era mestre na arte de pensar” (p. 38) – sendo ela, portanto, o mestre da arte de pensar. E então o texto apresenta uma inflexão: as crianças são lançadas, tão logo o amor é feito. Uma ideia de jogar ao mundo esse texto que é vida, autônomo em sua força. Llansol dá ainda a medida do fim da fome monstruosa, esse radical do corpo que leva ao aniquilamento: é a dama esse fim, o feminino que faz a comida. Silvina Rodrigues Lopes sugere: “não é apenas como ideia (como símbolo) que devemos ver a mulher. Porque é aquela e não outra” (Lopes, 2014, p. 76). Llansol está a dizer, portanto, que o exercício não é tomar um pelo outro, mas encarar o texto como ele é, a apresentação da própria forma.
O livro se inicia (depois de um prólogo que chama Eu leio assim este livro, assinado por A. Borges, que não conhecemos) com a imagem de uma mulher que não queria ter filhos do próprio ventre, mas que pedia aos homens os filhos de suas mulheres, “para educá-los numa grande casa de um só quarto e de uma só janela” (p. 11). Não fica bem claro quem é essa mulher. De alguma forma, porém, ela continua a povoar o texto, dado que duas de suas figuras (termo que Llansol prefere para se referir ao que mais frequentemente se chamaria personagem), Ana de Peñalosa e Ana de Jesus, habitam o texto também como mães – as que geram e estão presentes. Ao longo do livro, Llansol organiza cenas como Lugares, e tudo se dá neles: “tudo se passa no ‘agora’ da efabulação, aquele em que se está a escrever-ler, pois nada importa pelo seu ‘foi’ ou ‘será’, mas pelo ‘é’ em que se cumpre, para sempre, pelo indizível confronto entre palavras, memórias e silêncios” (Lopes, 2014, p. 63).
São João da Cruz e Tomás Muntzer, principalmente, são outras de suas figuras. Mas também Ana de Peñalosa, Ana de Jesus, Copérnico, Giordano Bruno, Nietzsche, a cadela Maya, o cavalo Pégaso (que depois se transforma no Coração de Urso), Mestre Eckhart, entre outros. Tais figuras atravessam o livro no constante jogo que é escrever, transformar a existência em texto, deslocando referências e revirando o solo mesmo pelo qual caminham. O que Ana de Jesus escreve, sem caneta ou papel, é texto, é existência. Assim como as pegadas do cavalo e o desenho que a quilha do barco faz na água. As imagens que Llansol apresenta são um exercício para pensar a existência por texto e escrita, aquela que se pode fazer, que vem da mão, mas também das marcas deixadas no e pelo corpo dos viventes.
Todas as figuras ocuparam a história ocidental em algum momento, e são retirados dessa história para compor outra pelas mãos de Llansol. Eles foram rebeldes – LC faz parte de uma trilogia que tem por nome Geografia de rebeldes[1]. Não se encaixaram e tentaram mostrar um outro mundo aos que os podiam ler ou conviver.
As figuras criadas no LC ajudam-nos a ver o inacabado do mundo, os seus vazios ou presenças sem imagem. Uma figura tem algo a ver com uma imagem, mas distingue-se dela radicalmente. Na imagem prevalece a analogia. (…). A figura é um todo múltiplo que não é “figura de” (Lopes, 2014, p. 68).
É o que acontece também a Giordano Bruno e Copérnico, mencionados n’O livro. Copérnico medita e a luz do dia entra pela janela: “E ao meio de tudo repousa o sol” (Llansol, 2014, p. 44). Sabemos que tal frase era uma heresia. Depois é São João da Cruz “que medita, o Sol de Copérnico batendo-lhe nos olhos e prendendo-lhe a cabeça de Müntzer entre as mãos” (p. 45). O sol que Copérnico, perseguido como Bruno, também posiciona “ao meio de tudo”. Duas esferas – o sol e a cabeça decapitada – o meio de tudo, a cabeça do homem moderno, a centralidade posta à prova – movimento necessário ainda hoje quando pensamos em toda necessidade de desfazer os centros.
3.
E por isso a urgência de pensar o feminino, historicamente enclausurado e silenciado. Foi esse o feminino oprimido, e com ele o corpo e as possíveis fabulações da mulher, diretamente conectada com ele. Mas não há, também, feminino no homem? O feminino, portanto, para além dos gêneros. Entender o lugar fronteiriço que habitamos faz parte do exercício de abrir brechas nos encadeamentos normativos impostos. Espaços de respiros. Ensaios de percepção do lugar que ocupa a mulher na literatura e no campo da arte.
Pela conexão direta do feminino com a mulher, e dado esse lugar de silenciamento, Llansol, à semelhança de suas figuras e as histórias que a elas estão conectadas, não ocupa lugar de destaque no mercado literário (talvez num restrito circuito acadêmico, ou de leitores). Não é largamente conhecida nem recomendada, como não o são outras autoras mulheres – ao contrário de muitos dos nomes de homens que se apresentam ao lembrarmos dos nossos autores preferidos.
Por que não houve grandes mulheres artistas?, então? A professora de arte moderna Linda Nochlin, que intitula o pequeno ensaio de mesmo nome, faz a pergunta. Considerada historiadora da arte feminista, Nochlin nos sugere não cair na armadilha de tentar responder à pergunta da forma como ela é colocada – montar as tais listas se mostra importante em outro contexto – mas, “ao tentar respondê-la, elas tacitamente reforçam suas implicações negativas” (2016, p. 4). Outro ímpeto, aponta a autora, é destacar as diferenças, na arte, entre homens e mulheres, selecionando temas caros ao que está referenciado como feminino e masculino. Outra armadilha: “a mera escolha por determinado tema, ou a restrição por determinados assuntos, não pode equiparar-se a um estilo, muito menos a um estilo feminino quintessencial” (p. 6).
Neste contexto, que parte da questão como está colocada, a estratégia é outra: desmontar essa estrutura mesma que a forja. Quem a está formulando? De onde ela parte?, o que está sendo chamado de grande? Nochlin sugere pensar não só sobre a “questão feminista”, mas outras, de outras minorias, também oprimidas e silenciadas: “em nossos tempos de comunicação instantânea, as questões são rapidamente formuladas para racionalizar a má consciência daqueles que detém o poder” (p. 9). Dessa maneira, a “questão da mulher” é manuseada pelo patriarcado, assim como a “questão da pobreza” é de manipulação das elites, e a “questão branca” a ironia que distorce a “questão negra”.
A dita “questão da mulher”, como todas as questões humanas (e chamar tudo o que é humano de “questão” é uma ideia bem recente[2]) não é passível de nenhuma “solução”, já que o que envolve as questões humanas é uma reinterpretação da natureza da situação ou de uma alteração radical de posição ou programa por parte das próprias questões (p. 9).
Em outras palavras: rever a história, remontar a memória. Pelas mãos dos grupos oprimidos, por óbvio. É contra as estruturas institucionais que precisamos nos erguer, nos diz Nochlin, e a naturalização dessas estruturas, que posiciona os seres e os nomeia, silenciando neles (em nós) a experimentação da linguagem. É, de modo semelhante, o que também diz Virginia Woolf quando escreve Um teto todo seu, em 1928.
Logo nos primeiros capítulos, Woolf descreve o dia em que recebeu duas mensagens importantes: a herança de uma tia, que a beneficiava com um valor fixo mensal, e a aprovação do decreto que incluía as mulheres nos processos eleitorais com o voto. Para ela, a notícia da renda fixa era infinitamente (e ela usa esse advérbio) mais importante. Naquele momento, não depender de um homem, não estar subjugada aos seus mandos por ser mantida por ele, foi libertador.
É impressionante a mudança de ânimo que uma renda fixa promove. Nenhuma força no mundo pode arrancar-me minhas quinhentas libras. Comida, casa e roupas são minhas para sempre. Assim, cessam não apenas o esforço e o trabalho árduo, mas também o ódio e a amargura. Não preciso odiar homem algum: ele não pode ferir-me. Não preciso bajular homem algum: ele nada tem a dar-me (Woolf, s/d, p. 48).
A herança recebida da tia desmontava, conta a escritora, o posicionamento previsto para uma mulher no começo do século passado (curioso pensar que a autonomia financeira ainda é um passo pungente da luta – mas mesmo essa autonomia não nos livra da opressão). Antes dela, antes da herança, antes de Virginia Woolf ser a escritora requisitada para falar sobre mulheres e literatura, a presença das mulheres nas listas de artistas era ínfima. O capítulo terceiro de Um teto todo seu conversa intimamente com o ensaio de Linda Nochlin, e também percorre a pergunta: por que não houve grandes mulheres artistas? “Pois é um enigma perene a razão por que nenhuma mulher escreveu uma só palavra daquela extraordinária literatura, quando um em cada dois homens, parece, era dotado para a canção ou o soneto”, se indaga Woolf (s/d, p. 53). Ela recorta o período elisabetano, tempo de Shakespeare, mas nós podemos, com pouca dificuldade, estender o argumento para outros tempos e territórios: “A indiferença do mundo, que Keats e Flaubert e outros homens de gênio tiveram tanta dificuldade de suportar, não era, no caso da mulher, indiferença, mas, sim, hostilidade” (p. 66). Quem de nós não passou por isso?
Vale ainda um outro argumento de Linda Nochlin, ampliando um problema já apontado por Virginia Woolf: a ideia que temos do que é ser um artista. Por muito tempo o imaginamos grande e iluminado, atrevido e impertinente, descolado dos problemas prosaicos e cotidianos. Não o alcançamos, e essa é a motivação da imagem que se constrói sobre ele – aumentar tal fosso.
Encorajar uma abordagem desapaixonada, impessoal, sociológica e institucionalmente orientada, revelaria toda uma subestrutura romântica, elitista, de mérito próprio, monotemática na qual toda a carreira da arte está baseada (Nochlin, 2016, p. 13).
Fica, assim, evidente que a ausência de “grandes mulheres artistas” aponta, na verdade, para o problema de uma estrutura montada e institucionalizada, de categorias estanques. Aponta, portanto, para o problema de se haver perfilado, categoricamente, quem é aceito e quem não é. Quais os caminhos possíveis para desestabilizar essa estrutura? Quais desvios possíveis, tendo em vista que não interessam novas estruturas? Como habitar a fronteira?
Essa batalha, para Maria Gabriela Llansol, se dá na escrita, no manuseio da linguagem, num outro modo de dizer. A batalha não se distingue da caminhada que fazem as figuras, elas se atravessam e se perfazem, nos dizendo da indissociação do movimento e da luta. “Ana de Peñalosa e Ana de Jesus nessa noite não dormiram um instante. Vestiram os vestidos que melhor as exprimiam; e esperaram sentadas uma em frente a outra, vendo sempre no mesmo espelho o que se passava” (Llansol, 2014, p. 46). Um jogo de reconhecimento, de correspondência entre uma e outra, assim como correspondência entre o texto e o mundo. Jacques Rancière, em La palabra muda (2009), também aponta uma correspondência: que as leis da linguagem são as leis do mundo – o que pode ser lido como a abstração de um fim: leis infinitas. Experimentar a linguagem é mover essas leis. É, assim, a mesma chave de disponibilidade que vem sendo investigada aqui, já que infinitas são as combinações das imagens de Llansol, montadas a partir desses fragmentos, de curtas sugestões conectadas a outras, num encadeamento também infinito. O fragmento é, afinal, o modo como a realidade se apresenta. Caso assim não fosse, seria impossível sustentar a intensidade que ela carrega em si (Llansol, 2011). Rancière é preciso sobre este ponto:
El fragmento es la unidad en la cual toda cosa fijada vuelve a introducirse en lo movimiento de las metamorfosis. Desde un punto de vista filosófico, es la figura finita de un proceso infinito. Desde un punto de vista poético, es la nueva unidad expresiva que reemplaza a las unidades narrativas y discursivas de la representación (Rancière, 2009, p. 80).
Por todo o livro é vívido o estar junto como acontecimento, o que se dá ali, mas não se instaura nem se cristaliza. O texto é um exercício de abandono, afinal: “Tinham a impressão de caminhar através do tempo, o espaço não era nada; deixaram a casa, a janela, o rio, o deserto, o bosque, as regiões polares e concentraram-se na palavra” (Llansol, 2014, p. 46). A concentração na palavra também se dá ao jogo do abandono e do desfazimento. O texto do qual se compõe o mundo não permanece: “a escrita não se deixa caracterizar por uma só comparação. Era isto que estava escrito e que rapidamente se apagou” (p. 58).
Llansol apresenta um texto e com ele nós, os legentes (termo com o qual a escrevente se refere aos seus leitores) constituímos sua intervenção no mundo. Estar em contato com um texto que se fragmenta e que assim perscruta uma totalidade é de um estranhamento ímpar. O convite que ela nos lança (do mesmo modo como as suas mulheres fazem amor e lançam crianças?) é quase incômodo, mas continua sendo poético. “A fecundidade do dom é a única retribuição do dom” (p. 42), ela nos diz. Um ciclo, talvez? Uma engrenagem de seres, todos juntos, compondo essa totalidade, atuando nos dentro-fora? O avesso de uma identidade, que não a exclui, mas também não se fecha nela: “o ser humano é o único que pode arriscar sua identidade”, responde Llansol em janeiro de 1995 ao jornal público (republicada no livro de 2011, Entrevistas).
Ler O livro das comunidades provoca um rebuliço, são muitas vozes que se entrecruzam. Llansol sabe disso, e por aí procura fazer com o que o legente perceba o enfrentamento que está a encarar: “abalos sísmicos”, “abalos energéticos”, chega ela a descrever, “em que eu pressinto que esta terra onde nós estamos pode ser utilizada de outra maneira” (2011, p. 55), em trecho de resposta para uma entrevista de 1997. O feminino do qual somos constituídas – constituídos – também pode ser manuseado de outra maneira?
Essa outra maneira, assim, tem a ver com o nosso feminino exposto, constituindo um comum com as outras ordens dos seres. Feminino criador de cosmogonias, que faz nascer, portanto, mas que “não é ele próprio nem um determinismo biológico nem uma Lei da Comunidade” (Lopes, 2014, p. 83). Que provém o texto e a escrita, um feminino propositor de uma totalidade em que os seres se completam e estão abertos às combinações possíveis – que não se enclausura, enfim. Uma compleição que não se diz harmoniosa, mas se vincula a uma correspondência no estar juntos. “O vínculo deve respeitar o ritmo das mudanças e perceber em potencialidade a forma assumida por aquilo que a precede” (Bruno, 2012, p. 34), assinala Giordano Bruno, uma das figuras d’O livro.
Giordano Bruno sugere um encadeamento e fala em ritmo, que na leitura de um texto é algo muito particular – ditado apenas por quem lê. O ritmo que se dá numa entrega, sem opressão, idiorrítmica, como entendia Roland Barthes (2003, p. 12) – sua fantasia era a idiorritimia: “Uma fantasia (ou pelo menos algo que chamo assim): uma volta de desejos, de imagens, que rondam, que se buscam em nós, por vezes durante uma vida toda”. A fantasia da qual fala Barthes pressupõe um cenário, um lugar, que é, afinal, como se organiza O livro das comunidades. Quanto ao ritmo, próprio, Llansol pergunta, em seu segundo diário publicado, Finita: “Por quanto tempo lês um pequeno período extenso?”. A frase vem entre aspas, mas sem referências. A resposta, sem aspas, é uma outra pergunta: “Por um segundo, um minuto, um ano, toda esta noite, toda esta vida? Ler estende-se pelo tempo e quer o espaço do dia-a-dia para projetar a sua sombra. Ler estende-se por vertentes desconhecidas, e eu leio pouco, mas infinitamente” (2011, p. 116).
As sugestões da escrevente sobre como ler o próprio texto são importantes também para quem se dispõe a estar diante da folha em branco, da pungência da página não escrita. Se o que ela convida é a um modo de leitura infinita do mundo, dos seres ao redor, dos livros ao redor, leitura para o pensamento, pelo pensamento, leitura que monta, como já foi dito aqui, um “correspondente do mundo” (2011, p. 15), é possível estender esse modo como chave de leitura de sua escrita. Ou uma sugestão de como entender o feminino em sua obra. Qual a forma da escrita de quem faz a leitura de modo “infinitamente”?
5.
Antes de findar essa conversa, longe de qualquer tentativa de conclusão, vale contar a história de uma pintora de séculos atrás. No final do XVI, quando não havia Itália, mas Vaticano, que violentamente expandia seu território em nome de Deus, a pintora Lavínia Fontana ocupava o lugar de uma bem-sucedida artista no alto clero e na alta aristocracia da Bolonha. Incentivada pelo pai, Próspero Fontana, “agenciada” pelo marido, um pintor que não chegou a conhecer fama, e com quem teve 11 filhos, Lavínia deixou para a história uma série de pinturas e desenhos que atestavam o que era ser mulher naquele tempo – ainda hoje uma existência que causa incômodo.
Lavínia deixa entrever, em alguns de seus quadros, um cão negro. Há também um outro, branco, explícito. E o negro: ou ao fundo do quadro, longe da cena, ou no canto, muito próximo do objeto central da pintura, mas não tão exposto (como em Portrait of a Bearded Man e Nun or Young Woman with a Veil). Ademais, Lavínia deixou para a história o retrato e a vida de Tognina Gonzalez – a garota que sofria de uma enfermidade que fazia crescer cabelo por todo o corpo, inclusive no rosto, chamada hypertrichosis. Eram tratados como aberrações Tognina, seu pai e as duas irmãs, que sofriam da mesma doença. Mas Lavínia a pinta como uma garota comum – com um semblante sereno, uma postura de menina e cores amenas. A pintora, mulher num ambiente dominado por homens, talentosa na profissão que havia adotado para si num mundo em que mulheres não costumavam ter profissões de modo algum, lança uma centelha fumegante na estrutura perversa que já aí hierarquizava práticas e seres. É como se dissesse: “não tenho o rosto coberto de pelos, mas sou igualmente um ser estranho”, como se afirmasse a humanidade presente na criança.
* Júlia Lopes é doutoranda do Programa de Literatura, Cultura e Contemporaneidade da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Desenvolveu dissertação de mestrado sobre comum e comunidade tendo como objeto o projeto de ocupação urbana Lotes Vagos, de Breno Silva e Louise Ganz, na Universidade Federal do Ceará. Desenvolve pesquisa com esse mesmo escopo teórico, mas agora na trilogia Geografia de rebeldes, de Maria Gabriela Llansol.
Referências
BARTHES, Roland. Como viver junto. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BRUNO, Giordano. Os vínculos. Trad. Eliane Sartorelli. São Paulo: Hedra, 2012.
CLARK, Lygia; OITICICA, Hélio. Cartas. 1964-1974. Org. Luciano Figueiredo. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1998.
LLANSOL, Maria Gabriela. Entrevistas. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011a.
LLANSOL, Maria Gabriela. Finita. Diário II. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011b.
LLANSOL, Maria Gabriela. O livro das comunidades. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2014.
LOPES, Silvina Rodrigues. “Poética do desprendimento”. In: FENATI, Maria Carolina. Partilha do incomum. Florianópolis: Ed. UFSC, 2014.
NOCHLIN, Linda. Por que não houve grandes mulheres artistas? Trad. Juliana Vacaro. São Paulo: Edições Aurora, 2016.
RANCIÈRE, Jacques. La palabra muda. Trad. Cecília Gonzáles. Buenos Aires: Eterna Cadencia Editora, 2009.
STEPHENSON, Adrianna Hook. The portrait drawings of Lavinia Fontana: gender, function, and artistic identity in early modern Bologna. Dezembro/2008. 100 págs. Dissertação. College of Fine Arts Texas Christian University, Dezembro de 2008, Fort Worth. Arquivo em PDF disponível em: https://repository.tcu.edu/bitstream/handle/116099117/4105/stephenson.pdf?sequence=1&isAllowed=y.
WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. Trad. Vera Ribeiro. São Paulo: Nova Fronteira, s/d.
Notas
[1] Os outros dois livros que compõem a trilogia são: A restante vida e Na casa de julho e agosto.
[2] O texto foi publicado em 1971 na revista estadunidense ArtNews e traduzido apenas este ano, pela editora Aurora.