Ano XII 0201
2º semestre de 2017
resenha
Tempo de leitura estimado: 10 minutos

A INTIMIDADE DAS MERCADORIAS EM A FEIRA, DE ADRIANA ARMONY

Em seu quarto romance, Adriana Armony põe pela primeira vez a serviço da sátira a habilidade de fazer soarem vozes alheias que veio exercitando nos livros anteriores. Para lembrar só os protagonistas: um jovem Nelson Rodrigues (A fome de Nelson), uma avó que emigrou da Palestina (Judite no país do futuro) e um rapaz com sequelas neurológicas de acidente que comprometeram competência com a linguagem (Estranhos no aquário). Sempre lidando com dados documentais estrategicamente diluídos na construção ficcional, Adriana experimentou desafios bem diferentes entre si, para compor possível discurso do escritor brasileiro que estudou na tese de doutorado, uma memória judia e feminina que lhe é distante mas também é sua ou um modo de percepção e expressão refratário ao próprio ordenamento que a escrita impõe.

Em A feira já não há voz principal, são várias que se alternam nos capítulos curtos que rapidamente vão tecendo a singularidade de cada uma. Parece que Adriana Armony escolheu mesmo se dedicar a esse trabalho minucioso de fazer as palavras figurarem contornos de indivíduos que se tornam nossos próximos ao longo da leitura. O que pensam, fazem e sentem é intenso e banal, terrível e mesquinho, compreensível e indecifrável, como a vida de qualquer um. Com manejo delicado do vocabulário, do ritmo das frases e da sequência de informações, vão se delineando personagens e acontecimentos ao mesmo tempo familiares e estranhos. Algo dessa técnica está revelado no Pós-escrito autoirônico do livro, na passagem que descreve A rifa, de Alby Bloom – romance dentro do romance, cujo título anagramático, junto ao nome do pretenso autor, se sobrepõe na tarja que abraça a capa de A feira, num evidente jogo metaliterário (e também crítico em relação à recorrência desse tipo de recurso na ficção contemporânea):

[…] o romance refletia sobre a reificação dos indivíduos na sociedade pós-capitalista. […] O que na superfície era uma história fantasiosa, cheia de peripécias e emoção, na verdade era uma alegoria sofisticada, de uma ironia profunda. A linguagem limpa do livro não passava de uma armadilha: em determinados momentos-chave, ela se enrodilhava sobre si mesma em longas frases de um virtuosismo barroco. O leitor se sentia amarrado nessa armadilha, louco para voltar à superfície do enredo, onde, no entanto, o recebiam outras histórias. Não era apenas uma rifa de pessoas, mas de narrativas; e o leitor ficaria na fila até o fim (Armony, 2017, p. 154-155).[1]

A fluidez do texto e a platitude das situações em A feira provocam certo desconforto porque exprimem, de modo paradoxalmente natural, a dimensão tanto trivial quanto dolorida das complicações que habitam gente como a gente. E, aqui, a expressão “gente como a gente” não designa alguma genérica Humanidade, vem para especificar o objeto da sátira: gente como eu e você que me lê. Leitores, escritores, críticos e professores de literatura, jornalistas e produtores culturais, editores, curadores… “hypocrite lecteur, mon semblable, mon frère!” (p. 157) – a citação de Baudelaire nas últimas palavras do romance revela claramente do que se trata.

As personagens sem nome, identificadas pelo papel que desempenham no meio literário, não deixam de guardar um quê de caricato, com suas atitudes calculadas e frases feitas. Não que sejam meros tipos – fazem tipo. A narrativa as flagra justamente no cálculo dos gestos, e mesmo os mais corriqueiros podem estar esvaziados de espontaneidade para cumprir função na construção de imagem pessoal. Por exemplo, quando a poderosa Editora se esmera em preparar o papel para deixar um bilhetinho para o amante que deixa dormindo na cama “com todo o mau gosto típico de motel replicado num fim de tarde comum”: “Rasgou a parte usada com o cuidado suficiente para parecer casual, mas não desleixada” (p. 11-12).

A miséria da vida íntima submetida à lógica de mercado, em alguns casos, aflora à consciência, como acontece com a Curadora, que se sente desconfortável o tempo todo e em qualquer lugar, seja no próprio corpo cada vez mais sem viço, seja na casa deserta, sem afeto familiar, seja no espaço virtual do site de relacionamentos – o que contrasta com a performance pública de executiva bem-sucedida, ainda que ciente de há tempos ter abdicado da “literatura de verdade” (p. 15), para desfrutar o “falso gostinho do poder” (p. 14), “num país em que as virtudes republicanas caducaram antes de nascer” (p. 68).

De fato, em A feira não há nada de republicano nas relações que se estabelecem entre escritores e outros atores do meio. O Escritor Talentoso, “agora profissional” (p. 58) depois de premiado no ano anterior, põe em segundo plano suas inquietações para ocupar-se com o papel de intelectual inconformado e algo excêntrico; a barba cuidadosamente por fazer, a camisa amarrotada e uma firula gastronômica lhe conferem tanta singularidade quanto rótulos como “Borges nacional” ou “antropofágico universal” (p. 57). Na mesma linha, uma moça bonita, estrando com romance “a um tempo ágil e denso, de engenhosa sensualidade” (p. 16), que a promoveu a Promessa da Literatura, empenha com desenvoltura seu sex appeal para se aproximar dos “contatos certos”, confiante de que assim “conquistaria uma posição na Literatura nacional” (p. 21).

Do modo parcimonioso como recorre ao pastiche (discretamente explícito, muitas vezes entre aspas), a narrativa de Adriana Armony (auto)ironiza diversos artifícios literários, inclusive desmascarando a inverossimilhança do mistério pífio com que construiu suspense ou interrompendo o envolvimento do leitor com cena erótica por passagem abrupta a situação que lembra o pastelão no cinema. “Que tudo, inclusive a vida, é um grande e imperfeito jogo de palavras” (p. 155) – essa hipótese da Autora no Pós-escrito, confirmada por tantos escritores, teóricos e críticos de literatura às voltas com a crise da representação, parece tanto afirmada quanto desmentida no romance.

A feira não redime ninguém que se localize em alguma das categorias que atuam no funcionamento do mercado literário formado no Brasil das últimas décadas. Girando em torno dos preparativos e da realização de uma feira de literatura em cidade turística (qualquer semelhança com a realidade não é, claro, mera coincidência), o romance encena de modo bem-humorado diversos vícios que esse braço da indústria cultural alimenta. Ficam de fora os méritos de eventos do gênero (feiras, festas, bienais, prêmios), mas isso, de fato, não seria preciso divulgar, já há bastante mídia cumprindo esse papel; o romance de Adriana Armony assume outro. É uma empreitada corajosa da Autora, que conta de dentro o preço que se paga para participar do meio literário profissional tal como se configura hoje, revelando o lado mais perverso desse universo: as disputas por prestígio, divulgação e vantagens comerciais; o culto à celebridade; clichês que vão do modo de posar para foto – “com os olhos penetrantes (parece que a mão no queixo saíra de moda)” (p. 61) – ao jargão empregado em palestras, entrevistas, críticas e releases; dinâmica de tendências contemporâneas convertidas em nichos de mercado; mecanismos de favor e de sedução; bastidores do marketing pessoal que se veiculam em cadernos de cultura, blogs, redes sociais e queijandos…

A opção por evidenciar meandros subjetivos implicados na mercantilização da literatura é tão marcada que, afora os pequenos dramas pessoais das personagens, nada de sério vem à tona, nem mesmo a negociação comercial. Isso é literalmente visível na sequência em que editores e organizadores da Feira se reúnem para acordar os últimos detalhes da programação e da distribuição de espaços de venda. “E assim teve início a reunião” (p. 46), anuncia o capítulo que relata a chegada da Curadora à Associação dos Editores às vésperas da Feira. Porém, nos blocos seguintes, os termos do negócio são substituídos por reticências entre colchetes, à la Machado, assinalando que, na economia do romance, são dispensáveis esses dados objetivos. O que se salienta é o jogo de aparências que obedece a protocolos de uma sociabilidade pautada por encenação de finesse e cordialidade.

A REUNIÃO

[…]

Aliás, outros happenings estavam previstos, acrescentou a Curadora, sorrindo sugestivamente; em breve enviariam o comunicado com a programação fechada. Se tivessem alguma dúvida podiam perguntar.

Mas ninguém disse mais nada. A perspectiva dos comes e bebes era cada vez mais palpável. De fato, sinais auspiciosos vinham do salão anexo: ruído de talheres, arrastar de cadeiras, aromas insinuantes.

E, com isso, deu-se a Reunião por encerrada.

O COQUETEL

De pé no salão anexo ao principal, o meio editorial se dedicava a pequenas cumbucas de conteúdo delicadamente incompreensível.

Enquanto os minúsculos pratos se sucediam, a Curadora voltava-se de um para outro comentando os sucessos, os últimos lançamentos, a aparência física de um – como estava bem disposto! Como fora a viagem? Paris continuava linda? –, o casamento da filha de outro.

Ali, entre uma cumbuca e outra, as mensagens importantes eram trocadas. (p. 46-47).

Assim como a “aparência de uma conversa sobre autoficção na literatura” (p. 47) é apenas pretexto para negociação de espaço de vendas, também nas mesas de debate entre escritores nenhuma discussão literária relevante tem lugar, fica sugerida uma sucessão de lugares-comuns em debates inócuos, falas pré-moldadas em conformidade com modismos. Sobressai, como anunciado na Reunião, um happening ruidoso e um tanto ridículo, que rouba a cena dos livros para entreter o público com performance protagonizada por figuras familiares aos frequentadores de redes sociais.

Aprendemos com Guy Debord que a lógica de nossa sociedade do espetáculo não se define simplesmente pela subordinação de todas as esferas da vida à dinâmica midiática, à prevalência da imagem administrada. O que está na base da espetacularização das relações na sociedade de consumo, antes do modelo dos meios de comunicação, é a forma-mercadoria. “O espetáculo é o momento em que a mercadoria ocupou totalmente a vida social. Não apenas a relação com a mercadoria é visível, mas não se consegue ver nada além dela: o mundo que se vê é o seu mundo” (DEBORD, 1997, p. 31). É essa cara do nosso mundo literário que Adriana Armony dá a tapa em A feira, com olhar múltiplo, como se fosse aquela mosquinha em que a gente tem vontade de se transformar quando quer saber de minúcias do que transcorre mais ou menos em segredo.


* Danielle Corpas é professora de Teoria Literária na Faculdade de Letras da UFRJ, autora de O jagunços somos nós: visões do Brasil na crítica de Grande sertão: veredas.

 

Referências

ARMONY, Adriana. A fome de Nelson. Rio de Janeiro: Record, 2005.

______. Judite no país do futuro. Rio de Janeiro: Record, 2008.

______. Estranhos no aquário. Rio de Janeiro: Record, 2012.

______. A feira. Rio de Janeiro: 7Letras, 2017.

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

 

[1] As páginas de que foram extraídas as próximas citações de A feira serão indicadas entre parênteses.