A lição de Zefa _ Revista Z CulturalResumo: O presente artigo consiste numa reflexão sobre o arquivo de uma artista popular – Zefa, artesã do Vale do Jequitinhonha – a partir da reelaboração de uma experiência de pesquisa. Em tom mais ensaístico, consideram-se os modos de colecionar, os materiais e o fazer artístico na arte popular, explicitando-se questões relativas ao arquivo, à memória e à cultura popular.
Palavras-chave: Arquivo; coleção; artista popular; Zefa; Vale do Jequitinhonha.
Abstract: This article is a reflection on the archive of a popular artist – Zefa, a Jequitinhonha Valley artisan – following the re-elaboration of a research experience. In essayistic tone, materials collecting processes and popular art practices are considered, raising issues as to the concepts of archive, memory and popular culture.
Keywords: Archive; collection; popular artist; Zefa; Jequitinhonha Valley.
De Arassuaí, eu trouxe uma pedra de topázio.
João Guimarães Rosa. Grande sertão: veredas.
Fins de janeiro de l987. Um jovem pesquisador viaja pela primeira vez a Araçuaí, cidade situada no Vale do Jequitinhonha, no noroeste de Minas Gerais. Conhecido pela pobreza e carência material, o Vale apresenta, no entanto, uma riqueza cultural que se manifesta no artesanato, na música, na literatura popular. Acompanha-o uma colega de pesquisa, natural da região. Aos solavancos, por uma estrada de terra irregular, o ônibus se move vagarosamente pelas chapadas do Vale. As sombras monótonas das plantações de eucalipto contrastam com o fulgor de um céu enluarado. Uma lua cheia reina absoluta, transformando a paisagem em pura prataria. Desperto, o jovem pesquisador parece redescobrir a magia de um céu estrelado, obstruído, nas grandes metrópoles, pela potência das lâmpadas de vapor de sódio, sortilégio da eletrificação e do progresso. Difícil conter lembranças da infância fazendeira vivida na zona da mata mineira, ouvindo estórias e casos em torno de um fogão de lenha. Na bagagem, ele e sua colega levam um projeto de pesquisa – a literatura popular no Vale do Jequitinhonha –, repasto de aspirações universitárias. Entre o sono e a vigília, assaltam-no devaneios existenciais e acadêmicos.
De Belo Horizonte a Araçuaí são 620 quilômetros. À época, o asfalto só chegava até Diamantina, garantia de uma viagem mais confortável em ônibus mais novo; de lá até Araçuaí, eram uns 320 quilômetros percorridos num ônibus velho – uma jardineira –, que esticava a viagem para 13 horas. Índice contundente de uma modernização truncada e desigual que marca o continente latino-americano, o asfalto somente chegou até muitas cidades do Vale somente nos anos 1990. Com o governo de Newton Cardoso (eleito em 1988), que se empenhou em substituir o “negócio” do artesanato, pouco efetivo na geração de empregos segundo ele, por “fábricas de louças”. Ao voltar a Turmalina poucos anos mais tarde, o jovem pesquisador se deparou com as chaminés de uma dessas fábricas e não pôde conter um sentimento de estranheza, como um retorno no tempo, quando o trabalho mecânico na indústria substituía o trabalho manual. No final do século 20, o Vale experimentava um fenômeno antigo, dos primórdios da era moderna. Só que numa outra configuração, em que arcaicos resíduos culturais e técnicos se mesclavam a aparatos tecnológicos mais modernos ou ultramodernos – computador, internet, televisão. Nessa modernização tardia, o asfalto tinha como objetivo maior facilitar o escoamento do carvão vegetal produzido em grandes extensões das chapadas do Vale, atendendo-se à demanda sobretudo das usinas siderúrgicas situadas na região metropolitana da capital mineira, especialmente as da cidade de Sete Lagoas, e, obviamente, aos interesses das companhias de reflorestamento que investiam na plantação de eucalipto no Vale. Por conta desse avanço retardado de um capitalismo industrial pelo interior do país, muitos pequenos proprietários do Vale chegavam a vender suas pequenas propriedades paras essas reflorestadoras e passavam a trabalhar nelas, a troco de salário mínimo, como matadores de formigas, ferozes inimigas dessas matas de eucalipto que sugavam os córregos e nascentes de águas da região.
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Na abertura de Tristes trópicos, Lévi-Strauss confessa seu ódio às viagens e aos exploradores. Uma pista possível para explicar tanto desconforto, ele dá quando diz que “não há lugar para a aventura na profissão de etnógrafo”, que “só serve para o avassalar” (Lévi-Strauss, 1986, p.11). Mas será por que não tem aventura na sua profissão? Talvez porque, no âmbito da universidade moderna como instância a serviço do Estado-nação, o processo de normalização e disciplinamento daqueles saberes destinados a serem ciências tenha imposto uma hegemonia do Método. Hipostasiado, o Método obliterou a heterogeneidade dos caminhos – dos métodos – para a construção do conhecimento. O Método, as hipóteses explicativas excluíam muitas vezes a possibilidade do imprevisto, do acaso, da aventura. Marcada por uma teleologia científica, a viagem não passava frequentemente de um subterfúgio para se confirmar uma resposta já previamente pensada, inviabilizando um efetivo encontro com as diferenças, com a alteridade. Mas o próprio Lévi-Strauss já desconfiava dessa hipertrofia do método científico, do caráter virtual e inacabado de nossas abstrações e teorias, ao colocar a arte e a ciência para dançarem juntas em trabalhos posteriores. Veja-se, a propósito, a bela “Abertura” de O cru e o cozido, em que, por meio de um pensamento analógico e inventivo, sem se ater a um método único, se vale da música para pensar o mito (Lévi-Strauss, 1991, p. 09-38).
Numa jornada que mergulha noite adentro, o jovem pesquisador viaja sem saber ainda do desconforto de Lévi-Strauss com as viagens. Desloca-se no espaço e no tempo, no espaço-tempo. Ao chegar a Araçuaí, em torno das 9:00 horas, sob o sol escaldante de janeiro, ele, sua colega e alguns estudantes bolsistas de iniciação científica estão ruços de poeira, parecendo outros. O primeiro gesto, ao descerem do ônibus, consiste em espanar com as mãos a grossa camada de poeira que cobre roupas e corpos, para recuperar uma identidade subitamente evaporada. Evolando-se no ar, essa poeira assemelha-se ao pó, cheio de ácaros, que se deposita sobre os documentos de um arquivo, que o pesquisador desavisado inspira, infectando-o de uma febre de arquivo. Carolyn Steedman se debruça sobre essa febre do arquivo, que se abate sobre Jules Michelet, por exemplo, ao ler de modo literal o título do livro de Derrida, Mal d’archive, na tradução em inglês: Archival Fever. Lendo a obra de Vico, em janeiro de 1824, Michelet anotou em seu diário que havia se intoxicado com seus princípios históricos. Ao compulsar velhos documentos e livros, respirou também o pó que os cobria, contraindo literalmente os males do arquivo, doenças típicas de homens cultos, letrados. No silêncio do arquivo, onde acredita que o passado vive, Michelet compreendeu que a tarefa do historiador social consiste em dar vida aos mortos, ressuscitá-los. Especialmente àqueles cujas breves existências não estão arroladas nos documentos do Estado (Steedman, 2002, p. 69-72). Para ele, o sonho do historiador consiste em dar voz aos mortos, encontrando um sentido para suas efêmeras existências. E, assim, pacificá-los.
Em seus usos, pois, desvela-se essa subterrânea conexão do arquivo com os mortos, como forma de garantir-lhes a paz e descanso eterno. E de, caso retornem para nos interpelar, poder dizer-lhes, especialmente àqueles que sucumbiram em conflitos e guerras extremos, que não morreram em vão, que aprendemos algo com seu sacrifício. Como bem nos mostra o filme J’accuse (1919) de Abel Gance, feito ainda em meio aos escombros deixados pela experiência devastadora da Primeira Grande Guerra. Nesse trabalho, Gance parece antecipar essa onda de filmes sobre zumbis (Walking dead) que retornam em série e nos assombram hoje, menos talvez como reflexão histórica sobre o passado do que como puro divertimento.
Ao se livrar da poeira, o jovem pesquisador mal percebia que sua viagem a Araçuaí, ao Vale do Jequitinhonha, equivalia a um mergulho no arquivo. No arquivo teórico e prático latino-americano, com seus saberes locais, heterogêneos, mesclados. É como se o Vale fosse um grande arquivo ao ar livre, com seus documentos expostos às intempéries do tempo – as inscrições de figuras rupestres que Seu Pedro Cordeiro Braga lhe mostrara na Serra das Almas; o rio Jequitinhonha assoreado pela ganância das mineradoras, que atravessara a pé indo até a referida serra; o missal vermelho de capa dura que vira na matriz de Minas Novas; seus narradores populares maquinando estórias. (Afinal, se pensado nos termos de uma escala temporal cósmica, da “Grande Narrativa” em que se insere o processo de hominização narrado por Michel Serres em Narrativas do humanismo (2015), não seria nosso planeta um grande arquivo?) Nessa ideia de mergulho, de imersão, como não surpreender as imagens marinhas associadas à representação do arquivo, assinaladas por Arlette Farge? Com suas subdivisões em fundos, distinto tanto dos textos quanto dos documentos, o arquivo mostra-se desmesurado e invasor, como as marés, as inundações e as avalanches. Mas produtor de um “efeito de real” (Farge, 1989, p. 7-26). Numa outra viagem, de Diamantina ao Vau, contornando a Pedra Redonda, onde nasce o Jequitinhonha, o professor Rodolfo lhe havia dito que, em tempos pré-históricos, aquela região fora coberta pelo mar, como demonstravam vestígios de conchas incrustadas nas rochas.
Na medida em que se adentra pelo Vale, o jovem pesquisador caminha em direção às bordas, aos limites do arquivo, como possibilidade de pensá-lo. Tomam-no sensações estranhas, como a de penetrar numa terra estrangeira, numa “terra ignota” – tal qual Euclides da Cunha ao se aproximar dos sertões de Canudos –, apreendendo as fronteiras internas da nação, seu outro interior. Foucault nos lembra da impossibilidade de descrever nosso próprio arquivo, que seria indescritível em sua totalidade e incontornável em sua atualidade, dando-se por fragmentos, regiões, níveis. O arquivo consiste, para ele, num sistema de regras que possibilita a produção de enunciados; do interior de suas regras é que falamos. Não se reduz a um espaço físico, a uma topologia, onde se guardam os documentos, registros. Disso avulta uma questão intrigante: Onde, pois, começa e onde termina o arquivo? Ainda mais com essa onda digital, que açula a compulsão de tudo registrar, arquivar, segundo uma memória transbordante, ilimitada? Se para Derrida, no entanto, o arquivo pressupõe impressão e exterioridade, uma domiciliação – o princípio topológico, ligado ao começo, ao qual se articula um princípio nomológico, de comando e poder, como contido na Arkhê grega (Derrida, 2001, p. 11-16) –, difícil todavia delimitar seu início, perscrutar suas fronteiras. Assim, para Foucault,
a análise do arquivo implica uma região próxima de nós mas diferente de nossa atualidade: a orla do tempo que cerca o nosso presente, aquilo que fora de nós nos delimita; implica o afastamento de nossas próprias práticas discursivas; permite o nosso diagnóstico ao nos desprender de nossas continuidades e dissipar nossas identidades; o arquivo nos mostra como diferença, que a nossa razão é a diferença dos discursos e a nossa história a diferença dos tempos e nosso eu a diferença das máscaras, e a diferença como a dispersão que somos e fazemos (Foucault, 1987, p. 151).
A viagem, o deslocamento em direção à orla, aos limites, às fronteiras – estratégias para se pensar o arquivo. Modos de se distanciar de nossas práticas discursivas e suas regras de funcionamento. Formas de experimentar nossas descontinuidades, nossas fissuras, nossas diferenças. Teatro do estranhamento de nós mesmos, dispersão e concentração.
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Em Araçuaí, cidade situada no médio Jequitinhonha, esperam os pesquisadores Zefa e Lira, artesãs do Vale, e Sá Luiza, benzedeira, todas elas contadoras de casos, histórias, mais o velho Paiada, líder comunitário. Zefa, nome artístico e de guerra, talvez mais real que Josefa Alves dos Reis, nascida em 1925 em Poço Verde, Sergipe, beirando hoje os seus 90 anos. É uma das mais antigas artesãs de Araçuaí, aonde chegou em 1962, depois de pelejar em Teófilo Otoni, fugindo da seca do Nordeste (Vieira in Moura, 2013, p. 25-28). Inicialmente fazia trabalhos de cerâmica, até descobrir as possibilidades da madeira; especializou-se numa técnica antiga utilizada pelos índios para produzir seus personagens nordestinos, que lembram a Guerra de Canudos.
A cidade está situada às margens do rio Araçuaí, principal afluente do Jequitinhonha, e do ribeirão Calhau. Araçuaí, nome indígena que significa “araras grandes”. Os primeiros habitantes da região foram índios do grupo dos tapuias. Habitantes do interior, não falavam línguas do tronco tupi e eram considerados bárbaros pelos demais. Tapuio designa também o caboclo rude, o mestiço. Ao local chegam mais tarde portugueses, mestiços paulistas e da costa da Bahia, detentores de maiores recursos e que tomaram conta do lugar. O acesso à região se devia muito ao trabalho dos canoeiros, que subiam e desciam o rio transportando homens, cargas e mercadorias. Junto com os tropeiros, os canoeiros tinham muitas histórias para contar. Conta-se que, na fundação da cidade, destaca-se o papel das meretrizes. Na confluência dos rios Araçuaí e Jequitinhonha, num local muito agradável onde aportavam as canoas para a troca de mercadorias, um certo padre Carlos Pereira de Moura fundou a Aldeia do Pontal, purificando-a com a expulsão de todas as meretrizes, que amenizavam a dura vida de barqueiros e canoeiros. Sem rumo, elas migraram rio Araçuaí acima, tendo sido acolhidas na Fazenda da Boa Vista, de Luciana Teixeira, que cedeu suas terras às emigrantes. Os canoeiros mudaram de porto e, no novo local, se desenvolveu o arraial do Calhau – nome devido à grande quantidade de pedras redondas encontradas por lá –, que deu origem à cidade de Araçuaí, por volta dos anos de 1830 e 1840. Com o progresso, a estrada de rodagem e o movimento dos ônibus e caminhões substituíram a navegação pelo rio. A cidade foi dando as costas para o rio e se virando para a rodovia, num típico movimento do processo modernizador. Os canoeiros são hoje apenas uma lembrança preservada por monumento na praça da Matriz. Monumentalizados para o esquecimento.
Índios, mestiços, canoeiros, tropeiros, prostitutas, portugueses, paulistas e baianos – como são misturadas e impuras as origens, que uma história idealizada procura sublimar, purificar, tornar séria, invocando um tom épico para narrá-las… A épica e o relato eloquente das origens, da gênese das nações e linhagens familiares. Não foi em vão, lembra-nos Foucault, que Nietzsche nos convidou a rir das origens, parodiá-las, rebaixá-las, trazendo-as para o chão de uma história efetiva (Foucault, 1986, p. 15-37). Uma história despida das significações ideais, de teleologias vagas, em que prevalece o acontecimento como singularidade. Afinal, as coisas são sem essência e os começos são inumeráveis, múltiplos, disparatados.
Pelas mãos de Lira os pesquisadores são introduzidos na comunidade dos artesãos de Araçuaí. Além de artesã, Lira, ou Maria Lira Marques Borges, é uma liderança comunitária, uma cantadeira, participante do Coral Trovadores do Vale fundado pelo Frei Chico. Musical, Lira é lira, poesia extravasando seu porte contido e contaminando memórias de lutas e dificuldades do povo afrodescendente, que encontram expressão em suas máscaras de barro. Ela os leva primeiro ao velho Paiada, que relata histórias da grande enchente de 1979, legitimadas pela experiência: “Falo porque vi e vivi e posso provar!” E, depois, até Zefa, que mora numa casa da periferia da cidade, juntamente com sua cunhada e única companheira da experiência de migração, Francisca. De porte médio, cabelos curtos, a pele crestada pelo sol, seu rosto retém um sorriso que logo desabrocha numa fala mansa e se espraia por sua arte dramática de contar estórias.
Ao entrar na sala-ateliê de Zefa, de chão batido, o jovem pesquisador fica assombrado com as quatro paredes totalmente cobertas, de cima a baixo, com capas e páginas recortadas de revistas da comunicação de massa: Veja, Isto é, Realidade, Manchete, entre outras. Imagens de políticos, esportistas e artistas pop do imaginário urbano convivem com figuras do imaginário rural, lendário. É como se as paredes, caiadas de branco, constituíssem páginas de um estranho álbum em que ela colasse imagens várias de sua coleção particular prontas para pavonearem a imaginação criadora. Uma figura do arquivo, não por acaso álbum vem do albus latino, alba, designando o branco e, na prática médica, o “branco do olho”; com Horácio, albo passou a indicar um dia feliz (Silva, 2008, p. 51). E o que primeiro lhe chamou a atenção foi, mais ao canto da parede em frente, a imagem do saci-pererê entre Madonna e Michael Jackson, como se estivessem batendo um papo animado. Num tom de voz que trai certa decepção, pergunta à artesã: “Zefa, por que tudo isso, essas páginas e imagens nas suas paredes?” Ao que ela responde de pronto, amparada num largo sorriso: “Ah moço, é pra eu me inspirar!” Depois de penosa viagem às profundezas do Brasil, ruía a fantasia romântica do inexperiente pesquisador a respeito de uma genuína cultura popular brasileira. Aí, nessa sala-ateliê, Zefa lhe ministra uma lição teórica cujo alcance lhe escapa e que o deixa meditativo, melancólico. Desse encontro e dessa lição, como rastros esgarçados, restam algumas fotos.
Meio atordoado, o pesquisador acadêmico lança seu olhar pelo ateliê: troncos de madeira empilhados, matéria-prima para futuras esculturas, instrumentos do ofício (enxó, martelo, lixas etc.), um banquinho de madeira. Não dá conta ainda de apreender nem a casa-ateliê de Zefa como um arquivo local, o arquivo de um artista popular, nem Zefa como colecionadora. Mas Zefa efetua certas práticas do colecionador: seleciona, recorta, recolhe e combina imagens e textos contidos em capas e páginas de revistas da comunicação de massa, desfazendo um formato típico da cultura massiva hegemônica – a revista –, para compor uma coleção particular. Num gesto de apropriação, desterritorializa ícones culturais e políticos para reterritorializá-los, compondo uma coleção fantasmagórica, anômica, porquanto desgarrada daquela “libido do pertencer” que molda as identidades modernas – pessoais, nacionais e culturais – de modo muitas vezes essencialista e intolerante frente à alteridade (Serres, 205, p. 50). Combinando-os à sua maneira, segundo outra lógica e valores locais, confere a esses objetos sígnicos significados suplementares, singularizando-os. Na sua montagem, retira as imagens da linearidade temporal e as justapõe, de modo que torna simultâneo o não-simultâneo. Disponibiliza-as para novos usos, em função de seu projeto/labor artístico, movida por um saber local e enquanto um sujeito situado, constituindo um mundo próprio, que a individualiza também. Como uma coleção tecida nas bordas do arquivo, do sistema mundo, que se faz também pela reunião de materiais variados e úteis ao ofício do artesão. A exemplo do colecionador benjaminiano de livros, habitando um mundo que oscila entre os polos da desordem e da ordem, do caos criativo e da obra conformada, Zefa usufrui da posse de sua coleção. Por meio desta mantém “a mais íntima relação que se pode ter com as coisas. Não que elas estejam vivas dentro [dela]; é [ela] que vive dentro delas” (Benjamin, 1987, p. 235). Por esse cuidado com seus materiais heterogêneos é que Zefa se torna também uma fisiognomista dos objetos de uma cultura local, entrelaçada com elementos das culturas nacional e global, em perene transformação, devir.
O jovem pesquisador se refaz de seu atordoamento quando Zefa convida os visitantes para a cozinha, a fim de lhes contar umas estórias, acompanhada de seus gatos. Além de artesã, Zefa é também apurada narradora, duas técnicas que domina com maestria. Em suas performances narrativas, combina elementos míticos, religiosos, fictícios e históricos sem regras pré-definidas e formatos fixos. Estranha a lição de Zefa: não falou muito, não dissertou nem fez asserções ou demonstrações por meio de uma cadeia argumentativa lógica e coerente, segundo um método pré-estabelecido. Nada daquilo próprio de um discurso acadêmico a que um pesquisador está acostumado. À maneira de Benjamin – no arquivo N do trabalho das Passagens: “Método deste trabalho: montagem literária. Não tenho nada a dizer. Somente a mostrar” (2006, p. 502) –, ela somente mostrou e… contou causos: o primeiro automóvel que chegou a Araçuaí, o primeiro avião – outros modos de ler eventos e realizações de uma modernização tardia. Por meio de um saber narrativo, numa montagem de estórias, ela conferia sentidos a ícones do mundo pop, industrial e tecnológico, aproximando-os de elementos míticos e lendários – o automóvel com seus faróis acesos, vislumbrado pelo caboclo numa curva da estrada à noite, assemelhava-se a um dragão jorrando fogo pelas ventas; o pequeno avião que passava em voo rasante sobre o cemitério da cidade, ao final de um enterro, era o caixão do compadre Vicente indo para o céu. Outras formas de construção do conhecimento.
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Desejoso de mudar o mundo, entretido com o futuro de utopias revolucionárias, o jovem pesquisador não lograva compreender que Zefa lhe ministrava uma dupla lição. Como se podia ver mais claramente agora, à distância. Uma lição mais visível contida no conteúdo mesmo daquilo que ela mostrava, relacionada às práticas de uma cultura popular brasileira, latino-americana. A outra lição, invisível, subentendida no evento mesmo desse encontro entre o pesquisador e a artesã. Uma lição que apontava para uma crítica do arquivo teórico latino-americano.
Só bem mais tarde o jovem pesquisador, agora já mais vivido e lido, logrou visualizar e elaborar alguns elementos da lição invisível de Zefa. Sinal evidente da decalagem entre o vivido e o narrado, o evento e o saber, a reflexão, forjados sobre ele. Na sua lição, Zefa denunciava, sem explicitá-lo, a exclusão de inúmeros sujeitos do processo de construção dos saberes, da formação de uma cultura nacional, da elaboração do arquivo teórico da nação. Zefa com seus saberes populares, selvagens, rebeldes ao crisol do método científico.
Ao ler tempos depois o ensaio Culturas híbridas: estratégias para entrar y salir de la modernidad (1990), de Néstor García Canclini, o pesquisador não pode deixar de lidar com uma curiosa experiência do já vivido: a teoria que um acadêmico formulava em academias do Norte para explicar as mesclas culturais no espaço latino-americano – com a fusão do erudito, do popular e do massivo – já havia sido elaborada de forma singular por Zefa a partir de uma práxis artística. Ela havia lhe mostrado, teorizando por outros meios, que o artista popular se apropria, traduz e reinventa diversos materiais, extraídos de diferentes âmbitos culturais a fim de construir o próprio. Que as culturas não existem em estado puro, separadas umas das outras, mas que andam todas muito misturadas, segundo um jogo de forças em relação. Que as artes conversam entre si e contar histórias e esculpir formas na madeira ou no barro compõem variado repertório de um saber narrativo. Que na narrativa, em vários formatos e linguagens, relatando e combinando o vivido e o imaginado, é que melhor se pode dizer e experimentar “quem sou eu”, “quem é você”, “quem somos nós”.
Da mesma forma, a lição de Zefa se reavivou na memória do pesquisador quando, lendo as “Notas sobre a desconstrução do ‘popular'”, Stuart Hall, após desconstruir a interpretação equivocada das conexões da cultura popular com a tradição e formas tradicionais de vida, vistas como impulso tão somente conservador e retrógrado, assinala que a cultura popular é lugar de transformações, marcado pela dialética da contenção e resistência. E pontua: “Quero afirmar o contrário, que não existe uma “cultura popular” íntegra, autêntica e autônoma, situada fora do campo de força das relações de poder e de dominação culturais.” (Hall, 203, p. 254) Ao desarmar a dicotomia entre uma autêntica e uma falsa cultura popular, o crítico cultural jamaicano chama a atenção para o poder da inserção cultural, desfazendo a imagem das pessoas comuns como tolos culturais, dado que são capazes de reconhecer como suas realidades são representadas e remodeladas pela indústria cultural. Com seu arquivo e sua arte, não era isso que Zefa teorizava mostrando para o jovem pesquisador, que a imaginava protegida num espaço cultural virgem? Não era essa sua maneira de se posicionar como sujeito nos processos e choques interculturais?
À proporção em que as experiências do passado iam se constituindo menos como fatos consumados que como virtualidades, prontas a irromper no presente, o pesquisador mais se dava conta da atualidade da lição de Zefa. Do fato de que nossas experiências e aprendizados do passado, enquanto resíduos e sobrevivências de outroras no agora, interferem nas leituras e pesquisas do presente, suplementando-as com significações imprevistas; assim como as leituras e perquirições do presente iluminam a compreensão dos aprendizados do passado. E pôde confrontar-se com o que lhe pareceu de certa forma monstruoso no arquivo/coleção da artista popular: o caráter excessivo de sua memória, visível nas paredes/álbum “entulhadas” de imagens, imagens que lhe pareceram despropositadas naquela primeira visão. Intempestivas, pode ver assim agora. Espécie de antecipação fantasmagórica de uma memória total disponibilizada hoje em dia pela tecnologia da informática, do digital.
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Em sua leitura do fenômeno do dejá vu, Paolo Virno nos esclarece a respeito do funcionamento da memória ao retomar a observação de Henri Bergson de que o ato de recordar uma experiência imediata não se dá de forma posterior à percepção, sendo antes contemporâneo a esta. Recordação e percepção se dão em uníssono no presente e o traço mnésico constitui um correlato daquela experiência. De maneira que, ainda segundo Bergson, cada momento de nossa vida contém um aspecto virtual, o da recordação, e um aspecto atual, o da percepção. A partir disso Virno levanta uma tese: enquanto a percepção fixa o presente como algo real, um fato acabado reduzido a dados unívocos, a recordação o preserva no campo da simples possibilidade, como uma virtualidade; há um presente percebido como agora e um presente do qual se tem memória. Entre essas duas maneiras de tomar posse do nosso “agora” há, para Virno, “uma diferença modal: modalidade do possível ou modalidade do real, memória da potência ou percepção do ato” (Virno, 2003, p.22). No dejá vu, ambas as modalidades operam simultaneamente com o real e o possível, o atual e o virtual coexistindo num mesmo evento. Mas o passado, enquanto fato acabado, só pode ser tão somente repetido, como eterno retorno do igual, e o sujeito o revive como mero espectador.
No desdobramento de sua argumentação, Virno articula o possível à forma do passado e acrescenta uma diferença de natureza, não de grau, entre o atual e o virtual: ambas as modalidades se relacionam a um mesmo conteúdo de experiência, mas a potência revela-se independente do ato, não se deixando assimilar por ele; antes, alcança sua maior força quando se sustenta ao lado do ato. O passado constitui o centro dessa temporalidade da potência; todavia, na esteira de Bergson, trata-se de um passado indefinido, incalculável – um “passado em geral” –, como virtualidade pronta a irromper no presente, desvelando outras possibilidades do vir a ser. Como matriz do passado em geral, a faculdade mnésica é a condição mesma da recordação do presente, identificando-se a diversas outras faculdades, como as da língua, do intelecto. Mas sem que, em função da diferença de natureza existente entre eles, a faculdade se equipare ou se reduza ao ato concomitante. A língua, como potência do dizer, não se esgota nas palavras ditas, por exemplo, é inatualizável enquanto pura potência. Daí se pode concluir: toda a relação com o passado é anacrônica, visto que se dá a partir do presente; cabe ao aqui e agora definir o que deve retornar. Entretanto, se enquadrado a partir de um presente, o passado não é matéria inerte reduzida ao ato; antes, como virtualidade, tem a possibilidade de interferir no presente assinalando outras posibilidades de devir, de atualização.
Por conta disso, Virno (2003, p. 34-41) distingue um anacronismo formal de um anacronismo real. Ambos constituem uma recordação do presente, entretanto, no primeiro, como uma forma-passado, o gesto recordado está instalado num passado indefinido em estado atual, em que ato e potência se sustentam, evidenciando a brecha entre um poder-fazer e os atos consumados, brecha em que Virno situa a matriz da historicidade. Diversamente, como oposto simétrico do primeiro, no anacronismo real essa brecha entre ato e potência é ocultada e a potência – o passado enquanto virtualidade – encontra-se reduzida ao ato prévio. Vinculado a um conteúdo do passado particular e fechado, o anacronismo real, ou o dejá vu, não passa então de um falso reconhecimento, como já assinalado por Bergson. Nele, enquanto um presente contrabandeado por meio de um anacronismo formal, o pensador italiano detecta os impulsos dos discursos sobre o fim da história, uma marca da ideologia pós-moderna, e que associa à modalidade da história antiquária descrita por Nietzsche, dominada por um excesso de memória. A essa inclinação, Virno dá um nome específico: modernariato, entendido como uma sensibilidade antiquária que traduz interesse de ordem sentimental, estética e comercial, por objetos e coisas pertencentes a um passado recente, insuflado por um afã colecionista furioso e cego (Virno, 2003, p. 61).
Pois bem, em ambos os anacronismos, na recordação do presente, Virno reconhece um excesso de memória. E leva em conta a advertência nietzschiana de que a hipertrofia da memória paraliza a ação, inibe os impulsos vitais, a criatividade, bloqueando o futuro. Mas, concordando com Nietzsche, desloca o argumento deste a seu favor: a cantilena do “fim da História” é fruto não de um excesso de memória, mas do encobrimento deste pelo dejá vu sob a forma de uma veneração do passado enquanto nada mais que mimetismo, imitação. Na medida em que a recordação do presente operada pelo anacronismo formal se configura como dispositivo público, o excedente de memória resulta num excedente de história – acredita-o Virno (2003, p. 48-64). Liberada da degradação do falso reconhecimento, a superabundância de memória pode colocar o passado a serviço da vida, incrementando nosso senso de historicidade, o diálogo do presente com o futuro, estimulando nossas faculdades criativas.
Sem incorrer na idealização da práxis artística de Zefa, sujeita às relações de poder que atravessam o campo da cultura popular, pode-se dizer que o arquivo de Zefa já indiciava no outrora a disseminação do gesto de arquivar. Um gesto elevado à enésima potência na contemporaneidade pelas tecnologias da comunicação, da memória eletrônica, do digital, da internet. Afinal, o conhecimento e a arte pressupõem colecionar e arquivar materiais e signos e recombiná-los de forma inventiva. Como todo artista, Zefa assim procede com seus materiais heterogêneos, alguns extraídos de sua realidade material do presente, outros enquanto signos e imagens do passado; coleciona, arquiva para combiná-los de forma mais livre em seu fazer artístico, sem hierarquias, à maneira de um bricoleur. Procede da mesma forma que um escritor da cultura erudita ou um pesquisador acadêmico, que também colecionam e arquivam: palavras e imagens, materiais e informações. Segundo Ivette Sánchez, as práticas da leitura e da escrita são modos de colecionar, indispensáveis para novas escrituras, elaborações e invenções. Todo artista é um colecionista (Sánchez, 1999, p. 10-19).
Marcado por uma superabundância de imagens, situado no âmbito de um passado indefinido, seu arquivo exprime a potência de seu fazer artístico, tecido por imagens oriundas de várias camadas de outroras e agoras. Trata-se de uma forma-passado que institui um antes como pura virtualidade, prestes a se atualizar em sua ação escultórica no presente. Todavia, as esculturas feitas não esgotam a potência do seu fazer; seu arquivo performa a memória desse fazer. Detecta-se nele um excesso de memória, é bem verdade. Mas esse excesso de memória, em vez de pesar sobre seu agir, obstruindo-o, parece constituir a afirmação mesma de sua potência criativa, de sua arte, em diálogo permanente com o passado enquanto virtualidade – um presente sob a forma da recordação – e com o próprio presente enquanto atualidade e abertura para o futuro.
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De Araçuaí, Riobaldo trouxe uma pedra de topázio. Presente de Riobaldo que era para ser de Diadorim, mas que, por artimanhas do destino (ou da narrativa?), acabou nas mãos de Otacília. Que dom secreto de Riobaldo se incrustava na pedra de topázio? Pode bem ser um saber narrativo, como na muiraquitã de Macunaíma. Uma das mais importantes pedras preciosas, a pedra de topázio tem cor variável e forma massas irregulares, como vário e heterogêneo é um saber narrativo. De Araçuaí, trago uma pedra de topázio que me foi dada por Zefa. Lição de Zefa: seu saber narrativo, sua arte de mostrar mais que demonstrar. Na cadeia narrativa, essa pedra só faz sentido se circular, ampliando suas possibilidades de significação. Por isso, passo-lhes a pedra de Zefa, para que possamos, como uma comunidade interpretativa, melhor apreender novas possibilidades do arquivo teórico e prático latino-americano.
Reinaldo Marques é professor de Teoria da Literatura e Literatura Comparada nos cursos de graduação e pós-graduação da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais. É pesquisador do CNPq. Foi presidente da Associação Brasileira de Literatura Comparada no biênio 2000-2002 e diretor do Centro de Estudos Literários e Culturais/Acervo de Escritores Mineiros da UFMG no período de 2008 a 2012. É autor de Arquivos literários: teorias, histórias, desafios (Ed. UFMG, 2015).
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