Ano XI 0201
1º semestre de 2016
artigo
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A LINHA FATAL: DEAMBULAÇÕES DO ESTRANGEIRO EM KOLTÈS

Même s’il en avait contesté la vérité, il aurait eu le plus grand mal à ne pas croire à quelque chose d’extrême et de violent, car de toute évidence un corps étranger s’était logé dans sa pupille et s’efforçait d’aller plus loin (Blanchot, 1950, p. 18).

Resumo: Em La nuit juste avant les forêts, monólogo de Barnard-Marie Koltès, o narrador se apresenta como o “estrangeiro”. Se a designação do personagem remete ao estranhamento que problematiza todas as relações ao longo da peça, ela também parece encenar a única possibilidade na constituição das linhas de força em que o homem pode formar uma comunidade possível. Em Dans la solitude des champs de coton, outro texto do autor, essa ética da alteridade ganha novo impulso ao colocar os dois únicos personagens em rota de colisão, compondo o espaço do que um deles chamará de a “linha fatal”. O objetivo desse artigo é pensar a formação dessas linhas em Koltès, refletindo sobre as deambulações desse homem que se move entre o risco do esfacelamento diante do estranhamento e o traço vacilante da comunidade.

Palavras-chave: Koltès; comunidade; alteridade; subjetivação; teatro.

Abstract: In La nuit juste avant les forêts, a monologue written by Barnard-Marie Koltès, the narrator presents himself as the “foreigner”. If the name of the character refers to the strangeness that questions all the relationships in the play, it also seems to stage the only possibility in the constitution of the lines of force in which the man can form a possible community. In Dans la solitude des champs de coton, another Koltès play, this ethics of alterity gained new impulse placing the only two characters in collision course, composing the space that one of them will call the “fatal line”. This work intends to analyse the composition of these lines, thinking about the displacements of this man who moves between the risk of disintegration before the strangeness and the vacillating trace of the community.

Keywords: Koltès; community; alterity; subjectivation; drama.

 

O teatro contemporâneo francês apresenta uma enorme variedade de escritas dramatúrgicas. Contudo, o que poderíamos chamar de uma “tradição da vanguarda”, da qual fazem parte autores como Samuel Beckett e Antonin Artaud, vai estabelecer uma nova filiação mais para o final do século XX, representada por dramaturgos como Valère Novarina e Bernard-Marie Koltès. Na trilha de toda a problematização acerca da linguagem estabelecida por essa tradição é que tais autores desenvolverão suas dramaturgias. Trata-se de ecoar, de certa maneira, aquilo que Evelyne Grossman, em um livro sobre Artaud, Beckett e Michaux, considera como traço essencial desses escritores: “Primeiramente, um questionamento incansável quanto às formas da verdade e do sentido (…)”[i] (Grossman, 2004, p. 9). Porém, ainda que a linguagem continue a ser uma questão para dramaturgos como Koltès e Novarina, estes se encontram, como afirma Franck Evrard, “liberados da obsessão beckettiana de uma fala ameaçada por um desaparecimento definitivo (…)” (Evrard, 2008, p. 490). É isso que permite a esses autores realizar a ligação entre essa vanguarda e um teatro mais político, promovendo um encontro aludido por Barthes anos antes, em seus Ensaios críticos. Ao comentar essa relação, o crítico havia afirmado que “poderíamos esperar bastante de um autor dramático que soubesse dar à nova arte política que desejamos, os poderes de descondicionamento do antigo teatro de vanguarda” (Barthes, 2002a, p. 342). Dessa forma, unindo uma extrema atenção ao uso da linguagem a uma preocupação com um campo de problemas em que se encontram questões como as relacionadas à alteridade e à comunidade, Koltès recupera o tema do descondicionamento aludido por Barthes. Ao abordar assuntos caros à parte importante do pensamento da segunda metade do século XX, Koltès acaba por produzir um teatro que não deixa de ser inventivo no plano formal e ao mesmo tempo potente do ponto de vista de sua força política.

Tomemos o exemplo de uma de suas peças. Em La nuit juste avant les forêts[ii], o narrador se apresenta como o “estrangeiro”. Se a designação do personagem remete ao estranhamento que problematiza todas as relações ao longo da obra, ela também parece encenar a possibilidade de constituição das linhas de força através das quais o homem possa formar uma comunidade possível, na qual as singularidades se sobreponham aos indivíduos. Penso aqui na distinção feita por Jean-Luc Nancy no livro La communauté désœuvrée, para quem, “a individuação destaca entidades fechadas de um fundo informe” (Nancy, 1986, p. 69), enquanto, opondo-se ao império dos indivíduos, as singularidades apontam para o fato de que “não há ser singular sem outro ser singular” (p. 71). As singularidades inscrevem-se, assim, em um sistema de partilha que marcam ao mesmo tempo a possibilidade e impossibilidade de suas existências. O que está em questão nesses comentários é a tentativa de distinção entre os princípios da comunidade dos seres-em-comum e o da sociedade dos indivíduos, responsável, ainda segundo Nancy, por uma atomização da vida que impede a própria constituição da comunidade.[iii] Em Dans la solitude dans les champs de coton[iv], outra peça de Koltès, podemos entrever essa comunidade em risco sob a forma de uma “terrível crueldade”: “a verdadeira e terrível crueldade é aquela do homem ou do animal que torna o homem ou o animal inacabado, que o interrompe como pontos de suspensão no meio de uma frase, que se vira após tê-lo olhado, que faz, do animal ou do homem, um erro do olhar (…)” (Koltès, 1986, p. 31). Formado por um extenso diálogo travado entre apenas dois personagens, o negociante e o cliente[v], esse texto pode ser lido como uma tentativa de se pensar as formações das linhas de força em que as singularidades se constituem sob a forma daquilo que Nancy nomeará como comparução. Esta, segundo suas formulações, significa “que o ser não é comum no sentido de uma propriedade comum, mas que ele é em comum”[vi] (Nancy, 1986, p. 201).

O inacabamento a que alude Koltès se dá, como podemos perceber, pelo desvio de um olhar que impede a realização do plano relacional em que o ser viria a se constituir por meio da comparução. Embora de forma distinta, esse mesmo movimento também aparece em La nuit juste avant les forêts. Destinado ao teatro, há de se observar nesse texto de Koltès um forte desejo de diálogo, no qual, paradoxalmente, ninguém responde àquele que fala, originando um discurso de ritmo alucinado em que o monólogo não cessa de ser obsedado por uma experiência de enunciação tensionada entre a troca e o isolamento, o oral e o escrito. Essa tensão pode ser percebida através de diversas estratégias, evidentes na própria materialidade textual. Em seu artigo “Da fala à escrita”, Barthes afirma que o discurso escrito estabelece uma nova ordem em relação ao discurso oral por meio de “dois artifícios tipográficos que se juntam, assim, aos ‘ganhos’ da escritura: o parêntese, que não existe na fala e que permite assinalar com clareza a natureza secundária e digressiva de uma ideia, e a pontuação, que, como sabemos, divide o sentido (…)” (Barthes, 2002b, p. 539). O curioso é que em La nuit, a pontuação parece corresponder antes a uma tentativa paradoxal de recuperar um sopro o mais próximo possível da fala através de signos gráficos. Koltès elimina todos os pontos finais – parágrafos ou não – entre as frases, criando um ritmo alucinante, cortado, entretanto, de tempos em tempos, por duas marcas tipográficas: o parêntese e o travessão. Os dois permitem ao autor a introdução de digressões que provocam variações rítmicas na monotonia de longos blocos contínuos de enunciação. Se os parênteses possibilitam a inserção de comentários mais breves, o travessão, em diversas ocasiões, parece abrir o discurso para novas direções, como em uma conversação mais livre em que os gestos e expressões facilitassem um acordo entre locutor e alocutário, sem necessidade de retomadas explícitas do que havia sido interrompido a cada novo desvio. Além destes, um outro uso importante é o que Koltès faz dos dois pontos, o qual, contrariamente ao travessão, parece centrar a atenção exclusivamente sobre o locutor. No geral, o conjunto desses dispositivos tem muitas vezes por efeito uma espécie de ‘intromissão” fantasmática através da qual, mesmo ausente, a voz do alocutário se fizesse ouvir; como se as palavras pronunciadas pelo estrangeiro ganhassem volume no seio de um ruído anônimo de uma voz de fundo, jamais personalizável, mas essencial à manutenção desse quase diálogo em que ele “ousa gritar: camarada!” (Koltès, 1988, p. 7).

Em meio a essa designação genérica, os nomes próprios encontram-se ausentes, e mesmo aqueles conhecidos – mas não revelados –, não passam de artifícios para impedir a revelação do nome real. Assim, ao falar de alguém que havia conhecido, o estrangeiro revela: “não sei seu verdadeiro nome, o que ela me disse não era o seu (…)” (Koltès, 1988, p. 34). Isso faz com que essa voz de fundo que sustenta esse quase diálogo se dissolva em uma coletividade composta pelo jogo entre os pronomes “eu” e “você”[vii]. Se pensarmos no que foi dito até aqui, fica claro o lugar ambíguo ocupado por esse “você”. Promovendo a possibilidade de interlocução que coloca o texto em movimento, é ele, de fato, a primeira palavra da peça: “Você estava virando a esquina da rua quando eu te vi (…)” (Koltès, 1988, p. 7). Contudo, como sabemos, por se tratar de um monólogo esse “você” jamais assume a posição de uma primeira pessoa tomando a palavra, mesmo quando implicado diretamente por meio do apelo dirigido pelo estrangeiro. Diante desse silêncio, o alocutário termina por assumir a posição de um on, pronome que em francês opera entre a indeterminação e a coletividade, lançando o estrangeiro em um plano vacilante entre todo mundo e alguém.

Ao falar do personagem central da peça Roberto Zuco, também de Koltès, Jean-Pierre Sarrazac explica que este é “colocado à revelia no centro, obrigado a imergir no Número, numa multidão que o ultrapassa e o engole, numa multidão na qual, inexoravelmente, ele vai acabar por se afogar” (Sarrazac, 2013, p. 138). No caso do estrangeiro, a indeterminação indicada há pouco apresenta um duplo aspecto: ao mesmo tempo em que arrisca dissolver a formação das individualidades em consonância com o que diz Sarrazac em relação à Zuco, ela também opera como potência de um puro devir, permitindo as encarnações de singularidades no ato da comparução. Jean-Christophe Bailly, em um texto em que retoma um livro escrito anos antes com Nancy, define assim essa relação dos seres-em-comum: “sua comum aparição ao que se encarna ou se exencarna (sem se fixar em todo caso) na ordem da linguagem, no sonho das coisas que é a linguagem” (Bailly, 2012, p.129). Na comparução, encarnar e exencarnar não se opõem, mas dão, isto sim, conta desse movimento em que o próprio da voz não é uma voz exatamente própria, mas uma sonoridade inscrita entre as linhas da partilha em que emergem os seres uns em relação aos outros. Ou seja, nesse processo, as singularidades são aquilo que se dão existências umas as outras na medida mesma em que marcam seus limites. O estrangeiro, se se arrisca a cada movimento a perder-se na multidão anônima dos planos por que passa, é também aquele que pode destruí-los, forçando o real a novas configurações das linhas de suas coordenadas. Eis sua reação diante dos seres repentinamente perdidos, deambulando sem direção:

onde ir agora, onde ir, eles se perguntam, como se, lá do alto, houvessem sido traçadas zonas sobre um plano onde eles devem estar todas as semanas, e cujas portas se abrem a cada sexta sobre a rua das putas ou o resto, e senão: onde ir, sem outra solução, e eu, eu assinalei, desde que não trabalho mais, toda a série de zonas que os safados traçaram para nós, sobre seus planos, e nos quais eles nos fecham com um traço a lápis (Koltès, 1988, p. 43).

E se o estrangeiro não se sente jamais em casa nessa deambulação pelas zonas impostas, é a possibilidade do encontro que o mobiliza desde o primeiro momento do livro, gerando essa ambiguidade entre o desejo de andar e aquele do encontro. Como ele confessa a “você”, “toda a minha vida eu quis sair por aí, correr de tempos em tempos, parar em um banco, andar lentamente ou mais rápido, sem nunca falar, mas você, é diferente, e isso desde que eu te vi (…)” (Koltès, 1988, p. 56). Em sua estranheza absoluta, a iminência de uma relação apresenta-se o tempo todo na peça, traçando o plano vacilante onde a comunidade pode ter alguma chance de existência. Por tudo isso, pode-se dizer que nos textos assinalados, o par estranho/estrangeiro torna-se bastante representativo das relações de força entre as linhas de cada plano, existentes apenas sob o regime dessa arriscada partilha.

Como dito anteriormente, se por um lado o estrangeiro nos remete ao estranhamento que problematiza toda relação, por outro, ele parece representar a única possibilidade de um vir a ser. Essa tensão acaba por eliminar qualquer possibilidade de uma dialética em que o encontro pleno marque seu termo final, pois, como nos lembra Christophe Bident, “o ser que aparece aproxima tanto quanto afasta” (2014, p. 9), significando, assim, “o fundo do espaço ou do olhar, o fundo a partir do qual todo espaço ou todo olhar é possível” (p. 9). Seguindo essa afirmação, pode-se dizer que em Koltès, o estrangeiro é aquele que, por força de seus constantes deslocamentos, eleva ao máximo esse tensionamento entre as linhas de formação espacial de onde a comunidade pode emergir. É a figura de uma espera que encontramos tecida, espera entre a esperança do encontro e seu obstinado adiamento. Nesse grau zero do encontro, o próprio tempo pode entrar em colapso, especializado pela tensão descrita, um tempo que passa “ao lado”, como podemos ler em uma passagem de La nuit: “(…) as horas passam do teu lado, foi então que eu pude compreender que você é apenas uma criança, tudo passa do teu lado, nada se move (…), eu evito os espelhos e não paro de te olhar, você que não muda” (Koltès, 1988, p. 56). O comentário é seguido por uma digressão abrupta, através da qual o estrangeiro se desloca em ritmo acelerado para o centro de uma outra história, desfazendo rapidamente a estabilidade da relação anunciada. Nesse jogo entre espera e recusa, o espaço é um espaço iminente, mas jamais realizado, um espaço constantemente “em vias de”, que não cessa de retraçar suas coordenadas.

Em Dans la solitude, a espera própria a essa cartografia aparece marcada pelo uso do futuro do pretérito que se opõe à visualidade concreta do encontro, criando efeito semelhante de um “quase” que mantém a suspensão dos corpos nessa iminência sem resolução. É o que percebemos nessas palavras dirigidas pelo cliente ao negociador: “(…) na estranheza de nossa aproximação, eu teria acreditado que você se aproximava de mim. De longe, eu teria acreditado que você me olhava. Eu teria me aproximado de você. Esperando de você… muitas coisas” (Koltès, 1986, p. 43). Porém, contrariamente ao estrangeiro que funcionaria como esse ponto zero do encontro, os personagens de Dans la solitude chegam a definir suas singularidades, um em relação ao outro, sem, entretanto, a realizarem plenamente. Essa suspensão que procurei apontar é que leva Bident a afirmar que a obra de Koltès “encarna uma consciência exacerbada da escrita como estiramento do sublime e como ética da alteridade, como manutenção da questão da comunidade, como manutenção do ser-em-comum” (Bident, 2014, p. 49). Todavia, a questão a se colocar é se, como parece sugerir Bident, em Koltès seria possível pensar essa passagem entre a manutenção da comunidade enquanto questão à sua realização na figura do ser-em-comum. E é aí que talvez se encontre a maior diferença entre as formações das linhas que constroem o plano da comunidade em La nuit e em Dans la solitude. Nesta, o negociante diz em dado momento ao cliente:

E se eu digo que você fez uma curva, e certamente você vai sustentar que era um desvio para me evitar, e eu afirmarei em resposta que foi um movimento para se aproximar, é porque, certamente, afinal de contas você não desviou, e toda linha reta existe apenas em relação a um plano, e nós nos movimentamos segundo dois planos distintos, e finalmente só existe o fato de que você me olhou e eu interceptei seu olhar ou o inverso, e, portanto, absoluta que ela era, a linha sobre a qual você se deslocava tornou-se relativa e complexa, nem reta nem curva, mas fatal (Koltès, 1986, p. 18).

É a partir desse cruzamento de linhas que o cliente e o negociador têm alguma chance de existir, desfazendo a geografia das individualidades para inscrevê-las no plano tecido por essa linha fatal em que ambos inscrevem-se como ser-em-comum. A fatalidade aqui é o termo da relação através da qual um e outro se apresentam como a chance e o limite dessa mesma existência. Como nos diz Nancy,

A articulação a partir da qual a comunidade se forma e se distribuí não é uma articulação orgânica (…). Certamente, essa articulação é essencial para os seres singulares: estes são o que são na medida em que são articulados uns sobre os outros, na medida em que são repartidos e distribuídos ao longo de linhas de força, de clivagem, de torção, de acaso, etc., cuja rede faz seu ser-em-comum. E essa condição significa, além disso, que esses seres singulares são, uns para os outros, fins (Nancy, 1986, p. 186-187).

Voltando à questão de Bident, o problema é que se em Dans la solitude o plano da comunidade que daí adviria chega – ainda que com toda a dificuldade, como vimos – a se vislumbrar, o mesmo não parece se dar com os deslocamentos do personagem de La nuit. Problematizando essa possibilidade, o estrangeiro nos diz ao final da peça:

corro, corro, corro, sonho com o canto secreto dos árabes entre eles, camaradas, eu te acho e seguro teu braço, desejo tanto um quarto e estou molhado, mama mama mama, não diga nada, não se mexa, eu te olho, eu te amo, camarada, camarada, eu, eu procurei alguém que fosse como um anjo no meio desse bordel, e aí está você, eu te amo, e o resto, cerveja, cerveja, e continuo sem saber como poderia dizer, que confusão, que bordel, camarada, e depois sempre a chuva, a chuva, a chuva, a chuva (Koltès, 1988, p. 63).

Nesse desejo de diálogo – sempre sem resposta – em que a enunciação se faz entre a aceleração rítmica marcada pela falta de pontuação e a interrupção pela repetição dos termos, o estrangeiro se desloca entre o canto secreto dos camaradas árabes e um camarada, no singular. No entanto, este último é figurado apenas pela presença de um fragmento de corpo, especificamente de um braço através do qual o estrangeiro trava, literalmente, contato – “seguro teu braço”. Essa incompletude da forma não faz senão ecoar a palavra que garantiria a interlocução, mas que continua a faltar: “continuo sem saber como poderia dizer”. É o que se pode perceber também pela repetição final por que termina o texto, a qual parece apontar para essa falência que acaba por provocar novamente o desvio do olhar. Na procura pelo que não pode estar senão alhures, o estrangeiro volta a dispersar as linhas de força com as quais o plano da comunidade é quase traçado, mas nunca realizado. Como nos diz o estrangeiro de Baudelaire ao final de um texto homônimo por que começam seus poemas em prosa: “- Eh! O que amas, então, extraordinário estrangeiro?/ – Eu amo as nuvens… as nuvens que passam… lá… lá… as maravilhosas nuvens!” (Baudelaire, 1975, p. 277) Dito de outro modo, em La nuit juste avant les forêts, o estrangeiro é aquele que não para de embaralhar as linhas de formação do plano em que se inscreve o ser-em-comum, mantendo-o como questão entre o olhar que procura o outro e seu incessante desvio para o que não está aí, para o fora onde cai “a chuva, a chuva, a chuva, a chuva.” Eis sua chance e sua fatalidade.


*Rodrigo Ielpo é doutor em Literaturas de Língua Francesa e História e Semiologia do texto e da imagem em regime de cotutela pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e pela Université Paris 7. Professor de Literatura Francesa na Universidade Federal do Rio de Janeiro, realiza pesquisa na área de literatura francesa e literatura comparada, tendo publicado diversos artigos sobre literatura e processos de subjetivação e as relações entre literatura e história.

REFERÊNCIAS

BARTHES, Roland. Essais critiques. In: Œuvres complètes II. Paris: Seuil, 2002a, p. 269-528.

BARTHES, Roland. De la parole à l’écriture. In: Œuvres complètes IV. Paris: Seuil, 2002b, p. 537-541

BAUDELAIRE, Charles. L’étranger. In: Œuvres Complètes I. Paris: Gallimard, collection Bibliothèque de la Pléiade, 1975, p. 277.

BAILLY, Jean-Christophe. Retour sur la Comparution. In: Figures du dehors: autour de Jean-Luc Nancy. Nantes: Nouvelles Cécile Défaut, 2012. p. 127-133.

BIDENT, Christophe. Bernard-Marie Koltès, généalogies. Paris: Publie.net, 2014.

BLANCHOT, Maurice. Thomas, l’obscur. Paris: Gallimard, 1950.

EVRARD, Frank. Les écritures dramatiques. In: La littérature française au présent. Paris: Bordas, 2008, p. 489-524.

GROSSMAN, Evelyne. La défiguration. Paris: Les Éditions de Minuit, 2004.

KOLTÈS, Bernard-Marie. La nuit juste avant les  forêts. Paris: Éditions Minuit, 1988.

KOLTÈS, Bernard-Marie. Dans la solitude des champs de coton. Paris: Éditions Minuit, 1986.

NANCY, Jean-Luc. La communauté désœuvrée. Paris: Christian Bourgois, 1986, p. 69.

SARRAZAC, Jean-Pierre. Sobre a fábula e o desvio. Trad. Fátima Saadi. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2013, p. 138.

Recebido em: 08/03/2016
Aprovado em: 16/04/2016

Notas

[i] Todas as traduções dos textos estrangeiros citados neste artigo são de minha autoria.

[ii] Publicada em 1988, La nuit juste avant les forêts foi apresentada pela primeira vez no Festival d’Avignon, em 1977.

[iii] “O individualismo é um atomismo inconsequente que esquece que o que está em jogo no átomo é a questão de um mundo”. In: Nancy, Jean-Luc. La communauté désœuvrée. Paris: Christian Bourgois, 1986, p. 17.

[iv] Dans la solitude des champs de coton foi publicada em 1987, mesmo ano em que foi criada e apresentada pela primeira vez, no teatro Nanterre-Amandiers.

[v] O fato de que em nenhuma das peças haja o uso de nomes próprios é relevante dessa tentativa de dissolução das individualidades em favor das singularidades.

[vi] Pode-se dizer que a comparução diz respeito ao em-comum próprio à comunidade à qual estamos inapelavelmente expostos pelo simples fato de estarmos no mundo. É nesse sentido que o singular se opõe ao individual, pois diferentemente deste, aquele não pode ser pensado sem essa exposição dos seres entre si, os quais são, por essa razão, constituintes dessa comunidade ao mesmo tempo em que são constituídos por ela.

[vii] “Tu”, no original em francês.