Ano X 0201
2° semestre de 2015
dossiê
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A potencialidade do arquivo

Resumo: Ler um arquivo toca em grandes questões: linguagem e discurso; ética e política; a natureza do humano e do inumano; o significado do testemunho, levando-nos a novas compreensões de discurso, linguagem, subjetividade e política. Até umas pequenas signaturas podem ser úteis aos futuros cartógrafos.

Palavras-chave: Arquivo; cultura contemporânea; imaginação visual; arte.

Abstract: To read an archive touches on big issues: language and speech; ethics and politics; the nature of the human and the inhuman; the meaning of testimony, leading us to a new understanding of speech, language, the subject and politics. Even some few signposts may be helpful to future cartographers.

Keywords: Archive; contemporary culture; visual imagination; art.

 

L’ambiguità della relazione malinconica con l’ oggetto veniva cosí assimilata alla manducazione cannibalica che distrugge e insieme incorpora l’ oggetto della libido; e dietro gli orchi malinconici degli archivi legali dell’ ottocento torna a levarsi l’ ombra sinistra del dio che inghiotte i suoi figli, quel Cronos-Saturno la cui tradizionale associazione colla malinconia trova qui un ulteriore fondamento nell’identificazione dell’ incorporazione fantasmatica della libido malinconica col pasto omofagico del deposto monarca dell’età dell’oro (Giorgio Agamben – Stanze).

Todos sabemos que o flâneur é o protagonista da leitura urbana na modernidade, percorrendo ruas em acelerado processo de transformação. Em compensação, o arquivista opera, em seu espaço, a autêntica gênese das possibilidades citadinas e das próprias potências urbanas, agindo sempre como em um canteiro, a tal ponto que poderíamos dizer que o canteiro (chantier) funciona como um arquivo da memória cidadã.

La ville a commencé par le chantier et elle ne peut vivre que par lui, voire en lui. La ville se construit en se déconstruisant. Se déconstruisant, elle se désassemble pour s’assembler autrement, pour assembler une incessante altérité toujours transformable, toujours continuée, toujours renouvelée. Le chantier met au jour l’équilibre incessamment métastable de l’urbanicité (Nancy, 2010, p. 17).

Jean-Luc Nancy considera que este regime “de canteiro” verifica-se, em particular, na imagem fotográfica, graças a um aspecto peculiar dela, que se une, por sua vez, à própria captação mecânica da imagem, mas que dela também se distingue, entretanto, à maneira do elemento objetivo que se separa do subjetivo. Entende assim Nancy que a técnica fotográfica é a deserança de origem e fim, interrupção interna da existência, que se traduz em intervalo que separa a produção do produto. Essa separação de todo autos, de todo Si-mesmo, mostra que a ordem natural, a physis, foi rasgada desde o início e encontra-se rompida, alterada ou tocada por uma tekné ou pela intromissão de um Outro, que não cessam de desbordá-la e desdobrá-la, enquanto ilimitado processo de impressão (Faure, Lacoue-Labarthe, Nancy, 2004). Em última análise, o canteiro, a cidade e, por tabela, o arquivo são o real, entendido, porém, como sujeito e não como objeto. Em última análise, para Nancy, um autor é apenas uma máquina, um canteiro, onde se efetiva a lógica do com, a sintaxe das conexões[1]. Um arquivo.

Das Buch der Bücher (O livro dos livros, 2012) é um conjunto de livros que a Documenta 13 encomendou a artistas como William Kentridge, Alejandro Jodorowsky e Abraham Cruzvillegas, ou a filósofos como Cristoph Menke e Suely Rolnik. O conjunto inclui notas preparatórias de Walter Benjamin para o Livro das Passagens; um volume de cartas entre Theodor Adorno e Thomas Mann, prefaciado por Enrique Vila-Matas, reproduções facsimilares dos cadernos de Lukács, enquanto aluno de Georg Simmel, ou o conjunto de esboços de William Kentridge para um de seus stop-motion films desenhados sobre o tempo. Em Lexicon (2011), este mesmo artista sul-africano nos fornece um outro exemplo eloquente dessas operações de canteiro. Sobre um exemplar de um Graecum lexikon, editado em Londres, em 1825, Kentridge faz uma série de impressões sucessivas que se transformam numa cafeteira expresso, a partir da página numerada 20, em vermelho, pelo artista. É a mesma página em que também lemos, por exemplo, o verbete euktaios, ou em latim, optabilis, isto é, desejável. E essa cafeteira italiana vai se definindo mais claramente na página que contém eupistos, fidedigno, mas também euplastos, maleável, a tal ponto que, girando em torno de si mesma, a impressão, verdadeira mancha-sombra do desejo, torna-se um gato à página 40 (também numerada 983), onde nos encontramos, enfim, com a galáxia de kineo, mover-se, deslocar-se (Kentridge, 2011). Tal como no Lexikon, a  cidade, onde também impera o canteiro, se transforma igualmente em substância extensa, em função dessa condição informe do urbano, da memória e da própria imagem do presente, uma exterioridade para si, incessantemente fora de si, que não se concentra em lugar nenhum, substância cuja consistência é toda ela um recuo e um retorno, substância de constante deslocamento, sistema de posições e de movimentos incessantes que, em poucas palavras, poderíamos chamar de geometria analítica. Nela não focalizamos mais o vazio referencial que “se vê” nas imagens, mas captamos a pletora de sentidos e passamos a ver, nessas imagens (da memória e do arquivo), uma saturação plástica mediada pela técnica. Nesse ponto, diríamos que as imagens de arquivo, por exemplo, captam, em sua desobra (des-oeuvrement), o duplo regime da visualidade. O historiador referencial julga nelas poder ativar o regime do detalhe, mas a visão que a máquina nos fornece, em seu canteiro de obras, postula, entretanto, para o arquivista, um regime centrífugo de evocações, um regime que tende muito mais à mobilidade e à crítica de toda substancialidade da imagem, através de uma gaia ciência da imagem, indefinidamente lábil, nova e afirmativa em sua própria provocação (Didi-Huberman, 1995).

A partir da noção de canteiro, poderíamos dizer então que os arquivos são semoventes espaços simbólicos, onde sempre há metamorfose e transformação, embora essas consequências não provenham de um gesto subjetivo externo, mas sejam efeito do próprio material que aí se acumula. No caso da literatura, essa transformação não decorre de nada além da própria linguagem. A modernidade dos arquivos não estaria pois na memória (na matéria) acumulada, mas residiria, entretanto, nesse esquecimento do sentido simbólico dos materiais, através dos quais conseguimos, finalmente, ter acesso à mobilidade histórica. Assim sendo, o trabalho do arquivo é, em última análise, an-arquivista e poderíamos mesmo concluir que o arquivo, longe de ser um mero repositório do humanismo, representa o que, na cultura ocidental, há mesmo de inumano, pois sabemos que uma cultura torna-se inumana conforme ela amplifica seus museus e abandona os lugares de culto a seus mortos.

Ora, sabemos que a situação presente é a de uma cada vez mais pronunciada diferenciação ou abandono da Biblioteca em favor do Arquivo. Se a biblioteca remete à tradição, analisa o filósofo espanhol Miguel Morey, isso é porque sua tarefa é preservar, militarmente, o presente, defendendo-o com relação a qualquer crítica, e firmando, aliás, a verdade desse presente numa série de normas que, paradoxalmente, se depreendem da própria tradição. É claro que isto marca limites à própria ação histórica atual, porque estamos fadados a continuarmos restritos tão somente ao jogo possível para uma determinada tradição. Ou, conforme explica o próprio Morey, não há no arquivo, diferentemente da biblioteca, um critério de seleção que diga que existem textos que merecem estar nele e outros que não têm a dignidade suficiente para estar ali. Porque figurar no arquivo não implica nem exige nenhuma etiqueta de nobreza. E, no entanto, a experiência do saber de uma época somente poderá ser cabalmente restituída se trouxermos à luz tudo o que esta época produziu sob o regime da fala, sem nenhum critério de seleção, que forçosamente se deixaria conduzir por aquilo que supomos que esta época tenha pensado, adivinhando-o a partir do pensamento presente. O exemplo de Foucault, nas suas pesquisas, é bem conhecido: trata-se sempre de analisar domínios relativamente restritos, mas sempre por inteiro, exaustivamente. Deve-se ler tudo o que se escreveu sobre o assunto em questão, na época dada, examinar todos os arquivos que há sobre ele, sem privilegiar alguns discursos, como aqueles que realmente criam uma reflexão pertinente, com relação a outros, que são mero material menos nobre. Assim, a palavra de ordem poderia ser agora: exaustividade e suspensão de todo princípio de seleção, diante da aristocracia da biblioteca. Dito de outro modo, o discurso sempre antes e acima do pensamento (Morey, 2007, p. 23).

Contudo, essa questão do arquivo vir a ocupar o espaço e a função da biblioteca abre um limite, não já para o iluminismo, porém, para a simples possibilidade de uma ação pedagógica. Se aceitamos o diagnóstico de Morey, somos levados a concluir que, para Foucault, o saber existe para interromper a pressão do passado, e quando isto acontece, o que se obtém não é a materialidade de nada acumulável, que possa se chamar conhecimento, mas a disponibilidade de um espaço de experiência, agora totalmente aberto graças à intervenção arqueológica. As coisas que nos diziam serem impossíveis, a partir do momento em que se cortou com a memória que ditava essa impossibilidade, convertem-se em abertamente disponíveis. Sob esse ponto de vista, a biblioteca da tradição cumpria uma função que já não pode mais cumprir, e este fato tem muito de liberdade, mas também tem um quê de inquietação. A estas alturas, já não é mais necessário insistir na liberdade que se promove através da crítica, mas, talvez seja oportuno salientar que a substituição da biblioteca pelo arquivo leva a um ponto de crise, talvez o mais violento da sociedade ocidental, no fracasso educacional, verdadeiro fracasso formativo, com o qual nos ameaça. Se saber é cortar, qual o saber que ainda podemos ensinar nas escolas? A promessa que acompanhava a substituição da biblioteca pelo arquivo era uma promessa de desaprendizagem, graças à qual íamos poder desaprender, aprender a nos desprender das velhas ataduras que amarravam nossa experiência e nosso comportamento aos ditados de uma tradição enormemente falaciosa, interessada e sectária. No lugar disso, agora temos o espaço aberto do arquivo. Mas desse espaço aberto não se deduz necessariamente nenhuma pedagogia. Não está claro, porém, se o que dele se deduz é mesmo a impossibilidade de qualquer pedagogia. Em todo caso, o que o arquivo faz, de fato, é outorgar à pedagogia um caráter enormemente problemático.

A sombra de Saturno

O arquivo poderia ser caracterizado, em suma, como um canteiro de obras, como um espaço de incessante desconstrução e reconfiguração axiológica. A esse respeito, Françoise Le Penven, apoiada numa ideia de Gianfranco Baruchello e Henri Martin, argumenta que, se Marcel Duchamp pode ser apontado como fundador da arte contemporânea, é justamente porque ele altera a maneira de produzir arte. Não é mais um artista produzindo obra, mas um arquivista, um homem de projetos e conjecturas, em que o inacabado se opõe ao acabado e em que as notas, o texto, não funcionam mais como um texto de comunicação mas como um protocolo de trabalho (Le Penven, 2003). Cria-se, a partir daí uma situação particularmente inquietante. É o artista que produz a obra ou, pelo contrário, é a obra que produz o artista? Em um dos fragmentos de Espantapájaros (1932), o poeta argentino Oliverio Girondo pergunta-se:

¿Nos olvidamos, a veces, de nuestra sombra o es que nuestra sombra nos abandona de vez en cuando?

Hemos abierto las ventanas de siempre. Hemos encendido las mismas lámparas. Hemos subido las escaleras de cada noche, y sin embargo han pasado las horas, las semanas enteras, sin que notemos su presencia.

Una tarde, al atravesar una plaza, nos sentamos en algún banco. Sobre las piedritas del camino describimos, con el regatón de nuestro paraguas, la mitad de una circunferencia. ¿Pensamos en alguien que está ausente? ¿Buscamos, en nuestra memoria, un recuerdo perdido? En todo caso, nuestra atención se encuentra en todas partes y en ninguna, hasta que, de repente advertimos un estremecimiento a nuestros pies, y al averiguar de qué proviene, nos encontramos con nuestra sombra.

¿Será posible que hayamos vivido junto a ella sin habernos dado cuenta de su existencia? ¿La habremos extraviado al doblar una esquina, al atravesar una multitud? ¿O fue ella quien nos abandonó, para olfatear todas las otras sombras de la calle?

La ternura que nos infunde su presencia es demasiado grande para que nos preocupe la contestación a esas preguntas.

Quisiéramos acariciarla como a un perro, quisiéramos cargarla para que durmiera en nuestros brazos, y es tal la satisfacción de que nos acompañe al regresar a nuestra casa, que todas las preocupaciones que tomamos con ella nos parecen insuficientes.

Antes de atravesar las bocacalles esperamos que no circule ninguna clase de vehículo. En vez de subir las escaleras, tomamos el ascensor, para impedir que los escalones le fracturen el espinazo. Al circular de un cuarto a otro, evitamos que se lastime en las aristas de los muebles, y cuando llega la hora de acostarnos, la cubrimos como si fuese una mujer, para sentirla bien cerca de nosotros, para que duerma toda la noche a nuestro lado (Girondo, 1999, p. 88).

Girondo nos confirma uma característica da sombra que ela compartilha aliás com o canteiro e o arquivo. Ao se mostrar, é o monstro que nela vemos:

Le chantier est um monstre qui tient à la fois de l’hydre (multiplicité de têtes et de cous torves, renaissants aussitôt que tranchés) et du sphinx (composition de lion, de taureau, d’aigle et d’homme). Comme la première, il grouille, comme le second, il veille immobile sur sa propre énigme: c’est-à-dire sur son Idée même, dont il brouille l’aspect alors qu’il en étaye et ajuste les schèmes (Nancy, 2010, p. 36).

O arquivo e o desenho de protovidas

Em 2003, na primeira instalação de 7 Fragments for Georges Méliès, no Baltic Art Centre de Visby, na Suécia, William Kentridge ensaia o que ele chama de protoliving drawing, desenho potencial gerado por suas especulações acerca da reversibilidade do tempo. Diante de uma invasão de formigas, o artista admite:

I had been thinking of reversals all along, but up till then in terms of reversals of time, rather than reversals of tonality. I reversed the film, the white of the paper becoming the dark of the night sky and the black of the ants becoming white dots that would coalesce into galaxies or constellations. For the rest of the week I continued filming ants, three short fragments of which were used in Journey to the Moon. (…)

A bullet-shaped rocket crashes into the surface of the moon, a fat cigar plunged into a round face. When I watched the Méliès film for the first time at the start of this project, I realised that I knew this image from years before I had heard of Méliès. I was far advanced in the making of the fragments for Méliès. I had resisted any narrative pressure, making the premise of the series, what arrives when the artist wanders around his studio. What arrived was the need to do at least one film which surrendered to narrative push. The various props accumulated in the six weeks of making the other fragments threw themselves forward. The espresso pot and cup from Tabula Rasa became respectively the rocket ship and telescope, the rubbed-out landscapes from Moveable Assets the basis for the moon landscape, the reversed catching skills from Auto-Didact the metaphor for weightlessness, and the dark shape that becomes the window of the rocket was one of the messy sheets of Tabula Rasa II (‘good housekeeping’) which perforce meant the inside of the studio was the inside of the rocket. Méliès’ moon is of course a late 19th century colonial moon, an image of difficult terrain and savages. My lunar landscape is Germiston, just outside Johannesburg; in effect the same landscape from which the rocket takes off.[2]

A estratégia de William Kentridge nos permite pensar não só em uma literatura portátil, como a de Vila-Matas, mas, fundamentalmente, em uma literatura potencial, cuja virulência não estaria na matéria positivamente acumulada, mas nesse esquecimento do sentido simbólico dos materiais, nesse retorno enviesado e invertido de suas marcas, através das quais temos acesso à própria mobilidade histórica. Voltar à dinâmica do arquivo pode-nos assinalar então uma via para tanto. Relembremos, portanto, que, em 1922, uma escritora italiana, notabilizada por suas traduções de língua inglesa, Ada Salvatore, prefaciando a própria tradução de Tristram Shandy, observa que

A Sterne è stata fatta ripetutamente l’accusa di plagio. Il dottor Ferriar di Manchester há avuto la pazienza di recercare tutte le fonti alle quali Sterne aveva attinto; e nelle sue Illustrations of Laurence Sterne (oggi introvabile) rivelò che, oltre ad aver avuto a “collaboratori” Rabelais, d’Aubigné, Scarron, ed altri scrittori meno noti del XVI secolo, egli si era servito senza alcuno scrupolo dell’Anatomia della Malinconia di Burton (1624).

Il plagio di alcuni brani è innegabile; ma si può dire che da questa tendenza ben pochi grandi ingegni sono stati immuni. Nessuno di noi ha certo dimenticato le accuse fatte in questi ultimi anni ad Emilio Zola, e quelle che Enrico Thovez scrisse, documentandole, contro il più grande poeta italiano vivente. Del primo diceva il Daudet: “Zola non tolera il talento negli altri: lo prende e lo mette nei suoi libri, e alla fine s’ immagina che sia suo”. Lo stesso potrebbe forse dirsi dello Sterne, senonchè dobbiamo convenire che egli seppe cosi bene scegliere i materiali del suo mosaico e seppe disporti con tanto buon gusto da farsi quasi perdonare la indelicatezza; ed aggiungiamo che i passaggi plagiati hanno indubbiamente minor valore di quelli che sono dovuti alla sua osservazione diretta e all’arte somma ch’egli aveva nel dipengere con pochi tratti figure umane, cogliendo soprattutto il lato ridicolo d’ogni attegiamento e d’ogni caso, anche doloroso, della vita dei suoi personaggi (Salvatore, 1922, p. XIII-XIV)[3].

Alguns anos mais tarde, o escritor argentino Macedonio Fernández, usaria essa mesma passagem de Salvatore para fundamentar uma escritura potencial futura. Escreve Macedonio:

A Sterne se le hizo repetidamente la acusación de plagio. El Dr. Farriar de Manchester ha tenido la paciencia de buscar todas las fuentes en las cuales Sterne ha bebido; y en su Illustrations of Laurence Sterne (hoy inencontrables) reveló que, además de haber tenido por colaboradores a Babelain, d’Aubigné, Scarron y otros escritores menos notorios del siglo XVI, él se había servido sin ningún escrúpulo de la Anatomía de la Melancolía de Burton (1624).

El plagio de algunos trozos es innegable; pero se puede decir que de esta tendencia bien pocos grandes ingenios han estado inmunes. Ninguno de nosotros ha, por cierto, desmentido las acusaciones hechas en estos últimos años a Emilio Zola, y aquéllas que Enrique Thovez escribió, documentándolas, contra el más grande poeta italiano viviente. Del primero decía Daudet: “Zola no tolera el talento de los otros: lo toma y lo pone en sus libros, y al fin se imagina que es suyo.” Lo mismo podría quizás decirse de Sterne, si no fuera que debemos convenir que él supo tan bien escoger los materiales de su mosaico y supo disponerlos con tanto buen gusto hasta hacerse casi perdonar su indelicadeza; y agregamos que los pasajes plagiados tienen indudablemente menos valor que aquéllos que se deben a su observación directa y al arte sumo que en el pintar con pocos trazos figuras humanas, cogiendo sobretodo el lado ridículo de cada actitud y cada caso, aun doloroso, de la vida de sus personajes.

Macedonio transtraz, como diria Guimarães Rosa, o comentário de Ada Salvatore, sem mencioná-la no entanto, talvez por não ser uma crítica de renome e sim uma tradutora de livros de forte apelo popular, tal como E o vento levou de Margaret Mitchell ou as cartas da freira portuguesa Mariana Alcofarado. Mas essa irrelevância concedida por Macedonio à figura do escritor (não necessariamente por ser mulher ou tradutora) é sintomática de uma reconfiguração do próprio trabalho de escritura, em que o autor não é mais alguém que produz uma obra, mas um arquivista, um homem de projetos e conjecturas, para quem o inacabado opõe-se ao acabado e para quem as notas, a marginália, os esboços e anotações não funcionam mais como textos de comunicação, mas como  protocolos de trabalho. Macedonio percebe então que, mais importante que o pensamento, é o discurso e aventa, a partir daí, uma hipótese literária de fortíssimas consequências:

Podría no sólo legitimarse esta conducta sino realizar una gran escuela, o mejor, una revolución en el arte (pues el procedimiento puede extenderse de la literatura a las demás disciplinas artísticas). […]

El modo de satisfacer este designio de literatura infinita, de acrecentamiento indefinido del arte, consiste en aprovechar de las experiencias ajenas no sólo en cuanto a ejemplos de voluntad de experiencia sino en adoptar los productos mismos, los hallazgos difundidos en las grandes obras que no han podido librarse totalmente de la impura realidad, que esconden aún demasiado cosmos oxigenado y rutilante o tenebroso, que aún no han colmado la creación circular e inalienable del paramundo de la Literatura. Hay antologías que del soneto más perfecto de un autor de genio sólo estiman recordables uno o dos versos; es un criterio brillante, de alta civilización poética. Si un nuevo poeta pudiera sin crítica apropiarse de esos dos versículos que son lo excelente de toda la vida creadora de un gran poeta y, relacionándolos, según su genio, con otros dos o tres de otro poeta y algunos más de poetas de otros países, realizar un poema perfecto, o por lo menos dueño de un instante de perfección, la literatura progresaría sin sigilo, elocuentemente. Tal obra perfecta sería reelaborada por generaciones sucesivas que irían reperfeccionándola – enmendando una palabra, un acento, una puntuación – como un Mallarmé infinito. Como en economía política se practican los procesos de integración horizontal y vertical de explotación industrial, así en arte: o generaciones sucesivas perfeccionando los mismos productos concretos (no los arquetipos literarios o famosos “thèmes” franceses), o bien colectividades de artistas trabajando fervorosos sobre un mismo poema ponencia, ensayando y reensayando y entrecriticándose (incluso bajo la forma de proceso judicial y con un Fiscal que representara la severidad de la Eternidad), con método semejante al único que ha podido inventar la naturaleza para la resolución de sus prodigios: el “ensayo en número abrumador” (Jacob) o el método de “la prueba y el error” (Yeonings).

“El alquimista Mallarmé extrae lentamente de los abismos del lenguaje el producto de fusiones misteriosas y llena apenas al hueco de nuestras manos de cristales al estado insostenible y helado…

El mago Mallarmé sondea y tortura las palabras mismas, las somete a las más singulares combinaciones y a las más insólitas temperaturas, para forzarlas a abandonar un poco de sus poderes más secretos, de sus virtudes más insecuestrables” (Thierry Maulnier).

Y aún así, melancólicamente, el demiurgo Mallarmé a veces desfallece o dormita (Horacio). ¿Por qué? Porque es un solitario. (¿O es que la fatalidad del arte es la obra absolutamente individual y absolutamente falible?) Cuando poetiza, en uno de sus más famosos poemas (“Brise marine”), que figura en las antologías más rigurosas:

Je partirai! Steamer balançant ta mâture,
Lève l’ancre pour une exotique nature![4]

o

Et peut-être, les mâts, invitant les orages
Sont-ils de ceux qu’un vent penche sur les naufrages
Perdus, sans mâts, sans mâts, ni fertiles îlots…[5]

quizá el gran Mallarmé, el extraordinario inventor de aquel “cygne dautrefois que recuerda que es él:

Magnifique mais qui sans espoir se délivre
Pour n’avoir pas chanté la région où vivre
Quand du sterile hiver a resplendi l’ennui…[6]

y

Tout son col secouera cette blanche agonie
Par l’espace infligée à l’oiseau qui le nie…[7]

subpiensa que los hombres no merecen tan laborioso desconsuelo, que no hay lector suficientemente pausado y artista como para prepararse con un día de ocio y noble silencio a leer extáticamente ese soneto, y a sólo retornar a las labores o imaginaciones cotidianas después de haber merecido el don de ese poema. Por eso el mago renuncia a dominar alguna última fuerza del mal o de la languidez, aquella “exotique nature” o aquellos “mâts invitant les orages” y a los que “un vent penche sur les naufrages perdus”. Si la especie humana lo merece, podría alguna vez, en memoria de Mallarmé, intentarse el poema infinitamente perfectible, de generación en generación de poetas (Ricardi/Fernández, 1944, p. 5).

O modelo literário de Macedonio não é portanto o da memória mas o do esquecimento. Não nos propõe uma literatura de biblioteca, mas uma ficção de arquivo, o poema infinitamente perfectível: “si un nuevo poeta pudiera sin crítica apropiarse de esos dos versículos que son lo excelente de toda la vida creadora de un gran poeta y, relacionándolos, según su genio, con otros dos o tres de otro poeta y algunos más de otros poetas de otros países, realizar un poema perfecto, o por lo menos dueño de un instante perfección, la literatura progresaría sin sigilo” (Idem, Ibidem).

Sin sigilo e sin siglo. Enlaçando Sterne e Mallarmé, como essa máquina da qual nos falava Jean-Luc Nancy, Macedonio está nos fornecendo uma peculiar linha evolutiva da ficção, aquela que vai de Machado de Assis[8] a Augusto de Campos.[9] Mas além disso, o texto de Alberto J. Ricardi-Macedonio (indiretamente, de Ada Salvatore-Macedonio, ou mesmo de Sterne-Macedonio), antecipa aquilo que François Le Lionnais (que frequentara os círculos de Max Jacob e de Jean Dubuffet, sendo também próximo de Marcel Duchamp e Raymond Roussel, o que, em última instância, o conduz à frente do Collège de Pataphysique), promoveria a partir de 1960, o Ouvroir de littérature potentielle (OULIPO), onde se destacariam Georges Perec ou Italo Calvino.

Repetitividade da mídia, impressão do arquivo

Jean-Luc Nancy nos fala do arquivo como um chantier. Le Lionnais ou Queneau preferem o ouvroir, a oficina. Mas, em todo caso, o arquivo permanece ligado a uma noção de produtividade, de repetição, de iteração e esses modos vinculam-se, em última análise, à tecnologia contemporânea, cujo modo de produção e circulação é essencialmente repetitivo e reprodutivo. A obra de arte, tal como Benjamin já o detectara, só pode ser analisada em função de sua reprodutibilidade intrínseca (uma potencialidade) e não necessariamente sua reprodução (um produto final, um efeito) (Weber, 2008). Duchamp chegou a considerar que uma pá era o objeto estético mais deslumbrante já visto (In advance of the broken arm, 1915). Em 1924, o bureau de investigações surrealistas foi confiado por Breton a Artaud com o intuito de constituir um arquivo do inconsciente. Mais do que sondarem o registro do imaginário, muitos artistas exploraram, daí em diante, a dimensão do real, como Card File (1962) de Robert Morris, Lament of images (2002) de Alfredo Jaar, a exposição de Jenny Holzer Arquivo (galeria Cheim & Read; Nova York, 2006; galeria Barbara Krakow, Boston, 2007) ou a obra de Luis Camnitzer, Memorial (2009).  Luc Boltanski é talvez um dos mais representativos quanto à transformação do artista em arquivista, como atestam suas exposições Migrantes ou Flying books, que escavam o tempo a contrapelo  (Wechsler, 2013). O curador Dieter Roelstraete concebeu a exposição The Way of the Shovel: Art as Archaeology (O caminho da pá. Arte como arqueologia), no Museu de Arte Contemporânea de Chicago (2013-4), como manifestação desse impulso arquivístico que hoje podemos constatar na obra de artistas tais como Pamela Bannos, com os negativos resgatados do lixo; Derek Brunen; Mariana Castillo Deball, como sua instalação Stellae Storage; Tacita Dean ou Mark Dion. O artista tailandês (nascido, porém, em Buenos Aires) Rirkrit Tiravanija usa um arquivo jornalístico e uma tradução errônea para validar a hipótese de Guy Debord, em The days of this society is numbered (2012). Em todos eles verificamos, em suma, não já a simples reprodução mecânica mas a reprodutibilidade técnica, na medida em que, quando pensamos em reprodutibilidade, estamos pensando em inscrição, marca, vestígio. Em termos artísticos: fotografia, cinema ou vídeo. Mas não esqueçamos aliás que, quem diz video, produz Witz (engenho) e, ao mesmo tempo, Wissen (sabedoria).

Mas a universel reportage, a doxa diária, mesmo quando anestésica, também instala-se em nossas vidas em termos de repetição, ou antes, repetitividade, no cerne mesmo da nossa vida. A mídia eletrônica é justamente essa potencialidade futura, essa virtualização que constantemente separa o hinc et nunc do far away and long ago, renunciando, porém, à potência da linguagem, essa mesma que habita no arquivo. Walter Benjamin intuiu essa questão no seu ensaio sobre a obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica (1936) e, na sua esteira, Giorgio Agamben assinalou, em O homem sem conteúdo (1970) que

Dovunque un’ opera d’ arte è oggi prodotta ed esposta, il suo aspetto energetico, cioè l’ essere-in-opera dell’ opera, è cancellato per far posto al carattere di stimolante del sentimento estetico, di mero supporto della fruizione estetica. Il carattere dinamico della disponibilità per la fruizione estetica, oscura, cioè, nell’ opera d’ arte, il carattere energetico della stazione finale, nella propria forma. Se questo è vero, allora anche l’ opera d’ arte, nella dimensione estetica, ha, come il prodotto della tecnica, il carattere della dýnamis, della disponibilità per…, e lo sdoppiamento dello statuto unitario dell’ attività produttiva dell’ uomo segna, in realtà, il suo trapasso dalla sfera dell’ enérgeia a quella della dýnamis, dall’ essere-in-opera alla mera potenzialità.
Il sorgere delle poetiche dell’ opera aperta e del work-in progress, che si fondano su uno statuto non energetico, ma dinamico dell’ opera d’ arte, significa appunto questo momento estremo dell’ esilio dell’ opera d’ arte dalla propria essenza, il momento in cui – divenuta pura potenzialità, il mero essere-disponibile in sé e per sé – essa assume coscientemente su di sé la propria impotenza a possedersi nella fine. Opera aperta significa: opera che non si possiede nel proprio eîdos come nel proprio fine, opera che non è mai in opera, cioè: (se e vero che opera è enérgeia): non-opera, dýnamis, disponibilità e potenza (Agamben, 1970, p. 99).[10]

Mais tarde, em 1996, numa passagem de Meios sem fim. Notas sobre a política, o próprio Agamben resumiria essa condição com uma questão que perpassaria seus últimos escritos e que define, em suma, a potencialidade do arquivo:

La politica è ciò che corrisponde all’ inoperosità essenziale degli uomini, all’ essere radicalmente senz’ opera delle comunità umane. Vi è politica, perché l’ uomo è un essere argós, che non è definito da alcuna operazione propria – cioè: un essere di pura potenza, che nessuna identità e nessuna vocazione possono esaurire (questo è il significato politico genuino dell’ averroismo, che lega la vocazione politica dell’ uomo all’ intelletto in potenza). In che modo quest’ argía, queste essenziali inoperosità e potenzialità potrebbero essere assunte senza diventare un compito storico, in che modo, cioè, la politica potrebbe essere nient’ altro che l’ esposizione dell’ assenza di opera dell’ uomo e quasi della sua indifferenza creatrice a ogni compito e solo in questo senso restare integralmente assegnata alla felicità – ecco quanto, attraverso e al di là del dominio planetario dell’ oikonomia della nuda vita, costituisce il tema della politica che viene (Agamben, 1996, p. 109).[11]


*Raul Antelo é professor titular de Literatura Brasileira na Universidade Federal de Santa Catarina e pesquisador-sênior CNPq. Publicou, entre outros, Na ilha de Marapatá; Literatura em revista; João do Rio: o dândi e a especulação; Parque de diversões Aníbal Machado; Algaravia – Discursos de nação; Maria com Marcel.

Referências

AGAMBEN, Giorgio. L’uomo senza contenuto. Milão: Rizzoli, 1970.

AGAMBEN, Giorgio. O homem sem conteúdo. Trad. notas e posfácio de Cláudio Oliveira; prefácio de Gilson Iannini. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.

AGAMBEN, Giorgio. Mezzi senza fine: Note sulla politica. Turim: Bollati Boringhieri, 1996.

AGAMBEN, Giorgio. Meios sem fim: notas sobre a política. Trad. Davi Pessoa; revisão da trad. Cláudio Oliveira. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.

DIDI-HUBERMAN, Georges. La ressemblance informe. Ou le gai savoir visuel selon Georges Bataille. Paris: Macula, 1995.

FAURE, Nicolas, LACOUE-LABARTHE, Philippe, NANCY, Jean-Luc. Portaits-chantiers. Genève: Musée d’Art Moderne, 2004.

GIRONDO, Oliverio. Obra Completa. Ed. crítica Raul Antelo. Madrid, Paris… ALLCA XX, 1999 (Col. Archivos, 38).

KENTRIDGE, William. Lexicon. New York: Distributed Art Publishers, 2011.

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Notas

[1] “‘Marx’ est d’abord, en un sens, une puissante machine à arpenter et à redistribuer tout un espace commun à une époque (et commun dans tous les sens), l’espace commun, précisément, de l’investigation de ces espaces communs que sont l’économique, le social, le juridique, le politique, l’idéologique, tels qu’ils émergent pour eux-mêmes, et dénudés, dans l’époque de l”économie politique’ et de la clôture des significations (de la ‘métaphysique’). Plutôt que de s’échapper dans l”originalité’, ‘Marx’ consiste à tenir Marx en retrait, opérant depuis ce retrait la mise au jour de ce qui reste lorsque vacillent les prétentions à réinterpréter le monde, une fois de plus. Ce qui reste, un chantier commun (et le ‘commun’ en tant que chantier, espace défoncé, désordonné, ni construit, ni déconstruit)” NANCY, Jean-Luc ; BAILLY, Jean-Christophe, 1991, p. 73.

[2] Disponível em http://www.gallerytpw.ca/publications/pdf/1006-Kentridge.pdf

[3] Devo à proverbial gentileza de Ettore Finazzi-Agrò a consulta deste exemplar, constante da Biblioteca de Filosofia da Universidade de Roma (La Sapienza).

[4] “Eu partirei! Vapor a balouçar nas vagas, / Ergue a âncora em prol das mais estranhas plagas”. Mallarmè, In: Campos, 1974, p. 45.

[5]  “E é possível que os mastros, entre as ondas más / Rompam-se ao vento sobre os náufragos, sem mas-/ tros, sem mastros, nem ilhas férteis, a vogar…” (ibidem).

[6] “Magnífico mas que em esperança bebe / Por não ter celebrado a região que o recebe / Quando o estéril inverno acende a fria flora” (Idem, ibidem, p. 63).

[7] “Todo o colo estremece sob a alva agonia / Pelo espaço inflingida ao pássaro que a adia” (ibidem).

[8] Brás Cubas é um romance sterniano em que Machado opta pela forma livre do predecessor. Não obstante, José Guilherme Merquior aponta dois traços que seriam diferenciais em relação a Sterne, um é “a feição filosófica e sardônica do humorismo machadiano. Essa ironia álgida, eivada de ‘rabugens de pessimismo’, como confessa o finado autor, é muito diversa do humorismo eminentemente simpático e sentimental do Tristam Shandy. O travo acre e angustiante que nos deixa a ‘galhofa’ de Machado falta por completo ao licor amável de Sterne; mas a natureza inquietadora do humor machadiano deriva justamente da sua propensão inquisitiva e filosófica, da sua qualidade de visão problematizadora. A segunda diferença é a natureza fantástica da situação narrativa. Sterne regurgita de excentricidades, mas todas elas são, em última análise, imputáveis às desordenadas preambulações do espírito do Tristram, ao contar a sua autobiografia; Sterne queria explorar no romance a teoria de Locke sobre a associação de ideias, chave do processo psíquico; daí haver nele muita fantasia, mas não o fantástico. Decididamente fantástica, porém, é a moldura narrativa do Brás Cubas; a começar pelo fato de ser o romance de um defunto, ‘memórias’ radicalmente póstumas…” (Merquior, 1977, p. 166-167).

[9] Em 1955, Augusto de Campos afirmava, em “Poesia, estrutura”, que “Mallarmé é o inventor de um processo de organização poética cuja significação para a arte da palavra se nos afigura comparável, esteticamente, ao valor musical da série, descoberta por Schoenberg, purificada por Webern, e através da filtração deste, legada aos jovens compositores eletrônicos, a presidir os universos sonoros de um Boulez ou um Stockhausen. Esse processo se poderia exprimir pela palavra estrutura“. E em “Poema, Ideograma”, ele mesmo concluía que “as subdivisões prismáticas da Ideia de Mallarmé, o método ideogrâmico de Pound, a simultaneidade joyciana e a mímica verbal de cummings convergem para um novo conceito de composição – uma ciência de arquétipos e estruturas; para um novo conceito de forma – uma ORGANOFORMA – onde noções tradicionais como início, meio, fim, silogismo, tendem a desaparecer diante da ideia poético-gestaltiana, poético-musical, póetico-ideogrâmica de ESTRUTURA”. Antes disso, porém, na revista de Macedonio, podia-se ler, igualmente, “Ensayos sobre música I” (Papeles de Buenos Aires, nº 2, nov. 1943) e II (na mesma revista, nº 3, abril de 1944), de Juan Carlos Paz e, mais tarde, em 1950, era possível também rastrear, nas páginas de uma outra revista portenha, Arte Madi, a defesa dos mesmos princípios reivindicados por Augusto de Campos, saindo porém da pena de Hans Joachim Koellreuter (“Carta abierta”, Arte Madi, nº 4, out. 1950; “Un nuevo mundo sonoro”, ibidem, nº 6, out. 1952).

[10] Na tradução brasileira: “Onde quer que uma obra de arte, hoje, seja produzida e exposta, o seu aspecto energético, isto é, o ser-em-obra da obra, é apagado para dar lugar ao caráter de estimulante do sentimento estético, de mero suporte da fruição estética. Isto é, o caráter dinâmico da disponibilidade para a fruição estética obscurece, na obra de arte, o caráter energético da estação final, na própria forma. Se isso é verdadeiro, então também a obra de arte, na dimensão estética, tem, como produto da técnica, o caráter da δύναμιζ, da disponibilidade para…, e o desdobramento do estatuto unitário da atividade pro-dutiva do homem indica, na realidade, o seu ultrapassamento da esfera da ένέργεια para aquela da δύναμιζ, do ser em obra para a mera potencialidade.
O surgimento das poéticas da obra aberta e do working in progress, que se fundam em um estatuto não energético, mas dinâmico da obra de arte, significa precisamente esse momento extremo do exílio da obra de arte de sua própria essência, o momento em que – tornada pura potencialidade, o mero ser-disponível em si e para si – ela assume conscientemente, sobre si mesma, a própria impotência em se possuir no fim. Obra aberta significa: obra que não se possui no próprio εíδος como no próprio fim, obra que não está jamais em obra, isto é: (se é verdade que obra é ένέργεια): não obra, δύναμιζ, disponibilidade e potência” (Agamben, 2012, p. 111-112).

[11] Na tradução brasileira: “A política é aquilo que corresponde à inoperosidade essencial dos homens, ao ser radicalmente sem obra das comunidades humanas. Há política porque o homem é um ser argós, que não é definido por nenhuma operação própria – ou seja: um ser de pura potência, que nenhuma identidade e nenhuma vocação podem exaurir (este é o significado genuíno do averroísmo, o qual liga a vocação política do homem ao intelecto em potência). De que modo essa argía, essas inoperosidades e potencialidades essenciais poderiam ser assumidas sem se tornarem uma tarefa histórica, isto é, de que modo a política poderia ser nada mais do que a exposição da ausência de obra do homem e, quase, da sua indiferença criadora em relação a qualquer tarefa e somente nesse sentido permanecer integralmente destinada à felicidade – eis o que, através e para além do domínio planetário da oikonomia da vida nua, constitui o tema da política que vem” (Agamben, 2015, p. 126-127).