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A REPRESENTAÇÃO DE EXU EM OBRAS DE EDISON CARNEIRO

Resumo: O artigo aqui apresentado tem por objetivo analisar a presença de Exu nas obras Negros bantos, Religiões negras e Candomblés da Bahia com o objetivo de compreender, de forma inicial, o lugar desta figura no imaginário social e qual a posição de Edison Carneiro, autor das obras, em relação a esse personagem.

Palavras-chave: Edison Carneiro; Exu; imaginário social.

Abstract: The article presented here aims to analyze the presence of Exu in the works Negros bantos, Religiões negras e Candomblés da Bahia, with the objective of understanding, initially, the place of this figure in the social imaginary and the position of Edison Carneiro, author of these works, in relation to this character.

keywords: Exu; Edison Carneiro; social imaginary.

 

Pensar em literaturas que envolvem a temática africana pode nos remeter quase que instantaneamente à Bahia de Todos os Santos. Seja pelo lugar comum do nosso imaginário sobre a Bahia, seja pelo fato de esta terra ter gerado frutos que levantaram a bandeira da contribuição da cultura negra, tais como: Jorge Amado, Mãe Menininha do Gantois, Pierre Verger, que, apesar de francês, escolheu a Bahia como terra para viver e realizar seus estudos sobre os orixás da cultura negra; seja pelo não tão conhecido atualmente Edison Carneiro.

Se dentre as muitas opções de análise dentro dessa temática escolhe-se Exu como ponto de observação, esbarra-se com essa figura em Macunaíma, obra na qual o anti-herói de Mário de Andrade aparece como protegido de Exu.

Afinal veio a vez de Macunaíma o filho mais novo do fute. E Macunaíma falou:
– Venho pedir pra meu pai por causa que estou muito contrariado.
– Como se chama? Perguntou Exu.
– Macunaíma o herói.
(…)
Mas recebeu com carinho o herói e prometeu tudo que ele pedisse porque Macunaíma era filho (…)
(Andrade, 2013, p. 81. Grifo nosso).

Encontramos, também, a polêmica (2009) envolvendo o livro Lendas de Exu, de Adilson Martins, recomendado pelo MEC, que ao ser utilizado em sala de aula causou uma batalha em que havia, de um lado, a diretora e as mães de alunos evangélicas e, do outro, a professora, sacerdotisa de Umbanda, que decidiu utilizar o livro em suas aulas de literatura.

O imaginário social de Exu, comumente associado ao diabo, certamente é uma das razões pelas quais falar de Exu enquanto personagem mítico afro-brasileiro ainda causa balbúrdia. Outra razão é o desconhecimento da cultura e mitologia afro-brasileira.

Antes de adentrarmos especificamente nas obras que pretendemos analisar, cabe explicitar o que estamos chamando de imaginário social, e falar, ainda que brevemente, sobre a associação entre Exu e o diabo judaico-cristão, além de seu lugar no panteão africano.

Segundo Baczko (1985), até a segunda metade do século XX, associar imaginação e poder parecia algo contraditório, uma vez que a primeira se mostrava como uma “faculdade produtora de ilusões, sonhos e símbolos, e que pertencia, sobretudo, ao domínio das artes”, enquanto o segundo era reservado à realidade, às seriedades. No entanto, a partir da segunda metade do século XX, passou-se a ser percebido que qualquer poder, inclusive o político, é rodeado de representações coletivas. Assim, o domínio do imaginário e do simbólico se constitui como um lugar estratégico para tal poder, já que é através dos imaginários sociais que uma coletividade constrói sua identidade; elabora representações de si; estabelece papéis e posições sociais ao mesmo tempo em que constrói “o outro”, formando imagens de amigos e inimigos; rivais e aliados; exprime e impõe crenças comuns, tornando-se uma das forças reguladoras da vida coletiva.

Tendo em consideração essa definição de Baczko, olhemos para a informação que Reginaldo Prandi (2001) nos dá sobre o encontro do Velho Mundo com a figura de Exu. Segundo o autor, a ideia de Exu como possuidor de uma maldição se remonta à exploração da África pelos europeus através da presença de missionários e viajantes cristãos do século XVIII. Estes teriam “confundido” a figura de Exu com a do deus fálico greco-romano Príapo e com a do diabo judaico-cristão.

Essa “confusão” foi absorvida e reelaborada enquanto discurso pela sociedade brasileira, com o objetivo de demonizar as religiões de matriz africana e manter o status dominante da cultura judaico-cristã, criando assim o “outro”, o inimigo, que deveria ser combatido. É possível perceber ecos dessa “visão diabólica” em autores de destaque que se dedicaram a estudar o(s) candomblé(s) enquanto manifestação cultural dos negros brasileiros, como por exemplo: Nina Rodrigues e Arthur Ramos. Esse imaginário, mantido e ressignificado há mais de 300 anos, ainda encontra reverberações nos dias de hoje.

Em terras brasileiras, foi possível notar o aparecimento de Exu com pelo menos três roupagens diferentes. A primeira, já citada, é a comparação com o diabo judaico-cristão graças à nossa colonização. Em seguida vem o Exu-homem da rua, o catiço, representado nas mais diversas figuras, sendo algumas bem conhecidas, tais como: Exu Tranca-Rua, Zé Pilintra e as pombagiras, que seriam almas de homens da malandragem, de mulheres da “vida fácil” e de todos os tipos de marginalizados que hoje “descem”[1] nos terreiros para ensinar sobre a vida e os amores. E por último, há o Exu-orixá, menos conhecido no nosso imaginário­­­ – e por isso é importante demarcar seu lugar no panteão africano. Segundo a lenda, Exu seria irmão mais novo de Ogum (orixá guerreiro popularmente sincretizado com São Jorge, no Rio de Janeiro; na Bahia, o santo é sincretizado com Oxóssi). É apontado por Verger (1997) como o mais astuto e sutil de todos os orixás, que pode ser o mais cruel ou o mais benevolente de todos, dependendo apenas de ser agradado. É um orixá dual e voluntarioso, no entanto divino. Senhor dos caminhos, aquele que deve ser agradado antes de qualquer outro e que transita entre os dois mundos.

Assim, é possível afirmar que, apesar de Exu possuir no mínimo três acepções no imaginário social – catiço, orixá e diabo –, foi esta última que venceu a disputa de poder no imaginário social brasileiro. Tendo em consideração essas acepções, este artigo tem por objetivo realizar uma análise desse personagem nas obras Negros bantos (1991, 1937) e Candomblés da Bahia (1954, 1948), ambas de Edison Carneiro, buscando perceber qual ou quais dessas representações ganhou espaço em suas páginas.

Edison Carneiro (1912-1972) foi um importante folclorista e etnógrafo baiano. Radicado no Rio de Janeiro e fundador da Companhia de Defesa do Folclore Brasileiro, suas obras tratam da presença da cultura negra no Brasil e, especialmente, na Bahia. Conviveu com Jorge Amado, baiano de grande renome, na Academia dos Rebeldes, grupo literário fundado na Bahia nos anos de 1930. Além de conviver com Carneiro, Jorge Amado, autor de grandes obras da literatura brasileira, realizou críticas às obras de seu conterrâneo, especialmente Religiões negras (1991, 1936), dedicada ao próprio crítico e apontada por este como extremamente poética.

Em Negros bantos, Carneiro aponta que: “Chegados à Bahia, os negros bantos se espalharam (…). Essa conjectura encontra visos de verdade no folclore dessa região, onde se nota, mesmo à primeira vista, a sua marcada influência (…) esses negros do Sul detêm o monopólio do folclore negro da Bahia” (p. 129). Na sua introdução, o autor afirma que essa obra é resultado da observação dos candomblés e do folclore negro na Bahia, e, por isso, se caracteriza como um (no caso, o segundo) caderno de notas sobre os costumes negros na Bahia. A obra encontra-se dividida em duas partes e um apêndice. Para a análise, neste artigo, escolhemos o terceiro capítulo, “O homem da rua”, presente na primeira parte.

Candomblés da Bahia, por sua vez, caracteriza-se como um estudo dos candomblés, segundo o autor, um resumo de uma pesquisa de muitos anos com linguagem acessível a todos, sem notas de rodapé, com o objetivo de “ajudar meus concidadãos a compreender o mundo religioso de parte considerável da população nacional e, dessa maneira, contribuir para o exercício tão precário, de uma das liberdades civis asseguradas pela Constituição – a liberdade de culto – (…)” (p. 12). A obra encontra-se dividida em nove capítulos e mais um suplemento, e é o quarto capítulo, no qual o autor apresenta os orixás, especificamente a quinta parte, “Êxu”, que analisaremos.

Peço licença ao senhor dos caminhos

Quem guarda os caminhos da cidade do Salvador da Bahia é Exu, Orixá dos mais importantes na liturgia dos candomblés, orixá do movimento, por muitos confundido com o Diabo no sincretismo com a religião católica, pois ele é malicioso e arreliento, não sabe estar quieto, gosta de confusão e de aperreio. (Amado, 1980, p. 17).

Antes de analisarmos tais obras, cabe destacar que o trabalho de Carneiro é considerado um trabalho etnográfico, cabendo perguntas acerca da aproximação entre ficção e discurso etnográfico. Ana Maria Mão de Ferro Martinho, em seu artigo “Memória e experiência etnográfica – literatura, cultura, representações” (2010), afirma que: “A Etnografia, enquanto expressão metafórica de uma epistemologia ‘de-centrada’, é sempre ficção, embora a ficção nem sempre seja etnografia”. Pautada em Clifford Geertz e James Clifford, a autora destaca a dimensão ficcional nos trabalhos de campo. Essa dimensão poderia ser caracterizada em três tipos fundamentais, interessando-nos aqui a que Geertz chama de realist tales – com foco em descrições das culturais estudadas –, que é exatamente o trabalho feito por Carneiro nas obras aqui trabalhadas.

K. Olinto, em seu Literatura e cultura (2003), concorda com as colocações de Martinho. Citando Valter Sinder: “sugere que a literatura assim como as ciências sociais são meios de fornecer a orientação e a interpretação da civilização moderna e da realidade social” (p. 29). O autor segue apresentando a menção que Sinder faz de Geertz: “as etnografias são ficções: ficções no sentido de que são algo construído, algo modelado” (p. 32). Assim, a imparcialidade pretendida pelo cientista de alguma forma não vinga, a partir do momento em que está sujeita a um olhar que interpreta, o que pode abrir espaço para elementos ficcionais. Por mais que o etnógrafo realize anotações que se pretendam imparciais, ele escolhe o que anota, podendo assim ter sua imparcialidade questionada.

Não cabe aqui discutir a etnografia, e sim apontar aproximações possíveis com o fazer literário ficcional, justificando a escolha de nossa fonte.

Este artigo partilha dos pressupostos teóricos dos Estudos Culturais que, segundo Culler (1999), são movidos por tensões entre o desejo de recuperar a cultura popular e de dar voz a grupos marginalizados. Tal noção encaixa-se perfeitamente com a proposta presente nas obras de Carneiro, visto que o baiano recupera a cultura popular negra da Bahia através das anotações das práticas religiosas, e dá voz aos praticantes e sacerdotes (como veremos a seguir) das religiões de matriz afro, marginalizadas pela sociedade brasileira europeizada, e ao culto de Exu, o mais marginalizado e temido por essa mesma sociedade dominante.

Que família é essa? É a família do Diabo[2] – a representação diabólica de Exu

Em Candomblés da Bahia, Edison Carneiro nos mostra as razões que possibilitaram que esse sincretismo Exu-diabo se cristalizasse no imaginário social brasileiro. Segundo Carneiro: “tendo como reino todas as encruzilhadas, todos os lugares esconsos e perigosos deste mundo, não foi difícil encontra-lhe um símile com o diabo cristão” (p. 73). O autor aponta que essa é uma má interpretação da figura de Exu e que essa caricatura também foi assimilada pelos negros de outras nações[3] que não a nagô ou gêge (jejê), uma vez que eles não conheciam esse homem das encruzilhadas e que, apesar dessa correlação (Exu-diabo), os cultos nada perderam de suas características fundamentais nos candomblés de matriz nagô e gêge (jejê).

Nessa narrativa inicial de Carneiro, devemos atentar para o fato de que o autor, negro e observador da cultura baiana, chama atenção para um equívoco que cometemos até hoje: refere-se sempre ao candomblé no plural, demonstrando assim as inúmeras possibilidades de cultos e tradições que podem existir e, de fato, existem. Ele nos apresenta duas nações afro-baianas e ainda aponta a existência de outras nações com diferentes bases culturais, que não compreendem a prática cultural das nações gêge (jejê) e nagô, também oriundas de África. Mantendo o paralelo entre essa noção de candomblés plurais, trazida por Carneiro, podemos pensar também em Áfricas, cultura múltipla, e, por conseguinte, em tradições afro-brasileiras: plural e não única e hegemônica como muitas vezes pretendida.

Voltando à obra de Carneiro, temos que o autor nos apresenta Exu como um embaixador dos mortais, um intermediário entre os homens e os orixás. É importante destacar que, nessa obra, Carneiro ainda não tinha conhecimento do Exu-Orixá, algo que adquiriu posteriormente e apresenta em seu texto “o homem da rua”, trabalhado no próximo tópico.

Carneiro expõe as duas faces de Exu, sintetizando-o no esquema: se damos o que Exu pede, temos caminhos abertos (face boa); caso não, ele desencadeará todas as forças do mal contra nós (face má), isso porque ele é o senhor dos caminhos. E exatamente por dominar os caminhos, a ele é consagrado todo o início de festa e início de semana, com o intuito de que tudo ocorra bem dali em diante e não haja problemas pelo caminho.

Apesar dessa face dicotômica, Carneiro aponta a existência do Exu-compadre, familiar a todos os candomblés, que seria uma espécie de cão de guarda fiel. O autor chama atenção para o fato de tal título implicar em uma familiaridade, o que não justificaria a representação de Exu como um elemento contrário ao homem. Ou seja, apesar de Exu ser visto como o diabo, aquele que deseja o mal para o homem, pelos não praticantes dos rituais gêge (jejê) e nagô; isso não procede dentro da ritualística, Exu é, sim, um cão fiel e vigilante que protege a casa/barracão e é saudado de maneira reverente por todos os filhos e assistentes antes das festas.

Por fim, Edison Carneiro traz um “causo”, e aqui se faz importante a discussão sobre etnografia e literatura feita no início desse artigo, pois o autor diz que esse caso é o único de que ele tem notícia. Vale destacar que não é mencionada por ele a forma como obteve esta notícia, se foi em campo, observando, ou ouvindo as histórias pelos barracões e casas de santo. O que nos conta é que Exu não é um orixá, porém pode se manifestar como um, e nesses casos a pessoa não seria filho(a) de Exu, mas teria um carrego (obrigação) com ele. No entanto, e mesmo assim, ele pode se manifestar, pode dançar nas festas de candomblés, mas não entre os outros orixás. Carneiro salienta o fato de que isso só aconteceu uma vez, no Candomblé do Tumba Juçara (Ciríaco). Ocorreu de tal modo que uma filha de santo dançava jogando-se no chão, com cabelos despenteados e vestidos sujos, parecia até uma provocação – Exu sempre provocante – “Este caso do Candomblé de Ciríaco é o único de que tenho notícia acerca do aparecimento de Exu nos candomblés da Bahia” (p. 77).

Com Exu não se brinca, Exu não é de brincadeira[4]

“Senhores das potências sobrenaturais, protegidos por Exu, estes homens podem, sempre que o queiram, mandar os inimigos para a Mansão dos Mortos – o Canzuá de Kimbé, como a chamam os negros bantos da Bahia” (p. 145). Com essa colocação impactante, Edison Carneiro deixa clara a crendice dos terreiros de candomblés: com Exu não se brinca.

Nesse mesmo livro, Negros bantos, no capítulo III da segunda parte, mais uma vez Carneiro escreve sobre essa entidade, Exu. Intitulado “O homem da rua”, esse capítulo já nos mostra desde o início uma versão divergente da imagem e representação desse ente. Se no anterior, Candomblés da Bahia, Carneiro dizia que Exu não é orixá, neste, no primeiro parágrafo, ele nos diz: “A representação mais comum de Exu, orixá que simboliza as forças contrárias ao homem, trá-lo sempre armado com suas sete espadas, que correspondem aos sete caminhos dos domínios intensos do orixá” (grifo nosso); ou seja, a partir de agora Exu é percebido como um orixá. O autor segue apresentando os presentes preferidos de Exu, como fez em seu livro anterior.

Uma das representações de Exu Orixá
Uma das representações de Exu Orixá
Fonte: www.juntospelocandomble.com.br

No entanto, diferentemente da obra que a antecede, nesta Carneiro mostra que entrevistou pais de santo, saindo do lugar de narrador-observador e interagindo com o objeto de observação.  Remetendo-se ao estudo anterior (Candomblés da Bahia), Carneiro nos conta que questionou o pai de santo Manuel Paim sobre o ponto cantado: “Sai-te daqui, Aluviá / que aqui não é teu lugá. Eu não quero ver-te aqui, na mesa de Apanaiá”. E antes de analisarmos a resposta de pai Manuel, é importante destacar a marcação da oralidade presente nesse trecho.

A marca de oralidade já se faz presente no nome do pai de santo: Manuel Paim, “Paim seria a forma oral de “painho” (diminutivo coloquial de paizinho), e tratamento carinhoso/respeitoso até hoje presente nas casas de santo. O trecho dá sequência à transcrição da fala e segue presente no trecho “que aqui não é teu lugá”, no qual “lugá” aparece em vez de “lugar”.

Retornando com a resposta de pai Manuel, temos que, segundo o sacerdote, Aluviá seria um Exu da nação de Angola, aqui é apresentada outra nação que não havia aparecido em sua obra anterior; e Apanaiá seria um espírito de Caboclo, superior ao Exu. Aqui já é possível reparar na existência de hierarquia dentro da liturgia de matriz afro. Carneiro ainda questiona ao “painho” se existe mais de um Exu, e este lhe responde de maneira afirmativa.

Carneiro em sua observação sobre o terreiro de pai Manuel, nos diz que nele se “mesclam as influências das nações jejes e angolas, sem que possa afirmar qual seja a predominante” (p. 143). Aqui devemos nos atentar para uma mudança de grafia: se, na primeira obra, a mais antiga, a nação jejê aparecia escrita com “g”, nesta já aparece escrita com “j”, como é o comum hoje em dia. E observando mais atentamente a análise de Carneiro, é possível aproximá-la da afirmação de Stuart Hall (2001) de que o espaço do “Novo Mundo” é “em si mesmo o início da diáspora, da diversidade, do hibridismo e da diferença”. Se a diferença aparece marcada pelo uso de candomblé no plural, o hibridismo surge representado no terreiro de Manuel Paim: duas nações gerando uma nova forma de culto.

Edison Carneiro registra alguns cantos a Exu nesse terreiro, como por exemplo: “Embarabô ê môjubá / Embarabô ê môjubá / já mandei lebar ébó”. E nos ensina que Embarabô é o nome de Exu na nação Kêtu, assim como Bombonjira é o nome do Orixá na nação Congo. Com isso, fica evidente o chamado hibridismo cultural, diversas nações oriundas de África juntam-se na Bahia, formando assim um novo cosmos cultural e ritualístico, próprio do Brasil e de uma cultura afro-brasileira, não existente em África, pois em cada nação de África havia um culto específico, que se encontrou apenas no Brasil, dado o tráfico negreiro.

Em seguida, Carneiro nos conta que Exu tem características fálicas e, como prova, traz o argumento de autoridade de Nina Rodrigues, um dos grandes antropólogos do século XIX e pesquisador daquilo que ele intitulou “fetichismo dos negros baianos”. Sua obra recheada de ideias que compartilham do chamado darwinismo social[5] é passível de muitas críticas atualmente, no entanto dialoga com ideias em vigor no seu tempo.

Exu com características fálicas.
Exu com características fálicas
(Fonte: https://www.jstor.org/stable/3337601?seq=1#page_scan_tab_contents)

Carneiro nos diz que na obra Os africanos no Brasil, de Nina Rodrigues, os exus são representados com “volumosos órgãos sexuais, longos peitos pendentes nas mulheres” (p. 144), e segue nos dizendo: “Sabido que Exu procede da Costa dos Escravos, não tendo similares nos povos bantos importados para o Brasil, deduz-se, com probabilidade de acerto, que os negros sul-africanos dele se apropriaram sem lhe retirar nenhum dos seus caracteres distintivos essenciais” (p. 144). Mais uma vez, confirma o hibridismo proposto por Hall, quando este afirma que o espaço do “Novo Mundo” é “em si mesmo o início da diáspora, da diversidade, do hibridismo e da diferença” (Hall, 2001).

O baiano nos traz outro culto presente na Bahia, fazendo uma oposição entre os candomblezeiros e os feiticeiros, através da figura de Exu. Para os primeiros, Exu só deve ser despachado e/ou reverenciado para não atrapalhar os demais trabalhos; enquanto que, para o segundo grupo, de acordo com Carneiro, “rendem-lhe, como é natural, um culto tenebroso, que intimida as camadas baixas da população (…) muita exploração da crendice e da incredulidade populares. ‘Atravessar para o outro lado — tal ameaça constante (…) significa, simplesmente, matar” (p. 145).

Por fim, Carneiro nos apresenta alguns nomes de pais de santo feiticeiros, comprometidos com esse “homem da rua”, Exu, e afirma que “há fatos interessantes, que demonstram o pacto firmado entre esses homens e o diabo do negro brasileiro” (p. 145). Curiosamente, o autor usa o termo diabo, mesmo tendo dito, em pesquisa anterior, que “Exu tem sido largamente mal interpretado (como diabo)” (Carneiro, 1954, p. 73).

Vai Exu, vai passear[6]

Postado nas encruzilhadas de todos os caminhos, escondido na meia luz da aurora ou do crepúsculo, na barra da manhã, no cair da tarde, no escuro da noite, Exu guarda sua cidade bem-amada (…) o povo dessa cidade é doce e cordial e Exu tranca seus caminhos ao falso e perverso (Amado, 1980, p. 17).

Segundo Jorge Amado, Exu tranca os caminhos daqueles que pretendem ser falsos e perversos, guardando a bem-amada cidade de São Salvador. Assim, na sua visão, Exu seria o orixá protetor dessa cidade, e aqui fica evidente o lado positivo de Exu. No entanto, é sabido que no imaginário popular o que prevalece é a roupagem negativa dessa entidade mítica africana. Esse prevalecimento é mantido na atualidade especialmente pelos neopentecostais, grupo religioso que mais cresce no Brasil[7], e tem como um dos grandes nomes o bispo Edir Macedo, que, em seu livro Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios, afirma: “Os exus, os pretos-velhos, os espíritos de crianças, os caboclos ou os ‘santos’ são espíritos malignos sem corpo, ansiando por achar um meio para se expressarem neste mundo, não podendo fazê-lo antes de possuírem um corpo” (Macedo, 1980, p. 9. Grifo nosso). Adiante, a comparação é ainda mais evidente: “Na realidade são demônios. No meio de pessoas ignorantes e leigas, se manifestam como exus, caboclos ou guias” (p. 32. Grifo nosso).

Nos espaços de disputa desse imaginário popular, notamos que, de certa maneira, ainda na década de 1930 e 1940, Edison Carneiro tentou através de sua narrativa ressignificar a imagem de Exu e, mais do que isso, tentou compreendê-la dentro de seu ambiente de culto. Apresentando Exu como elemento de ligação entre os orixás e o mundo, um ser de movimento e ao qual se deve respeito. No entanto, esse respeito não deve ultrapassar os limites e virar culto, pois isso é coisa de “feiticeiros” que trabalham para o mal.

Apesar de sua tentativa, em algumas falas, o autor baiano deixa transparecer certa influência da imagem negativa de Exu, comumente perpetuada, chamando-o de “diabo dos negros brasileiros”. E dialogando com toda a mentalidade do período que buscava inserir e conhecer a cultura negra, mas estabelecendo certos limites, demonizando-a ou feitichizando-a.

Este artigo não buscou encontrar uma totalidade acerca da visão de Exu pelos olhos de Carneiro. Primeiro porque, como dito na introdução, esta tarefa seria impossível, uma vez que a presença desse ser mitológico na cultura afro-brasileira apresentaria no mínimo três acepções. Segundo porque o próprio intelectual aqui analisado apresenta visões dicotômicas, paradoxais, duais, como o próprio Exu.

Assim, a partir das análises das obras aqui citadas, foi possível perceber também que Exu é o senhor das ruas, das encruzilhadas, e essas encruzilhadas são múltiplas (assim como a própria entidade), caracterizando o encontro de diversas nações. Encontro que fez surgir, em nosso país, um culto novo, híbrido:

Da esfera do rito e, portanto, da performance, encruzilhada é o local radial de centramento e decentramento, interseções e desvios, textos e traduções, confluências e alterações, influências e divergências, unidade e pluralidade, origem e disseminação. Operadora de linguagens e discursos, a encruzilhada, como lugar terceiro, é geratriz de produção sígnica diversificada e, portanto, de sentidos plurais (Martins, 2001, p. 65).

Com isso temos que a encruzilhada é o ponto de encontro de todos os caminhos, dos quais devemos decidir qual seguir. Exu, assim como Edison Carneiro, é o mensageiro e a encruzilhada. Eles levam aos mais diversos caminhos e às múltiplas, e por vezes contraditórias, duas faces, duas mensagens.

Por fim, é possível notar que na atualidade a visão com relação a Exu se aproxima mais daquela que Carneiro defende ao propor Exu como um mensageiro, aquele que liga os dois mundos e abre caminhos. Mesmo com a ainda forte presença da visão negativa, já é possível perceber um olhar que busca entender a cultura do outro, e isso fica evidenciado em ações como a presença de Exu no desfile de 2016 da Acadêmicos do Salgueiro, que trouxe um Exu em sua Comissão de Frente abrindo caminho para a escola passar; ou ainda no desfile técnico dessa escola que trouxe sua rainha de bateria vestida de pombagira (Exu fêmea) “abençoando” os ritmistas.


* Mariana Pereira da Fonseca Teixeira é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Literatura pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e pós-graduada em Tradução Português – Espanhol.

 

Referências

AMADO, Jorge. Bahia de Todos os Santos: guia de ruas e mistérios. Rio de Janeiro: Record, 1980.

BACZKO, Bronislaw. A imaginação social. In: LEACH, Edmund et alii. Anthropos-homem. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985.

CARNEIRO, Edison. Religiões negras. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991 (1936).

CARNEIRO, Edison. Negros bantos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991 (1937).

CARNEIRO, Edison. Candomblés da Bahia. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editorial Andes, 1954 (1948).

CULLER, Jonathan. Teoria literária – uma introdução. Disponível em: iedamagri.wordpress.com. Acesso em 15/12/2016.

HALL, Stuart. Identidade cultural e diáspora. Disponível em: http://documents.tips/documents/hall-stuart-identidade-cultural-e-diaspora.html. Acesso em 15/12/2016.

MACEDO, Bispo Edir. Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios. Rio de Janeiro: Universal Produções, 1980.

MARTINHO, Ana Maria Mão de Ferro. Memória e experiência etnográfica: literatura, cultura e representações. Disponível em: www.setorlitafrica.letras.ufrj.br. Acesso em 10/12/2016.

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PRANDI, Reginaldo. Mitologias dos orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

VERGER, Pierre. Lendas africanas dos orixás. Salvador: Corrupio, 1997.

 

Notas

[1] Descer, nesse contexto, pode ser definido como a possessão. Ou seja, quando os santos vêm à terra utilizando-se do corpo dos iniciados, seu filhos. Isso nos é apontado por Prandi e Souza: “[…] os encantados ‘vêm à terra’, descem na guma (terreiro), para dançar e conviver com os mortais, estabelecendo com todos os que comparecem aos terreiros relações de afeto e clientela” (PRANDI, Reginaldo; SOUZA, Patrícia Ricardo de. Encantaria de mina em São Paulo. In:___(Orgs.) Encantaria brasileira: o livro dos Mestres, Caboclos e Encantados. Rio de Janeiro: Pallas, 2004).

[2] Cantiga – ponto entoado em cultos de Umbanda em homenagem a Exu.

[3] Termo utilizado para se dirigir às vertentes presentes nos candomblés, tomando como ponto de referência um espaço, geográfico ou sociocultural, de onde se supõe a origem do culto que nomeia (ex.: Nação Kêtu, Nação Nagô etc).

[4] Cantiga – ponto cantado em festa de Exu.

[5] Pensamento social surgido no século XIX, que, com base nos pensamentos de Spengler e Darwin, defendia a tese de inferioridade racial.

[6] Cantiga – ponto cantado para encerramento em festa de Exu.

[7] Pesquisa de Orçamento Familiar (POF), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 2011. In: www.ibge.gov.br. Complementando a informação, temos que “O número de evangélicos no Brasil aumentou 61,45% em 10 anos, segundo dados do Censo Demográfico divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Em 2000, cerca de 26,2 milhões se disseram evangélicos, ou 15,4% da população. Em 2010, eles passaram a ser 42,3 milhões, ou 22,2% dos brasileiros. Em 1991, o percentual de evangélicos era de 9% e, em 1980, de 6,6%”. In: www.g1.com.br.

 

Recebido em dezembro de 2016
Aprovado em janeiro de 2017