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A revolução da independência: considerações sobre o Catarse e quadrinhos independentes como opção para o mercado editorial | Victor Almeida*

Nos últimos anos, o mercado editorial vem passando por um processo de inquietação devido à inclusão do livro digital nas livrarias. Essa mudança levou a uma série de debates, eventos, artigos e preocupações sobre como essa nova e significativa fase poderia afetar o futuro do livro, seja pela diversificação de plataformas de publicação, seja pelo papel do editor em meio a tantos novos casos de autopublicação. Será o fim do livro de papel em longo prazo, agora que o mercado digital começou? O que farão as pequenas livrarias, agora que a compra de um livro ocorre instantaneamente, com o apertar de um botão? E principalmente: como isso afetará o nosso país?

O Brasil, até a data deste artigo, encontra-se em processo de adaptação, de reposicionamento, e os livros digitais (ou e-books), embora já sejam uma realidade, consequentemente ainda não apresentam grandes resultados em vendas. Carlo Carrenho, fundador do site Publishnews e especialista em mercado editorial, a partir das previsões da DLD (Distribuidora de Livros Digitais) estabelece que, embora esteja em uma curva ascendente de crescimento (ver Figura 1), o mercado digital em 2013 correspondeu a apenas 2,63% do total de vendas (Carrenho, 2013).

Figura 1 - Venda de e-books no Brasil (2012-2013). Fonte: <http://www.tiposdigitais.com/2013/01/o-tamanho-do-mercado-de-ebooks-no-brasil.html>.
Figura 1 – Venda de e-books no Brasil (2012-2013).
Fonte: http://www.tiposdigitais.com/2013/01/o-tamanho-do-mercado-de-ebooks-no-brasil.html.

Um dos motivos básicos para tal dado é a continuidade da pouca prática de leitura em território nacional. Embora o consumo de livros tenha aumentado nas classes C, D e E, avalia-se que a média de leitura brasileira seja de apenas quatro livros por habitante ao ano. Se cogitarmos a aceitação dos e-books, a situação é ainda mais crítica: 45% dos entrevistados nunca ouviram falar de uma versão digital para os livros (Instituto Pró-Livro, 2012).

Logo, a transição continua concentrada nas mãos de poucos. O que pode ser contraditório, já que a principal mudança nesse processo não é a do fim do papel e o início da tela de e-ink com alta resolução. A principal mudança nessa transição, como bem aponta o editor, administrador e teórico Júlio Silveira, está no acesso, na facilidade de publicação, na facilidade do produto chegar à mão do leitor sem intermediários. Como resultado, vemos cada vez mais casos internacionais de autores reconhecidos com projetos de self-publishing e a Amazon defendendo abertamente o fim das editoras na Feira do Livro de Londres ao apresentar o Kindle Direct Publishing, seu serviço de publicação independente, iniciando uma “revolução para novos autores” e uma reação furiosa dos editores (Silveira, 2013).

No caso dos quadrinhos, um exemplo positivo dessa lógica está em uma HQ nacional com trilha sonora, criada por autores desconhecidos (até então) pelo grande público. O que poderia parecer um projeto financeiramente inviável para algumas editoras, tornou-se realidade no fim de 2011, quando a HQ Achados e perdidos do roteirista Eduardo Damasceno, do ilustrador Luís Felipe Garrocho e do músico Bruno Ito passou a ser, com a ajuda de 571 apoiadores, um dos primeiros quadrinhos publicados de forma bem-sucedida por uma plataforma de crowdfunding, ou melhor, de financiamento coletivo.1

O projeto, planejado desde 2007, acabou se tornando um material impresso de 212 páginas de quadrinhos e extras, acompanhado por um CD encartado. Para os leitores/ouvintes, fica a opção de ler a obra sem ouvir o CD, ouvir o CD separadamente ou unir as duas mídias para uma experiência completa. Para a impressão do álbum e gravação dos CDs seriam necessários 25 mil reais como custo de produção. O trio arrecadou mais de 30 mil reais e se tornou um exemplo para novos artistas publicarem pelo mesmo caminho. Em 2012, a HQ passou a ser publicada pela editora Miguilim.

Ao ser questionado sobre o motivo pelo qual publicaram por essa forma de financiamento, pouco explorada na época, Damasceno alegou que

essa forma de financiamento (…) está muito de acordo com o que a gente acredita em relação à produção de entretenimento. A ideia de as pessoas que querem ver o livro pronto bancarem a produção dele é sensacional. Não vejo tanto como renovação, ou algo do tipo porque ainda acho tanto as editoras quanto os editais formas interessantes, consolidadas e bem estruturadas de se viabilizar projetos. Mas pra gente, nesse momento, o crowndfunding se encaixou perfeitamente no que estávamos querendo e na forma como produzimos. Espero sim que com o tempo e à medida que mais projetos forem acontecendo assim se torne mais uma plataforma de publicação. Não tenho nenhum tipo de ranço com o sistema de publicações por editoras ou coisa do tipo. Nós somos dois, e ambos extremamente exigentes com o nosso trabalho, com o de cada um e com o do outro. Tentamos fazer o melhor que podemos sendo nossos próprios editores (grifos meus). 2

Em sua resposta, o roteirista citou dois pontos relevantes, que serão abordados neste artigo: a) O que necessariamente é o crowdfunding/financiamento coletivo e qual a sua vantagem na publicação de quadrinhos? e b) Qual é o papel do leitor de quadrinhos nessa plataforma de publicação?

O mercado independente de quadrinhos e o crowdfunding

Uma das maiores surpresas do mercado editorial de quadrinhos no Brasil nos últimos anos foi a quantidade de títulos lançados de maneira independente. Não apenas a quantidade, mas a qualidade, comprovada pelos prêmios recebidos pelos artistas.

Embora já haja categorias específicas para publicações desse tipo,3 o Troféu HQ Mix, uma das mais tradicionais premiações dos quadrinhos brasileiros, deu a Vitor Cafaggi,4 roteirista e quadrinista independente, o prêmio de “Novo Talento – roteirista” em 2012. No mesmo ano, Birds, um trabalho independente e sem nenhum balão de texto, deu a Gustavo Duarte o prêmio de “Publicação de Aventura/Terror/Ficção”.5 Achados e perdidos recebeu uma homenagem especial.

Esse número de indicações só aumenta se avaliarmos a lista de indicados ao HQ Mix 2013, divulgada em abril deste ano.6 E com uma interessante surpresa: muitos dos títulos nascidos por projetos de crowdfunding e artistas que ou optaram ou estão optando por publicar dessa forma. Mas o que é crowdfunding? De forma bem simples, o termo é usado para designar as iniciativas de financiamento colaborativas em que:

Os diversos projetos como, por exemplo, (…) a produção de um CD de uma banda ou a publicação de um livro, são hospedados em um site voltado para captação de doações coletivas em prol da efetivação do trabalho apresentado (Cocate & Pernisa Júnior, 2012, p. 135-136).

Dessa forma, o autor estabelece a quantidade necessária para possibilitar a realização do seu projeto ou negócio, espalha a sua ideia, e depois recompensa os que o apoiaram financeiramente. Essas recompensas, por sua vez, dependem do valor investido no projeto. No caso do Achados e perdidos, por exemplo, as recompensas variaram desde o nome do colaborador na página do livro, caso investisse R$10; um pacote com livro, CD, pôster, postal, bóton, camiseta, adesivo, caderno, esboços originais autografados, caso investisse R$100 e até uma música original do Bruno Ito, caso investisse mais de R$1.000.

Um estudo divulgado pela consultoria Massolution mostrou que só em 2012 esse tipo de financiamento movimentou US$2,7 bilhões no mundo. E, para 2013, a previsão era de US$5,1 bilhões (Mello Dias, 2013).

No quesito livros, o primeiro grande caso de sucesso referente a financiamento coletivo foi a plataforma britânica Unbound, criada por John Mitchinson, um dos diretores da cadeia de livrarias Waterstone (Silveira, 2012). Nela, interessados em publicar apresentam a sinopse do livro. Os leitores/internautas que apoiarem a história “compram” a ideia. Essa “compra” consiste em valores de 10 a 250 libras. Além de ser uma ótima ferramenta de feedback, já que os leitores podem opinar ou sugerir os temas para os próximos livros, todos os colaboradores têm seus nomes publicados no final de cada obra e recebem participação nos lucros, caso o mesmo seja publicado. Quando a quantia necessária não é atingida, os colaboradores/investidores são reembolsados ou recebem a opção de investir em outro projeto.

E para os quadrinhos? O teórico e quadrinista Scott McCloud afirma em seu livro Reinventando os quadrinhos que “temos de perguntar o que os quadrinhos podem fazer num ambiente digital e quais dessas opções se mostrarão valiosas a longo prazo”. (McCloud, 2005, p. 207). Para o mercado independente, ou seja, para os autores que apostam em publicar suas obras sem a presença de um editor, a solução pode estar no Comixology ou no Catarse.

Para artistas que preferem publicar apenas digitalmente, ou seja, sem um formato físico de capa, miolo e tinta, o Comixology é uma boa opção. Inicialmente, o site trabalhava apenas como plataforma de distribuição, busca e organização de títulos digitais das principais editoras norte-americanas, tendo atualizações semanais. Mas a partir de março de 2013, ficou disponível o portal ComiXology Submit, para que criadores de HQs possam submeter suas histórias gratuitamente. Após a inscrição e submissão do material, os quadrinhos são avaliados e, caso sejam aprovados, são exibidos no portal principal, onde podem ser comprados pelos leitores em versões para iPad, iPhone, Android, Kindle Fire, Windows 8 e Internet. O lucro com as vendas é dividido entre o autor e o ComiXology, mas o artista mantém integralmente os seus direitos sobre a sua criação.7

Lançado em janeiro de 2011, o Catarse, por sua vez, é a primeira plataforma brasileira de crowdfunding. Inspirado no Kickstarter8 e criado em 2008, tem o seu perfil mais voltado ao empreendedorismo cultural e artístico. Utilizando a estratégia de apresentar o projeto, buscar colaboradores e recompensá-los, como explicado anteriormente, o autor tem até sessenta dias (prazo máximo) para captar o dinheiro necessário para cobrir as despesas de produção. O valor financiado pelos apoiadores é repassado ao idealizador do projeto, e este paga ao Catarse 13% da quantia recebida, sendo que este valor inclui tanto a comissão do Catarse como a taxa do meio de pagamento, que processa as transações. Sendo assim, se o projeto não atingir o objetivo e não arrecadar a quantia estipulada, o valor pago pelo apoiador é devolvido.

Desde a sua criação até meados de 2013, o Catarse já havia levantado R$7,3 milhões, financiando assim 520 projetos. Embora as áreas de música e cinema liderem em número, a categoria mais bem-sucedida é a de quadrinhos: 75% dos projetos atingem a meta (Mello Dias, 2013) alguns ultrapassam em 100% o valor dessa meta pretendida (ver projetos em negrito na Tabela 1).

Na prática, a plataforma acaba superando em número de lançamentos nacionais (de artistas diferentes) as editoras especializadas no gênero. Por exemplo, nos anos de 2012 e 2013 a Quadrinhos na Cia., selo de quadrinhos da editora Cia. das Letras, publicou dez obras nacionais, de autores como Angeli, Luiz Gê e Lourenço Mutarelli (Tabela 2). No mesmo período, o Catarse possibilitou a produção e publicação de 60 projetos.

Título Autor(es) Período de finalização do projeto Quantidade levantada Porcentagem conquistada
O beijo adolescente 3 Rafael Coutinho 29/12/2013 R$ 41.366 105%
Mistiras – volume 1 Ary Santa Cruz Netto 02/12/2013 R$ 6.765 106%
Mês Mês Zines 30/11/2013 R$ 15.101 116%
Portais Octavio Cariello 30/11/2013 R$ 30.795 123%
Golden age – a era de ouro dos quadrinhos Marcelo e Alice Feldmann 29/11/2013 R$ 38.923 112%
Objetos inanimados João Bandeira 24/11/2013 R$ 9.815 119%
Visualizando Citações Milena Azevedo 19/11/2013 R$ 8.065 124%
Ana e o Sapo: quadrinhos de um quadro só Ana Lu Medeiros 19/11/2013 R$ 8.580 143%
A Vida com Logan para Ler no Sofá Flavio Soares 18/11/2013 R$ 16.990 113%
Fazendo o Homem Acreditar Felipe Morcelli 17/11/2013 R$ 14.880 148%
Zine XXX Vários 14/11/2013 R$ 20.649 187%
Passaporte Jão 09/11/2013 R$ 8.145 116%
Conexão Nanquim Impressa! Caique Felipe Suikin 31/10/2013 R$ 8.276 118%
Peixe Peludo 2 Rafael Moralez 29/10/2013 R$ 7.470 114%
Lost Kids: Buscando Samarkand Felipe Cagno 27/10/2013 R$ 45.464 151%
Ozman Nêmesis André Freitas 27/10/2013 R$ 6.210 103%
Ghilan Mariá Raposa Branca 27/10/2013 R$ 5.290 176%
Coletânea Tarja Preta Volume I Matias Maximiliano 26/10/2013 R$ 14.031 112%
São Paulo dos Mortos Daniel Esteves 23/10/2013 R$ 16.250 146%
Quad! Diego Sanches 13/10/2013 R$ 25.905 172%
Revolta! André Caliman 08/10/2013 R$17.540 116%
Oigo edições 02 e 03 Diego José 05/10/2013 R$ 2.915 107%
Nem morto – Apocalipse Leonardo Finocchi 03/10/2013 R$ 8.161 136%
Terapia – vol. 1 Portal Petisco 01/10/2013 R$ 40.730 135%
Por dentro do Máscara de Ferro Bernardo Aurélio 30/09/2013 R$ 2.815 140%
Maki Lobo limão 23/09/2013 R$ 15.407 154%
Perpetuum Mobile Diego Sanchez 16/09/2013 R$ 9.574 478%
Cara, eu sou legal! Marília Bruno 07/09/2013 R$ 5.465 182%
Mercenary Crusade Alex D’Ates 25/08/2013 R$ 5.605 101%
Coprólitos – Antologia Marcatti 20/08/2013 R$ 15.557 185%
Ícones dos quadrinhos Ivan Costa 20/08/2013 R$ 61.665 181%
Ciranda da Solidão – EntreQuadros Mário Oliveira 08/08/2013 R$ 9.942 111%
Votu – O Demônio da Amazônia Mario Cavalcanti 30/07/2013 R$ 5.056 115%
Guias do SEXO ilustrados Lasiva 25/07/2013 R$ 15.469 130%
Cuecas por cima das calças Rafael Koff 07/07/2013 R$26.113 522%
Apagão – vol. 1 – cidade sem lei/luz Raphael Fernades 05/07/2013 R$ 21.347 190%
Egum André Luiz Alonso de Assis 14/06/2013 R$28.157 117%
A maldição de Boa Fortuna André Só 24/05/2013 R$24.010 112%
Gnut Paulo Crumbim 20/04/2013 R$25.836 143%
O monstro Coala 05/04/2013 R$43.643 201%
Libre! Librecoletivo 29/03/2013 R$14.931 212%
Abaité: bandeirantes Richard Dantas Guarani-Kayowá 21/03/2013 R$5.499 122%
Shogum dos mortos – vol. 1 – Crepúsculo dos samurais Daniel Wernëck 16/03/2013 R$30.976 333%
Combo rangers Fabio Yabu 19/02/2013 R$67.540 169%
Freddy and Jason have fun Rafael Koff 08/02/2013 R$6.200 206%
Livro comemorativo 10 anos de tira Vida de leiturista Karlo Campos 04/02/2013 R$6.070 101%
Mascate – Motioncomic Yves Santaella Briquet 26/01/2013 R$13.265 110%
Tools challenge volume 1 Max Andrade 18/01/2013 R$6.305 126%
Samba 3 (SAMBA) 09/12/2012 R$17.655 117%
Ryotiras Omnibus Ricardo Tokumoto 27/09/2012 R$33.059 220%
Álbum de coletânea do Petisco Cadu Simões 21/09/2012 R$16.535 110%
Tirinhas do Zodíaco (2ª edição) Rafael Koff 11/09/2012 R$8.745 174%
Happy Slap! Maxx Figueiredo 31/08/2012 R$8.960 100%
Salomão Ventura – Caçador de lendas #3 Giorgio Galli Neto 30/08/2012 R$2.246 124%
Last RPG Fantasy – Livro jogo Lobo Limão 26/08/2012 R$16.852 129%
O beijo adolescente – Segunda temporada Rafael Coutinho 19/08/2012 R$36.735 114%
Revista Café Espacial nº 11 Café Espacial 13/08/2012 R$5.621 112%
Zinecórnio nº3 Mayara Pascotto 21/07/2012 R$300 142%

Tabela 1 – Produções financiadas nos anos de 2012 e 2013.
Fonte: http://catarse.me/pt/explore#quadrinhos.

Título Autor(es) Ano de publicação
Campo em branco Emilio Fraia e DW Ribatski 2013
O lixo da história Angeli 2013
V.I.S.H.N.U. Eric Acher, Ronaldo Bressane e Fábio Cobiaco 2012
Guadalupe Odyr e Angélica Freitas 2012
A máquina de Goldberg Vanessa Barbara e Fido Nesti 2012
Monstros! Gustavo Duarte 2012
Toda Rê Bordosa Angeli 2012
Diomedes – A trilogia do acidente Lourenço Mutarelli 2012
Deus, essa gostosa Rafael Campos Rocha 2012
Avenida Paulista Luiz Gê 2012

Tabela 2 – Lançamentos nacionais da Quadrinhos na Cia.
Fonte: http://www.companhiadasletras.com.br/busca.php?b_categoria=77&b_filtro=livro.

A relação de sucesso dessas publicações pelo Catarse leva a conclusão de que o modelo crowdfunding funciona melhor, sem dúvida, nos casos em que a pessoa que incentiva o faz porque gosta e se identifica com os projetos. E o seu público-alvo bem específico talvez seja a explicação para os quadrinhos serem, até agora, uma das áreas do mercado editorial que melhor teve aceitação nesse novo modelo.

Se a “preocupante” revolução digital está sendo bem-sucedida com os quadrinhos, a diferença pode estar na presença de seus fãs. No seu carinho pelo trabalho dos autores e por sua cada vez maior participação no mercado.

O papel do fã no crowdfunding

Um bom exemplo da relação dos fãs com plataformas de financiamento é o projeto brasileiro Queremos. A ideia nasceu da vontade de trazer ao Brasil a banda sueca Mike Snow em setembro de 2010. Conquistada a meta, dois meses depois, uma nova proposta foi proposta: trazer a banda escocesa Belle & Sebastian, há nove anos ausente de nosso país. Para tanto, seria necessário captar o valor de 56 mil reais.

Um site foi criado e o plano mais uma vez foi bem-sucedido ao convencer 280 pessoas a pagar R$200 por ingresso reembolsável. Com o custo do show pago, os organizadores iniciaram a venda do restante dos ingressos por R$100. Ao atingir certo número de ingressos vendidos, as 280 pessoas que financiaram o projeto tiveram retorno integral do investimento. Os shows e o projeto continuam até hoje com imenso sucesso.9

Este é apenas um exemplo de uma mudança recorrente na posição do consumidor na sociedade. A globalização modificou drasticamente o consumo e a produção de sentidos, ao mesmo tempo que, finalmente, possibilitou o fim da relação unilateral entre os produtores de conhecimento e seus receptores, que deixam de viver em uma sociedade de consumo taylorista/fordista, em que o papel do consumidor é de simples aquisição do produto, passando para a era do chamado “capitalismo cognitivo”:

No contexto do capitalismo cognitivo, o consumo não é mais destrutivo e sim produtivo, de forma que a articulação das novas tecnologias, a ‘convergência multimídia’, faz com que os usuários/consumidores transformem-se em usuários/produtores, rompendo a tradicional separação entre trabalho e meios de produção – o antigo controle sobre as tecnologias de produção e comunicação que centralizava e emissão de conteúdos em poucos grupos monopolistas – e entre mundo do trabalho e mundo da vida privada. Os novos parâmetros de produção no capitalismo cognitivo estabelecem-se justamente na interação entre produtores e usuários que formam, através do uso e apropriação das ferramentas informacionais (os softwares), redes coletivas de interação produtiva (denominadas netwares) (Gabbay, 2003, p. 3).

Na equação de sucesso dos quadrinhos independentes pelo Catarse, acrescenta-se a esse novo posicionamento o conceito de LoveMark. Em Cultura da convergência, Henry Jenkins o define como as marcas que conquistam o amor e o respeito do consumidor por meio de um novo discurso em marketing e pesquisa que “enfatiza o envolvimento emocional dos consumidores” (Jenkins, 2008, p. 333).

Leitores são fiéis a autores. Leitores de quadrinhos são fiéis a autores, ilustradores, universos e, em alguns casos, ao formato pelo qual tais histórias são transmitidas. Embora não tenha o poder de criar um best-seller, considerando que é um nicho de mercado, são um público-alvo fiel. E convidá-los a participar da construção desse universo é uma forma de fidelizá-los ainda mais.

Dessa forma, em meio à terra da Internet, lugar de Photoshops, blogs, vlogs, fotologs e youtubes, onde nascem cada vez mais homenagens e histórias alternativas por meio de fanfics (contos), fanarts (ilustrações), vídeos remixados etc., os fãs, em seu posicionamento de também produtores, acabam incentivando e difundindo a indústria. Eles conseguem assimilar as convergências midiáticas, as sucessivas atualizações e determinações tecnológicas e desenvolver esses universos ricos. São consumidores e propagadores. De acordo com Jenkins, eles são “os grandes defensores da marca (…) aqueles que sugerem melhorias e espalham novidades sobre a marca nos meios em que podem publicar. O consumidor mais valioso pode ser o mais passional” (Jenkins, 2008, p. 47).

Assim, por meio dessa cultura participativa, o fã tem a oportunidade de tomar parte mais ativamente, evoluindo do consumidor passivo para uma parte integrante do negócio e, nesta nova etapa de financiamento coletivo, de parte integrante do negócio para responsável pela produção.

Um bom e recente caso que combina a cultura da participação e o LoveMark nos quadrinhos é a série Combo Rangers. Idealizada em 1998 por Fábio Yabu, hoje mais conhecido como o criador da série Princesas do mar, a série de webcomics feitas em Flash era uma paródia dos seriados super sentai10, como Flashman, Changeman etc. Neste caso, cinco crianças eram escolhidas por um herói aposentado, Poderoso Combo, para receber poderes e defender a Terra de ameaças alienígenas.

A divertida série infantojuvenil resultou em três temporadas11 e duas versões impressas, uma pela editora JBC, em 2000, e uma pela Panini Comics, em 2004, ano em que foi aposentada pelo autor. Mesmo com as críticas e pedidos dos leitores, Yabu decidiu não dar continuidade ao universo dos Combo Rangers nos últimos dez anos e começou a se dedicar a outra série, voltada mais para o universo infantil feminino: Princesas do mar. As princesas do mundo de Salácia renderam ao autor oito livros e uma série animada exibida no canal Discovery Kids. Nesse meio-tempo, Yabu escreveu alguns livros, como Raimundo, cidadão do mundo e Apolinário, o homem-dicionário (Panda Books) e A última princesa (Galera Record). Sob o pseudônimo de Abu Fobiya, lançou ainda pela editora Nerdbooks Branca dos Mortos e os sete zumbis (posteriormente reeditada pela Editora Globo, em 2013)e a HQ Independência ou mortos.

Os meus quadrinhos são feitos para pessoas de várias idades e gostos. Aos 17 anos, eu já tinha leitores fiéis por conta dos Combo Rangers. Fui amadurecendo e comecei a fazer trabalhos diferentes. E o que acho mais interessante é que, hoje, falo com várias gerações, às vezes na mesma casa. Tenho vários leitores fãs do Combo Rangers que têm filhos fãs das Princesas do Mar (Gama, 2013).

O carinho dos fãs de seu primeiro trabalho o levou a lançar, em dezembro de 2012, uma campanha de financiamento coletivo no site Catarse para criação de dois álbuns dos Combo Rangers12 com distribuição pela editora JBC. De acordo com o autor, o momento era apropriado porque “com as redes sociais e o advento do crowdfunding, autores e fãs podem trabalhar juntos para realizar projetos que antes eram impossíveis”.

Os fãs retribuíram o apelo: em menos de duas semanas foram arrecadados os R$40 mil suficientes para tocar o projeto, que recebeu o investimento de R$67.940.

Considerações finais

O caso Combo Rangers tem um diferencial interessante: a inclusão de uma editora. Embora o custo de produção seja dos leitores por meio do financiamento coletivo, a distribuição e impressão serão feitas pela editora JBC. Esse caso entre uma plataforma interessante para publicações independentes e o trabalho tradicional de uma editora, porém, não é isolado. Em setembro de 2012, o escritor e ilustrador Loureço Mutarelli se aliou à editora independente Pop e colocaram no Catarse o projeto bem-sucedido Os sketchbooks de Lourenço Mutarelli, uma coleção de cadernos de esboços do autor. Em maio de 2013 o roteirista Raphael Fernandes se aliou à editora Draco, onde trabalha como editor de quadrinhos, para viabilizar Apagão vol. 1 — Cidade sem lei/luz, obra em quadrinhos que também já alcançou sua meta para publicação.

Embora essas propostas nasçam de editoras pequenas, é interessante notar que existam iniciativas que fogem do tradicional processo cujo fim é tão somente a livraria. Ao mesmo tempo que tornam condizente a abertura para publicações de nicho, já que optam por um canal que vai ao encontro dessa lógica, inicia-se uma compreensão de que o crowdfunding vai muito além do papel de financiador. “O que se obtém ao fim de uma campanha é visibilidade. Antes mesmo de o livro ser lançado, o público já ouviu falar (bem) dele” (Silveira, 2012).

Ainda que o futuro do status quo do mundo editorial ainda seja incerto, é benéfico que o mercado preste atenção a essas “revoluções digitais” e (por que não?) agregue parte dessa lógica à sua rotina editorial. Seja por iniciativas e flertes com o financiamento coletivo seja pelo interesse pelos artistas que se destacam em projetos nascidos desse meio. Não foi, portanto, tão surpreendente que três das equipes criativas dos novos projetos de adaptação dos personagens de Maurício de Sousa para graphic novels, anunciados durante o Festival Internacional de Quadrinhos de 2013, fossem de coletivos independentes: Eduardo Damasceno e Luís Felipe Garrocho, da webcomic Quadrinhos Rasos e do grupo Pandemônio, assinarão a história do Bidu. O casal Paulo Crumbim e Cristina Eiko, da Quadrinhos A2 e também do grupo Pandemônio, serão os responsáveis pelo Penadinho. E a Turma da Mata será repensada pelo trio Greg Tocchini, Artur Fujita e Davi Calil, do coletivo de artistas Dead Hamster.

O diferente, às vezes, surge para ser compreendido, não combatido. Lançamentos exclusivos para o digital ou projetos que dão a chance para os leitores investirem e financiarem um livro esquecido de catálogo, por exemplo, podem garantir uma nova vida para esses títulos. Serão best-sellers? Não, mas quando somados… eis a cauda longa (Anderson, 2006).13

O futuro dos livros e dos quadrinhos ainda está sendo decidido. Os autores podem negligenciar as livrarias físicas e as casas editoriais ou novas relações de negócios podem surgir, em que as grandes, médias e pequenas editoras terão que reavaliar seus valores, cada uma à sua maneira, e os papéis do editor e do autor poderão ser repensados. Pensando no melhor para o leitor, obviamente.


* Victor Almeida é pós-graduando em Literatura Infantojuvenil pela Universidade Federal Fluminense (UFF), especialista em Publishing Management pela Fundação Getulio Vargas (FGV) e graduado em Comunicação Social com habilitação em Produção Editorial pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Editor-assistente de literatura estrangeira na editora Arqueiro, do grupo Sextante.

Referências

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Notas

1 Dados retirados da página do projeto, acessível em http://catarse.me/pt/238-achados-e-perdidos.

2 Trecho retirado da entrevista concedida por Eduardo Damasceno e Luís Felipe Garrocho ao Garagem Hermética Quadrinhos. Acessível em http://gHQ.com.br/entrevista-eduardo-damasceno-e-luis-felipe-garrocho/

3 Publicação independente de autor, publicação independente de grupo e publicação independente edição única.

4 Esse destaque ao trabalho de Cafaggi resultou no convite do estúdio Maurício de Sousa para ilustrar e roteirizar uma graphic novel da Turma da Mônica com sua irmã, Lu Cafaggi. O novo trabalho, intitulado Laços, foi lançado no mês de maio de 2013. Durante o Festival Internacional de Quadrinhos de 2013, o editor do projeto, Sidney Gusman, anunciou a produção de uma continuação da obra para 2015.

5 Gustavo já havia conquistado o Troféu HQ Mix de desenhista revelação em 2010. Em 2011, recebeu o Prêmio Angelo Agostini como melhor cartunista brasileiro e outro HQ Mix como melhor caricaturista nacional. Suas obras Có! e Táxi também deram a ele prêmios na categoria “Publicação independente edição única” em 2010 e 2011, respectivamente. Em 2012, Birds também foi escolhida como melhor “Publicação independente de autor”. Gustavo participou também do projeto MSP, ilustrando e roteirizando uma graphic novel do Chico Bento. Em 2014, a editora Dark Horse Comics publicou nos Estados Unidos a coletânea Monsters and other stories, contendo as histórias Có!, Monstros! e Birds.

6 Lista acessível em http://oglobo.globo.com/blogs/gibizada/posts/2013/04/11/os-indicados-ao-HQmix-2013-493037.asp.

7 Dados retirados do site, acessível em http://www.comixology.com/submit.

8 Página do projeto, acessível em http://www.kickstarter.com/.

9 Página do projeto, acessível em http://www.queremos.com.br/.

10 Super sentai é uma franquia japonesa para televisão. A premissa básica é a de um grupo de geralmente cinco heróis que ganham poderes especiais, usam roupas de cores variadas e possuem um robô gigante para combater ameaças alienígenas ou vindas da própria Terra.

11 Combo Rangers (1998-1999), Combo Rangers Zero (1999-2000) e Combo Rangers Revolution (2000-2001).

12 Página do projeto acessível em catarse.me/pt/comborangers.

13 O termo “cauda longa” descreve a teoria do físico e escritor Chris Anderson em que produtos de baixa demanda ou com um baixo volume de vendas podem coletivamente alcançar uma fatia do mercado que rivaliza ou excede os poucos mais vendidos, se a loja ou canal de distribuição for grande o bastante. Por exemplo, uma porção significativa das vendas da Amazon é proveniente de livros obscuros que não estão disponíveis em lojas físicas.