Ano XVI 0201
dossiê
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A VOLTA DOS MORTOS-VIVOS E A COVID-19: NECROPOLÍTICA NA PANDEMIA


A política de poder sobre o corpo negro

“Ontem a Serra Leoa/ A guerra, a caça ao leão/ O sono dormido à toa/ Sob as tendas d’amplidão/ Hoje… O porão negro, fundo,/ infecto, apertado, imundo/ Tento a peste por jaguar”. Em seu poema O navio negreiro, Castro Alves (1868-70) narra o confinamento dos negros escravizados e a perda de sua antiga vida. A poética do autor abolicionista evidencia práticas segregacionistas do passado que se repetem no presente. Desta vez, não em relações de poder físico, em que há donos de escravos e povos escravizados, mas através de um poder socialmente construído, direcionado à mesma raça-cor.

Diante da Covid-19, e da quarentena que se alastrou junto dela, é preciso lembrar das favelas e periferias que já sobrevivem ao isolamento e à exclusão social, da precariedade no setor da saúde, além da morte do corpo negro por violência policial. Castro Alves, infelizmente, descreve em seu poema os navios negreiros, mas também a favela negra, suas casas apertadas e infectadas.

E tal correlação não é aleatória. De acordo com Mbembe, “a política de raça, em última análise, está relacionada com a política de morte”. Neste contexto, excluir uma parte da população mais pobre e racializada é uma decisão tão determinante para a sobrevivência dessa população quanto a escravidão em si. “Com efeito, em termos foucaultianos, racismo é acima de tudo uma tecnologia destinada a permitir o exercício do biopoder, ‘aquele velho direito soberano de morte’” (Mbembe, 2018, p. 18).

A soberania de Mbembe, essa capacidade de definir quem importa e quem não importa, quem é “descartável” e quem não é, é uma herança histórica e cultural, como explica Fanon (2008, p. 105) “Eu era ao mesmo tempo responsável pelo meu corpo, responsável pela minha raça, pelos meus ancestrais”. Em seu livro, mais especificamente no texto “A experiência vivida do negro”, Fanon aponta a pele negra como “uma mácula” que o evidencia na sociedade e automaticamente o coloca às margens. Seja com o olhar assustado do branco, seja com os fetiches que envolvem o corpo negro, seja com a ignorância do Estado diante das suas necessidades.

Essa consciência instaurada no corpo e na mente de Fanon não é aleatória, como apontado anteriormente. O indivíduo negro é colocado ao nascer em precariedade; sua vida, socialmente falando, passa a “valer menos” do que a dos corpos brancos ao seu redor. Trazendo Foucault (2018, p. 210) para a conversa, “a totalidade do indivíduo não é amputada, reprimida, alterada por nossa ordem social, mas o indivíduo é cuidadosamente fabricado, segundo uma tática das forças e dos corpos”.

Mas esse exercício de poder pretende, de alguma forma, se mostrar aleatório sobre o indivíduo. Mostrar, de alguma maneira, que a culpa por essa evidência social é dele e não do Estado que o coloca às margens. Isso fica muito claro, no texto de Fanon (2008, p. 125), quando ele diz: “Eu sou culpado. Não sei de quê, mas sinto que sou um miserável”.

A “culpa de ser negro” é o motivo da sua morte. Seja pela falta de cuidados sanitários básicos na favela; seja pela bala perdida ou pela violência social. Essa rixa socialmente estabelecida entre brancos e negros é, nesse enredo, “culpa de ser negro”. É essa culpa que o coloca como corpo vigiado e vigilante sobre a própria forma de existir. Sobre o que usa, como anda e como se porta.

Mbembe nega essa culpa, essa crença de que o sujeito é o principal autor do seu próprio significado. Até porque o corpo negro não possui autonomia suficiente para tal. O autor se preocupa com as formas de soberania cujo projeto central é a desumanização dos corpos e populações humanas. Colocando-os em uma guerra política em que torna a existência desses corpos dispensáveis e descartáveis. “Se considerarmos a política uma forma de guerra, devemos perguntar: que lugar é dado à vida, à morte e ao corpo humano (em especial o corpo ferido ou morto)? Como eles estão inscritos na ordem de poder?” (Mbembe, 2018, p. 6-7).

Nesse questionamento, podemos perceber novamente a presença de Fanon, que narra, no fim de seu texto, o encontro de seu irmão com um “estropiado da guerra do Pacífico”. O ex-combatente diz: “Aceite a sua cor como eu aceito o meu cotoco; somos dois acidentados”. Logo depois, Fanon reitera o pensamento do homem: “Eu sou dádiva, mas me recomendam a humildade dos enfermos” (Fanon, 2008, p. 126).

A necessidade dessa relação entre “culpa” e “negritude” existe, em parte, porque algumas pessoas lucram imensamente com a dominação dos outros. Bell Hooks, em Olhares negros, diz que, mesmo não existindo mais uma dicotomia senhor de escravo e escravo, ainda existe um sistema que “promove a dominação e submissão” (Hooks, 2019, p. 48).

Esse “lucro” aparece nas relações fetichizantes entre o corpo branco e o corpo negro; em espaços de trabalho, onde pessoas negras podem receber menos e em que políticas afirmativas são apontadas como “racismo reverso”;[1] no olhar marginal que sempre coloca a negritude como algo perigoso e correlacionado ao violento. Todas essas práticas não apenas põem a existência negra como marginal, mas a branquitude como central na sociedade em que está inserida. “Dentro da cultura das commodities, a etnicidade se torna um tempero, conferindo um sabor que melhora o aspecto da merda insossa que é a cultura branca dominante” (Hooks, 2019, p. 57).

Essa introdução ao tema, à primeira vista, pode parecer redundante, mas é essencial para se entender as práticas e relações com o racismo construídas no longa A noite dos mortos-vivos (1968). Elas marcam e delimitam como o corpo de Ben foi e ainda é entendido e consumido pelos espectadores. Suas interpretações, como veremos a seguir, vão do dispensável até o necessário como sacrifício para a sobrevivência da branquitude e são um paralelo claro quando colocadas lado a lado com a Covid-19 e o distanciamento social.[2]

Sobrevivendo A noite

Ben (Duane Jones), em A noite dos mortos-vivos (1968), termina uma noite apocalíptica olhando com esperança para um grupo de humanos que, assim como ele, sobreviveu a um ataque de zumbis. No entanto, é nesse momento em que o escritor e roteirista, George A. Romero, lembra o espectador de que os Estados Unidos, na época da produção e subsequente lançamento do filme, estão mergulhados em conflitos raciais. Então Ben é baleado na cabeça.

Duane Jones como Bem em A noite dos mortos-vivos, de George Romero (1968). (Domínio público)
Duane Jones como Bem em A noite dos mortos-vivos, de George Romero (1968). (Domínio público)

Para Coleman (2018, p. 189), “a morte de Ben foi chocante, mas talvez tenha sido um dos momentos mais realistas do filme, já que ele é morto pelos seus ‘inimigos naturais’, os policiais e caipiras de Pittsburgh”. Mas a morte de Ben também pode ser interpretada como uma reprimenda severa contra o personagem. Isso porque Romero apresenta ao espectador uma inversão de papéis sociais naquela pequena casa em reforma, assim como uma inversão de papéis biológicos do lado de fora, ao pôr os mortos de volta à vida. Dentro daquelas paredes, Ben está com o seu “inimigo natural”, entendido aqui como o pai de família e homem branco, Harry.

Harry possui todo e total controle sobre sua esposa e a filha doente, que logo descobrimos ter sido mordida por um dos “mortos-vivos”. Já Ben toma o controle da casa, cria planos, estratégias, e tem uma constante necessidade de liberdade que as paredes da casa lhe tiram.

Repetidamente, o espectador e os demais personagens são postos no meio do embate do homem branco e do homem negro. Ambos têm visões importantes sobre o assunto “sobreviver”, mas não conseguem ver a utilidade do outro pelo (1) desespero da morte literalmente batendo à porta e (2) pelo racismo. Harry não apenas ignora e chama o plano de Ben de “arriscado” e “idiota”, mas se recusa a ajudá-lo de qualquer forma. Ben, por outro lado, insiste, tenta conversar e, quando não vê solução, deixa que Harry “se vire com a filha e mulher dele”. “As ansiedades raciais são realçadas quando Ben faz algo que nunca havia sido feito por um personagem negro em um filme de terror: Ben derruba Harry com uma pancada, o levanta e bate nele de novo, deixando Harry ensanguentado e com hematomas” (Coleman, 2018, p. 187). Mas, antes disso, Ben mostra que a situação em que está inserido já lhe tirou de uma dinâmica social “branco x negro” comum, em que o branco domina e subalterna o negro.

Ao encontrar na casa Barbara, que foi levada até o local após ver o irmão assassinado por uma “daquelas coisas” – como Ben se refere aos mortos-vivos –, Ben toca em seus braços, fala diretamente com ela, pede sua ajuda e, em vários momentos, grita com a mulher catatônica, que passa a maior parte do filme jogada no sofá.

Ironicamente, a única pessoa que parece percebê-lo como um semelhante é Tom, o “caipira”, e em alguns momentos a namorada de Tom, Karen. Tom convence Karen a ajudar Ben a arranjar gasolina para seu carro e tentar partir para um lugar mais seguro. Devido a casualidades que nenhum dos personagens poderia prever, o plano termina na morte de Tom e Karen, na explosão do carro e no retorno de um Ben chocado para a casa.

Por um momento, Harry pensa em deixar Ben trancado para o lado de fora, mas esse pensamento apenas resulta em mais conflito. Coleman explica que, até aquele momento, 1968, era raro que algum tipo de filme mostrasse um homem negro batendo em um branco. E, pelo decorrer do enredo, era ainda mais difícil acreditar que Ben era o herói da trama e que teria alguma possibilidade de sair vivo da história.

O que acontece no fim, como já foi dito anteriormente, é que Ben sobrevive à noite, mas morre pelas mãos de seu “inimigo natural”. A derrota de Ben acontece em dois momentos distintos: (1) quando Harry, o homem branco, se nega a ajudá-lo em seus planos para sobreviver, obrigando Ben a se esconder no porão e ver a casa ser invadida por zumbis; e (2) quando as tensões raciais enfim eclodem e um desconhecido, também branco, atinge uma bala em sua cabeça.

Esse receio latente da morte pelas mãos de uma autoridade branca pode ser percebido no dia a dia da comunidade negra, mas é, em resumo, uma resposta histórica (não apenas) à diáspora africana, à escravidão e ao racismo estrutural. Achille Mbembe (2018, p. 146) narra essa falta de liberdade como uma “morte em vida”. A soberania, do branco, no caso, é “a capacidade de definir quem importa e quem não importa, quem é ‘descartável’ e quem não é”.

No filme Corra! (2018), de Jordan Peele, essa situação racial é vista na pele do personagem desde o encontro com os pais de sua namorada até os momentos finais. Mas, como Peele planejava, o longa toma um rumo muito diferente. Ao contrário da “realidade” abordada em A noite dos mortos-vivos, em Corra! Jordan busca um final “lúdico” e talvez “otimista” para uma realidade que já tirou tudo do protagonista, Chris Washington. Que já tirou tudo do público negro experienciando o longa. Chris vive mais um dia para voltar para casa.

Sob a mira da arma, Ben, Chris e tantos outros corpos negros parecem possuir o status de “mortos-vivos”:

propus a noção de necropolítica e necropoder para explicar as várias maneiras pelas quais, em nosso mundo contemporâneo, as armas de fogo são dispostas com o objetivo de provocar a destruição máxima de pessoas e criar “mundos de morte”, formas únicas e novas de existência social, nas quais vastas populações são submetidas a condições de vida que lhes conferem o estatuto de “mortos-vivos” (Mbembe, 2018, p. 71).

É curioso pensar que a sobrevivência e a morte de Ben se dão porque ele é, em parte, semelhante aos seus novos inimigos, os zumbis. Nesse novo “mundo de morte” elaborado em A noite…, Ben cresceu cercado pelo status de “morto-vivo” ao ser minado de sua liberdade por ser um homem negro, crescido nos anos 1960, em uma década em que o movimento negro ainda tentava ganhar espaço revolucionário.

Característica que também evidencia um subtexto de conflito racial entre brancos e negros na relação de vivos e mortos em A noite dos mortos-vivos. O medo de uma revolução negra, que faria o branco “pagar” pelos anos de escravidão, estava presente. Políticas segregacionistas, como pintar o corpo negro como marginal, entre outras práticas sociais, eram uma prova disso.

Quatorze anos antes, o livro Eu sou a lenda colocaria um protagonista homem, branco e culto diante da criação de uma sociedade em que ele se torna o “anormal”. “Naquele momento, pensou: eu sou o anormal aqui. Normalidade era um conceito de maioria, um padrão de muitos e não o padrão de apenas um homem” (Matherson, 2016, p. 170). No livro, seguimos a solidão angustiante de Robert Neville em um mundo assolado por um vírus “vampiro” que transforma alguns seres humanos em zumbis e outros em uma nova forma de vida inteligente, que promete recriar a sociedade humana do zero.

Patterson lê Eu sou a lenda como uma tentativa insegura de superar angústias raciais, na qual os vampiros seriam uma representação pouco disfarçada dos afro-americanos. Como ela escreve, o romance “contém em suas entrelinhas um significado racial pungente que torna ‘diferenças raciais e vampirismo sinônimos’” (Clasen, 2015, p. 181).

“Vampiros” aqui são uma metáfora para “o outro, a mãe, o subalterno, o limítrofe, a pulsão de morte, o falo, a vagina, o capitalismo, a colonização, a sexualidade feminina, a sexualidade amorfa” (Clasen, 2015, p. 181). Assim como, de certa forma, também o “morto-vivo” se torna uma metáfora para o “outro”. Ben se afasta do conflito racial, cria novas relações de poder com os brancos com quem divide o espaço, mas também com os seres semelhantes a ele de forma metafórica. Isso porque, como diria Mbembe (2018, p. 29), Ben viveu “uma forma de morte-em-vida”.  A cor de sua pele marca como ele é “descartável” para a sociedade na qual está inserido. Mas, por outro lado, também marca a capacidade física e psicológica de sobreviver a uma catástrofe inimaginável, mas com um final que confronta uma realidade injusta.

Esse status de “morto-vivo” fica ainda mais aparente na cena dos créditos. Através de fotos granuladas, vemos corpos serem carregados até uma pira e serem queimados em uma fogueira. O corpo de Ben está entre eles. Ele é levantado por um gancho de carne e jogado para junto de braços e pernas de zumbis.

A cena traz tantas memórias e conexões a brutalidade contra afro-americanos nos anos 60. Como a ocorrida contra Mack Charles Parker, acusado de estuprar uma mulher branca e, consequentemente, assassinado e linchado por um grupo de homens brancos (Powell, 2009, p. 28; tradução minha).

Dezoito anos depois da estreia de A noite…, Barbara diria no remake do filme (1990): “Eles somos nós e nós somos eles”, ao se deparar com uma cena semelhante. Após ver os “caipiras”, como são descritos anteriormente no filme, se divertirem às custas do corpo de um zumbi, Barbara olha chocada para o que a sociedade parece ter se tornado. Mas, no trabalho original de Romero, percebe-se que o diretor estava tentando mostrar uma cena que poderia ser encontrada na realidade. Podemos ver isso na própria escalação dos “caipiras”, que eram homens, policiais, pessoas da vida cotidiana de Pittsburgh:

o desgosto que o público é levado a sentir em relação aos personagens é aumentado e se transforma em desprezo real e ódio quando fica entendido que se trata de pessoas reais dos fundões de Pittsburgh. Além disso, em entrevistas, embora Romero seja cuidadoso para não alienar aqueles que tanto o ajudaram ao se voluntariar para o filme, ele admite não “ter feito muita coisa” para dirigir a atuação dessas pessoas, já que a “fantasia metafórica confronta uma realidade mal filtrada” (Coleman, 2018, p. 188).

Pode-se traçar um paralelo muito claro sobre a forma como o corpo de Ben é tratado após a sua morte e o poder da execução pública descrito por Foucault (2018, p. 52): “Um corpo liquidado, reduzido à poeira e jogado ao vento, um corpo destruído parte por parte pelo poder infinito do soberano, constitui o limite não só ideal, mas real do castigo”. Ben, mesmo sem Romero ter consciência disso, é castigado por mudar as relações de poder naquele pequeno espaço, assim como os zumbis são castigados por modificarem a ordem natural e biológica das coisas e, por sua vez, também podem ser lidos como um castigo ou “pesadelo” criado pelo e para o homem branco dessa modernidade. O medo de uma revolta.

Esse “mundo de soberania” (Mbembe, 2018, p. 15), onde se decide quem deve viver ou morrer, é revisitado por Romero em seus três filmes seguintes – Despertar dos mortos (1978), Dia dos mortos (1985) e Terra dos mortos (2005) – e todos, em algum grau, são construídos ou despedaçados a partir de um confronto racial ou social.

Em Despertar dos mortos, por exemplo,

Grupos de oficiais da SWAT, predominantemente brancos (uma versão urbana dos “caipiras” mostrado em Noite), atravessam cortiços, pouco se importando em distinguir zumbis dos residentes humanos negros e não brancos dos prédios: “Acabe com todos os porto-riquenhos e os crioulos de uma vez!”. Uma violenta limpeza racial/étnica e de zumbis começa quando os residentes se recusam a sair de sua casa conforme ordenado (Coleman, 2018, p. 193).

Quando os grupos de sobrevivência já estão formados, em algum momento, as relações raciais parecem interferir nas relações sociais. Em Dia dos mortos, Sarah é constantemente “humilhada” pelos militares com quem divide espaço, sua opinião sendo posta de lado por ser mulher e objeto de desejo dos homens. Assim como o personagem negro, John, que prefere viver “isolado” para não precisar conviver e aturar as atitudes machistas e racistas dos militares.

Em seus filmes, Romero constantemente cria esse novo grupo – composto majoritariamente por homens brancos – de “caipiras” apresentados em A noite. Decerto, eles são uma lembrança ácida de que, mesmo com uma inversão social completa, a branquitude ainda é utilizada como uma forma de poder social.

“O ponto principal em relação a Ben [A volta dos mortos-vivos], Peter [Despertar dos mortos] e Jon [Dia dos mortos] é que todos eles possuem controle sobre seus corpos, conseguem usá-los para sobreviver, sabem como fazer coisas com eles” (Dyer, apud Coleman, 2018, p. 198). Essa presença corporal vai além da construção dos personagens e de encontro à negritude deles, suas dores e formas de existir em uma sociedade que já os oprime. E é essa mesma presença e segurança de si que faz com que Harry, os “caipiras” e os militares vejam neles um perigo.

Ele [Romero] descreve diversos níveis de racismo, de um grupo que cuida dos seus objetivos e é cético em relação à presença de um homem negro em sua casa e sua família; grupo tão definido que não vê a diferença entre matar um zumbi ou um homem negro inocente (Powell, 2009, p. 29; tradução minha).

Nesse contexto de terror, para um corpo negro, o medo não estaciona na possibilidade de os mortos voltarem à vida, mas no que pode surgir na luz da manhã, no farol do carro, no som da sirene. “A noite é escura (negra), mas a luz do dia traz outro mal na forma da multidão (branca)” (Coleman, 2018, p. 189).

A “morte em vida” do corpo negro

Com essa análise, já é possível perceber que a morte de Ben em A noite dos mortos-vivos não é acidental. Seu corpo ser jogado junto aos dos “zumbis” é equiparar a sua luta, resistência e existência à de um morto-vivo. Pois sua existência social também era vista e entendida de tal maneira. Como um fardo que, hora ou outra, teria que terminar essa “morte em vida”, fosse pela mão do “branco salvador”, surgido na manhã; fosse por sua existência ser negligenciada por entidades sociais e políticas; fosse de forma natural.

Esse processo de desumanização pode ser percebido historicamente, sofrido não apenas pelo corpo negro, mas por qualquer um que a estrutura política entenda como um “inimigo”, um “outro” social e temporalmente estabelecido. Como visto na Revolução Francesa e na Segunda Guerra Mundial:

Segundo Enzo Traverso, as câmaras de gás e os fornos foram o ponto culminante de um longo processo de desumanização e de industrialização da morte, sendo uma de suas características originais a de articular a racionalidade instrumental e a racionalidade produtiva e administrativa do mundo ocidental moderno (a fábrica, a burocracia, a prisão, o exército). Mecanizada, a execução em série transformou-se em um procedimento puramente técnico, impessoal, silencioso e rápido. Esse processo foi, em parte, facilitado pelos estereótipos racistas e pelo florescimento de um racismo de classe que, ao traduzir os conflitos sociais do mundo industrial em termos racistas, acabou comparando as classes trabalhadoras e “o povo apátrida” do mundo industrial aos “selvagens do mundo colonial” (Mbembe, 2018, p. 21).

Esse embate entre Sociedade e Estado parece ser o que produz a noção de um “corpo social periférico” passível de morte. E o que parece manter essa noção viva, diferente de outras construções do “outro”, é uma herança da escravidão, “que pode ser considerada uma das primeiras manifestações da experimentação biopolítica” (Mbembe, 2018, p. 27).

E, quando passamos a falar sobre igualdade, liberdade, propriedade e comunidade em relação ao Estado moderno, para Partha Chatterjee (2004), estamos falando da história política do capital. Essa relação e essa produção de indivíduos periféricos são moldadas a partir de uma visão de classe social, raça, gênero e sexual, em algumas instâncias.

Uma evidência dessa relação de poder é o resultado da pesquisa que coloca o Brasil como “o país que mais mata transexuais no mundo” (Germano, 2016), mas também o que mais procura pornografia transexual no Redtube. Em um contexto social, uma grande parte desses corpos presentes na pornografia e nessas listas de óbito é preta. Tanto por não terem estrutura econômica e se colocarem nas ruas para ganhar dinheiro, quanto por serem duplamente marginalizados, como pessoas negras e LGBT+.

Essa relação de poder sobre esse corpo “afeminado” e preto evidência o “mundo da soberania”, descrito por Bataille. Um mundo

no qual o limite da morte foi abandonado. A morte está presente nele, sua presença define esse mundo de violência, mas, enquanto a morte está presente, está sempre lá apenas para ser negada, nunca para nada além disso. O soberano […] é ele quem é, como se a morte não fosse… Não respeita os limites de identidade mais do que respeita os da morte, ou, ainda, esses limites são os mesmos; ele é a transgressão de todos esses limites (Bataille, apud Mbembe, 2018, p. 15).

Nele, esse corpo marginalizado é consumido pela mesma população que o mata. O corpo travesti e preto tem sua identidade consumida pelo e para o prazer do “soberano”, aqui entendido como o branco, mas, fora da tela do computador, dos vídeos pornôs, sua existência é negada, desrespeitada e transgredida.

E tais práticas vão se instaurando socialmente de diversas formas, mas parecem sempre expor esses dois lados da moeda, “soberano” e “submisso”. Lenin Pires também coloca tais práticas em pauta ao estudar a forma como o Estado entende e interage com camelôs e vendedores ambulantes:

Estamos lidando com uma forma sofisticada de exercício de poder, onde não estabelecer um padrão é, por excelência, o padrão que permite, vez por outra, o recrudescimento de formas violentas de lidar com cidadãos que, a priori, são precários em sua própria existência (Pires, 2017, p. 310).

Essa existência a priori do próprio indivíduo pode ser entendida nas práticas que o Estado e os indivíduos soberanos mantêm sobre esses cidadãos “precarizados”. Surgem nos pormenores que vão além do Direito teórico e escrito e transparecem nas palavras, entonações e tratamento desses corpos. Na violência policial, por exemplo.

A produção de violência descabida contra o corpo negro, seja na ficção ou realidade, é uma forma de manter esse sistema presente, mesmo tanto tempo após a Diáspora Africana:

Da escravidão em diante, os supremacistas brancos reconheceram que controlar as imagens é central para a manutenção de qualquer sistema de dominação racial. No ensaio “Identidade cultural e diáspora”, Stuart Hall enfatiza que podemos entender bem o caráter traumático da experiência colonial ao reconhecer a conexão entre dominação e representação (Hooks, 2019, p. 33).

Mesmo que, no enredo de A noite dos mortos-vivos, Ben tenha sido “confundido com um zumbi”, o final trágico do herói – que nas palavras de Jordan Peele (2017) “é um homem que vive em constante medo por ser negro, então o desafio de sobreviver a ‘noite’ é um para o qual ele está preparado” (Wilkinson, 2018; tradução minha) – tem um contexto racial que perpassa a década de 1960 e consegue ser posto em paralelo com o corpo negro e a letalidade da Covid-19 em 2020. Em específico, um caso que despertou a revolta do movimento negro durante a pandemia, o assassinato de George Floyd.

Quando George Floyd, um homem negro de Minneapolis, Estados Unidos, foi preso por dois policiais após uma resposta a um chamado dizendo que um homem tentava usar cartões falsos em uma loja de conveniência, o maior risco para ele parecia ser a pandemia, que já se seguia por mais de um mês.

Mas o que aconteceu foi que Floyd foi algemado e posto no chão, com o joelho de um dos policiais, Derek Chauvin, um homem branco, pressionando seu pescoço. A certa altura do vídeo feito por uma testemunha, George pede para que “não o mate” e diz: “Não consigo respirar”. A frase que marcou os subsequentes protestos foi uma das últimas ditas por George.

Durante os três últimos minutos, de um vídeo de dez, a vítima, George, ficou imóvel no chão, mas os policiais não fizeram nenhuma tentativa de revivê-lo; pelo contrário, Chauvin manteve o joelho no pescoço de Floyd. A injustiça no caso de Floyd é gritante e, ao ser posto em paralelo com Ben, não é difícil perceber que, para o corpo negro, existem perigos ainda maiores que um vírus. No meio de uma quarentena, o mais “comum” no interior dos Estados Unidos parece ser a morte de um negro sob a mão de um policial branco.

Esse reflexo da violência contra o corpo negro em meio à pandemia não se concentra apenas nos Estados Unidos. Segundo dados da gestão João Doria (PSDB), governador de São Paulo, publicados no Diário Oficial, o número de “mortes decorrentes de intervenção policial” envolvendo a Polícia Militar paulista subiu 54,6% em abril de 2020, em comparação com os meses anteriores deste mesmo ano. Nesse período, a quarentena contra o coronavírus já estava em vigor no Estado.

No mesmo período, em março e abril, 290 pessoas morreram no Rio de Janeiro em operações policiais, número de vítimas que equivale a um terço dos mortos pela política norte-americana em todo o ano de 2019 (Gortázar, 2020). O alto número de mortes traz um questionamento à tona: o que é mortal no corpo negro diante de um vírus letal?

Na resposta a esta pergunta, nomes como João Pedro, Igor, George, Breonna, entre outros, formam uma lista de vítimas que contam uma história parecida.

Igor Rocha Ramos, por exemplo, era negro, tinha 16 anos e vivia no Jardim São Savério, periferia da zona sul de São Paulo. Às 13h15 de 2 de abril de 2020, ele furou o isolamento social para comprar pão de cachorro-quente e um maço de cigarro para a mãe. Cerca de vinte minutos e um tiro na nuca depois, o jovem entrou para o contingente de pessoas mortas durante ações da Polícia Militar de São Paulo.

Já João Pedro Matos Pinto, de 14 anos, foi morto com um tiro na barriga após uma operação conjunta da Política Federal e da Política Civil no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, no Rio de Janeiro, no dia 18 de maio. Sequestrado por um helicóptero do Corpo de Bombeiros, o jovem desapareceu por horas e foi encontrado apenas na manhã do dia seguinte pela família no Instituto Médico-Legal de Tribobó, na mesma cidade.

Tais mortes deram início a uma onda de protestos que se espalhou pelo mundo. Nas redes sociais, o movimento foi impulsionado pela hashtag #VidasNegrasImportam. Bandeiras antirracistas e de combate à violência policial estiveram presentes em atos sociais e políticos. Tudo isso, novamente, em meio a uma pandemia. Em São Paulo, as manifestações terminaram com a PM usando balas de borracha e bombas de gás lacrimogêneo para a dispersão – ação posteriormente aprovada pelo governador João Doria para separar “vândalos de manifestantes”.

Toda a descrição desse panorama político e social de enfrentamento diante de uma injustiça serve, principalmente, para fazer o paralelo entre o Estado e o “Outro”. Esses parâmetros foram aqui estabelecidos historicamente ao colocar o corpo negro em um espaço culturalmente “perigoso” e foram reforçados durante a pandemia, a ponto de os negros – mesmo com a recomendação de um isolamento social pelas autoridades e embora os crimes em geral tenham diminuído – ainda serem vítimas de um racismo estrutural e subsequente morte.

Nas palavras de Ben, em A noite dos mortos-vivos: “Eles irão nos pegar, não importa onde estejamos”. O que Ben descreve é o medo de uma minoria perseguida, um medo que acomete até mesmo o autor deste artigo em meio a um distanciamento social.

Parece que, tanto na tela do cinema quanto na realidade, em um estado de calamidade, algumas “prioridades sociais” não se adaptam à situação. Pelo contrário, a presença delas parece continuar forte no imaginário coletivo, ou até mesmo se intensifica. No mundo de A noite…, por exemplo, a manhã trouxe a normalidade da morte de Ben, mas também a salvação da sociedade moderna. Os homens brancos armados até os dentes são, em algum aspecto, os mantenedores da ordem social já estabelecida. Na concepção deles, os mortos irão continuar mortos e os negros sem poder garantir a própria vida.

Considerações finais

O intuito deste breve ensaio é colocar em paralelo o longa-metragem de George A. Romero e a presença política e social do corpo negro diante da Covid-19. O motivo de produzir uma análise como esta, da ficção para a realidade, é encontrar semelhanças com conflitos sociais da década de 1960, mostrar que o corpo negro está em uma posição de risco em meio à quarentena e que ainda é necessário debater as práticas segregacionistas que levam à morte desses corpos.

O movimento Black Lives Matter e todos os seus semelhantes são práticas imprescindíveis para demonstrar que não é apenas “uma morte”, “um caso”, “um ocorrido”. Pelo contrário, são atitudes racistas que permeiam a vida de corpos negros, seja no Brasil, seja nos Estados Unidos. Este artigo pretende o mesmo: apontar que não é apenas um marcador geográfico que separa situações tão incômodas, mas também marcadores temporais e até ficcionais.

Trazer Ben para o debate é mostrar que a luta contra o genocídio do corpo negro não é recente. A partir dessas interpretações e eventos, é importante questionar quais são as “prioridades sociais” diante de uma calamidade global como tem sido a Covid-19. Muito menos que resultados, esta análise pretende questionar, documentar e exercitar teorias em busca de descolonizar o pensamento e produzir, por fim, práticas antirracistas. Ou melhor, questionamentos antirracistas.


* Junno Sena, 24, é escritor, ilustrador, jornalista e mestrando em antropologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Teve textos publicados na revista Cult e no portal Geledés.

 

Referências

ALVES, Castro. O Navio Negreiro. Bahia: EX! Editora, 2016.

CHATTERJEE, Partha. The Politics of the Governed: Reflections on popular politics in most of the world. Columbia University Press, 2004.

CLASEN, Mathias. Apocalipse vampiro: uma crítica biocultural de Eu sou a lenda. In: MATHESON, Richard. Eu sou a lenda. São Paulo: Aleph, 2015.

COLEMAN, Robin R. Means. Horror Noire. São Paulo: DarkSide, 2018.

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Referências cinematográficas

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Notas

[1] Vide o caso do programa de trainee só para negros da Magazine Luiza em 2020 e sua repercussão, interpretado por alguns como “racismo reverso” e “excludente”.

[2] Medidas adotadas para limitar o convívio social com o objetivo de reduzir a propagação de determinadas doenças, no caso, a COVID-19.