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Abrindo a roda: conhecimentos que gingam

Rosângela Costa Araújo*

Um corpo refletido, desbanalizado, aceito, amado. Um corpo que sutura temporalidades recursivas, ancestrais… que olha, escuta, percebe, contempla e a partir disto luta, em si, pelo momento seguinte…pelo amanhã. Um corpo angoleiro!
Um saber de alegre erudição, da escuta, da espera, da construção do desejo, da procura. Um saber saber-se no grupo, no mundo, pertencendo a redes de solidariedades, de conflitos, de transformações. Um saber pela participação, vivenciado. Um saber argumentado na holonomia das individuações, do mistério, da magia. Um saber angoleiro!
Um(a) mestre(a): o(a) mágico(a). O(a) catalisador(a). Um caminho de resignificação mitológica. Organizador do ritual. Elo palpável na cadeia de pertencimento. Um(a) formador(a) de discípulos(as), um(a) discípulo(a). Um(a) educador(a) angoleiro(a)!
O jogo. O mundo. O(a) companheiro(a). O(a) adversário(a). A roda.
Um círculo angoleiro! (Araújo, 1999).

Apresentar os múltiplos sentidos e o alcance da Capoeira Angola é um exercício de articulação dos elementos que a constituem: ancestralidade, corporeidade, processo de aprendizagem, o jogo, a arte, a roda e o mundo. Para satisfazer esse desafio, cabe retratar um campo de conhecimento, detentor de um sistema formativo peculiar e também educacional conhecido por capoeira.

Do lado de cá da capoeira, o(a) educador(a) é reconhecido como mestre(a); sendo que o grupo a que ele pertence — enquanto um espaço de trocas permanentes, dinâmico e maleável — também deve ser percebido enquanto tal. Do lado de cá, o(a) educando(a) é reconhecido enquanto discípulo(a) e, na relação com o(a) mestre(a) e seu grupo, simbioticamente constituem-se capoeiristas. Esse relacionamento, que se inicia com a vontade de aprender seguida pela identificação do(a) mestre(a) com quem se quer aprender, envolve sedução, entrega, confiança, sentimento de pertença e lealdade.

Os(as) que se permitem a essa iniciação, afirmam estar em busca da “filosofia de vida”. E, neste estágio, embora não compreendam todos os elementos que compõem a capoeira, já a reconhecem através da comunidade (grupo de capoeira) escolhida para o seu (des)envolvimento. Para além da filosofia da capoeira, a escolha do(a) mestre(a) e do grupo está atrelada tanto aos rigores disciplinares inerentes a sua prática, quanto aos aspectos relativos ao posicionamento social abrangente, seja na esfera individual, seja na coletiva.

Tendo em foco a relação mestre(a)-discípulo(a), pode-se dizer que nela são encontradas grandes e importantes proposições no campo da educação. Nesse sentido, sai da roda o conhecimento seriado e modular, em face de um processo que prima pelo conhecimento através do autoconhecimento. Compartilhando do pensamento junguiano de que “compreender é compreender-se diante do texto”, a capoeira estabelece e revela relações baseadas na construção e gestão coletiva do conhecimento e na ruptura com conceitos de temporalidade como requisito para sua compreensão.

Sobre essa questão, podemos afirmar que, por se tratar de um espaço de construções coletivas, o processo de aprendizagem de capoeira é permeado por distintas marcações do tempo, muito por conta do aspecto corporal que a compõe. Nele, tem-se consciência de que a relação de troca e de crescimento estabelecida é para a vida toda, não existindo etapa ou graduação que defina o seu término. Assim, em um grupo de capoeira todos aprendem, objetiva e subjetivamente, com um(a) mestre(a) que também ensina aprendendo: “cada qual é cada qual”, diz Vicente Ferreira Pastinha, o Mestre Pastinha (1988-1981).

É com base nesses (e em outros) fundamentos que a capoeira e os(as) capoeiristas definem e apresentam as suas formas de educar. Na roda, são elementares os vários caminhos, além dos limites da capoeira, sejam coletivos ou individuais: o domínio da técnica, que é baseada em uma complexa movimentação corporal, sustentada pelo respeito e pela relação com o outro no jogo; o estudo dos instrumentos essenciais à prática, sua fabricação, uso musical e manutenção; os significados e sentidos histórico-filosóficos da capoeira, que exprimem uma (sua) cosmovisão e sua forma de interagir com outros mundos.

Os estudos sobre capoeira vêm ganhando cada vez mais espaços nas pesquisas independentes e acadêmicas, em diversos países. Essa ampliação acompanha o surgimento e o desenvolvimento de uma “comunidade internacional da capoeira”, que também se manifesta através do que se conceitua como uma economia da capoeiragem, através da qual são ofertados e consumidos livros, revistas, filmes, discos, shows, instrumentos, moda-vestuário, calçados, dietas, adornos, tatuagens e, sobretudo, eventos. A economia da capoeira possibilita e colabora com o trânsito da capoeira no cenário internacional, agora em dimensões transcontinentais.

Apesar da ausência de fonte estatística atualizada, precisa e confiável, estima-se que, no Brasil, existam cerca de oito milhões de praticantes (ou iniciados), estando a capoeira em mais de 160 países, em todos os continentes[1]. A internet é uma ferramenta que demonstra e propagandeia a internacionalização da capoeira através dos milhares de sites, blogues, ou das informações compartilhadas pelas redes sociais. Por meio dela, pesquisas (sejam científicas ou não) tornam-se possíveis, onde os(as) interessados(as) podem encontrar informações sobre os grupos, seus feitos, “estilos” de capoeira[2], artigos, biografias, bibliografias, discografias, entre outras.

Outra importante questão em torno da capoeira diz respeito ao seu (aparente) enquadramento enquanto um novo campo de atuação profissional, no qual formação e trabalho aparecem de modo combinado. Num estudo anterior, questionamos como os estilos de capoeira se constituem enquanto campos de trabalho voltados para um novo tipo de trabalhador(a), nos quais se encontram interligadas, para fins de qualificação profissional, a questão racial, de gênero, o território e a formação escolar, como também questões relacionadas a cada um dos estilos de capoeira (Araújo, 1994). Para melhor dimensionar esse ponto, cabe recordar que a capoeira somente deixou de ser considerada uma contravenção a partir do Código Penal de 1940.

Numa perspectiva fenomenológica — a capoeira, ao ser informada pelos sentidos, sofre transformações nas experiências de consciência — a percepção acerca dos seus diversos sentidos (para além dos significados de cada movimento, de cada toque, de cada canto) e seu alcance vão sendo construídos ao longo do processo de amadurecimento da pessoa como capoeirista. Com isso, desvela-se a possibilidade de se compreender a capoeira enquanto um texto coletivo e público, o qual é escrito e reescrito cotidianamente. Por isso, reconhece-se o sentido da ginga muito além da sua compreensão de um movimento básico da capoeira. Ela é percebida como atitude e escolha diante das problematizações em torno das quais, muitas vezes, se evidencia a própria construção da identidade de ser angoleiro(a), tanto na sua forma narrativa (aceitação, acomodação), quanto no seu conteúdo do mito-poético, corpóreo, ritualizado frente à perspectiva de validação e atualização do mito fundante: a linhagem.

Reconheçamo-la também em sua função educativa, percebendo a capoeira como uma pedagogia articulada às identidades no contexto societário hegemônico. Nesse sentido, é possível identificar a existência de sujeitos que: a) ao se dizerem/perceberem educadores, organizam-se em torno de outros modelos “societais” (identitários) não hegemônicos; b) adotam, enquanto dimensões pedagógicas, a ancestralidade, a organização coletiva e a solidariedade, de modo a instituir e fortalecer o sentimento de pertença ao grupo com o qual se quer crescer; c) apontam para a inoperância do modelo oficial de ensino (redes públicas e particulares), que estigmatiza, silencia, distorce e se mantém apático a práticas excludentes e discriminatórias, fortalecendo, entre outros, o racismo, o sexismo e a homofobia; d) se relacionam com a ancestralidade, de forma a estabelecerem cadeias invisíveis de “presentificação” do passado e do futuro, geridas no trato da espiritualidade ou da espiritualização do cotidiano, em suas múltiplas formas; e) desenvolvem ações formativas baseadas nos debates sobre as representações, não apenas como prática cultural, mas como prática política, possibilitando uma maior visibilidade aos direitos específicos, bem como lutando para o seu cumprimento.

Os(as) mestres(as) de capoeira integram uma categoria de educadores culturais forjada no contexto das relações raciais e sociais mais amplas, que se estabelece sob as bases da (in)formalidade e permeia novas relações de produção, a qual serve para defini-los enquanto mestres(as).

Através de uma razão marginal, projetada nas interfaces das relações de poder, aberta e não contraditória (não isto ou aquilo, mas isto e aquilo), a capoeira institui uma lógica polivalente (ou polilógica) potencializada e inclusiva (Galeffi, 2011), rompendo com a razão fechada, contraditória à própria escolha do gingar.

Sob o paradigma do permanente movimento, a contradição não está na realidade, mas no pensamento sobre ela, indicando, muitas vezes, conflito entre duas proposições que são igualmente demonstráveis. Uma delas diz respeito à realidade, que possui elementos antagônicos e não contraditórios. De causalidade probabilística e não determinista/mecanicista, a própria ginga figura como representação dessa polilogicidade, incorporada através do acolhimento do corpo do outro diante do qual se ginga. Daí faz-se presente a recursividade do espelho que, sempre infiel, vai tecendo os infinitos trânsitos de aceitação e rejeição sobre as imagens projetadas e apreendidas.

Na roda, os(as) angoleiros(as)[3] ainda vivenciam sentimentos também antagônicos na sua relação com o outro — adversário(a) ou companheiro(a)? — e com o próprio jogo: luta-se com ou contra alguém? As respostas aqui produzidas também podem sinalizar para a maneira como pensam e lidam com o surgimento de um outro estilo de capoeira mais recente, conhecida como Capoeira Regional[4].

Para os(as) angoleiros(as), os critérios adotados pela Capoeira Regional produziram o deslocamento das bases de resistência cultural africana para a cultura hegemônica, assegurando à capoeira o status de esporte, como um tipo de luta marcial. Esta concepção está assentada no estabelecimento de um projeto de nacionalização (folclorização) e de embranquecimento cultural, cujas ações políticas mantiveram algumas características do modelo de racismo existente no Brasil, entre elas a cooptação e descaracterização da própria capoeira.

O mito fundante de cada estilo, seja na Capoeira Angola ou na Capoeira Regional, referencia as representações de si (sujeito/grupo), alimentando, no imaginário compartilhado da pertença coletiva, o entendimento sobre essas próprias representações, a despeito de estarem localizadas no domínio da fantasia ou do desenvolvimento intelectual, uma vez que entre um e outro se fixam espaços de recursividades. Isso torna possível, inclusive, a evidência do duelo de valores (colaboração versus competição, coletividade versus individualidade etc.), interno e externo aos estilos e mesmo nas disputas entre estes. A definição estética do próprio jogo evidencia a escolha política sobre tais valores. Esse imaginário, conector dessas representações não lineares da capoeira, é também o espaço de codificação dos dinamismos sociais, em que se pensam relacionados tanto a vida social quanto as manifestações culturais e suas relações de poder. Na Capoeira Angola, a figura e os ensinamentos do Mestre Pastinha têm peso relevante nas escolhas dos signos (e suas ritualizações) entre aqueles que se identificam enquanto seus(suas) seguidores(as), independentemente de o terem conhecido.

Isso mostra como o imaginário subjaz ao sentir, ao agir e ao ser, conduzindo a perenidade mitológica enquanto matriz do sistema filosófico da capoeira. Ao conceber o imaginário como um conjunto de imagens inter-relacionadas (constelações), que definem o “capital pensado”, fica perceptível a sua função organizadora no/do cotidiano, tido como espaço privilegiado de compreensão da sociedade abrangente (Durand, 1989).

Na formação da Capoeira Angola, a pequena roda é definida como local de treino e prática de elementos diversos, que se fazem corporais numa leitura de simultâneos encantamento/desencantamento e rivalidade/aceitação. Essas questões são direcionadas para a grande roda, como sendo o lugar de trânsito desses conhecimentos, suturando, igualmente, a aceitação e a rejeição acerca da realidade vivida. É na pequena roda (grupo) que são aprendidos os elementos da capoeira e na grande roda (sociedade mais ampla) que esses conhecimentos os(as) constituem enquanto capoeiristas.

Como a atuação na pequena roda e na grande roda é orientada pela cosmovisão africana, ou seja, pelo fundamento do dendê, o compartilhamento do espaço de criação coletiva rompe com a lógica da competitividade produtivista, em benefício da celebração da vadiagem. Nesse sentido, a roda não deve ser compreendida tão somente como um espaço de decisões, mas também de riscos, testes e improvisos. E o jogo de capoeira também deve ser compreendido como um jogo infinito, que não acaba. Por se tratar de um “diálogo de corpos”, muitas vezes uma “resposta” a uma “pergunta” corpórea realizada pode levar anos para se concretizar.

Ousar um projeto político que integre qualidade de vida: este é o fio condutor das escolhas das pessoas que optaram pela Capoeira Angola e suas práticas de resistência e filosofia ladina[5].

Muitas das linguagens com as quais se tece o cotidiano da capoeira são marcadas por um alto grau de organicidade e hierarquização, os quais caracterizam seus ensinamentos. Na busca das conexões entre o figurado e o real, percebe-se uma obscuridade que ainda envolve o próprio tema, na medida em que se aproxima do caráter iniciático dessa tradição, sobretudo na relação que se estabelece entre mestre(a) e discípulo(a).

Algumas categorias de análise do cotidiano propostas por Maffesoli (1985), como “grandes formas” que privilegiam a experiência coletiva (sociabilidade), explicam alguns elementos da capoeira através dos quais se manifestam situações habituais que asseguram identidades de base e resistência. Na capoeira, a aceitação da vida conforma-se através da repetição de uma temporalidade circular, que relativiza os acontecimentos e fomenta a permanência no jogo, como busca constante pelo crescimento. Com isso, aprende-se a não fechar o jogo, de modo a não esgotar as possibilidades de “fala” com quem se joga. A espera por um novo momento, com outros capoeiristas e em uma roda diferente pode significar a continuidade do aprendizado em questão.

Pelo viés da duplicidade, consagram-se as máscaras e se posicionam os personagens do jogo. Eles envolvem os elementos importantes no processo da ritualização, da descontinuidade e da aceitação do presente na capoeira, através da teatralidade e do espetáculo, reestruturando uma espécie de jogo social em que se personifica a chamada “identidade de camaleão” (Goffman, 1975).

Na constância dessas reelaborações, o silêncio e a astúcia seguem produzindo as brechas em que novos nichos[6] são firmados como forma de resistência. Neles, os afrontamentos baseiam-se em laços sociais afetivos e na ambiguidade básica da estruturação simbólica, o que permite a coesão do grupo e a partilha fraterna de valores, lugares e ideias.

Agora tornam-se possíveis alguns questionamentos acerca do sistema formativo-educacional que a capoeira constitui: qual o sentido educativo desse sentimento de pertença e que transformações ele opera nos sujeitos capoeiristas? Como é possível a difusão dos aspectos formativos das tradições e dos saberes populares no âmbito dessas unidades sociais dinâmicas, uma vez que as pessoas envolvidas não são, necessariamente, o sujeito negro e pobre da capoeira de outros tempos? Como compreender a capoeira e suas formas de produção, apreensão e apropriação do conhecimento, através da dimensão corpórea dos modelos societais africanos ou afro-brasileiros?

A opção por identificar as insuficiências estruturais diante dos avanços tecnológicos e nos contextos das pluralidades culturais e identitárias pode nos aproximar daquilo que Morin (1996) chamou de “revolução na história do saber”, reconhecendo como insatisfatório tanto o conhecimento do especialista, marcado pela fragmentação e esoterização do conhecimento científico, como o do não-especialista, já que este renuncia, prematuramente, à tarefa de refletir (ou sistematizar sua reflexão) sobre seu mundo e sua vida.

Mestre Pastinha recusava-se a conceituar a Capoeira Angola, comportamento que se justificava frente à sua percepção ampliada sobre seus múltiplos sentidos e seu alcance, visto como incompatíveis com qualquer tipo de enquadramento. Sobre a questão, foi enfático: “Capoeira Angola, capoeira-mãe. Mandinga de escravo em ânsia de libertação. Seu princípio não tem método e o seu fim é inconcebível ao mais sábio capoeirista.”

Por não existir um consenso sobre o uso dado ao termo capoeira, somente ao desbanalizá-lo é que se torna possível percebê-la como uma potência, enquanto um espaço de poder. Seus fundamentos indicam que, tanto a rotina, quanto os acontecimentos são essenciais para a sua criação.

Dessa forma, por trás da recusa por tratá-la através de “outras” epistemologias, busca-se reafirmar saberes como os da capoeira que, ao serem reconhecidos no mundo em que foram formulados, exigem, minimamente, a descolonização das ideologias que incidem sobre a hierarquização destes saberes. A ação dos grupos sociais (a exemplo das organizações de Capoeira Angola) e os debates no interior da Universidade colaboram com esse propósito e necessitam ser ampliados. Carecem, ainda, de uma cumplicidade política em torno do entendimento desses campos formativos que, de acordo com o ensinamento de Paula Carvalho (1990), organizam o real e se constituem em práticas educativas; e, na medida em que a educação aparece como prática basal, promovem a sua interação com as demais práticas simbólicas. É assim que a Capoeira Angola, a partir dos seus elementos histórico-filosóficos, tem o desafio de repensar suas práticas simbólicas pelo prisma do antirracismo e, mais recentemente, também pelo não sexismo.

A ima(r)gem — imagem fora dos traçados hegemônicos (marginal), advinda das matrizes africanas do sujeito-capoeirista — permeia sua própria pertença e os aspectos tradicionais de suas escolhas, mais que distanciando os sujeitos, reposicionando-os em face do caráter subversivo dos valores hegemônicos. Sob esse prisma, o(a) sujeito-capoeirista é envolvido(a) numa perspectiva holonômica, integral, produtora de múltiplas linguagens poéticas, constitutivas de mitos individuais e coletivos e que podem conduzir a novas abordagens do próprio conhecimento científico. Entre elas, destaca-se a valorização da palavra falada (oralidade), que estabelece um complexo sistema de comunicação, transcendente-recursivo aos sentidos biopsíquico e socioculturais.

Na tentativa de inter-relacionar o privilegiado campo da tradição oral afro-brasileira com as áreas da comunicação e da educação, “suspeita-se” que os aspectos iniciáticos dessas tradições constituem o entorno do homo-symbolicus, base de uma hermenêutica criadora. No que tange à capoeira, pode-se afirmar que os cantos e os seus improvisos manifestados na roda, apresentam aspectos relevantes das relações sociais, denunciando desigualdades e apontando a necessidade de sua superação, acentuando sempre o poder e a força do grupo, da organização:

Quem nunca viu, venha ver
Licuri quebrar dendê.
Quem nunca viu, venha ver
Venha ver para aprender.

Na canção acima, exemplo típico do universo metafórico dos cantos da capoeira, observa-se uma tentativa de demonstrar as diversas possibilidades de intervenção sobre as instituições, produzindo-lhes fissuras e estabelecendo novos campos de negociação. De certo modo, essa postura associa novas formas de comunicação à prática dos(as) antigos(as) griôs e griôas africanos(as), presentes em vários registros das culturas africanas[7].

Independentemente do conteúdo real das construções ima(r)ginais narradas nos cantos da capoeira, suas reflexões e concepções transcendem o próprio enquadramento temporal e territorial, alargando-os. Com isso, percebe-se que o conteúdo ensinado é compreendido num universo de significações que é, no tempo/espaço, único para cada sujeito-capoeirista. No que tange às discordâncias entre mestre(as) e discípulos(as), na forma de pensar ou de agir, elas podem ser relegadas a um plano secundário, enquanto existir sentido e interesse na relação instituída. Se a escuta é o início de tudo, também o fim da relação dialógica de aprendizado pode advir por uma fala em momento indevido, o que não se deseja que aconteça:

Menino quem te matou?
Foi a língua meu senhor.
Eu te dava era conselho
Que pensava ser ruim
E eu sempre te dizendo
Inveja matou Caim, camarada…

Nas canções, também estão presentes os meios pelos quais os(as) mestres(as) orientam e apresentam os requisitos para a continuidade da relação com aquele que deseja aprender. No processo, mostra-se fundamental que o(a) discípulo(a) perceba as várias fases do aprendizado e o tempo de cada uma delas, as quais possuem um caráter individualizado, subjetivo, subversivo, misterioso:

Olha lá siri de mangue
Todo o tempo não é um,
A certeza que tu não “guenta”
Com a presa do guaiamum.
Maré de março,
Maré de guaiamum,
Entre grandes e pequenos,
Não me escapa um,
Siri tá se vendo doido
Nas garras do guaiamum, camaradinha…

Partindo da compreensão do mundo ima(r)ginal enquanto corporificação dos espíritos e espiritualização dos corpos, localiza-se, entre o mundo das ideias e o mundo dos sentidos, a iniciação nos fundamentos da capoeira. Nesse processo, suas linguagens contemplam os elementos invariantes do comportamento humano (arquétipos), cujos desdobramento refazem o terreno desses seres capazes de simbolizar os sentidos de suas próprias existências através da vivência e da aceitação, individual e coletiva, de “quem é de dentro da roda”. Muitas vezes, essas construções se fizeram a partir da reapropriação (pelos negros, pelos capoeiras) de conteúdos jocosos e discriminatórios, transformando-os em poderosa arma através do uso de linguagem não disponível a todos e que, por isso, assusta, amedronta e afasta:

Queba la mi cumugê
Ê macá…

Os versos dessa canção espelham como a compreensão acerca da Capoeira Angola e seus enredos somente pode ser perfeitamente alcançada pelos “de dentro” da roda. Nos versos reside uma das estratégias de sustentação do mistério em torno do conhecimento angoleiro: o uso abreviado de palavras da língua portuguesa como forma própria de comunicação. No exemplo, a tradução da letra é “quebra milho como gente, ê macaco…”.

Voltando-se para o senso de sobrevivência dos povos negros no processo civilizatório brasileiro, a constituição de uma alma ladina, ardilosa, evidencia um plano de negociação entre o sujeito-capoeirista e os grupos sociais dominantes (Reis, 1989).

Nos cenários urbanos da sociedade brasileira contemporânea – palco singular de apreensão das margens como sumário de um conflito – onde o desemprego é (re)produzido de maneira implacável, assim como o desalento e a desesperança, frente ao mundo formalizado pelos avanços tecnológicos grande parte dos(as) jovens de extratos sociais mais vulneráveis busca encontrar na vivência em meio às organizações de capoeira não apenas um status que lhe assegure certo tipo de destaque junto às suas comunidades. Mais que isso, esses jovens buscam compartilhar prazeres, crenças, sentimentos, afetos, conquistas e dignidade:

Ó meu Deus, o que é que eu faço
Para viver neste mundo
Se ando limpo, sou malandro
Se ando sujo, sou imundo
Ó que mundo velho e grande
Ó que mundo enganador
Eu digo dessa maneira
Meu mestre que me ensinou
Se não falo, sou calado
Se falo, sou falador, camará…

Mais que afirmar ou negar, ser mestre(a) significa a própria aventura do aprender, transportando as linguagens da pequena roda para a grande roda. Daí, reforça-se uma pré-compreensão ontológica do imaginário, através da percepção da ima(r)ginalidade. Nesse sentido, autoidentificar-se (e também autodistinguir-se) aguça e dá sustentação às diversas oposições constitutivas do(a) capoeirista.

Iê, maior é Deus, pequeno sou eu,
O que eu tenho, foi deus que me deu
Na roda de capoeira
Grande e pequeno sou eu, camará…

Considerando o fato de os(as) mestres(as) atingirem elevada posição de respeito e credibilidade perante seus grupos e, muitas vezes, além dos limites de suas próprias comunidades, ganha relevância uma reflexão acerca dos sentimentos (muitas vezes conflituosos) e das seduções que os acompanham durante a sua trajetória.

Sobre essa questão, é importante considerar que os modelos de resistência dos povos negros no Brasil, os quais primaram pelo estabelecimento de planos de “negociação”, deram às organizações de caráter artístico e/ou religioso papeis de destaque na luta antirracista, alcançando, em sua relação com a sociedade abrangente, aceitação e repulsa. Os sujeitos e as coletividades envolvidos nesses modelos de sociabilidade obtiveram êxito em suas estratégias e conseguiram, a seu modo, desmistificar a existência de uma democracia racial, além de evidenciarem a precariedade da democracia política e a inexistência de uma democracia social no Brasil.

Em que pese todas as questões articuladas em torno da Capoeira Angola, ainda se evidencia a necessidade de sua compreensão para além da dimensão atlético-corporal. É preciso acentuar os aspectos do conhecimento estético dessa vivência e dos processos metodológicos das africanidades no Brasil, de modo a reconhecer no âmbito da sua prática, esse outro campo de conhecimento simbólico, em que também as relações da sociedade abrangente estão representadas, ainda que por outras gingas.

Como um campo de conhecimento, a Capoeira Angola aparece como uma das formas de resistência negra, caracterizada por uma prática inovadora de organização dos grupos, bem como por modelos diferenciados de atração e de garantia da permanência dos indivíduos[8] no processo de “iniciação”. O compartilhamento das tradições que a integram (seja no campo da espiritualidade ou no dos elementos corporais/musicais da sua prática), bem como as reflexões promovidas acerca delas, acentua a importância de se estabelecerem pontes com as inovações da modernidade. “Dendê” e “internet” mostram-se igualmente sedutores e essenciais, constituindo-se como elementos que contribuem com as estratégias de continuidade do sujeito-capoeirista e do próprio grupo, promovendo o fortalecimento de ambos.

Na Capoeira Angola, a ancestralidade e a individuação (ainda no pensar jungiano) ganham contornos mais nítidos, dialogando com a percepção simbólica que o sujeito tem de si, do mundo, de si no mundo, do mundo em si. Tudo isso ganha reforço no próprio corpo do capoeirista, dando-lhe originalidade e erudição.

A vivência da capoeira conforma-se através de um ritual que, ao mesmo tempo em que se caracteriza pela repetição dos fazeres cotidianos, também é marcado pelo desvelar constante de novos significados advindos do que aparenta ser uma mesma ação.

É certo que a cosmovisão africana — principalmente no campo da narrativa mitológica, no qual reside uma constelação de símbolos — possibilitou à capoeira que extrapolasse a condição do rito pelo rito e alcançasse, através do corpo e da corporeidade, múltiplas e polissêmicas linguagens, constituindo uma pedagogia marcada pelo desejo, pelo olhar e pela escuta. Assim é que o suporte corporal, expressado na ginga e nos vários movimentos da capoeira, promove um (re)encantamento das estórias individuais dos capoeiristas e do próprio grupo a que eles integram, em detrimento de aspectos da história hegemônica e da lógica bipolarizada, o que possibilita, no presente, que diversos mitos africanos sejam identificados e revividos, colaborando com o seu resgate e memória (Carvalho, 1980).

Através da capoeira e do seu jogo ainda é possível uma metamorfose do ego, através do processo de individuação (sujeito-capoeirista), acentuado pela sensibilidade mito-poética. Nesse sentido, ao se optar pela Capoeira Angola para os fins desta análise, além da apresentação de seus aspectos sociopolíticos, é demonstrado o seu potencial de esclarecer um mito coletivo que flui e é revelado no imaginário enquanto conjunto das imagens simbólicas, orientadoras da sociabilidade dos grupos.

Adeus, adeus, adeus, ah!
Vou me embora com as ondas do mar,
Vou me embora pelas ondas do mar
Vou me embora mas eu sei que vou voltar…

 


* Professora Adjunta da Universidade Federal da Bahia (UFBA), é mestra fundadora do Instituto Nzinga de Estudos da Capoeira Angola e Tradições Educativas Banto no Brasil (INCAB). Graduada em História pela UFBA, fez mestrado e doutorado em Educação na Universidade de São Paulo (USP). Entre as suas publicações sobre capoeira, encontram-se: Bases filosóficas da “escola” pastiniana (2005); O brasileiro é tão angoleiro quanto eu (2005); A África e a afrodescendência: um debate sobre a cultura e o saber (2003).

[1] Dados estimados a partir dos números produzidos pelo Ministério dos Esportes quando da realização do Congresso Nacional Unitário da Capoeira, São Paulo, 2000.

[2] Refere-se à Capoeira Angola e Capoeira Regional. Particularmente, não reconheço outras denominações sobre os hibridismos a partir das “misturas” desses dois estilos.

[3] Forma de tratamento às pessoas iniciadas tanto na Capoeira Angola quanto no candomblé da nação Angola.

[4] Criada pelo baiano Manuel dos Reis Machado (Mestre Bimba), por volta de 1932.

[5] Termo muito comum na historiografia sobre a escravidão para se referir aos negros libertos, tidos como boçais e espertos.

[6] Espaços de refúgio implicados na existência de uma solidariedade orgânica.

[7] Griôs (do francês griot) e griôas (feminino aportugesado do griô) faz referência a antigos(as) mestres e mestras das tradições africanas e afro-brasileiras que pela oralidade garantem a existência de muitos conhecimentos e práticas desses saberes (Niane, 1982).

[8] Importante considerar que a vivência da capoeira não é mais uma exclusividade de homens e de negros.

Referências:

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ARAÚJO, Rosângela C. Profissões Étnicas: A profissionalização da capoeira em Salvador. In: Bahia, análise & dados. Salvador, CEI/SEPLANTEC, vol. 3, no. 4, pp. 30-32, 1994.

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