Em uma primeira impressão, anotei mentalmente, sem ordem de nenhuma espécie, pontos a que queria voltar. Mas a gente tem de observar que são pontos no meio do movimento do poema e que, retirados, ganham importância e ênfase que os colocariam em sobrevôo à corrente em que foram imersos. Provavelmente, para serem afogados ou quase. Seria assim que ela quer? É muito parecido com uma brincadeira que meu neto de dois anos faz comigo, na varanda, desde que aprendeu a palavra, sacou o sentido e as possibilidades psicológicas e metafísicas de sua manipulação. Ele segura o guidom do velocípede ao inverso – e se pode perceber que assim também serve. Espera, já rindo, minha reação. Ao contrário? Pergunta, e revira a direção ao contrário, repetindo infinitamente o jogo. Vejam Ana Cristina: (Em Luvas de Pelica).
“ ………………………..You know what lies are for. Doce
coração cleptomaníaco.
Pondo na mala de esguelha sobras do jantar,
gatos e bebês adoentados.
Bafo de gato. Gato velho parado há horas em
frente da porta da frente.
Qual o quê. Coração põe na mala. Coração põe
na mala. Põe na mala.”
Poucos versos antes dissera:
“Porque eu faço viagens movidas a ódio. Mais
resumidamente em busca de bliss.
É assim que eu pego os trens quinze minutos
antes da partida ………………………………..”
Partida antes da partida. Ódio ou bliss não. Ódio e bliss se revirando até dar no mesmo, lançando o estranhamento. Auto-complacente, a autora ou o personagem esconde o roubo irresistível (pedaços da vida dos outros, invejados embora adoentados? Um verso? O amor de outrem?) – butim da espreita, guardado na mala da partida. A repetição de “Coração põe na mala” produz aquele efeito de virar ao contrário e perguntar se é assim, que compraz a meu neto, em seu incipiente sadismo com a avó. Mas aqui a crueldade castiga quem segura a direção contra seu peito.
Voracidade, ciúme, desatino – por vezes estão por detrás das gatunagens:
(Em Correspondência Completa)
“………………………………………………………Mary tem sempre razão.
Gil diz que ela não se abre comigo porque sabe
que minha inveja é maior que meu amor. ………………………………”
………………………………………………………………………………………….
Gil diz que sou uma leoa marinha e eu exijo
segredo absoluto (está ficando convencido):
historinhas ruminadas na calçada são afago para
o coração. Quem é que pode saber? Eu sim sei
fazer calçada o dia todo, e bem. Do contrário…
Não fui totalmente sincera.”
Mas, como se vê, a des-razão revira rápido em razão muito cerebrina, desabusada e desafiante de quem – digamos- capta o alheio em conjunção a outros poetas ladrões de historinhas, de quem ela também pilha um pouquinho – mas sabendo o que faz, fazendo a seu modo. “Quem é que pode saber”? Em “Samba Canção”, de A teus pés, que ecoa títulos de Cacaso, ela diz:
“Tantos poemas que perdi,
tantos que ouvi, de graça,
pelo telefone ………………”
Essa questão da literatura-roubo, apropriação, Ana Cristina compartilha com outro escritor, cuja estréia, com Armadilha para Lamartine, ela apoiou, quando fazia parte, com Cecília Londres, do conselho informal que escolhia as publicações de autores brasileiros da espanhola editora Labor, recém-instalada em nossas plagas, ainda nos anos 70: Carlos Sussekind. Ana Cristina não chega a saber que, em 1992, Carlos vai publicar um livro chamado O Autor mente muito. Diz Ana Cristina na página final da Correspondência Completa:
“……………………………………………………..só posso
dizer que corei um pouco de ser tudo verdade. F.
penso não percebe, mas como sempre mente
muito. Mente muito! Só eu sei. Vende a alma ao
diabo negociando a inteligência alerta pela
juventude eterna.”
Autora e personagem trocam de papel com freqüência nesses versos-correspondència-diário. Um truque a mais para despistar o leitor ou para disfarçar a dor. A propósito daquele “corei um pouco de ser tudo verdade” há que lembrar – entre muitas outras coisas – os dois P.S. do final da Correspondência Completa:
“P.S. 1 – Não quero que T. leia nossa correspondência, por favor, Tenho paixão mas também tenho pudor!
P.S. 2 _ Quando reli a carta descobri alguns erros datilográficos, inclusive a falta do h no verbo chorar. Não corrigi para não perder um certo ar perfeito – repara a paginação gelomatic, agora que sou artista plástica.”
A inteligência alerta para manter, com mão firme, a literatura à distância da biografia, não se confundindo com esta, embora fazendo dela sua matéria prima.
A armadilha, a pose, a prestidigitação – a poeta como um mágico que mostra vertiginosamente as lembranças, os testemunhos, as imagens de um enredo, cuja verdade, manipulada, vira ficção.
A re-escrita da vida como paródia, feita de ironia, de humor e de um falso pudor que, às vezes, chega ao franco descaro, me parece ser uma das marcas dessa poesia. Nesse sentido, esta poesia confina com a prosa – a menos poética, a mais corriqueira – em que insere citações, apropriações literárias, referências a falas e acontecimentos recuperáveis. Primam o ataque à aura, o propósito de dessacralização. Em “18 de fevereiro”, de Cenas de Abril , lê-se:
“……………………………………………………………………………………….
Somente a dicção nobre poderia a tais alturas
consolar-me. Mas não o ritmo seco dos diários
que me exigem!”
A começar pelo rebaixamento do lugar da própria literatura e do livro. NaCorrespondência Completa, cuja edição minúscula foi objeto de grande prazer “plástico”:
“…………………………………………Escrever é a
parte que chateia, fico com dor nas costas e
remorso de vampiro. Vou fazer um curso secreto
de artes gráficas. Inventar o livro antes do texto.
Inventar o texto para caber no livro. ……………….”
Também a desmistificação do lugar do artista e certa triste e desiludida falta de ternura em relação a seu próprio processo de escrever: (Em Luvas de Pelica).
“…………………………………………………………………………………
Aqui tenho máquinas de me distrair, TV de
cabeceira, fitas magnéticas, cartões postais,
cadernos de tamanhos variados, alicate de unhas,
dois pirex e outras mais. Nada lá fora e minha
cabeça fala sozinha, assim, com movimento
pendular de aparecer e desaparecer. Guarde bem
este quarto parado com máquinas, cabeça e
pêndulo batendo. Guarde bem para mais tarde.
Fica contando ponto.”
Como nas Memórias Póstumas, que ela confessa haver lido até se sentir “ low”, o leitor da Correspondência (e o de sua literatura em geral) é provocado, ao mesmo tempo em que a autora se expõe:
“ Fica difícil fazer literatura tendo Gil como leitor.
Ele lê para desvendar mistérios e faz perguntas
capciosas, pensando que cada verso oculta
sintomas, segredos biográficos. Não perdoa o
hermetismo. Não se confessa os próprios
sentimentos. Já Mary me lê toda como literatura
pura, e não entende as referências diretas.
……………………………………………………………………”
Assim, as citações e referências literárias (“lições levantam vôo”), embora correspondam a autores de sua admiração e afinidade, em Ana surgem mescladas a sua própria dicção e ficção, eminentemente iconoclastas. Baudelaire – cuja presença é profunda na poesia de Ana Cristina – e Manuel Bandeira freqüentam o poema “21 de fevereiro” em Cenas de Abril:
“…………………………………………………..abomino
Baudelaire querido, mas procuro na vitrina um
modelo brutal. Fica boazinha, dor; sábia como
deve ser, não tão generosa, não. …………………….
………………………………………………………………….
……………………………………………………………………
…………………………………………………………………..
………………………………………………………………….
…………… Minha dor. Me dá a mão. Vem por aqui,
longe deles. ……………………………………………………
…………………………………………………………………….
………. .Belo belo. Tenho tudo que fere. As
alemãs marchando que nem homem. As cenas
mais belas do romance o autor não soube
comentar. Não me deixa agora, fera.”
São referências que penetram e exprimem o sentimento do poema, embora o devido pudor encontre sempre maneiras de driblar seu reconhecimento pelo leitor. Ainda na Correspondência Completa, cujo aspecto físico e dicção – como já se observou – se opõem em tudo à solenidade que não pode deixar de envolver a expressão da dor, Ana Cristina evoca de raspão a poesia de Maria Ângela Alvim, particularmente a do poema-em-prosa “Carta a um cortador de linho” contido no último livro – Poemas de Agosto dessa autora:
“……………………… . Há três dias que pareço morar
onde estou (ecos de Ângela). Aquele ar de
desatenção neurológica me deixa louca. Saímos
para o corredor.Você vai ter um filhinho,
ouviu?”
Diz Ângela:
“…………………………………………………………………………………..
Quanto a mim, meu amigo, vou passando. Sem
ela não fico em casa. Há três dias que pareço morar
onde estou: na rua, no café, na praia.
…………………………………………………………………………..
…………………………………………………………………………..
Mas minha pele tornou-se muito sensível. Demais.
A dor cresce dentro da gente e tem que respirar.
Ela tem uma energia e queima como o sol – lá fora.
Nem sei se é dor ou se é aquela que está sofrendo
que me visita assim. Não têm onde encontrar-me e
entram dentro de mim, querem abraçar-me e avançam
minhas fronteiras.”
Em comum a intensidade da dor e sua consideração como algo exterior, a distância de si, o sentimento do”sem lugar”. Parece-me que a leitura da cisão da personalidade em Ângela, por Ana Cristina, provoca a referência à perigosa ambigüidade que penetra os fracionamentos do “eu” e projeções, freqüentes em sua poesia:
“ ………………………………Você vai ter um filhinho,
ouviu?”
No entanto a dor, que na poesia de Ana Cristina é figurada por representações de ferocidade de quem escreve do patamar rente à vida, contrasta com o sofrimento apaziguado pela certeza do fim, “que é ali mesmo”, expressado na “Carta a um Cortador de Linho” – esse raro poema em prosa da modernidade brasileira.
Assim, pois, a intensidade da presença de autores canônicos e de outros nem tanto nos poemas de Ana Cristina não resulta na anulação de sua personalidade literária, antes a reforça. A singularidade dessa poesia provém – me parece – principalmente do domínio que a autora exerce sobre sua matéria, ao domar tanto o literário como o biográfico – que formam a substância da obra – e fazer prevalecer sua própria escrita, a qual mantém em equilíbrio o drama e a farsa.
É preciso, por fim, notar que a presença de Baudelaire e de Walt Whitman nessa poesia vai além das citações e, mesmo, além do que entendemos mais comumente como influências. Parece-me que através do eco dessas vozes contrastantes, mas inaugurais da poesia contemporânea, é que Ana Cristina enfrenta os embates para realizar seu propósito de expressar em literatura de clave moderna seus sentimentos diante da realidade de sua vida e de seu momento político e literário. Nesse sentido, diz muito o título de seu último livro: A Teus Pés.
* Clara de Andrade Alvim é graduada em letras pela antiga Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil. Livre Docente em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, com tese sobre Guimarães Rosa. Lecionou na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, na PUC RJ e na Universidade de Brasília. Coordenadora de projetos da Fundação Pró-memória do Ministério da Cultura. Publicou, entre outros, os seguintes trabalhos: “Esses poetas de hoje”, posfácio à primeira edição de “Beijo na boca”, de Antonio Carlos de Brito; “Representações da pobreza e da riqueza em Guimaraes Rosa”, in “Os pobres na literatura brasileira”, organizado por Roberto Schwarz ; “As questões: mulher, biografia e literatura nos escritos em prosa de Ana Cristina César”, in revista “Remate de Males nª 20, do Dep. de Teoria Literária da UNICAMP e a orelha de “A terceira perna”, de Vilma Arêas.