dossiê
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ANGA MAION: UMA PERFORMANCE ENTRE A E ELE

Resumo: Este texto não é um artigo. Talvez, uma apresentação. Mas, se for, é a apresentação de uma performance, híbrido de clínica e ritual, algo que também não pode ser plenamente apreendido. Escapa. Então que isso seja um tatear assim meio que às cegas, c’obra cega, porque o olhar é esse do corpo que sabe e convoca todos os sentidos para ver.: O toque, mas esse de dedos incertos sobre as teclas. Este texto, portanto, é somente o que pode ser: um texto. Texto tentando tocar rastro. Nuvem tentando conter-se chuva. Esse texto contamina-se em/de AngaMaion.

Palavras-chave: Performance; criatura; incorporação.

Abstract: This is not an article. It´s, maybe, an introduction. The introduction of a performance, a hybrid of clinic and ritual, that cannot be fully understood. It escapes. So this is a blind grope, a blind snake, since this is the search of a body that knows and convenes every senses in order to see.: The touch of the uncertain fingers over the keys. This text, therefore, is the only thing that it can be: a text. The text trying to touch a track. The cloud trying to contain the rain. This text is contaminated of AngaMaion.

Keywords: Performance; creature; incorporation.

 

Anga, in Guarani, means shade, shelter, soul. Maion, in Pataxó, means light. AngaMaion was a ritualistic performance realized at electronic music parties in São Paulo. The video revisits the experiment to register the relation between two vibrating bodies: performer and creature.

Anga en langue guarani signifie ombre, abri, âme. Maion en langue Pataxó signifie lumière. AngaMaion fut une performance rituelle tenue dans les partis de musique électronique à Sao Paulo. La vidéo revisite l’expérience pour imprégner le rapport de deux corps vibrants: interprète et créature.

Anga, en Guarani, significa, sombra, abrigo, alma. Maion, en Pataxó, es luz. AngaMaion fué una performance ritual que se realizó en fiestas de música electrónica de São Paulo. Este video revisita lo experimento para permear la relación entre dos cuerpos vibrantes: performer y creatura.

https://vimeo.com/172979181

https://vimeo.com/124534151

Acesso: 28/11/2016

 

a.

Este texto tem o desejo de pensar/sentir AngaMaion, entidade performatizada ritualisticamente pelo dançarino, performer e artista multimídia Fernando Gregório, que, segundo suas palavras já dissipadas pelo vento[1], chegou num ritual xamânico acompanhada de outros seres – leia-se outras formas de existência – que interagem com humanos.

Há algum tempo, Fernando Gregório vem tecendo mapas conceituais e o estudo dos fractais parece ser o cerne de uma pesquisa que busca, antes de tudo, a intersecção entre práticas de dança, performance, artes visuais, arte digital, processos clínicos e experiências ritualísticas xamânicas. Diz que a leitura de Viveiros de Castro e do perspectivismo ameríndio tem sido fundamental para refletir sobre uma possível aproximação entre AngaMaion e a cultura indígena, na tentativa de entender outros pontos de vista através de algo como a incorporação.

Conta ainda que, desde sua chegada, Anga se mostrou um ser de comunicação, “sempre sugerindo e nunca impondo nada”. Desde sempre, então, o diálogo horizontal entre o performer e a criatura nascida do cruzamento, potencializado pela radioatividade, de uma rata e uma água-viva, ou, mais especificamente, um ser tentacular que habitava os rios submersos de São Paulo. Nessa formação, houve também a interferência de uma cobra-cega

que via com o corpo todo.

 

b.

Aberturas.

Importa dizer que os pensamentos, lançados aqui sobre esse papel-não-papel, são mediados por quatro mãos, que ora encaixam fragmentos da entrevista, lembranças sensíveis da performance e estilhaços conceituais, tentando compor um dizer sobre, que ora cala sem saber qual faceta de Anga abordar. Anga-performance nas mentes pesquisadoras. Anga-cura nos corpos terapêuticos. Anga-rito nos corações de axé. Mas, sempre, Anga-poesia nas mãos de dois poetas.

Desde aí a tentativa, evidentemente fracassada, de apreensão de alguma coisa que já (se/nos) foi: imediaticidade cujo rastro, em mídia eletrônica, se apresenta mais como uma ausência, uma falta, uma espera.

 

c.

No link acima, o leitor poderá ter uma ideia da experiência provocada pela performance AngaMaion. A senha: transanga. A mistura de arte, clínica e ritual xamânico culmina numa (est)ética plurissignificativa que convida a diferentes diálogos com teorias, especialmente de fundamentação feminista, debruçadas sobre gênero, cultura e sobrevivência queer/kuir.

De pronto, experienciamos AngaMaion numa forte conexão com o pensamento de Donna Haraway (2016) quando aposta no “chthuluceno” como “novo e potente nome” para reunir as forças tentaculares da Terra. Isso porque Anga pode ser lida como criatura decentralizadora à medida que repovoa nosso imaginário: o que ela é? a que veio? o que trouxe? o que levou(-nos)? Tal fabulação especulativa pode criar uma alternativa à centralidade do humano – aqui especialmente o humano-homem-branco – mas desde que ultrapassemos os limites que separam a obra da arte da obra da vida. Ou melhor, como Donna propõe, desde que pensemos os seres junto com a ficção científica, aceitando a miríade de temporalidades, espacialidades e “entidades em arranjos intra-ativos, incluindo mais-que-humanos, outros-que-não-humanos, desumanos e humano-como-húmus (human-as-humus)”.

Só assim poderíamos entender AngaMaion como conjunto aberto-fechado de complexidades, porosas e tentaculares, que admite a completa contaminação narrativa e teórica da arte à vida e vice-versa. Ou como força chthonica se apresentando à nossa hostipitalidade, termo cunhado por Derrida (2003) para falar dessa relação ao mesmo tempo hospitaleira e hostil para com aquelx que vem. Aqui, vivenciamos a completa hostipitalidade uma vez que já estamos diante do outro-mais-que-outro, nem mesmo o outro animal, mas o já ciborgue (Haraway, 2009) ativado na/pela música eletrônica: um ser híbrido máquina-organismo desestabilizador das categorias convencionais de raça, gênero e classe social.

 

d.

Mas AngaMaion pode ser lida como presença-ausência-construção ciborguesca? Questão interessante, pois, apesar de ter uma história que nos foi contada pelo performer, como ciborgue AngaMaion não precisa, necessariamente, de uma narrativa de origem, pois, no momento mesmo do ato, para seus espectadores Anga apenas é. E isso desmascara qualquer crença e segurança numa linearidade temporal: tudo é presente. Tudo é agoridade que se ajusta à sobrevida da performance na malha tecnológica.

Por isso, Anga assusta. O tempo do “é” é muito menos racionalizável: precisa dos sentidos e acessa os saberes do corpo. E, assim, somos levados a expandir os limites de apreensão da “coisa” à medida que essa “nova narrativa mítica” mistura fragmentos e referências resultando em entes-sem-limites, com os quais não sabemos muito bem como e desde onde questionar. O que perguntar? Por que perguntar? E para quê? Então não perguntamos, calamos. Enquanto Anga dança. E intimida. Não precisa responder porque não sabemos ainda as perguntas.

(Ela só precisa do corpo).

Mas, se ciborgue, “determinadamente comprometido com a parcialidade, a ironia e a perversidade” (Haraway, 2009, p. 3), pois definitivamente desajustadx à lógica binária da enunciação totalizadora que divide os corpos em dois e marginaliza os corpos insubmissos ao sistema heterocentrado: “intersexuais, hermafroditas, loucas, caminhoneiras, bichas, sapas, bibas, fanchas, butchs, histéricas, saídas ou frígidas, hermafrodykes” (Preciado, 2014, p. 27). É claro que, aqui, não se trata apenas da desnaturalização dos binarismos sexuais, mas também da desconstrução do binarismo humano x máquina / cultura x natureza, construindo, com isso, um lugar mais espectral e sem tantos opostos, apenas com partes integrantes de uma mesma teia na qual próteses identitárias existem em favor da “textualização do corpo em sua totalidade”.

 

e.

Será por isso que AngaMaion não tem rosto? Será elx seja o rosto sem rosto, ou ainda o rosto qualquer do pensamento messiânico revisitado pela filosofia contemporânea?

Não sabemos.

 

f.

De qualquer forma, é incrível como a estética da performance traz uma discursividade radicalmente ética. Além da escolha da trilha sonora eletrônica, referência ao urbano contemporâneo, e do locus, um canto escuro com parede pixada em referência à margem, há o uso do zentai preto, criador de formas a um tempo firme e fluidas. Fernando Gregório diz que, como performer, veste o zentai, mas que Anga é o próprio zentai, ou seja, o estranho-erótico-pornográfico-fetichista que não reduz o corpo à uma única zona erógena, mas que o erogeniza por completo. Contrassexualidade: o corpo falante, mesmo que mudo, se conecta com outros corpos falantes desnaturalizando binarismos e renunciando “não só a uma identidade sexual fechada e determinada naturalmente, como também aos benefícios que poderiam obter de uma naturalização dos efeitos sociais, econômicos e jurídicos de suas práticas significantes” (Preciado, 2014, p. 56).

Então que essa pele sintética, em jogo de movimentos, não só gera a imediata associação a fetiches e energias claramente sexuais, criativas e criadoras, como estimula o diálogo com os corpos conscientes daqueles que se fazem presentes ao acontecimento. E esse diálogo de corpos, potencializado pela força Anga, é o lugar onde se energiza o corpo espectral formado e deformado a partir das mensagens surgidas, (re)transmitidas, (re)alimentadas e, em última instância, incorporadas pelos participantes. É o lugar onde o acontecimento se entrega de modo mais contundente à condição em que se manifesta: a de estranho.

Mas, uma vez feita a abertura, uma vez incorporado, algo se mantém estranho?

 

g.

Resulta da ampliação do corpo à erogenização íntegra e integral, a despeito das zonas consideradas erógenas, por meio dessas dobras e incorporações desviantes, dessas linhas de fuga, os tais corpos-que-dançam e que possibilitam, dentro do espaço hiperexcitado pelo movimento, também a aparição do espectro traumático (Gil, 2003).

Nesse sentido, e partindo de uma fala afirmativa de Fernando Gregório, percebemos a relação entre arte e clínica na performance AngaMaion que, em alguma medida, o aproxima dos experimentos com o corpo-bicho de Lygia Clark. Suely Rolnik fala desse lugar de borda entre arte e clínica, que busca extrapolar fronteiras e se espalhar pela vida. Sobre Lygia, ela diz: “são os elementos de um ritual de iniciação que ela desenvolve ao longo de ‘sessões’ regulares com cada receptor” a fim de experienciar o “desmanchamento de nosso contorno, de nossa imagem corporal, para nos aventurarmos pela processualidade fervilhante de nosso corpo-vibrátil sem imagem” (2016, p. 106).

Certamente a ritualística existe no processo de criação-incorporação AngaMaion e ela dá os contornos desse lugar de autocura no qual a performance surge como possibilidade conectando-se ao princípio ético de certa permacultura do corpo: “use os limites e valorize o marginal” para acordar e desentorpecer o corpo-que-sabe, anestesiado pela perspectiva dominante antropo-falo-ego-logocêntrica. Experimentação poética que explicita uma dimensão política: “da perspectiva de sua hibridação, prática artística e prática clínica revelam-se como forças de resistência à esterilização do poder disruptivo” da contradição entre possibilidades infinitas e a finitude da criação. Estamos no campo da esquizoanálise, que busca, a partir de práticas inventivas e mutativas, do “desdobramento de devires animais, vegetais, cósmicos, assim como de devires maquínicos, correlativos da aceleração das revoluções tecnológicas e informáticas” (Guattari, 1990, p. 23) transformar, por meio de novos agenciamentos, nossa relação com o mundo.

 

h.

Fratura.

Este fragmento do (não) artigo sobre Anga é uma fratura em tudo escrito até agora, mas não radical, não exposta. Quer dizer, talvez agora exposta porque nomeada: esse fragmento quer ser. Artigo? Ou qualquer coisa que seja “é”. Porque contamina e é contaminado por tudo posto e deposto até então, misturando criatura-performer-criador sem perder a possibilidade, a esperança de ser um texto, um corpo incorporado aos trechos que o precedem. Tal qual corp-Anga corpo-que-performa. Quem precede quem?

Na política dos corpos, a relação entre artista e entidade evidencia o corpo como lugar transitório. O de Anga, manifestação que vem e se esvai, pronto para uma nova invasão-incorporação-performance; o do performer, que ao rasgar o zentai ao final da apresentação, cumpre a promessa do corpo-lugar como elemento que não nos abandona, ou seja, retoma seu corpo inicial que, no entanto, se apresenta numa nova versão, corpo pós-transmutado, e, portanto, aberto a novas possibilidades de sensibilidade. A certeza do corpo como lugar de incerteza, aberto ao estranho, seja como manifestação estética, seja pela porosidade da compreensão do que ocorreu.

O que foi Anga?

 

i.

Não vemos nas fotos, mas num dos vídeos, sim: outra presença: a presença-Outra[2]. Participa da performance de Anga a figura da Outra, que se apresenta num primeiro momento como um híbrido de assistente-espectadora do performer, e possivelmente de Anga, que assiste (a) toda ação. Trata-se da espectadora ideal, almejada a todo custo pela arte contemporânea que se quer, acima de tudo, ser uma experiência. Figura que rompe a condição de espectadora-assistente e vai contaminando, atuando até tornar-se condição para aquela performance, para a manifestação artística/ritualística, tornando-se finalmente, também, uma performer. É o rompimento, ou o deslocamento das atuais fronteiras flexíveis.

O ritual, a transe-performer-criatura como apresentada, não é possível, ao menos não plenamente, sem o movimento onde a Outra joga uma gosma espessa sobre o performer completando o ritual em toda sua potência. Ela cumpre a crença no que se passa, somada à crença do performer, jorrando Anga às testemunhas do acontecimento. E então algo se passa naquela figura que some de cena. Estará a Outra à espera de sua própria entidade? Ou é ela a própria entidade, já incorporada ao acontecimento, um segundo encontro que rompeu uma segunda vez o binarismo do encontro perfomer-Anga, binarismo esse apresentado de início e rompido a primeira vez pela própria força resultante da dinâmica do encontro, desde o primeiro encontro?

 

j.

Percepções.

( ) = energia híbrida.
Performer 1 + anga 1 = (1).
Performer 1 + anga 1 + Outra performer 2 = ((1)).

 

k.

Cumpre-se, portanto, uma relação de parceria mais do que antropofágica dado que se trata de seres distintos e plurais – Anga, performer, assistente, espectadores – existência / coexistência. Na lixeira onde os primeiros processos mágicos aconteceram e a gente não estava vendo, uma sugestão ecológica. Tudo fervilha e contamina. Fervilhamos. Somos tudo em alguma lixeira para a qual ninguém olha.

Será que foi Anga quem disse isso, Eduardo?
Será que foi Anga quem disse isso, Geruza?

Não sabemos. Mas o corpo

Sabe?

l.

Poema do artista, cedido como resposta à pergunta impossível:

meu segredo é uma caixa linda
(acho que é a caixa mais linda do mundo)
lacerada acima da minha cabeça
uns 45o com 30 cm à frente

ela pode cair
quebrar

nunca houve caixa
só o que ela pariu:
uma massa disforme
moldada
doída
que esqueceu

[Fernando Gregório]


* Geruza Zelnys é escritora e poeta. Doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada (USP), mestre em Crítica Literária (PUC-SP), pesquisa as potencialidades provocativas, educativas e terapêuticas das oficinas de escrita criativa em pós-doutoramento (UNIFESP) com bolsa CNPq. Ministra oficinas de escrita criativa e curativa.

** Eduardo Guimarães é escritor e poeta. Bacharel em Comunicação Social com ênfase em Roteiro (ECA-USP). Bacharel em Direito (PUC-SP). Ministra oficinas de escrita literária. Pesquisa o fazer literário como processo catártico-ritualístico, capaz de (re)narrar memórias, atuar em realidades e levar ao êxtase.

 

Referências

DERRIDA, Jacques. Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida a falar da hospitalidade. Trad. Antonio Romane. São Paulo: Escuta, 2003.

GIL, José Nuno. “Abrir o corpo”. Palestra proferida no Simpósio Corpo, Arte e Clínica. Porto Alegre, Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, PPG em Psicologia Social e Institucional, 2003.

GUATTARI, Félix. As três ecologias. Trad. Maria Cristina F. Bittencourt. Campinas: Papirus, 1990.

HARAWAY, Danna. Antropoceno, Capitaloceno, Plantationoceno, Chthuluceno: fazendo parentes. In: Cimacom. “Vulnerabilidade”.  Ano 3, nº 5, 2016. Disponível em: http://climacom.mudancasclimaticas.net.br/?p=5258 Acesso em 28/10/2016.

HARAWAY, Danna. Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. Trad. Oriana Duarte. In: INFODESIGN-2009.1: Imagem e Complexidade. Disponível em http://www.rodrigomedeiros.com.br/pos/download/oriana/01-ManifestoCyborgI.pdf  Acesso em 28/10/2016.

PRECIADO, P. Beatriz. Manifesto Contrassexual. Políticas subversivas de identidade sexual. São Paulo: n-1 edições, 2014.

ROLNIK, Suely. Lygia Clark e o híbrido arte/clínica. In: concinnitas | ano 16, vol. 1, nº 26, jul. 2015, p. 104-112. Disponível em http://www.e-publicacoes.uerj.br/ojs/index.php/concinnitas/article/view/20104. Acesso em 10/11/2016.

 

Notas

[1] Obtivemos as informações para essa análise junto ao artista em diálogo que tentava trazer à tona os fundamentos de seu processo criativo.

[2] Usamos aqui o termo Outra para nos referirmos à Tamara Gigliotti, assistente na performance.