Resumo: O poeta Jorge de Lima (1893-1953) teve vida muito ativa como escritor e médico, por isso, repórteres e resenhistas deram grande atenção a suas produções e críticos bem aparelhados trataram de seus poemas, romances, ensaios e experimentos com as artes plásticas. Mais tarde, o forte apelo de sua dicção peculiar (quase hermética) ficou praticamente esquecido. No momento, quando seus melhores poemas foram republicados e seus papéis pessoais estão acessíveis à pesquisa, é hora de ler sua obra através de perspectivas contemporâneas, aproveitando os métodos renovados de crítica biográfica. Este artigo procura discutir alguns itens selecionados a partir do arquivo de Jorge de Lima, considerando-os em contraponto com amostras dos textos publicados. O objetivo é delinear o perfil possível de um artista moderno cuja carreira peculiar escapa às tendências do movimento modernista brasileiro.
Palavras-chave: Jorge de Lima; arquivo; literatura; artes plásticas; recorte e colagem.
Abstract: The poet Jorge de Lima (1893-1953) was very active in his lifetime both as a writer and a doctor. Therefore reporters and reviewers paid close attention to his activities and well informed critics wrote about his poems, novels, essays and experiments as a visual artist. Later on, the powerful appeal of his peculiar (almost hermetic) diction was almost forgotten. Nowadays, when his best poems have been republished and his personal papers are open to research, it is time to read his work through contemporary perspectives, profiting from the renewed methods of biographical criticism. The present article tentatively discusses some items selected from Jorge de Lima’s archives, considering them in counterpoint to samples of his published writings. The aim of this paper is to try to delineate a profile of a modern artist whose particular career escapes from the main tendencies of the Brazilian modernist movement.
Keywords: Jorge de Lima; archive; visual arts, cutouts, collages.
Os arquivos seduzem o pesquisador de literatura porque acenam com uma promessa fugidia: revelar as marcas daquele instante mágico em que a arte se constrói, surgindo de acasos banais na rotina da vida. Por seu lado, o poeta pode mostrar-se generoso ou esquivo diante da cena da criação – misteriosa mesmo para seu protagonista. Há os que escondem seus segredos de prestidigitador, descartam rascunhos e silenciam sobre o trabalho árduo das inúmeras revisões do texto. Outros preservam anotações, manuscritos rasurados, marcas de leitura de seus antecessores e ainda inserem, na obra, capítulos de uma arte poética própria. Sem contar os que se consideram grandes intuitivos e não demonstram hesitação, nem conservam versões insatisfatórias. Jorge de Lima, artista curioso – titular do acervo de que este artigo se ocupa –, parece pouco preocupado em tomar notas ou guardar exercícios interrompidos, mas sua trajetória, feita de experiências com diversos gêneros e linguagens diferentes, insiste em desdobrar a escrita em indagações sobre o conceito de poesia. Embora não tenha exercido, sistematicamente, a atividade crítica, buscou, muitas vezes, fazer do próprio verso instrumento para uma filosofia da arte.
O conjunto de documentos pessoais, paratextos, reproduções de imagens e coleção de recortes, conservados no Arquivo-Museu de Literatura Brasileira da Fundação-Casa de Rui Barbosa, com certeza, não passa de uma parte dos papéis guardados por Jorge de Lima. A doação foi sendo feita pelos filhos, em mais de uma etapa, muitos anos depois da morte do escritor. Várias coisas devem ter-se extraviado; parte da biblioteca e pastas de manuscritos e datiloscritos ainda se encontram na posse de outros membros da família. Se todo arquivo é, por definição, lacunar e impõe leitura que reúna raciocínio e imaginação, neste caso, é preciso ter cautela e deslocar-se, com muito mais empenho, entre os registros inéditos acessíveis e a obra publicada – em especial, visitando sua generosa dimensão metapoética.
Dedicado a conhecer a arte em suas manifestações diversas, frequentando os clássicos e os vanguardistas, o cânone ocidental e as tradições populares mestiças, Jorge de Lima investigou, com argúcia, os elementos do fazer artístico. Estudava o legado de seus mestres e seu próprio trabalho. Perseguindo, numa quase obsessão, a matéria da poesia, nunca quis desmitificá-la; ao contrário, procurou manter a complexidade do espaço fantástico onde a situava. Por isso mesmo, quando lia Dante ou acompanhava a trajetória inesperada de Salvador Dali, devia indagar-se sobre essas vidas capazes de produzir as surpresas da arte. Deu o título de “Biografia” ao oitavo canto de Invenção de Orfeu – o épico moderno que, como clímax de sua carreira sempre ascendente, veio confirmar, com ênfase, o estatuto transtemporal e coletivo da arte literária. Num curioso registro de seu arquivo, que, pelo que se deduz, indica o reaproveitamento de um artigo já publicado, encontram-se justificativas sobre a ousadia desse experimento intempestivo. Trata-se de recortes de um impresso, colados em folha de papel, com vários períodos riscados e algumas substituições e acréscimos manuscritos. É, aí, que, assumindo a primeira pessoa (ausente da versão inicial), o autor traz explicações sobre:
(…) o Canto Sétimo[1], “Biografia”, que não dividi em partes, como fizera com os outros, mas coloquei em versos que se sucedem em grande número com os principais temas de Invenção de Orfeu. O Canto é feito em sextetos e a biografia não é apenas a do poeta, mas também a de um povo, de uma tradição, de uma herança religiosa e humana (Lima, pi, AMLB).
Se o “poeta” biografado condensa todo um povo e uma tradição, articulando, indistintamente, imaginário cultural e memória particular, também a própria escrita do poema inclui-se como matéria biografável:
Os cantos lapidários varam crivos
conduzidos por lábios preexistentes,
ritmados pelas mãos outrora adeuses
revivescidos clavicórdios múltiplos,
fabulizando os meus e os teus lamentos.
(Nem tristeza distante nem ventura!)(…)
Contra o tempo e em poesia recompostos
somos todos poetas, natos poetas,
os que têm voz podem cantar
a doce inspiração subdivida,
gravar-se dessas noites patinadas
de sóis que foram ontem sóis cantores (Lima, 1958, p. 820, 849).
O comportamento curioso de um escritor ocupado, que, para atender demandas da circulação de sua obra, improvisa artigos, inserindo pequenas mudanças em textos já redigidos, contrasta com a gravidade de seus versos, produtores de beleza solene. Assim, o primeiro impacto do leitor de sua poesia, diante do aspecto tosco do material conservado no arquivo, leva-o a concluir que o efeito sublime resulta de práticas inesperadamente corriqueiras. Uma escrita construída pelo contraste entre um forte misticismo conservador e a ambição de destacar-se da mediania e chocar com o inusitado de uma fantasia libertária constitui a marca estético-biográfica que identifica a assinatura Jorge de Lima. Nada de precioso se guarda em seu arquivo. Onde se espera achar cadernos de estudo dos clássicos antigos, só se pode surpreender coleções de recortes da imprensa diária: informações sobre prêmios literários, concertos e teatro, em meio a uma profusão de notícias (importantes e descartáveis, significativas e fúteis, repetidas de jornais do país inteiro) referentes a cada passo da carreira do médico poeta.
Essa enorme coleção de recortes, composta, ao longo de quase cinco décadas, em grandes folhas encadernadas que perfazem vinte e sete volumes, impressiona, imediatamente, o pesquisador como índice de indisfarçável narcisismo. Desde muito jovem, no começo da carreira de médico, quando buscava também fazer-se poeta adulto depois de alguns sucessos de menino precoce, Jorge de Lima (ou alguém a seu pedido), percorria jornais da cidade e do país para guardar toda e qualquer referência a seu nome. Ainda que fora de ordem, reportagens ilustradas, notas sociais e tópicos breves de coluna de variedades (devidamente datados e referidos ao periódico onde apareceram) sucedem-se numa cartografia ambiciosa e desajeitada de personagem na busca sôfrega de reconhecimento.
O recorte que abre a coleção – trecho da “Crônica literária” de Ronda, periódico alagoano – tem data de 1917 e apenas inclui o nome de Jorge de Lima entre a “nova geração” de poetas. Próximo a esta nota, aparece o soneto “Espera”, no Jornal de Alagoas de 21 de agosto de 1917, atestando a popularidade de amostras da fase parnasiana, que marca sua estreia prematura. Dessa fase inicial, o destaque, tornado antológico, é “O acendedor de lampiões”, cuja publicação, em jornais da Bahia e do Piauí, sob o nome, já conhecido, de Hermes Fontes, causa protestos em folhas alagoanas de 1916. Mas o poeta, ainda que dedicado à “arte pela arte” dos sonetistas bem comportados, frequenta muitos outros espaços da sociedade, certamente orgulhoso desses trânsitos. Notícias coladas, nesse primeiro caderno, dão conta da carreira bem começada do médico e das repercussões de sua entrada para a política estadual. Valem, pela ironia simpática, as palavras do repórter do Brasil Jornal de 17 de junho de 1920, que aplaudem a nova trajetória parlamentar: “Parabéns ao belo poeta do ‘Acendedor de lampiões’. Sua eleição é uma necessidade, pelo menos para chegar o fósforo a muitos lampiões apagados que existem no Monroe” (J. Reporter apud Lima, Recortes 1, AMLB).
Nas décadas seguintes, quando o escritor já vive no Rio de Janeiro, bem conceituado na prática da medicina e com prestígio garantido pela crítica nacional e portuguesa, além de detentor de prêmios latino-americanos, a quantidade de recortes aumenta, em vez de reduzir-se à seleção de tópicos efetivamente importantes. Em 1936, grandes jornais cariocas e paulistas, que fazem a cobertura da Academia Brasileira de Letras, pronunciam-se sobre o currículo múltiplo de Jorge de Lima, candidato duas vezes. Como exemplo, A Noite de 22 de dezembro inclui em seu perfil: médico, antigo professor de literatura, em Alagoas, membro da Comissão de Literatura Infantil do Ministério da Educação, poeta, romancista, historiador, autor de teses científicas, entre as quais “A questão das raças no Brasil”, publicada em Leipzig, em alemão.
Ao longo da década de trinta, Jorge de Lima, depois de atravessar a fase de experimentos modernistas, quando tematiza, com humor leve, comportamentos e ritos populares, especializando-se, em certo momento, nas tradições afro-brasileiras, vai fixar-se, como sua dicção característica, no verso livre e denso da poesia espiritualizada de orientação católica, que teve início, em parceria com Murilo Mendes, com Tempo e eternidade. Durante esses anos, também publica romances, que chamaram a atenção da crítica: Calunga e O Anjo. Sua poesia da maturidade consolida-se em A túnica inconsútil. O final dos anos trinta marca a presença constante do nome e da assinatura do poeta na imprensa. Além da facilidade – e possível gosto – de fazer circular suas ideias através de artigos rápidos, dirigidos ao leitor apressado do jornal, o poeta parece acolher, com simpatia, todos os repórteres, que vão entrevistá-lo. Assim é que, a revista Vamos Ler publica longa conversa do poeta com Joel da Silveira. Para tratar da situação recente de sua matéria predileta, Jorge de Lima, logo de entrada, menciona a circulação de sua experiência artística fora dos livros, em conferência (1935) na Escola de Belas Artes e, em cursos regulares, seja no ginásio de seu estado, seja como professor de literatura luso-brasileira na Universidade do Distrito Federal. Parece que, para dar peso às suas palavras, é preciso invocar a atividade social onde esta se faz reconhecida. No entanto, os termos em que formula seu julgamento da atividade poética contemporânea apoiam-se nas grandes questões filosóficas: “As palavras desta época haviam culminado numa demorada meditação, numa prolongada observação da essência eterna da poesia” (Silveira apud Lima, Recortes 10, AMLB).
Diante dessas provas evidentes de interesse pela ação comunitária – como deputado estadual, vereador, candidato à Academia de Letras, presidente da Casa de Castro Alves – e de inegável gosto pela publicidade, pergunta-se: será um caso de compulsão pela fama? Os testemunhos de seus contemporâneos registram, ao contrário, a impressão de tranquilidade e modéstia. Para um exercício de crítica biográfica, é necessário enfrentar esse impasse. A par da força crescente da linguagem poética, mais auto-exigente a cada novo livro, propõe-se como contraponto possível as falas transcritas na imprensa, simplificadoras e apegadas a expressões convencionais. Cabe considerar que seu último trabalho literário foi a elaboração de suas memórias, publicadas aos capítulos no Jornal de Letras, entre outubro de 1952 e junho de 1953, quando tiveram de ser interrompidas. Por isso, seus oito capítulos cobrem apenas a infância, a juventude e o início da carreira médica.
Mais do que um empenho da maturidade em fazer-se próximo aos leitores, “Minhas memórias” é uma escrita quase tão esteticamente elaborada quanto a poesia. Sem recorrer a nenhum expediente facilitador, o artista convoca todo um léxico erudito, da poesia e da ciência, e, em vista do impacto estético, recupera um vocabulário regional, que contaminasse a versatilidade adulta com o ritmo fabulatório e o léxico do menino alagoano. Vale a pena seguir o ritmo e a melodia dessa música em prosa: “Vivi esses estirões de terra mangueada, aningada, massapeada, vivi com os pés no chão entre laguna e mar, entre raiz e mangue, em água salobra, mestiçada como cambembe, eu aluviônico, eu baixio, eu terra (Lima, 1958, p. 117)”.
A “guerra” dos meninos assim também dramatiza o estridor de sua violência:
(…) chegam com cadelas, com canivetes, lanham este, esmurram aquele, caem no chão, voam como caninanas, voltam em corrupio, rebulindo como carrapeta, braços de tesoura, zan, zan, zan, outras nações colaborando, os países de minerais, piás cretáceos, piás de granito, malabaristas calcários, camaradas argilosos, cupidos morenos com bodoques, sagitários com alfinetes, paus-de-urtiga, bicos-de-tucano, unha-de-urubu (…) (p. 121).
Cada um dos capítulos tem sua dicção própria para construir cenas vivas do imaginário das crianças do sertão. Sem dúvida, sabendo que registrava seu legado, Jorge de Lima recupera o encantamento pelo mundo rústico, que explora. Nessa série de instantâneos de uma intimidade sôfrega e fantasiosa, percebe-se o combate tenso entre ousadia e insegurança. Veja-se o caso paradigmático de “Cambembe” (capítulo III). Para ultrapassar, com orgulho, restos de mágoa e a vergonha colados ao artista-menino, evoca a lenda dos caetés, desertores da batalha, que se acomodam, felizes, à beira das lagoas, pescando sururu e “tocando gaitas de bambu” (Lima, 1958, p. 116). Pois, era de cambembe que o chamavam quando se retraía, no passado, das “guerras” de meninos; é de cambembe que se chama, quando, no presente da escrita, mede-se com “grandes pretenciosos, grandes guias, formidáveis reformadores” (p. 114). Insinua o sentido pejorativo de “cambembe” para ironizar a pretensão dos que minimizam a alteridade, seja étnica ou artística. Recupera a face afirmativa do epíteto, quando discorda de certa radicalidade míope das ideologias: “Agora, eu simples cambembe anoto à margem de Marx essa coisa curiosa” (p. 116). Pode-se entender que, em sua trajetória, buscava desempenhar-se bem na medicina e na arte, exibia sua erudição nas provas de concurso e na escrita literária, porque deixava-se perseguir por certos fantasmas do heroísmo, certa expectativa de vitória. Ao mesmo tempo, com sua sensibilidade de poeta e sua preocupação solidária com os que se equilibram em profissões marginais, apegava-se ao legado cambembe de sua terra; era gentil na derrota e fazia-se exímio no solo lírico.
Mencionou-se, acima, o desnível evidente entre a elevação sublime da linguagem artística – mesmo quando tocada de humor cruel – e a banalidade do material preservado. Tais contrastes acentuam o enigma da figura delineada na página dos livros e fragmentariamente inscrita no teor dos recortes e nos poucos manuscritos. O trato com o arquivo faz crescer o interesse da pesquisa. Numa tirada feliz, transcrita na biografia assinada por Povina Cavalcanti, Magalhães Júnior compara o poeta Jorge ao “engolidor de fogo” do circo (Povina Cavalcanti, 1969, p. 194). Talvez essa figura impressionante, que emerge na memória das crianças de outro tempo, sirva, mesmo, como emblema da escrita grave, lúdica, sensual e mística, que mais atrai quanto menos se deixa decifrar – escrita que, embora bem recebida na época do lançamento, hoje se insinua, rarefeita, em reedições ocasionais e esparsas publicações de luxo.
Para localizar o poeta em seu ambiente e observar as relações assimétricas entre a trajetória ascendente de sua invenção poética e a desconcertante pluralidade de sua figura pública, deve-se ajustar o foco em uma imagem recorrente nas reportagens e artigos críticos – o consultório médico. Quando se pronuncia sobre a publicação de A túnica inconsútil, Mário de Andrade considera:
Já muito se comentou, se elogiou e se caçoou sem maldade dessa espécie de salão literário que é o escritório de médico do poeta. Porque médico é Jorge de Lima, e digo por minha experiência, bom médico (…). No escritório dele há verdadeiramente duas salas de espera: uma para os clientes de medicina e outra para os clientes da poesia. E, como é de se esperar, esta última sala é bem mais espaçosa e higiênica (Andrade. In: Lima, 1958, p. 417).
De modo semelhante pronunciou-se José Condé, quando entrevistou o poeta para O Cruzeiro em 18/09/1937 (“Ouvindo uma geração”):
Procuramos o sr. Jorge de Lima em seu consultório. O ambiente lá não é exclusivamente médico, mas artístico também. Veem-se pelas paredes quadros a óleo e desenhos de vários bons artistas brasileiros: (…) Cícero Dias (…), Guignard, Santa Rosa, Cortez, Teruz e outros. Retratos de José Lins do Rego, Manuel Bandeira, Murilo Mendes e Mário de Andrade. Tudo isso ladeado de aparelhos clínicos, caixas de remédios e livros. Sobre a secretária do poeta, uma boneca de pano, pretinha, que nos traz a lembrança da negrinha Fulô… (Condé, 1937, apud Lima, Recortes 7, AMLB).
Esse cenário intriga os visitantes porque mistura objetos, atividades e pessoas que o bom senso considera incompatíveis. No seu empenho de dignificar-se na figura do “cambembe”, fazendo convergir, em harmonia tensa, impulsos e ações contraditórios – o desejo de conquistas e a acomodação na pesca de sururu, o descaso com o corpo e o capricho com os sons da gaita – o médico, que se fez professor, presidente de associações e deputado, importa para a vida o mesmo rigor estético que aplica na construção da arte. No clímax da carreira, quando se dispõe a avaliá-la, busca, no passado de sua terra, o emblema que melhor cabe no espaço fantástico, onde os sentidos e valores se mostram insólitos: o sertanejo que oscila entre “caeté” e “cambembe”, líder da tribo e criatura que cultiva a preguiça para melhor absorver-se na sua arte. Por isso mesmo, a escrita, que percorre a intimidade e o cosmos para rastrear a “Biografia” de Orfeu, registra:
Cintilância noturna, lírio ardido,
senda de combustão e vida nossa,
estrela de viajor, túnica veemente,
roseira ardente e chama consentida,
cratera viva a que vulcões se engolfam
como os uivos aos lobos. Convergências (Lima, 1958, p. 861).
Se, na maturidade, o médico-poeta, mantendo a aparência ambígua de seu local de trabalho, mistura, ostensivamente, as tarefas técnicas e as artísticas, este é seu modo visível de contrapor-se às especialidades do saber moderno, tanto quanto – “cambembe” convicto – à obrigatoriedade capitalista de acumular fundos e bens para “aguentar a vida econômica de um cidadão” (Lima, 1958, p. 148). Já nos primeiros tempos de formado em medicina, depois da publicação de alguns volumes de literatura, dedicou-se a compor uma escrita cuja dicção mítica condensasse informações selecionadas do saber científico a fragmentos da tradição poética. Em 1923, dedicou a João Ribeiro a edição bem cuidada desse ensaio singular – misto de solenidade grave, registro do pitoresco e certo tom de desafio irônico – nomeado A comédia de erros. Mesmo considerado “péssimo livro” (p. 154), no capítulo VIII de suas lembranças autocríticas, não é o caso de desprezá-lo. Trata-se de um exercício curioso de contaminação entre temas, gêneros e estilos conflitantes.
Numa quase-fantasia de história da ciência e história das sociedades, que abarca o panorama cosmológico, da formação da Terra ao aparecimento do homem, e termina, fechando o foco, em crônicas da terra do autor, quando esta ainda era a vila “Cerca-Rial-de-Macacos”, o escritor arregimenta um amplo vocabulário, com termos fora de uso, para apontar desvios e escorregões na trilha do conhecimento. Enquanto a ciência experimenta um progresso intermitente, a arte produz momentos iluminadores, irredutíveis a fórmulas. De permeio, a religião expõe sua leitura do universo. Vale citar alguns trechos-amostra, pois o livro nunca mais foi editado.
I – CAOS (chaos)
Consideremos a molécula do carbono. / Não há conjugado mais poderoso, devassando os segredos da vida, catalogizando, seriando na escala dos hidrocarbonetos, com o metro, a proporcionalidade das progressões aritméticas (…). / (…) / Caos! Sendo esta palavra um símbolo da escritura sacra, sê-lo-ia, porventura, na ciência dos homens? Faltavam-lhe de complemento, para mais inteligíveis, certos valores numéricos, a cada letra correspondendo um, e que físicos e metafísicos lhe não enxergaram, porque nos surtos peripatéticos das suas elocubrações voltaram o passo às fórmulas da biologia, onde ela está no frontispício, e é o monstruum universale, por antinomia, da própria vida, a walking shadow, na mais acertada expressão de Shakespeare (Lima, 1923, p. 6).
V – NO MEU BURGO – Cerca-Rial-de-Macacos
A nossa preclara cidade natal, antiga Imperatriz, teve originariamente o nome de Macacos, “Cerca-Rial-de-Macacos” (p. 77).
O Zé das Neves da Gaudência (da Gaudência, dizia o povo, apesar dos cônjuges viverem à parte), encontrara devolutas algumas braças de caatinga nestas redondezas, onde a fantasia dos menos afeitos a visionar temia a intromissão noturna dos espectros. E aí construiu “penates”, dotando o filho, que o apageava solícito, como as farófias do Münchauser, o comentário sonoro da risada (p. 81).
Compreende-se que o poeta maduro e médico respeitado, das décadas seguintes, quisesse esquecer o livro da juventude, com seu estilo pernóstico e sua ambição desmedida. No entanto, visto à distância, o exercício literário extravagante (sintomaticamente dedicado ao grande professor de língua portuguesa) apresenta-se como laboratório de escrita, meio de testar a potência e os limites das palavras cujo jogo sonoro e visual, para além do significado, tornou-se a base do efeito poético nos textos futuros. À medida que se examina, através do arquivo, a trajetória do artista, a impressão captada – cabe insistir – é de um esforço continuado de transvaloração de materiais. Temas e perspectivas, léxico e sintaxe, ritmo e tom – nada resultou de intuições imediatas. Em seu entusiasmo ansioso, o poeta recolhia materiais grosseiros e se lançava a experimentos, sempre com alguma ousadia. À custa do trabalho, é que a pletora de possibilidades testadas pode ir-se reduzindo. Dando-se conta dos “erros” de escolha e articulação, mas firme em seu desejo de promover a “convergência” de objetos e espaços distintos, é que atinge o ponto sublime, no próprio encadeamento excessivo de seus versos. Observe-se que Jorge de Lima, no afã de construir sua obra, talvez não se desse conta de que a veemência retórica pode trazer resultado eficiente. Em 18 de março de 1937, num comentário sobre Os sertões para a revista Vamos Ler, condena Euclides como “fanático da antropologia física” e desentende a denúncia contida no livro, considerando-o ultrapassado. Não percebe que também recorreu aos conceitos de variadas correntes científicas e a preciosismos de escrita para chegar ao efeito sedutor de suas estrofes enigmáticas.
No percurso de Jorge de Lima pela produção poética – percurso já muitas vezes delineado, que começa com os sonetos parnasianos de XIV alexandrinos (1914), passa pelos Novos poemas e Poemas negros, onde se reúnem os exercícios de nacionalismo modernista com o verso livre, num trabalho com a tradição popular, retorna ao horizonte cosmopolita sem abandonar o verso livre, em Tempo e eternidade (1935), que se propõe “restaurar a poesia em Cristo”, em parceria com Murilo Mendes, e vai-se consolidando até que culmina na indiscutível maestria de Invenção de Orfeu (1952) – é flagrante a importância do intercâmbio, tanto no plano artístico quanto crítico, com o companheiro de experimentações a propósito das linguagens do erotismo e da mística. A conquista gradual de uma dicção apropriada, certamente, tirou proveito da convivência com a densidade grave e tensa – não desprovida de humor sutil – da poesia de O visionário e Mundo enigma. É o próprio Jorge de Lima que reconhece a mão do amigo no impulso de sua aprendizagem lírica. Veja-se como J. Fernando Carneiro reporta seu depoimento, em artigo (26/08/1951) sobre o cinquentenário de Murilo:
Há dias conversava com Jorge de Lima sobre Murilo Mendes e Jorge me dizia que conhecera Murilo em 1930 e que, desde então, nunca mais pudera escrever sem pensar no leitor Murilo Mendes. E acrescentava: – “Se Murilo não tivesse aparecido na minha vida, minha poesia teria se tornado ruim. Murilo foi o anjo que me salvou” (Lima, Recortes 26, AMLB).
Em 1939, Murilo publica A poesia em pânico, coletânea cujo título de impacto confirma a liberdade da construção artística, dirigida contra os constrangimentos da arte poética. A exploração do espaço fantástico por parte dos poemas murilianos torna sua aspiração a um catolicismo transcendente nada menos que um gesto revolucionário. Não é preciso acrescentar que tal lançamento teve grande repercussão na imprensa e que Jorge de Lima guardou, entre seus recortes, várias desses comentários críticos, como o de Ruy de Carvalho e o do português Manuel Anselmo. A circunstância ficou marcada no imaginário do artista, que vinha fazendo também experimentos com as artes plásticas. Desde o início da década de trinta, certamente com alguma participação do companheiro, Jorge de Lima explorava, respondendo a sua insaciável curiosidade, a moda artística das fotomontagens. Os frequentadores de seu consultório podiam ver os produtos de seu novo interesse e Mário de Andrade opinou positivamente sobre a pequena série de tais colagens, recebidas da parte do autor. Foi assim que, em 1943, Jorge de Lima reuniu 40 pranchas fotográficas num livro a que deu o título de A pintura em pânico. Apropriando-se da expressão de Murilo Mendes, com o mesmo intento exploratório e questionador com que se apropriava das imagens recortadas, Jorge desafia o bom gosto com o rigor cruel aprendido da prática surrealista.
Num artigo escrito para o “Suplemento em Rotogravura” de O Estado de S. Paulo, em novembro de 1939, artigo reproduzido na reedição recente de A pintura em pânico (Caixa Cultural, 2010), Mário de Andrade trata, em tom leve, da fotomontagem como uma brincadeira transformada em mania. No entanto, avisa: é “um processo de expressão lírica” (p. 19) e tem cultores entre artistas de diversas tendências. Essas considerações servem para apresentar algumas fotomontagens de Jorge de Lima, onde o poeta-crítico encontra “tal habilidade técnica e possibilidades expressivas, que pode sofrer perfeitamente comparação com outros artistas célebres, que as revistas estrangeiras nos mostram” (p. 20). No espaço público carioca, essa habilidade inventiva de Jorge é notória, tanto assim que aparece, em 08/07/1939, uma longa reportagem, “A découpage – processo de gravura surrealista”, produzida por Danilo Bastos a partir de “uma palestra” com o poeta. Este ressalta a adoção da técnica pelos surrealistas mas adverte que é muito anterior ao movimento. Munido de livros franceses especializados no assunto, o poeta explica que a découpage foi um entre os “meios mais extravagantes” de que os surrealistas lançaram mão “para atingir a poesia pura” (Bastos apud Lima, Recortes 10, AMLB). Efetivamente, se se observar a construção da poesia limiana da maturidade, poder-se-á perceber que é resultado de seleção e recorte de imagens verbais do amplo acervo literário absorvido pela imaginação do poeta.
Se é lícito tomar a fotomontagem como amostra do trabalho lírico-artesanal de compor poemas modernos – incluindo-se o impressionante experimento épico Invenção de Orfeu – vale a pena deter-se no acervo de imagens incluído entre os guardados de Jorge, para conhecer seu processo de composição plástica e verbal. Esse expediente mostra-se indispensável, uma vez que não se tem acesso à biblioteca do poeta e só se encontram raríssimas anotações e rascunhos dentre seus papéis arquivados. Surpreende a variedade de imagens selecionadas e conservadas. Do material de trabalho, aí representado, ressalta a ausência de preconceito da curiosidade estética. Ao lado de postais e recortes de charges, há um guia da coleção de arte grega do Metropolitan de Nova York e várias fotografias de monumentos; em contraponto a reproduções de pintura renascentista, encontram-se reportagens sobre as atividades de Salvador Dali nos Estados Unidos e exposições da pintura brasileira moderna. Além dessa convivência estreita da tradição mais estritamente canônica com o maior ecletismo das experiências de vanguarda, os veículos da cultura de massa se veem acolhidos como fonte de investigação das possibilidades de desenvolvimento e articulação de formas e volumes. Numa pasta nomeada “Motivos de pintura”, encontram-se recortes de figurinos, com belos modelos vestindo costumes da moda; reproduções de arte sacra; cenas de culturas exóticas, exibidas pelo National Geographic, fotografias de esportes, máquinas, prisões e turismo na linguagem própria da imprensa popular.
Fica evidente que a dicção clássica do poeta resulta de sua imersão perspicaz e rigorosa na velocidade complexa da vida moderna. Ele mesmo confirma a necessidade imperiosa de abandono das convenções, ao destacar, no texto de apresentação da mostra das esculturas de Bruno Giorgi, em outubro de 1948, a escolha da “livre pesquisa e [d]o trabalho solitário” em rejeição aos “processos medíocres da rotina do ensino” (catálogo, Cx. 12, AMLB). Quando define a carreira do escultor como “estrada real”, por caminhar “entre o classicismo e o modernismo”, e lhe atribui a “sóbria monumentalidade que só Mozart conseguiu nas geometrias de suas composições” (idem), está, na verdade, caracterizando sua própria obra.
É sintomático que os recortes, colecionados para servirem de “motivos de pintura”, tenham saído, na maioria, de jornais e revistas da década de quarenta – o momento em que Jorge expunha quadros, produzia as fotomontagens, escrevia tanto os sonetos da maturidade quanto Anunciação e encontro de Mira-Celi e ainda se preparava para a grande aventura de Invenção de Orfeu. Essa década fértil corresponde ao máximo rigor na observação de um imaginário cultural de tempos e espaços diversos, para daí recortar os fragmentos mais instigantes. A forma rara e sugestiva poderia estar tanto num desenho de publicidade quanto numa reprodução de pintura consagrada. O movimento de construção dos poemas – em especial de Invenção de Orfeu, investigação poética que reescreve a épica clássica em dicção moderna – também se faz dos gestos virtuais de recorte e colagem. Se a maioria dos materiais é nobre, resgata os fragmentos antológicos do topo do cânone ocidental, seu impacto ganha atualidade na convivência com o tom coloquial das frases, captadas de cantigas populares mestiças, de imagens corriqueiras e chocantes, que entram pelas janelas dos prédios metropolitanos, e de fiapos de memórias, evocadas no movimento lírico de devir-criança do poeta. No oitavo canto, que biografa o poeta – personagem múltipla, condensadora de gerações de artistas – e o poema – caracteriza-se o espaço onde se cruzam ecos da poesia em diferentes momentos e climas:
Ó meninos, ó noites, ó sobrados,
ó sonetos vindouros, quatro nandares
de rimas e azulejos, Isadoras,
Isas, Ineses, Lúcias, inda em flor,
os dias transformando-me e a vós outras
relativas pessoas. Nós aqui (Lima, 1958, p. 870).
* Marília Rothier Cardoso é professora associada da PUC-Rio, publica artigos críticos com apoio em arquivos literários em periódicos especializados; lançou, com Eneida Maria de Souza, o volume Literatura toda prosa, na coleção “Modernismo + 90”.
Referências
Arquivo Jorge de Lima – Arquivo Museu de Literatura Brasileira da Fundação-Casa de Rui Barbosa
LIMA, Jorge de. A comédia de erros. Rio de Janeiro: Jacintho R. dos Santos, 1923.
LIMA, Jorge de. A pintura em pânico. Rio de Janeiro: Caixa Cultural, 2012. Também acessível em: http://www.apinturaempanico.com/fotomontagens.html#
LIMA, Jorge de. Obra completa. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Aguilar, 1958. v 1.
POVINA CAVALCANTI. Vida e obra de Jorge de Lima. Rio de Janeiro; Correio da Manhã, 1969.
Nota
[1] Por equívoco, o canto “Biografia” é referido como “sétimo” mas, em todas as edições publicadas, ocupa o oitavo lugar.