dossiê
Tempo de leitura estimado: 30 minutos

DOIS CONTOS SOBRE LITERATURA E MERCADO

<em>Leitor</em>, de Augusto Herkenhoff
Leitor, de Augusto Herkenhoff

 

Desperdício
Acordou com o corpo dolorido, a boca seca e a impressão de ter esquecido alguma coisa. O contorno impreciso dos móveis, o brilho embaçado de um espelho e a indiferença da cama sob o grande corpo nu lhe lembraram onde estava: dormira sem perceber, depois da intensa atividade física (a editora-chefe costumava ser bastante exigente). Por trás de um mal-estar vagamente líquido – seu estômago ainda estava estufado da cerveja do almoço –, banhava-o a luz do autocontentamento. Mas como sofrera até chegar ali! Depois de atravessar a feiura de uma infância e adolescência remediadas, passara anos dando aulas no pré-vestibular para alunos enfastiados de 15 a 18 anos, dia após dia carregado de trabalhos e provas que nunca terminava de corrigir e que temia fossem contaminá-lo. Viera então o prêmio tão sonhado, justo no momento em que assumia para si mesmo a nobreza da renúncia. Finalmente, começara a vender alguma coisa. Então tivera de ajustar sua atitude, ostentando um leve desprezo pela glória que combinava às maravilhas com a onda de interesse que o atingia: era um escritor talentoso que desprezava as coisas mundanas e permanecia dedicado à causa da literatura. Trazia sempre a barba malfeita, os cabelos desgrenhados e a blusa amarrotada de quem virara a noite lutando com demônios interiores, e oferecia aos que o visitavam no seu bunker em Botafogo a iguaria exótica que fazia a delícia das matérias de jornal: arenque defumado acompanhado de um cálice de conhaque, herança das reminiscências judaicas do avô. Uma vez tinham-lhe dito que um escritor devia ter alguma peculiaridade, e como esta lhe pareceu bastante convincente, não se importava de gastar parte do prêmio no arenque redentor.

Dan Ilitch espreguiçou-se, sentindo a cama lhe faltar embaixo dos pés. Era muito alto; seu corpo crescera tanto e tão rápido que se vergara já aos 15 anos. Assim, cedo parecera mais velho do que era, o que, somado à sua timidez algo lírica, despertava certo interesse nas mulheres, principalmente nas mais velhas. Mais tarde, apaixonara-se e casara-se com uma professora de história do segundo colégio onde trabalhara, mas se separaram três anos depois, por razões que desconhecia: a única coisa que conseguia pensar era na metáfora de um fósforo apagado. A partir da metáfora, começou a escrever furiosamente o que viria a ser o seu grande romance – os dois anteriores tinham sido ignorados pelo público e pela crítica. O prêmio, o prestígio e as vendas o haviam colocado em outro patamar e ele não hesitara em aproveitar a maré. Aos 40 anos, voltara previsivelmente à adolescência que não tivera, o bunker convertido em local de abate. Mas logo aquilo tudo o enfastiara. Para seu desespero, começou a ter dificuldades de ereção: mais de uma vez, teve de gaguejar desculpas para os corpos descrentes ou apiedados em sua cama. E, como uma súbita revelação, percebeu que estava apaixonado pela editora.

Levantou-se num pulo e foi até o banheiro. Não gostava de motéis, mas a editora estava sempre com pressa e determinava seus encontros com o doce autoritarismo que era parte do seu encanto. Abriu o vaso, onde despejou um longo jato enquanto olhava para a parede branca e via o rosto emoldurado pelos cabelos indo e vindo sobre os seios pequenos e perfeitos. Sentiu uma pancada de emoção ao imaginá-la circulando pela Feira, dando entrevistas, falando do seu livro – “o Borges brasileiro”, “labirinto tragicômico de identidades” –, e depois o encontro a dois, comentando e rindo da curadora, dos editores, dos outros autores. Seria um tédio conversar com eles, dar entrevistas, ir a eventos sem a sua presença luminosa.

De volta à casa, foi direto à escrivaninha. Seu santuário. O sagrado ao lado do profano, o mundo inteiro na ponta dos dedos. Isso e mais alguma coisa.

Porém, preferiu não abrir imediatamente o seu início de romance, provisoriamente intitulado Bagatela, porque antes precisava refrescar a cabeça na rede social. De cara, checou sua última publicação na linha do tempo, uma citação de Neruda: versos sobre o silêncio e o vento marinhos. Uma mensagem que podia ser dirigida a pelo menos umas cinco mulheres. Quantas havia pescado daquela vez? No balaio das curtidas, duas lhe provocaram a pequena comoção: uma fã que o vinha acompanhando com avidez e uma escritora que ele mirava há algum tempo. Foi até a página da fã e adejou pelas fotos, todas mais ou menos artísticas: cabelos sobre costas desfocadas na qual brotava a pequena tatuagem tribal; um pé com unhas vermelhas contrastando com um céu de turquesa; quadros de Frida Kahlo; e, mais adiante, um grupo animado de jovens em risos congelados diante de canecas de cerveja. Boa ideia. Na geladeira, pegou uma latinha (Devassa) e levou-a até o computador. Fotos de Londres. Um grupinho de nomes razoavelmente constante comentando citações, compartilhamentos e imagens diversas, desdobrando seus kkkks, emoticons e piadinhas internas. Em outros tempos, entrar na vida do outro daquela forma equivaleria a um estupro. Parecia pornográfico – seria por isso que a rede social era tão excitante?

Vejamos o seu caso: um homem maduro, curvado pela altura e pelos pensamentos (no final do casamento, sua ex-mulher dizia que o ar lá em cima devia ser rarefeito); um escritor cujos únicos filhos eram os livros, relançando uma nova edição do seu premiado romance num evento destinado a consagrá-lo, conduzido pela mulher que adorava, e, no entanto, assaltado pelo tédio e pela desconfiança de si mesmo, como se fosse sempre um outro em seu lugar; ao lado, os pixels de seu livro incomeçado latejam de desejo. Esse gigante, com seu arenque defumado, suas unhas há muito não cortadas, sua cerveja quente, também gosta de brincar. Pornografia e donjuanismo – dois mitos reciclados pela tecnologia – o esperam. Talvez uma mulher do outro lado lhe diga “Meu Deus, como seu talento é grande”, ou “Adoro beber Devassa”… Talvez a deite algum dia na sua cama, abra suas longas pernas e conheça mais uma vez uma mulher – que se transformará rapidamente na mesma de sempre.

Mas, é claro, jamais escreveria sobre isso.

Enquanto se abastece com a quarta latinha de cerveja e mastiga furiosamente um punhado de amendoins, percebe que a tal autora caracterizada no jornal de sábado como uma promessa da literatura e cujo livro havia comprado também havia curtido seu último post, assim como alguns outros anteriores. A foto do perfil mostra olhos ligeiramente estrábicos, inocentes, sobre uma boca semiaberta. Não resiste e abre a janela do chat: dirá que comprou o livro e está ansioso para conhecê-la. Em vez disso, escreve: sua boca é deliciosa. E, no mesmo instante, se arrepende.

Na rua, custou a decidir aonde iria. Não estava com fome, mas cairia bem tomar um café e comer uma torta. Um menino descalço se aproximou engrolando um “tio, me ajuda aí”. Como sempre, sua carteira só tinha cartões de banco, que usava para todas as ocasiões. Apertando o passo, balançou a cabeça algumas vezes ao mesmo tempo que sacudia os bolsos vazios, à guisa de justificativa. Mesmo assim, o menino continuou seguindo-o, sempre repetindo o arrastado “tio, tio, tio…” Uma das suas livrarias preferidas estava bem próxima, e foi lá que entrou em terra firme.

Os livros lhe trouxeram a calma de que tanto precisava. Devagar, foi percorrendo a bancada; ali estava seu último romance e os de alguns de seus colegas. Dan Ilitch nunca deixava de se sentir um impostor ao ver seu livro exposto. Não era como mostrar sua alma; era mais como exibir suas roupas, com um furo nas calças. No centro da livraria, pilhas em formato de estrela de Davi dos mais recentes best-sellers estrangeiros formavam um exército colorido. Pegou um deles, folheou-o sem muito interesse. Lixo. O tipo de narrativa com personagens irritantemente previsíveis e ganchos óbvios como cenouras na frente de coelhos. Passou os olhos pelos romances pretensiosos que vinham assolando a literatura nacional. Escolheu dois livros – o lançamento policial de um autor estrangeiro de que gostava particularmente e o romance de um autor prematuramente consagrado – e levou-os para o balcão, onde poderia lê-los enquanto bebericava o café com biscoitinho. Na verdade, pedia o café por causa do petit four, delicioso e minúsculo, que o acompanhava. Aproveitou para mandar uma mensagem para a editora pelo Whatsapp: quem sabe ela já teria algo a dizer sobre o início do seu romance.

Sua tranquilidade durou pouco. No meio do salão da livraria efervescente, viu aproximar-se um velho escritor, ou escritor velho, que era, ou pretendia ser, um medalhão. Ele agarrou seu cotovelo e começou, sem piedade: grande figura! Por que plagas andas? Ah, vai pedir um café? Vamos, vamos. Adoro o bolinho que vem junto. No celular, o sinal azul indicava que a editora havia lido a mensagem. O medalhão estava louvando a entrevista que lera na primeira página do caderno cultural, na qual o escritor talentoso, ao lado de outros participantes da Feira, falava do presente e do futuro da literatura e do mercado editorial.

Enquanto Dan pensava em como poderia escapar, ia respondendo: claro; parece que as perspectivas são boas; bom, isso é você quem diz; generosidade sua; é mesmo um mistério o que faz um livro vender; conluios editoriais não bastam; magia, talvez; o espírito do tempo… No seu cérebro, contudo, latejava uma frasezinha: foda-se, foda-se… Para o diabo os encontros, as mesas-redondas, as entrevistas. O processo criativo. O próximo romance. O pior é que coisa semelhante o esperava na Feira, um longo desfile de obviedades e frases de efeito disparadas pelo gatilho previsível dos jornalistas – exceto nos momentos que poderia compartilhar com a editora. Nesse ponto, lembrou dolorosamente que há quase um ano não conseguia escrever nada realmente decente. Para desviar a atenção da punhalada familiar que o atingia, mudou o corpo de posição e disse alguma coisa. Você acha?, o medalhão respondeu. Acho! – convicto, mas sem muita certeza do que dissera exatamente; algo como “a informação invadiu o terreno da literatura”. Na tela do celular, nenhuma resposta.

– Hum, interessante… interessantíssimo… – ruminava o medalhão. Seu olhar cintilava de possibilidades, como se considerasse a ideia de utilizar a frase no seu próximo romance.

Uma menina o olhava fixamente do outro lado do balcão. Observando melhor, não era uma menina, mas uma mulher – só a roupa era de garota. De repente, lembrou de onde a conhecia: da sua própria cama. Ele a levara até lá num dia de solidão existencial em que tentava reencontrar a potência recém-perdida, após tê-la seduzido pelo Facebook. Ele respondeu ao aceno como o carioca descolado que era (ou fingia ser) e interrompeu o medalhão: desculpe, desculpe, preciso ir ao banheiro. E correu até o cubículo de elegantes portas negro-piano, onde passou alguns minutos dobrado sobre si mesmo, sufocado por um ataque de ansiedade. Segurou seu pau com agressividade e em poucos minutos tinha terminado. Não fazia muito sentido, mas naquele momento nada parecia fazer sentido: nem a repulsa pelo medalhão, nem o pânico da garota, nem o pavor de nunca mais conseguir escrever, nem a qualidade do seu reduzido número de leitores, nem a perspectiva de ampliá-los. A única coisa que fazia sentido era ela, a editora. Que não respondia. Olhou-se no espelho e abriu a torneira.

Flores de estufa

Imagine ter um jardim florido com as mais variadas espécies durante todas as estações do ano. Isso é possível graças às estufas, estruturas que, além de proteger as plantas contra possíveis ameaças externas, acumulam calor, mantendo uma temperatura maior no seu interior do que ao seu redor.

Parecia uma boa ideia começar com a descrição de uma estufa. Inaugurado em 1884 para abrigar exposições de flores, frutos e pássaros, o Palácio de Cristal – com suas paredes de vidro, o pé direito altíssimo e a diversidade de espécimes presentes – havia se transformado numa estufa humana. O estilo é que parecia inadequado: o tom didático, que deveria ser um contraponto para a linguagem sedutora que se seguiria, não funcionava muito bem. Olhando em torno de si, siderado pelas luzes do salão transparente, o jornalista via plantas, flores multiformes e multicoloridas – pena que seus conhecimentos botânicos fossem limitados. Nada que uma boa pesquisa não pudesse remediar mais tarde.

Orquídeas, por exemplo. Tenros rostos femininos desabrochavam de golas altas, rijas como os rufos da aristocracia do século XVI. Com os rostos corados, erguiam brindes, mexiam sedutoramente os lábios, varriam o salão com a cauda dos vestidos. Eram poucas, mas surpreendentemente parecidas: jovens, brancas, delicadamente maquiadas. Aproximou-se de uma delas, na bancada das caipirinhas. “Acabaram os morangos? Mas quem foi a anta que encomendou…” Claro, aquelas eram as moças da organização; quem mais investiria tempo e dinheiro num traje tão uniformemente elaborado, senão a grife estilosa que aparecia em letras gigantescas no convite da festa (um cartão com letras de feitio rococó em alto relevo dourado)?

Havia mulheres cintilando em gradações variadas de vermelho (rosas), senhoras gordas e folhudas (hortênsias), donas empertigadas (tulipas); havia jasmins doces e perfumados, e singelas margaridas, e a simplicidade dos lírios… além dos cravos de verdade, abotoados na lapela de vários homens de cartola, como devia ser. E todos aqueles homens fantasiados de Pedro II? Dentes de leão, com suas barbas lisas, prestes a se desfazer com o sopro do vento que vinha de fora. Uma lufada ergueu uma daquelas penugens, revelando um peitilho de fardão da Academia Brasileira de Letras – não havia dúvidas, era o medalhão.

Flores de estufa. Pessoas que florescem em ambientes artificiais, controlados, mas que murcham no mundo real. Uma metáfora perfeita do mundo literário e, talvez, da própria literatura. Este sim era um bom ponto de partida.

Olhando em volta, constatou que não conhecia quase ninguém. Apesar do ofício, o jornalista era de uma timidez constrangedora. Em geral, sentia-se mais à vontade em frente ao computador, dissecando os textos com a coragem que nunca tivera de colocar à prova ao vivo e a cores. Para se soltar, pediu uma caipirosca. O barman, um tipo alemão de barba e rabo de cavalo, raspou os últimos morangos, sacudiu o cone metálico e lhe estendeu o copo de plástico decorado com um guarda-chuva azul.

Mesmo considerando o indiscutível toque provinciano de que Petrópolis não conseguia se livrar, via-se numa metrópole em miniatura. Andando pelo salão, era possível ouvir conversas em inglês, em espanhol, sotaques de diferentes regiões do Brasil; altos saxônicos, caboclas perfumadas, grã-finas de membros frágeis, latinos atarracados. Todos com o indiscutível gene das artes, aquele esnobismo casual de quem se sente bem na própria pele, enquanto ele… observava.

Como é possível controlar as condições climáticas dentro da estrutura, não há restrições às espécies que podem ser cultivadas na estufa. Ela oferece o ambiente ideal para plantas de climas diferentes do que predomina no local.

“E ali floriam, como plantas viçosas ou como ervas daninhas, os mais variados botões…”. Porém, por mais que se estendesse nas analogias estruturais e florais, aquilo tinha um limite. Precisava de personagens. E, embora o editor não tivesse formulado claramente, tinha de curvar-se ao que ele chamara de “hierarquia dos escritores” – o que significava o prestígio cultivado no caldo dos prêmios, na popularidade dos blogs e páginas do Facebook, na pose que ostentavam e com a qual eram reconhecidos, enfim, no seu inefável “capital simbólico”. O problema é que, até o momento, não tivera acesso a nenhum dos escritores realmente importantes da Feira. Bebeu três goles da caipirosca e caminhou na direção de uma das Orquídeas, ao lado do pequeno palco de feltro. Aproveitou o momento em que a moça ergueu os olhos do celular:

– Com licença…

Ela estendeu uma mão espalmada, para que ele aguardasse um momento, e voltou ao aparelho. Depois, virou-se e mostrou um rosto liso em que a única dobra era um leve risco entre as sobrancelhas. Ela o conhecia?

– Sou jornalista. Estou fazendo uma matéria. Para o Speculum.

Nenhum sinal de reconhecimento ou interesse.

– Ah, sim. Em que posso ajudá-lo?

Aquelas jovens profissionais haviam adquirido todos os maneirismos das atendentes de telemarketing. Era uma menina comum mas atraente, com um pescoço comprido e um ar preocupado que contrastava adoravelmente com o rosto jovem. Tomou mais dois goles da bebida, pescou um morango com a língua. Pelo andar da carruagem, em breve acharia todas as mulheres bonitas.

– Preciso de escritores. Quer dizer, não sei se me expressei bem… É que não conheço ninguém aqui.

– Entendo.

– Então… você trabalha na organização, não é? Será que poderia me apresentar alguém?

Um garçom passou com uma bandeja de canapés. Ele pescou um de salmão com cream cheese e o engoliu inteiro, praticamente sem mastigar. Perfeito.

– Olha, eu conheço o Markus, da segurança, o Luís, da van, o pessoal da cozinha… Não conheço nenhum escritor. Se quiser me apresentar, agradeço – e deu um risinho maroto.

Interessante. Se quisesse dar uma de Gay Talese, poderia entrevistar os garçons, o Markus, o Luís e, melhor ainda, a própria garota. Debaixo do corpete, pressentia dois peitinhos trêmulos e de auréola rosada. Há quanto tempo não chupava um desses? Os da esposa tinham escurecido lamentavelmente depois do parto, sem falar que podiam esguichar a qualquer momento. Pegou um chope da bandeja de um garçom que passava e bebeu quase a metade. Estava morto de sede.

– E a curadora Maria de Lurdes Braga? Mandei um e-mail pra ela, mas ainda não tive resposta.

– Ah, essa eu sei quem é. Daqui a pouco vai subir no palco. – Consultou a tela do celular. – Em mais ou menos 40 minutos.

Ela pediu licença e saiu na direção da entrada do Palácio. Era melhor ele ficar por ali mesmo. Subiu um dos degraus que davam acesso ao palco, de onde poderia ter uma visão geral da festa. Era como um céu noturno, em que as velas eram as estrelas. Fora os holofotes do jardim, eram elas que desenhavam o panorama do salão. Ligue os pontos, e veja a imagem que se formará.

Iluminação é essencial. Se as folhas estiverem com cor verde garrafa, é sinal de que estão precisando de mais luz. E se estiverem com uma cor amarelada, estão com excesso de luz. 

Percebeu lá na frente, junto à entrada, uma agitação incomum. Uma equipe de televisão abria caminho na aglomeração, riscando-a com um facho de luz. Instalaram-se na lateral direita do salão, junto à exposição de fotos. No epicentro da clareira iluminada, uma mulher pálida, de jeans, camiseta e embrulhada num capote, piscava os olhos nervosamente. Reconheceu a autora da tetralogia de sucesso. Valeria a pena ir até lá? No mínimo, deixaria o seu cartão com ela. Entornou o resto do Prosecco – o último chope que pegara estava intoleravelmente quente – e conseguiu um lugar atrás da clareira. Como era de estatura baixa, teve de se virar com um espaço entre duas cabeças, pelo qual pôde ver metade de um rosto. Sacou seu bloco de anotações e rabiscou algumas linhas taquigráficas (“loira aguada, fotofóbica”) – até agora não conseguira converter seus antigos hábitos à sedução eletrônica.

– Jornalista?

Um homem de cabelos ralos, barba espessa e olheiras profundas espiava por cima do seu ombro. Achou que um pequeno grunhido de confirmação seria suficiente, mas estava enganado.

– Olha só essa mulher. Dá pra acreditar no sucesso dela? Alguém acha que isso é literatura?

– E desde quando literatura tem a ver com sucesso? – falara um pouco para si mesmo, um pouco para o homem. A loira, que começara com monossílabos tímidos, disparara a falar muito rápido, enquanto apertava alguma coisa na mão direita. Ele não conseguia pescar praticamente nada.

– Para onde você escreve?

– Speculum.

As cabeças à sua frente se aproximaram, fechando a fenda estreita pela qual acompanhava a entrevista.

– Ah, sei, sei. Quer saber? Só chamam as pessoas erradas.

O sujeito sacudia a cabeça, consternado. O jornalista tentou se recolocar entre um senhor idoso e uma adolescente, mas o círculo tinha enchido e agora só conseguia ver um emaranhado de cabeças, cujos arranjos – incluindo algumas ridículas coroas imperiais – impediam totalmente sua visão. Só lhe restava engolir mais uma taça de Prosecco.

Não se deve colocar as plantas muito aglomeradas para que haja arejamento entre elas e consequentemente possa se evitar o contágio de doenças ou parasitas.

– Sou escritor, mas não da panelinha – e fez uma careta.

Sua boca cheirava a guimba de cigarro. De fato, viam-se na barba desgrenhada resquícios de cinzas. Desafiando o próprio anacronismo, ainda fumava no século XXI. O homem sorria, esperando a onda de interesse que em breve o atingiria; mas o jornalista permaneceu calado. Àquela altura, a tetralogista estava perdida.

– É tudo panela. Eu, por exemplo. Já escrevi seis livros, mas nunca nenhum crítico se deu ao trabalho de ler nada, nem que fosse pra malhar. Já tive amigos do meio, mas desisti, ninguém se interessa por literatura de verdade. Tô melhor morando em Petrópolis, no sítio, criando minhas galinhas, como o velho Raduan… só que não consegui resistir e vim ver o circo hoje.

A entrevista da loira acabara. O jornalista pediu licença ao candidato a Raduan Nassar e, com o cartão de visitas na mão – feito especialmente para a ocasião –, tentou alcançar a escritora, que havia sido absorvida pela pequena multidão. Apenas alguns segundos depois, a aglomeração se desfez e o foco de interesse se dispersou.

Ocorria aquele fenômeno interessante que era o clímax de tantos eventos sociais: todo mundo parecia esticar o pescoço, farejando algo; quem conversava, procurava com os olhos outras pessoas, sempre mais interessantes que o seu interlocutor. O jornalista não era exceção. Além disso, procurava furos – e, por mais que o escritor ressentido pudesse render um bom personagem, não era suficiente. Precisava de informações sobre o prêmio Ornitorrinco: alguém, algum jurado que pudesse lhe dar uma pista sobre o ganhador, que, a esta altura, já devia estar definido. Merda, onde estavam os escritores importantes da Feira, aqueles rostos que rodopiavam tão animadamente no site? Olhou em torno de si, procurando: as pequenas chamas oscilavam perigosamente; risos espocavam como fogos de artifício; a boca de guimba de cigarro continuava falando, e agora puxava a manga da sua camisa, o que, entretanto, lhe dava uma curiosa sensação de segurança. Percebeu meio alarmado que era sua própria cabeça que rodopiava – enquanto sua outra metade ria, de puro prazer.

Sentiu um pequeno choque no peito. Do bolso da camisa, cheio de esperança, sacou o celular. Era a irmã, comunicando que a transfusão da mãe tinha corrido bem e lembrando-o, com o habitual toque de censura, da escala da semana seguinte.

Foi então que viu o girassol. No centro do fulgor amarelo, ela: olhos levemente estrábicos, tipo esguio, cabelos com reflexos dourados replicando o brilho do vestido.

– Ei!

Saiu quase sem querer. A moça girou o rosto e o fitou com expressão neutra.

– Desculpa. Reconheci você do site. – estendeu a mão. – Carlos Estragão. Jornalista literário.

– Ah!

– Será que poderíamos dar uma palavrinha?

– Claro, claro. Pode ser daqui a um minuto? – Ela sorriu, mostrando dentes pequenos e perfeitos. – Tô procurando o banheiro.

– Hmmm, nesse caso, posso acompanhar você? Até a porta, claro. – Ele levantou os ombros, constrangido. – Entrevista.

– Pode ser. Mas não temos muito tempo, a Lurdinha vai subir no palco daqui a pouco. Qual é o seu jornal?

Lurdinha. Era, portanto, íntima da curadora. E adorava o Speculum. Estava muito feliz com a oportunidade… Um reconhecimento importante, ela que era tão jovem… Poderia segurar minha bolsa, por favor? Não, espera, a maquiagem está aqui.

Tinham andado até o banheiro químico instalado fora do Palácio. A luz de um holofote batia enviesada na sua metade superior, destacando o rosto da moça, uma jovem promessa da literatura. Meu Deus, ela estava mesmo mordendo os lábios? Anos de monogamia – mas talvez fosse mais preciso chamar de nulogamia – podiam provocar alucinações? Ou seria a bebida? Segurou a bolsa (textura aveludada), devolveu-a, postou-se ao lado da porta. A garota tinha escrito um livro erótico (ou quase). Passaram-se alguns minutos. No Palácio, os movimentos das pessoas eram como marés; talvez obedecessem a um padrão regular que poderia ser descrito por alguma equação da física quântica.

– Agora me fala o que você quer saber e te direi tudo! – a promessa da literatura tinha saído do banheiro com uma boca apetitosa, cheirando a framboesa.

Mas ele simplesmente não sabia o que perguntar. Porra, ele era um jornalista ou um rato? Um escritor ou um rato? Um escritor rato? Um rato jornalista? Enquanto as únicas palavras que passavam pela sua cabeça eram essas, chegaram à entrada do palácio, a essa altura lotado. Felizmente, ela preenchera o silêncio com os dados básicos sobre a “sua obra” (aquela era uma época em que pessoas de menos de 30 anos já tinham uma obra). A mochila que ele carregava às costas nunca fora tão inconveniente. Ninguém com mais de três décadas de vida estava de mochila, muito menos carregava o peso morto de dois Gays Taleses e um notebook defasado em quatro anos.

As luzes se apagaram. Ouviu-se o disparo de fogos de artifício, e um uivo de expectativa atravessou a multidão. Buquês dourados e verdes explodiram no céu e através dos vidros. A promessa da literatura pegou na sua mão, enquanto abriam caminho para o palco. Ele é apenas um dedo mais alto que ela. Sua garganta está seca. O palco se inunda de luz. Sobre ele, reina a Princesa Isabel. A curadora.

O cabelo estava penteado com uma grossa trança e o vestido era longo e discreto. Era o que ele uma vez, em uma das suas tentativas literárias, caracterizara como uma mulher no limite: da idade, do corpo, da razão. Um limite que podia ser terrivelmente promissor: o corpo fornido, de uma carnalidade macia, mas ainda consistente; a idade da experiência, mas também do desejo de aventura; o hábito da razão ao lado da consciência da própria loucura. Tivera uma amante assim, quando ainda não era casado (ela era), e nunca tinha encontrado alguém com quem tivesse gostado tanto de trepar.

Mas isso só ocorria com algumas mulheres. Sua mãe, por exemplo, certamente nunca atingira aquele estágio. A vida toda consumida pela organização da casa, pelos serões em frente à TV, pelas mesmas amigas sem graça de sempre. Ele se perguntava o que a movia. Nenhuma paixão, nenhuma questão mais importante do que “quem quebrou o copo” ou “o que fazer para o almoço”. Agora, que estava morrendo, pela primeira vez parecia ter um corpo – fluidos, escaras, fezes, urina. Era no mínimo irônico que a maior intimidade entre eles se desse na iminência da morte. Enquanto olhava Lurdinha mover-se suavemente no palco, entornou o uísque que, não sabia como, tinha parado na sua mão.

“Aqui, todos os verões, se abrigava o homem alto e melancólico, este exilado da alta cultura nos trópicos que era o imperador Pedro II. A grande poeta Elisabeth Bishop, que também amava esta cidade, se declarou uma vez apaixonada por ele: por sua cultura, seu amor às línguas, seu senso moral”. O discurso chegara à apoteose: “Nosso desafio: inaugurar o império das Letras, como sonhou D. Pedro II!”

Uma chuva de aplausos. Através dos vidros, via-se o céu estrelado; o primeiro dia da Feira seria de tempo bom. Do lado do palco, um pequeno grupo aguardava. Lurdinha desceu os dois pequenos degraus, magnífica. Estavam todos ali: Dan Ilitch, mergulhado numa barba lisa de imperador; um mulato atarracado de écharpe, que o jornalista reconheceu como o antropólogo; o embaixador, sentado numa cadeira providenciada pela orquídea do início da festa; dois ou três emissários do mundo jornalístico; enfim, ele mesmo, ao lado da promessa da literatura.

Ela apresentou o jornalista rapidamente e voltou sua corola para as novas fontes de luz. Tentou acompanhar o que diziam, mas era inútil – as vozes pareciam misturar-se, os rostos sorriam para tudo, exceto para ele. Não, ele estava enganado, não era Charles Lúcio o autor de Nuvens na berlinda. Esse era o livro que ganhara o prêmio Kafka no ano anterior. Tentou fazer uma piada, mas o homem já havia se esquecido dele e conversava com a promessa da literatura. “Sucesso”, “estandes”, “chiquérrimo”, “mídia” – as palavras voavam como estilhaços. No fundo do seu copo, dois pedaços de gelo boiavam na água suja. Aquilo o mareou definitivamente. Pediu licença para o nada e saiu arrastando os pés.

Antes que pudesse chegar ao banheiro, viu-se regando um arbusto com as próprias entranhas. Por alguns segundos, até recuperar o fôlego, contemplou algo que parecia um plástico laranja (seria o salmão?). Ao levantar a vista, viu, junto a uma das vigas do palácio, um pequeno furo, raiado em estilhaços, que tinha o indiscutível aspecto de um tiro. Estendeu o dedo e acariciou a marca no vidro, como se pudesse apreender pelo tato a data do incidente. Seria interessante se aparecesse de repente alguém ferido, e tudo se precipitasse numa trama policial.

Já se sentia bem melhor. Correu ao banheiro para se lavar e voltar a tempo de colher mais dados para sua primeira investida jornalístico-literária. Quando retornou, porém, não encontrou mais ninguém. Não se sabe como, em alguns minutos tudo adquirira o aspecto de fim de festa. Clareiras que não eram de luz abriam-se entre os grupinhos remanescentes, copos vazios rolavam no chão. Música ruim ressoava nos vidros. Casais se tocavam com antecipação: sente-se no ar a tensão sexual da qual ele obviamente está excluído.

A maior parte das plantas se adapta bem a temperaturas entre 10º e 40º centígrados. Entretanto, há algumas que suportam temperaturas mais baixas. Assim, é bom observar a variedade da planta que se pretende cultivar para ter certeza que se aclimatará no lugar onde será cultivada. Caso contrário, o cultivo será muito mais trabalhoso, muitas vezes resultando na perda da planta.

Consulta mais uma vez o celular. Conferiu a mensagem da mulher: “Alê parece doente, sabe onde está o termômetro?” Um bafejo da sua velha realidade. A esposa previsível. A mãe arrastando-se entre a não-vida e a morte. Mais de uma vez, pegara-se sonhando com eutanásia. Talvez um dia desligasse os aparelhos e acabasse de vez com aquilo. Tinha a impressão de que era assim também a literatura contemporânea: distraíam-se com todo aquele debate entre narração e experimentação linguística enquanto ninguém tinha coragem de desligar os aparelhos. Algumas vezes parecia que o faziam, mas tudo não passava de uma mímica malfeita para comover os inocentes.

Mas quem era ele para debochar de alguma coisa, se naquele momento sentia o peito tremer (e não era o celular)? Resolvera voltar a pé para o hotel onde estava hospedado – não tão próximo nem tão sofisticado quanto o oficial da Feira, mas ainda assim um ótimo hotel – quando, perto de um cachorro descarnado, percebeu um vulto. Um vulto feminino… os ombros levemente curvados, o volume do penteado atrás da nuca, a respiração suspensa numa pose antiga. Devagar, se aproximou. Parecia a curadora. Adiantou-se. Era a ocasião perfeita de abordá-la. Porém, quando estava a ponto de falar com ela, viu surgir, por trás de uma árvore que até então o escondia, um homem que se agitava terrivelmente. Caminhava em círculos, juntava as mãos, apelava a deus – talvez mesmo ao diabo. Seus braços pareciam prontos a enlaçá-la a qualquer momento, mas, a cada investida ela recuava levemente. E agora? Deveria intervir ou não?  Não pareciam desconhecidos ou inimigos: via-se isso claramente pela sua postura corporal. Chega a sentir ciúmes da intimidade entre os dois.

Não conseguira sequer trocar cartões com os escritores. Por outro lado, tinha um material bruto; qualquer bom escritor conseguiria tirar algo interessante dali. Sente o resíduo de vômito na boca: quem dera estivesse no hotel para escovar os dentes. Devagar, o cachorro se afasta na direção do poste de luz mais próximo. É o caminho do seu hotel, e ele o segue.


* Adriana Armony é escritora, doutora em Literatura Comparada pela UFRJ e professora do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro. Publicou, pela Editora Record, os romances A fome de Nelson (2005), Judite no país do futuro (2008) e Estranhos no aquário (2012), premiado com a bolsa de criação literária da Petrobras. Organizou, com Tatiana Salem Levy, a coletânea Primos: histórias da herança árabe e judaica (2010), e tem contos publicados nos jornais Cândido e Rascunho. É pesquisadora do PACC, onde conclui o projeto de pós-doutorado Transescritas.

dossiê
Tempo de leitura estimado: 32 minutos

CRIMES SEM FRONTEIRAS: OS DESLOCAMENTOS NO ROMANCE POLICIAL

Resumo: O artigo traça breve panorama da produção contemporânea do romance policial no Brasil e no mundo a partir das múltiplas possibilidades de deslocamento de espaço e de tempo. O ponto de partida é a relação estabelecida entre “crime” e “viagem” por Ricardo Piglia; por meio de exemplos e associações, é possível perceber as mudanças que ocorreram nas duas últimas décadas no tradicional gênero literário, com maior diversidade temática e incorporação de tensões sociais, e também discutir o rótulo de “subliteratura” comumente atribuído ao romance policial.

Palavras-chave: Literatura; deslocamento; romance policial.

Abstract: The article provides brief overview of the contemporary production of the crime novel in Brazil and the world from the multiple possibilities of displacement in space and time. The starting point is the relation between “crime” and “trip” established by Ricardo Piglia; through examples and associations, it’s possible to see the changes that have occurred in the last two decades in the traditional literary genre, with greater thematic diversity and incorporation of social tensions, and it’s also possible to discuss the label “subliterature” commonly attributed to the crime novel.

Keywords: Literature; displacement; crime novel.

 

<em>Crédito: Carlos Marcelo/Arquivo pessoal</em>
Crédito: Carlos Marcelo/Arquivo pessoal

En definitiva no hay más que
libros de viajes o historias policiales.
Se narra un viaje o se narra un crimen.
Qué outra cosa se puede narrar?

Crítica y ficción, Ricardo Piglia

Depois de sobreviver a diversas tentativas de assassinato por parte da crítica literária, que tentou também a condenação por irrelevância perpétua, o romance policial decidiu agir em legítima defesa. Escapou do quarto onde foi trancafiado sob a acusação de “gênero menor”, demoliu o muro das convenções rigidamente estabelecidas e ganhou o mundo, ultrapassando os limites aos quais tinha sido confinado desde que passou a ser consumido em larga escala na primeira metade do século 20 a partir da produção incessante de autores como Agatha Christie, Rex Stout, Edgar Wallace e Georges Simenon. Manteve, contudo, a força-motriz: o crime, suas causas encobertas e consequências incontornáveis. “O mistério central de uma história de detetive não precisa envolver uma morte violenta, mas o assassinato continua sendo o crime supremo e traz um peso atávico de repugnância, fascinação e medo” (2012, p. 17), ensina a escritora P.D. James no livro Segredos do romance policial — História das histórias de detetive, antes de definir o assassinato como “o crime definitivo, para o qual jamais haverá reparação” (2012, p. 18).

Considerada uma das grandes damas do suspense, P.D. James conseguiu definir no mesmo livro o motivo de milhões de leitores se sentirem atraídos até hoje por histórias que se passam em grupos sociais impermeáveis às mudanças e com limitações de espaço. “A irritação que pode imergir da intimidade enclausurada e involuntária é capaz de gerar animosidade, ciúme e ressentimento, emoções que, se forem suficientemente fortes, podem ferver e acabar explodindo na destrutiva fatalidade da violência” (James, 2012, p.120). Foi o que fez, por exemplo, Agatha Christie em um de seus best sellers, E não sobrou nenhum (anteriormente editado com o título O caso dos dez negrinhos), no qual uma sequência de assassinatos ceifa vidas de dez personagens isolados em uma ilha.

Mas acontece que a literatura policial não está imune às transformações do planeta. Então, depois da guerra fria, quando houve declínio de interesse pelos romances convencionais na linha “quem-matou?” e ganharam projeção as histórias de espionagem como as criadas pelo inglês John le Carré, o mundo mudou – assim como convenções morais e sociais. Os impasses vivenciados pelos que mergulham em situações-limite, capazes de provocar crimes menos cerebrais e resultantes de explosões súbitas de violência, tiveram como expoentes na literatura os personagens dúbios da norte-americana Patricia Highsmith, em especial o falsário sedutor Tom Ripley, e também as criações do brasileiro Rubem Fonseca, como o advogado criminalista Mandrake, consolidando uma etapa da literatura policial descendente direta do que fizeram Raymond Chandler, Dashiell Hammett e tantos outros expoentes do noir norte-americano a partir da década de 1930, sem tantos pudores nem amarras morais como a produzida pelos europeus da primeira metade do século 20.

Mas, quando parecia que a literatura policial mergulharia no ostracismo, sobrevivendo apenas de reedições ou dos novos títulos dos autores que conseguiram dar nova roupagem a mistérios tradicionais (como o italiano Andrea Camilleri e o espanhol Manuel Vásquez Montalban), nas duas últimas décadas o gênero ganhou surpreendente injeção de vitalidade. E, de novo, as palavras de P.D. James servem como bússola para orientar os caminhos recentemente descortinados, mesmo quando se referem a fórmulas já utilizadas: “A comunidade isolada pode também ser o epítome de um mundo externo mais amplo, e isso, para um escritor, é uma das maiores atrações de uma ambientação ficcional circunscrita, principalmente quando os personagens estão sendo explorados sob o trauma de uma investigação oficial de assassinato, processo que pode destruir a privacidade de vivos e mortos” (James, 2012, p. 120-121).

Para compreender como a literatura policial contemporânea resolveu não mais se isolar, mas enfrentar o “mundo externo mais amplo”, torna-se necessário ressaltar: todo deslocamento tem uma ação como premissa. E, nesse âmbito, faz sentido a associação que Ricardo Piglia estabelece entre a viagem e o crime no ensaio “Sobre el género policial” (2001): os dois atos movem seus protagonistas a lugares diferentes, são capazes de promover profundas e rápidas transformações íntimas. O próprio Piglia, celebrado como um dos grandes pensadores das questões literárias contemporâneas, fez viagem particular em direção ao romance policial e, baseado em fatos reais, voltou com uma obra de grande vigor narrativo: Dinheiro queimado, publicado na Argentina em 1997, adaptado aos cinemas por Marcelo Piñeyro e lançado nos cinemas brasileiros com o título no original em espanhol, Plata quemada. E o fez por meio de prosa límpida, que eleva a tensão, mas não deixa de emitir pertinentes comentários sobre a sociedade na qual o crime emerge:

Matar assim, a frio, porque lhe deu na telha, significava em compensação (para a polícia) que os caras não iam respeitar nenhum dos acordos implícitos que regem a lei não escrita entre a bandidagem e a pivetada, já que estes eram uns pintas-bravas, eram uns bestalhões, uns ex-condenados, uns marmanjos que se arriscam e pouco ligavam se toda a polícia da província de Buenos Aires fosse para cima deles. A confusão indescritível resultante do pérfido ataque não permitiu, nos primeiros momentos, estabelecer o que havia acontecido (diziam os jornais). Foi uma rajada de violência brutal, um estrondo cego. Uma batalha concentrada, que durou o tempo que leva um semáforo para passar do verde ao vermelho. Foi um instante, e depois a rua ficou cheia de cadáveres (Piglia, 1998, p. 32).

A incursão bem-sucedida do escritor argentino no gênero é apenas um dos exemplos contemporâneos das mudanças no romance policial depois das décadas de imobilismo. São diversidades de três naturezas: geográfica, temporal, temática. O deslocamento no mapa-múndi da literatura policial, antes quase que exclusivamente restrito a Estados Unidos, França e Grã-Bretanha, foi percebido em larga escala a partir do êxito do sueco Stieg Larsson (1954-2004) com o primeiro volume da trilogia Millenium, Os homens que não amavam as mulheres. Sucesso no mundo inteiro, com mais de 60 milhões de exemplares vendidos da trilogia, Larsson engendrou uma trama que obedece aos cânones do mistério – um investigador, ainda que informal (o repórter Mikael Blomkvist), ao menos uma revelação capaz de surpreender o leitor e provocar uma reviravolta no desfecho do livro –, mas adicionou doses de contemporaneidade ao trazer para o protagonismo uma forte personagem feminina (a hacker Lisbeth Salander) e adicionar comentários a respeito de crises financeiras por meio do ponto de vista da vivência e das reflexões de Blomkvist, jornalista especializado em economia.

Muitos críticos, surpresos com a popularidade de autores como Larsson, a norueguesa Anne Holt e o islandês Arnaldur Indridason, arriscaram teorias sobre o êxito escandinavo: a mais recorrente estabelece conexão com o fato de os países nórdicos apresentarem índices reduzidos de crimes violentos. Por isso, o homicídio nestes países europeus é considerado um ponto fora da curva da dinâmica social; não foi banalizado e incorporado à banalidade do cotidiano, como ocorre no Brasil. Em entrevista a José Figueiredo, publicada em 10 de setembro de 2011 no caderno Prosa e Verso do jornal O Globo para divulgação do lançamento da edição nacional de O silêncio do túmulo, Arnaldur Indridason assume a busca de um diferencial inusitado para as suas histórias (“Leitores estão sempre procurando algo diferente, e o que é mais diferente do que um detetive em Reykjavik, Islândia?”) e arrisca uma explicação para a popularidade dos escandinavos: “Na Islândia, alguns dos escritores de livros policiais vêm do jornalismo, e talvez a literatura criminal, com questões sociais, seja uma espécie de jornalismo. Romances policiais oferecem uma excelente maneira de se examinar todos os aspectos das sociedades, e acho que é isso que os escritores escandinavos estão fazendo tão bem. Os leitores estão captando isso”.

As “questões sociais” citadas por Arnaldur Indridason estão presentes de forma consistente na obra do sueco Henning Mankell (1948-2015). Em Assassinos sem rosto, Mankell enxerta o clima de desconfiança em relação aos refugiados de setores conservadores da sociedade sueca em drama criminal ambientado no sul do país. Elementos de xenofobia (“Quando a gente não consegue nenhuma pista, bota a culpa nos finlandeses”; Mankell, 2001, p. 76) também são inseridos de forma harmoniosa em narrativa que segue o cânone policial, com a apresentação de um protagonista (o detetive Kurt Wallander) capaz de despertar empatia pelas virtudes e fragilidades, tiros e perseguições, mais reviravoltas, pistas falsas e resultados surpreendentes. “Todas as investigações criminais bem-sucedidas chegam a um ponto em que o muro se abre. Na verdade não sabemos o que vamos encontrar do outro lado. Mas a solução está lá, em algum lugar” (Mankell, 2001, p. 83).

Ao embutir na trama policial de Assassinos sem rosto as tensões sociais contemporâneas, Mankell incrementa enigma à moda antiga, que poderia estar nos livros de Agatha Christie: o misterioso assassinato de um casal de agricultores que moram em um local isolado no interior do país.

A vinte quilômetros de Lenarp havia um enorme campo de refugiados que em várias ocasiões fora alvo de ataques. Cruzes haviam sido queimadas à noite, no pátio, pedras atiradas contra as janelas, os prédios tinham sido pichados com slogans contra estrangeiros. O campo de refugiados no velho castelo de Hageholm entrara em operação, apesar dos protestos veementes das comunidades vizinhas. E os protestos continuavam. A hostilidade contra os refugiados estava aumentando. (Mankell, 2001, p. 50) investigação de Wallander considera também a hipótese de ódio racial (“Presumo que vamos ter de começar a fuçar esses grupos neonazistas suecos”; 2001, p. 185) e não deixa de levar em conta a percepção de mudanças na realidade sueca: “A insegurança no país é enorme. As pessoas estão com medo” (2001, p. 233).

O escocês Ian Rankin, sucesso na Europa com série de romances protagonizada pelo policial John Rebus, também traz as questões sociais relativas ao seu país para as histórias, como ele revela no livro Rebus’s Scotland – A personal journey:

Os temas que estão na maioria dos meus livros são questionamentos que passam pela cabeça dos leitores escoceses: quem somos, de onde viemos, como nós reagimos ao racismo, ao sectarismo, à anglofobia, à questão da identidade, ao processo político, qual lugar que ocupamos em um cenário maior (Rankin, 2005, p. 121).

O racismo e a imigração ilegal ocupam espaços importantes na trama de um dos romances recentes de Rankin, Fleshmarket Close (lançado no Brasil como Beco dos mortos), refletindo as tensões que ocorrem em outros países. “O que os escritores de policiais podem fazer é explorar não só as razões e as consequências dos crimes, mas também o que estes crimes podem nos dizer sobre a realidade em que vivemos. Sendo um país relativamente pequeno e relativamente reservado, a Escócia pode funcionar como microcosmo de um mundo maior” (Rankin, 2005, p. 129).

No Brasil, deslocamentos capazes de aguçar tensões sociais são especialmente marcantes em O invasor, de Marçal Aquino. Com personagens mais próximos do universo amoral de Patricia Highsmith do que dos convencionais romances policiais britânicos, O invasor explora, de forma notável, as consequências da aproximação problemática (motivada pelo planejamento de uma ação de violência) de personagens de classes sociais distintas, assim descrita no parágrafo inicial do primeiro capítulo: “Mesmo seguindo as indicações de Anísio, demoramos um bocado para encontrar o bar, numa rua estreita e escura da Zona Leste. Um lugar medonho” (Aquino, 2002, p. 7). A chegada dos dois engenheiros no bar para o encontro com o homem que eles irão contratar para executar o terceiro sócio numa construtora é imediatamente percebida pelo matador: “Quando vocês entraram, nem precisei olhar duas vezes, Anísio disse. Estava na cara que eram os dois bacanas que eu estava esperando” (Aquino, 2002, p. 9). A inversão de papéis, com os dois representantes de classes sociais elevadas “invadindo” o espaço dominado pelo “invasor” Anísio, é uma das armas de Aquino na criação de uma trama em ritmo de thriller, adaptada com êxito para os cinemas pelo autor, Renato Ciasca e Beto Brant, com direção deste último.

Ainda na produção contemporânea nacional, os deslocamentos impulsionam Bellini e o labirinto, mais recente aventura do personagem criado pelo paulistano Tony Bellotto. Depois de nove anos, Bellotto voltou a lançar romance protagonizado pelo detetive particular Remo Bellini. Mas fez um movimento importante: levou a ação, quase sempre transcorrida em território paulistano, para o Centro-Oeste, mais precisamente para Goiânia, capital pouco explorada na ficção nacional.

“Goiânia é uma cidade louca. Eu a visito desde os anos 1980, quando comecei a fazer apresentações com os Titãs por lá e sempre observei que se trata de uma capital cosmopolita com ar de província: carrões convivendo com carroças”, explicou Tony Bellotto, em entrevista ao repórter Ubiratan Brasil, publicada no jornal O Estado de S. Paulo em 30 de agosto de 2014.

Com o deslocamento, o personagem Bellini ganha força e a narrativa, intensidade. Assumidamente inspirado no cinismo anti-heroico de Philip Marlowe, de Raymond Chandler, Bellini mergulha de corpo e alma em trama ambientada em universo estranho ao personagem e aparentemente pouco familiar ao guitarrista dos Titãs: a música sertaneja. Na mesma entrevista a O Estado de S. Paulo, Bellotto contou que seu conhecimento do mundo sertanejo vem das excursões que faz com sua banda pelo Brasil. Nasce, portanto, da observação, não necessariamente da vivência. E o olhar é carregado de mordacidade, evidenciando ausência de envolvimento emocional.

Marlon & Brandão grafados em letras gigantes e douradas, simulando a grafia boçal de uma menina apaixonada de treze anos de idade, estampavam uma parede inteira na recepção do escritório da dupla. Sob os nomes, uma foto imensa dos dois irmãos cantores sorrindo, com seus hilariantes cabelos de bagaços de cana, oferecia as boas-vindas a quem entrasse no escritório da M&B Produções, que ocupava um edifício de quatro andares no centro de Goiânia (Bellotto, 2014, p. 25).

A visão irônica de Bellini para o que parece estranho se impõe na construção de um ponto de vista narrativo simultaneamente próximo e distanciado do mundo retratado por Bellotto. Tal decisão autoral contribui para que Bellini e o labirinto explicite, logo no início do romance, o desejo de mudança. Trata-se do trecho no qual Bellini observa, pouco antes de embarcar para a capital goiana para investigar o sequestro de um integrante de dupla sertaneja: “uma das poucas coisas imutáveis em São Paulo é o aeroporto de Congonhas” (Bellotto, 2014, p. 18). E, logo depois de relembrar momentos marcantes da infância paulistana, evidenciando o vínculo com a cidade natal, o investigador anuncia: “Se a montanha não vem a Maomé, Bellini vai a Goiânia” (Bellotto, 2014, p. 19).

Em Bellini e o labirinto, o fascínio do jogo de espelhos estabelecido entre dois gêneros musicais influenciados pela cultura internacional passa pelo detalhamento de excessos – sexo, drogas – usualmente associados aos roqueiros até chegar ao ponto máximo que ilumina o título do livro. Longe de casa, desorientado e perseguido pelos homens que tentava perseguir, Bellini se vê perdido em um imenso canavial – na imaginação do autor, versão contemporânea do labirinto grego. Atingido por um tiro, o detetive caminha por horas até encontrar uma saída diretamente ligada à outra feliz decisão do autor, a de assombrar a sua trama realista com toques fantásticos imaginados a partir das consequências da contaminação de populares pela radiação do Césio 137, ocorrido na capital de Goiás em 1987. A decisão foi explicada por Bellotto na mesma entrevista a O Estado de S. Paulo: “Foi a maior tragédia nuclear acontecida fora de uma usina atômica e, apesar de ter causado problemas de contaminação e afetar a saúde de diversas pessoas, tornou-se um assunto esquecido”.

Depois de escapar da morte no “âmago do canavial”, o investigador particular admite que a proximidade da morte, catalisado pelo estranhamento do ambiente, teve o efeito de mudança. A partir do episódio longe de casa, o urbano Bellini passa a carregar uma cicatriz interior. “De certa forma, aceitei que Goiânia vai fazer parte da minha vida para sempre. Não, não acredito que a terrível estadia no labirinto tenha me transformado num sentimental. Mas com o passar do tempo as coisas vão adquirindo outros significados, não tem jeito”, explica Bellini, antes de concluir de forma propositalmente ambígua: “Quando saí dali já era noite, e do crepúsculo só restava a escuridão. Caminhei ao seu encontro”.

Ponto alto na trajetória do personagem surgido pela primeira vez em Bellini e a esfinge (1995), Bellini e o labirinto sintetiza tipos de deslocamento que permeiam a produção contemporânea do romance policial. Mas também, como demonstra o trecho reproduzido no parágrafo anterior, exemplifica o principal objetivo dos autores ao investir em deslocamentos: a transformação decisiva de seus personagens. É o que faz o carioca Raphael Montes no romance Dias perfeitos, lançado no Brasil em 2014 e traduzido em diversos idiomas. A ação da história de “amor, sequestro e obsessão”, como o livro é apresentado na orelha, começa no Rio de Janeiro, passa por Teresópolis e chega a momento crucial em praia deserta na Ilha Grande. Lá, os protagonistas, Téo e Clarice, experimentam sentimentos extremos a partir de ações irreversíveis. “Sabia que era uma revelação que poucos experimentavam: amor em estado bruto; a essência da vida. Tudo se reordenava e ganhava sentido” (Montes, 2015, p. 205). Neste momento, Téo abraça Clarice: “Aquele era o momento mais importante da sua vida, ele tinha certeza”. Instantes depois, enterra uma faca nas costas da mulher. “Havia um contraste vibrante: o sangue que saía das costas de Clarice e o sono inabalável dela (…). A faca tremeu dentro da carne e ele teve a impressão que o corpo dela relaxou” (Montes, 2015, p. 207). A decisão do autor de isolar os personagens em lugar ermo, portanto, torna-se essencial para amplificar a radicalidade do ato, ainda mais com a exploração do contraste entre uma paisagem idílica e um acontecimento perturbador.

Mas há outro tipo de deslocamento que chama atenção e não está relacionado com fronteiras geográficas ou ações físicas. São as narrativas que, com habilidade, deslocam aspectos essenciais da trama para a psiquê de seus personagens. E, ao adotar tal procedimento, colocam sob suspeita os próprios fatos apresentados, quando confundidos com versões produzidas pelas imperfeições da memória. No Brasil, as armadilhas do passado são enfocadas de forma exemplar pelo escritor e psicanalista carioca Luiz Alfredo Garcia-Roza no romance Um lugar perigoso. Em mais uma aventura do delegado Espinosa, um professor universitário se apresenta à polícia e faz declaração inusitada: está disposto a confessar um assassinato que não sabe se cometeu, “convencido que a imagem repetitiva do corpo desmembrado de uma mulher que lhe aflora à memória é o corpo de uma mulher morta por ele há cerca de dez anos” (Garcia-Roza, 2014, p. 96).

O professor de Um lugar perigoso é diagnosticado com uma doença neurológica, a Síndrome de Korsakov, capaz de causar amnésia e provocar consideráveis lapsos de memória. Na inspirada descrição de Garcia-Roza:

A memória do professor Vicente é como uma estrada malconservada, com grande quantidade de buracos, alguns capazes de engolir um carro, o que a torna perigosa e, em certos trechos, intransitável; o professor Vicente é o operário que, solitariamente e com uma máquina de asfalto já danificada pela própria estrada, preenche os buracos refazendo sua suposta continuidade. Não o vejo como um indivíduo perigoso, o que vejo como perigosa é a sua memória (Garcia-Roza, 2014, p. 184).

Os perigos escondidos no que ficou (ou deveria ter ficado) para trás também são um dos temas caros ao cubano Leonardo Padura Fuentes. Logo em Passado perfeito, primeiro volume da coleção As quatro estações, ele conduz o seu personagem, o policial Mario Conde, para uma trama que envolve personagens marcantes na adolescência do investigador. Mas não fica por aí: Padura Fuentes utiliza músicas conhecidas (Strawberry fields forever) como alavanca de lembranças, madeleines proustianas em formato de canções pop:

E agora a estava cantando outra vez e não sabia por quê: queria negar que aquela melodia era a bandeira de suas saudades de um passado onde tudo foi simples e perfeito, e, embora já soubesse o que a letra significava, preferia repeti-la sem consciência e sentir apenas que estava caminhando por aquele campo de framboesas que jamais tinha visto, mas que suas lembranças conheciam tão bem, somente ele e aquela música. “Strawberry fields” vinha sempre assim, sem se anunciar, e empurrava todo o resto (Fuentes, 2005, p. 82).

Em outro romance protagonizado por Mario Conde, O rabo da serpente, Leonardo Padura Fuentes explora o estranhamento que seu protagonista sente ao percorrer o bairro chinês de Havana durante a investigação do assassinato de um idoso oriental:

O mais doloroso seria comprovar como, ao fim daquelas jornadas intensas e suadas no Bairro, o chinês típico e exemplar que Conde fora capaz de conceber se transformaria na imagem de um ser repleto de cicatrizes abertas e de caráter insondável, como as águas profundas de um mar do qual emergissem velhas, mas ainda lancinantes, histórias de vingança, ambição, fidelidade e as borbulhas de inúmeros sonhos frustrados: quase tanto quanto os chineses que chegaram a Cuba (Fuentes, 2015, p. 12).

Em nota assinada pelo autor em 2011 e publicada em 2015 na edição brasileira de O rabo da serpente, Padura Fuentes conta que seu interesse pelo bairro chinês de Havana começou em 1987, quando trabalhava como jornalista e escreveu uma grande reportagem sobre o local. Depois da publicação, continuou fascinado pelos mistérios do bairro e “sua história de rupturas e fidelidades a certas tradições” (p. 158). Decidiu, então, promover mais um deslocamento: transportar para a ficção a sua visão realista da região.

A narrativa é ficcional, embora tenha um forte conteúdo de realidade. Aqui, por trás da aventura policial, está a história de um desenraizamento que sempre me comoveu: o dos chineses que vieram a Cuba (…). A solidão, o desprezo e o desenraizamento são, pois, os temas desta história que não ocorreu na realidade, mas poderia muito bem ter ocorrido (Fuentes, 2015, p. 158).

Mas é em A neblina do passado, lançado em 2005 e no Brasil em 2012, que Leonardo Padura Fuentes mergulha de cabeça no memorialismo para construir um romance que evoca mais claramente o tom proustiano no turbilhão de lembranças trazidas à tona depois que o investigador Mario Conde, agora afastado do cotidiano policial, entra em um dos cômodos de um casarão decadente:

Logo que se abriram as portas da biblioteca, ele foi invadido pelo cheiro de papel velho e recinto sagrado que pairava naquele cômodo alucinante, e Mario Conde, que nos seus distantes anos de investigador policial tinha aprendido a reconhecer os reflexos físicos de suas salvadoras premonições, teve de se perguntar se alguma vez havia sentido um tropel tão avassalador de emoções como o desse instante (Fuentes, 2012, p. 11).

Leonardo Padura Fuentes não se destaca apenas por ser um dos responsáveis pela inserção de Cuba no mapa-múndi da literatura policial. Também brilha ao trafegar com desenvoltura em outras estradas. Assim, tornou-se um dos exemplos contemporâneos representativos de escritores que escapam do confinamento do gênero.

Dotado da mesma capacidade de insurgência, ganhou projeção nas duas últimas décadas o norte-americano Dennis Lehane, autor de uma série de romances protagonizada por um casal de detetives (Patrick Kenzie e Angela Gennaro), mas também romances “independentes”, nos quais explora a diversidade de seu repertório, entre eles uma releitura do terror psicológico (Paciente 47, adaptado aos cinemas por Martin Scorsese e lançado em 2010 com o título Ilha do medo) e um caudaloso romance histórico (Naquele dia, ambientado em Boston, cidade natal do escritor, logo depois do fim da Primeira Guerra Mundial).

Sobre o lugar a ser ocupado pela ficção de Dennis Lehane no mundo literário e o sucesso das adaptações cinematográficas dirigidas por gigantes como Clint Eastwood e Martin Scorsese, o escritor gaúcho Antônio Xerxenesky estabelece análise pertinente:

O fato de ele (Lehane) ser um escritor tão “adaptável” é um indicativo certeiro de que sua ficção não é muito experimental em termos narrativos, nem tão composta de ação interna (duas coisas que não são bem transferidas para o cinema). De fato, Lehane é um autor comportado. E se tornou um dos maiores nomes da ficção policial contemporânea e, em minha opinião, por um bom motivo: pela sua elegância. Dennis Lehane encarna um tipo de escritor que é simples, acessível e nem por isso simplório ou banal. No grande esquema de classificações hierárquicas e elitistas dos americanos, ele provavelmente seria categorizado como middlebrow. No Brasil, não temos uma palavra específica para este termo (Xerxenesky, 2012).

O próprio Lehane parece ter superado tal dicotomia como demonstrou em entrevista. Ele revelou que, fortemente influenciado por Raymond Carver, tentou escrever contos no início da carreira. “Mas eu estava fingindo. Eu não passava de uma imitação de Don DeLillo. Ele é um gênio. Eu era um imitador” (apud Kidd, 2011), reconhece, com franqueza. Encontrou o veio quando descobriu o que gostaria de explorar: utilizar as palavras para narrar, em nível dramático, histórias marcadas por dilemas irreconciliáveis. E, a respeito da série que criou protagonizada pelo casal Kenzie-Gennaro, Lehane comenta que enxergou com maior nitidez o seu caminho depois de devorar as obras de três escritores, “os três James”: Crumley, Ellroy, Lee Burke. “O que eles me disseram (nos seus livros) foi: ‘Não precisa ficar constrangido. Tudo o que nós fizemos foi pegar todas as questões que estão na ‘grande literatura’ e colocar dentro do gênero” (apud Kidd, 2011).

De fato, não parece fazer muito sentido condenar a produção de Lehane a rótulos como subliteratura quando o autor demonstra pleno domínio da técnica narrativa em passagens como a seguir, retirada de A entrega.

Havia duas fotografias da igreja no jornal, uma delas tirada recentemente, a outra cem anos atrás. O mesmo céu acima. Mas ninguém que estivera sob o primeiro céu ainda estava vivo no segundo. E talvez eles estivessem contentes de não se encontrar num mundo tão irreconhecível comparado àquele em que tinham vivido. Quando Bob era criança, sua paróquia era seu país. Tudo aquilo de que você necessitasse e precisasse saber estava contido nela. Agora que a arquidiocese tinha fechado metade das paróquias para pagar pelos crimes dos padres molestadores de crianças, Bob não podia escapar do fato de que o tempo da hegemonia das paróquias tinha acabado. Ele era aquele tipo de cara, de certa meia geração, uma quase geração – e embora ainda tivessem sobrado muitos deles, agora estavam mais velhos, mais grisalhos, tinham tosse de fumantes, iam fazer checkups e não voltavam mais (Lehane, 2015, p. 97).

Para Xerxenesky, as leituras de Naquele dia, de Lehane, e também dos livros de contos Amor e obstáculos, de Aleksandar Hemon, e Tudo destruído, tudo queimado, de Wells Tower, provocam indagação que surge acompanhada pela possibilidade de resposta: “Será que obras como a de Lehane, Hemon e Tower não representam uma espécie de vanguarda? Em dias caóticos, recuperar o prazer de narrar e buscar uma conexão sincera e direta com o leitor pode muito bem ser um dos caminhos da literatura do futuro” (Xerxenesky, 2012).

O escritor e tradutor paranaense Rodrigo Garcia Lopes segue na mesma trilha do gaúcho Antônio Xerxenesky. Em entrevista para divulgação do romance O trovador, ao ser perguntado sobre a produção do gênero policial no Brasil, Garcia Lopes analisou o posicionamento do romance policial no Brasil e as múltiplas possibilidades inerentes ao gênero:

Embora a situação tenha melhorado nos últimos anos, o policial brasileiro ainda tem pouca tradição no nosso sistema literário e encontra resistência por parte da crítica, ora considerado como subliteratura ou mera literatura de entretenimento. Acho que o gênero permite levantar importantes reflexões históricas, questões de identidade, moral, corrupção política, relações internacionais, colonialismo, propondo, ao mesmo tempo, uma reescrita da história (apud Portella, 2013).

No romance O trovador, Rodrigo Garcia Lopes demonstrou que é capaz de colocar em prática sua visão sobre o gênero. A partir de uma minuciosa pesquisa histórica sobre a colonização do norte do Paraná na década de 1930, o autor engendrou uma trama que também nasce de um deslocamento. O ponto de partida está na viagem de um tradutor britânico, Adam Blake, que desempenhará a função de detetive, depois de deixar a Inglaterra e chegar ao Brasil. Os sucessivos estranhamentos de Blake diante de uma realidade desconhecida são utilizados por Garcia Lopes para incrementar uma história pontuada pela inserção de personagens históricos e cenários reais, reconstituídos com impressionante riqueza de detalhes, como destacou na orelha o escritor Joca Reiners Terron: “O cenário importa tanto a esta trama quanto seus personagens”.

O viés histórico, utilizado tanto por Rodrigo Garcia Lopes em O trovador quanto pelo carioca Alberto Mussa no inovador e ensaístico A primeira história do mundo (2014), mostra que a pesquisa pode contribuir para a expansão e a renovação da literatura policial. Mas não necessariamente é preciso voltar ao passado para estabelecer diálogo com o público de hoje. Em tempos de narrativas fragmentadas e feéricas, as que são arquitetadas de forma sólida funcionam como antídoto, espécie de “porto seguro” destinado aos que tentam escapar de uma realidade tão estilhaçada. Por isso, de tempos em tempos, o romance que consegue capturar a atenção de leitores cansados de tanto imediatismo, de tantas “novidades”, tem como alicerce a estrutura narrativa policial. E nem é necessário trabalhar com personagens conhecidos para atingir tal status. Coincidência ou não, tanto Lehane (com o drama psicológico Sobre meninos e lobos) como Padura Fuentes (com o romance histórico O homem que amava os cachorros) não precisaram lançar mão de seus personagens mais famosos para atravessar as fronteiras do gênero e da geografia, alcançando repercussão mundial.

Nenhum deles, porém, ainda atingiu o patamar alcançado pelo italiano Umberto Eco com O nome da rosa, nos anos 1980. Quando perguntado sobre a surpreendente decisão de escrever um romance histórico com uma trama de mistério, Eco assim definiu o seu ímpeto, inesperado para um acadêmico já internacionalmente conhecido pela sofisticação de suas análises semióticas: “Eu queria envenenar um monge”. A imagem de um monge envenenado rondava a cabeça do intelectual desde os 16 anos, quando visitou um mosteiro beneditino, como descreve em Confissões de um jovem romancista:

Atravessei os claustros medievais e entrei numa biblioteca sombria onde me deparei com o Acta sanctorum aberto sobre um atril. Folheando o imenso volume em profundo silêncio, com alguns raios de luz filtrados pelos vitrais, devo ter sentido uma espécie de emoção. Aquela foi a imagem seminal. Mais de quarenta anos depois, esse sentimento emergiu de meu inconsciente (Eco, 2003, p. 20).

De certa forma, o sentimento que aflorou em Umberto Eco para escrever O nome da rosa responde ao chamado de Dostoiévski no seminal Crime e castigo, expresso no conselho de Porfiri Pietróvitch a Raskólhnikov durante o embate verbal do juiz de instrução com o universitário: “Deixe-se levar francamente pela corrente da vida, sem raciocinar, afugente as inquietações, que ela mesma o conduzirá diretamente à margem e o porá de pé novamente” (Dostoiévski, 2008, p. 497). E, aos autores contemporâneos de romances policiais, o mestre russo ainda deixou outro conselho nas páginas finais de Crime e castigo: “Já que passou a fronteira, não pense em retroceder”. Uma lição simples sobre a forma mais eficiente de enfrentar uma situação de avanço sem retorno. Tão irreversível quanto a morte.


* Carlos Marcelo é jornalista e escritor, formado em Comunicação Social pela Universidade de Brasília. Autor dos livros Nicolas Behr – eu engoli brasília (2004, edição do autor), Renato Russo – O filho da revolução (Agir, 2009, terceira edição em 2015 pela Planeta), O fole roncou! Uma história do forró (Zahar, 2012, com Rosualdo Rodrigues) e do romance policial Presos no paraíso, com lançamento previsto para 2017.

 

Referências

AQUINO, Marçal. O invasor. São Paulo: Geração Editorial, 2002.

BELLOTTO, Tony. Bellini e o labirinto. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

BRASIL, Ubiratan. Capital é cenário de sequestro e morte no livro de Tony Bellotto. Caderno 2, O Estado de S. Paulo, 30/08/2014.

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Crime e castigo. Trad. Natália Nunes e Oscar Mendes. Porto Alegre: L&PM, 2008.

ECO, Umberto. Confissões de um jovem romancista. Trad. Marcelo Pen. São Paulo: Cosac Naify, 2003.

FIGUEIREDO, José. Detetive na trilha de Bjork. Prosa e Verso, O Globo, 10/09/2011.

FUENTES, Leonardo Padura. Passado perfeito. Trad. Paulina Wacht e Ari Roitman. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

FUENTES, Leonardo Padura. O rabo da serpente. Tradução de Diogo de Hollanda. São Paulo: Benvirá, 2015.

FUENTES, Leonardo Padura. A neblina do passado. Trad. Júlio Pimentel Filho. São Paulo: Benvirá, 2012.

GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Um lugar perigoso. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

JAMES, P.D. Segredos do romance policial – História das histórias de detetive. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Três Estrelas, 2012.

KIDD, James. Dennis Lehane: The writer who makes crime pay. The Independent, 13/08/2011. Acesso em 17/07/2016.

LEHANE, Dennis. A entrega. Trad. Luciano Vieira Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

LOPES, Rodrigo Garcia. O trovador. Rio de Janeiro: Record, 2014.

MANKELL, Henning. Assassinos sem rosto. Trad. Beth Vieira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

MONTES, Raphael. Dias perfeitos. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

PIGLIA, Ricardo. Dinheiro queimado. Trad. Rosa Freire D’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

PIGLIA, Ricardo. Crítica y ficción. Barcelona: Editorial Anagrama, 2001.

PORTELLA, Cláudio. Rodrigo Garcia Lopes em dose tripla. In: Cândido – Jornal da Biblioteca Pública do Paraná, número 23, jun 2013.

RANKIN, Ian. Rebus’s Scotland – A personal journey. London: Orion Books, 2005.

XERXENESKY, Antônio. Mecanismos internos. In Blog do IMS, 10/01/2012. Acesso em 20/07/2016.

dossiê
Tempo de leitura estimado: 41 minutos

ALEJANDRO GONZÁLEZ IÑÁRRITU E A RENOVAÇÃO DO CINEMA

Resumo: Partindo do princípio de que a evolução da narrativa cinematográfica é decorrente de uma constante barganha entre tradição e novidade, o artigo propõe o exame do entrelaçamento de duas estratégias que se destacam na renovação do cinema ficcional contemporâneo: ordenamento temporal não-linear e multiplicidade de narrações. Para tanto, foram analisados os quatro primeiros filmes de Alejandro González Iñárritu – Amores brutos (Amores perros, 2000), 21 gramas (21 grams, 2003), Babel (2006) e Biutiful (2010) – utilizando método baseado em concepções cognitivistas neoformalistas propostas por David Bordwell, complementado por aportes do crítico da cultura Gilles Lipovetsky.

Palavras-chave: Narrativa fílmica; cinema contemporâneo; globalização.

Abstract: Assuming that the evolution of narrative film is the result of a continuous transaction between tradition and novelty, the article proposes the study of the combination of two strategies that stand out in the renewal of contemporary fiction cinema: non-linear temporal ordering and multiplicity of narrations. Therefore, the first films of Alejandro González Iñárritu were analyzed – Love’s a bitch (Amores perros, 2000), 21 grams (2003), Babel (2006) and Biutiful (2010) – using method based on neoformalist cognitive conceptions proposed by David Bordwell, complemented by contributions of the culture critic Gilles Lipovetsky.

Keywords: Film narrative; contemporary cinema; globalization.

 

<em>El Chivo é um ex-guerrilheiro que vive como matador de aluguel em </em>Amores brutos
El Chivo é um ex-guerrilheiro que vive como matador de aluguel em Amores brutos

O filme deve, cada vez mais, encontrar o seu público, e, acima de tudo, deve tentar, cada vez, uma síntese difícil do padrão e do original: o padrão se beneficia do sucesso passado e o original é a garantia do novo sucesso, mas o já conhecido corre o risco de fatigar enquanto o novo corre o risco de desagradar.
Edgar Morin

O cinema é primordialmente uma arte voltada para grandes audiências e também uma manifestação cultural complexa. As produções exigem que os filmes tragam alguma novidade, um mínimo de individualidade, que dialoguem com as questões estéticas e morais de seu tempo, mesmo seguindo preceitos de algum gênero ou fórmula mercadológica. Em boa parte de sua manifestação contemporânea, o cinema se mostra alinhado às transformações do capitalismo, do consumo e dos meios de comunicação. A narrativa fílmica está sendo renovada sob forte influência das complexas mudanças político-econômicas suscitadas pela globalização, aliadas ao impacto da tecnologia digital. Uma concentração inédita de alterações significativas em todos os elos da cadeia produtiva – da produção ao consumo – dinamiza o audiovisual, provocando mudanças estéticas, inclusive, no modo de se narrar.

O processo de globalização proporcionou o contato direto entre diferentes culturas e o indireto, por meio da difusão de informações com o desenvolvimento dos meios de comunicação. Esses contatos, por sua vez, provocaram uma interpenetração cada vez mais ampla do imaginário de diferentes países. Se, por um lado, a interpenetração levou à homogeneização e americanização de produtos e culturas, por outro, tornou-se um importante vetor de afirmação da identidade cultural dos países para com o resto do mundo, independentemente do tamanho de suas economias. O embate dessas forças contrárias produziu uma variedade de produtos culturais cada vez mais mestiçados, transculturais e multiformes.

A breve e mutante história da sétima arte é marcada pela intensa mescla de escolhas estéticas que seguem o padrão com outras mais originais. Acompanhando essa tendência da área, realizadores contemporâneos exploram os limites a que se pode chegar, ao se combinarem algumas estratégias articulatórias utilizadas pelo cinema de vanguarda da modernidade com formas tradicionais do cinema clássico, na busca por narrativas envolventes que expressem a complexidade dos dias atuais. O resultado dessa combinação gera narrativas fílmicas que tendem a misturar convenções de gêneros ao contar histórias simultaneamente embaralhadas no tempo, provocando diluição do encadeamento causal e falta de distinção entre ações principais e secundárias. Filmes com essas características valorizam o sensorial e o emocional na construção das tramas e acabam por engajar o espectador em um esforço de intelecção ainda mais intenso em sua compreensão. No território de experimentação dos limites, cânones da narrativa clássica são subvertidos lançando mão de repertório de desconstrução da narrativa do cinema moderno, sem renunciar à comunicabilidade com um público amplo. Dessa forma, o cinema contemporâneo promove um de seus laboratórios de inovação mais dinâmicos no qual se destaca a obra do mexicano radicado nos Estados Unidos Alejandro González Iñárritu, laureado em dois anos consecutivos com o Oscar de Melhor Diretor, em 2016, por O regresso (The revenant), e, em 2015, por Birdman ou a inesperada virtude da ignorância (Birdman or the unexpected virtue of ignorance).

Em parte expressiva da cinematografia recente, a clara diferenciação entre a ação principal e as complementares foi estilhaçada em uma narrativa marcada por dispersão, descontinuidade e fragmentação dos padrões de narração. Uma das principais tendências dessa renovação combina, em sua elaboração, aspectos de multiplicidade e complexidade visando incrementar sua imprevisibilidade e provocar um engajamento mais ativo do espectador na compreensão das histórias apresentadas. Filmes que apresentam essas características foram enquadrados por Gilles Lipovetsky e Jean Serroy (2009) em uma tipologia denominada multiplex. Essa vertente do cinema é marcada pela incorporação de aspectos característicos da hipermídia[1], tais como: fragmentação, hibridização, não-linearidade, excesso de informação e alta velocidade dos fluxos de trocas.

Duas das estratégias mais recorrentemente adotadas pelo cinema multiplex reduzem a previsibilidade da narrativa por meio da associação de multiplicidade de narrações com ordenações temporais não-lineares. A combinação dessas duas estratégias no processo de renovação da linguagem do cinema provoca o afrouxamento da relação de causalidade entre as cenas. O espectador, ao percorrer o trajeto fragmentado e errático da trama, é demandado a fazer um esforço muito mais intenso para acompanhar a narrativa do que o exigido pelo cinema clássico, tendo que investir mais energia para interpretar os fragmentos espaço-temporais recebidos e ordená-los no processo de inferir a história. A coerência da narrativa é restabelecida pela utilização de elementos estruturantes, fios condutores, que viabilizam a legibilidade e a fruição do discurso audiovisual.

A proposta desse estudo é analisar um conjunto restrito, porém expressivo, de filmes ficcionais contemporâneos da indústria cinematográfica hegemônica que apresentem multiplicidade de narrações e não-linearidade, e que abordem questões relacionadas à globalização. Com base nesse critério, a escolha do corpus recaiu sobre alguns dos títulos de Alejandro González Iñárritu, tanto por suas características estéticas, bem como pelas temáticas abordadas. Seus quatro primeiros filmes – Amores brutos (Amores perros, 2000), 21 gramas (21 grams, 2003), Babel (2006) e Biutiful (2010) – apresentam uma combinação singular das manipulações formais de instâncias da narrativa cinematográfica e tratam dos principais temas da globalização na sociedade contemporânea: movimentos populacionais, multiculturalismo, desterritorialização, presença da mídia e da tecnociência no cotidiano.

A reflexão proposta pretende examinar, na obra inicial de Iñárritu, variadas combinações entre estratégias de ordenação temporal não-linear e de multiplicidade de narrações, que são utilizadas pelo cinema ficcional contemporâneo para emular, em sua narrativa, aspectos de pluralidade e complexidade presentes na globalização. Os filmes do diretor apresentam multiplicidade em sua narração sob diversos aspectos – multiplot ou multitramas e multiprotagonismo. Esses filmes também apresentam formas distintas de organização temporal não-linear – episódica permeada; errática com ordenação emocional; cíclica com linearidade interna nos enredos e não-linearidade entre os múltiplos plots; e com flashforward estruturante.

A forma da organização discursiva da “trilogia da morte” de Iñárritu (Amores brutos, 21 gramas e Babel) enquadra-se em um modo narrativo fílmico definido por David Bordwell (2008) como “narrativa de rede” (network narrative), no qual encontros acidentais ao acaso engatilham conexões inesperadas entre personagens não relacionadas, enredando uma teia complexa. Esse modo narrativo é uma marca do cinema transnacional atual.[2]

A análise dos filmes de Iñárritu objetiva integrar forma e conteúdo, abordar a narrativa principalmente como processo sob a óptica neoformalista-cognitivista na acepção de David Bordwell (1985; 2005; 2006; 2008), complementada pela crítica da cultura aportada principalmente por Gilles Lipovetsky (2009). Em certos momentos, foi necessário investigar a narrativa como estrutura e destacar a função das partes na construção do todo. Paralelamente, a narrativa foi abordada como representação e a análise enfocou as conexões do mundo diegético da história com a realidade.

Entretanto, antes de um aprofundamento na análise dos filmes em foco, faz-se necessária uma reflexão sobre a utilização de estratégias de multiplicidade e não-linearidade na narrativa audiovisual contemporânea e seu impacto nos espectadores.

Multiplicidade de narrações, não-linearidade e engajamento do espectador

Um dos aspectos marcantes das transformações experimentadas pela narrativa contemporânea é o da multiplicidade que, segundo Italo Calvino (1997, p. 117-138), configura-se como um conjunto de “redes de conexões entre os fatos, entre as pessoas, entre as coisas do mundo” (Calvino, 1997, p. 121). Com muita propriedade, Arlindo Machado faz uma conexão sintética da acepção de Calvino com o universo audiovisual dos nossos tempos:

Se for possível reduzir a uma palavra o projeto estético e semiótico que está pressuposto em grande parte da produção audiovisual mais recente, podemos dizer que se trata de uma procura sem tréguas dessa multiplicidade que exprime o modo de conhecimento do homem contemporâneo. O mundo é visto e representado como uma trama de complexidade inextricável, em que cada instante está marcado pela presença simultânea de elementos os mais heterogêneos e tudo isso ocorre num movimento vertiginoso, que torna mutantes e escorregadios todos os eventos, todos os contextos, todas as operações (2008, p. 238).

A profusão de sons e imagens, acelerada em permanente fluxo de combinação e recombinação, dissolveu as fronteiras materiais e formais entre suportes e linguagens. Parte dessas figuras mutantes em movimento são, inclusive, reciclagens de material proveniente dos meios de comunicação de massa, cujas origens se perdem na composição desse tecido discursivo complexo. Trata-se de uma estética marcada pela saturação, pelo excesso, com máxima concentração de informação em um mínimo de espaço-tempo. Lipovetsky e Serroy (2009) defendem que a “imagem-movimento”[3] e a “imagem-tempo”,[4] propostas por Gilles Deleuze (1983; 2007), já não conseguem abarcar algumas das principais tendências do audiovisual contemporâneo e propõem acrescentar uma nova categoria: a “imagem-excesso”, que busca fazer o espectador balançar em um fluxo de imagens-sensação e que não enfatiza seu engajamento por meio de um encadeamento racional.

Se é possível falar de hipercinema é porque ele é o do nunca bastante e do nunca demais, do sempre mais de tudo: ritmo, sexo, violência, velocidade, busca de todos os extremos, e também na multiplicação dos planos, montagem-corte, prolongamento dos filmes e saturação da faixa sonora (Lipovetesky e Serroy, 2009, p. 67).

Os excessos estéticos do cinema contemporâneo relativizam um dos princípios fundantes da narrativa clássica que é o encadeamento de cenas em uma relação de causalidade. A justaposição das cenas de um filme orientada por princípio causal intervém na configuração das principais instâncias constitutivas da narrativa: o tempo, o espaço, as personagens e a narração. Em geral, o público está habituado com narrativas que têm uma construção linear e sente satisfação ao acompanhar o desenrolar progressivo das tramas. O espectador sente-se parte das histórias ao entender o que contam.

Quando um filme rompe a ordenação causal esperada e dificulta – ou mesmo impede – que a audiência usufrua da “hospitalidade” que essa experiência narrativa oferece, a tendência inicial é o estranhamento. Em uma parcela crescente de filmes recentes, a compreensão clara da história deixou de ser uma exigência e de significar eficiência narrativa. A disseminação em grande escala da cultura do divertimento do cinema de ação, com suas imagens-excesso e sua preponderância do sensorial-emocional sobre a intelecção, trouxe um estímulo involuntário às experimentações narrativas. Filmes com essas características cultivam no público uma sensibilidade receptiva a construções menos comprometidas em seguir o encadeamento causal. Abriram-se possibilidades de se testar outros padrões narrativos que procurassem levar o espectador a vibrar para além do que está sendo narrado, como assinalam Lipovetsky e Serroy, ao comentar o cenário atual do audiovisual: “Não mais a direção linear da narrativa, mas uma rede complexa e multicultural na qual as pessoas se perdem numa trama feita de flashes descontínuos e impressões sucessivas” (2009, p. 101).

Alguns realizadores contemporâneos exploram os limites a que se pode chegar, ao assimilarem estratégias narrativas avessas ao cinema clássico, tais como: minar o encadeamento causal, enevoar a distinção entre ações principais e secundárias, misturar as convenções dos gêneros, contar várias histórias simultaneamente embaralhadas no tempo e, mesmo assim, ser capaz de urdir uma narrativa envolvente e apta a expressar a complexidade da atualidade. Nessa exploração de possibilidades narrativas menos acomodadas às normas convencionais e mais ousadas na valorização de conexões sensoriais e emocionais, o cinema acaba por engajar o espectador em um esforço de intelecção ainda mais intenso em sua compreensão.

Duas das principais estratégias utilizadas para revigorar a narrativa cinematográfica estão associadas a duas instâncias: à narração, a maneira de contar a história com multiplicidade de enunciações; e ao tempo narrativo, a ordem dos acontecimentos da história apresentados pela trama. A multiplicidade faz-se presente nas narrativas contemporâneas por meio da narração de mais de uma história em um mesmo filme (multiplot) ou de histórias com vários personagens principais (multiprotagonistas), mas, também, por variações na ordenação temporal na trama. E chega-se a representações complexas da realidade por meio da combinação dessas pluralidades de narrações e multiplicidades temporais.

Vários diretores têm experimentado formas alternativas de combinar os tempos da trama e da história. Quentin Tarantino dinamizou bastante a relação entre o público e o filme quando concebeu uma noção de tempo não-linear em Pulp fiction – tempo de violência (Pulp fiction, 1994). Outros realizadores ousaram estruturar filmes na ordem cronológica inversa, em que a trama apresenta a fábula começando com seu último evento e segue na “contramão” da linha do tempo, até o encerramento com o seu primeiro acontecimento, como em Amnésia (Amnesia, Christopher Nolan, 2000) e Irreversível (Irreversible, Gaspar Noé, 2002). Iñárritu optou por exigir ainda mais do espectador quando montou 21 gramas (21 grams, 2003) com os eventos encadeados por um critério emocional de forma tão embaralhada no tempo que não se consegue detectar um padrão de ordenação das cenas.

Outra variação de ruptura da linearidade por meio de manipulação temporal é a utilização do flashforward, um salto repentino à frente. O flashforward também opera nas discrepâncias advindas da dupla temporalidade da narrativa. A antecipação tem caráter provocador ao “deixar-nos vislumbrar o desfecho antes de nós captarmos todas as cadeias causais que levam a ele” (Bordwell, 1985, p. 79, tradução nossa).[5] Dessa forma, suscita a curiosidade e engaja o público no esforço de relacionar o trecho antecipado com os outros eventos da trama e ordená-lo na busca do entendimento da fábula.

Recentemente, nota-se um aumento na utilização de flashforward logo na abertura dos filmes, apresentando, de início, uma cena marcante sem, contudo, explicá-la. Iñárritu abre Amores brutos com um flashforward da colisão de automóveis que é o entroncamento do filme, a única cena na qual os três protagonistas se encontram no mesmo tempo e espaço. Esse evento repete-se quatro vezes no filme, permitindo ao espectador elucidar as relações temporais das três tramas que compõem a narrativa.

A estratégia de ruptura da temporalidade e da causalidade linear por meio de uma antecipação (flashforward) possui efeito dinamizador da narrativa ao engajar o espectador no desafio de ordenar os acontecimentos para compreender a história. Na narrativa clássica do cinema, a aparição de um evento antes do seu lugar normal na cronologia, o flashforward, é bem menos comum do que o retorno ao passado, flashback.

Essencialmente, o flashback e o flashforward são igualmente constituídos por uma discrepância entre a ordem dos eventos na história e no enredo, mas desempenham funções diferentes, com impactos distintos na estrutura fílmica. O flashback, apesar de poder gerar suspense por meio do retardamento na realização de acontecimentos, tem basicamente a função de complementar informações sobre a intriga ou os personagens. Volta-se no tempo para oferecer uma nova leitura, explicar. Por sua vez, o flashforward desempenha a função de provocar a curiosidade do espectador. Projeta-se no futuro para suscitar questionamentos de como um personagem chegou àquela situação ou o que significam aquelas imagens que não fazem sentido. Portanto, o flashback e o flashforward têm funções quase opostas: enquanto um explica e responde, o outro questiona e provoca.

O flashback foi bem mais utilizado no cinema clássico e parte do moderno, por se tratar de uma estratégia narrativa que pode ser ancorada na subjetividade dos personagens. Dessa forma, conecta-se internamente na trama, mantendo o ilusionismo da onipresença e onisciência do espectador. Por outro lado, o flashforward é um recurso que explicita uma intervenção externa direta do autor na narração e, por isso mesmo, é mais utilizado no cinema de arte moderno e contemporâneo, os quais permitem, e até mesmo valorizam, a intrusão autoral para “esquentar” a interação do espectador com o filme em contraposição ao realismo buscado pelo cinema clássico.

Outras estratégias, bastante utilizadas nos últimos anos para incrementar a imprevisibilidade da narrativa, não atuam na instância temporal, mas na da narração. A que está mais em voga é a da multitrama, em que múltiplos enredos (multiplot) são abordados com o mesmo peso narrativo. Dessa forma, esses filmes contam duas, três ou mais histórias entrecruzando personagens com diferentes graus de ligação ou nenhuma conexão. O filme marco dessa tendência é Short cuts – Cenas da vida (Short Cuts, de Robert Altman, 1993), em que um grupo diversificado de moradores de Los Angeles se cruzam ao acaso. O mesmo diretor havia realizado um filme de estrutura similar quase 20 anos antes, Nashville (Nashville, Robert Altman, 1975). Entretanto, Nashville não teve o reconhecimento merecido na época do lançamento por ser um filme esteticamente à frente de seu tempo. Short cuts ganhou notoriedade por estar mais sincronizado com a percepção da sociedade no momento que surgiu.

A composição em mosaico dos filmes multiplot pode oferecer uma representação multifocal de uma rua, como em Magnólia (Magnolia, de Paul Anderson, 1999); de uma cidade,[6] a Cidade do México de Amores brutos de Iñárritu; ou de todo o planeta, como em Babel, também de Iñárritu. “São filmes que traduzem a fragmentação e as novas segmentações do mundo através da heterogeneização estrutural da narrativa” (Lipovetsky; Serroy, 2009, p. 98). Alguns cineastas apresentaram seus filmes com múltiplas tramas de uma forma mais ousada dividindo a tela e projetando histórias diferentes simultaneamente, como em Time code (Time Code, Mike Figgis, 2010) que repartiu a tela em quatro para exibir suas quatro tramas.

Outra variação bastante interessante da estratégia de imprimir multiplicidade à narração é, ao invés de mostrar várias histórias simultâneas, apresentar apenas um enredo, só que, por diferentes pontos de vista de várias personagens principais com o mesmo peso narrativo, constituindo o multiprotagonismo. Foi como fez, por exemplo, Ang Lee ao revelar as relações afetivas entre pais e filhos de duas famílias vizinhas convivendo com o adultério em Tempestade de gelo (The ice storm, 1997). Iñárritu, em 21 gramas, também contemplou com o mesmo peso narrativo as três personagens envolvidas em uma história de vingança relacionada com um transplante de coração – o receptor do órgão, a viúva do doador e o responsável pela morte do doador.

Se elementos que sustentam a legibilidade da narrativa – encadeamento causal e ordenação temporal linear – são alterados, relativizados, ou tornam-se muito complexos, como acontece com a narrativa multiplex, faz-se necessário compensar de alguma forma essas lacunas e excessos para que o espectador continue acompanhando o fluxo do discurso audiovisual. Se não há mais um único protagonista para se acompanhar da crise à resolução da trama e a relação de causa e efeito entre as cenas ficou nebulosa ou mesmo desapareceu, outros recursos precisam ser aplicados para manter a unidade da narrativa. O primeiro desafio é conseguir estabelecer coerência, apesar do afrouxamento ou rompimento da causalidade. A solução estruturante mais utilizada é estabelecer fios condutores – os “fios de Ariadne” do labirinto da narrativa cinematográfica multiplex – que permitam ao espectador fazer conexões e orientar-se no trajeto da narrativa.[7]

Os fios condutores podem ter naturezas bem diferentes e origens em todas as instâncias constitutivas da narrativa. Um fio condutor pode estar relacionado com uma ação, ser um evento; pode estar ancorado no espaço, ser um lugar; ou pode ser deflagrado no tempo, pelo compartilhamento de um momento. A amarração pode se dar também pela combinação de fios condutores de naturezas distintas, ou, mesmo, constituído por elementos mais sutis. Exemplo já citado, Iñárritu usa a repetição de um acidente de carro como um dos principais fios condutores para orientar a fruição da narrativa em Amores brutos, permitindo que o espectador relacione o tempo das três tramas do filme.

David Bordwell destaca a relevância da repetição como princípio geral para garantir a inteligibilidade na experimentação em Hollywood: “quão mais complexo são os dispositivos, mais redundante a narrativa precisa ser”[8] (2006, p. 77-78). A repetição coloca-se como recurso indispensável no preenchimento das lacunas abertas pela flexibilização do encadeamento causal e oferece informações para que o espectador seja capaz de estabelecer as conexões necessárias para a compreensão das histórias dos filmes. A recorrência mais comum verificada é a de ações que revelam novos aspectos e perspectivas em cada reapresentação, facilitando o entendimento da narrativa como um todo. Também é usual o emprego de repetição de materiais narrativos de outra natureza, como os temas – solidão, incomunicabilidade, conflito de classes etc. – na amarração dos vários enredos. Além da repetição, outra força aglutinadora da narrativa multiplex é o magnetismo do paralelo entre as múltiplas tramas que estimula o espectador a, constantemente, buscar associações entre personagens, objetos, situações e ideias.

A relevância do exame minucioso da obra de Iñárritu não reside apenas na consistência com que articula algumas das estratégias narrativas mais inovadoras adotadas no cinema ficcional, mas também no fato de criar representações sobre aspectos cruciais da complexidade da sociedade atual. Em sua filmografia, destacam-se as influências do sistema econômico sobre as interações pessoais, como, por exemplo, o impacto das relações de trabalho globalizadas na existência de indivíduos comuns. Nesse sentido, visando integrar a maneira de se narrar com seu teor, a seção seguinte versa sobre o relacionamento entre forma e conteúdo nos filmes de Iñárritu.

<strong>Figura 1 –</strong> <em>El Chivo é um ex-guerrilheiro que se afastou da família e vive isolado como matador de aluguel em</em> Amores brutos.
Figura 1 – El Chivo é um ex-guerrilheiro que se afastou da família e vive isolado como matador de aluguel em Amores brutos.
<strong>Figura 2 –</strong> <em>Amelia desespera-se perdida em deserto na fronteira entre Estados Unidos e México antes de ser deportada em</em> Babel.
Figura 2 – Amelia desespera-se perdida em deserto na fronteira entre Estados Unidos e México antes de ser deportada em Babel.
<strong>Figura 3 –</strong> <em>Chieko vaga sozinha pelas ruas de Tóquio, transtornada por questões afetivas, em episódio de</em> Babel.
Figura 3 – Chieko vaga sozinha pelas ruas de Tóquio, transtornada por questões afetivas, em episódio de Babel.
<strong>Figura 4 –</strong> <em>Uxbal intermedia mão de obra ilegal enquanto busca acomodação para seus filhos em Barcelona no filme</em> Biutiful.
Figura 4 – Uxbal intermedia mão de obra ilegal enquanto busca acomodação para seus filhos em Barcelona no filme Biutiful.
<strong>Figura 5 –</strong> <em>Octavio quer fugir com a cunhada</em> <em>e começar uma vida com dinheiro ganho em rinha de cães em</em> Amores brutos.
Figura 5 – Octavio quer fugir com a cunhada e começar uma vida com dinheiro ganho em rinha de cães em Amores brutos.
<strong>Figura 6 –</strong> <em>Paul larga a mulher para viver</em> <em>paixão pela viúva do doador de seu coração transplantado e é narrador intradiegético em</em> 21 gramas.
Figura 6 – Paul larga a mulher para viver paixão pela viúva do doador de seu coração transplantado e é narrador intradiegético em 21 gramas.

Forma e conteúdo na obra de Iñárritu

O exame da primeira narrativa de rede do diretor, o multiplot e multiprotagonista Amores brutos (2000), destaca a força aglutinadora suscitada pela expectativa de que situações, ações e personagens tendam ao paralelismo entre elas, o que estimula o espectador a estabelecer conexões e preencher algumas lacunas deixadas pelo afrouxamento da causalidade no encadeamento da trama. Conforme verificou-se na análise da estrutura do filme, dividida em capítulos permeados, a coesão do paralelismo é dinamizada pela combinação tanto de estratégias narrativas que conformam a macroestrutura da trama, como outras que operam na microcomposição das cenas, compondo um arranjo em que seus efeitos se potencializam.

A investigação mostrou que abrir uma cena em plano de detalhe, assim como começar o filme com um flashforward, são estratégias narrativas provocadoras, que levantam perguntas, em vez de prover informações explicativas, incitando uma postura mais ativa da audiência. Essas duas estratégias também operam em consonância com a de postergar a apresentação das personagens principais, já que estimulam o espectador a fazer inferências, elaborar e testar hipóteses no esforço de apreender quem são os protagonistas e como se relacionam com as personagens secundárias. Tais estratégias formais são mais do que meros artifícios para prender a atenção do espectador, pois urdem uma teia narrativa coesa que revela um cenário urbano multifacetado marcado pelas experiências de personagens contraditórios, complexos, pertencentes a diversos extratos sociais.

Por sua vez, a estratégia narrativa radical adotada por Iñárritu na tessitura de seu segundo filme, 21 gramas (2003) – também multiprotagonista, mas com apenas um enredo –, rompe o encadeamento causal e temporal de um jeito tal que o espectador tem dificuldades em decifrar seu padrão de ordenação e adota a emoção como principal fio condutor de sua organização aparentemente aleatória. A evolução da trama tende a apresentar as consequências antes das causas das ações, gerando choques a cada corte de uma cena para outra, subvertendo as expectativas de relação de causa e efeito e continuidade entre ações consecutivas. As emoções das personagens, destacadas pela predominância de planos fechados com pouca profundidade de campo, reverberam uns nos outros por meio da montagem.

Com o objetivo de viabilizar a absorção da complexidade da estrutura de 21 gramas, o diretor lançou mão de recurso articulatório inédito em sua obra, a adoção de um narrador intradiegético. As reflexões de Paul (Sean Penn, figura 1) no leito de morte estabelecem o ponto de vista do fluxo de consciência que elucubra a história do filme, sem comprometer a imprevisibilidade da trama. Gradualmente, o espectador vai identificando se os eventos acontecem antes, durante ou depois do atropelamento, ponto de encontro causal e temporal da trama, como se fossem os devaneios de Paul semiconsciente, tal qual ele surge no início do filme. Durante a projeção do filme, a audiência vai acumulando e processando informações, compensando a falta de sentido imediata de seu encadeamento, e, ao final, consegue conformar seu sentido integral e fechado, suscitando uma reflexão sobre solidão, acaso, questões morais e, mais uma vez, o cruzamento de destinos aparentemente desencontrados. Iñárritu justificou a adoção dos sentimentos como principal fio condutor da ordenação aparentemente aleatória do filme, para evitar a previsibilidade e destrinchar o teor melodramático intrínseco ao argumento original do filme.

Após a travessia real da fronteira entre México e Estados Unidos para realizar 21 gramas, Iñárritu alça um voo ainda mais amplo para fechar sua trilogia da morte com Babel (2006), filmado em três continentes. A análise revelou que a ordenação temporal não-linear engendrada entre as quatro linhas narrativas do filme é abrandada pelo predomínio do encadeamento lógico e cronológico entre as sequências da mesma história. As transições entre os blocos de sequências das histórias do filme operam como “fronteiras” entre seus universos diegéticos com potencial tanto de separá-los por contraste como aproximá-los por intelecção e emoção.

As passagens entre as diferentes histórias acumulam amarrações. Constituem um jogo incessante que estimula o espectador na compreensão de um todo interligado. Além das estratégias macroestruturantes aplicadas na urdidura de Babel, a trilha sonora desempenha um papel articulador proeminente no filme, pelo ecletismo e radicalismo na combinação de seus elementos. A sonoridade do filme chama a atenção tanto pelo virtuosismo com que realiza pontes musicais adicionando novas camadas de sentido nas transições entre os blocos das histórias, como também pelo arrojo com que a edição de som estabelece trechos em silêncio absoluto, associados à percepção de uma personagem surda-muda, Chieko (Rinko Kikuche, figura 3).

Mesmo com sua narrativa puxando os limites convencionais do padrão mainstream, Babel estabelece seu diferencial como produto cultural e consagrou-se com uma grande bilheteria mundo afora. Apesar da abordagem de temas pouco usuais para filmes de grande circulação, como as assimetrias e tensões nas relações entre países ricos e pobres, o filme combina habilmente estratégias narrativas do cinema de arte com outras mais clássicas, que garantem a compreensão e o prazer de uma ampla audiência. Um exemplo claro dessa combinação entre o convencional e o alternativo está na configuração do elenco do filme, que escala as estrelas hollywoodianas Brad Pitt e Cate Blanchett, facilitando a receptividade do grande público, e compensando o estranhamento causado pela atribuição de papéis de destaque a atores não profissionais, principalmente no enredo marroquino.

Apesar da ruptura com o padrão de narrativas de rede anteriores, foi possível identificar na análise de Biutiful, único enredo com apenas um protagonista, o prosseguimento coerente do estilo autoral característico do diretor, tanto na utilização de estratégias formais, como em suas escolhas temáticas. No filme, a antecipação da derradeira cena como a primeira exibida pela trama repercute em toda a estrutura da narrativa. Solidão e morte seguem como motes proeminentes e a complexidade faz-se presente, por meio da ramificação e do entrelaçamento de linhas narrativas que tratam de relações familiares e de trabalho e do adensamento da construção e evolução das personagens. A diversidade comparece mais uma vez nas etnias, nacionalidades e línguas faladas em uma Barcelona marcada pelos impactos cruéis das relações de trabalho globalizadas em meio às interações afetivas entre nativos espanhóis e migrantes ilegais africanos e chineses.

O engenhoso atrelamento da capacidade do flashforward em antever lampejos do futuro com a característica mediúnica do protagonista possibilitou a abertura para a inclusão de imaginário surreal inédito no universo narrativo de Iñárritu, até então calcado exclusivamente no realismo. A fantasmagoria surge na representação dos espíritos dos mortos que o protagonista, Uxbal (Javier Barden, figura 4), é capaz de ver e o flerte com o surrealismo corporifica-se na inserção de mamilos nas nádegas de dançarinas de boate.

Além das estratégias narrativas específicas utilizadas na orquestração de cada filme descritas acima, notou-se a aplicação de alguns outros recursos articulatórios importantes permeando toda a filmografia estudada, entre os quais vale ressaltar o uso de repetições e de objetos circulantes. Ao analisar o emprego de objetos circulantes, observou-se que eles incrementam a dinâmica entre enredo e personagem. Em Amores brutos, o cachorro Cofi deixa de pertencer a Octavio (Gael Garcia Bernal, figura 5) e passa para El Chivo (Emílio Echevarría, figura 1). O coração de Michael é transplantado para Paul em 21 gramas. O liame entre as histórias de Babel é fortalecido pelo trânsito circular de um rifle.

Outro recurso usado em todos os filmes de Iñárritu analisados foi o da repetição de variações de cenas, ações, imagens, frases e diálogos, que colaboram na sutura das fraturas temporais e causais comuns a suas tramas. O uso de repetições, também frequente na narrativa clássica, ganha destaque no cinema multiplex pela relevância das conexões que promovem ao assumir a função de indexador temporal e liame de causalidade. Algumas das repetições têm impacto marcante na organização da narrativa como as quatro apresentações da colisão de carros em Amores brutos, a repetição da cena do embate físico dos três protagonistas no motel em 21 gramas, a reprise do telefonema de Richard (Brad Pitt) quando liga do hospital de Casablanca para sua casa em Babel e a duplicidade da passagem de Uxbal da vida para a morte no início e no final de Biutiful.

Em seus quatro primeiros filmes, Iñárritu tece um painel nada apologético da globalização focado nas desventuras de famílias menos favorecidas, cujos membros se encarregam de trabalhos ilícitos ou informais, como o jovem Octavio (Gael Garcia Bernal, figura 5) de Amores brutos, que encontra na rinha de cães possibilidades de ganhos financeiros significativos. No mesmo filme, El Chivo (figura 1), um ex-guerrilheiro revolucionário, tem como ocupação mais rentável assassinar por encomenda na megalópole Cidade do México. Em 21 gramas, Jack (Benicio Del Toro), um ex-presidiário latino, convertido e pregador, desestrutura-se ao matar acidentalmente um pai e duas filhas, perde a fé, afasta-se de sua família e retorna aos trabalhos forçados dos condenados. Imerso em uma África arcaica, uma criança pastora de cabras dá um tiro desatinado em uma turista americana, Susan (Cate Blanchett), deflagrando conexões em quatro países – Marrocos, Estados Unidos, México e Japão – em Babel. O incidente do disparo leva à extradição, dos Estados Unidos, de uma empregada doméstica mexicana, Amelia (Adriana Barraza, figura 2), por ter atravessado ilegalmente a fronteira com o México para assistir ao casamento de seu filho, levando consigo o casal de crianças de seus patrões americanos. Em Biutiful, o até bem-intencionado Uxbal (Javier Barden, figura 4) ganha seu sustento explorando africanos no comércio e intermediando trabalho escravo de chineses em Barcelona.

Apesar das similaridades na utilização de multiplicidade de protagonistas e enredos e manipulações temporais no conjunto de filmes em análise, cada um possui sua maneira específica de ser contado. Os três primeiros filmes de Iñárritu (Amores brutos, 21 gramas e Babel) são estruturados em torno de um evento acidental, cujos efeitos se ramificam em direções diferentes ao tecer uma tapeçaria humana de vidas independentes, mas interligadas. Celestino Deleyto e María del Mar Azcona destacam que:

O acaso aleatório se caracteriza não apenas como um dispositivo deflagrador que faz vidas separadas afetarem umas às outras de formas inesperadas, mas também como um elemento temático importante que paira sobre os padrões da narrativa fragmentada dos filmes. Em vez de simplesmente um receptáculo para a história, a forma torna-se uma parte intrínseca dela (2010, p. 20, tradução nossa).[9]

A trilogia inicial de Iñárritu (Amores brutos, 21 gramas e Babel) enquadra-se no modo narrativo definido por Bordwell (2006; 2008) como “narrativa de rede” (network narrative), que engloba filmes nos quais encontros acidentais de diferentes tipos, ao acaso, engatilham conexões inesperadas entre personagens não relacionadas conformando uma rede complexa de relações diretas e indiretas (2008, p. 189-250; 2006, p. 72-103). “Em todos os filmes de Iñárritu, essas conexões são estabelecidas por meio da violência, sugerindo como ela permeia a cultura humana, com ações descuidadas de uma pessoa impactando muitas outras” (Parshal, 2012, p. 73, tradução nossa.).[10] Intersecções ao acaso – acidentes de carro em Amores brutos e 21 gramas, e um tiro em Babel – possuem muita relevância na estruturação das tramas e evidenciam a proeminência da narração ao orquestrar manipulações temporais e variações na perspectiva das personagens. A narração dos filmes em análise enfatiza a centralidade do acaso na construção dessas narrativas de rede que se ambientam em grandes cidades como lugares privilegiados para enredar suas múltiplas tramas.

Iñárritu é o cineasta que imprimiu com mais consistência na tela diversos aspectos e impactos da globalização na sociedade. Babel apresenta um amplo mosaico que revela as ligações sociais, políticas, econômicas e afetivas da nossa “aldeia global” (Mcluhan; Fiore, 1968). Em sua textura rizomática, um tiro detona atrelamentos em três continentes – África, América e Ásia. Uma turista americana é alvejada acidentalmente por uma criança de Marrocos, com uma arma presenteada por um japonês, e tem seus filhos levados pela empregada mexicana a cruzar a fronteira entre os Estados Unidos e seu país natal.

Embora Babel seja o filme mais emblemático da presença da globalização na obra de Iñárritu, outros aspectos desse amplo fenômeno também estão presentes em todas as outras películas. O mundo cão dos bairros pobres da Cidade do México, onde vagam Octavio e El Chivo em Amores brutos, choca-se literalmente em uma batida de carros com o “mundinho” efêmero e descartável da moda e das celebridades midiáticas da modelo espanhola Valeria (Goya Toledo) e de seu amante Daniel (Álvaro Guerrero), editor de uma grande revista. O contraste entre o universo de pobreza e violência de dois dos três enredos do filme com um terceiro, marcado pela riqueza e frivolidade, espelha as desigualdades marcantes nos grandes centros urbanos globalizados, onde esses extremos interagem caoticamente. O acesso ao consumo de bens e serviços de luxo não garante a segurança dos afortunados que usufruem suas benesses, e tudo pode se perder a qualquer instante em um lance do acaso ou a intervenção de alguma ação criminosa.

Em Biutiful, Iñárritu aborda a problemática da ilegalidade do trabalho gerada pelos fluxos migratórios de populações em busca de melhores condições de vida na Europa. Seu personagem principal, Uxbal, um nativo espanhol, ganha o sustento intermediando o trabalho escravo de chineses e explorando africanos no comércio informal em Barcelona, Espanha. Nessa megalópole europeia, os contrários também convivem lado a lado, com trocas violentas como na Cidade do México de Amores brutos. Entretanto, em Biutiful, Iñárritu mostra que, apesar dos conflitos que existem entre os mais bem afortunados e os marginalizados do poder econômico, há uma interdependência cruel entre eles, uns precisam dos outros.

Por sua vez, 21 gramas urde uma imbricada trama de vingança na qual dois personagens em melhor posição na escala social – a viúva de classe média alta Cristina (Naomi Watts) e seu amante, o professor universitário (Sean Penn, figura 6) que vive com o coração transplantado do ex-marido de Cristina – unem-se para matar o pobre coitado Jack (Benício del Toro) que desgraçou a própria vida ao atropelar e matar as filhas e marido de Cristina. Essa história inusitada e saturada do excesso retórico do cinema mexicano tem como pano de fundo um tema muito valorizado na contemporaneidade globalizada: a interferência da tecnociência na existência humana. A trama mostra dilemas sobre a vida e a morte gerados pelas possibilidades intervencionistas da medicina atual. O filme explora, além do enredo de vingança, as consequências afetivas e questões morais e éticas relacionadas com o transplante de coração, a inseminação artificial e a postergação da morte por meio da medicina. O próprio título do filme não deixa de ser um irônico questionamento da capacidade da ciência na compreensão da existência.

<em>Valéria se envolve em acidente de trânsito em</em> Amores brutos
Valéria se envolve em acidente de trânsito em Amores brutos

Considerações finais

O estudo da narrativa cinematográfica de Alejandro González Iñárritu, sob a óptica neoformalista-cognitivista na acepção de Bordwell, complementada pela crítica da cultura aportada por Lipovetsky, proporciona uma visão das vinculações existentes entre a experimentação estética desse cineasta e características da sociedade globalizada da primeira década do século XXI. As análises dos quatro primeiros filmes do diretor evidenciam que suas diversificadas combinações entre multiplicidade de narrações – multiplots e multiprotagonismo –, com distintas maneiras de ordenação não-linear do tempo, são capazes de enredar tramas hábeis na representação de questões pujantes da contemporaneidade.

Embora tenha realizado filmes de ampla circulação mundial, tanto em festivais como no circuito comercial, produzidos em diversos países e alicerçados em acordos com empresas midiáticas transnacionais, o diretor mexicano foi capaz de manter a independência autoral e a unidade artística da sua filmografia. Ao tratar de temas banalizados no cinema mainstream, como relações familiares, sexo e violência, oferecendo, porém, uma peculiar abordagem humanista marcada por sua identidade cultural original, o cinema multiplex de Iñárritu destaca-se no panorama mundial ao expor contrastes e conflitos universais de um mundo caótico interligado por fluxos de informações e pessoas.

O exame minucioso das narrativas dos filmes em questão aponta para a busca de uma harmonia entre forma e conteúdo, na qual questões políticas e sociais cruciais dos dias de hoje são tratadas com densidade sem, contudo, menosprezar a necessidade de encontrar maneiras criativas de contar histórias que despertem e renovem o interesse do espectador durante a fruição do filme. Visando aumentar a imprevisibilidade e provocar um engajamento mais ativo do espectador na compreensão dos filmes, Iñárritu explora as discrepâncias advindas da dupla temporalidade da narrativa, as diferenças entre a ordem em que os acontecimentos aparecem na trama (plot, syuzhet) e seu lugar na história (story, fabula). Para tanto, embaralha o tempo dos eventos, fazendo com que a narrativa evolua em ramificações e círculos com conexões inesperadas.

Portanto, Iñárritu promove um diálogo fecundo entre inovação e tradição no cinema contemporâneo, ao combinar aspectos formais de multiplicidade e complexidade, com alguns traços proeminentes do tempo no qual vivemos, tais como fragmentação e hibridização. Ao abordar criticamente temáticas envolvendo movimentos populacionais, multiculturalismo, desterritorialização e presença da mídia e da tecnociência no cotidiano, o diretor tece narrativas nas quais a clara diferenciação da ação principal das complementares é estilhaçada e embaralhada de maneira instigante. O que se vê na tela é uma mistura de padrões de narração convencionais com outros mais experimentais, alguns oriundos de movimentos cinematográficos vanguardistas da modernidade, sem perder a comunicabilidade com um público amplo.


* Mauro Giuntini é professor adjunto da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília e cineasta. Defendeu a tese de doutorado “A narrativa cinematográfica de Alejandro González Iñárritu” no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UnB (2015). Mestre em Cinema e Vídeo (MFA) pela School of The Art Institute of Chicago (1994), leciona disciplinas de audiovisual há 20 anos. Realizador audiovisual desde a década de 1980, dirigiu os filmes ficcionais de longa-metragem Simples mortais (2007) e Até que a casa caia (2015).

 

Referências

BORDWELL, David. Narration in the fiction film. Madison: The University of Wisconsin Press, 1985.

BORDWELL, David. “O cinema clássico hollywoodiano: normas e princípios narrativos”. In: RAMOS, Fernão Pessoa (org.). Teoria Contemporânea de cinema: volume 2 – documentário e narrativa ficcional. São Paulo: Senac, 2005, p. 227-301.

BORDWELL, David. Poetics of cinema. New York: Routledge, 2008.

BORDWELL, David. The way Hollywood tells it: story and style in modern movies. Berkley: University of California Press, 2006.

CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. 3ª ed., 5ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

DANCYGER, Ken. Técnicas de edição para cinema e vídeo. Rio de Janeiro: Elsevier, 2003.

DELEUZE, Gilles. A imagem-movimento: cinema I. São Paulo: Brasiliense, 1983.

DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo: cinema II. São Paulo: Brasiliense, 2007.

DELEYTO, Celestino; AZCONA, María del Mar. Alejandro González Iñárritu: contemporary film directors. Illinois: University of Illinois Press, 2010.

LIPOVETSKY, Gilles; SERROY, Jean. A tela global: mídias culturais e cinema na era hipermoderna. Porto Alegre: Sulina, 2009.

MACHADO, Arlindo. Pré-cinemas e pós-cinemas. 5ª ed. Campinas-SP: Papirus, 2008.

PARSHAL, Peter. Altman and after: multiple narratives in film. Plymouth: The Scarecrow Press, 2012.

 

Notas

[1] A hipermídia é um sistema de registro e exibição de informações informatizadas por meio da interatividade ramificada (estrutura de galhos de árvore), que permite acesso aos materiais que o constituem – textos, imagens estáticas ou em movimento, sons, softwares etc. – a partir de hiperlinks que acionam outros documentos e assim sucessivamente. A rede mundial de computadores (World Wide Web) é uma das implementações mais populares de hipermídia. Um caso particular de hipermídia, o hipertexto usa apenas um tipo de mídia, texto com interatividade e hiperlinks que conduzem a outros dados.

[2] Em seu livro Poetics of cinema, Bordwell (2008, p. 245-250) apresenta uma extensa lista com filmes dos cinco continentes lançados até meados de 2007 que seriam narrativas de rede. A lista contém filmes dirigidos por cineastas famosos como Michael Haneke, Amos Gitai, Wong-Kar-wai, Krzysztof Kieslowski, Hou Hsiao-hsien, Alain Resnais, Rodrigo Garcia, Claude Lelouche, Otar Iosseliani, Atom Egoyan, entre tantos outros.

[3] Quando surgiu o cinema, a qualidade que diferenciava sua imagem das demais era o movimento. Gilles Deleuze (1983) considerou a imagem-movimento uma das duas grandes modalidades de cinema e distinguiu suas variações no cinema clássico.

[4]Termo proposto por Gilles Deleuze (2007) para designar a imagem do cinema pós-guerra, principalmente as relacionadas ao neorrealismo italiano e à nouvelle vague francesa, marcada por uma “ruptura dos vínculos sensório-motores”, desvinculando o tempo da noção de movimento do cinema clássico.

[5] No original: “it lets us glimpse the outcome before we have grasped all the causal chains that lead up to it (Bordwell, 1985, p. 79).

[6] Os exemplos são muitos: temos Los Angeles, em Crash – No limite (Crash, Paul Haggis, 2005), ganhador do Oscar de Melhor Filme em 2005; Londres, em Wonderland (Michael Winterbotton, 1999); e até mesmo Brasília, em Simples mortais (Mauro Giuntini, 2007).

[7] Apesar de não ter sido formulada como conceito teórico, essa noção de “fios condutores” é lançada por Ken Dancyger (2003). O autor afirma que “a carreira de assassinatos de Mickey e Mallory é o fio condutor de Assassinos por natureza (Natural born killers, Oliver Stone, 1994); a batalha de Guadalcanal é o fio condutor de Além da linha vermelha (The thin red line, Terrence Malick, 1998); a crise de identidade é o fio condutor de Pulp fictiontempo de violência (1994)” (Dancyger, 2003, p. 420).

[8] No original: “The more complex the devices, the more redundant the storytelling needs to be” (Bordwell, 2006, 77-78).

[9]  No original: “Random chance features in them not only as a triggering device that makes separate lives affect one another in unexpected ways but as a major thematic element looming over the film’s fragmented narrative patern. Rather than simply a vessel for the story, the form becomes an intrinsic part of it” (Deleyto; Azcona, 2010, p. 20).

[10] No original: In all Iñárritu’s films this connection is established through violence, suggesting how it permeates human culture, with careless actions by one person impacting many others(Parshal, 2012, p. 73).

dossiê
Tempo de leitura estimado: 41 minutos

COREOGRAFIA DA ADORAÇÃO: O GESTO TEOPOÉTICO EM MALICK

Resumo: Percorrendo um caminho fenomenológico do devaneio sob a tutela de Bachelard, este artigo pretende tratar o sistema gestual encontrado nos filmes do diretor norte-americano Terrence Malick por um prisma teopoético. Embasados nos conceitos de gestus de Brecht e suas problematizações deleuzianas, notamos que a excêntrica metodologia de Malick para capturar imagens revela uma tentativa de ligar-se ao divino, criando um discurso próprio por meio de elementos fílmicos como o gesto.

Palavras-chave: gesto; teopoética; cinema; Terrence Malick.

Abstract: Throughout a phenomenological path of rêverie, under the blessing of Bachelard studies, this article intends to deal with the gestural system found on american filmmaker Terrence Malick’s films, through a theopoetic prism. Grounded on Becht’s concept of gestus and Deleuze’s problematizations, we notice that Malick’s eccentric methodology of image capturing reveals an attempt of connecting to the divine, creating a specific form of speech using film elements such as the gesture.

Keywords: gesture; theopoetics; film; Terrence Malick.

 

<em>Gestual de </em>O novo mundo<em> compreende toque, carinho e </em><em>romance entre Capitão Smith e Pocahontas</em>
Gestual de O novo mundo compreende toque, carinho e romance entre Capitão Smith e Pocahontas

A teatralidade é o teatro menos o texto, uma espessura de signos e de sensações que se edifica no palco a partir do argumento escrito, é aquela espécie de percepção ecumênica dos artifícios sensuais, gestos, tons, distâncias, substâncias, luzes, que submerge o texto sob a plenitude de sua linguagem exterior.
Roland Barthes

A experiência do cinema, em si, é transcendental. A tela metamorfoseia-se em um compêndio de sensações, emoções e sentidos com possibilidades infinitas de destacar seu espectador para um plano virtual, imaginário ou espiritual – uma outra dimensão. Naturalmente, este é um atributo da arte de maneira geral. Destacamos o cinema, pois é nosso interesse maior para fins de observação. O cinema peculiar de Terrence Malick, diretor norte-americano que assina obras como Além da linha vermelha (1998) e A árvore da vida (2011), não disfarça seu aspecto transcendental – aqui já utilizando o termo na sua ordem escolástica. Filósofo existencialista, tradutor de Heidegger, os filmes de Malick têm sido um grande campo de estudos que aproxima filosofia e cinema. De outro lado, eles também inspiram reflexões que passam pela ordem do espiritual, ao absorver temáticas que envolvem o sagrado, a devoção e a sacralidade. Esse segundo aspecto está imbuído de pistas que podemos encontrar com certa homogeneidade por todos os seis longas-metragens do diretor lançados comercialmente até 2014[1].

Dentre os recursos estilísticos do cineasta, encontramos o uso recorrente da voz over (ou em off), a música erudita sacra, a câmera flutuante, as paisagens naturais e, claro, a performance dos seus atores. Aqui, pretendemos nos deter em um sistema gestual do qual os personagens de Malick estão imbuídos. Mais do que a expressão de cada ator para viver cada personagem, o gesto nos filmes de Malick carrega uma elevação, um discurso que envolve a relação com o divino. Percebemos esta construção como teopoética.

Rapidamente, antes de chegarmos à teopoética, nos cabe visitar algumas questões ligadas a espiritualidade e religião. Criaturas vivas que somos, animadas (dotadas de alma), carregamos a tríade emoção-razão-linguagem em nós – se não, como prefere Carl Jung, somos por ela carregados.

A espiritualidade não é algo que possuímos, que está em nós, mas ao contrário, nós é que estamos nela, ela é que nos possui com seu poder, sua força (Jung, 2011, p. 48).

Bachelard, ao analisar os escritos de Balzac, nos inspira a realizar correspondências entre o céu e a terra, sendo este tema “elemento fundamental da cosmologia balzaquiana” (Bachelard, 1990, p. 104). Tomamos emprestadas as relações da filosofia bachelardiana acerca da verticalidade encontrada no lirismo de Balzac para compreender a união entre o natural e o espiritual nos filmes de Malick. Quanto à religião, diante dessa evidência do transcendente, ela cumpre um papel mediador.

Religare é a palavra latina que origina o termo religião. Se se consegue a instância dessa religação, talvez se atinja o patamar mais complexo da relação entre o homem e a transcendência. Atinge-se a potência mais radical, o universo dos “impossíveis”, alcançados até hoje somente pelos místicos ou pela fantasia (Castro, 2013, p. 22).

Assim, nos cabe encontrar uma cosmologia que não só revele seu weltanschauung[2], conferindo-lhe reflexão baseada nos símbolos recorrentes no cinema do elusivo cineasta Terrence Malick e em como seu peculiar processo de construção da imagem corrobora o processo de análise da poesia no cinema, mas também pressuponha um impasse ao colocar o discurso sob uma ótica teológica. Como anteviu São Tomás de Aquino, no relato do dominicano Pie Duployé em sua tese de doutoramento (Estraburgo, 1964), a imagem pode ter valor fundamental para a compreensão do poético:

As realidades poéticas não podem ser compreendidas pela razão por causa de uma deficiência de verdade que está nelas; as realidades divinas não podem ser compreendidas pela razão por causa de sua superabundante verdade. Realidades poéticas e realidades divinas, por razões opostas, são obrigadas a apelar para imagens. A relação que a teologia mantém com as imagens e a literatura de uma época define exatamente a relação que a teologia mantém com a cultura dessa época. Uma teologia sem imagens é uma teologia sem cultura.[3]

A teopoética permeia tanto as relações intersemióticas e interdisciplinares do campo científico, como fornece elementos problematizadores para o entendimento de uma teocentricidade na arte. O termo tem origem na academia americana. Mais precisamente, teria sido usado pela primeira vez em um discurso do poeta Stanley Romaine Hopper em 1971, na Society for the Arts, Religion and Contemporary Culture (Pennsylvania). Hopper também usaria o conceito de teomitologia, tendo principal interesse encontrar traços da religiosidade na literatura secular.[4] Algo que o teólogo alemão Karl-Josef Kuschel levaria ao limite, partindo da seguinte reflexão de Kurt Marti: “Talvez Deus mantenha alguns poetas à sua disposição”[5]. Em sua pesquisa, Kuschel investiga os aspectos do discurso sobre divino e moral religiosa na literatura alemã contemporânea, passando por obras de Thomas Mann, Hermann Hesse e Franz Kafka, com sua inescrutabilidade do mundo.

Introduzimos, portanto, Deus. Esse elemento será recorrentemente referido ao longo das próximas páginas. No entanto, buscamos tratar a este nome (Deus) e também ao Diabo com um cuidado especial. Não há intenção de se colocar o registro deste theos como forma de compreender uma verdade absoluta. Ao nos referirmos a Deus, buscamos um sentido poético (ou teopoético) partindo de uma lógica que não consegue compreender toda a complexidade da manifestação do ser transcendental nas diversas culturas e matrizes religiosas. Vamos nos ater à específica tradição judaico-cristã. E esta escolha se deve tanto a um interesse particular na poética bíblica (que envolve desde a Torah judaica às cartas paulinas cristocentradas), quanto às sugestivas temáticas do cinema de Malick. Eis uma forma sucinta de explicarmos essa ideia:

Deus está no vento: vem, vai, não pode ser colocado em jaulas de papel ou de palavras (…) Depois que vai, a única coisa que resta é a memória de seu toque sobre minha pele. Eu só posso falar sobre isto: reverberações no meu corpo, assim que é tocado pelo vento; às vezes um frio, outras uma sensação de calor, arrepios… Não teologia. Poesia. Se você preferir – teo-poética (Alves, 1991, p. 161).

Não estamos, portanto, buscando a Deus ou à sua natureza inspirada ou baseada nas concepções judaico-cristãs. Afinal, a ausência de uma teopoética engajada, defende Wilder, resvalaria em um encorajamento de pietismo evangélico ou de liberalismo inefetivo. Para Wilder, a teopoética surge como um termo discreto para se referir a um tipo de linguagem religiosa. E é isso que procuramos.

Teopoética é uma ativa e substancial perspectiva que gera uma linguagem capaz de revelar parte da natureza do divino neste mundo, facilitando enxergar as qualidades do divino no dia a dia. Não é prescritivo e não presume enjaular a totalidade da natureza de Deus (Keefe-Perry, 2009, p. 590, tradução nossa[6]).

De certa forma, no entanto, por um processo menos didático e mais onírico – para nos reaproximarmos de Bachelard –, propomos aqui fazer o mesmo com o conjunto fílmico de Malick, em conversas generalizantes com outras obras carregadas de elementos que permitem uma universalização da aplicação do conceito de teopoética no cinema.

Recorramos ao complexo de Jonas. Com a finalidade de propor um devaneio sobre a profundidade, trazemos esse conceito recorrente na psicologia contemporânea e nos manuais de autoajuda, mas a partir do pensamento de Bachelard. Embora haja um fator fortemente psicologizante – inclusive no ensaio de Bachelard –, aqui propomos partir da formulação das imagens reveladas pelo princípio de Jonas, o profeta bíblico engolido por um peixe. Com efeito, propõe Bachelard que “um complexo é sempre a articulação de uma ambivalência. Em torno de um complexo, a alegria e a dor estão sempre prontas a trocar seu ardor” (Bachelard, 1990, p. 174). O Jonas de dentro do ventre do grande peixe sintetiza a sensação do cós de uma caverna ou do subterrâneo do mar. Quando nesta posição de afundamento absoluto, escuridão total e de paredes opressoras (do ventre, da rocha, das águas), impõe-se uma morte inevitável. O ventre é como um sarcófago, de onde não há saída. É a “visão de um abismo antropófago” (Bachelard, 1990, p. 129). No entanto, o ventre propõe, em sua imagem, uma dialética fundamental: sintetiza o espaço de segurança, conforto, abrigo, energia e felicidade do feto. Há, portanto, dois ventres: aquele de onde saímos e o outro, para o qual voltamos. Infância e morte. “O ventre é para a humanidade um peso terrível; rompe a todo instante o equilíbrio entre a alma e o corpo” (Hugo apud Bachelard, 1990, p. 129). Buscamos aqui investigar esse movimento de alma e corpo gerado no ventre. Um retorno ao âmago, à profundidade. Do arquétipo de Jonas, não interessa aqui o devaneio sobre a gula – o processo de se engolir sem mastigar –, mas as imagens que nos permitem o vislumbre da expressão mais primitiva da natureza: o gesto.

Com o gesto, não conseguiremos avançar sem antes recorrer à noção de gestus, cunhada por Brecht. O dramaturgo alemão elevou o gestus à condição de essência do teatro. O gestus seria uma atitude, diferente da teatralidade, embora se dê diretamente por meio desse conteúdo de significações corporais às quais Barthes se refere na epígrafe deste capítulo. Embora para Brecht o gestus configure uma qualidade social e política, Deleuze observará que não lhe são negadas outras possibilidades, uma vez que pode ser bio-vital, metafísico, estético e, por que não, teopoético, como havemos de sugerir.

O que chamamos de gestus é o vínculo ou o enlace das atitudes entre si, a coordenação de umas com as outras, mas isso só na medida em que não depende de uma história prévia, de uma intriga preexistente ou de uma imagem-ação. Pelo contrário, o gestus é o desenvolvimento das atitudes nelas próprias (Deleuze, 2010, p. 230-231).

Esse enlace surgiria em consequência de uma teatralização, de um efeito dramático. É o que Deleuze aponta quando utiliza o exemplo de Cassavetes para mostrar que a relação dos personagens ou a construção deles próprios não deve surgir da intriga. Antes, a história nasceria por meio delas, em uma exigência de um “cinema de corpos” (p. 230-231). O resultado final seria o espetáculo, ou uma dramatização que abarca toda a intriga. Neste cinema de corpos, busca-se a cerimônia, o aspecto litúrgico e sensível da experiência fílmica. Trata de um escapismo à mera narratologia; não intenta encontrar-se, mas prioriza o ensaio. Terra de ninguém e Dias de paraíso, dentre os filmes de Terrence Malick, apresentam elementos que os levam a uma compreensão narrativa. Seus encontros apontam para um ritmo que, a partir de Além da linha vermelha, virá a se consolidar experimentando a linguagem corporal antes de enquadrá-lo em determinada estrutura dramática. Voltamos ao “impoder do pensamento”[7], à incomunicabilidade que confere ao corpo um novo sentido, uma “imagem-cristal” (Deleuze, 2010, p. 228), fenômeno que se referencia ao que se dá a ver e sobre o que se transforma diante da luz. Contudo, a cerimônia final à qual o espectador de Malick está submetido passa ainda pela teatralidade que, para Barthes, seria um estado de suspensão ou mesmo de divagação e contradição.

Barthes busca impor o modelo do distanciamento brechtiano. O “teatro múltiplo” de Brecht é aquele que mostra, que cita e repete, é o teatro que recorta os gestos, compõe as figuras, interrompe as narrativas, é o teatro que não visa a exprimir o sentido, mas a transformar o real. É o teatro do gestus (Bident, 2012, p. 64).

<em>Mrs. O'Brien (Jessica Chastain) em momento de brincadeira lúdica com os filhos em</em> A árvore da vida
Mrs. O’Brien (Jessica Chastain) em momento de brincadeira lúdica com os filhos em A árvore da vida

Do gestus ao gesto teopoético

Definir um gestus como teopoético requer que voltemos mais uma vez a alguns fundamentos da teopoética para, em seguida, relacioná-los às evidências que coletamos da experiência do cinema de Malick. Primeiramente, voltemos a confrontar a religião. No cinema de Malick, há evidências claras sobre a influência da cultura judaico-cristã (desde as figuras dos padres às citações bíblicas ou à construção dos personagens invariavelmente onustos de culpa e aspectos morais). Mas Malick não se posiciona ingenuamente diante dos preceitos eclesiásticos. Há uma dubiedade salutar: a longa sequência da formação do mundo em A árvore da vida recebeu leituras por parte da crítica como uma representação criacionista; teólogos, como Leithart (a quem recorremos algumas vezes), afirma se tratar de uma abordagem evolucionista. Os dinossauros representam o grande objeto de impasse para se definir a que matriz pertence a abordagem de Malick. Afinal, embora os gigantes pré-históricos representem um sinal de evolução na história biológica da Terra, as mais liberais correntes científicas que versam sobre a criação admitem haver um processo evolutivo – incluindo o entendimento de que, antes de sua extinção, os dinossauros deixaram um legado genético que perdura até hoje. “As diferenças são de ordem filosófica”, disse-nos Ruy Carlos de Camargo Vieira, presidente da Sociedade Criacionista de Brasília, durante visita realizada em junho de 2014 às dependências do instituto. Kuschel irá nos lembrar de que os escritores – tomamos a liberdade de abranger os diretores de cinema, devido à semelhança da finalidade do ofício desempenhado, de se contar histórias por meio de arte e linguagem – refletem a complexidade do mundo moderno em suas obras.

Escritores são habitantes de diversos mundos (…) Há muito tempo esse mundo deixou de estar estruturado de forma monolítica: ele é constituído pela concomitância de coisas contraditórias, pela simultaneidade do que antes parecia pertencer a campos diversos da realidade. Daí resultaram amálgamas espirituais novos e desenvolveram-se novas fusões culturais – especialmente no que diz respeito à religião (Kuschel, 1999, p. 215).

Encontramos com frequência nos filmes de Malick esse impulso original derivado das contradições em ambivalência e que, com efeito, envolvem a melancolia formadora e o assombro do porvir. A começar pela própria câmera flutuante da qual falamos; ela propõe um gestual próprio dinamizado por sua potências verticais de voo e de queda. A natureza também nunca está passiva. As águas que correm, os ventos que sacodem as folhas das árvores, o fogo que consome, a vida incidental de aves, cães, insetos recortando diálogos ou as imagens da dura narrativa. Assim vamos buscando imaginar como Terrence Malick cria seus isomorfismos. O mise-en-scène de Malick é construído pacientemente, por meio de uma artesania que respeita os caprichos da natureza e reflete toda essa harmonia e contradição de ordem espiritual, onde começamos a reconhecer os fenômenos dos instantes de Malick, os polos ambivalentes que quase se tocam (Bachelard, 1994, p. 187).

John Toll, diretor de fotografia de Além da linha vermelha, dirá na história oral biográfica do cineasta que “por ser um filme de Terrence Malick, muita gente simplesmente já supõe que todo mundo fica sentado esperando a hora mágica” (Maher Jr., 2014, p. 118, tradução nossa). São horas a fio nas locações, com toda a equipe técnica e atores submetidos a uma espera e a um ensaio natural do convívio dos atores-personagens entre si, como se a própria natureza ou estado de espírito devessem pautar a forma dos acontecimentos quando a câmera for ligada. Jonas está à deriva e espera-se o peixe que irá devorá-lo, para então seguir com a história. O que percebemos é que o interesse de Malick está na qualidade gestual que pretende extrair de seus atores (e de seus diretores de fotografia). O desafio é naturalizá-los. Em Além da linha vermelha, O novo mundo e A árvore da vida, ocasiões em que Malick filmou longas sequências protagonizadas por crianças, Maher Jr. contará que a ordem do diretor era de que a meninada atuasse em looping, interagindo com os adereços de cena, com o solo, com o espaço e entre si sem se importar com o “corte”, como relata Jack Fisk, seu designer de produção em todos esses filmes citados e nos dois seguintes (incluindo Cavaleiro de Copas, 2016).

Terry, como diretor, está sempre aberto e alerta às coisas que estão ao seu redor. Às vezes ele está filmando, um pássaro interessante voa e ele começa a subir em uma árvore e apontar as câmeras em sua direção. Ou então nós elencamos cachorros para o filme e ele os deixa brincando lá fora e os filma longamente, com as crianças interagindo. Algumas vezes são apenas brincadeiras sobre a grama. Para Terry, é um importante simbolismo da vida (Maher Jr., 2014, p. 163, tradução nossa[8]).

Conseguimos, por meio dos relatos e da observação dos filmes de Malick, identificar quatro categorias nas quais se adota um sistema gestual que tanto se repete de filme a filme, como teatraliza essa jornada transcendente que reconhecemos como teopoética. Típicos do cinema do diretor, os momentos de brincadeiras lúdicas. Em todos os filmes, Malick propõe uma infantilização do amor teatralizadada por meio de cenas que não servem a determinado propósito narrativo. São momentos de suavidade ou de distração que cumprem uma função estilística ao remeter à ideia apocalíptica da Nova Jerusalém. “Ele enxugará toda lágrima de seus olhos. Já não haverá morte. Não haverá mais luto, nem clamor, nem sofrimento, pois o mundo antigo desapareceu” (Bíblia, Apocalipse 21:4). Em Terra de ninguém, Kit (Sheen) e Holly (Spacek) se desligam do mundo opressor e da culpa irremediável em seus momentos de dança. No acampamento improvisado em meio à mata, eles colocam o rádio de pilha para dançarem (uma leitura também da urbanidade que carregam consigo); em meio à escapada para as terras más de Montana, a aflição da fuga não lhes cerceia uma valsa debaixo da noite que se impõe.

Mas é em Dias de paraíso que Malick inaugurará os momentos de brincadeira.  Linda (Linda Manz) faz uma amizade com outra garota em meio aos campos de trigo. Elas se divertem capturando gafanhotos. Logo Bill (Gere) entra no jogo, escapando de Linda, correndo e rindo. Linda e Abby (Adams) correm atrás do pavões. Mais uma vez Malick recorre aos encantos do gesto de dança. Em um momento na floresta, Abby imita as garotas de Baker Hall para o Fazendeiro (Shepard), que a observa sentado em um tronco. Sob uma casinha de madeira em meio ao campo, durante uma refeição, Bill lança pedaços de comida em Linda. Ela sai correndo e ele a persegue dando corda à brincadeira. Além da linha vermelha resumirá esses momentos lúdicos à relação de Private Witt (Caviezel) com as crianças nativas da ilha de Guadalcanal, embora ele muitas vezes apenas as observe, como se ele não pertencesse (ou merecesse) estar ali. Smith (Farrell), em O novo mundo, assume postura semelhante. Ele não brinca, também, de certa forma, lhe é negada a Nova Jerusalém. Ele observa Pocahontas (Kilcher). Acompanhamos por uma câmera gravitacional subjetiva a corrida saltitante da bela índia sobre a relva verde. Deitado sobre o chão, Smith tenta pegar os pés de Pocahontas. Ela se desvia. Anda sobre um tronco deitado e joga folhas sobre Smith. Ele sorri. Apenas John Rolde (Christian Bale), o outro homem branco a se apaixonar por Pocahontas, consegue compartilhar das brincadeiras de Pocahontas. Ao arar a terra para a plantação, ele a levanta e a carrega. Em seguida joga seus cabelos para trás, enquanto mastiga um talo da grama. Ao final, Pocahontas se reconecta com a natureza, embora paramentada com um pomposo vestido vitoriano, diverte-se ao se molhar com a água do lago, corre pela grama, rodopia.

Os gestos de inflexão como contração, como ato de estar fora de si mesmo se reproduzem eletrificados pelos jump cuts, que como curtos-circuitos, focam uma lógica intelectual com conexão emocional com uma aura que lembra a infância. A infância como proclamação de pura alegria, representada em gestos infantis, miríades, danças e fogos de artifício explodindo, cujo crepitar sugere uma relação mantida na memória a conflagração original do Big Bang (Chakali, 2014, p. 131, tradução nossa[9]).

A árvore da vida e Amor pleno terão seus momentos lúdicos esparramados ao longo de toda a projeção, o que também alimenta uma percepção mais clara da insuperável crise espiritual dos personagens. Logo em uma das primeiras cenas, Mrs. O’Brien (Chastain) senta-se no balanço de onde observa os filhos correndo com o cachorro e caindo no chão. Ela corre descendo a rua fugindo dos meninos. Mrs. O’Brien molha os filhos com água da mangueira. Eles revidam e a casa é só sorrisos. A rigor, a Nova Jerusalém está claramente definida como aquela casa dos O’Brien, porém, desde que o pai não esteja por lá. As brincadeiras de Mr. O’Brien (Pitt) tolhem todo o sentimento lúdico e espontâneo. Quando ele ensina os meninos a boxear, não há alegria no semblante deles.

Há muita dança em Amor pleno. Marina (Kurylencko) está sempre bailando, na rua, no supermercado, na mata, dentro do apartamento, na piscina. Neil (Affleck) adota uma postura mais indiferente – a exemplo da maioria das figuras masculinas de Malick, uma forma de desvelar o machismo presente na cultura judaico-cristã. Quando Jane (Rachel McAdams) laça a atenção de Neil, a liturgia do ritmo se repete. Sobre os trilhos, ela corre, desequilibra-se graciosamente, ri para ele. As mulheres provocam Neil. Marina mesmo, na ausência do aconchego do seu marido, dança com um galo no colo e o provoca. Marina, sobretudo, está filmada em panorâmica durante quase toda a projeção. A montagem caleidoscópica de Malick aqui ganha um aspecto ainda mais evidente. No momento em que a filha de Marina, Tatiana (Tatiana Chiline), observa o movimento dos brinquedos aéreos do parque de diversões temos ali um símbolo do epicentro das crises de Amor pleno: uma gangorra de sentimentos e de gestos – ora violentos, ora carinhosos.

Tais brincadeiras vão muitas vezes se confundir com um segundo elemento fundamental para a coreografia do cinema de Malick: as carícias. Ao seu modo rebelde à James Dean, Kit demonstra afeto a Holly em Terra de ninguém. Há uma masculinidade que não lhe permite uma expressão gestual mais delicada – afinal, quando Kit tira a virgindade de Holly, o que se vê é apenas ela a terminar de abotoar o vestido. Kit não dá bolas e ela mesma ainda não entende muito bem os códigos do pós-coito. Também demonstrando a força de homem, Kit coloca-se como protetor de sua amada. Ao serem ameaçados ele toma a dianteira, assume uma postura heróica. Em Dias de paraíso, os momentos de Bill e Abby ganham notas mais dissonantes. Deitados sobre o campo de trigo, ele pinça com os dedos alguns fiapos de sua roupa. Já desposada pelo Fazendeiro, ela encontra Bill no rio, o refúgio dos esposos agora amantes. Ele lava os pés dela. Em um riacho, Bill e Abby levantam a barra de suas vestimentas, chutam a água, beijam-se e abraçam-se. Logo ele tenta levantar sua saia, ao que ela, sorrindo, lhe retribui com tapas gentis. Com o coração de Abby mais inclinado para o Fazendeiro, ela permite ser tocada suavemente pelo novo marido e até se refugia, no seu novo ninho de amor, da fúria de Bill, que o levará de volta ao seu ciclo assassino – no começo do filme, Bill, Abby e Linda fogem de um trabalho na mina devido às consequências das atitudes violentas dele.

Essa tensão entre violência e delicadeza permeará toda a obra de Malick, ressaltando aspectos contraditórios que nos permitem a leitura da verticalidade das transações emocionais no cinema do diretor. A guerra de Além da linha vermelha tem vários momentos de respiro, que não deixam de ser pesarosos. Embora os gestos demonstrem certa paz, o espírito inquieto se revela pela voz over atribulada, ressentida ou desesperançosa. São assim os momentos de Private Bell (Ben Chaplin) com sua esposa Marty (Miranda Otto) nos flashbacks que nos transportam de Guadalcanal para a vida urbana e pacífica de casa. Ele a abraça por trás, toca seus seios. Ele deita em seu colo. Em seguida, toca de todas as formas possíveis seu rosto, como que para decorá-lo e carregá-lo como lembrança. Os movimentos que Bell e Marty protagonizam aqui são como se coreografados em uma quase-dança. Ela beija e a afasta, segurando seus braços, a aproxima de volta fugindo ao naturalismo. Os momentos de Smith e Pocahontas em O novo mundo também são peculiares. Eles se tocam para se conhecer no íntimo, conhecer a história de seus povos. O toque que se permite é das culturas. No entanto, Malick insiste em esperar. O toque torna-se sedutor e logo os lábios começam a se aproximar, ainda que não se toquem. Os dedos de Smith correm sobre o braço de Pocahontas até que as mãos se unam. Ele encosta o rosto em seu peito. Ela acaricia sua cabeça. “Tudo está perfeito. Deixa que eu me perca. Flua em mim como um rio”, diz Pocahontas, em off.

Por força temática, talvez, em Amor pleno Malick consegue explorar o sexo como celebração desse louvor proclamado pelo arcabouço gestual de seus personagens. As brincadeiras dos amantes culminam algumas vezes em atos de preliminar sexual. Em meio à briga do casal Marina (Olga Kurylencko) e Neil (Ben Affleck), no apartamento vazio, eles se inspiram a recuperar o primeiro amor. Ele a sufoca gentilmente com o tecido suave e transparente da cortina. Eles se jogam ao chão. Beijam-se. Neil desliza pelo corpo esguio de Marina coberto por uma camisola azul escuro. Sugere-se um ato de sexo oral. Mas o semblante de Marina não reflete mais prazer. A melancolia volta a dominá-la. Neil não está mais lá. As mãos de Marina esticam o curto vestido para baixo e suas pernas se fecham. O sexo não se consuma. Neil reencontra sua antiga paixão, Jane. Marina permite-se um encontro casual íntimo com um rapaz que encontrou na rua, como ato de vingança. Quando os corpos de Neil e de Marina se tocam novamente, ambos estão em uma piscina pública. Há mais gente ao redor. Neil aproxima-se sorrateiramente por trás de Marina. Sussurra em seu ouvido. A câmera de Malick mantém seu compromisso com a suavidade. Os gestos permanecem fluidos, segundo a coreografia do toque gentil, embora a abordagem de Neil seja violenta. Marina fica evidentemente apavorada. Mas em silêncio. Ela afunda-se, recobre-se das águas para tentar fugir do marido transformado em agressor. Logo ela o abraça por baixo do lençol líquido da piscina. Ele retribui. Recomeçam as brincadeiras quando Neil tenta tirar seu biquíni. Eles sobem à superfície. Corte seco para o bar. Ele a evita. Com rispidez, vira o queixo de Neil para que ele a olhe. Na voz over, ela pergunta: “Você me quer como sua esposa?” E voltam as brincadeiras lúdicas, as lembranças triviais superdimensionadas pela coreografia. Neil empurra Marina em um carrinho de supermercado. Entre as estantes, ela o seduz abrindo o casaco. E foge graciosamente dele, evidentemente constrangido, mas com um sorriso. Outro corte, e Marina sai às pressas de casa anunciando ao bairro: “Ele está me matando”. Neil a acompanha a seguir. A violência está sempre presente, mas os gestos mantêm a singeleza da coreografia. A violência emudece a música. Ela se humilha perante o macho. Beija seu pé. Começam juntos a limpar a casa. Logo voltam as brigas. Ele a segura com um dos braços. Com o outro arranca a cortina. A sinfonia suave acompanha a reconciliação. As mãos de Marina socorrem a mão ferida de Neil. Ela beija sua mão ensanguentada. Em seus últimos gestos, entre a cortina preta transparente, Marina evoca: “Meu Deus que guerra cruel. Vejo duas mulheres em mim. Uma cheia de amor por ti. A outra me puxa em direção à terra”.

No lugar onde as figuras gesticulam volatilmente como a inconsistência de areia recai uma impotência diante do compromisso de romper com o arsenal de indecisão dos personagens, nos quais ainda brilha um gesto simples e infantil (…) A espiritualização da Natureza compartilhada pelas esferas do profano e do sagrado se representa no amor (Chakali, 2014, p. 132, tradução nossa).

O amor deixa vestígios de três ordens: fileo (fraternal), eros (erótico-carnal) e ágape (divinal). Os dois primeiros transcorrem por um fluxo horizontal – entre iguais (família, amigos, amantes). Por convenção do imaginário coletivo e de uma tradição da religiosidade oriental, o amor-ágape trata de uma relação vertical: o homem, preso à força gravitacional do eixo terrestre, invoca o ser superior, no alto, no além. Quando Bachelard diz que “a meta é a verticalidade” (Bachelard, 1994, p. 184), conclui que o instante poético possui uma perspectiva metafísica. O gesto do consolo e da compaixão, nossa terceira categoria, seria essa expressão que se descola da horizontalidade humana para alcançar a verticalidade divina. “Na saudade risonha vivida pelo poeta, parece que realizamos a estranha síntese da saudade e do consolo” (Bachelard, 1990, p. 110). Afinal, a compaixão pressupõe uma alteridade. Malick costuma expressá-lo por meio de close-ups nas mãos, como em Além da linha vermelha. Vemos a mãe moribunda que estica a mão para a filha; a garota que toca o coração da mãe e abre um sorriso. O novo mundo exibe gestos de solidariedade, quando os indígenas enfim acolhem Capitão Smith o tocam no peito, o testam mas o dignificam. Em A árvore da vida temos o compêndio mais completo do uso das mãos. No início, diante da perda de R.L., seu filho, Mrs. O’Brien recebe o toque das mãos de uma idosa do convívio íntimo da família e também de uma mulher negra, que também não identificamos. O anonimato pode ser uma potência ao se fazer o bem. Ao final, são as mãos de R.L. em seu reencontro com o Jack (Sean Penn) que o aliviam da culpa do passado. Toca-lhe as mãos, os ombros, a cabeça. Jack retribui o toque a um garoto da vizinhança, que fora vítima de um incêndio. E ainda há o gesto muito significativo da vida primitiva na Terra. Um dinossauro com sua pata toca a cabeça do outro que estava prostrado sobre as pedras de um riacho e o liberta. “Quando a compaixão evolui, o mundo está pronto para o clímax da criação, uma criatura com mãos” (Leithart, 2013, p. 59, tradução nossa).

Em Amor pleno, Padre Quintana (Bardem) visita os enfermos, como parte de sua rotina clerical. Toca-os. A senhora moribunda estica a mão e Quintana a segura. De sua voz em off repete a Lórica de Proteção de São Patrício (“Cristo antes de mim, Cristo depois de mim, Cristo em mim, Cristo acima de mim, Cristo à minha direita, Cristo à minha esquerda, Cristo no coração”). Quintana se reconcilia com Deus: “Brilhe através de nós”. O pedido de perdão de Neil a Marina se dá também pelo gestual. Não há troca de olhares, embora os olhos de Marina pareçam surpresos com o gesto de Neil. Ele se ajoelha diante dela, coloca a cabeça em seu colo. Ela o afaga. “Esse amor que nos ama”, conclui ela.

<em>Neil (Ben Affleck) e Marina (Olga Kurylenko): danças ingênuas a céu aberto em</em> Amor pleno
Neil (Ben Affleck) e Marina (Olga Kurylenko): danças ingênuas a céu aberto em Amor pleno

Do gesto à coreografia

Para uma coreografia da adoração ser completa, resta-nos envolver a questão da musicalidade, o que dá liga a toda a coreografia. A Lacrimosa, do Réquiem for a friend, de Zbigniew Preisner, conduz o maior de todos os gestos de Malick: a criação evolutiva do universo. Sem recorrer a quase nenhum recurso tecnológico (à exceção da recriação dos dinossauros e das criaturas marinhas), Malick recria o início da existência terrena com suas mãos. Ou melhor, as mãos de Douglas Trumbull (reconhecido diretor de efeitos especiais de 2001: Uma odisséia no espaço). Utilizando-se de grandes tanques cheios de líquidos, tintas e demais fluidos e ingredientes químicos, Trumbull promoveu o espetáculo da Terra com ajuda da objetiva em alta velocidade de Emmanuel Lubezki em favor de se louvar a artesania proposta pelo Gênesis. “Tudo foi feito por meio dele; e sem ele nada se fez do que foi feito” (Bíblia, João 1:3).

A concepção musical de Malick se estrutura pela criação de árias e hinos de características de uma liturgia esclesiástica. O canto gregoriano Passion, de Carl Orff, sonoriza a sequência do incêndio da casa do pai de Holly em Terra de ninguém. Revela essa primeira potência poética, através do fogo consumidor, lastro inconsequente da paixão ardente dos jovens foragidos: o som sugere uma opulência, enquanto é vista a destruição material de objetos e memórias daquela casa. O fogo terá significado semelhante em Dias de paraíso no momento das queimadas dos campos de trigo para combater a praga de gafanhotos, quando há uma trilha sonora de suspense e ação dialogando com as imagens contemplativas de Malick. No momento em que ele adota uma câmera na mão e reproduz na montagem a correria e a luta dos trabalhadores para conter o fogo, a música cessa. Há apenas vento e chama. No mesmo filme, a trilha sonora também ocupa lugar de mediadora da ação humana com a natureza. Mais uma vez acompanha uma cerimônia. Neste caso a música de Ennio Moriconne imprime à montagem uma harmonia na trama e em sua aura. “A alegre trilha de Morricone acompanha a dissolução de uma série de imagens que casam Abby e o Fazendeiro não apenas entre eles mas com os próprios ritmos da natureza” (Rybin, 2013, p. 82, tradução nossa[10]). Power notará que a música de Dias de paraíso providencia “oportunidades metafóricas de expressão”. Ele cita especificamente o uso do tema The aquarium, de Camille Saint-Saëns. “Há vários instantes ao longo do filme em que a ideia de um aquário é usada simbolicamente, inclusive quando a música não está sendo executada” (Power apud Patterson, 2007, p. 105, tradução nossa[11]). Power se refere à ideia da fazenda como um paraíso artificial, um ambiente seguro, porém, visto de fora, uma jaula (neste caso, de sentimentos).

Além da linha vermelha incutirá o canto da tribo entoado em seu dialeto próprio (tok pisin) às sinfonias clássicas sacras, um dos marcos da postura devocional que a música exerce no cinema de Terrence Malick. A harmonia de louvor preenche os vazios da solidão de Private Witt na ilha. A música apresenta-se na forma de acúsmetro,[12] abordando a beleza natural do cenário e dos nativos até enxergarmos a formosura da dança e das vozes a capella. O uso da música aqui está intimamente ligada à diegese sonora do complexo fílmico. Como fizera em Dias de paraíso, seu trabalho sonoro mais complexo em significados, Além da linha vermelha apresentará um claro avanço tecnológico, dado o avanço do sistema Dolby, aliando a música a uma colagem de sons de elementos da natureza, criando uma atmosfera psicológica e metafísica ao redor das paisagens e dos personagens.

Não há coreografia sem música no cinema de Malick; até o silêncio na trilha ressoa. A musicalidade completa a coreografia. Nos sons mudos, os gestos ganham novos significados, novas potências e reforçam a envergadura poética de seu discurso imagético. Tarkovski diria que, para o universo poético do filme, a música deve cumprir um papel maior do que a de intensificadora do impacto da cena. Ela deve renovar a imagem, produzir uma inflexão lírica e até providenciar uma distorção do material visto. “Ao mergulharmos no elemento musical a que o refrão dá vida, retomamos inúmeras vezes as emoções que o filme nos despertou, e, a cada vez, a nossa experiência é aprofundada por novas impressões” (Tarkovski, 1990, p. 190).

O próprio cinema está dotado de uma particular natureza rítmica em sua teoria. Como a imagem, os diálogos e a montagem, a música enaltece a ritmicidade da trama, como irá notar Laurent Guido. Para ele, a forma como Malick se utiliza do imaginário da pastoral americana e dos traços culturais da sociedade judaico-cristã anglo-saxônica transforma seu arcabouço de referências sonoras em um sistema de representação cultural em todos os seus filmes – até O novo mundo, pelo menos.

Evocar seriamente a suposta musicalidade do cinema, mais precisamente a que diz respeito aos elementos visuais, retorna com o objetivo de abordar a noção de ritmo que regula a ordem de movimento. A esse parâmetro é atribuído um papel central no último filme de Malick [O novo mundo]. Em grande parte, a singularidade por si só se origina efetivamente na maneira particular de entoar o fluxo narrativo por um ritmo amplo e constante. Se a sucessão visual parece à primeira vista ter uma certa descontinuidade, se estabelece principalmente por viajar nos planos que delineiam o espaço de digressão (um parênteses na história que está sendo contada), a instalação é de fato governada por princípios estilísticos visando imprimir um movimento uniforme, homogêneo ao conjunto das imagens (Guido, 2007 p. 56, tradução nossa[13]).

O resultado, conforme Guido, é uma forma fluida, quase orgânica em que os métodos de corte convencionais com base nos planos de linearização espaço-temporais não são sistematicamente rejeitados (daí o uso frequente de reverse shot em blocos sequenciais facilmente identificáveis…), mas são integrados em uma composição audiovisual cuja lógica discursiva se revela complexa tanto pela multiplicidade de informações e pontos de vista quanto pela unidade subjacente constantemente sugerida pela sucessão harmoniosa dos planos. Guido irá se ater também à herança sempre presente da estética pós-romântica dentro do cinema hollywoodiano, por meio da influência de Wagner sobre os modos de construção do espetáculo de massa. “É necessário assinalar as linhas existentes entre o romantismo alemão e a tradição especificamente americana à qual Terrence Malick faz referência desde o início de sua carreira” (Guido, 2007, p. 58, tradução nossa[14]).

A música em Malick evoca, portanto, como que uma cerimônia religiosa, uma liturgia com aspectos de adoração. “Venha, espírito, cante a história do nosso povo”, clama Pocahontas à sua Terra-mãe em um plano contra-plongée no qual ela ergue os braços ao céu azul. Havemos de notar que a volta de Malick constantemente a esse tema, um lugar-comum da prece legada ao firmamento, não busca apenas uma representação, senão apontar uma direção de seu gesto de louvor – um cântico da história de seu próprio povo –, a expressão de uma teopoética, uma vez que assume suas vias de contradição e de elevação.

 <em>Detalhe do toque das mãos de Neil (Ben Affleck) e Marina (Olga Kurylenko) em</em> Amor pleno
Detalhe do toque das mãos de Neil (Ben Affleck) e Marina (Olga Kurylenko) em Amor pleno

* Guilherme Lobão é jornalista e mestre em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade de Brasília (UnB).

 

Referências

ALVES, Rubem. Theopoetics: longing and liberation. In: GETZ, I. E COSTA, R. (oprgs.). Struggles for solidarity, PP. 159-171. Philadelphia: Fortress Press, 1991.

BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 1988.

BACHELARD, Gaston. A terra e os devaneios do repouso. São Paulo: Martins Fontes, 1990.

BACHELARD, Gaston. O Direito de Sonhar. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1994.

Bíblia – Tradução Ecumênica. São Paulo: Edições Loyola, 1994.

BIDENT, Christophe. Le geste théâtral de Roland Barthes. Paris: Ed. Hermann, 2012.

BISKIND, Peter. The runaway genius. Los Angeles: Vanity Fair: n. 460, dez., 1998.

CASTRO, Gustavo. Comunicação e transcendência. São Paulo: Annablume, 2013.

CHAKALI, Saad. La beuté Du geste. Caen (França): Eclipses Revue de Cinema: n. 54, Junho, 2014.

DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo (Cinema 2). São Paulo: Editora Brasiliense, 1990.

FERREIRA, Agripina Encarnación. Dicionário de imagens, símbolos, mitos, termos e conceitos bachelardianos. Londrina: Eduel, 2008.

GUIDO, Laurent. De l’Or Du Rhin au Nouveau Monde: Terrence Malick et lês rythmes Du romantisme pastoral américain. Paris (França): Décadrages: Cinéma, à travers champs: n. 11, Novembro, 2007.

JUNG, C. G. Psicologia e religião oriental. Petrópolis: Vozes, 2011.

KUSCHEL, Karl-Josef. Os escritores e as escrituras. Retratos teológicos-literários. Trad. Paulo Astor Soethe et alii. São Paulo: Loyola, 1999.

LEITHART, Peter J. Shining glory: theological reflections on Terrenc Malick’s The tree of life. Eugene: Cascade Books, 2013.

MAHER JR., Paul. One big soul: an oral history of Terrence Malick. San Bernardino: autor, 2014.

PATTERSON, Hannah (org.). The cinema of Terrence Malick: poetics visions of America. New York: Columbia University Press, 2007.

RYBIN, Steven. Terrence Malick and the thought of film. Maryland: Lexington Books, 2012.

SANTOS, Joe G. Por uma teologia da imagem em movimento: uma troca de olhar com o cinema a partir da obra de Andrei Tarkovski no horizonte da teologia de Paul Tillich. Tese de doutorado. São Leopoldo: Escola Superior de Teologia, 2006.

TARKOVSKI, Andrei. Esculpir o tempo. 3a. Edição. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

WILDER, Amos Niven. Theopoetic: theology and the religious imagination. Philadelphia: Fortress Press, 1976.

 

Notas

[1] Ensaio adaptado da dissertação de mestrado Pegadas de dinossauros: uma expedição teopoética pelo cinema de Terrence Malick, defendida em dezembro de 2015, na UnB.

[2] O termo alemão foi cunhado pelo filósofo e etnolinguista alemão Wilhelm von Humboldt como definição de uma cosmovisão ou visão de mundo.

[3] São Tomás de AQUINO, Summa theologiae, g IIg, q. 102. a. 2, ad 2, cit. apud Pie DUPLOYÉ, La religion de Péguy, p. X-XII.

[4] Segundo Wilder (WILDER, Amos Niven, Theopoetic, Philadelphia: Fortress Press. 1976), Stanley R. Hopper teria cunhado o termo teopoética e suas demais derivações (teopoesia e teomitologia) pela primeira vez no discurso “The literary imagination and the doing of theology”, proferido na referida sociedade e posteriormente publicado no livro The way of transfiguration: religious imagination as theopoiesis. Eds. R. Melvin Keiser and Tony Stoneburner. Louisville: Westminster/John Knox, 1992. 207-29.

[5] Este é o titulo original do livro Os escritores e as escrituras: retratos teológicos-literários, de Karl-Josef Kuschel, que utilizamos ao longo da pesquisa.

[6] No original: “Theopoetics is an active, embodied perspective, generating language that reveals some of the nature of the divine in this world, making it easier to see the divine in the everyday. It is not prescriptive and does not presume to have encapsulated the full nature of God”.

[7] Termo criado pelo dramaturgo e poeta Antonin Artaud e utilizado por Deleuze para se referir às vibrações e choques, que eclodem dentro do sistema da imagem-movimento.

[8] No original: “Terry as a director is always open and aware of the stuff that’s around him. Sometimes we’ll be shooting a film anda n interesting bird will fly by and he’ll start crawling on a tree and directing the câmeras toward that bird. Or we cast dogs for this film and then He would let the dogs play outside and shoot a loto f footage of them interacting with the kids. Some of it it is just playing in the Grass. For Terry, it’s an important symbol of life”.

[9] No original: “L’inflexion gestuelle comme contraction de l’être hors de soi est définitivement passée dans le montage électrisé par des jump cuts qui, tels des courts-circuits privilégiant le raccord émotionnel sur la logique intellectuelle, font sautiller d’une strate à l’aure l’enfance rememorée. L’enfance comme ex-clamation et purê joie d’ek-sister se ventile alors en myriades enfantines de gestes, danses et jeux explosant en feux d’artifices dont le crêpitement aurait gardé en memoire l’embrasement originel du Big Bang”.

[10] No original: “Morricone’s joyous score acompanies the dissolve to a series of images that marry Abby and the Farmer not only to each other but to the very rhythms of nature”.

[11] No original: “There are several instances throughout the film when the Idea of an aquarium is used symbolically, even when the piece of music itself is not being played”.

[12] Chion utiliza o termo para referir-se à voz “sem corpo” no cinema. Uma ilustração bem didática que ele usa é o som de pisadas de bota ouvido em uma cena na qual não aparece ninguém andando de botas. A sugestão sonora é de que aproxima-se alguém caminhando, permitindo a formação de uma expectativa ou imagem mental do que ainda há de aparecer na tela. Cf. CHION, Michel. The voice in cinema. New York: Columbia University Press, 1999.

[13] No original: “voquer sérieusement la musicalité supposée du cinéma, plus précisément celle qui concernerait les éléments visuels, revient en fin de compte à aborder la notion de rythme qui règle l’ordonnance du mouvement. Ce paramètre se voit attribuer une fonction centrale dans les derniers films de Malick. Pour une large part, la singularité de ceux-ci s’origine effectivement dans leur manière particulière de scander le flux narratif par une rythmique ample et régulière. Si la succession visuelle affiche de prime abord une certaine discontinuité, établie le plus souvent par des plans en travelling qui esquissent l’espace diégétique, le montage y est en effet gouverné par des principes stylistiques visant à imprimer un mouvement homogène à la suite des images”.

[14] No original: “Il est nécessaire de signaler les liens existant entre le romantisme allemand et une tradition poétique spécifiquement américaine à laquelle Terrence Malick se réfère depuis ses débuts”.

resenha
Tempo de leitura estimado: 13 minutos

AUTOCOMPOSIÇÃO EM DESCOBRI QUE ESTAVA MORTO, DE J. P. CUENCA

Em entrevista a Bella Jozef, na década de 1990, César Aira disse algo que se tornou, nas décadas seguintes, cada vez mais significativo: “Tenho de falar do que chamo ‘mito pessoal do escritor’. Para mim, significa baixar a um nível de comunicação os mal-entendidos que se vão acumulando dentro de uma comunidade em que a conversa familiar se baseia. O mal-entendido número um é classificar alguém de escritor”. E continua, tornando o mal-entendido um sistema de crenças próprio do universo da literatura: “Esse sistema de crença que se forma em uma comunidade, estabelecendo que alguém vai ser um escritor, é o que chamo o mito pessoal do escritor. Isso é a única coisa importante. A obra é insignificante, qualquer escritor renunciaria a sua obra se não tivesse necessidade de escrevê-la para criar um mito” (1999, p. 41-42). Muito própria de César Aira, essa última frase, ao afirmar a insignificância da obra a inscreve como única coisa importante, a única capaz de sustentar o mal-entendido que faz de um escritor um escritor. Poderíamos derivar aqui para a diferença entre obra e texto na famosa acepção de Barthes: “a obra segura-se nas mãos; o texto, na linguagem” (2004, p. 277), mas o que me levou a citar essa entrevista de Aira foi a recente conversa que tive com João Paulo Cuenca a propósito da exibição de seu filme A morte de J. P. Cuenca e do lançamento de seu livro Descobri que estava morto (Tusquets, 2016).

Ambos, filme e livro, partem de um acontecimento na vida do escritor (um mal-entendido): em 2011, ele descobre que há um atestado de óbito em seu nome, inclusive com o reconhecimento do corpo, encontrado na Lapa, e assinado por uma certa Cristiane Paixão Ribeiro em 2008. Se o filme parte de uma investigação dessa morte e desse reconhecimento de corpo, à maneira de um documentário, derivando para o ficcional retomado de seu primeiro romance, Corpo presente (Planeta, 2003), o livro expõe o acontecimento como uma notícia que vai transformando o corpo entre a festa, a investigação e a queda (capítulos do romance), flertando com o gênero policial, porém investindo numa profunda transformação existencial da personagem. Essa personagem, então, é João Paulo Cuenca. Reforçado pela sua imagem no filme, o nome do autor se cola de maneira irrevogável à personagem real desse acontecimento inicial, ainda mais atestado pelas falas de amigos, críticos e outros personagens que compartilham filme e vida do escritor.

João Paulo Cuenca, de toda forma, ainda bem antes dessa narrativa-performance, foi um autor mais importante do que seus livros. Sua primeira participação na Festa Literária de Paraty (Flip) foi a de um autor ainda sem livro, em 2003. Primeiro veio a imagem, a fala, e depois o livro Corpo presente. Da mesma maneira, o autor é conhecido como curador (outra palavra para crítico) em festivais no país e por ter sido comentarista de literatura na Globo News durante seis anos (2008-2014). Ainda, ganhou visibilidade como cronista dos jornais Tribuna da Imprensa, Jornal do Brasil, O Globo e depois da Folha de S. Paulo. Presente na seleção da revista Granta e com livros traduzidos em 8 países, é um dos escritores brasileiros com maior visibilidade no cenário nacional e internacional. Um dos escritores mais cosmopolitas, esteve presente em vários festivais pelo mundo e fez conferências nas universidades europeias de maior importância. Tudo isso se sabe acompanhando as notícias que a imprensa dá de seus feitos. Nem precisaria ler os livros. Este último, porém, nos faz um resumo bastante real do que tem sido desde seu início uma das marcas da carreira literária de João Paulo Cuenca:

Ser um escritor me ocupava tanto tempo que eu já não podia escrever mais nada – o texto tinha sido substituído pelo personagem no palco de alguns festivais. O projeto anunciado no texto da Granta me parecia irrecuperável. Toda vez que eu me sentava para tocar adiante, traçava umas frases soltas, fazia planos e esquemas como um atleta aposentado. Mas aquilo não dava em nada, era tudo difuso e frio (2016, p. 140).

A morte de J. P. Cuenca, assim, veio a calhar. Se o episódio (ainda que fosse invenção, o resultado é o mesmo) do atestado de óbito foi uma espécie de propulsor do romance e do filme, a necessidade de matar uma imagem foi o que deu corpo ao projeto desde uma vivência (ainda que também performada) da depressão até a ritualística de uma morte encenada (ainda que também vivida até onde se pode viver uma morte). O autor já morto e ainda vivo é a jogada final, parece, de um ciclo da trajetória literária de Cuenca, um final bem costurado com o livro inicial, não deixando espaço para continuação do mote, como a desenhar um oroboro e produzindo outros significados de Corpo presente, agora com Descobri que estava morto. O corpo presente como na acepção da missa de corpo presente. O último ritual antes do enterro.

São várias as passagens que permitem notar essa costura do último com o primeiro livro, mais visível, porém, no filme. O primeiro livro fecha o filme, prometendo um novo nascimento do autor/personagem, promessa não tão explícita no livro, que dá voz a outro nascimento, o da crítica Maria da Glória Prado, como a última palavra a dar sentido ao livro do autor morto. Talvez um devir-mulher ou um devir-feminino na nova escrita de J. P. Cuenca. Talvez uma Carmen rediviva “a andar nua por essa necrópole sem fim, pisando seus pés pequenos sobre os mortos, esmigalhando pedaços de carne e tropeçando em ossos” (2003, p. 22). Essa Carmen que no primeiro livro, assim como no filme “Cuida de mim como se trata um filho retardado: corta minhas unhas, assoa meu nariz e perdoa minhas imundícies – tudo o que esqueço ou tenho preguiça de fazer. Lembra compromissos, horários, me acorda, me dá o norte, a única coisa parecida como uma rotina na minha vida” (p. 117). Se essa Carmen cuida do corpo presente do autor, Maria da Glória, em Descobri que estava morto, cuida do corpo presente da escrita, como uma curadora, como uma crítica, como aquela que une o fio da escrita e o fio da vida:

O limite entre a resistência e a desistência é muito estreito. Às vezes, é quase invisível. Também a fronteira entre o pessimismo e a coragem costuma nos confundir. São territórios limítrofes, em geral desérticos e habitados por nômades ou suicidas. Produto de um fenômeno cultural do nosso tempo – o conceito de autoria como performance –, J. P. Cuenca (1978-2016) parece ter vagado sobre esse solo infértil. Neste derradeiro livro, ele é personagem literário, narrador da própria história; é um tipo real que rouba sua identidade e morre num prédio ocupado na Lapa – e que por isso se torna ficcional –; e, por último, é o escritor que deixa inacabado o rascunho de um romance. Os três são personagens de ficção e personagens reais ao mesmo tempo. E os três estão mortos (2016, p. 233-234).

O conceito de autoria como performance, sob o olhar dessa crítica-personagem-do-autor, teria tornado o autor um produto derivado. Nesta personagem fica patente a crítica como instituição, sempre atacada pelo autor que, ao mesmo tempo quer seduzi-la, e um certo preconceito visto por dois ângulos: a evidência de uma literatura que se alimenta desse conceito e que, portanto, produz sua própria legibilidade na performance escrita dos autores, desautorizando a crítica que concebe esse terreno como infértil; e o da própria crítica que insiste, mesmo com o livro nas mãos, em desfazer essa literatura que se retroalimenta da imagem do autor. Mostra ainda, a declaração da morte do autor “J. P. Cuenca (1978-2016)” como uma questão que ficcionaliza a própria teoria da literatura em seus idos da década de 1960 contra a evidência do corpo do autor retornando sempre com mais força na literatura atual. Esse corpo presente e incômodo que se declara morto, se documenta, e que retorna desestabilizando o próprio conceito de literatura, que cada vez mais se expande a ponto de um autor como Bolaño considerar que os melhores autores da literatura latino-americana são os poetas suicidas da década de 1970, que nunca produziram um livro: “O melhor da América Latina são nossos suicidas, voluntários ou não” e “Isso o sabia Rodrigo Lira, que como tantos poetas latino-americanos morreu sem publicar nunca” (2004, p. 98). Ou como disse Aira, “o que menos importa é a obra”. Ela, em Cuenca, é o receptáculo desse corpo performado, agora, talvez, esgotado. E não é sem propósito que seu último livro termina com a crítica assinando mais uma vez o atestado de óbito do autor como personagem de sua literatura, tendo começado, porém, numa imagem perfeita do trabalho de se autocompor, a de um trabalho artístico de Óscar Muñoz:

Era um vídeo que mostrava a mão de um homem desenhando um rosto no chão de concreto. O desenho era feito com um pincel molhado apenas com água. Seus traços desapareciam à medida que evaporavam – parecia ser um dia quente como aquele que eu enfrentava, talvez com o mesmo entorpecente sol do meio-dia. A mão do homem voltava aos traços recém-apagados, ele tinha que se desdobrar para retocar todas as partes do rosto que iam desaparecendo. O vídeo acompanhava esse trabalho de recomposição durante uma hora (2016, p. 21).

O que faz Cuenca em todos os seus livros é retocar essa imagem exposta no jornal, na televisão, na Flip, recompondo-a a seu gosto e sempre com um autodesprezo digno de nota. Autodesprezo que se converteria em traço afirmativo para uma certa crítica avessa ao esplendor televisivo e jornalístico. Autoimagem que flerta com o maldito, com o fracassado, com o esbravejador sempre a acusar autores, críticos, jornalistas e especialmente políticos, bem como toda a ideia que remeta a homem bem-sucedido ou mesmo discurso bem-sucedido (do Rio, do Brasil, das Olimpíadas, do Jornal, das gentes que aparecem nas colunas sociais). Há várias passagens dignas de nota em Descobri que estava morto, mas quero sublinhar uma que me permite retomar a conversa autor-crítica. Depois de uma fala num seminário sobre literatura brasileira em Brown, no qual troca o discurso sempre repetido do valor de humanidade da literatura, de seu valor afirmativo, citando Antonio Candido e Mário Vargas Llosa, por aquele do antipoder, diga-se, mais alinhado com Blanchot, e mesmo com os estudos culturais que retiraram do discurso da literatura a sua centralidade, o autor-personagem se encontra com Maria da Glória, a crítica-personagem já citada aqui e que faz o posfácio do livro. Entre tantas coisas (quase sempre positivas) que a crítica-instituição já disse de J. P. Cuenca, ele escolhe dar voz àquela demolidora (talvez de Alcir Pécora). Diz Maria da Glória:

O que você escreve é confuso, os capítulos dos seus romances são sempre curtos e truncados, irresolutos, às vezes incompreensíveis. Tem certo wit e espírito da época, mas não acho que sejam fruto do trabalho mental exaustivo que marca os livros e autores que ganham prêmios por aí. Ou seja: você é um diletante que não faz muito bem o dever de casa. Com todo respeito, claro.” E depois, definitiva: “Parece que você procura a tragédia, mas acaba dando de frente com a farsa. Com o kitsch, até. E aí me parece que a tragédia maior é a falta de tragédia. O mistério maior é a falta de mistério. É um vazio sobre outro (2016, p. 159).

É interessante que assim, parodiada, a crítica que diz que essa literatura é menor do que a imagem do autor faz crer se torna mais um discurso desautorizado pelo livro que se tem em mãos – em uma medida ou em outra sempre uma produção bem-sucedida – já que tira sua matéria justamente das acusações dessa crítica. Mas, no posfácio, lugar de legitimação desobstruído pela morte do autor, a crítica nasce enquanto assinatura e ocupa o lugar do autor morto. Um lugar que acusa e legitima ao mesmo tempo.

A morte de J. P. Cuenca encenada, performada e vivida em alguma medida neste seu mais recente trabalho, parece encenar, assim, a saída da temática do cinema (resolvida com o longa-metragem), uma constante em todos os seus livros, para uma entrada no discurso crítico-teórico da literatura. Como a pedir passagem para uma imagem já desgastada na tela em sua entrada na crítica universitária. Ou pelo menos faz um convite para a conversa entre a literatura e a crítica e nisso ensaia o desenho de uma nova imagem. No livro, há uma sofisticada denúncia: a cidade demolida, roubada; o jornal frívolo, cínico; a falta de motivação para permanecer vivo e atuante fora da existência íntima, uma recusa de engajamento; e a constatação da denúncia vã. Tudo isso apoiado pela epígrafe do defunto-autor Brás Cubas: “A franqueza é a primeira virtude de um defunto”. O morto, e também a literatura, pode dizer tudo. Mas, parece, não têm poder algum além de dizer. A crítica expõe uma falha – a do excesso de visibilidade? A da vaidade? A da existência vã? – e exige um novo desenho para a literatura e para a imagem do autor, ao mesmo tempo se fazendo visível ela própria pelo que lhe permite a literatura.


* Ieda Magri é professora adjunta de Teoria Literária na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e autora dos livros Ninguém (7 Letras, 2016), Olhos de Bicho (Rocco, 2013) e Tinha uma coisa aqui (7 Letras, 2007).

 

Referências

BARTHES, Roland. Inéditos vol. 1 teoria. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

BOLAÑO, Roberto. Entre paréntesis. Barcelona: Anagrama, 2004.

CUENCA, J.P. Corpo presente. São Paulo: Planeta, 2003.

CUENCA, J.P. Descobri que estava morto. São Paulo: Tusquets, 2016.

CUENCA, J.P. A morte de J. P. Cuenca. Brasil, 2015. 90 minutos.

JOZEF, Bella. Diálogos oblíquos. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1999.

artigo
Tempo de leitura estimado: 40 minutos

LEGADOS DE GAMES, ADVERGAMES E MEGAEVENTOS ESPORTIVOS

Resumo: Os megaeventos esportivos passaram a fazer parte da rotina da sociedade brasileira, sobretudo os Jogos Olímpicos e Paralímpicos com produtos para consumo, que são criados para diferentes perfis etários e consumidores, principalmente na área de games. O objetivo deste artigo é realizar um levantamento dos games, além das tendências de advergames e Olimpismo dos principais megaeventos de 2016. Aplicou-se a classificação em relação ao gênero; ao design dos jogos; à tipologia das personagens e às suas perspectivas, além da leitura sobre as marcas (advergames) e representação dos valores olímpicos. Como resultado foi encontrado somente o jogo “Mario & Sonic e os Jogos Olímpicos” com base em apenas um evento, sem trabalhar conceitos do Olimpismo. Conclui-se que os valores e a diversidade das Paralimpíadas poderiam ser explorados como tendência de legado de megaeventos no país.

Palavras-chave: Megaeventos esportivos; legados; games.

Abstract: The mega sport events became part of the routine of the Brazilians especially the Olympic and Paralympic Games in Rio de Janeiro. Associated with these coming events, products for consumption are created for different age profiles, goals and consumers, principally in the market for games. The objective of this article is to search games, advergames and Olympic Education related to the two sport mega events in Brazil in 2016. It was applied a classification to investigate the subjects, design, the characters, perspectives, research of brands (advergames) and elements of the Olympic values. The findings revealed that just the game ‘Mario and Sonic and The Olympics’ focused on one only event without include concepts of the Olympism. In conclusion, the Educational Values and the diversity of Paralympics could be explored as part of sport mega-event legacy.

Keywords: Sport mega events; legacies; games.

 

Os Jogos Olímpicos são fruto da premissa de que seres humanos criam e interagem através de jogos (Egenfeldt-Nielsen; Smith; Tosca, 2010). Assim como jogos em geral, esportes também são caracterizados a partir de regras, valores e relações entre indivíduos. Parte-se da ideia de que o jogo é caracterizado por uma ação voluntária, que tem início e fim, ocorrendo assim com uma limitação e determinação de tempo e de espaço. O jogo faz uso de regras livres e consentidas, mas sobretudo obrigatórias, que duela entre sentimentos de tensão e de alegria (Huizinga, 2004). Estas caracterizações também se aplicam a outros princípios, como por exemplo a gestão de um megaevento. Os Jogos Olímpicos da Era Moderna completam 120 anos no corrente ano dos Jogos Rio 2016. Torna-se interessante entender, a oportunidade de combinação de marcas conforme menciona Nelson, Keume e Yaros (2010) e as nuances do game, jogos olímpicos e megaeventos, quando se está diante de uma potencial proposta educativa, no que se refere ao evento e aos produtos ligados ao mesmo.

Os megaeventos esportivos passaram a fazer parte da rotina da sociedade brasileira e, sobretudo da cidade do Rio de Janeiro. Desde 2002, o país recebeu os Jogos Sul-Americanos, passando pelos Jogos Pan-Americanos Rio 2007, até a chegada dos três maiores eventos esportivos, como a Copa do Mundo de Futebol FIFA 2014, Jogos Olímpicos e Paralímpicos. Associados a esta tendência, inúmeros produtos para consumo antes, durante e depois do eventos são gerados, para diferentes perfis etários. A temática de legados veio a tona na sociedade e ganhou força por meio da imprensa local e internacional. As referências de legados geradas a partir dos Jogos de Londres 2012, produziram um novo tipo de cobrança aos comitês organizadores e aos governos, no que se alude aos legados e as responsabilidades sociais. O que mais se discutiu foram os legados tangíveis ou estruturais, ou seja, aqueles que são ligados as instalações dos eventos. Todavia, os legados intangíveis ou imensuráveis são os que chamam a atenção pela diversidade e riqueza de oportunidades de exploração, e neste nicho se encontram os games e o envolvimento de novos stakeholders aos maiores megaeventos esportivos.

No ano de 2010, o Comitê Olímpico Internacional criou os Jogos Olímpicos da Juventude que teve sede em Singapura, com uma necessidade de se aproximar de modelos de negócios que interagissem com a classe mais jovem, ou seja,  futuros consumidores do megaevento esportivo (IOC, 2010). Essa tendência de atrair jovens consumidores é comumente encontrada no mercado de games que se reinventa constantemente (Dahl; Eagle; Báez, 2009), assim como fez o IOC e algumas empresas que utilizam advergames (Lee; Youn, 2008; Terlutter; Capella, 2013). Entretanto, não foi desenvolvido nenhum game eletrônico para o evento, apenas utilizou-se do que já existia no mercado para difundir e fixar as marcas olímpicas e, assim sendo, os organizadores passaram também a dialogar com os  novos mídia e redes sociais. Contudo, a necessidade das grandes empresas cada vez mais reproduzirem a linguagem contemporânea dos jovens e envolver outros formatos de mídia fez com que dois anos antes dos Jogos da Juventude, em 2008, ocorresse o lançamento dos primeiros games utilizando as marcas registradas da instituição. Transferindo o usuário a uma realidade mais próxima de um ambiente competitivo no mundo virtual. A partir do Youth Olympic Games rediscutiu-se até mesmo o modelo tradicional do esporte, alterando-se regras de modalidades para que os valores educacionais e filosóficos dos Jogos fossem atingidos, sem que se perdesse o cunho comercial e a importância do jogar e competir.

O ato de jogar está inerente nas relações sociais entre seres humanos e sobretudo de forma política de se portar na sociedade. Parte do entendimento do que vem a ser o jogo está presente nas leituras sobre o lazer como destaca Pimentel (2012), que sugere uma atenção especial para a releitura do ócio.  O jogo de uma maneira geral permite a “atuação ativa”, ou seja o consumidor é parte do espetáculo, realiza e participa da ação, interage diretamente com o movimento a ser realizado; ou a “atuação passiva”, na qual o usuário é um espectador e não interfere ou não dispensa gastos calóricos em sua atividade. Pimentel retrata que o estar “ativo” se conecta a uma realidade higienista da realização da “atividade física no tempo livre como uma forma de manutenção da saúde, especialmente na prevenção de doenças crônico-degenerativas e diminuição do estresse” (Pimentel, 2012, p.300). O que antes com os jogos eletrônicos era entendido como jogos mais estáticos para o consumidor mudou com os videogames de sétima geração em diante, que se utilizam de devices[1] para leitura dos movimentos corporais estimulando assim um novo modo de jogar, interagir e se movimentar (Walz; Deterding, 2014). O que se entende como um novo momento para os games, recebe diferentes tipos de nomenclaturas como fitness game, exergaming ou exer-gaming segundo Oh e Yang (2010); e vem sendo utilizado para estimular uma juventude mais ativa (Sun, 2012), menos sedentária (Robinson, 1999), para aprendizagem de gestos motores (Ditore; Raiola, 2012) e reabilitação (Brookey; Oates, 2015; Sant’ana;  Medrado, 2013), sobretudo utilizando jogos de esporte para o fitness, lazer, entre outros (ACSM, 2013).

Mesmo com a existência das plataformas e devices que permitem uma leitura do movimento corporal, nem todos os Jogos de esporte estão disponíveis em tal formato, e nem por isso, se permitem receber uma classificação rígida de “atuação passiva”[2], visto que as novas máquinas permitem outros tipos de interação e atuação, como por exemplo, a conexão por voz, foto, texto entre plataformas ou redes sociais conectando dois ou mais usuários.

Na área de entretenimento, os games possuem uma entrada ligada as macro brands dos megaeventos, ou seja, as companhias após a compra de direitos de imagem utilizam as logomarcas e tendências dos advergames para gerar Jogos Temáticos, Sazonais e de Gêneros diferentes. O objetivo do presente artigo é realizar um levantamento dos games ligados aos dois  principais megaeventos do ano de 2016, Jogos Olímpicos e Paralímpicos, a serem realizados na cidade do Rio de Janeiro. Aplicou-se a classificação em relação ao gênero e os subgênero; design dos Jogos; a tipologia das personagens, associado a uma leitura sobre o posicionamento publicitário de marcas (advergames) e representação dos valores olímpicos dentro dos jogos digitais. Como resultado primário foi encontrado apenas o  jogo da série Mario & Sonic e os Jogos Olímpicos Rio 2016, vide figura 1. De acordo com a Nintendo (2016)  tem lançamento oficial programado para 18.02.2016 em Tóquio, ao valor de ¥5.076 ienes, o que seria equivalente R$168,63 de acordo com a conversão do Banco Central do Brasil (2016), vide cotação de 29.01.2016 de 1 IENE/JPY (470) = 0,03324 REAL BRASIL/BRL (790). De acordo com a Epic Plat Brasil (2016, p.1), os jogos da dupla com a temática Olímpica são detentores do “título no Guinness World Records Gamer’s Edition como o jogo cross-over de personagens mais vendido na história, com 7.09 milhões de vendas só em sua primeira versão para Wii e 4.22 milhões para a mesma no portátil DS”

advergames-002

Figura 1: Capa e anúncio oficial de lançamento
Figura 1: Capa e anúncio oficial de lançamento

Jogos digitais e Cultura

Jogos e cultura podem ser analisados por dois aspectos (Salen; Zimmerman, 2004). Primeiro, pelo viés representativo, como uma reflexão da própria cultura e de valores. Segundo, pelo ponto de vista do potencial transformativo do jogo, através da participação dos jogadores. Desta forma, jogos e cultura coexistem em um determinado contexto.

A apropriação cultural de elementos dentro do jogo pode ser uma maneira de promover significado para os jogadores (Vasalou et al., 2014). Por outro lado, cultura e jogos persuasivos, como os advergames, podem ser traduzidos por elementos compostos por heróis, símbolos, rituais e o contexto do jogo, dentro e fora do ambiente digital (Wanick; Ranchhod; Wills, 2015). Isso mostra que jogos digitais não podem ser estudados sem levar em consideração três aspectos: as características do jogo, do jogador e do contexto.

Os jogos digitais ganharam espaço na sociedade como artefatos culturais (Ranchhod; Wanick, 2014). A aplicação de jogos em diferentes cenários trouxe conceitos como os serious games e jogos persuasivos, com o objetivo de modificar comportamentos e atitudes em diferentes áreas, tais como saúde, educação e marketing (Connolly et al., 2012). Dentro do grupo dos jogos persuasivos também pode-se encontrar os advergames (Bogost, 2007), ou seja, jogos com intuito de passar uma mensagem publicitária.

Advergames

Advergames são jogos criados em torno de uma mensagem persuasiva (Svahn, 2005; Bogost, 2007). A aplicação de jogos para publicidade geralmente inclui marketing de marcas para consumo. Neste contexto, games que simulam Jogos Olímpicos podem funcionar como veículos de publicidade, como maneira de engajar o público com o evento. Advergames podem ser desenvolvidos de diversas maneiras, inclusive a partir de Jogos de Realidade Alternada (ARG), ou seja, jogos que não estão totalmente presos a uma interface digital.

Advergames possuem persuasão como tema central. De acordo com Bogost (2007), jogos persuasivos como advergames possuem uma retórica de processo (procedural rhetoric), caracterizada pela utilização de regras e processos digitais de maneira a persuadir o jogador. Porém, estudos de jogos devem levar em consideração os dois lados: o design e a apropriação que o jogador faz do game. Além disso é importante considerar o contexto do jogo. De acordo com Mäyra (2007), a apropriação de significado pelos usuários não pode ser separada do contexto social e cultural. A consideração de um contexto pode ser explicada através do tema dos jogos. Por exemplo, marcas podem se utilizar de eventos, como a Copa do Mundo, para promover uma mensagem mais significativa para o jogador (Wanick; Ranchhod; Wills, 2015). Dessa forma, megaeventos como Jogos Olímpicos podem ser considerados como um contexto a ser estudado.

Devido ao uso dos advergames para promover marcas, o jogo está geralmente centralizado através de uma mensagem publicitária (Wise et al., 2008). Em outras palavras, o game é a peça publicitária e o controle e a manipulação de uma marca dentro do jogo influenciam a intenções de compra (Lee; Park; Wise, 2013). Exemplos de advergames são o jogo online Magnum Pleasure Hunt, o jogo de Playstation, Pepsiman para a Pepsi, Human Curling, da marca BIC e Fiat Uno Colour Race, criado para iPhone (Freitas; Patriota, 2011).

Um dos principais temas em advergames é a integração do jogo com a marca. Essa congruência pode ser traduzida a partir de diferentes níveis de integração, inclusive através de representações emocionais da marca dentro do jogo (Wuts et al., 2012). Outra maneira de entender essa integração é a partir dos níveis associativo, demonstrativo e ilustrativo (Bogost, 2007). O nível demonstrativo promove a interação com a marca ou o produto de maneira mais objetiva e integrada. Por exemplo, um jogo de corrida que promove a marca de um carro.  Já o nível ilustrativo mostra a marca ou o produto dentro do jogo, mas não há integração entre o gênero e a categoria da marca. Dessa forma, o entendimento desses níveis de integração é importante para a análise e o design de advergames.

No caso dos Jogos Olímpicos há uma restrição em relação ao uso de marcas. O uso de símbolos, elementos gráficos e não gráficos com relação aos Jogos Olímpicos e Paralímpicos com propósito comercial, por exemplo, só podem ser usados pelo Comitê Olímpico, os patrocinadores, licenciados oficiais  e emissoras de TV detentoras de direitos. Dessa forma, a integração dessas marcas dentro do jogo deve ser analisada com cautela. É possível que a integração dessas marcas seja mais objetiva, colocando o nome dos patrocinadores de forma mais “aparente” dentro do jogo, fato que não ocorre no Mario & Sonic. São apresentados apenas os símbolos de propriedade do Comitê Olímpico Internacional e do Comitê Organizador Rio 2016, mostrando que o game tem um nível de relação macro apenas com os gestores do evento e não apresenta nenhuma relação micro com outras marcas patrocinadoras.

advergames-003

advergames-004

advergames-005

Figura 2: Ambiente de jogo valorizando as marcas (Rio 2016, Aros Olímpicos e Mascote)
Figura 2: Ambiente de jogo valorizando as marcas (Rio 2016, Aros Olímpicos e Mascote)

Jogos digitais e jogos olímpicos

Inspirados nos jogos olímpicos de 1984, o gênero de games de esportes nasceu a partir da combinação de uma variedade de práticas esportivas e não apenas uma modalidade (Egenfeldt-Nielsen; Smith; Tosca, 2010). Em outras palavras, jogos digitais esportivos simulam as modalidades. Foi o início das série de games para cada tipo de evento com jogos de inverno, mundiais etc (Egenfeldt-Nielsen; Smith; Tosca, 2010). Essa transição dos eventos esportivos para os videogames trouxe uma apropriação do contexto e da cultura para dentro do mundo digital.

Um exemplo de videogames inspirados nos Jogos Olímpicos é a série Mario & Sonic nas Olímpiadas. As séries Mario & Sonic tiveram início em 2007 e 2008, com as Olímpiadas em Beijing. Desde então, em torno de 5 versões do jogo estão disponíveis. Esses tipos de jogos tendem a ser sazonais, mesmo que na oitava geração de consoles.

O grande trunfo dessa combinação é a rivalidade implícita entre Mario, personagem da Nintendo, e Sonic, personagem da Sega. Desde 1983, com o lançamento de diversos jogos, a Nintendo se posicionou como uma das maiores empresas de game consoles no mundo (Wolf; Iwatani, 2015). Essa posição mudou com a entrada da Sega na arena dos consoles, com o lançamento do Mega Drive e da personagem Sonic (Wolf; Iwatani, 2015).

Valores

O movimento olímpico tem um discurso que envolve o esporte, a comunicação e a promoção dos ideais universais sobre paz e educação (Roche, 2006). O “olimpismo” desenvolvido pelo pedagogo Pierre de Coubertin em 1890 “enfatiza o papel do desporto na cultura global, a compreensão internacional, a convivência e educação social e moral” (Parry, 2006, p. 65).

Enquanto os valores Paralímpicos compreendem: a igualdade, a coragem, a determinação e a inspiração. Segundo o Comitê Paralímpico Internacional (2005) o esporte ensina valores e oferece às pessoas, independentemente da sua capacidade física, a oportunidade de ver o melhor dentro de si.

O conceito de olimpismo e educação olímpica surgiu após Coubertin identificar uma firme conexão entre o desporto e o crescimento do interesse da cultura popular. Através da sua recomendação registrada na Carta Olímpica (1894) se originaram os valores do olimpismo: excelência, amizade e respeito. Araújo e Gastaldo (2014) argumentam que o olimpismo busca exaltar qualidades do corpo, mente e espírito se relacionando diretamente com o esporte, a educação e a cultura, visando ao respeito em valores éticos e a superação de si mesmo.

Análise

A seleção do objeto de estudo se deu através de um levantamento dos jogos lançados no mercado Japonês, Norte Americano e Brasileiro. O critério de inclusão foi que o game tivesse relação com os megaeventos que se realizarão no Rio de Janeiro, principalmente para as plataforma de sétima e oitava geração. O modelo de análise aplicado tem como princípio o entendimento da integração entre a marca Rio2016, outras possíveis marcas e os valores olímpicos.

A investigação dos valores dentro do advergame é crucial para o entendimento da proposta de advergames no contexto dos Jogos Olímpicos e como formação de legados. Considerando essa perspectiva, os objetivos da análise são: a) identificar as representações dos valores olímpicos dentro do advergame; b) explorar as possiblidades de integração entre marcas dos Jogos Olímpicos dentro do advergame; c) analisar as perspectivas do design de jogos (advergames) como legado olímpico.

Para isto, selecionamos elementos que estão atrelados ao jogo: as personagens, as características do cenário, os NPC (personagens que não estão sendo controlados pelo jogador), a narrativa e as mecânicas do jogo, conforme a Figura 5.

Elementos dos advergames

Interface visual, mecânicas do jogo, narrativa, contexto e a mensagem publicitária são componentes de advergames que podem ser estudados por um viés cultural (Wanick; Ranchhod; Wills, 2015b). Considerando a interface visual, elementos como o cenário, cores e personagens podem ser incluídos como parte da estética do jogo. Dentro do jogo, as personagens têm um papel fundamental na apropriação de significado pelos jogadores, principalmente através da aceitação dos objetivos da personagem e do controle da personagem (Gee, 2008). Essa interligação entre jogador e personagem pode acontecer de forma aberta, a partir de escolhas dentro do jogo, ou de forma fechada, a partir das limitações da narrativa (Caetano, 2013). Essas características foram consideradas na análise do jogo (ver Figura 3).

Figura 3: Modelo de análise de Advergames no contexto dos Jogos Olímpicos
Figura 3: Modelo de análise de Advergames no contexto dos Jogos Olímpicos

Personagens

Durante uma partida, os jogadores podem escolher tanto a personagem da Nintendo ou da Sega, enquanto competem em cada modalidade. A escolha das personagens é uma grande representação da inclusão dos jogos e da valorização das diferenças. O visual do game é em 3D e pode ser jogado tanto em Nintendo 3DS e WiiU, que são consoles móveis.

No caso das modalidades (Figura 4), é possível ver que há uma predeterminação das personagens de acordo com as habilidades requeridas pela modalidade. Por exemplo, na modalidade corrida, Sonic é uma das principais personagens a ser escolhida. No caso da ginástica olímpica, a personagem é Rosalina. Esse fato está relacionado às habilidades de cada personagem em si. Os jogadores têm a liberdade de selecionar as personagens de acordo com força, diferentes habilidades e rapidez, conforme o Quadro 1.

advergames-010

Figura 4: Detalhamento das modalidades constante na tela inicial do jogo
Figura 4: Detalhamento das modalidades constante na tela inicial do jogo

Há um grande número de personagens nesta versão do jogo (40), se comparado às versões anteriores (16) da série dos jogos Mario & Sonic, sendo 20 relacionados ao Mario e os outras 20 personagens relacionadas ao Sonic. Por exemplo, Rosalina é uma personagem que aparece no Super Mario Galaxy em 2007 e só foi incluída na série olímpica na edição Mario & Sonic Rio 2016, conforme o Quadro 1. Dessa forma, a inclusão de novas personagens está ligada ao desenvolvimento das outras séries durante os anos anteriores. Entretanto, pode ser que o aumento do número de personagens também esteja relacionado à inclusão de diferentes personalidades. Com isso, o jogador tem mais possibilidades de escolhas, o que pode trazer uma sensação de autonomia, autorrepresentação, identidade, inclusão, conexão do imaginário social e controle dentro do jogo.

Considerando as características das personagens, podemos ver que a conexão entre a personagem e o jogador é uma relação fechada. Como cada personagem possui uma habilidade específica e está mais propenso a ter um melhor desempenho em uma modalidade, essa conexão se torna atrelada à narrativa do jogo.

No time Mario, a maioria das personagens possui características de rapidez. As personagens com a aparência mais pesada e com volume corporal avantajado possuem mais característica de força. Já as personagens que possuem as proporções corporais mais humanas possuem um destreza superior. No time Mario, há dois personagens que são versões esqueleto de outras personagens. Já no time Sonic, há mais personagens femininas do que no time Mario. O time Sonic tende a ser mais versátil, com personagens que podem demonstrar mais de uma modalidade. Essa variação pode trazer uma sensação de inclusão de diversidades. No entanto, ainda há uma diferença entre os gêneros das personagens.

Além disso, dentro do jogo Mario & Sonic, o jogador pode escolher na sua representação, a personagem Mii, criada e customizada pelo usuário. No game, o Mii pode se travestir de Mario, Sonic, Toad, entre outros. Estão disponíveis roupas relacionadas à cultura brasileira (por exemplo, fantasia de carnaval), sendo ainda possível a escolha da fantasia da mascote dos Jogos Olímpicos, Vinicius. Essa personalização é importante em termos de autorrepresentação,  autoestima, autonomia e senso de controle dentro do jogo, conforme a figura 5:

advergames-011

Figura 5: A personagem Mii em modo história (mini-game) e com fantasia customizada
Figura 5: A personagem Mii em modo história (mini-game) e com fantasia customizada

NPCs

Dentro do jogo é possível distinguir pelo menos dois tipos de personagens: a personagem controlada pelo jogador, geralmente um avatar e os NPC (non-player character), ou as outras personagens que fazem parte do jogo mas não são controlados pelo jogador diretamente. Interações com os NPCs são importantes, principalmente em jogos educacionais. Por exemplo, interações com NPCs podem trazer mais informação para o jogador ter um bom desempenho dentro do game (Frazer, 2008).

Os NPCs apresentados dentro do Mario & Sonic são geralmente personagens da Nintendo e muitas vezes são componentes da torcida. Por exemplo, a personagem Toad, da série do Mario aparece como NPC no jogo. Isso pode estar relacionado com as características físicas da personagem (cogumelo). O mesmo acontece com o NPC Shy Guy, que é um fantasma com poucos atributos físicos. Além disso, dependendo da modalidade, os NPCs podem ser juízes em cada modalidade. Se o jogador estiver jogando sozinho, NPCs podem tomar forma de uma das personagens, de maneira a deixar a partida mais equilibrada.

Time Mario Time Sonic
Habilidade Rapidez, agilidade 10 14, sendo que 7 também têm destreza e força
Destreza 4 7
Força 6 5
Tipo Humano 7 2
Animal 13, sendo que 2 são esqueletos 17
Outros 0 1 (Robô)
Gênero Feminino 5 7
Masculino 13 11
Indefinido 2 2

Quadro 1: Personagens em todas as versões de Mario & Sonic nos Jogos Olímpicos

Mecânicas e modalidades

As mecânicas do jogo são praticamente uma simulação das modalidades dentro do game através da animação das personagens. Para cada modalidade há uma diferente mecânica e um controle diversificado. Há feedback rápido, sons e animação de pontos de acordo com a interação do jogador com o ambiente. Também há a contagem do tempo, a posição da personagem de acordo com os outros participantes e a vibração da torcida. Em algumas modalidades, como o tiro com flecha também é possível ver o replay da ação do jogador.

Além disso, é possível que as mecânicas estejam atreladas também às habilidades de cada personagem. Se a personagem é rápida, é possível que ela possa ter um melhor desempenho em corrida, o que pode levar a uma mecânica mais robusta. As ações que os jogadores devem seguir para prosseguir no jogo também são semelhantes à modalidade. Por exemplo, se a modalidade é corrida, o jogador deve ser rápido o suficiente movendo os botões do 3DS. Todas as ações estão interligadas.

Dentro do game também há a possibilidade de jogar episódios menores (mini-games), através do modo história. Nos mini-games encontram-se modalidades como maratona, badminton, salto com vara, canoagem e argolas. Nessas provas é possível conquistar roupas e poderes, inclusive disputar as provas convencionais com o Mii.

Cenário

O cenário é importante para trazer a adaptação do jogo para a cidade olímpica. Na modalidade tiro com arco, há a figura do sambódromo no fundo de maneira a ilustrar um dos maiores pontos turísticos do Rio de Janeiro. Na modalidade de salto, também é possível identificar o estádio Maracanã. Isso mostra que o jogo não apenas serve como uma maneira de divulgar o evento, mas também de modo a promover a cidade olímpica. Gráficos, animações, som e a tipografia implementada nos jogos ajudam a construir a narrativa do jogo (Bizzocchi; Lin; Tanenbaum, 2011). Dessa forma, o cenário também funciona como uma representação da narrativa do jogo.

Além do cenário do jogo principal, também é possível jogar episódios menores (mini-games) com a personagem Mii. Nos cenários desses mini-games são valorizadas áreas da cidade como o Corcovado com o Cristo Redentor, as praias do Leblon, Ipanema e Copacabana, a Urca com o Pão de Açúcar, o Aterro do Flamengo, o Centro (Porto Maravilha), o estádio do Maracanã e a Floresta da Tijuca. Com isso, o jogador tem a oportunidade de se locomover nas ruas do Rio de Janeiro, resolvendo pequenas questões em troca de ganhar roupas exclusivas que fornecem status e habilidades para as personagens. A integração entre incentivos, customização e prêmios em mini-games pode fazer com que o jogador se sinta mais engajado dentro do jogo principal. Essa estratégia pode funcionar como publicidade turística, de modo a divulgar os pontos principais do Rio de Janeiro. A publicidade turística em games por meio de advergames tem sido uma tendência cada vez mais utilizada (Celtek, 2014).

Narrativa

A introdução de Mario & Sonic Rio 2016 mostra as personagens em ação e a música ao fundo muito semelhante ao samba brasileiro. A disposição dos elementos, e até mesmo o nome, Mario & Sonic, traz como narrativa a competição como um dos temas. Há uma rivalidade implícita entre as personagens das séries do Mario e das séries do Sonic. Até mesmo as cores vermelho e azul (respectivamente Mario & Sonic), trazem uma ideia de rivalidade. Dessa forma, os NPCs que suportam as personagens do Mario são os outros personagens da série como a Princesa Peach, Luigi, Yoshi e Toad, por exemplo.

Além disso, há uma narrativa implícita entre as personagens de cada time. Cada grupo possui ambos os heróis e os vilões de cada série. Por exemplo, Mario e Bowser, que são originalmente rivais nas séries Super Mario e outras, jogam no mesmo time.

Mensagem e valores

A principal mensagem do jogo é promover os Jogos Olímpicos através de um ambiente lúdico e interativo como os videogames. Além disso, um dos principais objetivos é educar o público sobre as características da cidade olímpica e os valores olímpicos. A comunicação dessa mensagem se dá por vias interativas a partir do videogame.

Nesse contexto, a comunicação com o público é crucial. É comum encontrar nos comitês organizadores dos Jogos Olímpicos os guias oficiais que promovem e dirigem o evento e distribuem informações sobre a relação com o público; orientações de segurança; propostas de compartilhamento de valores do esporte e do evento; além de outros conteúdos que preparam profissionais e voluntários para trabalhar neste megaevento. No caso do jogo Mario & Sonic, não encontramos a comunicação sobre segurança ou qualquer referência ao trabalho voluntário envolvido nos Jogos Olímpicos. Por que não criar um mode em que o usuário possa ser o árbitro, ou gestor do evento, ou mesmo um voluntário na função Mii ou nos mini-jogos? Isso permitiria trazer o game mais próximo da realidade do que são os Jogos Olímpicos.

Além disso, a mensagem educativa, orientada para os valores é um objetivo da realização dos Jogos Olímpicos e da criação de legados, principalmente em escolas. Considerando eventos anteriores, Pequim apresentou em números o maior programa de educação olímpica devido à grande quantidade de alunos matriculados no sistema regular de ensino e a tradução do conteúdo para a língua local. No entanto, o programa educacional chinês só existiu de modo físico ignorando o ambiente virtual, fato já utilizado para os jogos de Londres 2012 e Rio 2016. Dessa forma, a incorporação da mensagem olímpica dentro de videogames como Mario & Sonic pode ser uma estratégia eficaz de comunicação de valores, já que os videogames são artefatos interativos e lúdicos.

Sendo assim, é possível otimizar a prática de programas educacionais através de games, como por exemplo, utilizar o jogo Mario & Sonic em escolas. Uma outra possibilidade é expandir as funções de exer-gaming, oferecendo mais movimentação corporal e um desgaste mais efetivos de calorias em jogo esportivo.

Valores educacionais integrados aos valores olímpicos e paraolímpicos são jogo limpo, respeito, busca por excelência, alegria e equilíbrio (ver Figura 4). No advergame, encontramos a oportunidade de ver o melhor de si em cada tarefa, colaboração, senso de participação, amizade, tradição e cultura popular, a superação de si mesmo, determinação, senso de controle, competição e respeito (ver Quadro 2).

A oportunidade de superação e o senso de controle podem estar relacionados à escolha das personagens. Contudo, personagens femininas parecem estar mais atreladas a certas modalidades, como a ginástica olímpica. A quantidade de personagens femininas também é um ponto a ser levado em consideração. Isso pode ilustrar uma certa falta de igualdade entre gêneros. Por outro lado, a escolha das personagens pode estar ligada às suas proporções corporais. Como as Princesas Peach e Rosalina possuem mais características físicas humanas (antropoformóficas), a animação e a mecânica da ginástica olímpica parece mais fácil de se adaptar à personagem.

Competição, colaboração e amizade estão representadas pelos times e as personagens. Por exemplo, em ambos os times (Mario & Sonic) há a presença dos vilões e dos heróis. Esse dualismo dentro de cada time é interessante do ponto de vista de amizade e respeito das diferenças. A presença da torcida com as personagens de cada série também mostra apoio e participação.

A determinação é representada pelas mecânicas do jogo. Por exemplo, cada movimento certo ou errado terá efeito no jogo. Além disso, é possível repetir a ação mais de uma vez. Isso mostra que o jogador pode melhorar sua colocação a qualquer momento, repetindo as tarefas dentro do jogo. Esse conceito é muito semelhante à ideia de fluxo (flow), ou seja, a relação balanceada entre habilidade e desafio (Csikszentmihalyi, 1996). Isso mostra que a repetição dentro do jogo é uma maneira do jogador melhorar suas habilidades e, com isso, receber incentivos e prêmios.

Marcas

A integração entre as marcas e o jogo pode ser analisada de forma associativa, demonstrativa ou ilustrativa. No caso do Rio 2016, é possível encontrar a marca no fundo do jogo, de maneira associativa. Isso pode ser representado pela utilização das cores azul, amarelo e verde no fundo de algumas modalidades, semelhante às cores utilizadas pela marca Rio 2016. Também é possível ver a mascote do Rio 2016 em partes do jogo. A tipografia utilizada no chão do cenário da pista de atletismo ou no fundo da piscina, por exemplo, também é uma maneira de fazer uma associação à marca Rio 2016. Porém essa estratégia é mais subjetiva, pois os rótulos não aparecem por inteiro. Há outros elementos secundários no cenário do jogo que também exibem as marcas registadas. Balões, banners em postes, e outros artefatos no chão também mostram a marca Rio 2016. Em algumas modalidades do jogo há balões espalhados no céu com as personagens da série da Nintendo e a mascote.

Além disso, a cor dégradé de amarelo para laranja em algumas paredes do cenário faz associação às cores da marca. Inclusive, as curvas utilizadas pela marca também estão presentes nos objetos e formas do cenário. Os pictogramas oficiais também são utilizados em cada uma das modalidades esportivas dos jogos. A Mascote oficial Vinicius[3] também aparece em balões, backdrops e outdoors do cenário. No jogo a mascote é passiva, não podendo ser escolhida para jogar, quando diante de tantos valores culturais[4], e com tanta riqueza de história criada, poder-se-ia melhor explorá-la.

Além disso, partes da cidade e ambientes que remetem ao Rio de Janeiro podem ser vistas nas telas de transição. De acordo com o Comitê Organizador dos Jogos Rio 2016, o jogo apresenta o megaevento por meio da digitalização gráfica das arenas esportivas, oferecendo uma  “verdadeira prévia de como serão as estruturas, as cores e o clima das áreas de competição” (Rio2016, 2015).

Elementos do advergame Características do jogo Valores
Personagens • O jogador pode escolher entre as personagens das séries Mario e/ou Sonic
• Cada personagem tem uma habilidade diferente
Oportunidade de ver o melhor de si
NPCs • Podem ser da série do Mario ou Sonic
• Estão geralmente no fundo do jogo ou podem atuar como juízes nas competições
Colaboração; senso de participação; amizade
Cenário • Possui as cores da marca oficial dos Jogos Olímpicos
• Ilustra a cidade olímpica (Rio de Janeiro)
Tradição, cultura popular; transição
Mecânicas • Simulam as modalidades/esportes
• Feedback rápido para o jogador
• Mecânicas diferentes para cada modalidade
Superação de si mesmo; determinação; senso de controle; competição
Narrativa • Mario & Sonic participam dos Jogos Olímpicos no Rio
• Há uma rivalidade implícita
• Os times podem se tanto das séries Mario e/ou Sonic
Competição; colaboração; valores éticos; respeito
Marcas • Marcas oficiais do Comitê Olímpico e do Rio2016 Tradição; cultura popular; olimpismo

Quadro 2: Análise dos elementos do advergame e valores

Considerações finais

A apropriação de jogos digitais que promovam valores olímpicos é uma maneira de expandir a mensagem olímpica para diferentes públicos, inclusive jovens. Os games representam uma excelente ferramenta para que instituições esportivas como IOC e FIFA se conectem à linguagem do jovem, transmitindo valores olímpicos, paralímpicos e educativos. É possível que em contextos educativos, a utilização de jogos digitais, como os Jogos Olímpicos, possam promover valores de amizade e respeito, principalmente através do design das personagens, do cenário e das mecânicas dos jogos.

Pelo viés comercial, é possível que os advergames que promovam os Jogos Olímpicos possam trazer uma boa exposição para a marca, construindo uma relação entre a marca, os valores e os consumidores. Sobretudo através da utilização das marcas patrocinadoras do megaevento. Neste caso, a função dos consumidores vai além da compra do produto; há participação e um cunho social atrelado aos valores olímpicos. Essa característica mostra que advergames podem ser estudados também como forma de publicidade social.

Apesar da existência de valores como respeito, amizade, colaboração e determinação, o game Mario & Sonic poderia ter explorado os Jogos Paralímpicos. Modalidades como o goalball, voleibol sentado, bocha, judô, entre outras, poderiam ser inseridas no game apresentando vias de inclusão social de pessoas sem deficiência na prática do esporte adaptado. De todas as séries Mario & Sonic, nenhuma foi criada com o intuito de divulgar os Jogos Paralímpicos e muito menos evidenciado os valores Paralímpicos ou educacionais mencionados no artigo. Nos cenários alternativos para cada esporte em que se permite a participação do Mii e outros personagens customizados, poder-se-ia utilizar personagens Paralímpicos ou atribuir outros valores educativos omitidos pelo jogo.

Considerando a perspectiva das personagens, também encontramos três aspectos a serem explorados: igualdade de gêneros, diversidade e amizade. Comparando os gêneros das personagens, encontramos um maior número de personagens masculinos. Isso mostra que ainda há espaço para personagens femininas em jogos como Mario & Sonic. Há também um número pequeno de personagens com gênero indefinido. Poderiam ser criadas personagens com deficiência ou com características intrínsecas ao quadro clínico Paralímpico, como por exemplo uma personagem que não enxerga ou que não se locomove sem um dispositivo (cadeira de rodas, skate ou carro). Além disso, todo o jogo ocorre em narrativa de terceira pessoa e poderia explorar modos especiais em primeira pessoa, até mesmo para analisar a possiblidade de aplicação de exer-games utilizando outros devices.

As habilidades das personagens parecem estar associadas às características corporais de cada um. Nesse caso, há uma grande relação entre personagens antropomórficas com modalidades como a ginástica olímpica. Isso mostra que no campo do design de personagens é importante considerar precedentes de antropomorfismo, gênero e aparência.

Ainda considerando as características das personagens, há uma narrativa implícita sobre conceitos de amizade, já que vilões e heróis jogam no mesmo time. Desta forma, os jogadores que não estão familiarizados com os jogos Mario ou Sonic podem não entender a mensagem.

O grande trunfo de advergames como Mario & Sonic é a associação com temas contextuais, como os Jogos Olímpicos. Contudo ainda é necessário explorar as variações entre o entendimento da mensagem do jogo de acordo com o repertório de cada jogador. No futuro, esperamos aplicar nosso modelo de investigação em outros jogos semelhantes ao Mario & Sonic e promover uma análise comparativa. Além disso, também pretendemos entender as perspectivas dos jogadores de diferentes classes sociais, cidades e culturas em relação a advergames que promovam os Jogos Olímpicos e outros jogos esportivos.


*Leonardo José Mataruna-dos-Santos é pesquisador da Coventry University, pesquisador e pós-doutor (PACC-UFRJ), research fellow do Carnival Project, European Union’s, FP7/2007-2013/under REA grant agreement n° 612614.

**Vanissa Wanick é doutoranda na University of Southampton (Bolsista CAPES), MBA em Marketing Empresarial (UFF) e BA Design (PUC-Rio).

***Andressa Fontes Guimarães-Mataruna é MA Peacebuilding (CovUni), jornalista (UNESA) e Carnival Project (UFRJ-EEFD).

 

Referências

ACSM – American College of Sports Medicine. Exergaming. Disponível em: https://www.acsm.org/docs/brochures/exergaming.pdf?sfvrsn=6. Acesso em: 25.08.2014.

ARAÚJO, S. GASTALDO, L. Respeito, Amizade e Excelência: valores olímpicos vivenciados no esporte escolar. FIEP BULLETIN, v.84, Special Edition, article 1, 2014, p.1-5.

BIZZOCCHI, J; BEN LIN, M; TANENBAUM, J. Games, narrative and the design of interface. International Journal of Arts and Technology. 4, 4, 460-479, Oct. 1, 2011.

BOGOST, I. Persuasive games: The expressive power of videogames. Mit Press, 2007

BROOKEY, R.A.; OATES, T.P. (eds). Playing to Win: Sports, Video Games, and the Culture of Play. Ed. Robert Alan Brookey and Thomas P. Oates. Indiana University Press, 2015.

CAETANO, M. A. Design de personagens por seus jogadores. SBC – Proceedings of SBGames. 2013

CELTEK, E. Mobile advergames in tourism marketing. Journal of Vacation Marketing, 16(4), pp.267–281. Publicado em 2010. Disponível em: http://jvm.sagepub.com /cgi/doi/10.1177/1356766710380882 Acesso em: 20.03.14.

COMITÊ PARALÍMPICO INTERNACIONAL. Olimpismo em ação. Disponível em: http://www.olympic.org/olympism-in-action. Publicado em 2005. Acesso em: 03.02.16.

CONNOLLY, TM; et al. A systematic literature review of empirical evidence on computer games and serious games. Computers & Education. 59, 661-686, Sept. 1, 2012.

CSIKSZENTMIHALYI M. Flow and the psychology of discovery and invention. New York: Harper Collins. 1996.

DAHL, S., EAGLE, L. & BÁEZ, C.,. Analyzing advergames: active diversions or actually deception. Young Consumers: Insight and Ideas for Responsible Marketers, 10(1), p.46–59. Disponível em : http://www.emeraldinsight.com/journals.htm?issn=17473616&volume=10& issue=1&articleid=1779175&show=html, Publicado em 2009. Acesso em 24.10.13.

DiTORE, P.A.; RAIOLA, G. Exergames in motor skill learning. Journal of Physical Education and Sport, 12(3), p.358-361. Disponível em: http://dx.doi.org/10.7752/ jpes.2012.03053, 2012. Acesso em: 23.12.15.

EGENFELDT-NIELSEN, S; SMITH, J; TOSCA, S. Understanding video games: The essential introduction. Mass Communication Research. 102, 365-372, Jan. 1, 2010.

FRAZER, A. Demystifying the educational benefits of different gaming genres ALT-C 2008 Research Proceedings. 2008.

FREITAS, D. A.; PATRIOTA, K. R. M. P. Os advergames como possibilidade midiática diante da segmentação do mercado. Maceió – AL: XIII Congresso de Ciências da Comunicação na Região Nordeste, 2011

GLOBOESPORTE.COM. Vinícius e Tom são os nomes escolhidos dos mascotes de 2016. Disponível em: http://globoesporte.globo.com/olimpiadas/noticia/2014/12/ vinicius-e-tom-sao-os-nomes-escolhidos-para-os-mascotes-de-2016.html. Acesso em: 12.12.14.

HUIZINGA, J. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 2004.

LEE, J.; PARK, H.; WISE, K. Brand interactivity and its effects on the outcomes of advergame play. New Media & Society, n. Setembro  2013, 18 set. 2013.

LEE, M.; YOUN, S. Leading National Advertisers’ Uses of Advergames. Journal of Current Issues & Research in Advertising, 30(2), p.1–13, 2008. Available at: http://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/10641734.2008. Acesso em: 10.02.14.

MÄYRÄ, F. The Contextual Game Experience: On the Socio-Cultural Contexts for Meaning in Digital Play. Situated Play, Proceedings of DiGRA 2007 Conference. 2007. Disponível em: <http://www.digra.org/dl/db/07311.12595.pdf>  Acesso em: 10.12.15

NELSON, M.R., KEUM, H. e YAROS, R.A. Advertainment or adcreep game players’ attitudes toward advertising and product placements in computer. Journal of Interactive Advertising, 5(1), p.3–21, 2010.

NINTENDO. Mario & Sonic at Rio 2016 Olympic Games. Disponível em: https://www.nintendo.co.jp/3ds/bgxj/index.html. Acesso em: 12.01.16.

OH, Y.; YANG, S.  Defining exergames & exergaming. Conference Paper at Meaningful Play 2010, Janeiro 2010. East Lansing, Michigan.

PARRY, J. Esporte e Olimpismo: Universalismo e Multiculturalismo. Jornal da Filosofia do Esporte, 2006, v.33, p.188-204.

PIMENTEL, G.G.A. O passivo do lazer ativo. Movimento, Porto Alegre, v.18, n. 03, p.299-316, jul/set de 2012.

RANCHHOD, A.; WANICK, V. Video games have cultural cachet – so recognise their place in society and history. Disponível em: <http://theconversation.com/video-games-have-cultural-cachet-so-recognise-their-place-in-society-and-history-35522>. Acesso em: 01.02.16.

RIO 2016. Mario & Sonic nos Jogos Olímpicos Rio 2016. Disponível em: http://www.rio2016 .com/blog/pt-br/mario-sonic-nos-jogos-ol-mpicos-rio-2016 Acesso em 17.08.15.

RIO 2016. Mario & Sonic nos Jogos Olímpicos. Disponível em: http://www.rio2016.com/ blog/pt-br/mario-sonic-nos-jogos-ol-mpicos-rio-2016. Acesso em 12.01.16a.

RIO 2016. Mascotes – Jogos Olímpicos e Paralímpicos Rio 2016. Disponível em: http://www.rio2016.com/mascotes/#!home Acesso em 04.02.16b.

RIO 2016. Rugby. Disponível em: http://www.rio2016.com/ rugby. Acesso em 12.01.16c

ROBINSON, T. N. (1999). Reducing children’s television viewing to prevent obesity a randomized controlled trial. Jama, 282(16), 1561-1567.

ROCHE, M. Megaeventos e Modernidade: Globalização e o caso das Olímpiadas. Em: HORNE, J. MANZENREITER, W. Megaeventos esportivos: Análise social e cientifica de um fenômeno global. Oxford, Blackwell, 2006.

SALEN, K; ZIMMERMAN, E. Rules of play : game design fundamentals. Cambridge, Mass; London : MIT Press, c2004., 2004.

SANT’ANA, C. ; MEDRADO, M. Nintendo Wii: uma nova opcão de tratamentos fisioterapêuticos. Fisioscience. Disponível em: http://revistas.unijorge.edu.br/fisioscience/pdf/ 2013_1_Artigo2.pdf. Acesso em 01.02.16.

SUN, H. Exergaming Impact on Physical Activity and Interest in Elementary School Children. Research Quarterly for Exercise and Sport, vol.83, n.2, p. 212-220, 2012.

SVAHN, M. Future-proofing advergaming: a systematisation for the media buyer. Proceedings of the 2nd Australasian Conference on Interactive Entertainment. Sydney: Disponível em: http://dl.acm.org/citation.cfm?id=1109180.1109210. Acesso em 05.01.16.

TERLUTTER, R. & CAPELLA, M.L. The Gamification of Advertising. Journal of Advertising, 42(2-3), p.95–112. 2013.

VASALOU, A; et al. Problematizing cultural appropriation. Proceedings of the 2014 Annual Symposium on Computer-Human Interaction in Play, Oct. 19, 2014.

WALZ, S.P.; DETERDING, S. The gameful world: approaches, issues, application. Ed. Steffen P. Walz and Sebastian Deterding. MIT Press, 2014.

WANICK, V.; RANCHHOD, A.; WILLS, G. Advergames e influências culturais no comportamento do consumidor. Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação. Rio de Janeiro, 2015.

WANICK, V.; RANCHHOD, A.; WILLS, G. Cultural persuasive affordances in advergaming design across cultures. AcademicMindTrek ’15. New York, USA: ACM Press, 22 set. 2015. Disponível em: <http://dl.acm.org/citation.cfm?id=2818187.2818293>. Acesso em: 28.01.16

WISE, K. et al. Enjoyment of Advergames and Brand Attitudes: The Impact of Thematic Relevance. Journal of Interactive Advertising, 2008.

WOLF, M.; IWATANI, T. Video Games Around the World. The MIT Press, 2015.

WUTS, J; et al. Next-Level Branding: Digital Brand Fit in Video-Game Design. Design Management Review. 23, 1, 74-82, Mar. 2012.

 

Notas

[1] Nintendo Wii, PlayStation Move e Microsoft Kinect.

[2] Jogos da Década de 1980 da plataforma Atari 2600 que não utilizavam sensores de movimentos exigiam um certo preparo físico do jogador, visto que simulavam algumas provas do atletismo nos Jogos Olímpicos como o caso do game “Decathlon” desenvolvido pela Activision® (1983), que exigia um esforço físico do usuário e da durabilidade dos Joystics, sobretudo na prova de 1.500m. (ver: VideoGamesRevisited, in: https://www.youtube.com/watch?v=zR35dNOSY7Y)

[3] A Mascote leva o nome do poeta Vinicius de Moraes. Depois de 21 dias de votação popular pela internet, Vinícius e Tom (mascote paralímpica) venceram a disputa com 44% dos 323.327 votos (Globo Esporte, 2014).

[4]  Nos Jogos Olímpicos Rio 2016, a mascote tem o slogan “contagiar o mundo com a minha alegria e celebrar a amizade entre os povos nesse super evento esportivo” (RIO2016, 2016; Globo Esporte, 2014).

Recebido em março de 2016.
Aprovado em maio de 2016.

artigo
Tempo de leitura estimado: 31 minutos

AS INTERFACES DE REALIDADE VIRTUAL NO SÉCULO XXI

Resumo: O artigo pretende mostrar a evolução das interfaces e tecnologias de realidade virtual até o atual momento de expansão e verificar o que as levaram a uma suposta queda no início dos anos 1990. Devido ao desenvolvimento da indústria dos jogos digitais, novas formas de interação estão sendo pesquisadas e apresentadas ao público. Será mostrada a aplicação da realidade virtual em contextos diferenciados dos jogos digitais, além de relatar uma breve experiência com realidade virtual do grupo de pesquisa em arte, ciência e tecnologia, Lab | Front (Laboratório de Poéticas Fronteiriças – CNPq/UEMG).

Palavras-chave: Realidade virtual; interfaces; jogos digitais.

Abstract: The article shows the evolution of virtual reality interfaces and technologies to the current moment and verifies what led them to an alleged decline in early 1990. Due to the development of the industry of digital games, new forms of interaction are being researched and presented to the public. It will also be shown the application of virtual reality in different contexts of digital games, in addition to reporting a brief experience of the research group in art, science and technology, Lab | Front (Laboratório de Poéticas Fronteiriças – CNPq/UEMG).

Keywords: Virtual reality; interfaces; digital games.

 

Este artigo realiza um breve histórico do desenvolvimento e avanços tecnológicos da realidade virtual até o atual momento em que aparenta se encontrar em expansão. Devido aos avanços em pesquisa e desenvolvimento da indústria dos games, a realidade virtual e suas tecnologias de imersão parecem estar em crescimento. Nos anos 1990, essa tecnologia prometia ser uma tendência, mas os altos custos de produção limitaram a sua utilização e interesse apenas para comunidades científicas específicas[1].

Entre os anos 1990 e meados da primeira década do século XXI, outras formas de interação e linguagens foram exploradas em razão do crescente acesso à Internet e a dissipação de dados em redes virtuais. Os interesses pela realidade virtual diminuíram cada vez mais, assim como a atenção de pesquisadores e centros científicos abordaram cada vez menos o tema. Porém, é importante ressaltar que os esforços de inovação, bem como os interesses variados, não cessaram por completo. Isso é algo que este trabalho pretende demonstrar com a exposição de eventos contínuos em uma “história da realidade virtual”.

As atuais pesquisas na área de realidade virtual estão realinhando seu foco para o desenvolvimento e crescimento da área, principalmente para as perspectivas de criação de videogames com maiores níveis de realismo, novas tecnologias e artefatos de imersão.

O desenvolvimento de interfaces: realidade virtual em expansão

Desde o seu início, a realidade virtual tem como intenção algo grandioso. A possibilidade de experimentar outras realidades, de ser transportado para qualquer outro espaço sem precisar sair de seu próprio lugar. Simular um mundo próprio, com regras próprias, repleto de diferentes formas de vida. Ela é parte de um sistema em que o homem interage com a máquina, mas é na mente onde tudo acontece. Antes mesmo do desenvolvimento das atuais tecnologias de realidade virtual e imersão, tentativas na história já mostravam o interesse do homem em dominar tais artefatos.

No século XVII, a igreja utilizou as projeções de Athanasius Kircher feitas com o princípio óptico da chamada câmara obscura, um dos primeiros exemplos na história. Athanasius criou a visão “viva” do inferno que foi motivo de grande espanto e serviu, para muitos cristãos, como argumento poderoso contra o pecado. Ele tornou possível a imagem mental do inferno e de demônios através do emprego de fumaça, a inclusão de insetos estranhos, que ampliados pareciam monstros. Utilizou da simulação para transformar em realidade um mundo fictício. A imagem até então nunca vista pelos fiéis poderia ter provocado uma sensação de imersão em outra realidade. O espaço da igreja pretendia proporcionar ao observador o conhecimento do possível, ou seja, a existência virtual do mundo infernal (Giannetti, 2006, p. 150).

Quando se pensa em realidade virtual, muitos autores remetem ao desenvolvimento da estereoscopia e às primeiras imagens em terceira dimensão, assim como outros apontam para experiências interfaceadas para fora do corpo. O princípio da estereoscopia apresenta a cada olho a imagem correspondente ao seu ponto de vista. Com isso, é possível simular a sensação de profundidade e de relevo, pois os olhos humanos são distantes entre si em alguns centímetros, não possuem o mesmo ponto de vista do mundo (Arantes, 2005, p.114).

Para a maioria dos autores, foi entre os anos de 1950 e 1960 que os pioneiros deram início ao desenvolvimento de instrumentos estereoscópicos para imersão e simulação gráfica. Convém destacar o Sensorama de Morton Heilig, em 1950, como uma espécie de teatro sinestésico. Nele, uma cabine imersiva, um assento vibratório, um guidom, um dispositivo de visualização binocular, um conjunto de ventiladores, alto falantes estereofônicos e um dispositivo nasal simulavam a experiência de conduzir uma moto por lugares específicos dos Estados Unidos (Rejane, 2001, p. 29).

<em>Sensorama, de Morton Heilig </em><em>/ </em><em>Fonte: Morton Heilig Website (</em><a href="http://www.mortonheilig.com/InventorVR.html">http://www.mortonheilig.com/InventorVR.html</a>)
Sensorama, de Morton Heilig / Fonte: Morton Heilig Website (http://www.mortonheilig.com/InventorVR.html)

No ano de 1962 no MIT, Ivan Sutherland desenvolveu o programa de manipulação direta denominado Sketchpad. Com o uso de uma caneta, podia desenhar diretamente sobre o tubo de raios catódicos e visualizar a imagem quase em tempo real. Esse foi um grande avanço nas pesquisas de computação gráfica na época. Mais tarde, entre 1966 e 1970, Sutherland desenvolveu o Head-Mounted Display, uma versão de um capacete de visualização estereoscópica mais avançado, que permitia a interação com imagens infográficas situadas diante dos olhos do observador (Giannetti, 2006, p. 121).

Em 1968, Sutherland publicou um artigo na Universidade de Harvard, denominado “A Head-Mounted Three Dimensional Display”, em que descreve o desenvolvimento de um capacete estereoscópico rastreável. O capacete apresentava dois mini displays CRT que projetavam as imagens diretamente nos olhos do usuário e era possível rastrear os movimentos de cabeça através de uma interface mecânica e ultrassônica. Os desenvolvimentos de Sutherland fizeram um marco na história da realidade virtual, estabelecendo assim o conceito de imersão.

A realidade aumentada, tão comum nos dias de hoje, teve como base a criação do capacete interativo por vídeo, desenvolvido pelos engenheiros da Philco, juntamente com o capacete interativo por computação gráfica de Sutherland. Em ambos haviam tecnologias de rastreamento. Algumas décadas depois disto, a utilização de vídeo, rastreamento e computação gráfica integrados – e interagindo em tempo real – foi o que permitiu o desenvolvimento de aplicações de realidade aumentada (Kirner, 2008).

Em meados dos anos 1970, uma série de artefatos começou a ser desenvolvida para a evolução da realidade virtual. Em 1977 a luva Dataglove foi concebida para contribuir com os aspectos multissensoriais da realidade virtual, sendo comercializada apenas em 1985, pela empresa VPL Research. Em 1981, a Força Aérea Americana possibilitou aos pilotos um simulador de Cockpit em que era possível utilizar um capacete de visão óptica com visão aumentada e informações do avião, indicação visual dos mísseis disponíveis para disparo. O capacete possuía um visor de acrílico e permitia misturar a visão da cena com a projeção sobreposta das imagens geradas por um display CRT dentro do capacete. Esse foi um dos primeiros projetos de realidade aumentada, seu custo foi na faixa de milhões de dólares.

Em 1989 a luva Power Glove foi lançada para o videogame Nintendo, desenvolvida pela empresa Mattel, mas não obteve sucesso no ramo dos videogames sendo adaptada para sistemas de realidade virtual baseados em computadores do tipo Personal Computer (PC).

O aparecimento das CAVEs (Cave Automatic Virtual Environment), um sistema de realidade virtual por projeção em paredes como alternativa ao uso de capacetes, foi demonstrado no evento SIGGRAPH’92, em 1992, desenvolvido na Universidade de Illinois, em Chicago, por Carolina Cruz-Neira. A partir de 1992 empresas de computação gráfica como a Silicon Graphics Inc. e Sense8 Co. começaram a produzir ferramentas e softwares para o desenvolvimento de aplicações em realidade virtual.

Softwares como WorldToolKit e Iris Inventor utilizavam uma biblioteca de funções próprias em linguagem C e em C++ para modelagem e visualização 3D, o que possibilitou aumentar a produtividade e qualidade das aplicações. Também permitiu a fundação estrutural do que viria a ser a linguagem VRML (Virtual Reality Modeling Language). Na comunidade acadêmica, conferências e workshops surgiam para discutir as fronteiras de pesquisa em realidade virtual sendo que no ano de 1995 o evento IEEE VR foi criado através da junção das conferências VRAIS’93 e Research Frontiers in Virtual Reality IEEE Workshop.

Em 1999 o ARToolKit, um software livre escrito em C que permitia o rastreamento por vídeo, despertou no mundo o interesse pela área de realidade aumentada e surgiram diversas outras ferramentas livres voltadas para aplicações em realidade virtual e realidade aumentada junto ao crescimento da Internet e aplicações nativas para Web.

No Brasil, o desenvolvimento na área de realidade virtual data do início dos anos 1990 com defesas de mestrado e doutorado, publicações, eventos e criação de grupos de pesquisa. Visitas de pesquisadores como a do Prof. Claudio Kirner (UFSCar) aos EUA permitiram a aproximação e o aprofundamento na área. O primeiro grande evento do campo foi o “1º Workshop de Realidade Virtual – WRealidade virtual’97” realizado na Universidade Federal de São Carlos e permitiu promover a integração de pesquisadores, profissionais e estudantes interessados.

Atualmente, o evento encontra-se em seu 17º encontro intitulado “SVR2015 – XVII Simpósio de Realidade Virtual e Realidade Aumentada” tendo evoluído e incorporado outros simpósios de temas específicos como o de realidade aumentada. O SVR2015 conta com diversos tópicos de interesse desde sistemas e ferramentas de realidade virtual e realidade aumentada, interação 3D, humanos virtuais e avatares, jogos em realidade virtual e aumentada, impactos sociais, econômicos e técnicos da realidade virtual e aumentada, dentre outros.

Novos grupos de pesquisa se formaram, assim como centros de realidade virtual foram instalados em grandes empresas no Brasil. Equipamentos de grande porte foram comprados em universidades e novos cursos de pós-graduação passaram a formar mestres e doutores na área. Empresas como Petrobras e Embraer investiram em centros de tecnologia aplicados à realidade virtual, assim como universidades investiram e desenvolveram seus próprios sistemas Cave. Atualmente, com a criação de diversos cursos de graduação tanto em nível tecnológico quanto de Bacharelado em Jogos Digitais, Produção Multimídia, Computação Gráfica, Artes Digitais além das tradicionais formações em Ciência da Computação, Sistemas de Informação e engenharias, a área de realidade virtual se encontra em plena expansão. Sistemas de captura de movimento, captura e edição de vídeo, criação de efeitos visuais e desenvolvimento para plataformas móveis lideram as tendências de investimento da indústria (Kirner, 2008).

Esse histórico apresentado visa salientar a evolução e o desenvolvimento da realidade virtual até o atual cenário, no qual a realidade virtual se encontra de fato em expansão. A seguir discutimos se de fato houve uma queda da realidade virtual iniciada nos anos 1990 em relação a esta contemporânea expansão.

Realidade virtual: da queda ao crescimento?

Durante as décadas passadas, os desenvolvedores e comunidades basearam seus trabalhos em tendências da realidade virtual compatíveis com os recursos da época. Trabalhos em modelagens tridimensional com baixa qualidade de renderização, gráficos primitivos em 3D, estudos iniciais em interface do usuário e simulações visuais com pouca interação foram feitos. Atualmente, o campo da realidade virtual se encontra em expansão devido ao acesso às atuais ferramentas de desenvolvimento de games e da indústria cinematográfica.

Esta seção pretende apresentar a expansão da área de uma perspectiva específica. Salienta as possíveis causas do menor interesse pela realidade virtual nas últimas duas décadas. Porém, não significa que houve retrocesso do interesse pela realidade virtual ou pela realidade aumentada. Como se viu acima, nessas mesmas décadas houve continuidade das pesquisas para desenvolvimento e inovação, bem como pesquisas conceituais e teóricas.

A revolução que a realidade virtual prometeu no início dos anos 1990 com o surgimento dos primeiros PCs não obteve êxito devido a inúmeros fatores. Basicamente a indústria não estava preparada para tais ideais. Os altos custos de desenvolvimento da época não permitiram uma maior expansão em termos industriais. Em meados dos anos de 1990, em razão ao crescente acesso à Internet e a dissipação de dados em redes virtuais outras formas de interação e linguagens foram exploradas (Rocha, 2010). Muitos pesquisadores abandonaram a área de realidade virtual e migraram para os estudos da recente World Wide Web, assim como toda a atenção da indústria estava redirecionada para a Internet e suas possibilidades.

De acordo com a discussão realizada pelo professor Mark Bolas (2011), do Instituto de Tecnologias Criativas da University of Southern California (USC), existe uma questão determinada pelo “hype”. Hype é uma palavra inglesa que sugere a promoção extrema de uma ideia, pessoa ou produto, como se estivesse entrando em moda. Houve uma hype em torno da realidade virtual nos anos 1990 e isso acabou por impossibilitar a realização de suas promessas.

Esse é um fenômeno comum observado no diagrama Hype Curve Gartner (Gráfico 1), desenvolvido por Jeremy Kemp no Gartner Inc., empresa americana de pesquisa em Tecnologia da Informação. O gráfico mostra que quando um novo potencial tecnológico é criado, cria-se também um interesse midiático e publicitário em cima desse novo potencial, assim como o desenvolvimento de conceitos muito novos a respeito do potencial. Nesta etapa, muitas vezes ainda não existe viabilidade comercial comprovada para o potencial e também não existem produtos usáveis. O segundo ponto do gráfico mostra um pico inflacionado de expectativas acerca do potencial desenvolvido, com resultado de uma quantidade de histórias de sucesso produzidos pela publicidade e também muitas histórias de fracasso. Neste ponto algumas empresas prestam atenção e outras podem não prestar. O terceiro ponto é chamado de “Vale da Desilusão”, que é quando muitas implementações e interesses falham em sua entrega. Os investimentos permanecem apenas para aqueles que conseguem mudar o potencial e assim atender os consumidores de tendências, os chamados Early adopters. O quarto ponto do gráfico refere-se a uma inclinação a respeito de como o potencial tecnológico pode beneficiar a empresa e se tornar mais amplamente entendido. Novas gerações de produtos começam a surgir a partir de fornecedores de tecnologia e mais empresas começam a financiar projetos pilotos. Ainda assim, neste ponto, empresas mais consevadoras continuam cautelosas. Por fim, surge um platô de produtividade, em que os consumidores de massa começam a fazer uso do potencial tecnológico. Os critérios para acesso e a viabilidade estão mais claramente definidos. O mercado consegue enxergar a ampla aplicabilidade para a tecnologia.

Gráfico 1: Hype Cycle Diagram, de Jeremy Kemp. Fonte: Bolas, 2011.
Gráfico 1: Hype Cycle Diagram, de Jeremy Kemp. Fonte: Bolas, 2011.

Esse diagrama descreve o cenário da realidade virtual nos anos 1990 e sua atual estabilidade vista pelo mercado e pela indústria, principalmente pelo mercado dos jogos digitais. Muitos fatores contribuíram para essa estabilidade nas últimas décadas. A evolução dos processadores e das tecnologias de telecomunicações permitiram o desenvolvimento de novas tecnologias computacionais e uma perspectiva mais madura em relação ao futuro.

Atualmente, os hardwares específicos para processamento gráfico, como as placas de vídeo 3D, atingem altíssimo desempenho quando comparados com os hardwares dos anos 1990. Os telefones celulares possuem telas de ultra definição imagética, tecnologias e sensores wireless avançados para conexão com rede de dados e Internet de alta velocidade, sensores de posicionamento global (GPS), assim como outros sensores: giroscópios; acelerômetros; pedômetros; barômetros; e magnéticos. As câmeras dos celulares filmam em resolução comparada ao cinema digital com resoluções acima do limite para o olho humano. Dispositivos de baixo custo, como caixas de papelão, estão transformando os telefones celulares em óculos e capacetes de realidade virtual além das grandes empresas investirem no desenvolvendo de suas próprias interfaces de realidade virtual.

Os desenvolvedores de jogos persistiram em criar experiências com maior nível de engajamento. Os cenários e mundos virtuais possuem magnífica capacidade de simular detalhes. O crescimento de áreas como visualização científica avanços da computação distribuída e jogos em rede como World of Warcraft e outros Massively Multiplayer Online (MMO) também contribuíram para a estabilidade da realidade virtual.

Além da evolução tecnológica, as sociedades ao redor do mundo estão mais confortáveis com a ideia de virtualidade do que nos anos 1990. A maioria das pessoas possuem aparelhos celulares e usam a Internet para se comunicar através de aplicativos, mensagens instantâneas e e-mails, assistem a filmes em formato digital, jogam jogos on-line e possuem contas em redes sociais. Não se pode mais deixar de notar a importância de artistas digitais que utilizam as tecnologias de modelagem 3D e realidade virtual. São pessoas que estão diretamente ligadas à indústria cinematográfica, de produção de jogos digitais e que seguem carreiras inteiras na construção de mundos e ambientes virtuais, objetos em 3D, entretendo milhares de pessoas. Parece que a sociedade nunca esteve tão bem receptiva e engajada com a realidade virtual.

Podemos ensaiar que não houve de fato uma queda no crescimento da realidade virtual. Houve um desenvolvimento industrial tímido no uso e aplicações da realidade virtual quase gerando uma pausa. O desenvolvimento que houve nesses anos, pelos motivos apontados acima, não teve uma publicidade tão grande quanto a que estamos vendo no contexto dos jogos que, em outras oportunidades, tentou incluir a realidade virtual sem muito êxito. Esse menor investimento na realidade virtual é invertido agora, como veremos a seguir.

Realidade virtual, jogos e indústria

A indústria dos jogos está investindo largamente em tecnologias e interfaces para melhor uso da realidade virtual. No ano de 2016, o famoso evento americano de maior influência em tendências tecnológicas para o consumidor – o Consumer Technology Association (CES) – fez história apontando para este (e para os próximos anos) as tecnologias de imersão em realidade virtual e a produção de conteúdo para os mesmos. O foco do evento foram as novas interfaces para a realidade virtual imersiva, ou seja, os sistemas que estão sendo desenvolvidos por grandes empresas da área como Oculus, HTC e Sony, assim como novos hardwares para jogos, softwares e acessórios projetados para aparelhos celulares, computadores e consoles de videogame. O mercado de jogos e realidade virtual vai expandir em 77% sobre sua previsão de 2015, segundo os relatórios da Consumer Technology Association (CTA), grupo que organiza a CES (Baig, 2016).

Quando os dispositivos móveis, tais como os telefones celulares, são utilizados como interfaces binoculares para realidade virtual, permitem a massificação do acesso a esses conteúdos. A exemplo dessas interfaces, as empresas Google e Samsung apresentam soluções de baixo e médio custo para acesso à realidade virtual. O modelo da Samsung, o Samsung Gear VR, apresenta um sofisticado dispositivo plástico com a presença de sensores e lentes para estereoscopia, que utilizado juntamente a um aparelho da marca permite acesso de qualidade na execução de aplicativos e conteúdo para realidade virtual. No entanto, é preciso lembrar que apenas os aparelhos celulares mais robustos da marca são compatíveis com essa solução. A Google apresenta uma solução de baixo custo chamado Google Cardboard. Ela consiste em um modelo feito em papelão acrescido de 2 lentes de aumento e um sistema de imã magnético que serve como interface ao usuário. O modelo está disponível na página da empresa na Internet e é possível desenvolver a sua própria solução doméstica com a utilização de um aparelho celular (Baig, 2016).

Outras interfaces binoculares também foram apresentadas ao público durante o evento. As mais esperadas, principalmente pelo público dos games, foram os sistemas de realidade virtual Oculus Rift, HTC Vive e o projeto da Sony, Project Morpheus, que funciona com o console PlayStation 4. Estas são interfaces robustas que exigem maior processamento gráfico do hardware presente. Com o foco principal na imersão em jogos digitais, essas interfaces permitem maior interação com os elementos dos jogos, pois são dotadas de sensores e joysticks integrados ao sistema de imersão corporal. Um exemplo é o HTC Vive que sinaliza ao usuário, através de sinais gráficos na tela, a aproximação de seu usuário a possíveis obstáculos fora do ambiente virtual, evitando possíveis acidentes. Outra interface, neste caso para realidade aumentada, é o produto da Microsoft, HoloLens. Um capacete com sistema de projeção holográfica que mistura realidade virtual com o mundo exterior, o que permite visualizar uma realidade mista (Baig, 2016). É importante ressaltar que essas interfaces mais robustas também são utilizadas para outras aplicações e experimentos de realidade virtual, ampliando sua utilização não apenas ao desenvolvimento de jogos digitais.

A rede social Facebook, que no ano de 2014 comprou a empresa desenvolvedora da interface Oculus Rift, diz pretender transformar o uso de sua rede social através da possibilidade de compartilhar experiências mais significativas com seus usuários. A empresa diz ser importante se utilizar da realidade virtual para desenvolver uma presença mais intensa em comparação ao atual meio para disseminação das mídias em sua rede. Se atualmente é possível compartilhar fotos, vídeos e informações digitais diversas, com a adoção da realidade virtual novas formas de narrativas e interações deverão ser experimentadas (Schnipper, 2014).

Um novo mercado também está surgindo, é o de empresas mediadoras nos processos de compra e venda de produtos digitais utilizados no universo da realidade virtual. Modelagens tridimensionais, algoritmos e técnicas de renderização de imagens, animações, jogos e personagens para mundos virtuais estão sendo comercializados através de plataformas de varejo utilizando realidade virtual. Mas grandes empresas varejistas de produtos não virtuais também estão investindo em experiências em realidade virtual para potencializar vendas de produtos em suas lojas de departamento (Baig, 2016).

Outra tendência que também está fazendo com que a realidade virtual expanda são as empresas produtoras de conteúdo para realidade virtual. Hoje é possível acompanhar a transmissão de jogos de basquete assim como assistir a campeonatos de golf utilizando realidade virtual. A evolução das câmeras de vídeo, que passam a gravar em 360º e em 3D, permite aos produtores reinventar as maneiras de contar histórias, além de gerar novos desafios para a indústria de cinematografia em 360º (Baig, 2016).

Com esses exemplos vemos não apenas que o uso da realidade virtual está em expansão, como esse uso está extrapolando o campo da indústria dos jogos, utilizando esta para impulsionar as vendas, assim como o desenvolvimento e o (re)conhecimento das tecnologias aplicadas. Vimos essa estratégia quando do lançamento e popularização da tecnologia do sensor Kinect, da Microsoft (em 2010).

Outras aplicações da realidade virtual

Assim como o sensor Kinect, da Microsoft, é utilizado para outras aplicações, as novas interfaces de realidade virtual também estão sendo utilizadas para outros experimentos. Empresas, pesquisadores e artistas em todo o mundo estão possibilitando novos usos para essas interfaces.

Companhias de engenharia e arquitetura estão promovendo o uso da realidade virtual para simular passeios virtuais em novos empreendimentos. Apartamentos modelos e show room virtuais estão sendo utilizados também como um fator potencial de conversão para vendas. O cliente pode visitar o apartamento ou condomínio sem sair de sua própria casa. A visualização científica de projetos também se utiliza das capacidades da realidade virtual e é possível fazer simulações, possibilitar treinamento em segurança do trabalho e operações pesadas com maquinário específico.

A indústria cultural também aproveita as novas possibilidades de midiatização de seus produtos, na promoção de filmes blockbusters até a imersão completa em shows de rock. Também é possível se passar por super-herói ou participar de um terremoto na Ásia.

O caráter realístico e imersivo da realidade virtual vem permitindo ao usuário se colocar no papel do outro. Psicólogos no laboratório Virtual Human Interaction Lab, da Universidade de Stanford (EUA), estão conduzindo diversos projetos utilizando realidade virtual com o objetivo de gerar empatia nos usuários. Através das capacidades da tecnologia, os alunos podem ver a sua aparência e comportamentos refletidos em um espelho virtual como alguém que é diferente, e pode experienciar um cenário a partir da perspectiva de qualquer uma das partes de uma interação social.

Estudos estão sendo feitos utilizando a realidade virtual para ensinar empatia com as pessoas com deficiência, com cor de pele diferente, com diferentes objetivos econômicos, e de diferentes faixas etárias. Outro projeto, chamado Comportamento Sustentável do mesmo laboratório da Universidade de Stanford, permite aos usuários experimentarem um mergulho em um coral repleto de vida que poderá se acabar, caso o nosso comportamento perante a poluição não mude.

Muitas pessoas não têm a oportunidade de realizar um mergulho desse nível e a experiência permite visualizar diversas fases da acidificação dos oceanos. O laboratório também possui um projeto de pesquisa sobre um ambiente virtual de aprendizagem, em que o ambiente virtual permite maior foco e atenção com os objetivos de classe. O engajamento da tecnologia possibilita melhor interação entre conteúdo e alunos.

Algo similar ao que é desenvolvido em Stanford é realizado desde 2009 pelo professor e pesquisador Mel Slater, do Departamento de Ciências da Computação da University College London, onde estuda “a exploração da realidade virtual no estudo do julgamento moral”[2].

Outro trabalho que também pretende ensinar empatia às pessoas é o da estudante Yifei Chai, do Imperial College London que desenvolveu um sistema de realidade virtual com o objetivo de proporcionar aos usuários a sensação de estar no corpo de outra pessoa e também de poder controlá-lo. Enquanto um participante utiliza uma interface binocular de realidade virtual, outro utiliza um suporte de cabeça com uma câmera instalada e também uma roupa com estimulação elétrica. Ambos corpos são rastreados por um sensor de movimento. A câmera alimenta a interface binocular, e a pessoa que usa a interface binocular, consegue olhar para seu próprio corpo e ver o corpo da outra pessoa, além de controlar os movimentos do corpo do outro participante (Stuart, 2014).

Artistas estão propondo manifestações e performances utilizando realidade virtual para mostrar seus trabalhos. Uma instalação artística, The Machine to be Another, do BeAnotherLab, permite a troca virtual de gêneros entre os participantes. É possível utilizar o corpo do outro participante através de um sistema de câmeras e óculos para realidade virtual. O conceito de troca e personificação do corpo virtual, chamado digital embodiment (Munster, 2006), é muito utilizado em realidade virtual, principalmente nos jogos digitais. Ao assumir um personagem ou avatar em um jogo digital a noção de si mesmo é alterada para uma noção diferenciada de controle.

Outro artista, Thorston Wiedemann, testou sua capacidade de permanecer na realidade virtual por 48 horas dentro de vários mundos no Games Science Center em Berlim (Alemanha). Dentre suas atividades, Thorston jogou tênis contra si mesmo, criou bonecos de neve através de uma ferramenta de desenho virtual, às vezes fazia cócegas em um gato enquanto resolvia quebra cabeças, viajou para lugares mágicos com seus amigos virtuais, posou com seu terno rosa como o presidente dos Estados Unidos na casa branca entre outras atividades (Pangburn, 2016).

Experiência entre arte e realidade virtual

Através da atuação do grupo de pesquisa em arte, ciência e tecnologia, Lab | Front (Laboratório de Poéticas Fronteiriças[3] – CNPq/UEMG), pretende-se fazer um breve relato de experiência com a realidade virtual oriunda de projeto de pesquisa sobre curadoria e espaços de exposição com a presença da tecnologia digital.

A partir desse interesse na tecnologia digital, e com o projeto em desenvolvimento, surgiu a oportunidade de investigar a utilização de tecnologias imersivas de realidade virtual, o que gerou uma pesquisa de desenvolvimento tecnológico e inovação que está se iniciando em 2016. A equipe (Pablo Gobira, Antônio Mozelli e William Fernando de Melo Silva) está produzindo um ambiente de realidade virtual simulando a representação do corpo humano em transformação. Através da utilização de modelagem computacional 3D, um dos objetivos específicos do projeto é criar formas semelhantes ao de um corpo humano e permitir a imersão do interator nesse ambiente. Porém, as formas modeladas simulam o corpo do interator em envelhecimento.

Os primeiros modelos em computação gráfica foram produzidos utilizando o software de modelagem tridimensional Blender e realizamos a programação da aplicação em ambiente de desenvolvimento Unity. Os primeiros testes foram realizados com o kit de estereoscopia Google CardBoard e também nos modelos de aparelhos celulares LG Nexus 5 e Samsung Galaxy S4 Mini com sistema operacional Android, versões Jelly Bean e KitKat.

Com a pesquisa, e a concepção da instalação em realidade virtual imersiva com intensa exploração dessas tecnologias, foi possível propor outro experimento em realidade virtual. Criamos uma galeria virtual que representa a galeria de arte da Escola Guignard (UEMG). O experimento da galeria proporcionou a realização do exercício de curadoria das obras advindas do projeto de extensão Sala de Estar[4].

Para a criação da galeria virtual, foi necessário modelar tridimensionalmente o espaço real tendo como referência a planta baixa da Escola Guignard. Foram criadas texturas para o chão e paredes da galeria utilizando as referências fotográficas do local real. Após a construção do modelo 3D da galeria, foram digitalizadas diversas obras de artistas que participaram do projeto Sala de Estar e postas virtualmente dentro do espaço da galeria, de acordo com o arranjo proposto em projeto curatorial. Através de programação, foi possível criar um passeio virtual pelo ciberespaço da instalação, em que através dos movimentos da cabeça do interator foi possível realizar a navegação virtual na galeria.

Como resultado do experimento da Galeria Virtual, foi criada a exposição Saindo da Sala que já foi exposta duas vezes, uma durante o encerramento do projeto Sala de Estar e outra durante o 17º Seminário de Pesquisa e Extensão da UEMG[5].

Considerações finais

Inúmeras utilizações parecem ser possíveis com as interfaces de realidade virtual, e certa estabilidade parece ter sido alcançada devido aos avanços da indústria e à adoção massificada das tecnologias. É possível ainda que o hype descrito por Bolas (2011) possa estar em manifestação e que algumas dessas interfaces, principalmente para os jogos digitais, estejam apenas chamando a atenção de consumidores ávidos por novidades. Mas não é mais possível desconsiderar as outras manifestações além daquelas da indústria dos jogos.

A perspectiva futura para o desenvolvimento e o uso dessas interfaces são desafiadoras, entretanto, muitas aplicações já são referências. Na perspectiva de desenvolvimento tecnológico, é necessário readaptar os atuais modelos de projeto e design de interação para ambientes virtuais. Novos elementos para imersão foram acrescentados no desenvolvimento. A possibilidade de navegação em um ambiente virtual diferencia-se de um ambiente multitoque em 2 dimensões, por exemplo (Malaika, 2015).

A possibilidade de personificar outros tipos de corpo, digital/virtual embodiment, permite ao usuário novos meios de expressão e controle sobre o objeto virtualizado. Pesquisas em interface cérebro-computador lideram as inovações do que pode ser o futuro dessas interações. Uma delas é o recente anúncio de desenvolvimento do NESD (Neural Engineering System Design) da Darpa (Defense Advanced Research Projects Agency), uma interface neural que poderia transmitir áudio e vídeo em comunicação do cérebro com a máquina[6].

Os avanços tecnológicos das interfaces de realidade virtual no século XXI estão de fato ocorrendo e convergindo com outras descobertas. Vimos neste artigo que a indústria, principalmente aquela dos jogos digitais, passou a ter grande interesse em desenvolver produtos para o público em geral. Confirmamos, por fim, que as aplicações da realidade virtual ao ultrapassar as fronteiras do campo dos jogos para outras áreas garantem a continuidade de estudos não apenas sobre a realidade virtual ou realidade aumentada, mas de se estudar as potencialidades das realidades diversas.


* Pablo Gobira é professor doutor da Escola Guignard (UEMG), coordenador do Grupo de Pesquisa Laboratório de Poéticas Fronteiriças (Lab|Front/CNPq) e pesquisador e gestor de serealidade virtualiços da Rede Brasileira de Serealidade virtualiços de Promoção Digital (Rede Cariniana) do IBICT/MCTI. Coorganizou os livros Jogos e Sociedade: explorando as relações entre vida e jogo (Crisálida, 2012) e Lado B[enjamin] (Crisálida, 2011).

** Antônio Mozelli é bacharel em Ciência da Computação (Fumec) e graduando em Artes Plásticas da Escola Guignard/UEMG.

 

Referências

ARANTES, Priscila. Arte e mídia. São Paulo: Senac, 2005.

BAIG, Edward C. CES 2016 will be virtual reality showcase. USA Today, 2 jan. 2016. Disponível em <http://www.usatoday.com/story/tech/columnist/baig/2015/12/31/ces-2016-virtual-reality-showcase/77564238/> Acesso em: <24/01/2016>

BOLAS, Mark. Keynote remixed: what happened to virtual reality. ISMAR, 2011. Disponível em: <http://projects.ict.usc.edu/mxr/blog/keynote-remixed-what-happened-to-virtual-reality/> Acesso em: <12/01/2016>

GIANNETTI, Claudia. Estética digital. Sintopia da Arte, a Ciência e a Tecnologia. Belo Horizonte: C/Arte, 2006.

HEILIG, Morton. Morton Heilig Website. Disponível em: <http://www.mortonheilig.com/Inventorealidade virtualR.html> Acesso em:<27/01/12>

KIRNER, C. . Evolução da realidade virtual no Brasil. Anais… In: X Symposium on Virtual and Augmented Reality, 2008, João Pessoa. Proceedings of the X Symposium on Virtual and Augmented Reality. Porto Alegre: SBC, 2008. v. 1. p. 1-11.

MALAIKA, Yasser. Interaction Design in VR: The Rules Have Changed (Again). Anais… In: Game Developers Conference Europe, 3-4 ago. 2015. Disponível em: <http://www.gdcvault.com/play/1022810/Interaction-Design-in-VR-The> Acesso em: <12/01/2016>

MUNSTER, Anna. Materializing New Media: Embodiment in Information Aesthetics. England: Dartmouth College Press, 2006.

PANGBURN, DJ. This Guy Just Spent 48hours in virtual reality. The Creators Project, 14 jan. 2016. Disponível em: <http://thecreatorsproject.vice.com/blog/48-hours-in-vr> Acesso em: <24/01/2016>

REJANE C. A. Cantoni. Realidade virtual: uma história de imersão interativa. (Tese de doutorado) São Paulo: Programa de Pós-graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP, 2001.

ROCHA, Cleomar. Três concepções de ciberespaço. Anais… In: 9º Encontro Internacional de Arte e Tecnologia. Brasília: PPG Arte/IdA/UnB, 2010.

SCHNIPPER, Matthew. The Rise and Fall and Rise of Virtual Reality: coming Monday – An Oculus Rift in every home? The Verge, 20 Ago. 2014. Disponível em: <http://www.theverge.com/a/virtual-reality/> Acesso em: <12/01/2016>

STUART, Keith. What a virtual reality art show could say about the future of games. The Guardian, 20 nov. 2014. Disponível em: <http://www.theguardian.com/technology/2014/nov/20/virtual-reality-art-future-games> Acesso em: <24/01/2016>

 

Notas

[1] Este artigo é um dos resultados de pesquisa apoiada pela Fapemig, pelo CNPq e pela PROPPG/UEMG, aos quais agradecemos.

[2] Ver: http://www0.cs.ucl.ac.uk/staff/M.Slater/Mel_Slaters_Home_Page/Home.html

[3] Ver: http://www.labfront.tk

[4] Ver: http://projetosaladestar.wix.com/projetosaladeestar

[5] Ver: http://www.uemg.br/seminarios/noticia_detalhe.php?id=7334

[6] Ver: http://www.darpa.mil/news-events/2015-01-19

 

Recebido em março de 2016.
Aprovado em maio de 2016.

artigo
Tempo de leitura estimado: 37 minutos

PENSAMENTO FRONTEIRIÇO E ESTÉTICA DESCOLONIAL

Resumo: O artigo, tendo por base a condição degradante na qual se encontram os indígenas na fronteira-sul de Mato Grosso do Sul (Brasil) com os países lindeiros Paraguai e Bolívia, e cuja realidade pode ser ilustrada por produções artísticas de artistas indígenas, detém-se na discussão acerca de conceitos fundamentais para uma crítica de base fronteiriça, como “opção descolonial”, “razão subalterna”, “exterioridade”, entre outros. Ancorado numa metodologia de base bibliográfica tão somente, a discussão ancora-se em pressupostos teóricos que vêm sendo discutidos por meio da publicação dos Cadernos de Estudos Culturais (NECC/UFMS), bem como por publicações arroladas na forma de livro por intelectuais da zona de fronteira-sul. Por fim, o trabalho, ao propor uma discussão assentada num pensamento crítico fronteiriço, pretende pensar conceitualmente uma crítica biográfica fronteiriça que vem se erigindo dessa zona de fronteira pouco conhecida e estudada no país.

Palavras-chave: Crítica biográfica fronteiriça; pensamento fronteiriço; estética descolonial.

Resumen: El artículo, basado en las condiciones degradantes en las que se encuentran los indígenas en la frontera-sur de Mato Grosso do Sul (Brasil) con los países fronterizos Paraguay y Bolivia, y cuya realidad puede ser ilustrada por las producciones artísticas de artistas indígenas, se atiene a la discusión de los conceptos fundamentales para una crítica de base fronteriza, tales como “la opción descolonial”, “la razón postcolonial”, “exterioridad”, entre otros. La discusión está anclada en una metodología de base bibliográfica, cuyos presupuestos teóricos por algún tiempo siguen siendo analisados a través de la publicación de los Cuadernos de Estudios Culturales (NECC/UFMS) y otras publicaciones presentadas en forma de libros por intelectuales de la zona de la frontera sur. Por fin, el trabajo propone una discusión asentada en un pensamiento crítico fronterizo, para pensar conceptualmente una crítica biográfica fronteriza erigida en esta región de frontera poco conocida y estudiada en Brasil.

Palavras-clave: Crítica biográfica fronteriza; pensamiento fronterizo; estéticas descoloniales.

 

Talvez ainda não se tenha mostrado suficientemente que o colonialismo não se contenta em impor a sua lei ao presente e ao futuro do país dominado. O colonialismo não se satisfaz em prender o povo nas suas redes, em esvaziar o cérebro colonizado de toda forma e de todo conteúdo. Por uma espécie de perversão da lógica, ele se orienta para o passado do povo oprimido e o distorce, desfigura, aniquila (Fanon, 2005, p. 243-244).

Todo um sistema de conhecimento que foi desqualificado como inadequado para suas tarefas ou insuficientemente elaborados: saberes nativos, situados bem abaixo na hierarquia, abaixo do nível exigido de cognição de cientificidade. Também creio que é através da reemergência desses valores rebaixados, (…) que envolvem o que eu agora chamaria de saber popular embora estejam longe de ser o conhecimento geral do bom senso, mas, pelo contrário, um saber particular, local, regional, saber diferencial incapaz de unanimidade e que deve suas forças apenas à aspereza com a qual é combatido por tudo à sua volta – que é através do reaparecimento desse saber, ou desses saberes locais populares, esses saberes desqualificados, que a crítica realiza a sua função (Foucault apud Mignolo, 2003, p. 44).

A opção descolonial é pensada não mais a partir da Grécia, e sim a partir do momento em que as histórias locais do mundo foram interrompidas pela história local da Europa, que apresenta a si mesma como projeto universal. A criação da ideia de América ‘Latina’ foi parte deste processo expansivo universal (por exemplo, uma América Latina e não uma América Cristã ou Hispânica, como foi o ideal de colonização castelhana). Hoje, esta ideia está em processo de ‘desmontagem’ precisamente porque aqueles que foram negados – e àqueles que, no melhor dos casos, foi dada a opção de se integrar à colonialidade – hoje dizem: ‘Não, obrigado, mas não; minha opção é descolonial’” (Mignolo, 2005, p. 216-217).

Meu título alude ao livro Os condenados da terra (2005), de Frantz Fanon, no qual o autor antilhano se debruça acerca da complexa relação entre colonizador x colonizado no Ocidente. Considerando a mesma relação, aqui os condenados da fronteira compreendem os sujeitos subalternizados da fronteira-sul do estado de Mato Grosso do Sul com os países lindeiros Paraguai e Bolívia, tendo como sujeito que se destaca por sua condição de exclusão os indígenas e, por figura ilustrativa desse povo em minha discussão, os Bugres esculpidos pela artista popular e indígena Conceição dos Bugres.

Todavia, antes de chegar ao belo livro de Fanon, quero me deter em uma passagem de Walter Mignolo, por entender que ela compreende e situa a discussão que proponho:

Percebam que a minha visão de modernidade não é definida como um período histórico do qual não podemos escapar, mas sim como uma narrativa (por exemplo, a cosmologia) de um período histórico escrito por aqueles que perceberam que eles eram os reais protagonistas. “Modernidade” era o termo no qual eles espalhavam a visão heróica e triunfante da história que eles estavam ajudando a construir. E aquela história era a história do capitalismo imperial (havia outros impérios que não eram capitalistas) e da modernidade/colonialidade (que é a cosmologia do moderno, imperial e dos impérios capitalistas da Espanha à Inglaterra e dos Estados Unidos (Mignolo, 2008, p. 316-317. Grifos meus).

A passagem de Mignolo situa a prática da exclusão efetuada por uma narrativa discursiva belamente construída de forma a deixar de fora, sem dó nem piedade, todos aqueles sujeitos que já tinham sido, por antecipação, condenados a não fazer parte da história ocidental narrada como verdade absoluta inconteste. Nesse sentido, arrolaram-se a narrativa literária, a discursiva, a artística, a histórica, a política, culminando, por conseguinte, numa narrativa do poder cuja regra é presidida pela rubrica da obediência epistêmica. Tomar o projeto da modernidade não como um período histórico, mas como uma narrativa de um período histórico é assegurar o direito de aprender a desaprender o referido projeto global imperial narrado e assegurar o lugar das histórias locais que simplesmente foram relegadas para fora daquele projeto sumariamente excludente. Essa prática resulta numa opção descolonial epistêmica desvinculada dos conceitos e discursos cristalizados que resultaram num saber, ou conhecimento, originalmente migrado dos centros do saber e do poder para as bordas ainda pouco civilizadas. Os condenados da terra (Fanon), ou os condenados da fronteira, são exatamente aqueles sujeitos (?) que foram excluídos de tal projeto moderno, daí não terem podido ajudar a construí-lo.

O texto de Mignolo, desde o título, Desobediência epistêmica, trata da condição dos sujeitos condenados da fronteira com relação ao saber epistemológico imperial moderno. E a saída crítica para a discussão, tanto para o crítico quanto para o problema em si, situa-se numa opção descolonial epistemológica capaz de produzir um fazer descolonial que não endosse apenas a visada moderna nem os discursos de natureza hegemônica que estão acostumados a se agregar para repetir a exaustão um saber de ordem acadêmica e disciplinar. De acordo com Mignolo, “pensamento descolonial significa também o fazer descolonial, já que a distinção moderna entre teoria e prática não se aplica quando você entra no campo do pensamento da fronteira e nos projetos descoloniais” (Mignolo, 2008, p. 291). Não é presunçoso de minha parte lembrar que eu penso, trabalho e escrevo de dentro da condição de sujeito da fronteira-sul – cuja fronteira, circunscrita ao estado de Mato Grosso do Sul com os países lindeiros Bolívia e Paraguai, congrega sujeitos condenados pelo estado, pela pobreza, pela terra e pela exclusão sumária de um poder econômico que a cada dia e cada vez mais os tange para o outro lado de uma fronteira porosa. Habito a fronteira[1], assim como todos aqueles sujeitos que estão condenados a errar sobre sua instabilidade. Reconheço, todavia, que minha condição de habitar é, sobretudo, de ordem epistemológica, já que minha preocupação intelectual centra-se em discutir a condição de vida dos sujeitos que se encontram na condição de atravesados (Anzaldúa) por uma herança e errância para as quais foram sumariamente subjugados pelo sistema colonial moderno.

Na sequência de seu texto, Mignolo lembra-nos de que é das exterioridades pluriversais que rodeiam a modernidade imperial ocidental que as opções descoloniais se reposicionaram e emergiram com força. Nessa direção, entendo que não bastaram as boas intenções discursivas, filosóficas, teóricas e críticas migrarem de Dentro (centro) para Fora (fronteira) para começar a resolver o problema da condição do sujeito condenado (subalterno) que sobrevive e pensa a partir do fora. Em uma leitura pós-metafísica, Juliano Pessanha ajuda-nos a compreender a relação existente entre Dentro X Fora:

Se a metafísica da presença pensou apenas o Dentro, devemos, agora, começar a pensar o Fora. E devemos fazê-lo não porque seja apenas uma novidade ou um pensamento diferente no mercado das ideias. Não: pensar o Fora não é produzir mais um pensamento para enriquecer o estoque da cultura, mas operar uma mutação na nossa maneira de existir. Somos, hoje, eticamente forçados a pensar diferente, porque estamos, pela primeira vez, numa situação capaz de perceber a violência e a agressão que dormitavam no pensamento metafísico (Pessanha, 2000, p. 102).

Numa visada pós-colonial, como a que estou propondo aqui, ainda não bastaria a saída estratégica defendida pelo autor na medida em que pensar o Fora seria operar uma mutação na nossa maneira de existir, ou seja, não basta, digamos, pensar o Dentro junto do Fora e o Fora junto do Dentro: “lá onde está o Fora, que se leve o Dentro; lá onde saturou o Dentro, que se leve o Fora” (Pessanha, 2000, p. 109). Não, não basta uma disjunção contínua. É preciso assumir a pensar a partir da exterioridade, por exemplo, discursiva, e para fazer isso é necessária uma opção descolonial. Vejamos, de acordo com Mignolo, o que significa e implica pensar descolonialmente: “significa pensar a partir da exterioridade e em uma posição epistêmica vis-à-vis à hegemonia que cria, constrói, erige um exterior a fim de assegurar sua interioridade”, e “implica pensar a partir das línguas e das categorias de pensamento não incluídas nos fundamentos dos pensamentos ocidentais” (apud Nolasco, 2013, p. 118). Os condenados da fronteira já reivindicaram para si o direito epistêmico de poder retrucar “não, obrigado, mas não; minha [nossa] opção é descolonial” (apud Nolasco, 2013, p. 118). Por conseguinte, pensar descolonialmente significa pensar a partir da exterioridade – e não mais tão somente a relação dentro x fora, centro x periferia ou até mesmo a partir da postulação salvífica e messiânica de que o discurso moderno erigido nos centros hegemônicos pode alcançar o sujeito que está fora e sua exterioridade – e por meio de uma abordagem epistêmica subalterna porque, somente assim, pode-se perceber e entender que a opção descolonial empregada criticamente revela “a identidade escondida sob a pretensão de teorias democráticas universais ao mesmo tempo que constrói identidades racializadas que foram erigidas pela hegemonia das categorias de pensamento, histórias e experiências do ocidente” (apud Nolasco, 2013, p. 118).

Essa discussão acerca do projeto moderno e da opção descolonial, do que é da ordem da exterioridade e da interioridade, dos saberes disciplinares e dos saberes subalternos, retoma o debate, proposto por Mignolo, acerca do “universal/particular” e a “noção de insurreição dos saberes subjugados” proposta por Foucault. Os saberes subjugados foucaultianos corroboram a discussão crítica sobre os saberes subalternos, apesar de o filósofo não estar pensando em uma visada pós-colonial. De acordo com ele, os saberes subjugados deveriam ser compreendidos como

algo que de certa forma é totalmente diferente, isto é, todo um sistema de conhecimento que foi desqualificado como inadequado para suas tarefas ou insuficientemente elaborados: saberes nativos, situados bem abaixo na hierarquia, abaixo do nível exigido de cognição de cientificidade. Também creio que é através da reemergência desses valores rebaixados, (…) que envolvem o que eu agora chamaria de saber popular embora estejam longe de ser o conhecimento geral do bom senso, mas, pelo contrário, um saber particular, local, regional, saber diferencial incapaz de unanimidade e que deve suas forças apenas à aspereza com a qual é combatido por tudo à sua volta – que é através do reaparecimento desse saber, ou desses saberes locais populares, esses saberes desqualificados, que a crítica realiza a sua função (apud Mignolo, 2003, p. 44. Grifos meus).

Assim como Mignolo faz por todo o seu livro, o filósofo francês, ao trabalhar a distinção entre saberes disciplinares e saberes subjugados, estava preocupado em “questionar a própria fundação do saber acadêmico/disciplinar e especializado” (Mignolo, 2003, p. 45). Depois de nos lembrar que a genealogia propunha a “união de ‘saber erudito e memórias’”, Mignolo volta a citar Foucault, para quem o que a genealogia especificamente fazia era

apoiar o direito à atenção dos saberes locais, descontínuos, desqualificados, ilegítimos, contra as pretensões de um corpo unitário de teoria que pretendia filtrar hierarquias e ordená-las em nome de um saber verdadeiro e uma ideia arbitrária do que constitui uma ciência e seus objetos (apud Mignolo, 2003, p. 45).

Saberes condenados, saberes subjugados, saberes subalternos são compreendidos por um “saber diferencial” (Foucault) ou por uma relação diferencial (Mignolo). Para este, diferencial significa “um deslocamento do conceito e da prática das noções de conhecimento, ciência, teoria e compreensão articuladas no decorrer do período moderno” (Mignolo, 2003, p. 167). Em outro momento, mas levando em conta meu lócus geoistórico cultural periférico de onde proponho minha reflexão crítica como agora, afirmei que diferencial “também pode significar o modo como desloco (traduzo) as leituras críticas das quais me valho, como a do próprio Mignolo pensada em inglês e dos Estados Unidos sobre a América Latina, para pensar de forma diferencial a periferia em questão” (Nolasco, 2013, p. 91). Enfim, é numa relação diferencial, de diferença colonial e não de “diferença” no sentido derridaiano do termo, que podemos alcançar e provocar uma quebra epistêmico-discursiva descolonial, como forma de rechaçar os postulados teórico-críticos do pensamento crítico moderno e sem desconsiderar os direitos epistêmicos, biográficos e históricos dos sujeitos “pensantes” condenados pelo sistema colonial moderno.

Vejamos a resposta epistêmica dada pelo pensamento crítico de fronteira ao pensamento crítico moderno que teima em pensar que pode contemplar as histórias locais e os discursos subalternos em suas especificidades e sensibilidades biográficas e locais:

O pensamento crítico de fronteira é a resposta epistêmica do subalterno ao projeto eurocêntrico da modernidade. Ao invés de rejeitarem a modernidade para se recolherem num absolutismo fundamentalista, as epistemologias de fronteira subsumem/redefinem a retórica emancipatória da modernidade a partir das cosmologias e epistemologias do subalterno, localizadas no lado oprimido e explorado da diferença colonial, rumo a uma luta de libertação descolonial, em prol de um mundo capaz de superar a modernidade eurocentrada. Aquilo que o pensamento de fronteira produz é uma redefinição/subsunção da cidadania e da democracia, dos direitos humanos, da humanidade e das relações econômicas para lá das definições impostas pela modernidade europeia. O pensamento de fronteira não é um fundamentalismo antimoderno. É uma resposta transmoderna descolonial do subalterno perante a modernidade eurocêntrica (Grosfoguel, 2010, p. 480-481).

Chego, agora, ao livro Os condenados da terra (2013), de Frantz Fanon. Retomo a passagem aposta como epígrafe, na qual o autor afirma que “o colonialismo não se satisfaz em prender o povo nas suas redes, em esvaziar o cérebro colonizado de toda forma e de todo conteúdo. Por uma espécie de perversão da lógica, ele se orienta para o passado do povo oprimido e o distorce, desfigura, aniquila”. O que está em discussão na passagem de Fanon é o jogo estabelecido entre dentro e fora ou, mais precisamente, entre exterioridade e interioridade, entre pensamento colonial moderno e pensamento fronterizo. Quando o sujeito colonizador prende o sujeito condenado em suas redes discursivas, visando esvaziar o seu cérebro de todo conhecimento e aprendizagem, ele na verdade não está fazendo outra coisa senão afirmar sua interioridade por meio da negação da exterioridade do sujeito condenado ao fora. Ocorre um processo denegativo consciente: negar a exterioridade equivale tão somente em afirmar sua interioridade. Nessa direção, e tendo por base a migração do pensamento disciplinar e acadêmico, bem como dos conceitos que simplesmente migram dos grandes centros para as bordas, por meio de um discurso castrador que ignora a diferença colonial, vamos encontrar os sujeitos subalternos condenados a um discurso hegemônico imperial que teima em achar que pode representá-los, escamoteando, por conseguinte, as histórias locais e as sensibilidades biográficas e locais que se encontram amalgamadas nas especificidades culturais e na própria vida desses sujeitos. Cada vez mais, e num crescendo, nos dias atuais tem emergido, sobretudo por meio de intelectuais ameríndios, uma proposta epistemológica fronteriza como forma de barrar os projetos globais coloniais que ainda são alimentados sobretudo nas academias dos grandes centros do país e do mundo. Cheios de boas intenções salvíficas e messiânicas, tais projetos simplesmente não contemplam o que é da ordem das especificidades culturais e discursivas dessa cultura outra e seus respectivos sujeitos condenados à condição de fronteiridade.

Na sequência de sua discussão, Fanon pontua a importância do papel do intelectual, sobretudo quando se está em jogo a “alienação cultural” imposta pela época colonial, pela dominação colonial ao colonizado:

a reivindicação do intelectual colonizado não é um luxo, mas exigência de um programa coerente. O intelectual colonizado que situa o seu combate no plano da legitimidade, que quer apresentar provas, que aceita desnudar-se para melhor exibir a história do seu povo, é condenado a esse mergulho nas entranhas do seu povo (Fanon, 2005, p. 244).

Tendo a fronteira-sul como lócus geoistórico cultural de minha discussão, cuja paisagem se desenha por traços territoriais e epistemológicos, entendo que, mesmo que a condição do intelectual da zona de fronteira não seja a de um “colonizado”, ou a de um “condenado”, e que muito menos faça parte do povo subalterno em questão, como os ameríndios, a condição sine qua non para se pensar melhor é a de se pôr na de um pensador que pensa da fronteira e cujo lócus produz sua específica epistemologia, rechaçando, por conseguinte (o que não quer dizer ignorar),  quaisquer resquícios de uma epistemologia moderna assentada em conceitos estereotipados formulados do outro lado do Atlântico. Inclusive para pontuar, mostrar e discordar das forças e poderes, ingênuos ou equivocados, que quase sempre os sujeitos subalternos passam a ocupar diante de sua representação na sociedade, tal julgamento ou análise crítica deve ser feita tendo por base as especificidades de uma epistemologia que emerja do lócus em questão. Em toda e qualquer situação, é de dentro da exterioridade que o intelectual, seja ele condenado ou não, pode alcançar os “direitos epistêmicos” pelos quais os sujeitos condenados mantêm sua consciência fronteiriça viva e em ação cada vez mais. Pôr-se na condição de exterioridade é aceitar o risco de não levar na bagagem os postulados conceituais pensados dentro de um sistema colonial moderno preconceituoso, elitista e sumariamente excludente. De acordo com Mignolo, “el proceso de desprendimiento requiere de um asentamiento epistemológico diferente que describo aqui como la geo- y corpo-política del conocimiento y del entendimiento. Estas son las epistemologias de la exterioridad y de las fronteras” (Mignolo, 2010, p. 42. Grifos do autor). Se, por um lado, não temos uma exterioridade nesse mundo capitalista da modernidade, por outro lado, é bom que se entenda que não se trata de um fora ontológico, mas, sim, de um fora conceitual criado pela própria retórica da modernidade, adverte-nos o crítico. O projeto moderno criou a exterioridade para se alimentar dela e, assim, melhor eliminá-la. Produzir e se alimentar da exterioridade equivale a, para retomar a epígrafe de Fanon deste texto, esvaziar o cérebro dos sujeitos condenados ao fora.

A saída estratégica, ou melhor, epistemológica, para pensar de modo a subverter a visada moderna imperante nas bordas seria a de o intelectual se por ou assumir que pensa a partir da exterioridade. Em meu caso, considerando que habito na fronteira sul, onde o Brasil fora Paraguai, por exemplo, logo habito, penso e escrevo da exterioridade. Na esteira da reflexão de Mignolo, reconheço que é do fato de habitar na exterioridade que surge e que produzimos uma epistemologia fronteiriça enquanto um método de pensar descolonialmente, bem como as trajetórias das opções descoloniais (ver Mignolo, 2010, p. 44-45). Para Mignolo,

a opção descolonial concede à concepção da reprodução da vida que vem de damnés, na terminologia de Frantz Fanon, ou seja, da perspectiva da maioria das pessoas do planeta cujas vidas foram declaradas dispensáveis, cuja dignidade foi humilhada, cujos corpos foram usados como força de trabalho: reprodução de vida aqui é um conceito que emerge dos afros escravizados e dos indígenas na formação de uma economia capitalista, e que se estende à reprodução da morte através da expansão imperial do ocidente e do crescimento da economia capitalista. Essa é a opção descolonial que alimenta o pensamento descolonial ao imaginar um mundo no qual muitos mundos podem coexistir (Mignolo, 2008, p. 296).

A passagem ilustra a realidade nua e crua da zona de fronteira–sul na qual me encontro e penso, especialmente porque, nela, além de encontrar um lócus fronteiriço atravessado pelas imposições discursivas de poder do estado e dos latifundiários, mais os desmandos da Lei e os negócios clandestinos atravessados na luz do dia, deparamo-nos com os sujeitos indígenas que se encontram numa condição de atravessamento sem fim: há uma ferida aberta que sangra sem parar, sobre as terras do campo, como que a nos lembrar da condição belicosa na qual se encontram esses sujeitos condenados a pisar em terra estranha. Quer seja no campo ou nos centros das cidades, tais sujeitos parecem ter suas vidas teleguiadas pelo olhar imperial de um colonizador travestido de senhor protetor, bem como sua representação amalgamada num discurso acadêmico e disciplinar que não se cansa de falar de sua exterioridade, mas com um objetivo escolástico preciso: reforçar sua interioridade. Via de regra, não há muita diferença entre os discursos que intentam tratar, discutir sobre os sujeitos condenados neste lócus fronteiriço, quer o discurso advenha da academia, quer sai dos palanques municipais e estaduais. Tirante os poucos intelectuais ameríndios locais que representa seu povo, a preço de pagarem com a própria vida, os discursos assentados numa política de proteção e defesa do sujeito condenado aqui nesta zona de fronteira não faz outra coisa senão reproduzir a morte, posto que tais discursos dominantes estão articulados de tal forma que não geram políticas para que tais sujeitos exerçam sua representação. Ainda sobressaem a política e os discursos ancorados no desejo de “ajudar” os sujeitos condenados, ao invés de uma prática política, ou método discursivo-descolonial, articulados a partir de uma epistemologia fronteiriça do fora. Grosso modo, não basta mais falar pelo outro, ainda mais quando esse outro é um sujeito condenado por antecipação pelo sistema colonial moderno, sobretudo porque, apesar de sua condição de exclusão, jamais ignorou sua história local, suas especificidades culturais, sua língua, sua cultura e suas tradições ancestrais ameríndias. É nesse sentido que entendo que os “saberes subalternos” de Mignolo, os “saberes subjugados” de Foucault e os “saberes de damnés” de Fanon ajudam-nos a pensar por fora de uma epistemologia moderna, cujos conceitos sempre partiram de dentro para fora, como se a fronteira também não tivesse reproduzido sua vida e seu saber, seu próprio conhecimento, suas histórias locais com suas sensibilidades locais e biográficas, mesmo que durante anos enterrada viva na escuridão.

Vítimas do epistemicídios

<em>Bugre</em>, de Conceição dos Bugres / Acervo pessoal do autor
Bugre, de Conceição dos Bugres / Acervo pessoal do autor

O projeto de uma epistemologia do Sul é indissociável de um contexto histórico em que emergem com particular visibilidade e vigor novos atores históricos no Sul global, sujeitos coletivos de outras formas de saber e de conhecimento que, a partir do cânone epistemológico ocidental, foram ignorados, silenciados, marginalizados, desqualificados ou simplesmente eliminados, vítimas de epistemicídios tantas vezes perpetrados em nome da razão, das luzes e do Progresso (Nunes, 2010, p. 280).

Vítimas do epistemicídios é a metáfora perfeita para contemplar e compreender o lugar deliberadamente construído por uma crítica local moderna, um discurso cultural, estatal e até mercadológico para por e ascender esteticamente os “Bugrinhos” esculpidos pela artista popular e indígena Conceição dos Bugres. Apesar de ainda não ser uma palavra dicionarizada, epistemicídios significa (episteme = conhecimento + cídio = morte) morte de conhecimentos outros, que não apenas aquele propalado pela epistemologia moderna e defendido pelas ciências. Levando-se em conta a ancestralidade das histórias locais ameríndias latinas que estão na origem dos Bugres, mais as sensibilidades biográficas e locais inscritas na vida de Conceição e talhadas nos corpos esculpidos, o ato epistemícidio no discurso crítico estético e beletrista dá-se por sua inversão: quanto mais este discurso acadêmico e disciplinar procurou apontar o valor estético da obra de Conceição, enaltecendo-a  enquanto obra de arte, mais  aqueles traços que fundam uma epistemologia fronteiriça ou outra, como a questão ameríndia e biográfica por exemplo, foram sumariamente excluídos da discussão crítica. O trabalho crítico de metaforizar, isto é, de encobrir os Bugres com um manto sagrado e estético reforça uma leitura colonial que protege, no mal sentido da palavra, as histórias locais inscritas nos corpos esculpidos, impedindo-as, por conseguinte, de que elas narrem sua específica história subalterna. Quando falo da questão ameríndia e biográfica, não quero dizer com isso que a crítica moderna desconhece a real trajetória da artista, mulher e indígena Conceição dos Bugres; muito pelo contrário, estou pontuando que tal crítica ignora esses dados pelo fato de não levar em conta a condição e lugar de onde a artista se predispõe a pensar sua produção. Em toda e qualquer circunstância, uma preocupação estética não se sobreleva nos Bugres. Não estou dizendo com isso que a artista não teve tal preocupação. Pode até ter tido. Mas daí atrelar sua produção aos valores presididos pela estética moderna, há uma grande diferença. Sua produção traz uma herança colonial inscrita em seu corpo que, historicamente, passa pela heterogeneidade específica da América Latina, incluindo, de modo particular, a cultura ameríndia, passando pelos maias, incas e astecas. Toda uma cultura fronteiriça se desenha nos vincos dos corpos totêmicos dos Bugres. Não é demais lembrar que a estética moderna simplesmente ignorou tais culturas e suas respectivas produções culturais. Enfim, não aferimos o conhecimento subalterno alojado no corpo dos Bugres se não nos predispusermos a pensar por fora de toda a epistemologia moderna assentada nos postulados do grego e do latim. Talvez, não por acaso, a mulher indígena e artista Conceição dos Bugres tenha, valendo-se de uma prática ancestral, encoberto os corpos de sua “cria” com cera de abelha, visando, assim, protegê-los de todo ato epistemicídio vindo de longe. “Aprender a desaprender” (Mignolo) equivale a aprender a desencobrir os sentidos e os valores modernos e estéticos que se incrustaram nos corpos, discursos e produções humanas, visando alcançar as histórias locais e os loci de onde emergem formas outras de pensar aqueles que foram sumariamente excluídos pelo sistema colonial moderno.

Quadro de Hilton Silva / Acervo pessoal do autor ''Ameríndios'' aplica-se aos povos ''nativos'' que habitavam a terra quando chegaram os espanhóis e portugueses (Mignolo, 2003, p. 430).
Quadro de Hilton Silva / Acervo pessoal do autor
”Ameríndios” aplica-se aos povos ”nativos” que habitavam a terra quando chegaram os espanhóis e portugueses (Mignolo, 2003, p. 430).

O quadro do artista plástico e filho de Conceição também não foge à regra e capta o lado sombrio dos sujeitos (produção da mãe e dele e o lugar ocupado por ambos os artistas, quer estejam retratados/consignados dentro do quadro, quer se encontrem fora, como o próprio Hilton) enquanto vítimas ainda de um epistemicídio travestido pela rubrica da boa amizade fraternal, ou das exposições patrocinadas pela Cultura do estado, ou até mesmo pelas academias, além de toda uma divulgação massmediática que se arvora de um poder judicativo equivocado e moderno. As marcas para uma discussão de ordem pós-colonial ou subalterna ensaiam-se dentro, apesar de a obra encontrar-se numa situação de fora (exterioridade), da própria produção artística, incluindo as sensibilidades locais e biográficas de Hilton e o lócus geoistórico cultural de onde emerge sua obra plástica. Antes de avançar na discussão proposta, devo pontuar que uma produção plástica como a de Hilton Silva demanda uma consciência crítica acerca de um biolócus que atravessa sua produção de ponta a ponta, assim como todas as demais produções culturais pensadas a partir da fronteira-sul. Vida e obra, vivência e experiência, trajetória do sujeito e atravessamento, errância e hospitalidade ancoram e são ancorados pelos traços que se bifurcam e se entrecruzam na tela, lembrando ao outro que a presença do biolócus (vida + lugar) traduz a natureza compósita e porosa da fronteira que a obra plástica, de forma especular, sustenta como insígnia de um povo, de uma língua, de uma cor e de uma epistemologia que resiste aos olhares imperiais que procuram contornar com o saber, o valor e o discurso colonizadores o que não pode ser alcançado em sua completude e complexidade étnica, plástica e conceitual.

Considerando que o artista filho Hilton retrata a casa, o espaço de trabalho da mãe Conceição, percebemos, por meio de seu ato artístico, que ele retoma e consigna as impressões deixadas por Conceição e recriadas por ele. Ou seja, o trabalho de Hilton, como artista e filho, sinaliza o retorno dele a uma interioridade que, na verdade, pertence à exterioridade excluída pela boa estética moderna ocidental. Aliás, é da exterioridade que fala a obra do artista. Nessa direção, a obra de Hilton pertence e abre um arquivo fronteiriço sobre o qual a razão e o pensamento modernos não chegaram para abrir, por mais que tivessem boa intenção, inclusive estética. Somente uma leitura assentada na opção descolonial e que propusesse um aprender a desaprender (Mignolo) poderia alcançar o lócus e o bios de onde se erige todo o projeto subalterno do artista fronteiriço Hilton Silva.

Em Mal de arquivo (2001), Derrida nos lembra que o sentido de “arquivo” vem do arkheîon grego e significa uma casa, um domicílio, um endereço, lugar onde os magistrados de reuniam (Derrida, 2001, p. 12). O quadro de Hilton consigna o a casa de Conceição, o lugar em que ela trabalhava, ali onde as coisas de fato começavam. Longe de endossar o conceito etimológico do arkheîon grego, o arquivo que a obra de Hilton abre começa na fronteira-sul (físico, geográfico e, sobretudo, epistemológico), lugar onde os deuses subalternos, ou artistas da fronteira comandam e propõem as leis específicas de sua casa e de sua obra. Se o arquivo, como quer o filósofo, guarda a idéia de consignação, de reunião, então podemos ver que Hilton, no quadro destacado, consigna de tudo, desde Bugres, achas de lenha, santos, vela, quarto da mãe, fauna e flora, serrote, facão, machado, objeto pessoais, entre outros, como forma de, assim, erigir um corpus biolócus que configura a condição de subalternização na qual se encontra seu povo e, ao mesmo tempo, põe em funcionamento uma epistemologia capaz de desvelar as histórias locais enterradas vivas pelo sistema colonial moderno imperante na fronteira e nos trópicos latinos.

As belas impressões desarquivadas pelo filho sobre a mãe no quadro, se, por um lado, denunciam a prática de um epistemicídio frequente, por outro, remetem o outro para “memórias da morte” enterradas vivas e histórias locais subalternas e esquecidas que precisam ser desarquivadas nas discussões contemporâneas, sobretudo nos lugares de onde essa produção cultural e artística está emergindo na sociedade. O arquivo que a obra de Hilton propõe e abre, diferentemente do conceito de arquivo moderno (Derrida), parece não sofrer do “esquecimento”: ele não faz outra coisa senão lembrar-se (manter viva) o tempo todo de sua história familiar ignorada pelos postulados da memória moderna ocidental. Se, por um lado, Derrida, relendo a psicanálise freudiana, afirma que “não há arquivo sem um lugar de consignação, sem uma técnica de repetição e sem uma certa exterioridade. Não há arquivo sem exterior” (Derrida, 2001, p. 22), por outro, uma produção artística subalterna como a de Hilton Silva, produzida exatamente na interioridade da exterioridade não contemplada pelo arquivo do mal, vai nos mostrar e comprovar não sofrer de nenhum mal de arquivo, de nenhuma pulsão de morte, de nenhum esquecimento, nem muito menos trabalhar contra seu próprio conceito de arquivo, entrevendo, por conseguinte, que toda a discussão acerca da subjetividade proposta pela psicanálise freudiana não alcançou a exterioridade, na qual essa produção artística se situa, e cuja exterioridade pode ter sido reforçada também  pelos postulados da ciência do desejo do século 20 no ocidente e em quase todo o resto do  mundo.

A exterioridade está plasmada dentro do espaço biográfico que a obra de Hilton Silva e a de Conceição dos Bugres amalgamam e consignam, como forma de barrar toda e qualquer discussão crítica assentada nos postulados de uma estética moderna elitista, dualista, excludente e conservadora. A partir de um olhar crítico assentado numa opção descolonial e numa epistemologia fronteiriça, por exemplo, a exterioridade torna-se interioridade, isto é, exatamente a compreensão daqueles traços do bios, as sensibilidades e as histórias locais não alcançados pelo sentido produzido por uma política do discurso do dentro. O quadro de Hilton parece nos mandar de volta para casa, para a fronteira, parece nos lembrar de nossa condição fronteiriça, advertindo-nos em nossos ouvidos: “No, gracias, pero no; mi opción es decolonial” (Mignolo, 2005, p. 217).

 

<em>Bugre</em>, de Mariano Neto /Acervo pessoal do autor La opción descolonial no es solo uma opción de conocimiento, uma opción académica, uma matéria de <em>estudio</em>, sino uma opción de vida, de pensar y de hacer. Es decir, de vivir y convivir com quienes encuentran que la opción descolonial es la suya y con quienes han encontrado opciones pararelas y complementarias a la descolonial (Mignolo, 2015, p.468-469).
Bugre, de Mariano Neto /Acervo pessoal do autor
La opción descolonial no es solo uma opción de conocimiento, uma opción académica, uma matéria de estudio, sino uma opción de vida, de pensar y de hacer. Es decir, de vivir y convivir com quienes encuentran que la opción descolonial es la suya y con quienes han encontrado opciones pararelas y complementarias a la descolonial (Mignolo, 2015, p.468-469).

 

A plêiade de Bugres esculpidos por Mariano Neto retoma a linhagem dos Bugres feitos por Conceição e continuados por seu esposo, mais os realizados pelo próprio Hilton Silva. A genealogia familiar indígena mantém viva a plêiade de Bugres esculpidos e inseridos no mercado e na cultura do dinheiro de nossa época. Mas não quero me deter em nenhuma questão atinente a valor, seja ele econômico ou estético, apesar de entender que os Bugres esculpidos por Mariano vêm preenchendo e estendendo o lugar outrora ocupado por todos os demais Bugres esculpidos anteriormente. Por seguirem a pegada do bios e do lócus fronteiriço incrustada em seu próprio corpo, os Bugres de Mariano Neto também barram os conceitos racializados e patriarcais, como os de identidade e de estética, e propõem uma visada descolonial sem precedentes na cultura local fronteiriça da capital Campo Grande, onde são esculpidos, e de toda a fronteira-sul. Se aos olhos do estado, do mercado e do mundo turístico da região eles não passam de enfeites de geladeira e de souvenires exóticos levados para longe, a política identitária, ou melhor, a “identidade em política” (Mignolo) proposta pelo trabalho de Mariano propõe um aprender a desaprender que balança a razão moderna e seus valores estéticos imperiais que grassam na capital e no cerrado. O diálogo ininterrupto que os Bugres de Mariano mantêm com os demais Bugres da família escava um lugar específico para um fazer artístico que é correlato a um fazer descolonial, como forma de manter na opção/ação a herança de um pensamento ameríndio, ou fronteiriço, advindo da fronteira-sul. Somente uma epistemologia fronteiriça pode captar o projeto descolonial que vive nas mentes dos artistas da fronteira e gravado na memória dos corpos talhados e encobertos propositalmente com cera para que sua identidade não seja maculada por teorias democráticas e universalizantes. É de uma consciência bugresca fronteiriça que fala os Bugres de Mariano Neto[2]. A vida “natural” exuberante, de um lugar onde Arte aqui é mato (tudo é considerado arte), mais a profunda memória subalterna e toda a cosmologia ameríndia de seu povo ancestral latino e mais a própria língua vividas pelo artista e amalgamadas dentro de sua produção artística oferecem-nos a possibilidade de compreender o lugar e a memória de quem se é (ser) e de onde se está (estar) (ver Mignolo, 2008, p. 303). Os Bugres e sua memória bugresca, Mariano e seu fazer sinalizam uma discussão estética conceitual aberta ao pluri-tópico e ao pluri-versal, e não mais ao mono-tópico e ao uni-versal nos quais estava assentado todo o pensamento filosófico europeu, incluindo a estética, posto que sua herida abierta (Anzaldúa)[3] continua a sangrar por todo o mundo de forma “diversa e diversificada”.

O epistemicídio indígena operacionalizado no estado pelas forças latifundiárias, estatais, discursivas e epistemológicas tem a cor matizada e vermelha, contrapondo-se ao crepúsculo da fronteira e ao sangue derramado no campo pela luta por terra. Aqui na fronteira a ferida colonial está aberta e os povos indígenas não habitam suas terras prometidas. Os Bugres esculpidos na cidade trazem a marca dessa herança cultural esculpida em seus corpos e seus vincos simbolizam essa ferida aberta que nem sangra mais. Os olhos vazados dos Bugres apontam a direção de uma epistemologia outra que capta e traduz todo seu bios e seu lócus, suas sensibilidades e histórias locais, ao mesmo tempo em que barra o olhar imperial advindo da epistemologia moderna que não fez outra coisa senão castrar a diferença colonial.


*Edgar Cezar Nolasco é pós-doutor em Estudos Culturais pelo PACC/UFRJ (2013); professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e tem várias obras publicadas, entre elas: Perto do coração selbaje da crítica fronteriza (2013) e Michel Foucault: entre o passado e o presente, 30 anos de (des) locamentos (2015), este em coautoria. Email: ecnolasco@uol.com.br

 

Referências

ANZALDÚA, Gloria. Borderlands: la frontera (the new mestiza). São Francisco: Aunt Lute Books, 2007.

DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Trad. de Cláudia de Moraes Pinto. Rio de Janeiro:  Relume Dumará, 2001.

FANON, Frantz. Os condenados da terra. Trad. de Enilce Alberfaria Rocha, Lucy Magalhães. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2005.

MIGNOLO, Walter. Habitar la frontera: sentir y pensar la descolonialidad (Antologia, 1999-2014). Espanha: Edicions Bellaterra, 2015. 514p. Epílogo, p. 457-469

MIGNOLO. Walter. Desobediência epistêmica: retórica de la modernidad, lógica de la colonialidad y gramática de la descolonialid. Buenos Aires: Ediciones del signo, 2010.

MIGNOLO, Walter. Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado de identidade em política. Cadernos de Letras da UFF. Dossiê Literatura, língua e identidade, nº 34, p. 287-324, 2008.

MIGNOLO, Walter. La idea de América Latina: la herida colonial y opción descolonial. Trad. de Silvia Jawerbaum y Julieta Barba. Barcelona: Gedisa Editorial, 2005.

MIGNOLO, Walter. Histórias locais/projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Trad. de Solange Ribeiro de Oliveira. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.

NOLASCO, Edgar Cézar. Perto do coração selbaje da crítica fronteriza. São Carlos: Pedro & João Editores, 2013.

OLIVEIRA, Marcos Antônio de. Paisagens biográficas pós-coloniais: retratos da cultura local sul-mato-grossense. Tese de doutorado apresentada no Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, SP: [s.n.], 2014.

 

Notas

[1] Faço alusão ao livro Habitar la frontera: sentir y pensar la descolonialidad (2015), de Walter Mignolo.

[2] Acerca de uma Poética Bugresca, ver a tese em Artes de Marcos Antònio de Oliveira, intitulada Paisagens biográficas pós-coloniais: retratos da cultura local sul-mato-grossense, defendida no Instituto de Artes da UNICAMP em 2014.

[3] “The U. S. Mexican border es uma herida abierta where the Third World grates against the first and bleeds. […] Borders are set up to define the places that are safe and unsafe, no distinguish us from them. A border is a dividing line, a narrow strip along a streep edge. A borderland is a vague and undetermined place a created by the emotional residue of na unmatural boundary” (Anzaldúa, 2007, p. 25).

Recebido em 5 de julho de 2016.
Aprovado em 8 de setembro de 2016.

artigo
Tempo de leitura estimado: 24 minutos

PERSPECTIVAS DIDÁTICAS PARA A TRADUÇÃO/LOCALIZAÇÃO DE VIDEOGAMES

Resumo: Estruturar uma disciplina envolvendo tecnologias aplicadas à tradução e localização de videogames em cursos de graduação em tradução é uma tarefa bastante complexa nos dias de hoje, particularmente devido ao escasso acesso a materiais autênticos. Este trabalho descreve como manipular os componentes linguísticos do primeiro videogame da série Call of Duty, com vistas a refletir sobre as possíveis demandas tradutórias de softwares de entretenimento e sua possível inserção na sala de aula de formação de tradutores.

Palavras-chave: Call of Duty; tradução e localização de videogames; ensino de tradução.

Abstract: Designing a course involving the translation and localization of videogames in undergraduate programs in translation is a complex task in today’s reality, particularly due to short access to authentic materials. The main focus of this work is to describe how to manipulate linguistic assets of the first Call of Duty game installment, trying to shed some light on potential translation demands of entertainment software and its incorporation in the translator training.

Keywords: Call of Duty; translation and localization of videogames; translation training.

 

Foi-se o tempo em que o professor de tradução ocupava uma posição central na sala de aula e os alunos permaneciam sentados em suas carteiras ouvindo a tradução “correta” de um texto. Um tempo em que o professor de tradução apresentava o texto, geralmente literário ou técnico, sempre no formato impresso, e os alunos produziam as traduções em papel almaço. Um tempo em que a participação dos alunos restringia-se a escutar a tradução oficial, lida pelo professor, copiá-la da lousa ou reproduzi-la em seus computadores pessoais, geralmente em formato .doc. Como alunos, professores ou pesquisadores versados nos Estudos da Tradução, muitos de nós tivemos essa experiência. Também sabemos que abordagens dessa natureza para o ensino de tradução ainda existem em várias partes do mundo (Delisle, 1998; Colina, 2003; Kiraly, 2014). No entanto, esse cenário se encontra em processo de total transformação, principalmente em nível de organização curricular de ensino de tradução no Brasil e no exterior, atingindo a prática docente em sala de aula.

Hoje, tornou-se imperativo que as aulas de tradução – assim como várias outras (Belanga-Fernández, 2010; de Pablo, 2007) – estejam ancoradas em abordagens centradas nos alunos e que haja um processo ativo de ensino e aprendizagem de tradução através do uso de variados aparatos tecnológicos. Nesse novo paradigma, professores e alunos estão fora de suas carteiras, trabalhando lado a lado, envolvidos em diferentes tipos de atividades práticas não mais restritas ao texto impresso e ao papel almaço. Em comparação ao que se tinha antigamente, as aulas de tradução de hoje estão irreconhecíveis[1].

Atualmente, a dinâmica de trabalho em sala de aula de ensino de tradução consiste em traduzir textos literários, científicos, técnicos, jurídico-comerciais, dentre tantos outros publicados nos mais diversos formatos e extensões de arquivos, com o aporte de sistemas sofisticados de memória de tradução (softwares específicos para produção e edição de traduções, bem como armazenamento de bancos de dados terminológicos e corpora compilados). O objetivo, em linhas gerais, é usar a tecnologia para aumentar a produtividade do tradutor e a qualidade de seu trabalho.

Também faz parte da dinâmica de sala de aula traduzir, com suporte tecnológico, materiais audiovisuais para o cinema, para a televisão, para a mídia impressa e on-line ou para empresas que fazem uso de vídeos corporativos de modo geral. A tradução de sites da internet igualmente integra a lista de exercícios do aprendiz de tradução, que passa a ser capacitado não somente a traduzir hipertextos de conteúdos variados (Pym, 2010; Jiménez-Crespo, 2013), mas também a lidar com uma grande gama de softwares específicos para a tradução e edição de páginas de internet e de todos os formatos digitais que ela reúne.

E as mudanças não param por aí. A incorporação de recursos tecnológicos ao trabalho do tradutor, em consonância com os avanços da internet, também possibilita a tradução de softwares utilitários (Sandrini, 2008), como, por exemplo, programas e aplicações que armazenam dados, que manipulam imagens, que editam textos (e.g., o pacote do Microsoft Office), bem como de softwares de entretenimento, ou videogames, objeto de estudo deste trabalho.

Desde as pinball machines, criadas em 1970, à criação do Pac-Man pela empresa japonesa Nintendo em 1980, que posteriormente teve como produção mais famosa o Super Mario Bros, somadas ao desenvolvimento, entre os anos de 1990 e 2000, do Unicode e de distintas plataformas, como PC, PS2, PS3 e PS4, PSP, Xbox (360), GC, GBA, Nintendo DS (Wii), Wii U, incluindo os smartphones, a bilionária indústria de videogames tem atraído usuários das mais diversas idades e nacionalidades. Isso sem contar a arena on-line que possibilitou às empresas o acesso à opinião dos jogadores de MMO, agregando sofisticação cada vez maior aos videogames, que hoje reúnem arte gráfica, arte fílmica, literatura, ciências da computação e interação audiovisual.

Um dos principais desafios que emerge é como ensinar tantos conhecimentos e habilidades para compreender o emaranhado de arquivos que compõem esses materiais multimodais (Silva, 2014) a serem traduzidos/localizados para outro país, já que a principal estratégia dessa indústria é o alcance de outros mercados com a promessa de garantir jogabilidade e experiência de gameplay similares entre todos os públicos (Chandler; Deming, 2012; Coletti; Motta, 2013; Souza, 2012, 2014). A despeito da rápida expansão da indústria de videogames e da existência de numerosos cursos de formação de tradutores em todo o mundo, muitos cursos universitários em nível de graduação ou pós-graduação ainda não incluíram a tradução de videogames em suas matrizes curriculares (O’Hagan; Mangiron, 2013).

Bernal-Merino (2008) explica que as principais razões para a ausência da prática de tradução de videogames na sala de aula de tradução são: o número reduzido de professores que trabalham com essa temática e que têm que dispor de tempo para explorar as tecnologias disponíveis usualmente utilizadas na extração dos arquivos executáveis dos softwares; a falta de investimento tecnológico por parte das instituições de ensino; e a dificuldade de se estabelecerem parcerias entre as universidades e a indústria de localização de videogames. Para o autor, a junção desses fatores faz com que a tradução e localização de softwares de entretenimento sejam estudadas apenas em nível teórico. Quando muito, trabalha-se com traduções descontextualizadas – em arquivos passíveis de serem abertos em editores de texto comuns – de materiais linguísticos dos videogames, sequer abordando questões inerentes à sua multimodalidade (Gambier, 2006), e/ou aos seus aspectos técnicos e tecnológicos, sobretudo em termos de manipulação de software (Bernal-Merino, 2008, 2014), e/ou às inúmeras possibilidades narrativas (Mäyrä, 2008), haja vista que não existe uma sequência linear exata para muitos videogames, como os de RPG (role play game).

Nesse contexto, este trabalho descreve como manipular os componentes linguísticos do primeiro videogame da série Call of Duty, distribuída pela Activision Blizzard desde 2003, com vistas a refletir sobre as demandas tradutórias de softwares de entretenimento e sua possível inserção na sala de aula de formação de tradutores. Trata-se de uma proposta didática, de viés naturalista, que busca apresentar formas de manipulação textual de um videogame, com vistas a “alimentar” e “amadurecer” a formação do tradutor-localizador de videogames. Este trabalho constitui-se como um primeiro passo para a futura estruturação de uma disciplina voltada especialmente à tradução e localização de videogames[2], que exigirá a adoção de uma metodologia no mínimo compatível com os estudos que circundam a tradução, localização e multimodalidade.

No caso da instituição à qual pertencem os autores deste trabalho, o Curso de Bacharelado em Tradução do Instituto de Letras e Linguística da Universidade Federal de Uberlândia (ILEEL/UFU), criado no âmbito do Reuni, possui em sua matriz curricular duas disciplinas destinadas ao ensino e à aprendizagem de ferramentas tecnológicas de apoio ao tradutor, intituladas Treinamento de Tradutores e Novas Ferramentas I e II. Com o número cada vez maior de oferta de ferramentas de tradução – on e off-line –, optou-se por dividir o conteúdo das disciplinas da seguinte forma: na disciplina I, o aluno é instrumentalizado a trabalhar com os principais sistemas de memória de tradução, conhecidos internacionalmente como as principais CAT Tools (computer-assisted translation tools); na disciplina II, dedica-se à prática de tradução e localização de websites e softwares utilitários e de entretenimento, sendo dedicadas apenas três unidades didáticas à tradução de videogames.

Por que o primeiro videogame da série Call of Duty (2003)?

A resposta a essa pergunta é relativamente simples e pode ser depreendida de outras indagações: como conseguir softwares inéditos, arquivos executáveis e todos os outros elementos da linguagem de programação que fornecem a interação entre o videogame, a plataforma e o usuário? Como seguir o exposto por Kiraly (2000), que já afirmava, há mais de uma década, que as aulas de tradução que não estiverem baseadas em materiais autênticos e em situações do mundo real são desmotivadoras e sem propósito?

Central nisso é destacar que as empresas desenvolvedoras dos videogames não cedem seus arquivos, seja para uso didático ou não, por questões de sigilo e direitos autorais. A título de ilustração, em contato recente feito pelos pesquisadores deste trabalho junto à Synthesis Brasil, responsável pela tradução e localização do videogame Far Cry 4, a empresa informou que, com o intuito de evitar ilegalidades, apenas fornece os arquivos aos tradutores profissionais envolvidos no projeto, os quais, por sua vez, assinam contratos de sigilo e recebem os textos fragmentados em tabelas do Word ou Excel, de forma não linear, organizados em colunas independentes e sem quaisquer referências ao contexto do videogame. O desafio pedagógico dos professores é como abordar e ensinar essa temática nos cursos de tradução sem o manuseio e a experiência tradutória de materiais reais, que poderiam simular o que o mercado exige do tradutor-localizador.

Para Gouadec (2003) e Bernal-Merino (2014), o tradutor não é um simples agente na linha de produção de localização de software, mas sim um profissional-chave que dará sustentação para todo o processo de localização. É, sim, um profissional que terá de lidar com mais de dez diferentes plataformas de adaptação cultural e linguística de um único videogame, com especificidades técnicas que acrescentam complexidade ao hardware e software, bem como gigantescos glossários de termos técnicos. Ainda, para Bernal-Merino (2008, 2014), um tradutor-localizador dessa mídia tem de: entender da tradução do videogame em si, com uma variedade de textos em múltiplos formatos em áudio e vídeo, com seus manuais de instalação e arquivos de ajuda; traduzir o site oficial do videogame, lidando com a linguagem HTML e JavaScript, além da linguagem propagandística que envolve o material de divulgação do videogame; traduzir os patches (ou programas extras) que aumentam a funcionalidade do videogame, o que demanda que o profissional da tradução conheça sua ambientação e personagens.

Diante dessa variedade de textos e formatos de arquivos, percebe-se o quanto o processo de tradução de um videogame pode ser complexo. Para Yuste-Frías (2014), um tradutor de videogame não é somente o sujeito que traduz os textos que serão dublados ou lidos nas legendas, mas também o primeiro agente paratradutor e, por conseguinte, o melhor localizador, aquele que deveria decidir pela edição definitiva de todos e de cada um dos paratextos que envolverão o videogame na tela, bem como daqueles que irão prolongá-lo fora dela.

Diante disso, fez-se necessária uma escolha para a exploração pedagógica dessa temática. Após realizada uma busca na internet, percebeu-se que o videogame Call of Duty (2003) para PC encontrava-se disponível na íntegra, com todos os seus arquivos de texto, áudio e vídeo, o que possibilitou seu uso para fins didático e de manipulação textual para tradução. Além disso, trata-se, nas palavras de O’Hagan e Mangiron (2013, p. 15), da série mais rentável da história dos videogames, ultrapassando as bilheterias das séries cinematográficas Harry Potter e Star Wars.

Do gênero de tiro em primeira pessoa (first person shooter), o primeiro videogame da série Call of Duty foi produzido pela empresa estadunidense Activision Blizzard e lançado em 2003. A série, inicialmente desenvolvida para Microsoft Windows, expandiu-se rapidamente para outras plataformas, como PlayStation, Wii, XBOX, dispositivos portáteis e, também, Macintosh. Em Call of Duty 1, 2 e 3, a produção é ambientada na Segunda Guerra Mundial. Call of Duty 4 (Modern Warfare), lançado em 2007 e seguido de Modern Warfare 2 (2009), narra uma guerra fictícia. Por sua vez, Call of Duty Black Ops, lançado em 2010, revela um cenário futurístico e é seguido de Black Ops II (2012), que se ambienta em 2025. Em seguida, Call of Duty: Ghosts foi lançado em novembro de 2013 e Advanced Warfare, em 2014. Em abril de 2015, a Treyarck, empresa desenvolvedora do videogame, anunciou o lançamento de Black Ops III.

Para fins didáticos, dos tipos principais de projeto de tradução e localização de videogames descritos por Bernal-Merino (2008) e O’Hagan e Mangiron (2013), quais sejam, full localization (i.e., localização completa, que consiste na tradução dos boxes e documentos do videogame, de seu website e até mesmo em marcas culturais de recursos midiáticos) ou partial localization (i.e., localização parcial, que, como o próprio nome demonstra, consiste na tradução de apenas algumas partes do videogame), acreditou-se ser possível implementar em sala de aula apenas este último, isto é, tradução e localização parcial do jogo. No exemplo tratado aqui, ilustra-se apenas a manipulação do menu principal do videogame. Para O’Hagan e Mangiron (2013), seria necessário, para se traduzir em sala de aula um jogo completo (full localization) pensar em disciplinas exclusivas para tradução e localização de videogames que sejam no mínimo compatíveis com sua sofisticação.

A estrutura do videogame e a manipulação textual

Para a realização da tradução do videogame Call of Duty, é necessário fazer com que o aluno entre em contato com alguns conceitos básicos sobre a estruturação dos arquivos. Na maioria dos casos, os videogames para PC possuem uma pasta chamada “local”, que contém as strings (linhas ou cadeias de texto) do videogame. Neste caso, pode-se editar o conteúdo desses arquivos, que, em se tratando de Call of Duty, encontram-se no formato XML, viabilizando a utilização da aplicação Notepad++[3] para a tradução, configurando-se, assim, como um exemplo simples de manipulação textual.

Todas as strings estão compactadas em um arquivo-pasta de extensão “.pk3” – semelhante a um arquivo “.rar” ou “.zip” –, que contém várias pastas e/ou arquivos compactados. Para manipular esses arquivos, é necessário o uso do software PakScape[4]. Para realizar a extração das strings do videogame, segue-se o seguinte caminho: C:\Program Files\Call of Duty\Main. Dentro da pasta “Main” estão os arquivos “.pk3”. O arquivo de interesse é o arquivo “localized_english_pak1.pk3”, no qual estão contidas as strings para tradução. Ao se abrir o arquivo-pasta “localized_english_pak1.pk3” por meio do software “PakScape”, são exibidas as pastas e os arquivos (resultado similar ao da abertura de um arquivo “.rar” com o programa Winrar).

Expandindo a pasta “english”, através do botão “+” em “localizedstrings”, os arquivos serão apresentados com a extensão “.str”. No exemplo a seguir, o arquivo a ser editado será o “menu.str”, que, como o próprio nome indica, possui as strings do menu principal do videogame (Figura 1).

 Figura 1: Instantâneo da tela do software PakScape / Fonte: obtida pelos autores por meio do programa PakScape
Figura 1: Instantâneo da tela do software PakScape / Fonte: obtida pelos autores por meio do programa PakScape

É importante ressaltar que não existe um padrão de extensão de arquivos traduzíveis em videogames, o que depende do desenvolvedor/programador. Vários videogames incluem ainda os arquivos de vídeo e legendas, como em um filme, o que torna a tradução impossível sem o apoio do desenvolvedor/programador. A esse respeito, Bernal-Merino (2008, 2014) afirma que a indústria de videogames infelizmente não criou uma única ferramenta de localização capaz de traduzir os softwares de entretenimento. No caso de Call of Duty utilizado aqui como exemplo, o videogame para PC disponível na internet possui arquivos em pk3, que podem ser abertos pelo software PakScape; no entanto, isso não é possível com a maioria dos softwares.

Em seguida, cria-se uma pasta separada fora do programa “PakScape”, no local de preferência do usuário. Então, copia-se o arquivo que se deseja traduzir, que, neste exemplo, é o arquivo “menu.str”. Após editado (no caso, traduzido), esse arquivo deverá ser salvo, usando o programa “PakScape”, dentro do arquivo-pasta “localized_english_pak1.pk3” em substituição ao arquivo anterior”.

Para edição (i.e., tradução), deve-se clicar com o botão direito do mouse sobre o arquivo “menu.str” e selecionar a opção “Edit with Notepad++” (assumindo que o programa já esteja instalado com as configurações padrões; do contrário, é necessário instalar o programa pela primeira vez ou novamente). Após aberto no programa “Notepad++”, o arquivo será exibido da forma apresentada na Figura 2.

Figura 2: Instantâneo do arquivo a ser traduzido no software Notepad++. / Fonte: obtida pelos autores por meio do programa Notepad++.
Figura 2: Instantâneo do arquivo a ser traduzido no software Notepad++. / Fonte: obtida pelos autores por meio do programa Notepad++.

As strings a serem traduzidas estarão sempre seguidas da palavra “LANG_ENGLISH” e entre aspas, conforme destacado em retângulo na Figura 2. Neste caso, a string a ser traduzida é a palavra “Yes”. Nesta fase, já é possível fazer a tradução.

Aqui cabem duas observações: (i) não se pode abrir arquivo “.str” (neste caso, “Menu.str”) em outros editores de texto como o Microsoft Word, pois ele adiciona recursos de formatação que não são aceitos pelo videogame Call of Duty; e (ii) não se pode alterar as aspas utilizadas para delimitar a string (por exemplo, aspas normais por aspas inglesas), pois quaisquer alterações podem inserir bugs e, por conseguinte, comprometer a jogabilidade.

Após o término das traduções, deve-se salvar o arquivo e copiá-lo no software PakScape (neste caso, “Menu.str”) para a pasta “localizedstrings/english”. O programa exibirá uma caixa de diálogo perguntando se o arquivo deve ser substituído. Clica-se na opção “Yes to all”. Após clicar em “Yes to all”, é necessário clicar no menu “File” e, depois, na opção “Save” do programa “PakSapace”.

Na Figura 3, pode-se observar a tradução de parte do menu “Choose skill level” (“Escolha seu nível de habilidade”), em que as palavras “Back” e “Greenhorn” foram substituídas, respectivamente, por “Retornar” e “Iniciante”. Observa-se, assim, como se pode manipular as strings de texto em uma aula prática de tradução de videogames.

Figura 3: Tradução do menu principal, na aba “Choose skill level”. / Fonte: instantâneo de Call of Duty traduzido pelos autores com o aporte do software Pakscape.
Figura 3: Tradução do menu principal, na aba “Choose skill level”. / Fonte: instantâneo de Call of Duty traduzido pelos autores com o aporte do software Pakscape.

Demandas tradutórias para a prática de tradução de videogames em sala de aula

Neste trabalho, buscou-se descrever uma forma simples de manipulação do componente textual do videogame Call of Duty, com o propósito de evidenciar, sob uma perspectiva tecnológica, as demandas tradutórias de um tradutor-localizador de videogames. Tal descrição possibilitará a construção mais coerente e eficaz de uma unidade didática destinada a esse tipo de material. Como não é possível obter um videogame autêntico diretamente de uma empresa desenvolvedora por questões comerciais, de sigilo e de direitos autorais, optou-se por utilizar um videogame disponível na internet e que pode ser baixado livremente, com seus arquivos originais de texto.

Para o caso concreto de construção de uma unidade didática destinada a esse fim, destaca-se, pelo menos no contexto atual ora descrito, a tradução apenas dos peritextos (e.g., títulos, índices/menus e textos de apresentação) que introduzem o texto a ser traduzido. Sabe-se que os hipertextos dos videogames, compostos de textos, imagens e sons (as unidades verbo-ícono-sonoras), inseparáveis no processo de localização, também necessitam ser trabalhados em sala de aula, mas, por questões de tempo disponível na disciplina, ainda não foram contemplados. No entanto, vale lembrar que, como o perfil dos alunos é heterogêneo, havendo aqueles mais afeitos e aqueles mais avessos à tecnologia, é importante uma abordagem por tarefas de crescente nível de complexidade (Hurtado-Albir, 2007). Nesse sentido, o exemplo ora mostrado parece ser uma base adequada para que se possa vir a trabalhar, caso possível, em níveis mais avançados de manipulação de software, inclusive dos materiais midiáticos dos videogames.

De todas as maneiras, a tradução apenas do menu do videogame, no exemplo aqui descrito, pode ilustrar os caminhos e/ou cuidados necessários para se lograr uma tradução eficaz, a qual não apenas se restringe ao componente linguístico propriamente dito, mas também inclui as especificidades de um software que, se respeitadas, garantem a jogabilidade. Inclusive, é possível fazer alterações em strings a fim de mostrar aos alunos como é importante se ater ao conteúdo linguístico que pode ser alterado.

Considerações finais

O processo de tradução e localização de um videogame envolve adaptar as necessidades do produto ao mercado. Esforços devem ser feitos no sentido de estabelecer parcerias entre a universidade e o mercado de trabalho, com vistas a acompanhar a crescente evolução dos videogames. Ao que tudo indica, o caminho nessa direção é árduo, mas nos parece ser o ideal se quisermos de fato trabalhar com materiais autênticos e, mais que isso, acompanhar a esteira do desenvolvimento tecnológico, que segue cada vez mais rápida. Igualmente, esse esforço é necessário se também quisermos desenvolver boas práticas (best practices) de tradução e localização de videogames, o que certamente ultrapassa o uso de planilhas do Microsoft Excel com fragmentos de texto a serem desvendados por tradutores desmunidos de uma de suas principais armas: o contexto.

Principalmente por não se tratar de um freeware, um software de domínio público ou software disponibilizado sob uma licença creative commons (que permite livre distribuição e uso, com algumas ressalvas), lembramos a importância da legalidade e ética no que diz respeito ao uso de softwares em sala de aula. O exemplo ora apresentado faz uso apenas de uma parte ínfima do software, restrita à sala de aula e, portanto, sem qualquer distribuição ou alteração de código-fonte. Acreditamos que iniciativas dessa natureza talvez possam convencer a indústria de que uma pareceria é viável sem infringir o sigilo e os direitos autorais. Essa parceria é fundamental se de fato desejamos transcender o componente linguístico e abordar todos os aspectos envolvidos na tradução e localização de games, o que inclui, dentre outros, a multimodalidade, a narrativa não linear e o manejo de tecnologias amigáveis (user-friendly) e outras nem tanto. Certamente, todas as partes envolvidas (distribuidores, desenvolvedores, usuários, pesquisadores, professores e tradutores-localizadores) têm muito a aprender com base no conhecimento compartilhado e na troca de experiências.

* Marileide Esqueda é professora adjunta da Universidade Federal de Uberlândia, onde atua no curso de bacharelado em tradução. É doutora em Linguística Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas.
** Igor A. Lourenço da Silva é professor adjunto da Universidade Federal de Uberlândia, onde atua no curso de bacharelado em tradução. É doutor em estudos linguísticos pela Universidade Federal de Minas Gerais.

 

Referências

Berlanga Fernández, I. Metalenguaje interactivo: herramientas en la red para nativos digitales. Revista de Comunicación y Nuevas Tecnologías, n. 15, p. 274-288, 2010.

BERNAL-MERINO, M. A. Translation and localisation in video games: making entertainment software global. Nova York: Routledge, 2014.

BERNAL-MERINO, M. A. What’s in a ‘game’. Localisation Focus. v. 6 n. 1, p. 29-38, 2008.

CHANDLER, H. M.l; DEMING, S. O. The game localization handbook. 2. ed. Sudbury: Jones & Bartlett Learning, 2012.

COLETTI, B. L.; MOTTA, L. A localização de games no Brasil: um ponto de vista prático. In-Traduções, v. 5, n. esp.– Games e Tradução, p. 1-12, out. 2013.

COLINA, S. Translation teaching: from research to classroom – a handbook for teachers. Arizona: McGraw Hill, 2003.

DELISLE, J. Le métalangage de l’enseignement de la traduction d’après les manuels. In: DELISLE, J.; LEE-JAHNKE, H. (ed.). Enseignement de la traduction et traduction dans lenseignement. Ottawa: PUO, 1998. p. 185-209.

DE PABLO, P. El cambio metodológico en el Espacio Europeo de Educación Superior y el papel de las tecnologías de la información y la comunicación. Revista Iberoamericana de Educación a Distancia, v. 10, n. 2, p. 15-44, 2007.

DUNNE, K. J. Localization. In: SIN-WAI, C. (Org.) The Routledge encyclopedia of translation technology. Nova York: Routledge, 2015. p. 550-562.

GAMBIER, Y. Multimodality and Audiovisual Translation. In: MUTRA CONFERENCE, Copenhagen, 1-5 maio 2006. Proceedings… Copenhagen: MuTra, 2006. p. 1-8.

GOUADEC, D. Le bagage spécifique du localiseur/localisateur. Le vrais ‘nouveau profil’ requis. Meta, v. XLVIII, n. 4, p. 526-545, 2003.

HURTADO-ALBIR, A. Competence-based curriculum design for training translators. The Interpreter and Translator Trainer (ITT), v. 1, n. 2, p. 163-195, 2007.

JIMÉNEZ-CRESPO, M. Translation and web localization. Londres & Nova York: Routledge, 2013.

KIRALY, D. From assumptions about knowing and learning to praxis in translator education. InTRAlínea, v. 16, p. 1-11, 2014.

KIRALY, D. A social constructivist approach to translator education: empowerment from theory to practice. Manchester, UK & Northampton, MA: St. Jerome, 2000.

MÄYRÄ, F. An introduction to game studies: games in culture. Londres: Sage Publications, 2008.

O’HAGAN, M; MANGIRON, C. Pedagogical issues in training game localizers. In: O’HAGAN, M; MANGIRON, C. Game localization: translating for the global digital entertainment industry. Amsterdã/Filadélfia: John Benjamin, 2013. p. 243-276.

PYM, A. Website localization. Tarragona: Intercultural Studies Group, 2010.

SANDRINI, P. Localization and translation. MuTra: Thematic Volumes on Multidimensional Translation. v. 2, p. 167-91.

SILVA, Fernando da. Apontamentos teóricos e práticos sobre a análise de multimodalidade em jogos digitais localizados. Scientia Traductionis, n. 15, 155-165, 2014.

SOUZA, R. V. F. de. O conceito de “gameplay experience” aplicado à localização de games. Scientia Traductionis, n. 15, 8-26, 2014.

SOUZA, R. V. F. de. Video game localization: the case of Brazil. TradTerm, v. 19, p. 289-326, nov. 2012.

YUSTE-FRÍAS, J. Localización de videojuegos: paratextos materiales e icónicos. Scientia Traductionis, n. 15, p. 61-76, 2014.

 

Notas

[1] A despeito do fato de a tecnologia, principalmente aquela relacionada aos sistemas de memória de tradução, ter transformado as dinâmicas de sala de aula, Kiraly (2014, p. 3) explica ainda haver a necessidade de se repensar o ensino teórico e prático de tradução, com vista a não formarmos autômatos.

[2] Apesar dos atuais debates que rondam tal denominação, Dunne (2015) define a localização como o processo pelo qual determinado produto ou conteúdo digital desenvolvido em uma localidade é adaptado linguística e culturalmente para ser vendido em outros países. No caso da tradução e localização de videogames, o termo está associado à expansão e alta rentabilidade na produção de videogames e consoles, que fazem com que a indústria vise atingir o maior público possível ao redor do mundo, havendo a necessidade da adaptação à cultura e ao cotidiano dos jogadores, objetivando oferecer uma experiência de jogo completa ao usuário.

[3] Notepad++. Disponível em: <https://notepad-plus-plus.org>. Acesso em: 31 jan. 2016.

[4] PakScape. Disponível em: <http://jkhub.org/files/file/89-pakscape/>. Acesso em: 31 jan. 2016.

Recebido em março de 2016.
Aprovado em maio de 2016.

artigo
Tempo de leitura estimado: 36 minutos

THE BINDING OF ISAAC E O ETERNO RETORNO DE NIETZSCHE

Resumo: A interatividade do digital encontra seu precedente na leitura de ficção, conforme apontado por Wolfgang Iser. Este trabalho se baseia nos “jogos persuasivos” de Ian Bogost e em alguns conceitos de Espen Aarseth para tratar do videogame independente The Binding of Isaac, de Edmund McMillen. Por fim, sugerimos como a experiência estética proporcionada por este jogo pode dialogar com o conceito de eterno retorno em Nietzsche e Deleuze.

Palavras-chave: Jogo eletrônico; literatura; filosofia; teoria da recepção; Nietzsche.

Abstract: The interactive quality of digital works has its precedents in the reading of fiction works, as per Wolfgang Iser’s reader-response theory. This paper borrows concepts forged by Ian Bogost (“Persuasive Games”) and Espen Aarseth to talk about the independent video game The Binding of Isaac, by Edmund McMillen. Finally, we draw parallels between the aesthetic experience offered by this game and the notion of eternal recurrence in Nietzsche and Deleuze.

Keywords: Video games; literature; philosophy; reader-response theory; Nietzsche.

 

Este trabalho procura estabelecer uma ponte entre os modelos do ato de leitura de Wolfgang Iser e os códigos de interação dos videogames para então se concentrar em um caso particular: o do videogame independente The Binding of Isaac e seu remake, The Binding of Isaac Rebirth, de Edmund McMillen. Por fim, vamos sugerir como a experiência estética proporcionada por estes games pode dialogar com o conceito de eterno retorno em Nietzsche e Deleuze.

Partimos da hipótese de que a interatividade se funda numa tradição de muitos séculos. Explicitar essa genealogia será a tarefa inicial do presente trabalho, apoiando-se, para isso, na teoria da recepção de Wolfgang Iser e no trabalho inovador de Ian Bogost, Persuasive Games (2007), que trata dos videogames como continuação (e concretização) dos esquemas formativos da retórica clássica. Também faremos referência a Espen Aarseth (1997) e seus conceitos precisos para qualificar certos fenômenos dos jogos eletrônicos. Por fim, apoiando-nos nessa base teórica, vamos propor uma leitura do videogame The Binding of Isaac e seu remake (2011, 2014) como dispositivo retórico que convence seu usuário a se engajar numa versão lúdica do eterno retorno conforme proposto por Nietzsche e relido por Deleuze.

Tratar a interatividade do digital como um fenômeno totalmente inédito é, a nosso ver, uma concepção errônea. Não vamos nos alinhar ao pensamento de quem, como Astrid Esslin (2014), alega que ficção literária e videogames seriam fenômenos fundamentalmente diferentes, o que faria com que as ferramentas de teoria de literatura resultassem ultrapassadas e inúteis para a análise dos jogos eletrônicos. Para Esslin, a relação autor-leitor seria necessariamente “assimétrica”, pois o autor de literatura é um “titereiro” [puppet master] e o leitor, “passivo” (2014, p. 27-28); e em decorrência disso a interatividade proporcionada por games e livros seria de um tipo diferente. Não concordamos com a premissa, pois nos alinhamos à visão de Wolfgang Iser sobre a ficção literária; mas mesmo que concordássemos com a premissa, não vemos como ela levaria à conclusão, pois a suposta desigualdade de poder entre autor e leitor apontada pela autora seria idêntica nos videogames, também criados por um autor e deixados “em repouso” até que um jogador os peguem para jogar. Dizendo de outro modo, não entendemos como a interação mental seria necessariamente uma relação de poder assimétrica e a interação física não.

Além disso, para Esslin, cada nova partida do mesmo jogo eletrônico varia muito mais entre si do que cada nova leitura de um mesmo texto fixo de ficção, e portanto isso pediria a criação de novas ferramentas teóricas e total desconsideração das antigas (2014, p. 28). Desta vez, concordamos com a premissa, mas não com a conclusão. A nosso ver, esta é uma visão superficial, que descarta todas as contribuições – nem tão recentes assim – da semiose, da cibernética e da teoria de comunicações para a análise de fenômenos comunicacionais. Pensamos que jogos eletrônicos e literatura têm mais pontos em comum do que se pensa, e que pode ser imensamente frutífero compartilhar também algumas de suas ferramentas teóricas, com as devidas adaptações para os diferentes suportes e mídias.

A teoria iseriana de ficção e o videogame

Vamos começar falando de Wolfgang Iser, que com sua teoria da recepção nos mostrou que a leitura de obras de ficção é tudo menos “passiva”. Uma vez tomado o texto que o autor deixou “em repouso”, o leitor passa a tecer com este texto uma rede intricada de presunções, expectativas e surpresas que não merece outro nome senão o de interativa. E é esta interação entre texto e leitor a verdadeira experiência estética que chamamos de literatura – e não um sentido armazenado no texto que o leitor absorve “passivamente”.

O arcabouço teórico de Iser, ambicioso e abrangente, nos permite compreender a possibilidade de efeito, impacto e influência de obras ficcionais na vida real (e vice-versa). Em O ato de leitura (1978), Iser nos apresenta os traços básicos dessa teoria.

A ideia central de O ato de leitura é de que não há um sentido armazenado no texto, mas que é a interação texto-leitor que provê a experiência estética literária, a qual será diferente não só de leitor para leitor, como também numa segunda leitura (e subsequentes).

Textos literários “iniciam ‘performances’ de sentido” com suas estruturas fixas, mas cada leitor real específico entrará com seu repertório de convenções, valores e experiências (de vida e de leitura) armazenadas, procurando preencher as lacunas intencionais do texto. Sendo assim, cada leitura compila um sentido diferente para o mesmo texto; traz algo único ao mundo.

O leitor será continuamente desafiado pelo texto em suas projeções do que acontecerá na trama e nas memórias do que já foi lido, e por sua mente vão passar imagens ricas, polimorfas, sem um sentido fechado. Mas a novidade dessas experiências impele o leitor a buscar a determinação do discurso – e é este discurso que fecha o sentido (1978, p. 22-3).

Nesse momento de transmutação em discurso, a experiência deixa de poder ser chamada de estética, já que “a palavra ‘estético’ é um constrangimento para a linguagem referencial, pois designa uma lacuna nas qualidades definidoras da linguagem em vez de uma definição” (1978, p. 22, tradução nossa). E se algo é transformado em discurso, assumiu um significado, pressupondo um referente fixo, justamente o que a experiência estética se define por não ter.

Cada experiência estética é única, pois é o resultado do encontro entre o leitor em dado momento de sua vida e a obra. Embora o texto da obra literária geralmente não mude – exceções feitas a experiências literárias como a da Oulipo, de Raymond Queneau e Georges Perec, e a outras formas de cibertexto –, o próprio Iser nos diz com todas as letras que a experiência pessoal sempre mutante do leitor, que forma seu repertório, afetará a experiência estética da leitura: “Em uma segunda leitura, ocorrências familiares aparecem sob nova luz; às vezes nos parecem corrigidas, às vezes, enriquecidas” (1972, p. 285).

Agora levemos estas ideias para a análise do jogo eletrônico. Assim como no livro, não há um sentido armazenado no jogo eletrônico “em repouso”; é a partir da interação com o repertório pessoal do usuário que ele ganhará um sentido. E, tal e qual um livro, o jogo eletrônico não funciona sozinho; o mundo do jogo vai sendo sintetizado e mostrado ao usuário conforme ele o navega, em uma revelação gradual semelhante à que se encontra na literatura.

Para navegar um livro de ficção linear em papel é preciso virar a página, um esforço trivial; já em um livro não tradicional o esforço pode ser mais significativo. Em Cent Mille Milliards de Poèmes, de Raymond Queneau, o leitor se depara com um soneto todo “fatiado” verso a verso, de forma que para desfrutar da obra segundo a proposta dela mesma, deve virar a página para mudar um ou vários versos, constituindo assim novos e diferentes poemas. O fato de o usuário precisar apertar botões e alavancas físicos para jogar um jogo eletrônico é uma instrumentalização de uma interação que já existia em casos como o da Oulipo – Espen Aarseth (1997, p. 1) chama essa interação física não trivial de extranoemática.

É importante notar que, no videogame, a experiência que o usuário tem dos textos, imagens e sons oferecidos é coordenada por decisões autorais codificadas em linguagem de programação. Estas decisões e suas implicações podem ou não ser notadas pelo jogador, mas, de qualquer modo, após aprender os comandos de controle, ele vai procurar entender os desafios do mundo do jogo para melhor enfrentá-los. Dizendo de outra forma, ele vai inferir as regras do comportamento do jogo a partir de sua interação[1]. O jogador sabe que precisa fazer coisas com os comandos disponíveis e sob as restrições daquele mundo que avancem sua experiência do mundo do jogo. E ele sabe isso devido a seu repertório de experiências com outros jogos; se não sabe, é preciso aprender. Está aí mais uma similaridade com a fruição de literatura segundo Iser.

Aarseth (1997, p. 62-65) estabelece uma tipologia do cibertexto que pode nos ser útil, com algumas adaptações para tratar do caso dos videogames, que são multimídia. Primeiramente ele estabelece uma diferença entre scriptons e textons: o primeiro seria o texto conforme existe em seu suporte; o segundo é o texto que efetivamente lemos. Ele dá o exemplo dos Cent Mille Milliards de Poèmes de Queneau, que tem apenas 140 scriptons que se combinam em até 100 trilhões de textons possíveis.

No caso do Oulipo, os parâmetros de sintetização dos textons eram expressos ao leitor na forma de linguagem e deviam ser por ele aplicados aos scriptons. Já os parâmetros que regem a sintetização do equivalente aos textons nos videogames tomam a forma de scriptons legíveis pelo computador. Ou seja, as regras subjacentes à sintetização de uma partida de um jogo eletrônico não são legíveis em forma de texto literário, e nem os jogadores devem se preocupar em aplicá-las ao desenrolar do jogo; os computadores arcam com a responsabilidade de constituir a superfície interativa da obra.

Aarseth (1997, p. 62-65) também nos ilumina quanto à navegação pela superfície dos textons, que, em nosso caso particular, são a superfície do jogo eletrônico. Ele fala de uma “função navegadora” (traversal function) que pode ser classificada em sete categorias, segundo a proposta do próprio cibertexto para a sua leitura: dinâmica, determinabilidade, transitoriedade, perspectiva, acesso, vinculação e funções do usuário.

Com esta classificação, chamamos atenção para o fato de estar previsto nas regras de cada jogo eletrônico que o mundo apresentado “reagirá” e “mudará” conforme as ações do jogador; quer dizer, o fato de que tudo o que acontece no mundo virtual foi previsto, codificado e testado (não exaustivamente) pelo autor – do mesmo modo que um texto de ficção, até o de texto fixo e linear, nunca pode ser exaustivamente testado (em todos os seus possíveis efeitos) pelo seu autor.

A superfície do jogo eletrônico (o equivalente aos textons de Aarseth) varia de partida para partida, mas a obra subjacente (os scriptons, ou o código de programação que molda o jogo) não muda – exceto em casos de falha no planejamento autoral (que resultem em defeitos tais como personagens “presos na parede”) ou interferências posteriores no código por parte do usuário (como os programas mods). Esses casos seriam equivalentes, no caso de um livro de papel, a erros de impressão ou interferências artísticas posteriores sobre o suporte, ausentes da experiência originalmente prescrita para a obra.

Esperamos, com tudo isso, ter estabelecido o quanto a ficção literária e o jogo eletrônico compartilham características essenciais, e em que grande medida dependem de sua interação com o usuário. Agora vamos falar das diferenças.

A verdadeira novidade nos jogos de computador, segundo Ian Bogost (2007), é que o computador é a primeira mídia que permite a representação de processos por meio de processos. Segundo ele, processos reais vistos como causais – sejam eles materiais, como o funcionamento das engrenagens de um relógio, ou culturais, tal como o atleta que entrega o jogo por dinheiro –

podem ser recontados através da representação. No entanto, a representação procedural tem uma forma diferente da representação escrita ou falada. A representação procedural explica processos com outros processos. A representação procedural é uma forma de expressão simbólica que utiliza processo em vez de linguagem. […] A representação procedural em si requer a inscrição em uma mídia que de fato encene processos em vez de meramente descrevê-los (2007, p.9).

Bogost nos lembra (2007, p. 10) que atores humanos também encenam processos (o balconista, o supervisor, o militar, até mesmo a criança, que realiza o processo de “amarrar o sapato” ou o de “pôr a mesa”). Mas o ser humano não é uma boa mídia de expressão de processos: o corpo se cansa, precisa de incentivos e não tolera repetição excessiva, ao contrário do computador, que é feito para isso.

Sendo assim, para Bogost, certos programas de computador são

agentes expressivos, dedicados a esclarecer, explorar ou comentar processos humanos na mesma linha que a poesia, a literatura e o cinema. Não importando seu conteúdo, esses programas de computador usam processos para expressão, e não com vistas a alguma utilidade. Enquanto prática inscritiva, a proceduralidade não está limitada à fabricação de ferramentas (2007, p. 11).

Alguns destes programas são cibertextos “puros”, sem multimídia; outros, jogos eletrônicos com som, imagem e texto. Mas todos eles têm em comum a encenação de processos na forma de outros processos.

Apoiando-se em diversos teóricos, tais como Kenneth Burke, Bogost (2007, p. 20-40) procura expandir o conceito de retórica, originalmente oral e com função persuasiva, até incluir nela o domínio escrito, visual e, por fim, procedural, abarcando também a função de expressão autoral. Ele busca, assim, justificar sua identificação de tropos (lugares-comuns) afins aos da retórica nas narrativas procedurais digitais; mas não é este o nosso intuito aqui. Queremos, em vez disso, ousar uma analogia talvez surpreendente.

A retórica sofistíca era uma prática procedural inscrita em seres humanos e praticada pelos mesmos com um intuito instrumental: a persuasão do público, seja para os fins que for, considerando estes fins tácita e automaticamente morais devido à aprovação da maioria. Platão começou uma prática inscritural diferente, que registrava diálogos filosóficos em linguagem escrita e permitia sua circulação. A maioria desses diálogos tinha como personagem o seu mestre, Sócrates, e boa parte deles procurava, de uma forma ou de outra, desenterrar e questionar os pressupostos tácitos da experiência humana (inclusive a retórica sofística). Posteriormente, seu discípulo Aristóteles (segundo Bogost, 2007, p. 17-18) reenquadrou a retórica como passível de persuadir o público para fins filosoficamente corretos – também inscrevendo seus procedimentos de composição em linguagem escrita. Cremos ser possível, nessa linha, enquadrar a ficção como uma prática procedural inscrita em linguagem e praticada pelos seres humanos com intuito primariamente expressivo.

Para Bogost (2007), o intuito dos jogos eletrônicos não é exclusivamente expressivo, dado que ele intitulou seu livro Persuasive Games [Jogos persuasivos]. Jogos eletrônicos seriam um tipo de ficção peculiar, que também pode persuadir além de expressar. Isso está em sintonia com sua dupla qualidade que identificamos: de inscrição linguística e procedural, e de interação tornada singular não só pela sintetização procedural da partida a partir das interações como também pelo repertório pessoal de cada usuário.

Passemos agora a um caso particular: o do jogo eletrônico The Binding of Isaac (2011), seu remake (2014) e continuação (2015), todos concebidos por Edmund McMillen.

The Binding of Isaac: um estudo de caso

Recentemente, os jogos eletrônicos criados por estúdios independentes e equipes pequenas, em geral com gráficos mais simples que os das grandes companhias, têm tido mais oportunidade de fazer frente aos gigantes da indústria devido às plataformas de distribuição digital de jogos, como o Steam (2002). Há também uma profusão de sites de crowdfunding, que permitem a qualquer pessoa contribuir financeiramente para a realização de um projeto artístico de qualquer natureza. Isso permitiu uma espécie de renascença dos jogos eletrônicos independentes, que primam por permitir mais expressão autoral e admitir ideias mais ousadas e potencialmente polêmicas (Anthropy, 2012).

Um recente jogo eletrônico independente disponibilizado na plataforma Steam se chama The Binding of Isaac (2011), de Edmund McMillen. O jogo foi refeito em 2014 como The Binding of Isaac Rebirth, e em 2015 foi liberada uma continuação deste remake com o nome de Afterbirth. Trata-se de um jogo para adultos que, além de oferecer desafio extranoemático considerável ao jogador, proporciona-lhe uma experiência estética expressiva sobre fanatismo religioso e traumas infantis (e sua superação), baseada nas experiências pessoais de seu autor (conforme suas entrevistas ao documentário Indie Game: The Movie, de 2012).

A história do jogo Isaac é levemente inspirada no episódio bíblico em que o patriarca Abraão recebe de Deus a ordem para sacrificar seu único (e tardio) filho, Isaque. Abraão toma todas as providências para obedecê-Lo, mas Deus o manda parar no último instante. Isaque sobrevive, dando origem à nação de Israel. Já o jogo The Binding of Isaac [A amarração de Isaque, em tradução livre] se passa nos tempos atuais e, em seu prólogo, nos apresenta uma mãe fanática religiosa que, enquanto assiste um programa de TV cristão, ouve o que parece ser a voz de Deus mandando castigar e por fim matar o seu único filho, Isaac. Ela obedece a voz, indo atrás dele com uma faca. O menino foge e se esconde da mãe no porão – e é neste cenário que se passa o jogo propriamente dito.

No porão, Isaac luta contra monstros que assolam a imaginação infantil, como insetos, centopeias e criaturas mitológicas, e sua arma são suas lágrimas, que voam pelo cenário. Cada vez que o chefe de um nível é vencido, Isaac desce por um alçapão: do porão para as cavernas, daí para o útero materno e, por fim, para o inferno. Há grande presença de simbologia religiosa e freudiana no jogo, e vários finais alternativos que enfatizam essas influências: em um, Isaac luta contra a mãe, e em outro, contra Satã; por fim, chega a lutar contra si próprio.

Tela do jogo The Binding of Isaac
Tela do jogo The Binding of Isaac

O visual do jogo, em contraste com seu tema pesado, é simples e cartunesco, quase infantil – e, de fato, há inúmeras insinuações de que se trata de um mundo de pesadelos imaginado e desenhado pelo pequeno Isaac para fugir de sua vida problemática.

O ''testamento'' infantil deixado por Isaac quando se perde o jogo
O ”testamento” infantil deixado por Isaac quando se perde o jogo

Mas além de se expressar com palavras, sons e imagens, o jogo também se expressa através de processos, conforme nos aponta Ian Bogost (2007). No caminho, Isaac pode encontrar itens que melhoram ou pioram seus atributos e parâmetros (como velocidade, tamanho, sorte) bem como os de suas lágrimas-projéteis (como o dano que infligem, altura, diâmetro). Há também itens que ficam ao lado de Isaac, ajudando-o de diversas formas (inclusive lançando tiros).

Alguns dos itens encontráveis pelo personagem são claras referências a abusos infantis, como o “cinto” e a “colher de pau”, cujo efeito é fazer Isaac correr mais rápido. Há também itens como a “carne podre” e o “jantar” (cuja imagem é uma lata de comida de cachorro), que aumentam o número de corações que medem a saúde de Isaac – o tornam mais forte. Muitos dos novos itens que Isaac encontra ao longo do jogo alteram também sua aparência inicialmente pueril. Por exemplo, pegar o item “cabide de arame” não só aumenta as lágrimas de Isaac como faz com que seu rosto apareça atravessado por um cabide. (O item é uma referência ao livro autobiográfico Mamãezinha querida [Mommie Dearest], de Christina Crawford, a filha adotiva de Joan Crawford, contando sua infância de abusos nas mãos da atriz. Numa das mais famosas cenas do livro, que depois virou filme, Christina conta como foi surrada com um cabide de arame pela mãe.) Mais e melhores itens, menos abusivos e mais empoderadores, vão sendo liberados conforme o jogador realiza tarefas dentro do jogo e conforme o número de vezes que conseguiu chegar até um final. Alguns itens alteram radicalmente as lágrimas de Isaac: o “entortador de colheres” [spoon bender] permite que suas lágrimas voem em direção aos inimigos, perseguindo-os. O item “Brimstone”, ou “enxofre”, transforma as lágrimas em um raio laser cor de sangue, que pode ser disparado após um período de “carga” (ficar segurando o botão de tiro). Há itens, como o D6 (dado de seis lados), que permitem que o jogador troque um item recém-encontrado por um novo, sorteado aleatoriamente.

Destacamos um ponto-chave, e que orienta nossa análise do jogo em questão: a aleatoriedade é uma característica crucial de The Binding of Isaac. Cada nível do jogo é gerado aleatoriamente, ou seja: a cada nova partida, as salas, os itens e os inimigos de cada fase estão distribuídos de forma diferente. Até mesmo os efeitos das pílulas de diversas cores – que Isaac encontra e pode tomar ao longo do jogo – diferem de partida para partida. Além disso, dentro do jogo, determinadas ações e itens podem aumentar ou diminuir a chance do aparecimento de salas e itens especiais – sem necessariamente garantir que isto aconteça. Por exemplo: não ter dano na saúde principal (medida em corações vermelhos) durante toda a fase aumenta significativamente a chance de aparecer uma sala especial em que um Anjo ou um Demônio lhe oferecem itens extras (Gamepedia, 2015).

Sala do Demônio [Devil Room]
Sala do Demônio [Devil Room]

Nesta aleatoriedade dentro de cada fase, The Binding of Isaac se distingue da maioria dos jogos eletrônicos. Afinal, a maioria deles oferece bônus difíceis de achar e extras a serem destrancados, mas a experiência individual de cada fase é a mesma. Na maioria dos outros jogos, o mapa da fase, o número de inimigos que sai de trás de determinada pilastra (sempre a mesma pilastra) e os itens úteis encontrados em cada lugar são os mesmos e em mesmo número. No máximo, há variações segundo o nível de dificuldade (no modo “difícil” encontram-se menos itens e mais inimigos do que no “fácil” – mas o mapa da fase continua o mesmo).

Em The Binding of Isaac e seu remake, Rebirth, chegar até um final não configura uma vitória definitiva, como se, cada vez que se escapasse do abuso, isso não prevenisse abusos futuros – o ciclo continua. De início, a aleatoriedade gerada por computador parece espelhar as arbitrariedades humanas do abuso infantil e do fanatismo religioso, fazendo muitas vezes o jogador se sentir “injustiçado” pelo jogo – e desejar mais ainda vencê-lo, com Isaac, começando então outra partida do zero. Como há vários finais diferentes, e a cada final e tarefa cumprida liberam-se novos itens mais empoderadores, o jogador se sente compelido a terminar o jogo várias vezes, conhecendo diferentes formas de infelicidade do protagonista, encontrando novas combinações de itens domésticos e símbolos religiosos que o traumatizaram e o assombram em seus pesadelos – diferentes combinações que podem alterar radicalmente a experiência e a estratégia recomendada para ganhar o jogo. Esta experiência tem algo em comum com a célebre frase de abertura de Ana Karênina, de Tolstói (1971, p. 13): “Todas as famílias felizes se parecem entre si; as infelizes são infelizes cada uma à sua maneira”.

Um bom romance, como Ana Karênina, assim como um bom jogo, recompensa a (re)exploração minuciosa e persistente com belezas, benesses e desafios. O recurso significativo extra dos jogos em relação à literatura, para além de vídeo e som, é que, assim como o leitor lê o texto e com ele tece uma experiência estética significativa, no jogo o jogador lê também o processo e com ele tece uma experiência estética significativa. Conforme dissemos, o jogador procura entender os desafios do mundo do jogo para vencê-los, inferindo as regras de seu comportamento a partir de sua interação; mas um jogo eletrônico de qualidade desafia os próprios pressupostos que estabeleceu, tirando o jogador de sua zona de conforto recém-conquistada. Por exemplo, o jogo pode oferecer uma “parede falsa” que, ao contrário das demais do jogo, pode ser atravessada pelo protagonista, levando a uma área secreta. Isso recompensa o jogador que é desconfiado por natureza e/ou aquele que já jogou jogos suficientes para saber que a “parede falsa” é um recurso autoral bastante comum[2]. Essa desconfiança quanto às próprias inferências sobre regras no mundo virtual do jogo ecoa questões filosóficas históricas sobre indução e causalidade; no mundo virtual, elas encontram expressão artística. David Hume nos fez nos perguntar se o sol ter nascido todos os dias de nossa vida até hoje significa necessariamente que devemos acreditar que o sol nascerá amanhã (2011, p. 71-85); o jogo eletrônico mostra que é possível, mesmo que todas as paredes virtuais até agora não tenham permitido nossa passagem, que uma delas o permita. Ou seja, nos tira de nossa zona de conforto, aquela que muitas vezes nós mesmos criamos em nossa mente; põe em xeque um hábito mental humano (distinguir causas que levam a determinados efeitos e confiar em acontecimentos passados como guia dos futuros), exatamente como a boa literatura. Em Dom Casmurro (Machado de Assis, 1997), Bentinho apresenta Capitu como leviana e manipuladora desde criança (“como a fruta dentro da casca”, p. 250), o que a teria levado a traí-lo com Escobar e ter um filho parecido com o amante, o que por sua vez levou Bentinho a virar Dom Casmurro. Fica a cargo do leitor julgar se essa cadeia causal tão “clara”, ou mesmo os fatos narrados, estão corretos e em qual medida, derivando daí implicações conforme seu repertório pessoal. Quer dizer: uma obra apresentar uma cadeia de causas e efeitos na superfície não significa que devamos tomar essa cadeia pelo valor de face. Ela pode conter subsídios para que seu leitor construa nuances ambíguas e levá-lo ao autoquestionamento.

Em alguns vídeos exibidos após o jogo ser ganho, Isaac consegue escapar de sua mãe; em outros, é mostrado preso dentro de um baú ou até mesmo desaparecido (um cartaz com sua foto aparece preso em um poste, com a legenda “Missing” – “Desaparecido”). Mas o final é o menos importante. O que importa mesmo é o processo em que o jogador se põe a repetir, se não ad aeternum, pelo menos centenas de vezes a vida infeliz de Isaac sob o jugo da mãe abusiva e os traumas já instalados em sua cabeça: a mesma vida, revivida inúmeras vezes.

Jogo como processo e playground filosófico

Em nosso estudo privilegiamos a leitura do jogo nesta chave – segundo a qual o processo de se chegar até lá é mais importante do que o final ou o princípio. Podemos então associá-lo com este trecho de Nietzsche em A Gaia Ciência (2014, p. 205, fragmento 341):

E se um dia, ou uma noite, um demônio lhe aparecesse furtivamente em sua mais desolada solidão e dissesse: “Esta vida, como você a está vivendo e já viveu, você terá de viver mais uma vez e por incontáveis vezes; e nada haverá de novo nela, mas cada dor e cada prazer e cada suspiro e pensamento, e tudo o que é inefavelmente grande e pequeno em sua vida, terão de lhe suceder novamente, tudo na mesma sequência e ordem – e assim também essa aranha e esse luar entre as árvores, e também esse instante e eu mesmo. A perene ampulheta do existir será sempre virada novamente – e você com ela, partícula de poeira!” – Você não se prostraria e rangeria os dentes e amaldiçoaria o demônio que assim lhe falou? Ou você já experimentou um instante imenso, no qual lhe responderia: “Você é um deus e jamais ouvi coisa tão divina!” Se esse pensamento tomasse conta de você, tal como você é, ele o transformaria e o esmagaria talvez; a questão em tudo e em cada coisa, “Você quer isso mais uma vez e por incontáveis vezes?” pesaria sobre os seus atos como o maior dos pesos! Ou o quanto você teria de estar bem consigo mesmo e com a vida, para não desejar nada além dessa última, eterna confirmação e chancela?

Note-se que Nietzsche, neste trecho, não está tratando de reencarnação nem falando dos repetitivos ciclos da vida. Ele está propondo um exercício mental sobre o querer: o querer pela metade seria uma indignidade, e o teste definitivo para saber se realmente queremos o que dizemos querer seria imaginar a vida que levamos, fruto destas decisões, sendo revivida para todo o sempre. Seria este o eterno retorno segundo Nietzsche; um conceito ligado ao de amor fati, o amor pelo destino que nos sobrevém:

Quero cada vez mais aprender a ver como belo aquilo que é necessário nas coisas: – assim me tornarei um daqueles que fazem belas as coisas. Amor fati [amor ao destino]: seja este, doravante, o meu amor! (2000, p. 166, fragmento 276).

Não precisamos ser ingênuos a ponto de acreditar em “intenção de autor” para propor esse nexo. Mesmo que Edmund McMillen não tenha tido a intenção de modelar seu jogo como uma espécie de playground do eterno retorno, defendemos que a obra pode ser lida assim – como um dispositivo retórico que cumpre esta função educativa: a de ensinar o ser humano a amar o destino que se lhe sobrevém, por mais difícil que seja, e a não lamentar o resultado do lançamento dos dados. Em termos nietzscheanos: ensiná-lo a ser um bom jogador.

Abolir o acaso pegando-o com a pinça da causalidade; em lugar de afirmar o acaso, contar com uma finalidade; todas essas são operações do mau jogador. Elas têm sua raiz na razão, mas qual é a raiz da razão? O espírito de vingança, nada mais que o espírito de vingança, a aranha! O ressentimento na repetição dos lances, a má consciência na crença numa finalidade. […] O universo não tem finalidade, não existe finalidade a esperar, assim como não há causas a conhecer, é esta a certeza para jogar bem (Deleuze, 1976, p. 22).

Como o jogo ensina isto? Primeiramente, chamar a experiência extranoemática em The Binding of Isaac de “esforço não trivial”, como na definição de Aarseth (1997, p.1), seria um eufemismo; trata-se de um esforço considerável, contínuo e repetitivo. O jogo é notavelmente difícil (conforme assinala o resenhista Dan Stapleton, 2014) e muitos jogadores experimentados se batem com ele sem conseguir sair das primeiras fases – ao menos nas primeiras vezes. É preciso ser firme em sua vontade de vencer; e aprender a tomar as pequenas surpresas aleatórias do jogo como parte da diversão, e não como um sofrimento, trabalho ou injustiça.

Cada nova experiência dos mesmos processos (a vida de Isaac, na forma de uma partida) pelo jogador tem pequenas diferenças, e em dois níveis. Num nível, devido à aleatoriedade inerente ao jogo, novos itens e perigos são apresentados em novas combinações a cada partida, tornando-a única. No outro nível, que corresponderia à segunda leitura (e subsequentes) de um livro de ficção, o jogador vai melhorando em sua percepção devido à experiência das partidas anteriores. E esta melhoria se dá em pelo menos dois quesitos: 1) na habilidade extranoemática do jogador, por conhecer o comportamento dos inimigos, as peculiaridades dos itens, das fases, dos controles do jogo; e porque o hábito melhora suas próprias respostas físicas, fazendo-o reagir ao jogo mais “automaticamente”, sem precisar pensar conscientemente no que deve fazer; 2) no fato de o jogador aprender a encontrar prazer naquela experiência cheia de aleatoriedade e dificuldade que antes lhe parecia penosa.

Deleuze nos disse, sobre Nietzsche, queSe o eterno retorno é uma roda, é preciso ainda dotá-la de um movimento centrífugo violento que expulsa tudo o que ‘pode’ ser negado, o que não suporta a prova” (2000, p. 120). A prova no caso de The Binding of Isaac é o próprio jogo, penoso de início mas que, na repetição, ou pela repetição, nos ensina a gostar dele – ou então a deixá-lo de lado de uma vez.

Além disso, a crítica que The Binding of Isaac faz ao sacrifício (no caso, o de Isaque) pregado pelo cristianismo em favor de uma abordagem lúdica, provavelmente saída da cabeça de uma criança, mas nada piedosa (nem com a criança, nem com o jogador, nem com a mãe de Isaac), é perfeitamente condizente com Nietzsche, assim como o toque de aleatoriedade e a total ausência da imagem de Deus no jogo (há anjos, demônios e Satã, mas não um deus). Isaac também enfrenta a si próprio como “chefe de fase” num dos últimos capítulos do jogo, Cathedral. O objetivo do jogo parece ser a autossuperação: de Isaac por ele mesmo, e do jogador por ele mesmo.

Por fim, gostaríamos de notar duas formas como o autor de The Binding of Isaac declarou-se contrário a formas de burlar certos aspectos fortuitos do jogo. Edmund McMillen refez o jogo original (de 2011) em 2014, intitulando o remake de The Binding of Isaac Rebirth. Pouco depois de lançar o remake, o autor queixou-se de jogadores que conseguiram destrancar e divulgar o segredo mais bem guardado do novo jogo em apenas 109 horas – porém não jogando conforme as regras, e sim perscrutando o código com uma técnica chamada datamining (Klepek, 2015).

Assim como no jogo original, algum tempo após o lançamento da nova versão o autor ofereceu um pacote de expansão, ou downloadable content (DLC). O pacote, chamado The Binding of Isaac Afterbirth, disponibiliza novas fases, personagens, itens e modos de jogo e é distribuído mediante pagamento. Desta vez, quem tentou o datamining não obteve grande resultado; McMillen disse que instruiu a equipe a “enterrar” bem fundo no código os segredos do jogo. E os jogadores que baixaram o pacote logo após o lançamento estranharam que menos da metade dos novos itens prometidos estava disponível; 109 horas depois, McMillen liberou uma atualização que disponibilizava os novos itens restantes, assumindo que se tratava de uma brincadeira com uma ponta de vingança pela descoberta prematura e trapaceira do grande segredo do lançamento anterior (Klepek, 2015).

Por último, em The Binding of Isaac Rebirth, o jogador pode optar por digitar um código e escolher a partida específica que se vai jogar, tornando a experiência de jogo bem mais previsível: a ordem das salas, dos inimigos e dos itens será idêntica toda vez que o mesmo código for digitado. Porém, toda vez que o jogador optar por digitar um código para obter mais controle sobre sua experiência, naquela partida nenhum novo prêmio, conquista ou item será destrancado. É uma troca: para se obter uma medida de controle sobre o jogo (e uma menor dificuldade), renuncia-se a outra coisa. Mais uma vez, o jogo se expressa através de seus processos. É como se dissesse: “se é apenas a experiência lúdica que você deseja, é bom querer mesmo, pois você não ganhará bens duradouros, bens que transcendam esta partida”. Ou: “desta vida (ou partida) nada se leva.” Tudo o que podemos querer com o ato de jogar a partida predeterminada pelo código digitado estará circunscrito aos limites dela.

Desta forma, o jogo The Binding of Isaac persuade o jogador a permanecer ali, naquela roda-viva, treinando, tentando, melhorando, submetido aos seus mecanismos aleatórios, e tudo isso majoritariamente pelo pathos e ethos de seus próprios processos, em vez de somente pelo magnetismo de suas palavras ou sons ou gráficos, e nem mesmo por alguma revelação contida em seu final. O argumento aqui não é de que o jogador irá se tornar uma pessoa melhor, mas que, ao menos naquela instância, aprenderá a querer de verdade o que diz querer – ganhar o jogo – ou a desistir. E quem procurar um jeito de burlar o destino que cada partida traz não será recompensado.

“‘Por azar’, é esta a mais antiga nobreza do mundo: eu a restituí a todas as coisas; eu as livrei da servidão do fim”, diz-nos Nietzsche pela boca de Zaratustra (2000, p. 131). E mais adiante: “Um pouco de sensatez é possível, mas eu encontrei em todas as coisas esta benfeitora certeza: preferem bailar sobre os pés do acaso”. De fato, muitos jogadores de The Binding of Isaac o preferem.


* Simone Campos é graduada em Comunicação Social – Produção Editorial e Jornalismo pela UFRJ, mestre em Literatura Comparada e Teoria da Literatura pela UERJ e doutoranda em Literatura Comparada pela UERJ. Publicou o artigo Amazon: the guardians of Eden na coletânea O jogador de mil fases (org. Arthur Protasio e Guillerme Xavier). Também é escritora de ficção (No shopping, A vez de morrer) e tradutora (A garota no trem, O livro das estranhas novidades).

 

Referências

AARSETH, Espen. Cybertext: Perspectives on Ergodic Literature. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1997.

ANTHROPY, Anna. Rise of the Videogame Zinesters: How Freaks, Normals, Amateurs, Artists, Dreamers, Drop-outs, Queers, Housewives, and People Like You Are Taking Back an Art Form. Nova York: Seven Stories Press, 2012. E-book em formato e-pub.

BOGOST, Ian. Persuasive Games: The Expressive Power of Videogames. Cambridge/Londres: The MIT Press, 2007.

CRAWFORD, Christina. Mamãezinha querida. Rio de Janeiro: Record, 1978.

DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Lisboa: Relógio D’Água, 2000.

DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976.

ESSLIN, Astrid. Literary Gaming. Cambridge/Londres: The MIT Press, 2014.

HUME, David. Investigação acerca do conhecimento humano. São Paulo: Hedra, 2011.

ISER, Wolfgang. The act of reading. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1978.

ISER, Wolfgang. The Reading Process: A Phenomenological Approach. New Literary History: On Interpretation: I, v. 3, n. 2, winter 1972. The Johns Hopkins University Press. 20 p. Disponível em: <http://www.jstor.org/stable/468316>. Acesso em: 25 fev. 2014.

KLEPEK, Patrick. How a Video game Glitch Became a Full-Blown Conspiracy Theory. Kotaku, 5 nov. 2015. Disponível em: <http://www.kotaku.com.au/2015/11/how-a-video-game-glitch-became-a-full-blown-conspiracy-the>. Acesso em: 16 jan. 2016.

MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Dom Casmurro. Coleção Livros O Globo. São Paulo: Klick Editora, 1997.

NIETZSCHE. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

NIETZSCHE. Assim falou Zaratustra. São Paulo: Martin Claret, 2000.

PLATÃO. Os pensadores [contendo O político, O banquete, Fédon e O sofista]. Rio de Janeiro: Nova Cultural, 1987.

PLATÃO; XENOFONTE; ARISTÓFANES. Os pensadores [contendo Defesa de Sócrates]. Trad. Jaime Bruna. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Cultural, 1980.

Queneau, Raymond. Cent mille milliards de poèmes. Paris: Libraire Gallimard, 1961.

Queneau, Raymond. Cent mille milliards de poèmes. Ed. bilíngue francês-inglês. Disponível em: <http://www.bevrowe.info/Queneau/QueneauRandom_v4.html> Acesso em: 28 set. 2014.

STAPLETON, Dan. The Binding of Isaac Rebirth Review. IGN, 25 nov. 2014. Disponível em: <http://www.ign.com/articles/2014/11/26/the-binding-of-isaac-rebirth-review>. Acesso em: 24 jan. 2016.

THE BINDING OF ISAAC: DEVIL ROOM – CONDITIONS TO MAKE DEVIL ROOMS APPEAR. Gamepedia. Curse Inc., 2015. Disponível em: < http://bindingofisaacrebirth.gamepedia.com/
Devil_Room#Conditions_to_make_Devil_Rooms_appear> Acesso em: 24 jan. 2016.

TOLSTÓI, Leon. Ana Karênina. Rio de Janeiro: Abril Cultural, 1971.

Mídias audiovisuais

BRUCE, Alexander. Antichamber. Jogo eletrônico. 2013. Disponível na plataforma Steam <www.steam.com>. Acesso em: 30 set. 2014.

Heretic. Jogo eletrônico. CD-ROM para PC. Desenvolvimento: Raven Software. Publicação: Id Software. 1994.

Indie Game: The Movie. Filme. Direção: Lisanne Pajot, James Swirsky. Canadá: Blinkworks Media, 2012. Arquivo digital (94 min.): falado em inglês, em cores. Legendado em português. Disponível na plataforma Steam <www.steam.com>. Acesso em: 08 set. 2014.

MCMILLEN, Edmund; HIMSL, Florian. The Binding of Isaac. Jogo eletrônico. Publicado por: Headup Games. 2011. Disponível na plataforma Steam <www.steam.com>. Acesso em: 08 set. 2014.

MCMILLEN, Edmund; Nicalis. The Binding of Isaac Rebirth. Jogo eletrônico. Publicado por: Nicalis. 2014. Disponível na plataforma Steam <www.steam.com>. Acesso em: 24 jan. 2016.

MCMILLEN, Edmund; Nicalis. The Binding of Isaac Afterbirth. Jogo eletrônico. Publicado por: Nicalis. 2015. Disponível na plataforma Steam <www.steam.com>. Acesso em: 24 jan. 2016.

Steam. Plataforma de distribuição digital de jogos eletrônicos. Publicado por: Valve Games. 2002. Disponível em:<http://store.steampowered.com> Acesso em: 11 set. 2014.

 

Notas

[1] Há uma “lei” do Oulipo bem conhecida: a de que “um texto escrito segundo uma restrição descreve a restrição” (Roubaud, 1998, p. 42).

[2] A “parede falsa” aparece em inúmeros jogos eletrônicos, de Heretic (1994) a Antichamber (Bruce, 2013), passando por The Binding of Isaac (2011) e seu remake (2014).

Recebido em março de 2016.
Aprovado em maio de 2016.

editorial
Tempo de leitura estimado: 3 minutos

TERRITÓRIOS E TERRITORIALIDADES CONTEMPORÂNEAS

Território é um conceito em movimento. Embora suas raízes estejam na geografia, ele apresenta uma diversidade de usos e ressignificações tanto no campo geográfico quanto na economia, na antropologia, na ciência política, na sociologia, na psicologia, na zoologia e na etologia, cada qual mobilizada por uma perspectiva específica, na busca de compreender a complexidade do tempo presente, marcado por territorialidades cada vez mais multidimensionais e complexas.

Tratamos, nesta edição, do diálogo essencial entre território e cultura, e, em alguns dos textos, entre território e cibercultura.

Ana Lucia Enne e Marina Dutra focalizam os embates travados, no campo da cultura e das territorialidades, na região portuária carioca;

Luis Antonio Simas trata das culturas oriundas da diáspora africana no pós-abolição da escravatura e, dialogando com o processo que levou ao surgimento do samba carioca, aponta para a possibilidade de o Rio de Janeiro ser entendido como uma cidade de diversas pequenas áfricas, uma delas no bairro de Oswaldo Cruz;

Lia Baron trata do território pela ótica das políticas públicas, reconstituindo iniciativas, na esfera municipal, voltadas ao fomento a ações culturais realizadas nas periferias, favelas, subúrbios e territórios populares da cidade;

Jorge Barbosa e Eliane Costa tratam do fenômeno dos rolezinhos enquanto estratégia de afirmação e compartilhamento de territorialidades urbanas em ciberculturas plurais;

Partindo de iniciativas que tomaram as ruas de São Paulo entre 2011 e 2013, e que culminaram nos protestos de junho de 2013, Rodrigo Savazoni fala de um território híbrido de ação política que mistura redes e ruas.

Uma entrevista com Marcus Vinicus Faustini, idealizador de projetos como o Reperiferia, a Escola Livre de Cinema de Nova Iguaçu e a Agência de Redes para a Juventude, fala sobre as raízes da “virada territorial” que passou a marcar as narrativas de uma geração de projetos culturais que se desenvolvem nas periferias da cidade;

Dani Francisco, ativa produtora cultural da Baixada Fluminense, integrante do Coletivo Roque Pense!, do Ponto de Cultura Lira de Ouro e do Gomeia Galpão Criativo, faz um contraponto entre a potência dos coletivos culturais da região e da inoperância do Estado frente a essa cena;

E, finalmente, temos um recorte textual, uma “escrita remix coletiva” da pesquisa cotidiana que o Norte Comum desenvolve pelos subúrbios e Zona Norte do Rio de Janeiro.

 

Eliane Costa
Organizadora do dossiê Territórios e territorialidades contemporâneas
Maio de 2016

dossiê
Tempo de leitura estimado: 38 minutos

RELAÇÕES ENTRE CULTURA E TERRITORIALIDADES

Resumo: Neste trabalho, apresentaremos uma discussão sobre as relações entre territórios e práticas culturais, tomando como referência categorias como territorialidade, territorialização, cidade-mercadoria, espaço social, disputas, memória e identidade, entre outras. Visando compreender os embates e negociações em torno dessas duas categorias, focaremos nossas reflexões em uma análise de situação acerca dos embates travados, no campo da cultura e das territorialidades, na região portuária da cidade do Rio de Janeiro. Analisaremos como estratégias de transformação, via ações governamentais, são enfrentadas e negociadas por atores historicamente usuários daquele espaço.

Palavras-chave: territórios; territorialidades; identidades sociais; disputas culturais; espaços sociais

Abstract: In this article, we present a discussion about the relations between territories and cultural practices, taking for granted some categories as territoriality, “territorialization”, city-merchandise, social space, disputes, memory and identity, among others. Seeking to understand the conflicts and the negotiations on these issues, we focus our discussion on an analysis of the situation related to the port area of Rio de Janeiro, mainly on the disputes in the cultural field and in the territoriality. We analyze how actors who historically uses that space deal and negotiate with strategies  of transformation put into practice by government actions.

Keywords: territories; territoriality; social identities; cultural clashes; social spaces

 

Introdução

Stuart Hall, argumentando acerca das relações entre os universos da cultura popular e da cultura hegemônica, chama a atenção para uma dialética de contenção e resistência, constitutiva das mesmas, sem a qual seria impossível, na sua leitura, compreender a complexidade deste processo. Assim, quando se estabelecem relações de natureza assimétrica, envolvendo esferas de poder desiguais, a forma de resistência daqueles que são atingidos mais fortemente pela opressão muitas vezes implica negociar suas identidades e culturas dentro de condições pesadas, gerando um jogo contínuo “entre conter e resistir”, nas palavras de Hall. Este é o ponto de partida do trabalho aqui proposto. Em sua proposta metodológica, com a qual nos afinamos aqui, o autor não relega para um segundo plano o peso das estruturas sociais e as condições impostas pelas mesmas, ao mesmo tempo em que sinaliza para a possibilidade de pensarmos os sujeitos em suas ações sociais, ainda que contraditórias, evitando leituras predominantemente dualistas de cenários complexos.

Neste artigo, escolhemos um caso para reflexão explicitamente recortado pelas dimensões do território e pela luta por ocupá-lo e significá-lo. Entendemos, a partir de diversos autores que nos servirão de base, que o território é tanto o espaço físico no qual habitamos, quanto os usos e sentidos que fazemos e conferimos a ele. Neste sentido, compreendemos o território como um espaço de relações, de territorialidades e disputas, em que determinadas categorias, como cultura, memória e identidade, dentre outras, desempenham papel fundamental.

Assim, pretendemos analisar como se colocam as disputas em torno dos territórios na região portuária do município do Rio de Janeiro, a partir de uma leitura das práticas e discursos de agentes que, de alguma forma, estão configurando aqueles espaços. Em nossa abordagem, buscaremos enfocar as estratégias instituidoras, via poder público e/ou mídia hegemônica, que visam enquadrar esses territórios dentro de paradigmas bem demarcados, quase sempre associados a demandas políticas e mercadológicas, em detrimento da visão e do uso que deles fazem os que nele habitam e/ou ali construíram suas histórias. E, principalmente, nos voltaremos para práticas desses agentes que buscam, com suas ações, enfrentar taticamente os sentidos impostos, resistindo a essas estratégias de enquadramento através de recursos ligados à memória, identidade e cultura, sem, contudo, perdermos de vista os limites estruturais, as contradições e os problemas encontrados nesses processos.

Estamos partindo da premissa de que as territorialidades, como apontam Rogério Haesbaert (2004) e Milton Santos (1994), se configuram no cotidiano, nas práticas dos agentes no território habitado, que, neste sentido, se configura sempre, em alguma medida, como território vivido, usado, significado. Marcelo Souza procura demonstrar de que forma o conceito de território sofreu transformações em seu desenvolvimento histórico. Para Souza (1995, p. 87), territórios “são no fundo antes relações sociais projetadas no espaço que espaços concretos”. Esta noção de território aponta para territorialidades flexíveis, flutuantes e móveis, se contrapondo a concepções que entendem o território como algo dado e determinista. Para esse mesmo autor, é impossível pensar a noção de território em sociedades urbanas complexas sem pensar, conjuntamente, a noção de redes sociais. O autor propõe que se trabalhe com territorialidades superpostas, que permitam perceber como os atores em suas redes sociais constroem e desconstroem seus territórios, estabelecendo relações de poder e domínio que de fato implicam significados diversos.

Neste sentido, a noção de territorialidade seria mais rica do que a de território, pois, para Rogerio Haesbaert (2004, p. 3) “a territorialidade, além de incorporar uma dimensão estritamente política, diz respeito também às relações econômicas e culturais”. Assim, a dimensão da cultura, percebida como prática e categoria discursiva, se mostra fundamental para compreendermos como se configuram as múltiplas territorialidades, visto que compartilhamos da visão de que territórios são plurais, são apropriados, desapropriados e reapropriados continuamente por múltiplos agentes. A proposta encontra eco nas concepções de desterritorialização e reterritorialização de Gilles Deleuze e Félix Guattari (1996), que chamam a atenção em suas reflexões para os devires e fluxos que permitem que, molecularmente, se projetem linhas de fuga sobre as estruturas molares.

No entanto, entendemos, como propõe João Pacheco de Oliveira (1998), que a categoria da territorialização, em alguns casos analisados, é mais específica do que a de territorialidades. Para o autor, a territorialização compreende relações políticas que institucionalizam e instrumentalizam o uso de determinado espaço, operando como forças reguladoras com as quais todos os agentes precisam lidar e negociar para o exercício de suas territorialidades, ou seja, de suas visões e formas de ocupar e significar aquele espaço.

A territorialização aponta para relações desiguais de força e poder, em que formas institucionais inscrevem a lógica do espaço, por exemplo, demarcando suas fronteiras, atuando sobre sua fisicalidade (construindo ou destruindo vias, residências, áreas de plantio ou de atividades culturais, impondo taxas de ocupação, criando loteamentos ou políticas de remoção, dentre outras medidas) e sobre sua significação partilhada (mistificando estigmas, construindo vocações – área para turismo, cidade-dormitório, região turística, via de passagem, patrimônio histórico, projeto de modernidade etc.), que precisam ser levadas em conta nos processos de resistência daqueles que irão ocupar de forma diversa aquele mesmo espaço. Assim, a territorialização impõe determinados condicionantes à livre expressão das múltiplas territorialidades, implicando outras práticas de reterritorialização, também ações políticas e de empoderamento, a partir dos códigos estabelecidos e fixados. Nas palavras de João Pacheco de Oliveira (1998, p. 54): “a atribuição a uma sociedade de uma base territorial fixa se constitui em um ponto-chave para a apreensão das mudanças por que ela passa, isso afetando profundamente o funcionamento das suas instituições e a significação de suas manifestações culturais”. Em uma certa medida, o conceito nos lembra que os campos de possibilidades limitam os projetos, tanto os vividos na dimensão mais individual quanto os coletivos, como nos mostra Gilberto Velho. Pois, se para Velho (1994, p. 101), “na constituição da identidade social dos indivíduos, com particular ênfase nas sociedades e segmentos individualistas, a memória e o projeto individuais são amarras fundamentais”, é preciso não perder de vista que “o projeto é o instrumento básico de negociação da realidade com outros atores, indivíduos ou coletivos” (p. 103), sendo esta negociação articulada dentro do campo de possibilidades no qual estão imersos sujeitos e grupos, o que implica “reconhecer limitações, constrangimentos de todos os tipos” (p. 103-104).

As relações em torno dos territórios vividos são, portanto, relações de negociações e disputas, processo no qual as dimensões da memória e da identidade se colocam como fundamentais para a configuração de projetos de territorialidades, ou seja, de formas de ocupar e significar o espaço vivido. Se entendemos identidade como uma forma de narrativa de si e dos outros, para si e para os outros, podemos pensar, a partir das considerações de Michel Pollak (1992), que existe uma estreita relação, na construção das identidades, entre as dimensões do acontecimento, das pessoas/personagens e do lugar, o que nos remete diretamente à questão das territorialidades. A luta pela memória e, portanto, pela configuração das identidades, é uma disputa pela narrativa e pelo discurso, em suma, pela posse da palavra. Neste sentido, o trabalho de Pierre Bourdieu revela-se fundamental. O autor nos lembra o quanto as espacialidades são criadas a partir de discursos performativos, em que o poder do enunciador, sua autoridade discursiva, delimita as fronteiras e nomeia os espaços. Nas palavras do autor:

As lutas a respeito da identidade étnica ou regional, quer dizer, a respeito de propriedades (estigmas ou emblemas), ligadas à origem através do lugar de origem e dos sinais duradouros que lhes são correlativos, como o sotaque, são um caso particular das lutas das classificações, lutas pelo monopólio de fazer ver e fazer crer, de dar a conhecer e de fazer reconhecer, de impor a definição do mundo social e, por este meio, de fazer e de desfazer os grupos. Com efeito, o que nelas está em jogo é o poder de impor uma visão do mundo social através dos princípios de di-visão que, quando se impõem ao conjunto do grupo, realizam o sentido e a unidade do grupo, que fazem a realidade da unidade e da identidade do grupo” (Bourdieu, 1989, p. 113).

Assim, de forma semelhante a F. Barth (2000), Bourdieu nos esclarece que as fronteiras são móveis e não naturais, são sistemas de classificação simbólicos e dependem de atribuições culturais em torno do discurso e do significado. E este é o processo de constituição de todas as identidades sociais, inclusive as que implicam relações com os territórios em que se vive, transita, ocupa.

Portanto, Bourdieu indica que é impossível separar a representação do real do próprio real, o que exige que compreendamos a dimensão social do espaço como correlata à sua dimensão física, pois os diversos atributos de capital asseguram aos sujeitos formas distintas de ocupar e significar os territórios. Em suas palavras:

A estrutura do espaço social se manifesta, assim, nos contextos mais diversos, sob a forma de oposições espaciais, o espaço habitado (ou apropriado) funcionando como uma espécie de simbolização espontânea do espaço social. Não há espaço, em uma sociedade hierarquizada, que não seja hierarquizado e que não exprima as hierarquias e as distâncias sociais, sob uma forma (mais ou menos) deformada e, sobretudo, dissimulada pelo efeito de naturalização que a inscrição durável das realidades sociais no mundo natural acarreta: diferenças produzidas pela lógica histórica podem, assim, parecer surgidas da natureza das coisas (…) (Bourdieu, 2007, p. 160).

Neste sentido, tais análises nos lembram que nenhuma relação dos sujeitos com seus territórios é dada, mas sim construída e disputada. Exatamente por isso, é possível, através da luta, impor novos princípios de di-visão, outras de-limitações em termos de identidade e territorialidade para além das representações hegemônicas. Sobre esta disputa, diz Bourdieu (p. 125): “o que está nela em jogo é o poder de se apropriar”. Se o lugar é o espaço praticado, as posições dos sujeitos nos campos sociais e as formas de capital que eles podem utilizar nas disputas pela manutenção ou alteração dessas posições, configurando seus modos de pensar e agir, serão fundamentais na produção dos efeitos de lugar projetados para configurar determinada apropriação do espaço físico.

O espaço social reificado (isto é, fisicamente realizado ou objetivado) se apresenta, assim, como a distribuição no espaço físico de diferentes espécies de bens ou de serviços e também de agentes individuais e de grupos fisicamente localizados (enquanto corpos ligados a um lugar permanente) e dotados de oportunidades de apropriação desses bens e desses serviços mais ou menos importantes (em função de seu capital e também da distância física desses bens, que depende também de seu capital) (Bourdieu, 2007, p. 161).

Dessa forma, “o espaço ou, mais precisamente, os lugares e os locais do espaço social reificado, e os benefícios que eles proporcionam são resultados de lutas dentro dos diferentes campos” (2007, p. 163). Bourdieu classifica alguns tipos ideais em termos de “ganhos de espaço”, mostrando como as formas de capital podem pesar mais ou menos de acordo com as táticas e estratégias utilizadas, como indica Michel de Certeau (1994), nas apropriações do espaço. Por exemplo, a memória pode ser fundamental como recurso para criar um engajamento entre os sujeitos e o espaço que se pretende configurar, em um efeito de lugar, como sendo legítimo para um determinado grupo em termos de identidade; da mesma forma, a autoridade instituída pelo capital social (título de especialista, cargo por eleição etc.) pode ser utilizado como aval para a consolidação de determinada prática do espaço (esvaziar um espaço vivido historicamente por sujeitos de classe economicamente subalternizada em nome de uma vocação turística ou de uma narrativa celebrante do progresso, por exemplo). Podemos citar ainda, como exemplo complementar, as reivindicações em termos culturais e ou o pertencimento (“nascido e criado”, “sempre vivi aqui” etc.) como signos ativados na reivindicação pelo direito legítimo de ocupar e definir os significados acerca de um determinado espaço. São muitos os exemplos possíveis, pois são muitos os tipos de capital que podem ser acionados na luta pela apropriação do espaço e configuração de efeitos de sentido que o transforme em lugar significado e hegemônico.

Historicamente, a luta simbólica pela significação dos espaços geográficos e sociais envolve sistemas classificatórios que geram procedimentos de exclusão e inclusão, que, embora dinâmicos, marcam “cercas” e “pontes”, como tão bem define Mary Douglas (2006) ao falar sobre os bens e seus usos sociais. Neste sentido, as formas de (des)valorização dos espaços urbanos, em suas múltiplas perspectivas, envolvem uma série de agentes e situações, incluindo as políticas públicas de ocupação, as táticas de apropriação e uso dos espaços por parte dos múltiplos sujeitos concretos que neles transitam, as representações midiáticas dos lugares etc., dentre outras dimensões possíveis. Estamos diante, pois, de uma intensa e cotidiana disputa por atribuição de sentido em torno do espaço, na sua transformação em lugar significativo.

Para abordarmos as possibilidades de lutas que estamos apontando acima, optamos por apresentar, neste artigo, um estudo de caso. Assim, abordaremos a questão da região portuária do Rio de Janeiro. Os bairros que compõem o espaço urbano da zona portuária carioca e as alterações na estrutura urbanística que eles têm recebido estão hoje no centro de um debate que percebe o lugar da cidade como o local de expressão das relações sociais expressas territorialmente.

A partir da bandeira da revitalização, como um conceito de significado necessariamente positivo, a atual gestão do Prefeito Eduardo Paes vem intervindo na região portuária carioca de maneira massiva como o grande empreendimento de seu programa de governo, a partir da Operação Urbana Porto Maravilha (Xavier, 2016). O projeto, que destaca melhorias na área, tem implementado uma recaracterização não só dos aspectos físicos de sua estrutura urbana, como também da composição social desses bairros e, consequentemente, das formas de vivência, atuação e representação sobre esse território.

Esse novo desenho vem sendo adquirido através de um processo de exclusão social, definido por gentrificação, que, na lógica do empresariamento urbano, deságua em uma configuração social que elitiza determinadas áreas a partir de iniciativas diretas e indiretas, que prefiguram entre outras violações de direitos, a do direito à moradia, em primeiro plano. Porém, esse não é um fenômeno recente em sua essência; adequar a lógica de funcionamento de determinados espaços urbanos considerados essenciais ao desenvolvimento de políticas específicas em função dos ditames do padrão de acumulação capitalista é uma prática governamental historicamente conhecida pela sociedade carioca. A reforma urbana empreendida no início do século XX, mais especificamente entre os anos de 1902 e 1906, pelo então prefeito Pereira Passos ficou conhecida pelo modo violento e arbitrário através do qual foram empreendidas as obras de modernização do centro da cidade, alterando essencialmente a condição de vida da população mais pobre.

Essas reconfigurações espaciais em muito se relacionam com o modo pelo qual a população intervém na elaboração objetiva e simbólica dos territórios onde estabelecem suas relações sociais. Desse modo, a experiência compartilhada nos espaços de trabalho e sociabilidade, inextrincavelmente sobredeterminadas em relação dialética, revelam traços essenciais da identidade das parcelas de classe envolvidas nos processos históricos em questão. O cenário econômico e social, portanto, tem determinância nas formas pelas quais os atores sociais vivenciam e expressam culturalmente a sua vivência através de, entre outras, as manifestações artísticas, que possuem grande importância no processo de elaboração da sua consciência e identidade de classe. Do mesmo modo, tais manifestações, através de suas formas associativas e discursos identitários, têm relevante participação sobre as práticas de sociabilidade que determinam a atuação e as formas de intervenção dos agentes sobre o espaço, nas suas possibilidades de organização e resistência (Dutra, 2015).

A experiência da comunidade portuária, em especial da classe trabalhadora, analisada em suas manifestações de ordem cultural, como, por exemplo, o samba, quando das mais significativas intervenções na estrutura urbana da zona portuária carioca, e a importância dessas manifestações para a organização e resistência desses trabalhadores ante à violência desses processos são entendidas como forma de autorrepresentação e organização das frações de classe ali posicionadas. Entendendo classe como processo e relação, é essencial à sua compreensão atentar a elementos como a convivência em ambientes comuns de vivência e trabalho, entre trabalhadores livres e escravizados em luta pela emancipação, no processo de formação dessa classe. Assim, é interessante pensar como a cultura da classe trabalhadora portuária toma forma nas lutas históricas pela significação desse território.

Disputas pelo passado da Zona Portuária carioca na significação do território presente

Podemos situar os anos de 2014 a 2016 como um momento-chave dos embates territoriais cariocas, situados entre os megaeventos da Copa do Mundo e Olimpíadas, quando acompanhamos a intensificação dos processos pelos quais se opera a segregação socioespacial na cidade, que se inserem no debate do empreendedorismo urbano como importante elemento das transformações por que passa a dinâmica capitalista após a crise do modelo fordista-keynesiano em transição para um regime de acumulação flexível (Harvey, 2005). As intervenções na zona portuária carioca e as remoções de inúmeras famílias de áreas de interesse à especulação imobiliária constituem uma das facetas da intervenção estatal, que promove outras tantas maneiras de criar uma urbe onde o convívio e o compartilhamento comum entre as diversas ações de classe que a compõem se tornem cada vez mais impensáveis.

Em qualquer evento histórico, há, porém, uma incapacidade, apesar de todas as tentativas hegemônicas, de fazer existir uma cidade unidimensional, em que tenham espaço de elaboração apenas os sujeitos da classe dominante, ou os governantes a seu serviço. As mais diversas formas de existência dos sujeitos e de elaboração dos territórios das cidades são elementos inerentes à dinâmica social contraditória que compõem o fazer urbano. Isso se dá não somente porque os sujeitos são subjetivamente distintos entre si, mas também porque eles operam a realidade de lugares diferentes de construção objetiva de suas vidas: a constituição da sociedade em classes sociais é o principal elemento dessa determinação, porém, há inúmeros outros elementos, que envolvem entendimentos de gênero e raciais, que constituem objetiva e subjetivamente os sujeitos, as opressões que sofrem e os elementos de confrontação e negociação na disputa pela intervenção na realidade.

Apesar de o território da cidade do Rio de Janeiro vir expressando cada vez mais em suas feições as formas de subsunção do homem pelas relações de negócios, não podemos perder de vista que esse processo gera contradições e formas de resistência a esse processo e atuação na disputa por outras formas de elaboração territorial. Neste cenário, dentre a cidade como uma vitrine, estática e estética, e as possibilidades de ação que demonstram que a sua dinâmica tem mais possibilidades do que a vida que atende aos investimentos, encontramos disputas em torno de que cidade teremos de saldo, passada toda a euforia das transformações e dos eventos. Sob esse aspecto podemos pensar que, se o Porto Maravilha é a Zona Portuária que a prefeitura deseja, a “Pequena África” é a Zona Portuária que as lutas pela manutenção da população pobre não deixam ficar somente no passado.

Entretanto o aspecto cultural, que compõe historicamente aquela realidade, tem papel central no que diz respeito às práticas de mercantilização da cidade, tanto como elemento com enorme capacidade de gerar renda, através do chamado desenvolvimento econômico sustentável, pelo fomento de setores como turismo, entretenimento, moda, gastronomia, como também porque carrega os aspectos essenciais que dizem respeito à elaboração dos símbolos que constroem a apreensão coletiva dos significados de determinado espaço. A elaboração social subjetiva de um novo entendimento urbano coletivo, no processo de requalificação operado pelo Porto Maravilha, perpassa necessariamente a composição de um repertório cultural que conta com elementos da memória e da identidade local nas suas mais diversas formas de representação.

Não à toa, o projeto conta com diversos braços que são responsáveis pelo incentivo e promoção de eventos que promovam um “resgate” das expressões históricas locais através de atividades que exploram o potencial do patrimônio artístico e cultural da Zona Portuária. Esse movimento compõe a dinâmica de estetização das relações sociais manifestas na elaboração da cotidianidade coletiva, e que, justamente por isso, tem processos que não cabem no movimento estático da patrimonialização. Porém, como o processo de escolha entre aqueles que irão ser os agentes promotores dessas políticas muitas vezes não passa pelos atores sociais cuja classe historicamente esteve envolvida na manutenção e renovação da cultura portuária, ocorrem constantes disputas pelo protagonismo da representação daquele território.

Na cerimônia de lançamento do Projeto Porto Maravilha, em 23 de junho de 2009, o prefeito Eduardo Paes fez discurso no qual declarou que: “Revitalizar a zona portuária do Rio é prioridade no meu governo e no do governador Sérgio Cabral (…). Recuperar o centro de uma cidade é fundamental para recuperar também a sua identidade”[3]. Embora o slogan “Somos um Rio” seja recorrentemente usado pela prefeitura como discurso unificador da sociedade carioca em torno de uma cidade de e para todos, sabemos que a exclusão e a violência direcionada à parcela mais pauperizada da população têm sido aspecto marcante dessa gestão.

Nunca houve uma identidade única carioca; o que sempre existiu foram constantes embates pela forma de viver e significar os territórios. E justamente a região a partir da qual Eduardo Paes propõe a recuperação da suposta identidade carioca teve importância central no processo de formação de identidade da classe trabalhadora em gestação, entre as permanências da experiência do trabalho sob o escravismo e as contradições do capitalismo em processo de elaboração. Já entendemos que não é essa a identidade que ele deseja recuperar para a cidade, como está bem demonstrado nas ações de sua governança empreendedora. “Recuperar a identidade” da cidade, conforme suas ações, tem sido, na verdade, o empenho, com muito afinco, em forjar uma identidade única que, tal qual uma vitrine, ostente a bem-sucedida governança, através de uma Zona Portuária que recupera a relação da cidade com o mar, ocupada, de um lado, por centros de tomada de decisão do mundo financeiro e corporativo e, de outro, por atrativos culturais estruturados para receber turistas de todo o mundo. Remover as contradições da estrutura social da vista dos menos atentos, enquanto é feito uso das permanências dos conflitos socioculturais de outrora como atrativo de entretenimento complementa também o cardápio de intenções desse forjar identitário unívoco e supostamente harmonioso.

Se o processo de gentrificação prevê o uso dos elementos tradicionais da cultura local como commodity para conferir originalidade à cidade espetacularizada, o limiar entre tradição e estetização pode ser bem tênue, através do esforço do Estado em transformar resistência cultural em produto. Neil Smith já apontara que a gentrificação não é apenas uma reconfiguração espacial ou somente um processo de adequação econômica; trata-se, sobretudo de uma construção ideológica com base no real, mas com enorme capacidade de distorção dos elementos. Assim, a gentrificação opera também como um abuso cultural comparável àquele cometido contra os povos originários do Oeste na expansão da fronteira americana (Smith, 2007). As violações cometidas no âmbito da cultura não se dão somente por ação direta das intervenções práticas na alteração da composição social dos territórios, gerando novas e distintas formas de significá-lo. Sendo a gentrificação uma construção ideológica, ela opera na elaboração distorcida de um imaginário coletivo, socialmente compartilhado, de entendimento da realidade objetiva. Desse modo, as formas de interpretar essa objetividade são atravessadas em grande medida pelas concepções construídas em torno do ideal reificado da cidade, tanto em seu presente, quanto nas interpretações do passado. A partir da construção de um senso comum que reitere cotidianamente nas práticas e representações a transformação da Zona Portuária em Porto Maravilha, a elaboração material de uma reconfiguração territorial estará sendo contraditoriamente praticada para além da atuação do poder público, a partir de uma construção hegemônica materializada.

Neste aspecto, grande controvérsia se deu em junho do ano de 2015 em torno de uma peça que fez parte do Projeto Porto de Memórias. “João Alabá e a Pequena África”, espetáculo montado sob a direção de Alexei Waichenberg, que teve estreia prevista para o dia 20 de junho no Quilombo da Pedra do Sal. Trata-se de uma trama mitológica sobre os orixás enquanto conta a história daquele que, provavelmente, foi o primeiro babalorixá, ou pai-de-santo do Rio de Janeiro, João Alabá.

O espetáculo é produzido pelo Projeto Porto de Memórias, que é um “Projeto sócio cultural, que contempla a realização de espetáculos teatrais nas ruas e praças da Zona Portuária e Centro do Rio de Janeiro”[4] e tem a realização do Instituto Wilson Reis Netto – uma organização sem fins lucrativos cuja sede na Estrada do Joá abriga festas e casamentos elegantes e possui a seguinte descrição em sua página da internet “O Instituto Wilson Reis Netto é provedor de manifestações culturais e artísticas consagradas, através de experiências exclusivas e intimistas”[5] – e da Cultural Biz, uma empresa de consultoria e treinamento. O Porto de Memórias é também patrocinado pela Light, pelo Governo do Estado do Rio e pela Secretaria de Cultura, recebe apoio de diversas empresas, como Itambé, M.A.C., apoio institucional do Departamento de Cultura da ALERJ, Rio 450 e apoio cultural da organização “Cidades Criativas – Transformações Culturais.”[6]

Todos esses grupos ocupam o lugar que podemos chamar como sendo o da institucionalidade, agentes que, no âmbito da disputa pela representação do território portuário, têm interesse na sua requalificação, explorando a estetização da memória e contribuindo para o processo de gentrificação, ao extirpar as contradições inerentes ao processo de construção da sociedade desigual, e que se aprofundam na dinâmica atual.

A polêmica iniciou quando a coluna de Patrícia Kogut, no Jornal O Globo, noticiou que uma atriz branca, Cristiana Ubach, iria interpretar a mãe-de-santo do terreiro de João Alabá, numa personagem de nome Mãe Wanda de Omulu. A casa de Alabá se localizava na Pequena África, mais precisamente na Rua Barão de São Félix, 174 e representava um dos pontos mais importantes no sentido do reconhecimento e da afirmação para os negros vindos da Bahia, a partir da continuidade do culto aos orixás, essencial para a manutenção do sentido da comunidade com a coesão do grupo religioso. As chamadas tias baianas tinham, nesse processo e, consequentemente na casa de Alabá, inquestionável centralidade.

Hilária Batista de Almeida, conhecida como Tia Ciata, era a mãe-pequena, ou Iyá Kekerê, auxiliar direta do pai-de-santo João Alabá e liderava o candomblé em diversas atividades, como a prescrição dos banhos rituais às noviças e a direção das iaôs já iniciadas nas danças dos orixás. A partir de sua força junto ao santo, Tia Ciata reunia também centralidade na organização das jornadas de trabalho e na organização dos ranchos carnavalescos. Essa posição ocupada por ela, junto à figura de João Alabá, fez com que diversos movimentos sociais da região portuária, ligados à ancestralidade africana, não apenas identificassem que o lugar ocupado por essa figura tão importante da história fora extirpado pela figura da personagem Mãe Wanda de Omulu, como também acusassem a montagem teatral de racismo.

Estiveram envolvidos nas ações de repúdio à peça diversos coletivo vinculados à disputa pela representatividade das tradições trazidas pelo passado de experiência vinculado à experiência da classe trabalhadora portuária, como os grupos: Coletivo Afro de Cultura Urbana, Coletivo das Pretas Beatriz Nascimento, IPN, Coletivo dos Fotógrafos Pretos, CCIR (Comissão de combate a intolerância religiosa), Quilombo X, Quilombo Pedra do Sal, Rede Rádio Mamaterra, Sos Racismo Brasil, CEAP.

Estamos tratando de um território cujos embates históricos pela elaboração material e pelas formas de usá-lo são elementos centrais para a sua atual configuração. Essas disputas e o que temos como seus resultados são substrato elementar da conformação das permanências das tradições culturais e das contradições que atravessam a realidade política e cultural que permeia a região portuária hoje. É o substrato cultural que vem sendo explorado como produto pelas iniciativas que reivindicam na chamada economia criativa um dos grandes nichos de desenvolvimento econômico do Porto Maravilha, mas é, sobretudo, substância da luta dos marginalizados do processo histórico desenvolvimentista nos cotidianos enfrentamentos. A página da Rádio Mamaterra, grupo de comunicação social livre, em artigo intitulado “Artistas negras somem da paisagem do Rio de Janeiro de 2015”[7], trata da polêmica envolvendo a peça de teatro, a partir do seguinte raciocínio inicial: “Rolou Copa, vem aí as Olimpíadas e o ‘Porto Maravilha’, no Rio de Janeiro, está ficando prontinho para receber milhões de turistas de todo o mundo. As remoções das populações pretas da ‘PEQUENA ÁFRICA’, que aconteceram do século XX até agora, já não contam, vão cair no esquecimento.”

Não podemos afirmar que houve intenção ativa por parte dos idealizadores do espetáculo em reescrever o passado da “Pequena África” em novos termos raciais, ou que fosse de seu interesse remover a importância de Tia Ciata da construção da história do Rio de Janeiro. Mas não se pode negar o fato de que, frente ao novo processo de reestruturação da configuração sócio espacial da Zona Portuária, em que assistimos a incontáveis denúncias de violações de direitos sobre a parcela mais pauperizada da população, majoritariamente negra, e igualmente incontáveis esforços no sentido de enfrentamento a esse quadro, ignorar tais processos de exclusão estabelece uma postura negligente em relação ao contexto em que estão atuando.

A peça de teatro, assim como qualquer leitura artística da realidade do passado ou do presente, tem importante lugar na elaboração do imaginário acerca do que se busca representar. Às novas gerações, aos turistas que cada vez mais têm frequentado a região, aos possíveis espectadores de “João Alabá e a Pequena África” será narrado um passado que não apenas não condiz com a realidade – embora, saibamos, a arte não deve e nem é capaz de ser cópia fiel dos acontecimentos –, mas que mascara o protagonismo negro na paisagem cultural carioca.

Os coletivos do movimento negro que reivindicam a ancestralidade como importante ferramenta de luta para enfrentar as investidas contra suas formas de organização no presente rapidamente se organizaram em torno da causa. Houve intensa mobilização na internet, principalmente através de evento do facebook[8] criado para organizar uma manifestação para o dia 20 de junho, quando estrearia a peça. O texto de descrição do evento evidencia algumas problematizações acerca da política de desenvolvimento cultural para a Zona Portuária, e questiona a falsa democratização do acesso ao financiamento promovido pelos editais de cultura.

Os produtores da peça acharam por bem marcar uma reunião com os grupos que, minimamente, questionavam se não haveria uma atriz negra que pudesse assumir o papel de Mãe Wanda. Porém, segundo o diretor da peça, Mãe Wanda seria uma personagem fictícia, inspirada na yalorixá de sua referência religiosa e “inspirada nos estudos que eu e minha equipe vimos fazendo para encenar importantes fatos e destacar importantes personalidades da história da formação da sociedade carioca…”[9]. Por isso, sua assessoria de imprensa propunha uma oportunidade para que fosse explicado o conceito do projeto àqueles que, apenas a partir de uma fotografia na imprensa, o estariam julgando. Na reunião, que aconteceu no dia 16 de junho de 2015, no Instituto Pretos Novos, pouco se avançou no sentido conciliatório, a tal ponto que representantes do Quilombo da Pedra do Sal entraram com um pedido de ação e avaliação, junto à Coordenadoria de Igualdade Racial (CEPPIR), que estava representada pela presidente Lelette Couto, para averiguar se houve racismo por parte da produção do espetáculo[10]. Segundo Marcos Romão, liderança da Radio Mamaterra, no evento, a representante do projeto Porto de Memórias, além de assumir não conhecer bem a história de João de Alabá, admitiu que a pesquisa havia sido insuficiente, sob a justificativa de que estes espetáculos têm a função de fazer um paralelo com a vida dos homenageados e a história como um todo. Ele aponta aí o que chama de “uma grotesca contradição”: “Não há como homenagear a história apagando o que foi escrito e reescrevendo por cima. É essa a ideia de restaurar a história do porto? O candomblé tem história, tem tradição e isso precisa ser respeitado.”[11]

Se havia interesse em, a partir de estudo feito pela equipe, destacar personagens históricos importantes para a formação da sociedade carioca, esse intuito acabou por ser mal-sucedido. O pouco conhecimento sobre o tema, admitido pela coordenadora do projeto, resultou em uma deturpação da construção histórica da luta empenhada pelas frações de classe que mais sofreram com a marginalização social em nome dos séculos de construção do Rio de Janeiro “desenvolvido”. A negligência com a importante figura da Tia Ciata contribui com o processo de subordinação na medida em que retira da representação histórica o protagonismo dos agentes que empreenderam significativas rupturas na linearidade ideológica da concepção “civilizatória”.

A estreia do espetáculo “João Alabá e a Pequena África” foi adiada para que a produção avaliasse as questões levantadas e propusesse uma solução para o problema. A peça acabou estreando, de fato, no dia 4 de julho, no Centro Cultural Light. A personagem da Mãe Wanda de Omulu foi retirada e, em seu lugar, entrou a Mãe Christiana de Omulu, interpretada pela atriz negra Kenya Costa[12]. O “Ato em honra da Pequena África” previsto se manteve com novo caráter de honrar os ancestrais africanos e afirmar a luta do povo negro no passado e no presente.[13]

Vimos, de um lado do conflito, produtores culturais que, em certa medida, se empenham na tarefa de empreender uma intervenção artística de resgate da cultura popular da Zona Portuária. As décadas de pouquíssimo investimento público no incremento cultural da região, em contraposição à recente injeção de recursos em editais de cultura para a área, têm motivado muitas iniciativas com o intuito de promover um resgate histórico das vivências culturais que elaboraram o território. Entretanto, sob o recente processo de espetacularização urbana, tais iniciativas, se não voltarem a atenção para a complexidade das formas de subsunção operadas no plano material e subjetivo, poderão reforçar os processos de exclusão e silenciamento sobre os sujeitos que se busca representar.

Na outra face do embate, aqueles que se reivindicam como os herdeiros da cultura quilombola utilizam de toda a sua capacidade de articulação para impedir que o uso da memória fetichizada de sua própria história se transforme em instrumento de dominação. A atuação contra a objetificação de seu passado, transformado em produto da cultura gentrificada, que, negociando com as heranças africanas, propõe uma forma distorcida de interpretação das lutas passadas, é defendida como uma batalha contra o genocídio cultural[14] do povo negro. Trata-se de um embate pelo reconhecimento do protagonismo histórico das culturas de herança africana e, principalmente, pelo protagonismo nas possibilidades de intervir na elaboração do presente e propor as interpretações de seu próprio passado. As batalhas pela memória são batalhas pela construção do entendimento compartilhado socialmente do passado em comum de uma comunidade.

Embora possamos conjecturar sobre as possíveis consequências da política de remoções, dos planos de revitalização e da construção de um território gentrificado na Zona Portuária, os embates do dia-a-dia têm produções diversas e surpreendentes sobre os atores envolvidos. O processo de elaboração territorial é carregado de sutilezas. Embora a história não elabore uma via de mão única e os interesses do capital não prevaleçam sem percalços, sabemos que as relações sociais são bastante desiguais e os sujeitos têm possibilidades distintas de intervenção sobre o processo. Procuramos demonstrar, com as situações analisadas, as complexidades e ambiguidades em torno dessas disputas envolvendo as categorias do território, da cultura e da identidade.


REFERÊNCIAS

BARTH, F. Grupos étnicos e suas fronteiras. In: O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2000.

BOURDIEU, Pierre. A identidade e a representação. Elementos para uma reflexão crítica sobre a ideia de região. In: O poder simbólico. Lisboa, Difel, 1989.

BOURDIEU, Pierre. A miséria do mundo. Petrópolis: Vozes, 2007.

CANCLINI, Nestor. Culturas híbridas. São Paulo: Edusp, 1998.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes do fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.

DELEUZE, G. e GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996.

DOUGLAS, Mary e ISHERWOOD, Baron. O mundo dos bens. Para uma antropologia do consumo. Rio de Janeiro, ed. UFRJ, 2006.

DUTRA, Marina. A zona portuária entre a “Pequena África” e o Porto Maravilha: disputados em torno da significação do território portuário carioca. Dissertação (Mestrado em Cultura e Territorialidades). Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2015.

ENNE, Ana Lucia e GOMES, Mariana. “É tudo nosso”: disputas culturais em torno da construção da legitimidade discursiva como capital social e espacial das periferias do Rio de Janeiro. IN: PASSOS, P.; DANTAS, Aline; MELLO, M. (orgs.). Política cultural com as periferias: práticas e indagações de uma problemática contemporânea. Rio de Janeiro, IFRJ, 2013b.

HAESBAERT, Rogerio e LIMONAD, Ester. O território em tempos de globalização. Revista Etc. Nº 2 (4), vol.1. Agosto de 2007.

HAESBAERT, Rogério. Dos múltiplos territórios à multiterritorialidade. Conferência, setembro de 2004.

HALL, Stuart. Da diáspora. Belo Horizonte, Ed. UFMG, 2003.

HARVEY, David. A Produção capitalista do espaço. São Paulo: Anablume, 2005.

NORA, Pierre. Les lieux de mémoire. Paris, Gallimard, 1984.

OLIVEIRA, João Pacheco de. Uma etnologia dos “índios misturados”? Situação colonial, territorialização e fluxos culturais. Mana vol. 4, n. 1 Rio de Janeiro, abril de 1998.

POLLACK, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos, 5 (10). Rio de Janeiro, 1992.

SANTOS, M. O retorno do território. In: SANTOS, M.; SOUZA, M. A. de.; SILVEIRA, M. L. Território. Globalização e fragmentação. São Paulo: Hucitec, 1994.

SMITH, Neil. Gentrificação, a fronteira e a reestruturação do espaço urbano. GEOUSP – Espaço e Tempo, São Paulo, nº 21, p. 15 – 31, 2007.

SOUZA, Marcelo José Lopes de. O território: sobre espaço e poder, autonomia e desenvolvimento. In: CASTRO, Iná, GOMES, Paulo C. e CORRÊA, Roberto (orgs.). Geografia: conceitos e temas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995.

VELHO, Gilberto. Projeto e metamorfose. Rio de Janeiro: Zahar, 1994.

XAVIER, Priscilla. Do Porto ao Porto Maravilha. Discursos que (re)criam a cidade. Curitiba, Appris, 2016.

*Ana Lucia Enne é Doutora em Antropologia (PPGAS/MN/UFRJ) e professora do Programa de Pós-graduação em Cultura e Territorialidades (PPCULT/UFF). Email: anaenne@gmail.com

*Marina Dutra é Mestre em Cultura e Territorialidades pelo PPCULT/UFF e graduada em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Email: mdutra86@yahoo.com.br

[3] http://segurogarantia.net/noticia/
primeira-fase-de-obras-do-porto-sera-concluida-em-dois-anos-diz-paes/#.VftJ6N9Viko

[4] https://www.facebook.com/pages/
Porto-de-Mem%C3%B3rias/469484443154162?sk=info&tab=page_info

[5] https://www.facebook.com/InstitutoWilsonReisNetto/info/?tab=overview

[6] https://www.facebook.com/469484443154162/photos/
pb.469484443154162.-2207520000.1444398758./607785452657393/?type=3&theater

[7] https://mamapress.wordpress.com/tag/
ato-contra-peca-racista-joao-de-alaba-e-a-pequena-africa/

[8] A página do evento conta com muitas intervenções e troca de impressões sobre o debate e pode ser acessada através do endereço https://www.facebook.com/events/853865534662910/

[9] https://mamapress.wordpress.com/tag/
ato-contra-peca-racista-joao-de-alaba-e-a-pequena-africa/

[10] https://mamapress.wordpress.com/2015/06/17/
denegrir-nao-e-ofensa-queremos-denegrir-esta-peca-joao-alaba-e-a-pequena-africa/

[11] https://www.facebook.com/events/853865534662910/permalink/858246834224780/

[12] http://extra.globo.com/tv-e-lazer/
peca-com-selminha-sorriso-estreia-apos-polemica-racial-16655869.html

[13] https://www.youtube.com/watch?v=ku7IRVA4Z9I&feature=youtu.be

[14] https://www.facebook.com/events/853865534662910/permalink/858246834224780/

dossiê
Tempo de leitura estimado: 37 minutos

UMA CENA ESTÉTICA, SUBVERSIVA E FORA DE LUGAR

Resumo: A partir dos anos 2000, uma produção estética, multifacetada e colaborativa coloca em cena, de forma pungente, em toda a Baixada Fluminense, uma série de coletivos culturais, autônomos e realizadores. Um sintoma que aponta para uma complexa rede de criação simbólica territorial, autônoma e autorreferencial, alavancada pelas novas tecnologias e pela conexão em rede. A partir da inspiração de Gilles Deleuze e Felix Guattari (1995), este trabalho destaca o poder sobre a vida que reside em ações protagonizadas pelos pobres, ricos no entanto no poder de remodelar, a partir das próprias mãos, ideias e bits, a geografia cultural do território. Esse projeto político, de amor e de raiva, conflita, através da experiência direta, com a total inoperância do Estado em criar meios possíveis para a consolidação de políticas culturais que garantam o direito de 4 milhões de habitantes produzir, fruir, difundir e acessar produção de qualidade, de cultura e de arte.

Palavras-chave: Baixada Fluminense; coletivos culturais; arte; rizoma; pobres; migrantes.

Abstract: From the 2000’s, an aesthetic, multifaceted and collaborative production puts on the scene poignantly, in all Baixada Fluminense, a series of cultural collective, autonomous producers and directors. A symptom that points to a complex network of territorial symbolic creation, autonomous and self-referential, leveraged by new technologies and the network connection. From the inspiration of Gilles Deleuze and Felix Guattari (1995), this work highlights the power of life that resides in enthralled actions for the poor, rich, however, the power to reshape, from their own hands, ideas and bits, the cultural geography of the territory.
This political project of love and anger, conflicts, through direct experience, to the total failure of the State to create possible ways to consolidate cultural policies that guarantee the right of 4 million inhabitants produce, enjoy, disseminate and access quality production of culture and art.

Keywords: Baixada Fluminense; cultural collectives; art; rhizome; poor; migrants

 

Manual prático da política cultural de gangue

Outras narrativas e novos significados entram em pauta quando o século 21 se abre em múltiplas redes estéticas e culturais sob a inteligência dos enxames. Há a partir dos anos 2000, uma geração que expressa um projeto político para a Baixada Fluminense que é sensorial, visual, sonoro, escrito, declamado, performático, gingado, encenado, filmado e transmitido online, em tempo real, da Baixada Fluminense para o mundo. Da lama ao caos.

Bandos, coletivos, companhias, cineclubes, rodas de rima, de capoeira, bandas, grupos formados por jovens de todas as idades, das 13 cidades da região, afirmam um projeto de amor na raiva. Essa paisagem criativa organicamente experiencia um outro sentido de periferia, um outro sentido de Baixada Fluminense. Seu projeto de amor pode parecer equivocado num mundo como o nosso, onde as atenções dos recursos e investimentos em políticas públicas são, na maior parte das vezes, concentradas em micro-centros com interesses particulares que respondem a uma ordem global que legitima o poder contra os pobres, os negros, os favelados e periféricos, os nômades, as mulheres, as crianças, os jovens, os indígenas, os LGBT’s e todas as minorias.

Há um enfraquecimento muito bem operacionalizado das ferramentas democráticas por um jogo de forças que conjugam sucessivas crises econômicas, políticas e sociais, que não podemos deixar de reconhecer, que nos são desmotivadoras, paralisantes e violentas, sobretudo. A fome e o impedimento da livre circulação pelos territórios são as violências que mais testemunho acontecerem, todos os dias, por aqui.

Embora esse projeto de amor pareça deslocado, é somente através dele que essa cena tão jovem encontra suporte para a produção, a difusão, a descentralização e o acesso de obras fora de lugar: não estão, na maior parte das vezes, dentro de equipamentos físicos, sejam teatros, museus, centros culturais ou espaços de concertos e shows, estão nas praças públicas — ou quando também não existem praças, o que é muito comum em várias cidades — estão nas ruas; não estão sendo subsidiados por políticas ou programas culturais, sejam privados ou públicos, estão sendo alavancados, realizados e mantidos pelas redes e coletivos em franca colaboração e generosidade; não reproduzem o cenário de sangue, horror, miséria e carência, tão exaustivamente colados às periferias pelos meios tradicionais de comunicação e senso comum, são emblemas vivos de que o território é ativador de criação, estética, de produção de cultura, de linguagem, signos e conteúdos multidisciplinares quanto mais se olha pra dentro através de suas próprias lentes de aumento.

Sobre isso, Diego Bion, um dos idealizadores e principais realizadores do Cineclube Buraco do Getulio[1], de Nova Iguaçu, que em 2016 completa 10 anos de atividades ininterruptas, nos deixa claro que

hoje em dia a maioria do público que frequenta o Buraco é de classe média, está ali entre 18 e 25 anos, e não vive a cidade: eles têm o Rio como centro da cena, como lugar que tem as coisas bacanas a serem feitas e descobertas, o que faz a gente [o coletivo] viver num eterno momento angustiante com a memória desse território. A partir disso a gente tem uma história contada sobre esse território que é uma outra história. A história que é difundida não é a história da potência, da realização, do cara sem grana que pega um giz e vai fazer poesia nas portas das lojas pelas madrugadas, o cara que usa a máquina de Xerox da empresa que trabalha pra fazer os fanzines de poesia e divulgar, não é essa superação, esse poder que tá colocado, é um outro lugar. Quando a gente consegue fazer essas pontes, entre os poetas, as obras e as resistências de outras décadas e essa garotada que tem vergonha de Nova Iguaçu, a gente tá de alguma maneira dando um ponto. E é só um ponto, têm muito mais pontos pra serem dados, pra serem costurados, mas esse ponto é fundamental.[2]

Através de processos autênticos de singularização, calcados na capacidade criativa e nas resistências individuais frente a modelos “prontos” de vida, artistas, pesquisadores, produtores, professores e toda uma sorte de realizadores e agitadores culturais, demarcam com novos sentidos e significados as fronteiras desse grande espaço urbano periférico, de quase 4 milhões de pessoas, que é a Baixada Fluminense.

Contraproduzem dentro dos limites de um sistema que, ao mesmo tempo em que reprime, gera energia à resistência e garante ao território uma representação social positivada, criativamente bem “inventada”, cujas fronteiras geográficas estabelecidas pelos mapas oficiais não conferem com a dilatação provocada no conceito “território” pelos seus artistas, agentes, ativistas e produtores independentes. Aliás, mapa não é território!

O “Faça Você Mesmo” é um sintoma marginal, contemporâneo em todo o mundo, e um forte indício de que essa fermentação cultural não é um produto da “Arte pela Arte” ou da busca pelo conhecimento dos padrões da “Alta Cultura”. Mas, para além de uma “vontade de realização”, percebemos nesses militantes e agentes uma significativa vontade democrática de poder.

Exibição do Cineclube Buraco do Getúlio, na Praça de Direitos Humanos, centro de Nova Iguaçu, 2016.
Exibição do Cineclube Buraco do Getúlio, na Praça de Direitos Humanos, centro de Nova Iguaçu, 2016.

Alguns coletivos autônomos, como podemos exemplificar com o Cineclube Mate com Angu[3], de Duque de Caxias, com o Fala (Fábrica de Apoio à Linguagem)[4], de Belford Roxo, e com a Geração Delírio[5], de Mesquita, nos produzem uma sensação de orbitarem em volta de um modelo anárquico, assistemático e acentrado, desterritorializando, deslocando os lugares comuns de produção da cena na metrópole Rio de Janeiro. Criam um verdadeiro mapa afetivo e de ações concretas, inspirado talvez no anarquismo, invertendo os modelos da relação de emissão e recepção do conteúdo, ou invertendo o fluxo da “migração” na busca pelo acesso: pessoas de vários pontos da metrópole se deslocam à noite e se aventuram no caótico transporte público para serem frequentadores, na Baixada Fluminense, de suas sessões cineclubistas, festivais de rock, festas literárias, saraus.

Uma das ações da Geração Delírio, o Cabaré Viaduto é um exemplo disso. Os integrantes do coletivo se reuniam embaixo do único viaduto de Mesquita em festas de artes integradas, em que rolavam saraus, shows, circo e toda a sorte de ações culturais propostas e conduzidas tanto pelos idealizadores quanto pelos frequentadores do lugar. O coletivo teve um dos momentos mais ricos de suas ações quando a Geração Delírio buscou a “perda de controle”, conforme nos traz Emerson Noise, um dos integrantes e idealizador das ações:

Havia noites que nossos Cabarés eram totalmente organizados pelos poetas, pelos bêbados, pelos músicos, pelos atores e até mesmo pelo público (risos). O lema “Circo e Cerveja Gelada” é claro que estava a salvo, mas era bom ver bandas de vários locais do Rio e da Baixada chegando e tomando conta do Bar, ou fazendo o roteiro das apresentações, cada um organizando da sua maneira. Taí algo que explica a alma do que acontecia debaixo daquele viaduto. Poder, mana, poder de geral![6]

Gosto de pensar esse “poder de geral” como essa vontade democrática de poder dos diferentes e marginais, o poder da pluralidade de indivíduos singulares. O que Hardt e Negri chamam de poder da Multidão.

Cada sinal de corrupção do poder e cada crise de representação democrática, em todos os níveis da hierarquia global, defronta-se com uma vontade democrática de poder. Este mundo de raiva e amor é o verdadeiro alicerce sobre o qual repousa o poder constituinte da multidão. (…) A multidão é composta de diferenças e singularidades radicais que nunca podem ser sintetizadas numa identidade. O povo é uno. A população, naturalmente, é composta de numerosos indivíduos e classes sociais diferentes, mas o povo sintetiza ou reduz essas diferenças sociais a uma identidade. A multidão, em contraste, não é unificada, mantendo-se plural e múltipla. A multidão é composta de um conjunto de singularidades – e com singularidades queremos nos referir a um sujeito social cuja diferença se mantêm diferente. (…) A multidão designa um sujeito social ativo, que age com base naquilo que as singularidades têm em comum. A definição conceitual inicial de multidão representa um claro desafio para toda a tradição da soberania. (…) Quando dizemos que não queremos um mundo sem diferenças raciais ou de gênero, e sim um mundo no qual não determinem hierarquias de poder, um mundo no qual as diferenças possam expressar-se livremente, estamos exprimindo um desejo da multidão. As diferenças não têm caráter limitador, negativo e destrutivo: são a nossa principal força para transformarmos radicalmente o mundo.

Os Cabarés Viaduto aconteceram no Setor BF, exatamente embaixo do único viaduto do município e que preserva, até hoje, uma singular história com a cultura de resistência local. A Geração Delírio cria uma linguagem estética muito própria e isso faz com que a ação vá ficando com a cara de quem faz e de quem consome, o tal dito “público-alvo”. Este, inclusive, inverte o processo e se torna o artista ao subir no palco e declamar um poema, mandar um recado, tirar a roupa ou distribuir seu próprio fanzine. As festas começam a ser colaborativas a tal ponto que o bar muitas vezes é “esquecido” por quem cansou de estar atrás do balcão e foi dançar um pouco e, consequentemente, é assumido por quem achou melhor retomar a venda das bebidas e deixar de lado a curtição da festa.

Aos poucos, a linguagem dos Cabarés torna-se elemento vivo de um discurso orgânico, o qual acompanha o dinamismo da vida e se refaz a cada edição. Novos integrantes chegam, outros se mudam de cidade, alguns simpatizantes se juntam e assumem funções de organização junto ao coletivo. O público, cada vez maior, vinha de diferentes cidades. Bandas, todas sempre autorais, já chegavam na intenção de tocar, caso algum imprevisto acontecesse com uma das escaladas ou caso ainda houvesse espaço para uma jam.

O público era variado, mas nitidamente alternativo, com pegada roquenrou poética subversiva estética (sim, uma galera muito expressiva nas indumentárias e na decoração dos ambientes!). Assim como no Cineclube Mate com Angu, os produtores realizavam pra se divertir e ver seus amigos se divertindo. Bem no clima “Luiz Gonzaga do rock”, queriam só “alegrar a cidade”. Política de gangue é isso.[7]

Eflyer da primeira festa Cabaré Viaduto, produzida pela Geração Delírio, 2009.
Eflyer da primeira festa Cabaré Viaduto, produzida pela Geração Delírio, 2009.

A nossa gangue tem um ideal de raiz. Nesse sentido, importante invocar salve-salve a dupla dinâmica (!) Deleuze e Guattari, que pontua, em boa parte de sua obra, o conceito de rizoma, que tomamos aqui para compreender a dinâmica dessas ações que acontecem na Baixada Fluminense. Rizoma é entendido como um ideal onde nada se desenvolve para um determinado fim, para um determinado fruto: o resultado não existe, o que existe é o movimento no qual os encontros, as trocas e as colaborações são a base para que as raízes estejam, no desenho horizontal, claro, sempre se conectando, sempre se alongando, crescendo, nunca terminado, fechado, verdade única, universal, suprema, definitiva. Mais para espectro do que para fisicalidade. Ele é entendido não em sua origem ou essência, e sim em um momento específico em que ele é ou está sendo. O rizoma “é”, “entre”, as coisas. O rizoma tem como tecido a conjunção e… e… e…

Os agenciamentos “entre” singularidades, entre potencialidades, entre ações comuns, entre agentes que se movem por ideias e anseios comuns se conectam num grande rizoma, a uma grande teia. As relações existentes em todas as esferas sociais, e visivelmente intrínsecas aos agenciamentos colaborativos e criativos dos novos modos de produção, representam um processo contínuo, sem início e fim, que coloca em contato informações, saberes, práticas, sentimentos, afetos, crenças e desejos, gerando espaço para o conflito, o tensionamento entre visões, atitudes e apoderamentos, cerne do agir político e do exercício democrático.

É aí que identificamos as redes, os artistas e as políticas culturais de dezenas de iniciativas que através das últimas décadas, mas, sobretudo, dos últimos anos, com forte presença nas redes sociais, representam uma Baixada Fluminense positiva, vibrante, apoderada e autônoma.

O mundo dos migrantes ou os estratagemas dos pobres

A partir dos anos 2000, amparados pelas novas tecnologias de informação e pelas redes de apoio que sustentam as realizações – de saraus a espetáculos teatrais, de festas juninas a bailes funk – as intervenções culturais de caráter comunitário e colaborativo são alavancadas por espaços próprios de visibilidade e por uma capacidade reveladora do comum, intrínseca dos pobres, esquizos (Deleuze e Guatarri, 1995) rebeldes e nômades. Os bárbaros, ciganos, arruaceiros e vagabundos de todos os tipos produzem novos sentidos para as coisas, trazem uma experiência que questiona e subverte o que já está colocado, o poder instaurado. Podemos dizer que isso é histórico, inclusive. É um pouco do que Diego Bion nos traz nessa fala:

A nossa festa não tá desassociada do posicionamento político, isso tá junto. Festejar, pra gente, é um ato político. Quando a gente faz uma sessão depois da gente ter perdido o Nem[8] como a gente perdeu, e ir lá no microfone, em praça pública, e falar desse crime, do descaso com os direitos LGBTs e da homofobia, não deixa de ser colorido e não deixa de ser doloroso. Só não é didático, não é careta, não é parnasiano, é uma outra proposta de enfrentar a dor.[9]

Assim, os autores do livro Império, Hardt e Negri, nos convidam a pensar em uma espécie de “república universal”, uma trama de poderes e contrapoderes capitaneada pelas culturas reducionistas e violentas do Capitalismo e pela soberania do Estado. Essa rede é dada através de um suporte continuamente inclusivo e ilimitado – não deixando nada nem ninguém do lado de fora.

Ela é conectada por muitos fios, tensões e relações e ao se absorver da vida social e das invenções dos que vivem nela, o Império inclui ao mesmo tempo em que exclui. É rede de poder. Mas também de potências. Por isso, a potência do comum está presente nos arruaceiros, artistas, subempregados de todas as sortes de nossas sociedades. “Estão ativos dentro da esfera da produção social mesmo quando não ocupam uma posição assalariada. Não é verdade que eles não fazem nada. As próprias táticas de sobrevivência exigem extraordinária habilidade, artimanha e criatividade” (Hardt e Negri, 2005, p. 178).

Quando as ideias, as emoções, os desejos e as relações comuns da Multidão são colocados para trabalhar, opondo-se, de certa maneira, às ordens do patrão, representam aí um enorme potencial para a transformação social positiva. É um pouco disso que o texto de 2012, do programa da Sessão Pipa Avoa, sessão comemorativa dos 10 anos do Cineclube Mate com Angu, traz numa série de referências sobre a atuação em rede:

Não dá pra soltar pipa sozinho e se tem uma imagem que é triste é o tal soltar pipa no ventilador… Isso porque ela é potente metáfora pra sentimentos muito intensos que habitam o coração humano desde muito tempo. A graça da pipa é que ela é uma brincadeira coletiva, de bonde, e ainda sim preservando uma importante sensação de individualidade na condução da linha, no dibicar. Igualzinho ao Cinema que a gente acredita. E juntando gente nova e gente mais velha, menino e menina – incluindo sempre. Tudo bem que hoje quase ninguém faz mais sua própria pipa – compra-se pronta – mas ainda há um quê de artesanato nela também. Igualzinho ao Cinema que a gente acredita. A pipa precisa da natureza pra exercer sua afirmação – no ar ela tem o seu próprio jeito de seguir o desenho do ar; e precisa da cultura, do conhecimento partilhado. Mas o mais revelador do ato de soltar pipa é a lembrança do sentimento de liberdade que está em todos nós e está na busca por um Cinema livre e libertador – mesmo quando não se tem essa ideia conscientemente. Fazer um filme, fazer uma sessão cineclubista, viver prazerosamente, tem muito a ver com chamar os amigos pra curtir uma pipa, sentir o vento na cara, rir solto, esgarçar o tempo, esse tempo em que a Máquina capitalista insiste em nos cobrar como fatura. E assim o Mate com Angu, o cerol fininho da Baixada, chega aos 10 anos de aventuras. Hoje a linha chinesa domina o mercado, mas os carretéis comprados nos armarinhos da vida eram o dezão e o dezinho… 10. Dez soltando pipa, fazendo amigos e provocando muito. E é bom que vendo nossa cidade hoje dá pra sentir em todos os cantos surgirem novos ares frescos, desafiando a aridez de uma terra marcada pela violência do coronelismo, da corrupção e da autoestima massacrada por décadas. E isso é alentador também. Que o Audiovisual siga ajudando esse processo de libertação na Baixada Fluminense e em todos os cantos de todo esse país imenso e desigual. A cabeça tem que ser uma pipa que avoa![10]

As cabeças “avoadoras” da Capa Comics[11] estão cumprindo o que pede Heraldo HB, não pelo audiovisual, mas através das histórias em quadrinhos. O coletivo de quadrinistas, originário também de Duque de Caxias, é comumente destaque em jornais e telejornais de grande circulação desde que surgiu em 2012, retratando a Baixada Fluminense e seus imaginários, lendas, personagens, vilões, mitos e heróis.

O grupo formado por designers, roteiristas e ilustradores locais tem um grande e único objetivo: criar e difundir um gibi regional com personagens que conversem com a nossa realidade da Baixada. João Carpalhau, um dos idealizadores da revista Capa Comics que já está em sua quinta edição física, pergunta: por que todo super-herói tem que nascer nos EUA? Na Capa Comics — que está em sua quinta edição, conta com uma versão online, uma gibiteca e prepara uma websérie — Magé, Belford Roxo, São João de Meriti, Queimados, entre outras cidades, nos indicam que há muito mais imaginário popular sobre a região para ser explorado do que se possa supor.

Se você nasce na Baixada Fluminense é impossível não conviver com a pobreza. Por onde você passa ela está ali… Quando eu era moleque eu tinha uma banda e pra cortar caminho eu tinha que cortar o Lixão (uma favela na área central de Duque de Caxias) para chegar no bairro Lagunas e Dourados para ensaiar… e estava ali o movimento vendendo as paradas, a molecada sendo aliciada… Hoje passo pelo mesmo caminho e o contexto é 10 vezes pior por causa do crack e de todo o cenário que ele traz. E isso é muito triste. A relação do nosso poder enquanto Capa Comics está no que fazemos, na riqueza das histórias e dos personagens que contamos dessa região, as lendas urbanas, os enredos incríveis de personagens invisíveis, enfim, representar, criar essa representação e transformar em gibi e isso cair na mão de uma mina, de um moleque e eles poderem sacar que podem brincar com a realidade, podem inventar uma outra, mais legal e mais fantástica, pô! Esse é o poder. Eu conheço o Cristiano há mais de 20 anos quando fizemos nosso primeiro curso de Quadrinhos, no Largo do Machado, nos anos 90. Eu tinha 15 anos. Nós éramos os primeiros a chegar no curso, todo sábado de manhã. Eu saía de casa 5h30, 6h, andava até a rodoviária pra pegar um ônibus até a Central do Brasil e de lá o metrô. O Cris vinha de Imbariê, imagina, o cara acordava às 4h. E lá no Largo do Machado, o professor, que era o Charles, quando via a gente, moleque, cedinho lá, falava: “Caramba, vocês são os que moram mais longe, os que mais gastam tempo pra chegar aqui e os que nunca atrasam!” É isso, quem tem um sonho, não se atrasa. E teve um lance que também é emblemático dessa época: o Castelinho do Flamengo era um espaço de referência pro circuito de quadrinho no Rio de Janeiro e lá ia rolar um evento que trazia o Bill Sienkiewicz, o desenhista do Eléktra, e a gente, moleque, claro que tínhamos que ter o autógrafo, ver e ouvir o cara que era o “Leonardo da Vinci” do quadrinho. E a gente foi pra lá mas não conseguiu ficar até o final e tentar o autógrafo. Por que não conseguimos ficar até o final? Condução, a Baixada Fluminense é longe, ainda mais naquela época que não tinha condições de pegar o trem, era muito capenga, sujo, perigoso. Não tinha nem Linha Vermelha ainda, era um outro contexto. Quer dizer, porque a gente morava onde morava, teve que sair bem antes de todo mundo e voltar com aquela frustração, sem o autógrafo. Beleza. Hoje a gente tá lá no Castelinho do Flamengo ministrando uma Oficina de Quadrinho através da Capa Comics que, por sua vez, é fruto dessa frustração e desse poder inventado pelos pobres que tiveram que sair mais cedo[12].

Detrito, Tenório Cavalcanti, Não-Tão-Super, Seu Joel, A Grafiteira, Polly e Pumpkins: alguns dos personagens criados pela Capa Comics.
Detrito, Tenório Cavalcanti, Não-Tão-Super, Seu Joel, A Grafiteira, Polly e Pumpkins: alguns dos personagens criados pela Capa Comics.

Cristiano Ludgerio, também integrante da Capa Comics, chama atenção para o surgimento da internet como dispositivo essencial para a evolução de seu próprio trabalho como roteirista e ilustrador:

Eu venho de um bairro [de Duque de Caxias] chamado Imbariê, muito afastado do centro da cidade. Antigamente era difícil unir a vontade de uma criança em aprender arte ao fato dela morar muito distante do centro do Rio de Janeiro. A situação era bem apertada na época pra gente pagar uma passagem cara. O poder veio junto com a internet, né? Pra mim foi muito importante porque busquei material pra estudar. Acabou gerando poder para a evolução do meu trabalho. Hoje a gente mostra o trabalho da Capa Comics para o mundo, ela chega a lugares que o Coletivo nunca estará. Ou seja, podemos contribuir para a Baixada Fluminense ser mais universal do que ela já é, quebrar as fronteiras do estigma, da falta, e apresentar Arte. E a gente acaba tendo esse poder, parece que a gente está meio isolado aqui, mas a gente “só” está sendo visto o tempo inteiro (risos)[13].

Além das possibilidades que a internet traz para o trânsito e o acesso aos produtos culturais das periferias, o direito às praças públicas, ao uso dos espaços urbanos por saraus, sessões de cinema, festivais de rock, mostras de música, roda de rima, entre outras manifestações, constituem também atitude importante para o ir e vir, o construir e o constituir dessas ações. A apropriação desses espaços é parte de uma agenda política reivindicada por muitos ativistas e produtores culturais da Baixada Fluminense. Isso revela o momento histórico atual, em que outros modelos de políticas públicas culturais podem ser experimentados a partir de projetos e processos embrionários, e todo um modus operandi forjado por arranjos produtivos vindos de favelas e periferias que são carne viva de toda a produção social.

O autoritarismo e o velho ranço de muitas prefeituras locais, no entanto, não permitem a democratização do direito às ocupações criativas de espaços públicos. São variados, e dependendo da gestão pública, “disfarçados”, os dispositivos que tentam negar esse direito.

Em 2013, o Festival Roque Pense![14] —  um dos maiores e mais importantes festivais de cultura antissexista do país, pensado e produzido por produtoras culturais e feministas residentes e atuantes na Baixada — teve a realização de sua segunda edição, que seria em Nova Iguaçu, impedida, por conta das tamanhas dificuldades impostas para receberem a autorização de utilização da Praça do Skate[15].

O documento de autorização para utilização da Praça com todo o aparato de segurança municipal necessário era o único instrumento e esforço necessário da secretaria Municipal de Cultura para ser parceira do projeto — já que o patrocínio da Petrobras Cultural através da aprovação em seu edital público e o co-patrocínio da Caixa Econômica Federal já garantiriam a realização dos quatro dias do Festival, no centro de Nova Iguaçu. E mesmo assim não foi concedido pela prefeitura. A organização do Festival produziu uma Carta Aberta de Repúdio e eu destaco o trecho abaixo:

Todos os dias muitos desafios são lançados a quem bota a mão na massa e ousa fazer o que os ciclos de governos locais, historicamente, negam: produzir, difundir e promover acesso a bens culturais de qualidade. (…) A fim de produzir cultura em cidades marcadas, em pleno século 21, por práticas oligárquicas, fortemente centralizadoras, principalmente no campo da Cultura, os movimentos artísticos locais suam a camisa pra educar seus gestores públicos, ensinando lições básicas, como, por exemplo, a diferença abissal entre promoção de eventos e a formulação necessária de políticas públicas culturais que garantam a criação e a circulação de produtos e expressões, independentemente de governos. (…) Entra prefeito, sai prefeito e as velhas formas de governar perduram: os espaços públicos são privatizados, as praças perdem o espírito e o apelo popular à medida que as prefeituras se apropriam de tais lugares e barganham as autorizações locais conforme melhor lhes convêm. (…) O Festival Roque Pense!, que faz o enfrentamento aos velhos padrões estabelecidos pelo machismo através da música e da produção cultural, numa região em que a discussão sobre gênero é nula, está, dia após dia, superando, bravamente, os amálgamas de uma tradição que varre pra debaixo do tapete iniciativas protagonizadas por mulheres e que gritam causas urgentes. Falamos de rock e de produção cultural feitos por mulheres na região que lidera os índices de violência de gênero no Estado. Portanto, nos negarem o direito à cidade, às praças e às ruas só reforça o sintoma que nossas gestões públicas continuam doentes, cegas, surdas e insensíveis às demandas que mais sangram em nossas cidades. (…) Prefeitos passam, a população fica. Secretários de Cultura passam, os produtores e artistas ficam. A cidade é nossa, fora coronéis![16]

Show realizado na 3ª edição do Roque Pense, em 2015.
Show realizado na 3ª edição do Roque Pense, em 2015.

O projeto naquele ano migrou para Mesquita e em 2016 cumprirá sua quarta edição, se afirmando como um projeto de cultura urbana com ênfase no rock and roll feito, tocado e produzido por mulheres. O Festival é itinerante pelas cidades da Baixada Fluminense e cumpre uma agenda política fundamental no território, debatendo o sexismo e afirmando os direitos da mulher em uma das regiões que mais apresentam feminicídio[17] no país.

Pela nossa democracia: do direito às subjetividades e às novas barbaridades

Importante destacar a produção viva que corta a carne de todos esses trabalhos que é, antes de tudo, de subjetividade, à luz do conceito de Guattari sobre o lugar da criação de singularidades na sociedade da “reprodutibilidade técnica”. Como somos e como encaramos o mundo: tudo isto é criado através dessa produção de subjetividade.

As redes elaboradas pelo comum, baseadas na comunicação, na colaboração e nas relações afetivas são o suporte do trabalho imaterial que só pode ser realizado em comum, sob a estrutura de um grande rizoma, “tais mutações de subjetividade não funcionam apenas no registro das ideologias, mas no próprio coração dos indivíduos, em sua maneira de perceber o mundo, de se articular com o tecido urbano, com os processos maquínicos do trabalho e com a ordem social suporte dessas forças produtivas” (Guattari; Rolnik, 2010, p. 34). E, cada vez mais, essas redes reinventam outras redes independentes de cooperação, outras linhas capazes de reproduzir outros tipos de organizações do comum, que apostam no subjetivo, no imaginário, nos recursos intelectuais.

Nesse sentido, vale a pena falarmos do Gomeia Galpão Criativo que surgiu da necessidade de coletivos culturais e empreendimentos criativos se reunirem sob uma mesma laje para potencializarem os vários projetos e ações já realizados em coletivo, compartilharem recursos e clientes, co-criarem iniciativas e gerirem, juntos, um galpão e todas as suas atividades. Alguns coletivos que há 10, 15 anos já se organizavam de forma “pirata”, sem parcerias ou apoios contínuos com empresas ou esferas públicas, a partir de 2015 se lançam como negócios criativos e imprimem às empresas valores maturados até então nas redes colaborativas que integram.

A ideia vai além de um coworking tradicional: agregar num só espaço empreendimentos de impacto sócio criativo, que pensam e agem por um território com mais potência realizadora. A partir de processos coletivos que inspiram modelos de negócios forjados na economia da abundância, através do trabalho imaterial e simbólico, característicos da era da informação e do conhecimento, os empreendimentos que hoje se reúnem para o primeiro time que irá ocupar o galpão, no centro de Duque de Caxias, são fortemente marcados pela produção de tecnologia, cultura, arte, comunicação, arquitetura e pesquisa. A Popular Arquitetura, a Virtù Produções, o Observatório Social, a Memory Audiovisual, o Cineclube Mate com Angu, Aguassu – Soluções em Tecnologia, a Terreiro de Ideias: Arte, Comunicação, Cultura e a Dunas Filmes são empresas e grupos que já atuam em rede há décadas, quando os integrantes participavam de coletivos e de ações conjuntas para produzirem filmes, espetáculos musicais, sessões de exibições de curtas, festas, produções teatrais, publicações de cordel, de fanzines, produção de saraus, entre outros, pela Baixada Fluminense.

O trabalho em coletivo foi tão potencializado com o passar dos anos que os mesmos jovens que se profissionalizaram através das práticas e dos fazeres espontâneos, aprendendo e descobrindo linguagens estéticas que revelavam o território e suas relações identitárias com ele, hoje se profissionalizaram, buscaram formação e instrumentalização para garantirem sua sustentabilidade e seu sucesso profissional através de trabalhos e produções que… continuam em rede e fortemente marcados pela colaboração e pelo compartilhamento. As áreas de atuação desse primeiro grupo que participam do Gomeia Galpão Criativo são: Produção Cultural – as duas produtoras culturais, Terreiro de Ideias e Virtù Produções, dirigidas pelas produtoras Dani Francisco (que conta ainda com Giordana Moreira e Leticia Suevo) e Clara de Deus, respectivamente; Projetos e soluções em Arquitetura Sustentável – Guilherme Zani coordena o empreendimento que pensa Arquitetura como possibilidade igual de acesso para todas as camadas populares; Produção Audiovisual – Produção, direção, montagem, finalização, edição de vídeo, elaboração de roteiro, execução de oficinas, sessões cineclubistas, entre outras ações audiovisuais, capitaneadas pelo Cineclube Mate com Angu, Memory Audiovisual e Dunas Filmes! Tecnologia e Web – Soluções variadas em tecnologia, design, aplicativos, sites, blogs, e consultorias em web são as principais atuações da Aguassu Tecnologia composta pelo jornalista e midiativista Arthur William e pelo geógrafo e designer Thiago Ribeiro.

O Gomeia Galpão Criativo é uma marca criada para que esse grupo (e outros empreendimentos que irão integrar posteriormente o espaço) ocupem um galpão de 360 m², cuja estruturação física básica para funcionamento teve sua obra iniciada em dezembro de 2015, após 45 dias de uma campanha de financiamento coletivo[18] através da plataforma Benfeitoria, que bateu a meta de R$ 29.000,00 e arrecadou R$ 45.000,00. Essa campanha, além do financiamento inicial, trouxe também força e visibilidade para o projeto, que contou com a colaboração de cerca de 250 “benfeitores”. A expectativa é que o galpão seja ocupado até maio de 2016.

Imagem que virou símbolo da campanha de financiamento coletivo do Gomeia Galpão Criativo, 2015.
Imagem que virou símbolo da campanha de financiamento coletivo do Gomeia Galpão Criativo, 2015.

Os impactos culturais gerados a partir das redes do Gomeia podem também ser entendidos como vetores capazes de estimular novos espaços compartilhados pela Baixada Fluminense, estímulo à produção cultural criativa, de geração de conteúdos digitais, de estética, entre outros.

Nossas faculdades criativas, psíquicas, emocionais e intelectuais integram a nossa moeda de trabalho, o nosso maior capital: o cognitivo. Aquele capital diferente do gerado pela mão de obra empregada pela fábrica, e sim o capital que somos, gerado pela nossa capacidade de criação e comunicação. De criação e realização. Pela nossa capacidade política. O Gomeia Galpão Criativo, entre tantos outros movimentos da região, forma essa poderosa cartografia afetiva e realizadora. Uma cena que pouco a pouco começa a revelar uma intensa capacidade de se profissionalizar e se instrumentalizar para competir por financiamentos públicos e privados via editais, leis de incentivo e financiamentos coletivos para suas ações, muitas já consolidadas pela temporalidade, qualidade, diálogo e inserção no território e capacidade de articulações de parcerias institucionais. Esse amadurecimento retrata um mapa vivo que inventa seu lugar e afirma seu projeto político através da memória, da potência e da criatividade.

Tudo isso constitui o foco das discussões, análises e produções de conhecimento do Território Baixada, programa produzido pela Terreiro de Ideias, que reúne artistas, produtores e pesquisadores e propõe um espaço de trocas acerca da produção de cultura e de arte do território. Em um ciclo de encontros entre artistas, coletivos, pesquisadores e produtores, debates, laboratórios e apresentações artísticas refletem os processos criativos da região e suas proposições.

O programa conecta as redes, as obras e as produções de pensamento desse mapa, territorial e afetivo, com ênfase no fortalecimento dos trânsitos entre outras periferias, linguagens e atores. Os encontros investigam os caminhos da criação e da produção num diálogo entre agentes e artistas experientes e novos, cujas realizações são de relevância para a cultura, não só local como a do país, radiografando os processos autônomos que não vêm da universidade, da mídia tradicional, da iniciativa privada, do partido político: vêm de um lugar fora de lugar.

Com duas edições anuais realizadas em 2014 e 2015, o Território Baixada promove a participação de poetas, escritores, atores, diretores de cinema e teatro, músicos, produtores culturais e historiadores da região, com foco curatorial em realizações que se destacam pela relevância temporal e pelo conteúdo e estética abordados. Nas edições realizadas em 2014 e 2015, com a parceria do SESI Rio, Prefeituras Municipais de Nilópolis e Duque de Caxias, Instituto Federal de Educação e Tecnologia do Rio de Janeiro e Rede Globo, o programa contou com um público de mais de mil espectadores, com a participação de 77 realizadores da região entre debatedores e mediadores e 19 apresentações artísticas e culturais.

Foram realizadas duas exposições em homenagem aos trabalhos de grupos e redes do território: Desmaio Públiko, TV Maxambomba, Imaginário Periférico e Centro Cultural Donana. Em 2015 a visibilidade ao cenário cultural da região gerou importantes impactos, como a participação da Secretária de Cidadania e Diversidade do Ministério da Cultura, Ivana Bentes, no encerramento do Território Baixada, em julho, participando do debate “Baixada Fluminense: direitos e políticas culturais” com mais de 300 artistas, produtores, ativistas da região, colaborando com a ativação de várias redes culturais do território.[19]

Como consequência direta, em agosto, um grupo de produtores tentou articular a Roda de Conversa com Juca Ferreira no Ponto de Cultura Lira de Ouro, em sua vinda à região para o lançamento de uma série de editais do âmbito do Sistema Nacional de Cultura, por isso, a visita, dividida em duas partes: na parte da manhã, na Câmara Municipal de São João de Meriti e à tarde, na Lira de Ouro, espaço de importância resistência cultural, com 59 anos de existência.

Mesmo sofrendo contra todo tipo de pressão para que o ministro fosse ao Teatro Raul Cortez – um equipamento público municipal de Duque de Caxias – o grupo do qual fiz parte conseguiu sinalizar para o MinC a importância simbólica de estarmos na Lira de Ouro, não no Teatro, dando visibilidade, até então, para uma secretaria Municipal de Cultura nada operante que não produzia nenhum espaço de diálogo com os atores locais. Como consequência, a capa do Segundo Caderno de 4 de agosto de 2015, intitulada “Baixada em Alta”, chamou a atenção, em nível nacional, para a vibrante produção local, destacando os cases do Gomeia Galpão Criativo, Terreiro de Ideias, Festival Roque Pense!, Pirão Discos, Centro Cultural Donana, Cineclube Buraco do Getulio, Cia de Arte Popular e, claro, a Roda de Conversa com as Redes de Cultura da Baixada Fluminense com o ministro da Cultura, Juca Ferreira.

A Baixada está em alta há décadas e você não sabia. Por que será?
A Baixada está em alta há décadas e você não sabia. Por que será?

REFERÊNCIAS

HARDT, Michael, NEGRI, Antonio. Multidão. Rio de Janeiro: Record, 2005.

DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Felix. Mil Platôs, Capitalismo e Esquizofrenia. vol.1.

Trad. Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. Rio de janeiro: Ed. 34, 1995

HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Império. 8ª Ed. Rio de Janeiro: Ed. Record, 2006.

GUATTARI, Félix e ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis:

Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2010.

[1] Para saber mais sobre o Cineclube Buraco do Getúlio, acesse: www.facebook.com/buracodogetulio | www.buracodogetulio.blogspot.com.br

[2] Diego Bion em entrevista concedida à autora em 7 de março de 2016.

[3] Para saber mais sobre o Cineclube Mate com Angu, criado em 2002, acesse: https://www.youtube.com/watch?v=QqrUk30zhDU | http://matecomangu.org | www.facebook.com/MatecomAngu

[4] O FALA é um coletivo de artes integradas. Conheça mais em: www.facebook.com/fabricadeapoioalinguagemartistica

[5] Geração Delírio – Coletivo de artes integradas, que existiu de 2009 a 2012 na cidade de Mesquita.

[6] Emerson Noise em entrevista concedida à autora em 21 de janeiro de 2012.

[7] Bia Pimenta, integrante do Cabaré Viaduto e do Cineclube Mate com Angu, em entrevista cedida à autora em 11 de dezembro de 2011

[8] Nem é como era conhecido Adriano Cor, um dos integrantes e idealizadores da Geração Delírio. Compositor cultural e produtor de moda, Nem foi violentamente assassinado em um crime de homofobia, na Baixada Fluminense, em 2015.

[9] Diego Bion, em entrevista concedida à autora em 7 de março de 2016.

[10] Programa da Sessão Pipa Avoa de Heraldo HB, julho de 2012.

[11] Para saber mais sobre a Capa Comics acesse: www.facebook.com/CapaComics | http://capacomics.com

[12] João Carpalhau em entrevista concedida à autora em  9 de março de 2016.

[13] Cristiano Ludgerio, em entrevista concedida à autora, em 9 de março de 2016.

[14] Para saber mais sobre o Coletivo e o Festival Roque Pense, acesse: roquepense.com.br  | www.facebook.com/RoquePense.

[15] A Praça do Skate de Nova Iguaçu é a primeira pista da América Latina e é um importante marco afetivo para skatistas, esportistas, músicos, ativistas culturais, entre outros. Acesse o trailer do documentário realizado pelo cineasta iguaçuano Paulo China em https://www.youtube.com/watch?v=cpoC11Hvbhc

[16] Carta elaborada pelo Coletivo Roque Pense!, em 2012, e na ocasião, lida em público em diversos eventos e publicizada na página do Facebook do Coletivo.

[17] Homicídio cometido contra a mulher ligado ao fato de ela ser mulher.

[18] Saiba mais sobre como foi a campanha de financiamento coletivo: benfeitoria.com/gomeia.

[19] Território Baixada in: youtube.com/watch?v=tzIOt-hlyWo.

dossiê
Tempo de leitura estimado: 37 minutos

ROLEZINHO: TERRITÓRIOS E TERRITORIALIDADES EM CIBERCULTURAS

Resumo: Nas últimas décadas, a cibercultura alavancou práticas sociais e estéticas, inaugurando formatos, linguagens e possibilidades diversas de apropriação material e simbólica do espaço-tempo. Seus pressupostos alargaram brechas de expressão e desenharam horizontes outrora impensáveis de compartilhamento de subjetividades, afirmação de diversidades e mobilidade de autorrepresentações. O artigo analisa estratégias de compartilhamento de territorialidades urbanas em ciberculturas plurais, no contexto das suas relações com sujeitos e territórios, especialmente com os jovens de favelas e periferias urbanas brasileiras. A prática do rolezinho é estudada em suas qualidades de invenção/vivência de territorialidades de encontro e celebração, assim como de enfrentamento de invisibilidades e interdições sociais, tendo como pano de fundo as limitações de espaços comuns e públicos nas condições atuais de urbanidade desigual nas metrópoles.

Palavras-chave: cultura; território; territorialidade; cibercultura.

Abstract: In recent decades, cyber-culture leveraged social and aesthetic practices, emerging with formats, languages and various possibilities of material and symbolic appropriation of space-time. Its assumptions widened expression gaps and drew up unthought-of scenarios of subjectivity sharing, diversity affirmation and mobility of self-representations. The article analyzes urban territoriality sharing strategies in plural cybercultures, in the context of its relations with individuals and territories, especially with young Brazilians from slums and outlying ghettos. The practice of Rolezinho (flashmobs) is, hereby, studied in terms of its invention / experience of get-together and celebration territoriality, as well as confronting social invisibility and interdiction, having as the backdrop the limitations of common and public spaces in the current conditions of unequal urban conditions in cities.

Keywords: culture; territory; territoriality; cyber-culture.

 

Introdução

O debate contemporâneo sobre a relação território e cultura vem trazendo provocações significativas: primeiro, no modo de localizar criativamente esses conceitos como experiências socialmente construídas e, segundo, como apresentação de formas e processos sensíveis do fazer o mundo da vida. Dito em outras palavras, o renovado debate sobre a relação território e cultura funda uma cartografia da expressão dos saberes e fazeres de sujeitos sociais no movimento de realização de si como afirmação de diferenças.

As questões se multiplicam quando se incorpora à discussão o cenário da cibercultura. Sendo estrutural o diálogo entre território e espaço, é de se esperar que a compreensão do ciberespaço, dimensão ubíqua da vida (real) contemporânea, não apenas como dispositivo midiático, mas como espaço socialmente construído, venha agregar novas provocações ao conceito de território e ao seu diálogo com a cultura.

Nas últimas décadas, a cibercultura alavancou práticas sociais e estéticas, inaugurando formatos, linguagens e possibilidades diversas de apropriação material e simbólica do espaço-tempo. Seus pressupostos alargaram brechas de expressão e desenharam horizontes outrora impensáveis de compartilhamento de subjetividades, afirmação de diversidades e mobilidade de autorrepresentações.

Central nesse cenário, a comunicação horizontal e “de muitos para muitos” instigou a invenção de estratégias originais de manifestação de presença, no âmbito da disputa do imaginário (e das espacialidades) da cidade. É nesse sentido que, no contexto contemporâneo de hiperconexão, potencializado pelas tecnologias digitais móveis, entendemos o upload de narrativas não hegemônicas e sua circulação no ciberespaço como processos de criação, afirmação e compartilhamento de territorialidades urbanas em ciberculturas plurais.

Neste artigo, discutimos os rolezinhos: encontros que reúnem milhares de jovens de favelas e periferias urbanas em shopping centers, postos de gasolina e estacionamentos de supermercados em eventos gestados e convocados pelo Facebook. Na maior parte de suas ocorrências, no Rio de Janeiro e em São Paulo, essas manifestações despertaram reações de medo e truculência por parte dos frequentadores habituais desses espaços e da polícia.

A prática do rolezinho é aqui analisada em suas qualidades de invenção/vivência de territorialidades de encontro e celebração, assim como de enfrentamento de invisibilidades e interdições sociais, tendo como pano de fundo as limitações de espaços comuns e públicos nas condições atuais de urbanidade desigual.

O Território na perspectiva da cultura como narrativa estética

O território é uma experiência prático-sensível que responde, em uma primeira mirada, às necessidades de existência da sociedade. Não é sem razão que o território é concebido como um recurso sustentado por relações sociais que nos oferece uma condição fundamental para a vida material em conjunto. Todavia, como informam Bonnemaison & Cambrèzy (1996, p. 10), o território é também domínio de valores éticos, espirituais, simbólicos e afetivos por meio dos quais inventamos nossos abrigos do ser-no-mundo.

Abre-se, portanto, a possibilidade para pensar a relação da cultura e do território de modo abrangente e plural, tendo como referência as práticas sociais compartilhadas. É nesse sentido que podemos compreender que o território encarna uma grafia que combina maneiras de fazer e invenções do saber em estilos de existência diferentes uns dos outros. Revela-se, então, o território como uma experiência de relações entre sujeitos sociais em múltiplas demarcações espaço-temporais. Ou, como nos relembra Souza (2004, p. 86), uma “teia ou rede de relações sociais que, a par de sua complexidade interna, define, ao mesmo tempo, um limite, uma alteridade”.

A relação com o território é, portanto, uma prática criativa não exclusivamente associada à produção de bens e objetos, mas também aos estilos de existência que conferem significado à vida de indivíduos e coletivos sociais. Agora podemos convocar o debate da cultura para além do seu sentido de linguagem de representações imagéticas, buscando trilhar seu entendimento como uma escrita de sujeitos sociais para a apresentação de si com o outro no mundo da vida. Assumimos, então, o desafio de tratar a cultura como produção de significados espirituais e materiais, intelectuais e afetivos que caracterizam o ethos de uma sociedade ou grupo social, implicando o reconhecimento de conflitos, contradições e confrontos nos atos de apropriação e nas intencionalidades de uso do território como configuração de compartilhamentos que criam renovadas sociabilidades.

A relação território e cultura constitui mais do que um campo disciplinar ou intelectual, pois significa uma expressão de tensões e disputas de imaginários sobre o sentido do real. Estas se constituem como formas de linguagem de corpos, vivências, paixões e imaginações que pluralizam as concepções e percepções de horizontes de sentidos. Em outras palavras, estamos diante de narrativas que constituem a posição ocupada e respondem pela disposição de relações dos sujeitos na cena social em construções simbólico-expressivas. E, na sequência desta construção conceitual, indicamos a possibilidade de compreensão dos sujeitos sociais a partir dos territórios forjados nas narrativas prático-sensíveis de suas existências.

Denominaremos, para um abreviamento da descrição excessivamente teórica, a apropriação prático-sensível do território como corporeidade estética. Trata-se da produção grafada de uma narrativa de si como experiência corpórea de figuração do sujeito social diante de outros diferentes e desiguais sujeitos. Na perspectiva em causa, a estética deixa de ser algo exclusivo dos objetos de arte, para assumir uma dimensão das vivências entre sujeitos e territórios, portanto, solenemente distinta da concepção recorrente de juízo do gosto (regime operador de classificações, de classificados e classificadores que definem sobre o que é digno de pertencer à cultura) conferida à concepção recorrente de estética. É Milton Santos (2002) quem nos oferece a possibilidade deste entendimento amplo do sentido do território:

O território é o lugar em que desembocam todas as ações, todas as paixões, todos os poderes, todas as forças, todas as fraquezas, isto é, onde a história do homem plenamente se realiza a partir das manifestações de sua existência (Santos, 2002, p. 13).

Marcamos, guardamos e habitamos territórios como corporeidades estéticas que manifestam os significados complexos do exercício de vida, mesmo que suas fronteiras sejam difusas e voláteis. Afinal, como recurso e abrigo das relações e vivências sociais, o território é sempre permeável às transformações da sociedade. E, quando se trata das condições do contemporâneo, delimitamos nossos territórios em comunicação com outros existentes. Assim, mergulhamos nossas vidas em múltiplas relações de intersubjetividade, sobretudo no atual contexto técnico científico[1], com sua força de transposição de fronteiras espaço-temporais.

De fato, os meios de produção, circulação e consumo simbólico têm se expandido consideravelmente a partir da difusão de tecnologias de informação e comunicação, provocando novas condições de recepção, percepção e experimentação que anulam fronteiras físicas mais ou menos rígidas do passado. Encontros, tensões e colagens culturais passaram a fazer parte de nosso cotidiano de modo intenso e plural, tornando as fronteiras espaço-temporais cada vez mais porosas, permeáveis e não menos conflitivas (Barbosa, 2015). É sob a égide destas novas condições de manifestação da existência que narrativas estéticas rompem clausuras e provocam fissuras, mobilizando sujeitos e atos em projetos de ser-no-mundo.

Não é sem assombro, portanto, que jovens das periferias urbanas inventam, por si mesmos, suas imagens (sonoras, visuais, tácteis) corporificadas e, com elas, movem os desafios sociopolíticos atualmente postos em nossa sociedade. A composição e a difusão de músicas, vídeos, fotografias e bailados por parte das juventudes das favelas e periferias são narrativas de si e de seus territórios que ganham mobilizações muitas vezes inesperadas nas mídias virtuais, fazendo a superação de fronteiras outrora mais rígidas (pela distância física e/ou pelos poderes discricionários estabelecidos) e limitadoras de processos de comunicação e de reconhecimentos com outros.

Queremos afirmar que, cada vez mais, as narrativas estéticas criadas em territórios específicos ganham fluxos de cruzamento de experiências manifestas em dispositivos de sensibilidades, sobretudo quando são apropriados por jovens desapropriados das condições de autoapresentação. Sujeitos e territórios mobilizam dispositivos de produção e comunicação desafiadores das condições de tempo e espaço fixadas por poderes discricionários para proclamarem, a seu modo, a sua inserção no movimento provocado pela nova condição de urbanidade[2] configurada pelos meios tecnológicos.

O processo em causa é criador de territorialidades, aqui definida como marcações móveis que se estabelecem como assinaturas autorais, estilos de produção e mobilização de subjetividades dos sujeitos. É esse o papel assumido das territorialidades como “locais de encontro” que fazem a diferença emergir como potência de mudança e disposição contrapontística aos regimes de hierarquização sociocultural.

Isto não significa concluir que os laços de identidade não se manifestam na convivência em territórios de pertença. Ou afirmar que as relações entre sujeitos e seus territórios se esfumam ou se liquidificam no nomadismo errante de signos autorreferentes. Embora os significados dos laços entre sujeitos e territórios não sejam mais marcados pela unicidade de concepções e de práticas socializadas, as relações de enlace são construídas e se renovam com a multiplicidade de trocas simbólicas realizadas em territorialidades cada vez mais diferenciadas.

É nesse sentido que os ambientes virtuais passam a configurar territorialidades de co-presença e coexistência para multiplicação de narrativas sensíveis e não exclusivamente para aceleração do consumo de sensações e banalização de individualismos. Estamos diante de tensões de recodificação de autores e reconfiguração de conteúdos nas mídias virtuais, fazendo desta um campo de disputas de imaginários.

Para Canevacci (2009), as representações plurais inovam a comunicação digital justamente porque são compostas por sujeitos que refletem de dentro de suas próprias culturas. Todavia, esta inovação da comunicação só se faz possível devido aos sujeitos que criam culturas a partir de seus territórios de existência, uma vez que mobilizam experiências inscritas no cotidiano de construção de seus atos simbólico-expressivos. O sentido de “dentro da cultura” deve ser traduzido como corporeidade estética que vibra em encontros presenciais e virtuais de criação e afirmação de pertenças cujo fundamento é a vivência de apropriação e uso do território. É nesta via que os conteúdos de downloads e uploads podem ser tomados como materiais fundamentais para compreender os repertórios manejados pelos jovens, suas vontades de potência na cena pública e sua condição de ser no/do mundo.

As mídias virtuais assumem a condição contraditória de provocar espetáculos de sensações para o consumo e de serem fissuradas por atos de jovens que exercitam suas potências.  É a partir destes cenários de conflitividades que adentramos ao debate da cibercultura e das suas relações com sujeitos e territórios, especialmente com os jovens de favelas e periferias urbanas brasileiras.

Sujeitos e territorialidades da cibercultura: desafios ao compartilhamento de territórios em redes sociais

As redes sociais não nasceram com a internet ou com a era digital: elas sempre existiram. Na história da Humanidade, elas são o fundamento da sociabilidade, a essência das interações entre pessoas e das trocas de mercadorias, bens materiais, informações e bens simbólicos. Aditivadas pelos avanços tecnológicos nas comunicações e nos transportes, no quadro comumente identificado como globalização, essas trocas econômicas e culturais passaram a ocorrer em escala planetária, extrapolando os limites espaço-temporais que até então conhecíamos. As redes que revolucionam o nosso cotidiano – mais propriamente identificadas como redes sociotécnicas – são as redes sociais de sempre, agora inter/mediadas pelas técnicas do tempo presente[3].

Nas últimas décadas, os chips, as redes e tecnologias digitais de informação e comunicação transbordaram por todos os terrenos do cotidiano, tornando possíveis outros horizontes de expressão e diálogo, de produção de significados e intersubjetividade, de circulação e mobilização de narrativas plurais, de acesso ao conhecimento, de generosidade intelectual e valorização do comum, de compartilhamento e colaboração no sentido da construção da inteligência coletiva desenhada por Pierre Lévy, um dos pesquisadores seminais da cibercultura, que nada mais é que a cultura do século XXI.

Em 1999, P. Lévy já registrava a emergência de uma nova cultura e sinalizava sua potência transformadora de amplo espectro: “longe de ser uma subcultura dos fanáticos pela rede, a cibercultura expressa uma mutação fundamental da própria essência da cultura” (Levy, 1999, p. 247). Trata-se, segundo o autor, de um conjunto de técnicas (materiais e intelectuais), de práticas, de atitudes, de modos de pensamento e de valores que se desenvolvem juntamente com as tecnologias de informação e comunicação.

Na mesma perspectiva, o sociólogo catalão Manuel Castells, em Sociedade em Rede (1999) chamava a atenção para a interferência das mudanças tecnológicas nas estruturas sociais e nos diversos campos das relações humanas. Para este autor, integramos uma estrutura social construída em torno de (mas não determinada por) redes digitais globais de comunicação, contexto que incide diretamente sobre o processo de formação e o exercício das relações de poder, especialmente no campo da cultura. Como nos alertava Castells:

Nossos meios de comunicação são nossas metáforas. Nossas metáforas criam o conteúdo da nossa cultura. Como a cultura é mediada e determinada pela comunicação, as próprias culturas, isto é, nossos sistemas de crenças e códigos historicamente produzidos, são transformados de maneira fundamental pelo novo sistema tecnológico e o serão ainda mais com o passar do tempo. (Castells, 1999, p. 414).

No século XX se fez dominante o modelo comunicacional de broadcast, no qual um emissor único transmite suas mensagens para um grande número de receptores, como acontece no rádio, na televisão e nos jornais. Um modelo em que “um” fala para “muitos”. Na virada do milênio, no entanto, a popularização da internet, do correio eletrônico, dos blogs e das comunidades virtuais propiciou a descentralização da emissão de mensagens, permitindo que “muitos” pudessem falar para “muitos” – o que certamente não é pouco:

A internet é um espaço privilegiado para a mobilização e para as lutas sociais contemporâneas, em função de sua capacitação de agregação de pessoas em diferentes pontos do planeta em torno de uma causa comum, local, transnacional ou global. É na própria internet que se desenvolvem, também, os debates e militâncias sobre o seu futuro (Costa, 2011, p. 110).

Sob esse novo contexto comunicacional, também fortemente dinamizado pela popularização dos aparelhos celulares – que logo agregaram recursos digitais para produção e troca de textos, fotografias, músicas e vídeos – e mais ainda pelas tecnologias móveis, os leitores passivos da comunicação de massas tornaram-se capazes de prover suas próprias narrativas, e colocá-las, eles mesmos, em circulação. Configura-se assim um novo universo de pontos de vista, versões, linguagens, repertórios culturais, experiências afetivas, existenciais e estéticas, agora com outras vozes, cores, sotaques de diferentes territórios que ganham cenas de envolvimento em/com dispositivos de comunicação:

A mediação digital remodela certas atividades cognitivas fundamentais que envolvem a linguagem, a sensibilidade, o conhecimento e a imaginação inventiva. A escrita, a leitura, a escuta, o jogo e a composição musical, a visão e a elaboração das imagens, a concepção, a perícia, o ensino e o aprendizado, reestruturados por dispositivos técnicos inéditos, estão ingressando em novas configurações sociais (Lévy, 1998, p. 17).

As novas práticas, atitudes, modos de pensar e valores que se desenvolvem nesse contexto informacional transcendem, em muito, sua infraestrutura tecnológica material, para mobilizar novas experiências territoriais e, no seu desdobramento de realização, a construção de territorialidades de diferentes manifestações de existências de sujeitos sociais. Emergem assim marcações de pertencimentos para proclamar outras existências e outros territórios contrapontísticos ao regime hegemônico de representações.

É nesse sentido que redes horizontais de produção de informação configuram um poder de comunicação que até então estava concentrado apenas nas grandes corporações de mídia. Cidadãos até então destinados à “invisibilidade social” ousam circular invenções e repertórios que ultrapassam as práticas culturais hegemônicas da cidade. “A rua encontra seus próprios usos para as coisas”, como registra William Gibson em “Burning Chrome”, seu conto cyberpunk publicado em 1982.

A comunicação livre e horizontal, de muitos para muitos, configura essas redes como instrumentos de ação coletiva e construção de significado, envolvendo territórios e territorialidades em rede. Vivenciamos, assim, a complexificação das relações mediadas pela tecnologia e a ressignificação da experiência coletiva – e da própria esfera pública – através de novos modos de comunicação em territorialidades intersubjetivas e comunitárias. É nesta perspectiva que as redes sociotécnicas contribuem para superar os limites dos sistemas informáticos comunicacionais e ganham amplitude na vida cotidiana dos sujeitos, projetando-os em outro lugar social (Mendonça e Castro, 1999, p. 158).

Desenvolvendo formas de organização social através da mediação tecnológica de comunicação, as redes contemporâneas possibilitam a emergência de novas tipologias de laços comunitários, ilustrados pelas comunidades no Facebook e pelos canais no YouTube, ao lado de processos de baixo para cima constituintes de uma instância política alternativa (Costa, 2014, p. 6).

A essa disputa de narrativas, Castells (2007, p. 238) dá o nome de “autocomunicação de massas”, uma forma de comunicação que é específica da sociedade informacional, centrada na articulação de redes horizontais de produção de mensagens e de conhecimento. A capacidade de desenvolver formas de autocomunicação de massa e de construir redes configuram, para o autor, uma nova “capacidade dos atores sociais de confrontarem e, eventualmente, mudarem as relações institucionalizadas de poder em uma sociedade”.

Mídias virtuais, território e territorialidades envolvem experiências prático-sensíveis que abrigam e exteriorizam existências individuais e coletivas. São, portanto, investimentos simbólicos, éticos e estéticos que promovem a visibilidade de sujeitos na disputa de imaginários sobre o significado da sociedade. É justamente tendo esta cena em perspectiva que situamos as práticas populares como o passinho, o tecnobrega e os rolezinhos, por exemplo – forjadas ao largo da indústria cultural e inscritas na interseção de cultura, arte e tecnologia – como sociabilidades que renovam experiências estéticas urbanas e afirmam a pluralidade cultural da cidade, interpelando com vigor os debates sobre democracia, cidadania, direitos culturais e políticas públicas.

É nesse sentido que muitas experiências e experimentações de territorialidades afirmam identidades, promovem a circulação interterritorial de narrativas, desenham um novo campo de inovação cidadã e, a seu modo, retomam para si o diálogo entre virtual e potência anunciado por Lévy (1999). Portanto, compreender a potência de ressignificação de sujeitos sociais e de territórios a partir da formação e afirmação de redes de afeto e intersubjetividades é ratificar a dimensão política desse processo, na busca de enfrentamento à invisibilidade social que incide diretamente sobre os sujeitos dessas vozes.

Rolezinhos como virtualidade e potência para compartilhamentos plurais

Rolés e rolezinhos são expressões que passaram a definir encontros marcados por jovens para invenção de territorialidades de celebração. Atribuídos geralmente aos jovens de favelas e periferias urbanas, notadamente aos vinculados às estéticas do funk, os rolés ganham a dimensão de insurgências diante da proibição e criminalização de bailes e festas por eles protagonizados. Os rolés e rolezinhos passam então a se constituir como marcações de corporeidades estéticas que, embora de duração efêmera, tornam-se emblemáticas porque definem presenças que enfrentam invisibilidades e interdições impostas.

Dar um rolé não é andar a esmo, muito menos fazer errâncias ou perambulações pela cidade. O rolé significa passear para visitar, para conhecer, para encontrar. Praças, esquinas, ruas, praias e estacionamentos de supermercados e de postos de gasolinas demarcaram as cartografias de localização de eventos que passam não só a questionar normativas autoritárias que recorrentemente são dirigidas às expressões populares, com toda a carga de racialização que lhes convém, mas operam também um modo de ser visível na cidade em um processo de des-guetificação de jovens marcados pela distinção corpórea-territorial de direitos.

Se rolés e rolezinhos se constituíram por encontros de indivíduos e grupos a partir de sua identidade de narrativas e da localização de proximidade de seus territórios de morada e circulação, sem demora passaram a ganhar maior densidade e ampliar sua presença em diferentes espaços das cidades, sobretudo pela força adquirida pelos fluxos de suas narrativas estéticas nas mídias virtuais. Facebook, Twitter e WhatsApp construíram trilhas para seguidores colocando em evidência a capacidade individual e coletiva de reconhecimentos de si e para si dos jovens, a partir de suas próprias narrativas simbólicas e de toda carga de possibilidades de mobilização de centenas e milhares de outros jovens para invenção de territorialidades de celebração.

A autocomunicação de massa centrada na articulação horizontalizada de produção de narrativas se tornou um recurso singular para a amplificação de pertencimentos entre jovens de territórios populares, cujas marcações fizeram do rolé, inicialmente, um momento de celebração em seus espaços mais cotidianos de circulação para, em seguida, constituir os rolezinhos, em um movimento de fissuras de fronteiras socioespaciais demarcadas na cidade.

As interações de manifestações de existências do território em comunidades virtuais passaram, assim, a ganhar corpo nas cidades, colocando em causa os constrangimentos provocados pelas fronteiras a que muitos jovens estão submetidos em seu cotidiano (das facções do tráfico, da polícia, da periferia/centro, da favela/asfalto) e, sem dúvida, resultando na não obediência aos códigos de restrição de circulação estabelecidos pelos recortes urbanos de classe social.

Uma das situações mais emblemáticas e de maior notoriedade nos meios de comunicação dessas fissuras de fronteiras foram os rolezinhos em shopping centers. Espaços comerciais privados abertos ao público consumidor, que foram marcados com as apresentações de si dos jovens de periferias e favelas. Tais manifestações, como é sabido, provocaram reações que explicitaram formas e processos contundentes de rejeição e apartação social em curso na sociedade brasileira, sobretudo em espaços de consumo de bens simbólicos distintivos.

Encontros marcados em shopping centers não são novidade para jovens de classe média. Cinemas, praças de alimentação e lanchonetes temáticas se tornaram triviais para namorar, azarar e se divertir[4]. Curiosamente, foram esses mesmos desejos que mobilizaram alguns jovens participantes dos rolezinhos em um shopping na cidade de Cascavel: “É apenas para reunir o povo, fazer novas amizades, dar risadas, cantar uma música, tocar violão, tomar um tereré”. Ou como declararam jovens que estiveram em rolezinhos no shopping Itaquera: “A gente só queria encontrar pessoas que a gente só conhecia pela internet”; “A gente está aqui para se conhecer, trocar ideias e tirar umas fotos”. Aqui se explicita a vontade de sociabilidade mobilizada pelas redes de cibercultura, onde as identidades simbólicas são corporeidades estéticas feitas de hinos, chapéus, bermudas, camisetas, cordões, óculos escuros, gestos, danças, gingas e falas de jovens de favelas e periferias[5].

Algo que parece nada fora do comum se tornou ameaçador. Lojistas fechando portas com medo de furtos e saques. Seguranças agindo com truculência contra prováveis arrastões. Policiais militares plantados às portas de entrada para impedir a entrada de indesejáveis com cassetetes e bombas de gás lacrimogênio. São cenas descritas em muitas cidades e que ganharam o noticiário dos meios de comunicação em todo país. Pudera, cerca de seis mil jovens se encontraram no Shopping Metrô Itaquera (em oito de dezembro de 2013) para o assombro da administração do centro comercial e de seus frequentadores habituais. Logo depois, dia 14 de dezembro, novamente 2,5 mil jovens estavam presentes no Shopping Internacional de Guarulhos e, embora não tenha havido nenhum registro de roubos ou saques, 20 suspeitos foram detidos e levados para uma delegacia policial. Outros encontros marcados pelas redes sociais em shoppings, como os de Campo Limpo e JK Iguatemi, foram interditados por liminares da Justiça que autorizaram a segurança dos centros comerciais a restringir a entrada de jovens.

Os rolezinhos para conhecer “as minas, cantar e tirar uma foto com as fãs” foram tomados como perigosos, assustadores e ameaçadores o suficiente para provocar liminares judiciais e truculência policial voltadas a impedir e reprimir a presença de funkeiros[6] que quebram os códigos de conduta das classes médias em seus templos de consumo. Por outro lado, a reação autoritária e agressiva desmedida contra a presença de jovens convocados para “passear, cantar e azarar” revela não só uma intolerância contra os diferentes, mas também a força de corporeidades estéticas na disputa social sobre o significado da cidade como espaço social comum e público.

É certo que os rolés de jovens de periferia já existiam em shoppings, sobretudo pela limitada presença de equipamentos públicos de cultura e lazer de qualidade em seus bairros, tornando os shoppings um dos poucos espaços para seus encontros de sociabilidade[7]. Todavia, a novidade é quando eles se convertem em um movimento de apresentação em massa e passam a emergir em diferentes cidades do país, inclusive com apropriações da expressão em distintos perfis sociais, desde os dos “famosinhos” aos de causas políticas mais ou menos explícitas, incluindo entre elas os rolezinhos de universitários, os rolezões de trabalhadores sem teto e os rolés de movimentos de mulheres. Todavia, o que está em causa é um movimento das representações virtuais às apresentações corpóreas como potência de redes de intersubjetividades para enfrentamento à invisibilidade de sujeitos, para reivindicações políticas de grupos sociais e de manifestações advindas de territórios na ordem urbana da desigualdade.

É interessante também observar o retorno das apresentações corporificadas em dispositivos de comunicação em compartilhamentos e curtidas em comunidades de Facebook, em mensagens via Twitter e Whatsapp, assim como em postagens nos canais do YouTube. Neste último, ao digitarmos a palavras rolés e rolezinhos encontramos como resposta a indicação de centenas de postagens de vídeos, algumas delas com mais de 100 mil visualizações. A força simbólica de provocar tensões, questionamentos e provocações continua ativa, circulando imaginários e imaginações sobre a mobilização de subjetividades de jovens das periferias urbanas. Parafraseando W. Gibson: os sujeitos inventam seus próprios sentidos e usos para as coisas que desejam compartilhar.

Os rolés e rolezinhos continuam a existir como memória de atos que tensionaram espaços ordenados e estabelecidos para usos exclusivos de classe e como virtualidades de ações de jovens que desejam ser protagonistas de suas próprias representações e de seus territórios de existências. É nesse sentido que as chamadas “comunidades de internet” se colocam como mediações poderosas de sociabilidade que não substituem encontros presenciais, uma vez que ensejam e complementam relações de reconhecimento sociocultural para além de um âmbito geográfico específico.

Pode-se afirmar, então, que os rolezinhos se tornaram eventos que combinam o virtual à potência das redes sociotécnicas para a apropriação prático-sensível de espaços interditos e interditados da cidade. Se não podemos fazer uma métrica política das conquistas objetivas das territorialidades efêmeras como as dos rolés e rolezinhos, deve-se considerar, entretanto, que as trocas de subjetividades mobilizadas em redes da cibercultura correspondem às buscas cotidianas de legitimidade da presença corpórea de jovens de favelas e periferias em metrópoles profundamente desiguais. Nesse, sentido, os compartilhamentos virtuais são frutos e sementes de encontros em territórios e, a seu modo, revelam potências de afirmação de grupos subalternizados na cena cultural e política contemporânea.

Considerações finais (para iniciar novas conversações)

Apesar da aparente sensação de que “todo mundo está na rede”, a Internet World Stats[8], entidade que monitora a difusão da rede mundial de computadores, mostra que somente 42,4% da população do planeta têm acesso à rede, o que corresponde a 3,08 bilhões de pessoas conectadas. Isso significa que a centralidade da internet em grande parte das áreas da atividade social, econômica e política significa marginalidade para quase 60% da Humanidade, que a ela não têm acesso, ou têm acesso limitado por algum motivo, seja político, econômico ou de outra ordem.

A desigualdade é mais gravemente percebida quando se leva em conta a distribuição dos internautas: enquanto na América do Norte o percentual da população conectada é de 86,9%, na África esse número cai para 27,5%, passando por 34,8% na Ásia (incluindo o Japão); 48,1% no Oriente Médio; 52,4% na América Latina e Caribe[9]; 70,4% na Europa e 72,1% na Oceania/Austrália.

Quando se considera todos os conectados do mundo, 75% deles estão em 20 países (o Brasil está em quinto lugar nesse ranking). Os 25% restantes estão distribuídos entre 178 países, cada um com penetração de menos de 1% de sua população. Estados Unidos, Alemanha, França, Reino Unido e Canadá têm mais de 80% de suas populações conectadas.

Esses números representam a chamada “divisão digital” ou “brecha digital” e traçam o mapa da exclusão digital no mundo. Manuel Castells (1999a) considera que a geração de riqueza, o exercício do poder e a criação de códigos culturais passaram a depender da capacidade tecnológica das sociedades e dos indivíduos. No quadro da desigualdade digital do planeta, aponta o que identifica como “o quarto mundo”:

Por intermédio da tecnologia, redes de capital, de trabalho, de informação e de mercados conectaram funções, pessoas e locais valiosos ao redor do mundo, ao mesmo tempo em que desconectaram as populações e territórios desprovidos de valor e interesse para a dinâmica do capitalismo global. Seguiram-se exclusão social e não-pertinência econômica de segmentos de sociedades, de áreas urbanas, de regiões e de países inteiros, constituindo o que eu chamo de “o quarto mundo” (Castells, 1999a, p. 412).

O autor alerta que a sociedade pode sufocar, incentivar ou priorizar caminhos para seu desenvolvimento tecnológico. Ganha ênfase, portanto, o papel fundamental do Estado de capitanear a formulação de políticas públicas que, ao incentivar a universalização da apropriação das tecnologias digitais e a prática de uma cultura das redes, exercitem seu papel maior, de contribuir para a efetivação de cidadania:

Sem dúvida, a habilidade ou inabilidade de as sociedades dominarem a tecnologia e, em especial, aquelas tecnologias que são estrategicamente decisivas em cada período histórico, traça seu destino a ponto de podermos dizer que, embora não determine a evolução histórica e a transformação social, a tecnologia (ou sua falta) incorpora a capacidade de transformação das sociedades, bem como os usos que as sociedades, sempre em um processo conflituoso, decidem dar ao seu potencial tecnológico (Castells, 1999a, p. 44).

O Brasil é considerado um fenômeno na assimilação das redes sociais e das tecnologias digitais. Em uma de suas várias visitas de observação sobre a apropriação dos paradigmas ciberculturais, no ano de 2007, John Perry Barlow, fundador da Electronic Frontier Foundation (EFF), uma das mais importantes organizações dedicadas à defesa das liberdades civis no mundo digital, registrou: “O Brasil é, naturalmente, uma sociedade em rede”[10].

Exemplo disso foi o Orkut que, pouco depois de chegar por aqui, teve seu perfil original de usuários inteiramente modificado: “ricos-brancos-com-diplomas-universitários perderam a maioria e o espaço foi ‘invadido’ por gente mais pobre, mais negra, de baixa escolaridade”[11], suscitando a criação do neologismo discricionário “orkutização”.

Tal singularidade é também ilustrada por inúmeras práticas culturais originais que aqui tiveram lugar, como o tecnobrega, o passinho, as batalhas de barbeiros e a cena dos saraus que se expandem pela cidade, articuladas e convocadas pelas redes, a explosão das lanhouses pelas periferias de todo o país, e o próprio rolezinho, abordado neste artigo.

Como fio inicial para novas conversações, podemos pensar os passinhos e rolezinhos em sua dimensão lúdica, que toma o espaço urbano como terreno de jogo, criando espaços e tempos diferenciados e conjugando mobilidades que se dão na relação entre o espaço tangível e o virtual, no contexto do que André Lemos (2008) identifica como “território informacional”. De acordo com J. Huizinga (1980), um dos mais reconhecidos estudiosos desse campo, é no e pelo jogo que as culturas nascem e se desenvolvem. Eles integram o patrimônio imaterial dos diferentes grupos sociais e são importantes operadores de espacialidades:

O jogo é um excelente operador de espacialidade. Produz socialmente o espaço pela criação de tempo e lugar próprios que “suspendem” as funções práticas e utilitárias do dia-a-dia (o que alguns autores chamam de “círculo mágico”), modificando o uso habitual do espaço-tempo pelo efeito lúdico (Lemos, 2008).

O ciberespaço inclui, de acordo com Lévy, não apenas a infraestrutura material da comunicação digital e o oceano de informações que ela abriga, mas também os seres humanos que nele navegam e o alimentam. Um universo que, incessantemente, se interroga com voz plural sobre sua identidade intangível: “Ao se autodescrever, a rede se autoproduz. Cada mapa invoca um território futuro e os territórios do ciberespaço são recobertos por mapas que retraçam outros mapas, em abismo” (Lévy, 1999, p. 17 e p. 208).

As novas cartografias de práticas inventivas ganham nas ciberculturas um portal de afirmação e comunicação de sujeitos autônomos, mas que se fazem coletivos ao expressar suas territorialidades de encontro. Estamos diante de exercícios cotidianos de (com)viver, sob pressupostos de igualdade que incorporam as diferenças nos mapas das existências. Compartilhar é habitar uma mesma morada de múltiplos desejos.

REFERÊNCIAS

BARBOSA, Jorge Luiz. O território e o popular na condição urbana da cultura. Revista de Cultura Boca Coletiva. Rio de Janeiro: Al-Farabi Editorial, nº1, 2015.

BONNEMAISON, J. et CAMBRÉZY, L. Le lien territorial: entre frontiéres et identités. Géographies et  Cultures nº 20, Paris, L’Harmattan, 1986

CANEVACCI, Massimo. Antropologia da comunicação visual. São Paulo. Ed. Brasiliense, 2009.

CASTELLS, Manuel. Communication power. Oxford: Oxford University Press, 2009.

CASTELLS, Manuel. Communication, power and counter-power in the network society. International Journal of Communication, vol. 1, p. 238-266, 2007.

CASTELLS, Manuel.  A galáxia da Internet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

CASTELLS, Manuel.  A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

CASTELLS, Manuel. A era da internet. São Paulo: Paz e Terra, 1999a.

COSTA, Eliane. Jangada digital. Rio de Janeiro: Ed. Azougue, 2011.

COSTA, Eliane; AGUSTINI, Gabriela (orgs.) De baixo para cima. Rio de Janeiro, Ed. Aeroplano, 2014

FOUCAULT, M.; RABINOW, P. The Foucault reader, 1984.

GIBSON, William. Burning Chrome. Omni Magazine, Julho/1982.

LEVY, Pierre. O que é o virtual. São Paulo: Ed. 34, 1996.

LEVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Ed. 34, 1999.

LEVY, Pierre. A inteligência coletiva. Ed. La Découverte, 1994.

MENDONÇA, Carmos M. Camargos; CASTRO, Maria Célia Pimenta Spínola. Redes Sociotécnicas: espaço de inter-relação entre a cognição e a comunicação. In: Revista Informática Pública, Ano 1, n. 2. Belo Horizonte, 1999.

SANTOS, Milton. O dinheiro e o território. In: Territórios, territórios. Niterói/ Rio de Janeiro. PPGEO/UFF; DPA Editora. 2ª edição: 2006.

SANTOS, Milton. O retorno do território.  OSAL – Observatório Social de América Latina. Ano 6, no. 16 (junho/2005). Buenos Aires: CLACSO, 2005.

SANTOS, Milton. A natureza do espaço.  São Paulo: Ed. USP, 4ª edição: 2002.

SOUZA, Marcelo Lopes de. O território: sobre espaço e poder, autonomia e desenvolvimento. In: CASTRO, Iná Elias de; GOMES, Paulo Cesar da Costa; CORRÊA, Robato Lobato (orgs). Geografia: conceitos e temas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.

[1] No atual contexto técnico-científico, os meios e os objetos tendem a ser ao mesmo tempo técnicos e informacionais devido à extrema intencionalidade de sua produção social e de sua localização geográfica. A energia principal do funcionamento destes meios e objetos é informação, tornando seu controle e sua difusão um novo modo de poder.  É nesta perspectiva que a ciência, a tecnologia e a informação passam a coordenar decisivamente os processos de produção, circulação e comunicação socioespaciais (Santos, 2014).

[2] Definimos como urbanidade um momento atual de generalização da sociedade urbana que estabelece e faz a extensão geográfica de valores, práticas, expectativas e perspectivas a partir de referências da vida urbana. Isto implica conceber o espaço urbano contemporâneo como uma experiência comunicacional, para além de seus atributos e conteúdos de forma e função objetivas e materiais.

[3] As técnicas têm forte influência na formação de novos comportamentos e novas culturas. Todavia, não é possível admitir-se que esta mesma técnica tenha se desenvolvido fora do contexto das transformações nas relações humanas que a presidem (Foucault, Rabinow, 1984).

[4] São 30,7 milhões de jovens de 16 a 24 anos no Brasil e pelo menos 50 % deles vai a shoppings uma vez ao ano (IBGE, 2010; Data Folha, 2013).

[5] Há um forte vínculo dessas incursões de massa em shoppings com a estética do funk de ostentação, cujo repertório evoca o consumo de bens como sensação de prazer e valor de distinção social. De certo modo, o imaginário da ostentação posiciona os jovens da periferia na cena de valores sobre os quais as classes médias e altas julgam ter exclusividade. Vida é ter um Hyundai e uma Hornet / Dez mil pra gastar com Rolex e Juliet / Melhores kits, vários investimentos / Ah como é bom ser o top do momento” (MC Danado). A exaltação do luxo e do consumo, interpretada como adesão ao sistema, tornou o funk de ostentação objeto de muitas críticas e recriminações. Entretanto, os rolezinhos – e a repressão sofrida por seus protagonistas – deram a esta estética do funk uma “marca de resistência”, inclusive por parte de seus mais veementes críticos.

[6] Expressão que não é nada lisonjeira ou de reconhecimento de uma identidade. Funkeiros ganha uma forte conotação preconceituosa de jovens negros e sua presença coletiva criminalizada como arrastão. Na verdade, estamos diante da rejeição sem disfarce de indivíduos e grupos sociais em determinados espaços da cidade, preconizada no discurso de gerentes, lojistas e clientes de shoppings centers onde ocorreram os eventos de rolezinhos, e reverberado exaustivamente nas mensagens de mídias dos meios de comunicação de massa.

[7] Jefferson Luís, 20 anos, um dos organizadores do rolezinho do Shopping Internacional de Guarulhos, em entrevista ao jornal O Globo afirmou de modo contundente: “Não seria um protesto, seria uma resposta à opressão. Não dá para ficar em casa trancado”.

[8] http://www.internetworldstats.com/stats.htm, dados de 31/12/2014.

[9] A América Latina e Caribe têm 182,8 milhões de usuários conectados. A taxa de penetração em cada país (percentual da população conectada) é liderada pelo Chile, com 50,4%, seguido da Argentina, com 48,9%, Colombia, com 47,6%, e Brasil, com 36,2%. A média de crescimento na América Latina e Caribe, de 2000 a 2009 é de 927,2%, sendo que o crescimento do Brasil no período foi de 1.340,6%.

[10] Entrevista de Barlow ao blog Ecologia Digital em setembro de 2007 (http://ecodigital.blogspot.com.br/2008/02/john-barlow-explica-o-fenmeno-orkut-no.html)

[11] A constatação está no artigo “A orkutização do cotidiano brasileiro”, de autoria de Hermano Vianna, Ronaldo Lemos, Ale Youssef e José Marcelo Zacchi, que integrou a publicação Vozes da Classe Média (Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, setembro/12).

dossiê
Tempo de leitura estimado: 30 minutos

A TERRITORIALIZAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE CULTURA

Resumo: Este artigo reconstitui algumas das principais iniciativas empreendidas pela Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro com o objetivo de reconhecer e fomentar ações culturais realizadas nas periferias, favelas, subúrbios e territórios populares da cidade. O texto enfatiza a implementação da Rede Carioca de Pontos de Cultura e o edital de Ações Locais, pautados pela lógica da descentralização territorial e da democratização do acesso aos recursos públicos.

Palavras-chave: políticas públicas; cultura; Rio de Janeiro; territórios; descentralização.

Abstract: This article reconstitutes some of the main initiatives undertaken by the Municipal Secretariat of Culture of Rio de Janeiro in order to recognize and promote cultural activities carried out in the peripheries, slums, suburbs and popular territories of the city. The text emphasizes the implementation of the Rede Carioca de Pontos de Cultura and the Ações Locais programme, based on the logic of territorial decentralization and democratization of access to public resources.

Keywords: public policies; culture; Rio de Janeiro; territories; decentralization.

 

Antes, um preâmbulo: este texto refletirá o lugar híbrido a partir do qual escrevo, mantendo um pé na gestão pública de cultura e outro na pesquisa. Para ser mais exata, explorarei este espaço de reflexão a partir de minha experiência como gestora na Secretaria Municipal de Cultura (SMC) do município do Rio, onde trabalho desde 2013.

Não foi um ano qualquer. Do ponto de vista político, vivia-se um momento tão vigoroso quanto conturbado: nas ruas, sequenciadas manifestações deflagravam os limites dos discursos, ações e instrumentos políticos usuais, questionando os princípios e o modus operandi que conduzem a rotina da administração pública, em todas as suas esferas. O que estava em pauta era a insuficiência do repertório político contemporâneo (tanto o conceitual quanto o pragmático) para dar conta das questões complexas que se impõem nestes tempos. Não se vislumbrava, no entanto, um conjunto determinado e estruturado de diretrizes e práticas que pudessem vir a substituir aquilo que era posto em questão. Antes de constituir-se como um tempo vazio de perspectiva, tratava-se de um momento positivamente caótico, que trazia consigo promissoras aberturas e brechas.

No que diz respeito especificamente ao ambiente político-cultural do Rio, o que se podia constatar era um flagrante descompasso entre produção e gestão pública. De um lado, uma cena volumosa e diversificada exigia a reinvenção e a consolidação de canais de fomento e diálogo. De outro, um novo quadro gestor, capitaneado pelo então Secretário Sérgio Sá Leitão, assumia um órgão com razoável disponibilidade orçamentária[1], mas deficiente em infraestrutura, estratégia administrativa, planejamento e definição de prioridades.

Foi naquele atípico ano que algumas ações estruturantes foram postas em marcha pela SMC. A implementação de uma recém-modernizada Lei do ISS (que, redigida em colaboração entre legislativo municipal e alguns grupos da sociedade civil, garantiu a ampliação do investimento privado via incentivo fiscal) e o lançamento do Programa de Fomento à Cultura Carioca (que sistematizou o conjunto de editais, regularizou seu cronograma e ampliou a quantidade de linhas de apoio financeiro direto) marcaram o início de um ciclo de incremento e consolidação do investimento municipal em projetos culturais.

Apesar de tais ações responderem a um determinado setor da produção que aguardava iniciativas de apoio mais robustas e estratégicas, não se pode ignorar o fato de que elas se direcionavam, em grande medida, a uma camada de agentes culturais que já participava do “radar” da admninistração pública municipal, tanto no que diz respeito às relações de investimento quanto no que toca à participação em processos de governança. A maioria deles caracteriza-se por estar sediado no Centro ou na Zona Sul do município, por possuir formalização jurídica e por dispor de pessoal profissionalizado em gestão de projetos.

“Virada territorial”

Enquanto isso, tronava-se cada vez mais flagrante um processo de complexificação do panorama de produção cultural carioca: agentes, projetos e ações que ainda não participavam do quadro de fomento público redesenhavam a carta cultural da cidade de fora para dentro, das margens para o centro. A partir de iniciativas engendradas desde as bordas da cidade, criavam-se novos circuitos, cenas e rotas. Eles estendiam-se uns sobre os outros, desdobravam-se, contaminavam-se, formavam redes e revezavam seus lugares, de modo que o antigo e estável mapa cultural do Rio via-se posto sob suspeita.

Tais margens e bordas não se referiam apenas aos limites geográficos do município, como também aos limiares do poder e da institucionalidade. Nestas cartas culturais novas e moventes, tudo aquilo que antes constituía periferia tendia agora a assumir outras posições, revelando como possíveis novas centralidades culturais. Bairros pobres, territórios populares, favelas, vielas, becos e esquinas, assim como realizadores (muitas vezes informais) que fazem cultura cotidianamente, porém sem suporte oficial ou infraestrutura pública, visibilizavam-se e reivindicavam reconhecimento.

Seria exagero (e até erro histórico) afirmar que se tratasse de um fenômeno recente ou exclusivo do Rio de Janeiro. A emergência daquilo a que se convencionou chamar de “cultura de periferia”[2] ganha força e projeção há pelo menos uma década, a ponto de vir tensionando, em todo o Brasil, o desenvolvimento de políticas públicas direcionadas especificamente para este campo. O que então se revelava cada vez mais paradoxal e espantoso era a constatação de que, em uma metrópole com produção tão profícua nas suas regiões e circuitos periféricos, como o Rio, não houvesse um conjunto de iniciativas públicas que desse conta do fortalecimento e do apoio a ações que crescem fora das rotas onde o capital transita com mais fluidez e dos circuitos onde as instituições se fortalecem.

Seria preciso, então, que à emergência das ações culturais realizadas por agentes periféricos e nas periferias do Rio correspondesse um esforço de atualização da gestão, no sentido não apenas de reconhecer tal movimento, como de fomentá-lo. Lançando mão do termo proposto pelo professor e pesquisador Jorge Luiz Barbosa a respeito da consolidação da cena cultural de periferia, eu diria que era o momento (talvez já tardio) de a administração municipal passar a acompanhar a “virada territorial”[3] já deflagrada no panorama de produção da cidade.

As Zonas Norte e Oeste no mapa

O lançamento do edital da Rede Carioca de Pontos de Cultura foi a primeira medida empreendida pela SMC para que os territórios periféricos passassem a compor, com presença mais marcante, o seu mapa de fomento. Previsto desde fins de 2009,  quando da assinatura de um convênio entre a Prefeitura do Rio e o Ministério da Cultura no âmbito do Programa Cultura Viva, o pleito era não somente aguardado como enfaticamente exigido em situações públicas, a exemplo da última Conferência Municipal de Cultura. Ele garantiu que 50 instituições da sociedade civil, sem fins lucrativos e ativadoras de projetos com dimensão comunitária, passassem a ser reconhecidas como Pontos de Cultura, com direito a receber o aporte de R$ 180 mil (divididos em três parcelas de R$ 60 mil, desembolsadas ao longo de três anos)[4].

Definidos como “um organizador da cultura no nível local, atuando como um ponto de recepção e irradiação de cultura” (Turino, 2009. p. 64), os Pontos de Cultura se constituíram, na última década, como um conceito que impulsionou possibilidades — inicialmente em escala federal e mais tarde em âmbito estadual e municipal — de efetivação de políticas públicas voltadas para a cidadania e a diversidade cultural. Talvez ainda mais importante para a matéria aqui explorada, eles contribuíram para introduzir, no panorama das ações governamentais, o tema e a importância da sua “descentralização territorial” ou da sua “regionalização”. Isto se deu em função da dimensão “local” que o conceito de Ponto de Cultura carrega consigo e, sobretudo, porque seu aparecimento pôs ênfase em grupos e comunidades atuantes em territórios, áreas e regiões do Brasil antes relegados à situação de invisibilidade cultural e política.

Até 2013, existiam 119 Pontos de Cultura na cidade, somando-se aqueles que haviam sido reconhecidos pelo MinC e pelo Governo do Estado por meio de editais próprios. Um estudo cartográfico realizado pela SMC em parceria com o Instituto Pereira Passos constatou que eles estavam, sua grande maioria (diga-se, 83 Pontos daquele total), localizados no Centro e na Zona Sul cariocas, o que vinha a reproduzir o diagnóstico de concentração verificado no âmbito das políticas municipais de fomento direto e indireto.

Uma vez que o município tem, por vocação e estrutura, mais chances de compreender e atuar sobre a realidade específica de cada um de seus territórios — a escala de gestão municipal é por definição a escala local —, o edital da Rede Carioca apresentou-se como a chance de atenuar tal desequilíbrio. Sua composição foi desde o início orientada pela lógica da descentralização territorial: o documento exigia que ao menos 60% (isto é, 30 dos 50) Pontos de Cultura contemplados desenvolvessem atividades nas Zonas Norte e Oeste[5]. A estratégia foi desenvolvida de modo a priorizar as zonas mais “descobertas”, sem excluir do pleito as favelas e territórios populares situados no Centro e na Zona Sul.

Era a primeira vez que a SMC trabalhava com “cotas territoriais”. E, uma vez que tinham como intenção alcançar proponentes ainda não contemplados pelas políticas governamentais, elas exigiam o investimento em instrumentos de divulgação diferenciais. Além de um grande esforço de mobilização via meios digitais (utilizando-se sobretudo as redes sociais), uma equipe itinerou pela cidade realizando reuniões presenciais de esclarecimento e capacitação para as inscrições. Ao final do período de submissão de propostas, o ciclo chamado “Caravana Viva” havia feito 23 paradas em 20 bairros, envolvendo 250 agentes culturais.

Uma primeira análise do material de inscrições apontou para o êxito da estratégia: em torno de 60% dos projetos submetidos eram atuantes nas áreas prioritárias, o que, além de corresponder com precisão à cota territorial indicada no edital, comprovava a demanda por fomento oriunda dessas regiões. Ademais, o processo seletivo pode constatar a qualificação dos trabalhos realizados nas áreas ditas periféricas.

Como resultado, o conjunto de Pontos de Cultura conveniados com o município foi composto de maneira equilibrada territorialmente: 14 Pontos de Cultura selecionados atuam no Centro, 10 na Zona Sul, 12 na Zona Norte e 17 na Zona Oeste. O edital pode ser entendido como o início de uma relação de fomento entre a gestão municipal e a cena cultural de bairros como Bangu (onde está o Ponto de Cultura Caixa de Surpresa), Sepetiba (Na Era do Rádio), Campo Grande (Radar – Rede de Articulação e Dinamização da Arte) e Realengo (Música Sustentável Lata Doida), para mencionar alguns da Zona Oeste.

A implementação da Rede Carioca concluiu-se com a realização dos editais de Pontos de Leitura[6] e de Pontões de Cultura[7]. Apesar de nestes dois casos não ter sido estabelecida cota territorial fixa, a valorização de ações que mobilizam bairros e regiões periféricos do Rio pautou os critérios de avaliação previstos em ambos os processos seletivos. A partir de então, a lógica da priorização de territórios periféricos passaria a conduzir uma série de outras ações da gestão.

Além do impasse da formalização

O processo de estabelecimento da Rede Carioca de Pontos de Cultura tornou evidente a urgência de formulação de uma gama de ações governamentais específicas para a cultura feita nas áreas periféricas do Rio, iniciativas de apoio que se relacionassem com os diversos territórios da cidade de maneira mais profunda e complexa. Tal constatação pôs a SMC diante de um limite e de um desafio: o flagrante quadro de informalidade que rege as relações culturais em tais áreas, situação que termina por distanciá-los das perspectivas e possibilidades de relação com o Estado, dada sua lógica formal e acima de tudo burocratizante.

O limiar da informalidade pôde ser constatado, por exemplo, durante o processo de circulação para divulgação do edital de Pontos. Uma série de projetos com natureza e formato afins com o edital não puderam concorrer ao pleito por não estarem vinculados a um CNPJ (obrigatoriamente idôneo e, neste caso, constituído há pelo menos três anos). Muitos realizadores associaram-se a determinadas organizações tão somente para participarem da concorrência, lançando mão de uma estratégia de “gambiarra burocrática”, que se faz como prática comum no ambiente cultural, mas que se revela frágil como instrumento de vínculo com o Estado.

Cabe aqui esclarecer adicionalmente que, em sendo selecionada para se tornar um Ponto de Cultura, a instituição proponente deve assinar um termo de convênio com a administração pública. Tal instrumento implica rígidas regras jurídicas e administrativas, restritivas condições de desembolso do recurso financeiro recebido e não menos estreitas normas de prestação de contas. O convênio pressupõe, portanto, um alto nível de estruturação institucional e de gestão por parte do beneficiário, condição raramente vista entre os Pontos de Cultura. Trata-se de um paradoxo instalado na base do Programa Cultura Viva[8], que chegou a acarretar a inclusão de numerosas organizações em cadastros de inadimplência.

Diante do histórico exposto, no esforço de desdobramento de políticas orientadas aos territórios e circuitos periféricos cariocas, foi de início descartado o investimento em ações de incentivo ou encorajamento à passagem da informalidade à institucionalização. Tal movimento, que se poderia revelar a longo prazo como construtivo (já que a relação entre Estado e instituições é menos onerosa em termos fiscais e tributários), talvez se mostrasse insuficiente para um necessário primeiro contato da gestão municipal com os realizadores em questão. Aderindo-se à obrigatoriedade da institucionalização, permaneceriam restando fora de quadro aqueles agenciamentos cuja composição é por natureza fluida e maleável, não possuindo por “vocação” a formalização jurídica.

Seria necessária, ao menos em um momento inicial, uma estratégia que favorecesse e tornasse mais leve o reconhecimento mútuo entre gestão pública e realizadores de periferia, dois campos até então apartados. Em vez de investir em formalizar os informais, revelava-se mais produtivo distender as rotinas rígidas e burocráticas embutidas nos procedimentos de fomento do Estado (muitas delas não fundamentadas em leis, mas em determinadas “culturas administrativas” internalizadas pelos servidores), tornando a administração pública mais permeável à realidade da produção cultural em questão.

É como uma forma de superar esse impasse que surge, em 2014, o Edital de Ações Locais. Primeiro instrumento de fomento da SMC orientado a realizadores não formalizados, não necessariamente profissionalizados em gestão de projetos, mas capazes de ativar fluxos culturais em escala local nos diversos territórios do Rio, ele tem como linhas mestras a democratização do acesso ao fomento público (fazendo o recurso chegar até a ponta, sem intermediação) e a desburocratização da relação entre agentes culturais e a administração pública.

Vinculadas às áreas da cultura, da arte, da comunicação e do conhecimento, as ações locais podem ser realizadas por grupos ou indivíduos maiores de 15 anos. Ao serem selecionadas por meio do edital, seus proponentes recebem o aporte de R$ 40 mil, comprometendo-se a reaplicá-los em sua manutenção ao longo de um ano, seja por meio de investimento em infraestrutura (compra de equipamento ou material de consumo, aluguel de sede, dentre outros) ou pagamento de serviços (cachês, autorremuneração etc.).

Local, território, comunidade

São consideradas “ações locais” práticas, atividades e projetos continuados, que promovam impacto positivo nos territórios e comunidades em que são realizados. A definição é intencionalmente ampla, para que dê conta de uma gama de iniciativas de naturezas diversas, ampliando tanto quanto possível o escopo da iniciativa pública. Preferiu-se utilizar o termo “ação” pela sua força de ressaltar a presença de um gesto que já se efetiva (mais do que a projeção de um ideal a ser alcançado) e, ainda, por invocar uma tendência à hibridez e à intersetorialidade verificada contemporanemente nas artes e na cultura, como ressalta George Yudice (2014, s/p.) em suas considerações a respeito das “ações culturais”:

A ação cultural explora repertórios muito diversos de códigos que nos permitem articular as competências cognitivas humanas: visuais, dramatúrgicas, lógicas, emocionais, gastronômicas etc. A abordagem é mais integral, abrange todas as maneiras de ser e fazer (…). A ação cultural tem uma vantagem que a diferencia das iniciativas da modernidade: não se movimenta segundo compartimentos autônomos (arte, emprego, lazer, educação, mercado, direito, segurança etc). Seus gestores operam em complexas cadeias de articulação, possibilitando a intersetorialidade e a abertura da arte e da cultura a novas linguagens e narrativas.

Seguindo ainda o princípio da abrangência, o edital emprega os termos “local”, “territórios” e “comunidades” de forma praticamente indistinta e sem defini-los conceitualmente. A ideia é, justamente, explorar a amplitude semântica de tais expressões, de forma a incorporar aquilo que elas invocam de relação com um pedaço de chão definível em termos materiais; das forças políticas e de controle que ali se efetivam; e das dimensões simbólicas, imaginárias, representativas ou subjetivas que carregam. “Local”, “território” e “comunidade” são assumidos na sua indecidibilidade material e o abstrato, ou melhor, sua utilização indiscriminada procura “jogar” com esses dois extremos, considerando ambos. Assim, se os realizadores de uma ação que acontece em um hospital psiquiátrico têm dificuldade de apontar qual o seu “território”, poderão com mais conforto justificar que ela tem lugar em uma “comunidade clínica”, por exemplo.

O que importa apontar é que a alusão aos termos “local”, “território” e “comunidade”, apesar da maneira propositalmente indistinta como é feita, tem a intenção de criar um ambiente de proximidade com realizadores atuantes em espacialidades que se encontram historicamente fora do escopo ou do campo de intencionalidade das políticas municipais de cultura, queira-se conferir a tais espacialidades o nome favelas, subúrbios, territórios populares, periferias ou similares. Da mesma maneira, pretende-se conferir atenção especial àqueles redutos em que se criam relações de cidadania e reconhecimento de direitos por meio de ações culturais,  como praças, instituições clínicas ou penitenciárias, centros comunitários etc. É com a intenção de incorporar as experiências vividas em tais configurações espaciais ao seu repertório de reconhecimento e fomento que a SMC utiliza o termo “ações locais”.

Da forma como disposta no edital, a definição de “ação local” torna-se mais restritiva apenas quando exige que as iniciativas inscritas apresentem continuidade (diferenciando-se da produção de eventos pontuais, que não desdobram ou são desdobrados por vínculos fortes com o entorno) e comprovem promover transformações positivas nas comunidades e territórios cariocas. O que se procura identificar, no processo de avaliação, é a forma como tais ações são capazes de impactar, redefinir ou, principalmente, criar campos existenciais compartilhados, por meio da mobilização de impulsos culturais, artísticos, cognoscentes  comunicacionais.

Cabe aqui uma observação: com o termo “transformação”, não se supõe encontrar na ação local uma intenção deliberada de libertação, resgate ou redenção com relação a um determinado contexto ou espacialidade degradada, danificada ou decomposta — seja ela material, social ou simbólica. Não há, por assim dizer, um intuito “moralizante” embutido na qualificação da “transformação positiva”, tampouco uma tentativa de enxergar, no realizador cultural, um agente com potencial messiânico de salvação. Procura-se, nas iniciativas em questão, aquilo que há de invenção de novas vidas coletivas, de abertura de campos de experiência compartilhados. Quando a ação é efetuada — e muitas vezes a despeito de condições absolutamente adversas que a rondam —, ela recria, reelabora ou mesmo inaugura um espaço de vida em comum. Este espaço é o “local” da ação.

Questão de método

“O trabalho do pobre é fenomenológico: primeiro você faz, depois você corre atrás do sentido”, assim definiu recentemente o professor Veríssimo Junior, idealizador e coordenador do projeto Teatro da Laje, a dinâmica de realização das ações culturais oriundas de periferia. O que o edital de Ações Locais procura fazer é, justamente, se aproximar dessa “fenomenologia da ação”, dessa prevalência da atuação concreta no mundo, antes de tentar inquirir um sentido organizado que seja pressuposto ou anterior à prática cultural. É a prática, em suma, o que aqui interessa.

Por isso (além de exigir um esforço de negociação “intrainstitucional” necessário para garantir a aceitabilidade jurídica e administrativa de seus termos), o edital impeliu a gestão a empreender uma série de estratégias de execução distintas dos padrões usualmente adotados em editais de fomento. Em meio a este campo de experimentação metodológica, podem-se destacar alguns pontos diferenciais:

  1. Durante o período de inscrições, é ativada uma equipe de articuladores locais, profissionais com experiência na área cultural, escolhidos por apresentarem conhecimento acerca das dinâmicas culturais das comunidades e territórios do Rio, além de grande capital de rede. Seu “trabalho de campo” consiste em mapear possíveis proponentes, mobilizá-los para a submissão no edital e oferecer suporte durante todo o processo. Divididos em cinco equipes, eles cobrem todas as Áreas de Planejamento da cidade (ver nota 6), com autonomia para desenvolverem métodos originais de mobilização. Alguns de eficácia comprovada são “mutirões de inscrição” (grandes encontros, em espaços públicos ou institucionais, em que se reúnem agentes culturais segundo afinidade territorial ou de linguagem artístico-cultural), as “visitas domésticas” (atendimentos individuais nas casas dos proponentes para preenchimento dos formulários) e os “ataques” (ações de divulgação sem agendamento prévio nos locais e horários em que as ações potencialmente candidatas estão transcorrendo).
  2. A inscrição no Edital de Ações Locais realiza-se por meio do preenchimento de um formulário facilitado, orientado por perguntas simples. Respondendo-as, o proponente narra o histórico da ação e discorre sobre seu impacto no território. Não é exigido, assim, que o agente inscrito formate sua submissão no usual modelo projetual, segundo as categorias de “apresentação”, “objetivo” e “justificativa”, por demais abstratas para um mecanismo que se pretende comunicativo e democrático. Junto ao formulário, o proponente anexa o portfólio da ação e três depoimentos (em vídeo ou escritos) de pessoas residentes no local em que ela acontece. Os depoimentos são um recurso de referenciamento, fundamental para assegurar o reconhecimento da atividade pela comunidade local.
  3. Avaliadas por uma primeira comissão técnica, as inscrições com pontuação acima da determinada em edital recebem uma chancela de Ação Local. É um certificado de reconhecimento emitido pela Prefeitura que permite participação em outros editais municipais (como em uma linha de fomento da RioFilme desenhada especificamente para projetos audiovisuais de Pontos de Cultura e Ações Locais chanceladas) e propicia ainda a bonificação de pontuação em determinados pleitos (como nos editais de Ações Locais lançados em 2015, em que os chancelados foram valorizados). Na prática, a chancela também pode facilitar a negociação de parcerias em nível local, demandas de apoios culturais, pedidos de cessão de espaço etc.
  4. As ações locais mais bem pontuadas na avaliação do formulário são encaminhadas à fase de escuta, uma rodada de encontros presenciais realizados entre a banca final e os proponentes das ações. Afastando-se de uma ambiência de arguição ou defesa, o momento de explanação oral significa a abertura do processo seletivo para campos expressivos alternativos, acolhendo maneiras outras de narrar e discursar sobre o fazer cultural, para além da competência escrita. Momento decisivo do edital, após a escuta é divulgada a lista dos selecionados.
  5. Por se tratar de um mecanismo de premiação, o Ações Locais dispensa a apresentação, por parte dos realizadores premiados, das notas fiscais referentes à execução do valor recebido. Pede-se, entretanto, que o proponente apresente relatórios e materiais de registro que comprovem que o dinheiro foi investido na ação, de modo a ampliá-la e fortalecê-la, sob pena de ter de devolvê-lo. Abre-se mão, assim, do controle severo sobre a execução estritamente financeira da verba pública — um modelo de inspeção que, apesar de usual no Brasil, pouco diz ao Estado sobre o sucesso e o impacto da ação investida — em prol do foco na demonstração de resultados. Trata-se de uma mudança de ênfase no método de prestação de contas, cada vez mais necessária no panorama das políticas públicas que pretendem estabelecer uma relação saudável, desburocratizada e não punitiva entre Estado e realizadores culturais.

Ao final de sua primeira edição, o edital de Ações Locais chegou ao número de 850 proponentes inscritos e 612 chancelados, dos quais 85 foram premiados. Informações levantadas ao longo do processo seletivo permitiram ao jornal O Globo produzir um “mapa da cultura carioca feita na raça”. Nele, se pode visualizar um quadro geográfico que distoa bastante daqueles gerados a partir dos demais editais de fomento lançados em âmbito municipal.

“Mapa da cultura carioca feita na raça”. Filgueiras, Mariana. Jornal O Globo, 30/06/2015. http://oglobo.globo.com/cultura/o-mapa-da-cultura-carioca-feita-na-raca-16305108
“Mapa da cultura carioca feita na raça”. Filgueiras, Mariana. Jornal O Globo, 30/06/2015. http://oglobo.globo.com/cultura/o-mapa-da-cultura-carioca-feita-na-raca-16305108

Maior região da cidade em termos de extensão territorial e área mais povoada do município (isto é, a que possui maior número de habitantes em termos absolutos), a Zona Oeste[9] é a região com maior número de iniciativas chanceladas, somando 27% do total. Já a Zona Norte, área mais populosa (com maior número de habitantes por metro quadrado), representa 25% do panorama de ações locais. Em terceiro lugar vem a Zona Sul, com 18%, seguida do Centro, com 15%. Outros 15% são relativos a ações que declaram atuar em mais de uma região da cidade.

A criação de um território institucional

No início de 2015, como desdobramento do trabalho focado nas relações territoriais e comunitárias que impulsionam as dinâmicas culturais cariocas, a Coordenadoria de Cultura e Cidadania — instância até então responsável por formular e executar as iniciativas governamentais aqui narradas — passou ao estatuto de Subsecretaria de Cidadania e Diversidade Cultural. Estruturada em duas gerências (uma voltada à Rede Carioca de Pontos de Cultura e outra ao Ações Locais), a criação da SubCDC foi uma das primeiras ações do atual Secretário Marcelo Calero à frente do órgão. Tal processo conferiu robustez formal a um espaço em que novas lógicas e estratégias de trabalho vêm sendo formuladas, experimentadas, postas à prova e tem começado a sinalizar consolidação.

Neste último ano, a experiência do Ações Locais prolongou-se em três outras iniciativas de fomento, que reproduzem integralmente sua metodologia. O edital Territórios de Cultura experimentou aplicar o método em escalas menores, como que sobrepondo uma lupa à realidade de determinados contextos, a saber, os territórios de Senador Camará e Vila Kennedy, Compelxo do Alemão e Penha e Complexo da Maré[10]. Mais uma vez, o edital do prêmio de Ações Locais foi realizado, nos mesmos termos da edição anterior[11]. E o edital Ações Locais — Festival Cidade Olímpica, por sua vez, elencou 140 artistas locais para se apresentarem em palcos da cidade durante o período olímpico e paralímpico. Com objetivo similar a este último, apesar de aderir a um modelo de seleção mais tradicional, o edital Pontos de Cultura — Cidade Olímpica escolheu ainda cinco instituições sediadas no Rio para dinamizarem suas atividades ao longo do mesmo período. Somando todos os editais postos em curso pela SubCDC neste ciclo, 230 projetos e organizações são contemplados.

O histórico aqui narrado procura remontar uma sequência de iniciativas de fomento empreendidas com o objetivo de possibilitar uma inflexão mais popular, descentralizada e democrática no âmbito da gestão pública municipal de cultura. Para que se tornem de fato uma política, com conteúdo e perfil programáticos, seria necessário garantir continuidade a tais iniciativas — o que se pode fazer por decisão deliberada de governo, por pressão da sociedade civil ou pela proposição de legislação específica. Restam ainda, como próximos passos, os desafios de se implementarem ações específicas de fortalecimento de processos estéticos e desenvolvimento institucional aos agentes e circuitos que passaram a ser contemplados, de forma que oportunidades novas e promissoras para eles se abram. Apenas a continuidade e o aprofundamento de experiências de aproximação com a cidade e com realizadores culturais podem fazer com que o Estado, por sua natureza tão apartado da vida de quem habita o território, passe a ser capaz de operar um reconhecimento mais complexo e mais real das dinâmicas e demandas culturais da cidade, permitindo fortalecer seu âmbito de atuação.


REFERÊNCIAS

BARBOSA, Jorge Luiz. “Territorialidades da Cultura Popular na Cidade do Rio de Janeiro”. In: Pragmatizes, Ano 4, número 7, semestral, setembro de 2014.

COSTA, Eliane. Jangada digital: Gilberto Gil e as políticas públicas para as culturas das redes. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2011.

COSTA, Eliane & AGUSTINI, Gabriela (orgs.). De baixo pra cima. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2014.

DANTAS, Aline; MELLO, Marisa S. & PASSOS, Pamela (Org.) Política cultural com as periferias: práticas e indagações de uma problemática contemporânea. Rio de Janeiro: IFRJ, 2013.

FERRAZ, Joana Varon & LEMOS, Ronaldo. Pontos de Cultura e lan houses: estruturas para inovação na base da pirâmide social. Rio de Janeiro: Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getúlio Vargas, 2011.

FILGUEIRAS, Mariana. “Mapa da cultura carioca feita ‘na raça’. Jornal O Globo, 30/06/2015.

HAESBAERT, Rogério. O mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à multiterritorialidade. 3 ed. Rio de Janeiro: Bertand Brasil, 2007.

HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Cultura como recurso. Salvador: Secretaria de Cultura do Estado da Bahia, Fundação Pedro Calmon, 2012.

SANTOS, Milton [et. Al] Território, territórios. Ensaios sobre o ordenamento territorial. 3 ed. Rio de Janeiro: Lamparina, 2011.

SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. 4 ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2012 (Coleção Milton Santos, vol. 1).

SAVAZONI, Rodrigo. A onda rosa-choque: reflexões sobre redes, cultura e política contemporânea. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2013.

SILVA, Jailson de Souza e; BARBOSA, Jorge Luiz & FAUSTINI, Marcus. O novo carioca. Rio de Janeiro: Mórula Editorial, 2012.

TURINO, Celio. Ponto de Cultura: o Brasil de baixo pra cima. 2 ed. São Paulo: Anita Garibaldi, 2010.

YÚDICE, George. A Conveniência da cultura: usos da cultura na era global. Trad. Marie-Anne Kremer. Belo Horizonte: Editora UFMG,  2013.

YÚDICE, George. “Ação cultural, mudança social”. Jornal O Globo, 15/03/2014: http://blogs.oglobo.globo.com/prosa/post/acao-cultural-mudanca-social-artigo-de-george-yudice-527641.html

[1] No ano de 2013, o orçamento da SMC somou R$ 219 milhões, que correspondem a 0,93% do orçamento total da Prefeitura naquele exercício (um percentual alto com relação ao panorama histórico de investimentos públicos em cultura em todo o Brasil, que raramente se aproxima de 1%).

[2] Apesar de, no contexto carioca, o uso do termo “periferia” não ser tão forte e recorrente quanto em outras metrólopoles (como em São Paulo, por exemplo), utilizarei aqui a expressão para me referir às espacialidades que se viram historicamente apartadas dos processos de reconhecimento e financiamento cultural públicos, tais como favelas, subúrbios, territórios populares etc.

[3] A expressão foi utilizada pelo professor em sua fala durante a abertura do seminário “Territórios Culturais RJ”, realizado pela Secretaria de Estado de Cultura, no dia 21 de janeiro de 2016.

[4] São investidos ao todo R$ 9 milhões por meio do edital de Pontos da Rede Carioca.

[5] Na linguagem administrativa da Prefeitura, a Área de Planejamento 1 corresponde ao Centro; a AP2 à Zona Sul e Tijuca; a AP3 à Zona Norte, as APs 4 e 5 à Zona Oeste.

[6] Previsto em convênio apartado do da Rede Carioca, o edital de Pontos de Leitura premiou 16 instituições que desenvolvem projetos comunitários voltados para livro e leitura. Cada selecionado recebeu R$ 20 mil reais. O montante de investimento somou R$ 320 mil.

[7] O convênio que viabiliza a Rede Carioca de Pontos de Cultura permitiu o reconhecimento de seis Pontões de Cultura. Foi selecionada uma instituição para cada uma das seguintes diretrizes transversais: Formação para Gestão Cultural, Comunicação e Cultura Digital, Infância & Juventude, Cultura & Educação, Economia Viva e Observatório & Memória (a última linha não foi preenchida por ausência de projetos classificados). Cada projeto selecionado recebe o valor de R$ 1,2 milhões. O montante de investimento do edital somou R$ 7,2 milhões.

[8] É preciso contemporizar que tal paradoxo foi amenizado com a sanção da Lei Cultura Viva (Lei Nº 13.018, de 22 de julho de 2014) e sua consequente regulamentação (Instrução Normativa 01, de 07 de abril de 2015), redigidas com o objetivo de desburocratizar a relação do Estado com os Pontos.

[9] Considera-se aqui a soma das Aps 4 e 5 — ver nota 6.

[10] São selecionados 15 realizadores culturais em cada território; cada um dos 45 premiados recebe o valor de R$ 25 mil, perfazendo o investimento de R$ 1, 1 milhão.

[11] Dessa vez foram contempladas 40 ações locais com o prêmio de R$ 40 mil cada, o que soma R$ 1,6 milhão investidos.

dossiê
Tempo de leitura estimado: 22 minutos

DOS ARREDORES DA PRAÇA ONZE AOS TERREIROS DE OSWALDO CRUZ

Resumo: O artigo busca entender as relações entre as reformas urbanas do Rio de Janeiro e as culturas oriundas da diáspora africana no pós-abolição da escravatura. Considera que este processo está intimamente ligado ao surgimento do samba carioca e aponta para a possibilidade de o Rio de Janeiro ser entendido como uma cidade de Pequenas Áfricas, questionando a ideia de que havia uma singularidade da presença negra restrita à Praça Onze de Junho.

Palavras-chaves: reformas urbanas; Rio de Janeiro; diáspora africana

Abstract: This article investigates the relationships between the urban reforms of Rio de Janeiro and the cultures that have derived from the African Diaspora after the abolition of slavery. The present work considers this process as closely linked to the emergence of samba, indicating the possibility of Rio de Janeiro being understood as a city of small Africas and questioning the idea that there was a singularity of black presence restricted to Praça Onze de Junho.

Keywords: urban reforms; Rio de Janeiro; African diaspora

 

Marques Rebelo, grande cronista das coisas do Rio de Janeiro, dizia que uma cidade é feita de várias cidades. Cada uma dessas cidades, acrescento, têm seus espaços de construção de memórias e desenvolve formas peculiares de se experimentar a vida e abordar o mundo.

A cidade é também e sobretudo produtora constante de cultura, entendida aqui como um conjunto de práticas e elaborações simbólicas definidoras e dinamizadoras de modos de vida. Nesta perspectiva, cultura não é coisa naturalmente boa ou ruim. Cultura é a maneira como um grupo cria ou reelabora formas de vida e estabelece significados complexos sobre a realidade que o cerca. As maneiras de falar, vestir, comer, rezar, punir, matar, nascer, enterrar os mortos, chorar, festejar, envelhecer, dançar, não dançar, fazer música, silenciar, gritar.

Além de feitas de memórias, as cidades também se caracterizam pelos seus lugares de esquecimento, territórios do efêmero. Os lugares de memória são, ao contrário, territórios de permanência; espaços inventados pelos homens em suas geografias de ritos.

É neste horizonte feito do que há e do que já não há, tensionado por lugares de memória e lugares de esquecimento, que se inscrevem as culturas oriundas da costa africana e redefinidas na cidade do Rio de Janeiro, inicialmente a partir do recorte medonho do cativeiro.

A experiência da escravidão africana nas Américas é, a rigor, uma experiência de dispersão, fragmentação, quebra de laços associativos e morte, simbólica e literal. Ela também é, ao mesmo tempo, uma experiência de reconstrução constante de práticas de coesão, invenção de identidades, dinamização de sociabilidades e vida. A chibata que bate no lombo e a baqueta que bate no couro do tambor são as duas faces dessa moeda.

Em suma, e este é o sentido do que acima foi insinuado, as culturas africanas, aparentemente destroçadas pela fragmentação trazida pela experiência do cativeiro, se redefiniram a partir da criação, no Brasil, e mais especificamente no Rio de Janeiro, de instituições associativas (zungus, terreiros de santo, agremiações carnavalescas etc.) de invenção, construção, manutenção e dinamização de identidades comunitárias.

A problematização destes aspectos exige um mergulho na historicidade do processo de abolição da escravatura no Brasil e da transição entre a República e a Monarquia.

A cidade republicana

Os primeiros governos republicanos incriminaram as diversas manifestações da cultura popular no Rio de Janeiro — quase todas marcadamente vinculadas às áfricas que existem nas ruas cariocas. Jogar capoeira passou a ser crime pelo Código Penal de 1890 (Dias, 2001), os terreiros de macumba foram sistematicamente reprimidos e a posse de um pandeiro era suficiente para a polícia enquadrar o sambista na lei de repressão à vadiagem, conforme aconteceu com João da Baiana. Os intelectuais do período — com raras exceções — pregavam a necessidade de se promover um branqueamento da população brasileira como garantia de civilizar as nossas gentes em padrões europeus.

Quando a escravidão terminou, houve uma deliberada política de atrair imigrantes europeus para o Brasil. Não há qualquer registro de iniciativa pública que tenha pensado na integração do ex-escravo ao exercício pleno da cidadania e ao mercado formal de trabalho. A ideia era mesmo a de estimular a imigração de brancos do Velho Mundo. O modelo de abolição da escravatura no Brasil foi resumido com rara felicidade em uma única frase do samba da Mangueira de 1988: “… livre do açoite da senzala / preso na miséria da favela” (Hélio Turco e Jurandir — 100 anos de liberdade, realidade ou ilusão).

Uma das primeiras leis de estímulo à imigração no período falava que o Brasil abria as portas, sem restrições, para a chegada dos imigrantes europeus. Africanos e asiáticos, porém, só poderiam entrar com autorização do Congresso Nacional, em cotas preestabelecidas. Mais do que encontrar mão de obra, a imigração no Brasil foi estimulada como meio de branquear a população e instituir hábitos ocidentais entre os nossos (Sevcenko, 2003).

É exatamente dentro desse contexto racista e discriminatório do pós-abolição que começa a ser gerada a reação a essa política pública elitista, de recorte francamente cosmopolita: a cultura da fresta como meio de reinvenção da vida e construção de uma noção de pertencimento ao grupo e ao espaço urbano.

É também neste contexto emblemático que começa a ocupação mais sistemática dos morros do Rio de Janeiro, com a formação das favelas a partir da ocupação do Morro da Providência, estimulada, na década de 1890, pela derrubada do cortiço Cabeça de Porco e pela volta de soldados que lutaram na Guerra de Canudos. O contexto do período inicial do século XX é marcado por duas ideias que norteiam a atuação do poder público em relação à cidade e seus habitantes: civilizar, interferindo no espaço urbano e nos hábitos cotidianos; higienizar, através da assepsia proporcionada pela vacina e pela saga apostolar do Doutor Oswaldo Cruz.

O ato de civilizar era visto como uma tentativa de impor à cidade padrões urbanos e comportamentais similares às capitais europeias, especialmente Paris. Foi essa a perspectiva da reforma urbana de 1904, projetada pelo prefeito Pereira Passos e seus asseclas – o mandatário era um declarado devoto de Haussmann, o responsável pela reforma urbana da capital francesa nos tempos de Napoleão III.

A reorganização do espaço urbano teve o objetivo de consolidar a inserção do Brasil no modelo capitalista internacional, facilitar a circulação de mercadorias [inviabilizada pelas características coloniais da região central, com  ruas estreitas que dificultavam a ligação com a Zona Portuária] e construir espaços simbólicos que afirmassem os valores de uma elite cosmopolita. Era o sonho da Belle Époque tropical.

Havia, porém, um obstáculo a ser removido para a concretização da Cidade Maravilhosa: os pobres que habitavam as ruas centrais da cidade e moravam em habitações coletivas, como cortiços e casas de cômodos – sobretudo os descendentes de escravos, mestiços e imigrantes portugueses.

A solução encontrada pelo poder público foi simples e impactante; começou o “bota abaixo”, com o sugestivo mote de propaganda O Rio civiliza-se. Mais de setecentas habitações coletivas foram demolidas em curto espaço de tempo.

Dentre outras intervenções urbanas, foi aberta a Avenida Central (atual Rio Branco); demolido o Largo de São Domingos, para a abertura da atual Avenida Passos; demolidas as casas paralelas aos Arcos da Lapa e ao Morro do Senado, para abrir a passagem à Avenida Mem de Sá; alargadas as ruas Sete de Setembro e da Carioca; abertas as avenidas Beira Mar e Atlântica e concluído o alargamento da Rua da Vala [atual Uruguaiana].

Rio de Janeiro, Avenida Central — Marc Ferrez.
Rio de Janeiro, Avenida Central — Marc Ferrez.

A reforma pretendia resolver uma série de problemas e contradições da cidade e gerava uma indagação: o que fazer com os homens e mulheres que os governos definiam como “elementos das classes perigosas”, habitavam as regiões centrais e eram obstáculos à concretização da Paris tropical?

A relação das elites e do poder público com os pobres era paradoxal. Os “perigosos” maculavam, do ponto de vista da ocupação e reordenação do espaço urbano, o sonho da cidade moderna e cosmopolita. Para isso, era necessário controlar, vigiar e impor padrões e regras preestabelecidas a todas as esferas da vida (Sevcenko,1986, 33). Ao mesmo tempo, falamos dos trabalhadores urbanos que sustentavam — ao realizar o trabalho braçal que as elites não cogitavam fazer — a viabilidade deste mesmo sonho: operários, empregadas domésticas, seguranças, porteiros, soldados, policiais, feirantes, jornaleiros, mecânicos, coveiros, floristas, caçadores de ratos, desentupidores de bueiros.

Como uma espécie de aparente paradoxo que escancara a complexidade da questão, os habitantes dos cortiços eram necessários, dentre outras coisas, para realizar o trabalho braçal da demolição dos cortiços.

A população pobre, ao mesmo tempo repelida e necessária, tinha duas opções: morar nos subúrbios ou ocupar os morros centrais. A vantagem da ocupação dos morros, evidente para os dois lados, era a maior proximidade dos locais de trabalho: não tão perto que possam macular a cidade restaurada e higienizada, não tão longe que obriguem as elites a realizar os serviços domésticos que, poucas décadas antes, eram tarefas das mucamas de sinhá.

A ocupação dos morros retrata, então, as contradições de uma cidade que se pretende moderna e cosmopolita e é, ao mesmo tempo, marcada pelo esteio ideológico de trezentos anos de trabalho escravo. Os séculos de cativeiro e chibata geraram uma brutal desvalorização dos serviços manuais e dos seus praticantes. Eram eles, os pobres, vistos como desprovidos de cultura. Tinham, porém, a força necessária para o trabalho pesado.

Nesta cidade marcada pela tentativa dos detentores do poder de extirpar as referências à herança africana, as diversas manifestações culturais das populações negras, exatamente aquelas que engendravam novos laços de sociabilidade e reforçavam convívios comunitários, eram sistematicamente perseguidas: a roda de samba, as festas religiosas, as maltas de capoeira, os blocos carnavalescos e batuques diversos.

A Lei de Vadiagem aprovada no Código Penal sancionado em 1890, estabelecia que o ato de vadiar passasse a ser contravenção. Foi baseado nela que o poder público reprimiu, amparado pela legalidade, rodas de samba e festas de candomblé.

Tal postura das elites brasileiras se articula a uma constatação de Frantz Fanon: o racismo herdado do colonialismo se manifesta explicitamente — e com mais furor — a partir de características físicas, mas não apenas aí. A discriminação também se estabelece a partir da inferiorização de bens simbólicos daqueles a quem o colonialismo tenta submeter: crenças, danças, comidas, visões de mundo, formas de celebrar a vida, enterrar os mortos, educar as crianças etc (Fanon, 2008).

O discurso do colonizador europeu em relação ao índio e ao africano consagrou a ideia de que estes seriam naturalmente atrasados, despossuídos de história. Apenas elementos externos a eles – a ciência, o cristianismo, a democracia representativa, a economia de mercado, a escola ocidental etc. – poderiam inseri-los naquilo que imaginamos ser a história da humanidade. É a tentativa, em suma, de impor um olhar homogêneo sobre o mundo.

É evidente que a tensão que apresentamos refletiu-se na configuração do espaço urbano carioca. A tentativa de excluir das áreas centrais e aniquilar a cultura das populações descendentes de negros escravizados, em uma cidade que se pretendia cosmopolita e cartão postal de um Brasil preparado para se inserir no processo de expansão capitalista, é das aventuras mais contundentes do processo de configuração do Rio de Janeiro e até hoje ressoa nas nossas ruas, como memória ou como esquecimento que grita exatamente pela ausência.

Um dos redutos negros mais contundentes, ampliado exatamente neste contexto, é aquele que se estendeu entre a Praça Onze de Junho e as proximidades da atual Praça Mauá, na Zona Portuária. Inspirado por uma declaração de Heitor dos Prazeres, que afirmou ser a Praça Onze, no início do século XX, uma África em miniatura, Roberto Moura cunhou para a região o epíteto de “Pequena África” (Moura, 1983).

A Praça Onze era um retângulo entre as ruas Visconde de Itaúna e Senador Euzébio, fechado pelas ruas de Santana e Marquês de Pombal (Lopes e Simas, 2015, p. 225). Por ela desfilavam ranchos e escolas de samba e ocorriam encontros entre comunidades negras do Rio, para confraternizações e também para confrontos em torno das rodas de pernada e batucada. A demolição da Praça Onze, a partir da década de 1940, é a destruição de um dos lugares mais significativos da história das culturas negras no Rio de Janeiro e mais um emblema deste conflito que estamos sugerindo.

Foi na Praça Onze, por exemplo, que morou Aciata de Oxum, a Tia Ciata, yakekerê (mãe pequena) da casa de candomblé de João Alabá, situada na Rua Barão de São Felix, e uma das personagens mais emblemáticas da cidade negra carioca. As tias eram, de modo geral, baianas que exerciam no Rio de Janeiro o papel de lideranças comunitárias legitimadas pelo exercício do sacerdócio religioso. Elas criaram redes de proteção social fundamentais para a comunidade negra. Além de Ciata, nomes como os de Tia Prisciliana (mãe de João da Baiana), Tia Amélia (mãe de Donga), Tia Veridiana e Tia Mônica (mãe de Carmem da Xibuca e de Pendengo) fazem parte deste universo.

Outras Pequenas Áfricas cariocas

A ideia de uma Praça Onze como uma África encravada em um Rio de Janeiro tensionado pelo sonho cosmopolita de suas elites é consagrada não só no imaginário popular como também na produção literária e historiográfica sobre a cidade. A alcunha de “berço do samba”, tantas vezes usada para se referir ao local, é exemplar disso.

Não obstante o indiscutível relevo e centralidade da Praça Onze neste processo, o estudo mais sistemático sobre a cidade e o samba urbano mostra ser mais coerente se falar de um Rio de Janeiro de pequenas áfricas. A cristalização da ideia de uma África encravada no coração da cidade ganhou contornos quase mitológicos, ainda que fundamentados em referências orais e escritas que atestem a importância da região.

A despeito disso, devemos lembrar que as reconfigurações urbanas da cidade foram expandindo o Rio de Janeiro cada vez mais para a Zona Norte, para o subúrbio e para o alto dos morros. Comunidades negras acabaram tendo papeis de absoluta relevância no processo de ocupação dessas regiões. Um caso emblemático e exemplar, que abordaremos mais detalhadamente por ser emblemático desta ideia de tantas Áfricas que se espraiam pelo Rio, é o do bairro de Oswaldo Cruz.

Para se falar de Oswaldo Cruz, convém começar pela Freguesia de Irajá. Ela foi criada no século XVII, a partir da divisão de uma sesmaria no Vale de Inhaúma e com o tempo se transformou em uma das principais zonas de abastecimento da cidade do Rio de Janeiro, produzindo frutas tropicais, aguardente de cana, hortaliças e produtos para construção — telhas e tijolos — saídos de suas olarias. O abastecimento da cidade era feito por um pequeno porto situado na foz do Rio Irajá, de onde as embarcações desciam até o canal do Rio Meriti, e seguiam por outros pequenos canais que desaguavam na Baía da Guanabara (Simas, 2012, p. 27).

A crise do trabalho escravo desarticulou a economia agrária e marcou o declínio econômico de toda a região. A partir deste contexto, as grandes propriedades do Campo de Irajá foram loteadas e ocupadas, sobretudo, por ex-escravos e homens pobres, oriundos do Vale do Paraíba.

Com as reformas urbanas do início da República, notadamente a citada reforma de Pereira Passos, aumenta vertiginosamente a ocupação dos morros das regiões mais próximas ao centro — especialmente no Estácio, na Tijuca, na Saúde e em Vila Isabel — e também de alguns logradouros do subúrbio.

Uma das propriedades mais famosas da região de Irajá era a Fazenda do Campinho, pertencente ao Capitão Francisco Ignácio do Canto e arrendada em meados do século XIX pelo boiadeiro Lourenço Madureira. Do loteamento dessa fazenda surgiram os bairros de Campinho e Madureira. Ambos assistiram a um aumento exponencial no número de moradores nas primeiras décadas do século XX. Oswaldo Cruz, bem perto de Madureira, surgiu a partir do loteamento de terras que pertenceram ao português Miguel Gonçalves Portela, na região do vale do Rio das Pedras, concentrando grande parte do rebanho bovino da cidade.

Entre a segunda metade do século XIX (tempos da Monarquia) e as primeiras décadas do século XX, ocorre a extensão da linha ferroviária da Estrada de Ferro Central do Brasil — que até a Proclamação da República, em 1889, se chamava Estrada de Ferro Dom Pedro II — ao subúrbio. A estação de trens integra cada vez mais Oswaldo Cruz aos bairros vizinhos, com economias mais fortes, e ao próprio Centro, que se manteve como local de trabalho da maior parte da população economicamente ativa da cidade (Simas, 2012, p. 29).

Os poucos relatos existentes sobre Oswaldo Cruz nesta época descrevem uma região essencialmente rural. Não havia água encanada, luz elétrica e calçamento. As ruas eram cortadas por valões que dificultavam a passagem dos habitantes, obrigados a se locomover a pé ou a cavalo. O comércio era feito entre vários currais e se resumia a alguns armazéns e bares que, vez por outra, tinham que expulsar bois e vacas que adentravam os estabelecimentos.

Nesse bairro sem maiores atrativos, quase sem opções de lazer e um verdadeiro contraponto de um centro da cidade que se embelezava em padrões europeus, a comunidade de Oswaldo Cruz se integrava. Organizando festas e construindo sociabilidades em torno das macumbas de origem afro-brasileiras, da nascente umbanda, dos batuques dos sambas e das rodas de dança do jongo e do caxambu, danças oriundas dos negros bantos Vale do Paraíba, os moradores construíam laços de pertencimento e identidade.

Dentre os festeiros mais conhecidos de Oswaldo Cruz se destacavam Napoleão José do Nascimento, conhecido como Seu Napoleão — pai de Natal, personagem marcante da história da Portela, do jogo do bicho e de todo o subúrbio carioca — e as yalorixás (mães de santo) Dona Martinha e Dona Neném. Ali perto, em Quintino Bocaiúva, batia seus tambores outro terreiro famoso entre a comunidade de descendentes de africanos, o de Madalena Rica, mais conhecida como Mãe Madalena do Xangô de Ouro. As giras de macumba geralmente abriam caminho para as rodas de samba e os sambas de roda.

O citado Seu Napoleão tinha uma irmã, Dona Benedita, que morava na Rua Maia Lacerda, no Estácio de Sá, e era amiga dos compositores que, naquele momento, inventavam um novo tipo de samba, mais adequado ao desfile em cortejo do que o samba amaxixado que então vigorava no Rio de Janeiro: Ismael Silva, Brancura, Aurélio, Baiaco, Bide e outros iam a Oswaldo Cruz acompanhando Dona Benedita. Normalmente participavam das canjiras de macumba e depois comandavam as rodas de samba.

Outra festeira que marcou a história de Oswaldo Cruz foi a dona de casa Esther Maria Rodrigues (citada em alguns relatos como Esther Maria de Jesus). Dona Ester era iniciada no candomblé e adorava carnaval. Fora porta-estandarte do Cordão Estrela Solitária, que desfilava no carnaval pelas ruas próximas ao Largo do Neco, entre Turiaçu e Madureira. Algumas das festas de Dona Esther chegavam a durar dois dias seguidos, atraindo figuras de todos os cantos do Rio de Janeiro.

De certa maneira, Dona Ester foi uma espécie de Tia Ciata suburbana: uma mãe de santo que foi tia do samba. Sua casa foi um ponto de encontro, troca de experiências, criação de pertencimentos, formação de rede de proteção social e centro dinâmico de incessante produção de cultura.

A figura de matriarca representada por Dona Ester foi fundamental na posterior fundação da Portela, a escola de samba que só foi possível porque Oswaldo Cruz era também uma Pequena África do Rio de Janeiro, assim como a Praça Onze e tantos outros lugares.

Conclusão: na trajetória de Paulo, uma pista

Este pequeno texto parte da perspectiva de que as culturas oriundas da costa africana se redefinem no Rio de Janeiro a partir da criação de experiências associativas. Estas, fundamentalmente, se articulam como contrapontos potentes à fragmentação típica de experiências diaspóricas.

A aventura civilizatória dos negros cariocas interagiu de formas tensas e intensas com as transformações urbanas que a cidade vivenciou, especialmente nos primeiros anos da República. A construção de uma cidade cosmopolita dependia da criminalização dos saberes negros.

Nesse processo, redutos de descendentes de africanos funcionaram como verdadeiros territórios de pertencimento e circulação de saberes não canônicos, que afrontavam o recorte ocidentalizante que a cidade cosmopolita pretendia ter. A Pequena África, nos arredores da Praça Onze, é seu exemplo seminal, tendo se consagrado nas narrativas sobre a cidade como um caso quase isolado.

Sem desconsiderar a importância da Praça Onze, sugerimos que o Rio é uma cidade de diversas pequenas áfricas e o fenômeno de surgimento do samba carioca acompanha os constantes fluxos de deslocamento da população negra dentro do Rio de Janeiro e é mais simultâneo entre o porto, os morros e os subúrbios do que supõe a narrativa consagrada sobre o tema. Inúmeros pontos da cidade se articularam como espaços de circulação dos saberes que vierem do lado africano do Atlântico e aqui se redefiniram. Um exemplo é o bairro suburbano de Oswaldo Cruz. Outros exemplos também seriam pertinentes para se falar desses ambientes marcados pelas micro-diásporas negras, internas, fluminenses e cariocas.

Paulo Benjamin de Oliveira, o Paulo da Portela, certamente uma das figuras mais importantes da história do samba e do subúrbio do Rio de Janeiro, não era natural de Oswaldo Cruz, conforme muita gente supõe. Paulo nasceu em 1901, na Santa Casa de Misericórdia, região central do Rio das mais atingidas pelas reformas urbanas de 1904. Morou na Saúde, bairro da Zona Portuária e parte integrante da África em miniatura dos arredores da Praça Onze. Ali viveu até o início da década de 1920. Aprendeu o ofício de carpinteiro e lustrador de móveis na adolescência e, com cerca de 20 anos de idade, foi morar com a mãe e a irmã na Estrada do Portela, numa localidade conhecida então como Barra Preta: Oswaldo Cruz.

É possível que a trajetória de Paulo da Portela, fica aqui a sugestão para estudos mais aprofundados, ilumine e seja esclarecida pelas formas com que os saberes de uma cidade africana seguiram o fluxo das constantes reformas que tentaram fazer do Rio de Janeiro um simulacro de Paris nos trópicos, se reinventando o tempo todo. À guisa de conclusão é irresistível constatar: ainda bem que as reformas, em seus anseios parisienses e aniquiladores das áfricas cariocas, fracassaram.


REFERÊNCIAS

ABREU, Maurício. Evolução urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 2013.

ARAÚJO Hiram; JÓRIO, Amauri. Natal: o homem de um braço só. Rio de Janeiro: Guavira editores, 1975.

CABRAL, Sérgio. As escolas de samba do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Lumiar, 1976.

DIAS, Luís Sérgio. Quem tem medo da capoeira? Rio de Janeiro: Memória Carioca / Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 2001.

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Bahia: Edufba, 2008.

LOPES, Nei; SIMAS, Luiz Antonio. Dicionário da História Social do Samba. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.

LOPES, Nei. Enciclopédia brasileira da diáspora africana. São Paulo: Selo Negro, 2011.

MOURA, Roberto. Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Funarte, 1983.

SIMAS, Luiz Antonio. Tantas páginas belas: histórias da Portela. Rio de Janeiro: Verso Brasil, 2012.

SEVCENKO, Nicolau. Trabalho, lar e botequim. São Paulo: Brasiliense, 1986.

SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

dossiê
Tempo de leitura estimado: 44 minutos

O TERRITÓRIO HÍBRIDO DA CIBERPOLÍTICA

Resumo: O artigo descreve uma série de iniciativas ocorridas, principalmente em São Paulo mas não só, entre os anos de 2011 e 2013, as quais podem ser consideradas preparatórias para a eclosão dos protestos de junho de 2013, quando milhares de pessoas tomaram as ruas das principais capitais do país em manifestações que exigiam uma profunda transformação da política nacional. Influenciados pela Primavera Árabe, pelos indignados espanhóis (15-M) e pelo Occupy Wall Street, protestos como o Churrascão da Gente Diferenciada, as Marchas da Liberdade e o #ExisteAmoremSP podem ser considerados exemplos de um território híbrido de ação política que surge de um fluxo contínuo nas redes (em especial as digitais, mas não só) e nas ruas (portanto, os espaços urbanos).

Palavras-chave: protestos de junho; movimentos sociais; cultura digital.

Abstract: This article describes a number of initiatives that took place in São Paulo between 2011 and 2013 that could be considered preparatory to the protests of June 2013, when thousands of people went to the streets of Brazil’s biggest cities demanding a profound transformation of national politics. Influenced by the Arab Spring, the Spanish indignados (15-M) and the Occupy Wall Street protests events like Churrascão da Gente Diferenciada, the Marches of Freedom and #ExisteAmoremSP can be considered examples of a hybrid territory of political action that arises from a dialogue between networks (especially digital, but not only) and streets (urban spaces).

Keywords: protests of june; social movements; digital culture.

 

Quando os protestos de junho de 2013 eclodiram, a partir de São Paulo e se alastrando para todo o Brasil, vimos se materializar, numa escala até então inimaginável no Brasil, um novo território ciberpolítico. Os protestos se constituíram nas ruas das grandes cidades e numa miríade de plataformas e interfaces digitais, conformando um novo espaço público no qual rede e rua são dois layers sobrepostos, não em oposição, mas num continuum que se retroalimenta e define o ambiente social atual. Essa sobreposição de camadas, em que já não é mais possível falar em online e offline, desenha um território específico da organização da política contemporânea.

Neste artigo, que é uma evolução de um trabalho apresentado no seminário de comemoração de vinte anos do Programa Avançado de Cultura Contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PACC-UFRJ), e que esteve sob revisão pelos pares na plataforma online ResearchGate, proponho uma navegação que parte dos protestos que ocorreram em São Paulo nos anos de 2011 a 2013, sob influência da Primavera Árabe, dos Indignados espanhóis e do Occupy WallStreet, e que consistem, a meu ver, em afluentes do enorme rio que se formou em 2013. Fazer esse percurso nos ajuda a compreender melhor quem são esses atores contemporâneos que desaguaram em junho.

O texto é composto de fragmentos capturados por observações in loco, leitura de outros artigos e conversas com agentes que participaram desse complexo processo político. As descrições se concentram especialmente em São Paulo. Retrato parcial, também não me impus o desafio de mapear todos os personagens que são parte desta história. Ela é, sem dúvida, muito maior do que qualquer pesquisador pode capturar, a partir de seu ângulo específico de análise e elaboração. Daí a importância de estimularmos a produção de diferentes olhares sobre o mesmo objeto.

I

Com a eleição, em 2002, de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para presidente da República e a consequente nomeação do músico Gilberto Gil para o Ministério da Cultura, um ciclo de estímulo às expressões políticas em rede teve início no Brasil. A primeira década do século XXI foi marcada por acentuadas transformações no cenário político, especialmente pelo aprofundamento da participação da sociedade civil na governança do país.

De acordo com Leonardo Avritzer, “As conferências nacionais se tornaram a mais importante e abrangente política participativa no Brasil”.[2] Em estudo produzido para o IPEA, Avritzer destaca que desde o início da realização de conferências nacionais, nos anos 1940, durante o governo Vargas, até 2012 foram realizadas 115 conferências. Destas, 74 ocorreram durante o governo Lula (cerca de 65%). Ou seja, a sociedade civil brasileira, que na virada do século hospedava o Fórum Social Mundial, o maior evento mundial voltado à construção de novos caminhos para o planeta, foi convocada a contribuir para a elaboração de políticas públicas responsáveis por transformar a realidade do país.

Em entrevista a Emir Sader, no livro Lula e Dilma: dez anos de governos pós-neoliberais no Brasil, o ex-presidente Lula afirma que o principal legado de sua administração foi justamente “que o povo sentiu que participou do governo”.

[O brasileiro] começa a se sentir parte do projeto: ele sabe, ele contribui, ele dá a sua opinião, ele é contra, ele é a favor… As conferências nacionais foram a consagração disso. A gente não tinha orçamento participativo, não era possível fazer orçamento participativo na União. Então, nós resolvermos criar condições para o povo participar. Promovemos conferências municipais, estaduais e nacionais. Foi a forma mais fantástica de um presidente da República ouvir o que o povo tinha a dizer (Lula, apud Sader, 2013, p. 11).

O Lulismo, como o expõe André Singer no artigo “Raízes sociais e ideológicas do Lulismo”[3], publicado na revista Novos estudos do Cebrap, constituiu-se como um pacto baseado em ortodoxia econômica e redistribuição da riqueza com foco na população de mais baixa renda. Isso permitiu ao presidente reeleger-se em 2006 com enorme votação justamente entre o eleitorado de baixa renda – o “subproletariado” – que é responsável por 47% do total de eleitores do país.

O pulo do gato de Lula foi, sobre o pano de fundo da ortodoxia econômica, construir uma substantiva política de promoção do mercado interno voltado aos menos favorecidos, a qual, somada à manutenção da estabilidade, corresponde nada mais nada menos que à realização de um completo programa de classe (Singer, 2009, online).

Para se constituir, no entanto, em “árbitro acima das classes” (Singer, 2009), Lula precisou justamente abrir sua administração ao envolvimento dos agentes sociais organizados, que uma vez incorporados passaram a contribuir com a validação social desse processo redistributivo. Com isso, drenou parte da força de combate que anteriormente esses movimentos destinavam à disputa com o Poder Executivo Federal. Antes opositores, os movimentos tornaram-se partícipes.

Mesmo com Dilma mantendo o acordo economicamente estruturante do Lulismo, operando na dicotomia “ortodoxia/redistribuição”, a relação de participação e envolvimento dos atores organizados da esquerda perdeu espaço.

A presidenta, diferentemente de Lula, esboçou um enfrentamento ideológico dos pilares da ortodoxia econômica – o que poderia ser visto como uma sinalização à esquerda – mas pautou sua administração pela impermeabilidade aos movimentos sociais, regredindo nas políticas de cultura, direitos humanos, na questão indígena, reforma agrária, meio ambiente e juventude, entre outras.

O primeiro momento desse retrocesso na construção de políticas em parceria com a sociedade civil ocorreu justamente nas políticas públicas de cultura, ainda em janeiro de 2011, o primeiro mês de governo de Dilma.

Em 2003, Gil assumiu o comando do Ministério da Cultura prometendo, em seu discurso, transformar o ministério na “casa de todos os que pensam e fazem o Brasil”.  Ao afirmar que “toda política cultural faz parte da cultura política de uma sociedade e de um povo”, Gil demarcou ali o que viria a ser uma das principais características de sua gestão e da de seu sucessor: contribuir para a transformação da cultura política brasileira ao realizar “uma espécie de ‘do-in antropológico’, massageando pontos vitais, mas momentaneamente desprezados ou adormecidos, do corpo cultural do país. Enfim, para avivar o velho e atiçar o novo” (Gil, 2003, online).

O ministro-cantor concluiria sua fala de posse anunciando que o MinC, sob seu comando, seria “o espaço da experimentação de rumos novos”, da “aventura e da ousadia”:

É com esta compreensão de nossas necessidades internas e da procura de uma nova inserção do Brasil no mundo que o Ministério da Cultura vai atuar, dentro dos princípios, dos roteiros e das balizas do projeto de mudança de que o presidente Lula é, hoje, a encarnação mais verdadeira e profunda. Aqui será o espaço da experimentação de rumos novos. O espaço da abertura para a criatividade popular e para as novas linguagens. O espaço da disponibilidade para a aventura e a ousadia. O espaço da memória e da invenção (Gil, 2003, online).

Ao longo dos anos, Gil e seus parceiros, em especial seu então Secretário-executivo e posteriormente Ministro da Cultura, Juca Ferreira (2008-2010), realizaram esse projeto político  “imaginativo e ousado” (Manevy, 2010, p. 103), tendo como diretriz a democratização do acesso à cultura e o fomento à diversidade cultural, em consonância com as transformações operadas pelo avanço da digitalização dos bens simbólicos e sua assimilação pela sociedade.

A principal expressão desse do-in antropológico materializado em política pública foi o Programa Cultura, Educação e Cidadania — Cultura Viva, do qual os Pontos de Cultura são a principal ação. O programa foi formulado com base no princípio de que, embora indutor dos processos culturais, o Estado não é o agente responsável por “fazer cultura”. Cabe a ele, em última instância, criar condições e mecanismos para que seus cidadãos não apenas acessem bens simbólicos, como também produzam e veiculem seus próprios bens culturais, movimentando seu contexto local como sujeitos ativos desses processos.

Com base nesses princípios, a proposta dos Pontos de Cultura se materializou em editais públicos, tendo como foco organizações da sociedade civil em atividade havia pelo menos dois anos, localizadas em áreas com pouca oferta de serviços públicos e envolvendo populações pobres ou em situação de vulnerabilidade social. Às organizações vencedoras dos editais (que se tornaram, a partir de então, Pontos de Cultura), caberia articular e promover ações culturais locais. Para tanto, passariam a receber R$ 5 mil mensais, por três anos.

No início, o edital ainda previa, como ação indispensável em cada um dos Pontos de Cultura, a presença de um estúdio digital multimídia. Os recursos deveriam ser destinados à aquisição de um “kit multimídia”: computadores conectados à Internet, todos equipados com software livre, além de demais equipamentos para captação e edição de áudio e vídeo – câmera, filmadora, mesa de som etc. A proposta era que as comunidades contempladas se sentissem incentivadas tanto a produzir conteúdos digitais quanto a difundi-los pela rede (Turino, 2010).

A pesquisadora Eliane Costa, autora do livro Jangada digital, destaca que esse trabalho desenvolvido pela dupla Gil-Juca destacou-se pelo “alargamento do conceito de cultura, a aposta na diversidade, na chamada cultura da periferia e na inovação, bem como o diálogo entre patrimônio e tecnologia de ponta” (2011, p. 37). Também levou, não apenas a uma nova face das políticas culturais, mas a uma mudança significativa da cultura política, principalmente entre os agentes e produtores culturais ligados ao movimento social.

Uma das expressões mais avançadas do Ministério da Cultura de Gil foi sua política para a cultura digital e as redes de compartilhamento. O governo Lula desenvolveu uma ousada política de utilização e fomento ao software livre. Gil liderou a adesão do Ministério da Cultura a esse processo, e passou a difundir em suas falas valores das comunidades de compartilhamento.

Em um discurso na USP, em 2004 – o qual até hoje é considerado programa político para muitos dos ativistas das redes político-culturais do país –, Gil afirma viver e gerir a cultura inspirado sob a ética hacker:[4]

Eu, Gilberto Gil, cidadão brasileiro e cidadão do mundo, Ministro da Cultura do Brasil, trabalho na música, no Ministério e em todas as dimensões da minha existência, sob a inspiração da ética hacker, e preocupado com as questões que o meu mundo e o meu tempo me colocam, como a questão da inclusão digital, a questão do software livre e a questão da regulação e do desenvolvimento da produção e da difusão de conteúdos audiovisuais, por qualquer meio, para qualquer fim (Gil, 2004, online).

Essa transformação de mentalidade e de estímulo a uma nova cultura política, baseada na liberdade, no compartilhamento, nas tecnologias livres, na participação política, exerceria um forte fascínio em vários grupos culturais do país. Especialmente aqueles que se encontravam fora do foco das ações do Estado, como os grupos de cultura popular, de cultura da periferia urbana, de povos indígenas, e também a juventude urbana afastada dos grandes centros de produção cultural. Esses agentes vivenciaram, entre 2003 e 2010, a experiência de co-gerir e co-formular políticas públicas.

No entanto, em 2011, ao conduzir a também cantora e compositora Ana de Hollanda ao posto de ministra, Dilma interrompeu esse processo de colaboração. Ana de Hollanda posicionou o ministério na direção oposta de seus antecessores e passou a criminalizar as redes político-culturais emergentes. Já organizados em inúmeras cidades, esses agentes que anteriormente se encontravam na condição de co-construtores de políticas públicas, canalizaram sua energia em outras direções. Presumo que a grande maioria deles participou ativamente dos protestos de junho, como co-construtores da emergente política das redes e das ruas.

II

Uma outra imagem para compor este nosso álbum: a da influência da popularização dos instrumentos técnicos de interconexão em rede no estímulo a novas práticas políticas.

Durante a primeira década deste século, as novas tecnologias de informação e comunicação (TICs) e do acesso à rede mundial de computadores se popularizam no Brasil. Em 2000, o país tinha cerca de 10 milhões de computadores em uso. Em 2013, esse número passou para 119 milhões, o que configura três micros para cada cinco habitantes brasileiros.[5] O número de cidadãos usuários de internet quintuplicou. Saiu de 7,5 milhões de usuários residenciais em 2002, para mais de 40 milhões em 2012. Em números absolutos, o país atingiu em 2012 o número de 94 milhões de pessoas com acesso à internet.[6]

Em 2002, as redes sociais ainda não faziam parte do cardápio usual dos internautas. Os blogs, no entanto, já estavam na moda. O aplicativo MSN Messenger, a cópia da Microsoft para o pioneiro ICQ, já era largamente utilizado. Essa aplicação permitia a conversação instantânea por meio da internet, sem custos adicionais para o usuário.

A partir de 2004, no entanto, com a criação e difusão do Orkut pelo Google, o Brasil vivenciaria uma experiência pioneira de adesão a sites de redes sociais. Os movimentos sociais em rede já faziam uso intensivo de aplicações colaborativas próprias como o Centro de Mídia Independente (CMI) desde o ano 2000, mas a maior parte dos usuários comuns ainda estava se adaptando às nascentes aplicações do que viria a ser conhecido como web 2.0.

Nesse contexto, também se popularizaram no país as políticas de inclusão digital e de apropriação crítica das tecnologias, a partir de iniciativas públicas desenvolvidas em âmbito municipal, estadual e por órgãos do Governo Federal. Entre esses programas, o supracitado Programa Cultura Viva, com os pontos de cultura, que buscavam estimular não apenas o uso padrão das tecnologias e da internet, mas principalmente fomentar o uso criativo e cultural.

A década é marcada fortemente pela ideia de cultura digital, que André Lemos, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e um dos principais pesquisadores do tema no Brasil, define como o fenômeno que “dita o ritmo” das transformações sociais, culturais e políticas no planeta.

A cibercultura é o conjunto tecnocultural emergente no final do século XX impulsionado pela sociabilidade pós-moderna em sinergia com a microinformática e o surgimento das redes telemáticas mundiais; uma forma sociocultural que modifica hábitos sociais, práticas de consumo cultural, ritmos de produção e distribuição da informação, criando novas relações no trabalho e no lazer, novas formas de sociabilidade e de comunicação social. Esse conjunto de tecnologias e processos sociais dita hoje o ritmo das transformações sociais, culturais e políticas nesse início de século XXI (Lemos; Levy, 2010, p. 11).

Em 2013, o Facebook passou a ter mais de 70 milhões de perfis ativos no Brasil, ou seja, um em cada três brasileiros detinha uma conta no site de rede social. Não à toa, portanto, grande parte do debate político pela internet passou a ser realizado dentro da plataforma estadunidense, sendo o Facebook intensamente utilizado pelos novos movimentos políticos, seja para a convocação de ações, seja para a disputa de narrativas comunicacionais. Nenhum outro site ou serviço atingiu, em nenhum momento, tamanha centralidade política como o criado por Zuckerberg.[7]

III

Voltemos a 2011, ao ano infinito. Do oriente médio (Primavera Árabe) soprou o vento da revolução, que se alastrou pelos indignados espanhóis (15-M) e pelos ocupadores de mentes e corações dos Estados Unidos (Occupy Wall Street). Tahir, Puerta del Sol e as imediações da rua Wall Street foram tomadas por multidões contestadoras, articuladas previamente por meio de dispositivos tecnológicos. Distintos entre si, resultados de objetivos e conjunturas diferentes, esses protestos carregaram características em comum, entre as quais a de se realizarem no espaço da autonomia (Castells, 2013), ou seja o novo campo das disputas políticas forjado pela sincronicidade de ações nas redes e nas ruas. Mais adiante me debruçarei especificamente sobre algumas das formulações do sociólogo catalão. A partir de 2011, vivemos um período de praças tomadas, que se tornaram símbolos globais do poder dos novos movimentos sociais.

O novo ciclo de lutas aberto pelos pioneiros agentes da Tunísia, do Egito, da Espanha e dos Estados Unidos reverberou e, em consonância temporal e espiritual, passou a estimular forças contra-hegemônicas em todo o globo terrestre.

Paulatinamente, esses ventos de reocupação das ruas começaram a soprar na direção do Brasil. Em específico, passaram a soprar no imaginário de uma geração criada no contexto da democracia, mas que passou a sentir o esgotamento do projeto democrático pós-ditadura. Um projeto baseado em acordos pacificantes que têm mantido intactos velhos arranjos de poder, marcados pela ineficiência e também pela corrupção. Uma geração descrente da política institucional, justamente pela estrutura deteriorada do sistema político brasileiro.

Essa sensação algo difusa de descontentamento foi catalisada por experiências de micro-protestos em rede que se destinam a enfrentar, principalmente, o colapso urbano.

Em São Paulo, de 2011 a 2013, até às jornadas de junho, uma série de intervenções de natureza festiva e política contribuíram para uma retomada das ruas pela juventude, inclusive a de classe média. Grupos que estavam afastados do desejo de ativismo passaram a se dedicar a evidenciar a ausência de direitos e condições razoáveis de vida em uma cidade marcada por administrações conservadoras, que só fizeram aprofundar o proibicionismo e a exclusão.

Como marco inaugural dessa compilação de episódios, podemos citar o Churrascão da Gente Diferenciada, realizado no sábado, dia 14 de maio de 2011.

O evento foi convocado pelo Facebook, onde chegou a ter mais de 50 mil confirmações. Se alastrou pelas redes sociais viroticamente, resultando em matérias produzidas por jornais, revistas, emissoras de rádio e televisão. No dia marcado, entre 2 a 4 mil pessoas compareceram às ruas do tradicional bairro paulistano de Higienópolis, portando instrumentos musicais e churrasqueiras para confraternizar.

O protesto/deboche foi marcado para contestar os moradores de Higienópolis, em São Paulo, depois que a associação de moradores se mobilizou e passou a distribuir panfletos com mensagens contrárias à construção de uma estação do metrô no bairro sob a alegação de que ela traria “gente diferenciada” ao convívio dos endinheirados. Os internautas então, assumindo-se como diferenciados (eufemismo para pobres), resolveram marcar um “churrascão na laje” para exigir a construção da estação de metrô. A página de convocação do evento foi idealizada por Danilo Saraiva. Em um post para o blog Aos Cubos, ele explica suas motivações políticas:

Começo esse texto dessa forma: sim, eu fui lá, não sou bundão, não sou vendido, não estou no armário. Acima de tudo, não sou filiado a qualquer partido político. Essa, aliás, é uma frase difícil de ser compreendida por aqueles colunistas de renome e muitos simpatizantes radicais do governo do Estado de São Paulo. Por que é tão difícil entender que existe, sim, um movimento popular que não é feito a mando de um PT, ou de um PSDB, um PSTU ou qualquer partido a quem vocês expressam ódio mortal e tentam justificá-lo com atitudes alheias, que nada tem a ver com a briga política e social que vocês mesmos criaram? (Saraiva, 2011, online).[8]

O depoimento de Saraiva é elucidativo justamente por ser a voz desse ator político que passou a ser objeto de disputas interpretativas: o jovem interconectado, sem filiação partidária, sem histórico de organização política, que expressa seu ponto-de-vista na rede e que não detém o controle da iniciativa que propôs. Tudo, no ambiente das redes, é fluido e dinâmico, e escapa das categorias comumente utilizadas pela análise político-social.

Antes de mais nada: não houve organização. Outra afirmação que causa contestação aos odiadores de plantão. Como é possível que um evento tão organizado e pacífico tenha sido comandado apenas pela iniciativa do povo, que não tem nome? (Saraiva, 2011, online).

Quem é esse povo a que se refere Saraiva? Uma pergunta que segue sem resposta.

A pauta política do Churrascão era a contestação ao elitismo excessivo e característico de São Paulo – uma pauta que viria a ser ponto central do debate eleitoral que ocorreu na cidade em 2012 e que levou à eleição de Fernando Haddad (PT). O evento/protesto/gozação também já mapeava, porém, um outro tema que viria a ser basilar nos protestos de junho: o transporte urbano.

Essa vontade de rua já estava expressa em uma outra iniciativa que ocorrera um mês antes, de caráter também inovador política e culturalmente.

O Festival Baixo Centro, organizado por um coletivo da Casa da Cultura Digital, articulou, por meio de uma chamada pública na internet, mais de 100 atividades livres, abertas e gratuitas às ruas dos bairros de Santa Cecília, Barra Funda e Campos Elíseos, nas imediações do Elevado Costa e Silva, popularmente conhecido como Minhocão, durante uma semana. Financiado exclusivamente por meio de uma campanha de crowdfunding (doações pela internet), o Baixo Centro tornou-se, a partir dessa articulação, um movimento político-cultural que conectou inúmeras organizações que habitam essa região da cidade. O festival segue existindo, afirmando a capacidade de auto-organização dos indivíduos perante as necessidades de transformação da cidade.

Logo depois do Churrascão da Gente Diferenciada, ocorreu, no dia 28 de maio de 2011, a Marcha da Liberdade. A ação, convocada pela internet, surgiu como uma reação à violenta repressão policial à Marcha da Maconha, realizada uma semana antes, no dia 21. Naquela ocasião, os manifestantes foram proibidos pelo Supremo Tribunal Federal de realizar o protesto. A reação dos ativistas foi então criar um movimento pela liberdade de manifestação.

O primeiro protesto levou cerca de 5 mil pessoas à Avenida Paulista, em um trajeto que percorreu toda a rua da Consolação, finalizando na Praça da República. Devido à força adquirida pelo ato do dia 28, uma nova atividade foi convocada para a semana seguinte, articulando outras 40 cidades do país.[9]

Conforme registra o manifesto difundido pelos seus articuladores, a Marcha da Liberdade não pretendia ser “uma organização”, mas sim “uma rede feita por gente de carne e osso, organizados de forma horizontal, autônoma e livre”. Por meio do texto, convocavam:

Todos aqueles que não se intimidam, e que insistem em não se calar diante da violência. Contamos com as pernas e braços dos que se movimentam, com as vozes dos que não consentem. Ligas, correntes, grupos de teatro, dança, coletivos, povos da floresta, grafiteiros, operários, hackers, feministas, bombeiros, maltrapilhos e afins. Associações de bairros, ONGs, partidos, anarcos, blocos, bandos e bandas. Todos os que condenam a impunidade, que não suportam a violência policial repressiva, o conservadorismo e o autoritarismo do judiciário e do Estado. Que reprime trabalhadores e intimida professores. Que definha o serviço público em benefício de interesses privados.[10]

A proposta da Marcha da Liberdade era integrar os diferentes agentes sociais na defesa da liberdade de expressão. O manifesto propunha uma ciranda de causas políticas que vinham sendo travadas de forma desarticulada.

Ciclistas, lutem pelo fim do racismo. Negros, tragam uma bandeira de arco-íris. LGBT, gritem pelas florestas. Ambientalistas, cantem. Artistas de rua, defendam o transporte público. Pedestres, falem em nome dos animais. Vegetarianos, façam um churrasco diferenciado! Nossas reivindicações não têm hierarquia. Todas as pautas se completam na perspectiva da luta por uma sociedade igualitária, por uma vida digna, de amor e respeito mútuos. Somos todos pedestres, motoristas, cadeirantes, catadores, estudantes, trabalhadores. Somos todos idosos, índios, travestis. Somos todos nordestinos, bolivianos, brasileiros, vira-latas.

Um dos pontos altos da Macha da Liberdade, por exemplo, foi quando alguns militantes do Movimento Passe Livre – organização que seria responsável pela centelha explosiva dos protestos de Junho – invadiu o Conjunto Nacional, antigo centro comercial na esquina da Av. Paulista com a Rua Augusta e estendeu uma enorme bandeira em defesa do fim da cobrança de tarifas no transporte público. Os militantes foram rapidamente contidos pelos seguranças do prédio, mas conseguiram fazer a passeata que rumava em direção ao centro da cidade vibrar com a ousadia. Um tipo de ousadia, aliás, que iria justamente marcar as ações políticas ocorridas a partir de junho de 2013.

Pulando para 2012, e para o contexto eleitoral, temos a realização dos atos #AmorSIMRussomanoNÃO e #ExisteAmoremSP. Nesta recompilação eles entram como símbolos da intervenção nas ruas, mas não somente. Foram também um momento em que essa cidadania articulada em rede se dirigiu à política institucional, exigindo respostas dos candidatos. E com isso demonstrou sua capacidade de incidir não somente na micro, mas também na macro-política.

Superando os candidatos do Partido dos Trabalhadores (PT), Fernando Haddad, e do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), José Serra, o jornalista e Deputado Federal Celso Russomano, do Partido Republicano Brasileiro (PRB), aparecia liderando o certame com mais de 30% das intenções de voto. Na reta final, parecia que o candidato azarão iria conseguir avançar ao segundo turno, removendo do cenário um dos dois principais partidos do país, os quais vêm se alternando na disputa pelo controle da maioria do eleitorado paulista e paulistano.

A campanha de Russomano, com pouco tempo de exposição televisiva, era essencialmente conservadora. Apelando para o voto cristão, posicionava-o contra as liberdades comportamentais e o apresentava como defensor dos pobres, reforçando sua imagem construída quando jornalista especializado em mediar conflitos ao vivo, muitos deles voltados à defesa dos consumidores. Russomano, sem dúvida, simbolizava um acirramento do comportamento proibicionista que marcou a gestão de Gilberto Kassab, do Partido Social Democrático (PSD) e por isso coletivos e redes político-culturais que emergiram no país nos últimos anos iniciaram uma campanha pelas redes sociais para barrar o crescimento do candidato do PRB.

Por meio de páginas no Facebook e postagens em blogs e redes sociais como twitter e Instagram, convocaram o ato #AmorSimRussomanoNão. Na convocatória criada em uma página de eventos da rede social Facebook, a articulação de coletivos que convocou a ação destacava o crescimento de Russomano a partir dos “escombros da guerra entre PT e PSDB”, e avaliava:

Celso Russomanno não é apenas Celso Russomanno. É o fruto da despolitização, da passividade civil e da preguiça mental diante da falência do sistema político tradicional. A vitória dele nas eleições municipais seria a materialização de uma tragédia, a vitória de uma escola política que ainda ecoa da ditadura. E pode significar não apenas o aprofundamento da São Paulo policialesca e proibida. Mas a criação de uma nova força política nacional fincada que ameaça o estado laico e as causas progressitas.[11]

No dia 5 de outubro de 2012, o ato #AmorSimRussomanoNão levou à Praça Roosevelt, localizada no centro de São Paulo, interligando as ruas Augusta e da Consolação, um conjunto de cerca de quatro mil pessoas, que, em uma noite chuvosa, fizeram um protesto com grande visibilidade midiática, principalmente pela repercussão nos sites de redes sociais.

O momento foi interpretado como epicentro de uma tomada de consciência por parte da juventude e de grupos políticos e sociais historicamente ligados ao campo da luta pelas liberdades democráticas e pelos Direitos Humanos, produzindo um engajamento mais forte desses atores na disputa eleitoral, que até então parecia correr mornamente para um desfecho anódino.

A partir de um conjunto de fatores, não apenas em função dessa mobilização – mas também em função dessa mobilização –, o candidato Russomano definhou e não passou do primeiro turno. Haddad (PT) e Serra (PSDB), então, foram alçados à segunda rodada. O engajamento contra Russomano não só resultou na derrota do candidato do PRB como gerou uma inédita aproximação das redes e coletivos emergentes da cidade de São Paulo.

Essa nova articulação, logo no início do segundo turno, em uma reunião realizada na Casa Fora do Eixo São Paulo, resolveu dar sequência ao debate de ideias libertárias durante a eleição convocando um novo ato. A maioria dos organizadores da articulação era de eleitores do candidato petista. Por isso, foi feita a avaliação de uma possibilidade de uma campanha direcionada contra o candidato tucano, intitulada #FaçaAMORnãofaçaSERRA. A maioria dos articuladores, no entanto, passou a defender a ideia de que era preciso discutir o sentido da cidade com os eleitores e afirmar um novo momento para São Paulo, sem vinculações político-partidárias. O sentido deveria ser a defesa de uma cidade liberta, e a reação deveria vir dos candidatos. Não o contrário.

Assim, então, surgiu o “Existe Amor em SP”. Na página de convocação do evento no Facebook[12], pode-se ler:

Esta é uma declaração de amor à cidade, pois o Existe Amor Em SP somos todos nós! Somos um movimento de todos que desejam uma cidade mais humana, justa, amável e acolhedora. Todos constroem o movimento, e são responsáveis por ele! Em meio ao caos de São Paulo, onde a cidade é dominada pela lógica higienista, especulação imobiliária e pela truculência do Estado, principalmente nas periferias, mas não só nelas, o Existe Amor Em SP surge como um grito, que emerge de cada paulistano. Um sentimento de amor que transcende o individual, e alcança o coletivo! Um grito que clama por mais amor, por mais respeito e por mais solidariedade.

No dia 21 de outubro de 2012 mais de 20 mil pessoas compareceram à ocupação pacífica da Praça Roosevelt, então rebatizada de Praça Rosa, em alusão à cor rosa-choque[13], escolhida pelos organizadores para simbolizar o movimento. As pessoas que ali estiveram participaram de shows, intervenções políticas, rodas de conversa, numa grande celebração pela possibilidade de uma nova cidade. Não havia vínculo com nenhuma candidatura. E nenhum dos candidatos concorrentes compareceu ao encontro.

Entre os artistas participantes da atividade, estava o rapper e cantor Criolo, autor da canção-manifesto “Não Existe Amor em SP”[14]. Antes de entoar seu hino, Criolo discursou:

Não vamos diminuir a força desse movimento. Sozinho eu não consigo nem cantar uma frase. A gente é tão frágil. Se vocês soubessem a força que vocês têm. Vocês são maravilhosos. Mesmo com tanta desgraça, com tanta opressão, com tanto preconceito, com tanto bagulho que põe a gente para baixo, vocês estão aqui mostrando que é possível. Tem vários irmãos em várias quebradas que estão em depressão, que nem sabem o que está acontecendo aqui. Vamos ter respeito pelo dia de hoje.

A imagem da reunião espontânea de uma multidão voltada a defender uma outra cidade possível tornou-se símbolo do novo momento da política contemporânea de São Paulo. Como nos levantes globais, o que os ativistas fizeram foi tomar uma praça e ressignificá-la politicamente.

Apesar de não direcionada a nenhum candidato, sem dúvidas a articulação gerou dividendos ao candidato petista, que se apresentava com o discurso da mudança. Serra, que fora eleito prefeito de São Paulo oito anos antes, passando a faixa a seu vice, Kassab, não tinha como se aliar aos valores do #ExisteAmoremSP.

Haddad, uma vez eleito, faria menção ao amor a São Paulo em seu discurso de posse. Seu governo, no entanto, assimilou pouco do significado político da emergência desses novos atores e, em junho, quando eclodiram os protestos pela redução das tarifas, convocados pelo Movimento Passe Livre, não soube como lidar com essa nova forma tática e estratégica de fazer político.

Não foi somente nas classes médias, porém, que São Paulo se preparou para junho. Nas periferias também vimos emergir nos últimos dez anos uma miríade de coletivos táticos e de organizações de cunho político-cultural articuladas em rede. Com destaque para os engajados militantes contra a violência policial do Mães de Maio, que mantém um ativo perfil no Facebook denunciando as barbáries cometidas contra a população jovem e negra do país, e aos inúmeros agrupamentos articulados em torno dos saraus de poesia e música, cuja máxima expressão é a Cooperifa, liderada pelo poeta Sérgio Vaz e que há 10 anos articula uma série de ações na Zona Sul da capital.

Esses agrupamentos são expressões da transmutação do movimento hip hop, que a partir das décadas de 1980 e 1990 se tornou uma das mais importantes formas de organização política das juventudes periféricas. Sem dúvida, o crescimento e fortalecimento desses atores foi elemento constituinte do cenário latente de insatisfação na capital paulista. Cidades como Rio de Janeiro e Belo Horizonte também vivenciaram fenômenos semelhantes, com a emergência de redes político-culturais periféricas, entre as quais os Enraizados, da Baixada Fluminense, ou o Duelo de MCs, ocupando o Viaduto Santa Tereza, na capital mineira.

Se não tiveram a mesma proporção dos protestos que reuniram centenas de milhares de pessoas em junho, esses episódios tiveram o mérito de reabrir as ruas para os manifestantes.

IV

Justamente a partir da experiência acumulada desses levantes que tiveram início em 2011, com a Primavera Árabe, o 15-M e o Occupy Wall Street, e que se espalharam como modelo de ativismo para o mundo, Castells delineia algumas características dos novos movimentos em rede na conclusão de seu livro Redes de indignação e esperança. Acho importante compartilhar aqui uma sistematização sobre o pensamento do sociólogo catalão. Um breve interregno teórico[15].

Para Castells, a conexão dos movimentos em rede ocorreu de inúmeras formas. Inclui redes sociais online e offline. Ainda que ocupem o espaço urbano, sua existência se dá no “espaço livre da internet”. O movimento social do século XXI é uma rede de redes, por isso podem permitir não ter um centro identificável e produzir articulação e deliberação por meio do choque entre seus inúmeros nós.        “Por isso não necessitam de uma liderança e um centro de mando e controle formais, nem tampouco uma organização vertical que distribua a informação e as instruções” (Castells, 2012, p. 212), escreve. Para tratar nomear esse ambiente híbrido de espaço urbano e ciberespaço, Castells cria o conceito de “espaço da autonomia”.

Outra característica que ele destaca é que os movimentos são locais e globais ao mesmo tempo. Por sua ação em rede, os ativistas geraram uma forma de tempo própria, o tempo atemporal. São movimentos que emergem de forma espontânea, desencadeados por “uma fagulha de indignação”. Nesse sentido, como vem ocorrendo nos protestos brasileiros, Castells destaca a importância dos vídeos compartilhados pelo YouTube na difusão de informações mobilizadoras. Isso compõe uma outra característica desses movimentos: o fato de serem virais. O que ocorre em um país, se espalha para outros. Castells observa o “contágio” entre países, cidades e instituições. As mensagens de esperança passam a inspirar os cidadãos interconectados. “A transição da indignação à esperança é possível mediante a deliberação no espaço da autonomia” (2012, p. 213), escreve.

Por se basearem em decisões a partir de assembleias e comissões, os integrantes desse movimento defendem que ajam “sem líderes”. É normal que contestem toda e qualquer forma de atuação que se assemelhe à experiência da política habitual. Esses movimentos procuram “estabelecer as bases de uma democracia real praticando-a no movimento” (2012, p. 215).

Essa experiência sem lideranças produz, de acordo com os participantes, a sensação de unidade, pois os indivíduos articulados em torno dos mesmos propósitos superam o medo. Castells recupera a frase difundida pelo 15-M: “Juntas podemos. A horizontalidade das redes favorece a colaboração e a solidariedade, substituindo a necessidade de uma liderança formal” (2012, p. 215)

No caso brasileiro, essa questão da ausência de lideranças tem produzido inúmeros debates. No interior dessas redes, a disputa por protagonismo acaba muitas vezes por corroer dinâmicas de articulação mais sustentáveis. Se nos movimentos observados por Castells a recusa ao diálogo com partidos e outras instituições da democracia “tal como ela” é uma tônica, no caso brasileiro, a interlocução histórica produzida por alguns partidos e movimentos tradicionais ainda consegue produzir aproximações, como o episódio do #ExisteAmoremSP demonstra.

Ainda assim, em junho veríamos uma multiplicidade de abordagens em relação às aproximações com a política formal, tendo aqueles que defendem a recusa a qualquer diálogo, como os anarquistas e parte dos autonomistas, e outros agrupamentos que apostam no diálogo como instrumento de avanço social. Vale destacar que a autocrítica e as indagações sobre rumos e perspectivas são constantes no interior desses movimentos. Em princípio, são movimentos não violentos. Mas carregam consigo a possibilidade da ação direta e da desobediência civil pacífica, como no caso da tática Black Bloc.

Ocorre que também são raramente movimentos programáticos. A não ser, como registra Castells, quando o único objetivo é acabar com a ditadura. Ao fim e ao cabo, “são movimentos com o objetivo de mudar os valores da sociedade”, mas também podem “ser movimentos de opinião pública, com consequências eleitorais”. São, em essência políticos, principalmente ao praticarem exercícios de democracia direta. “O que propõem esses movimentos sociais em rede na prática é uma nova utopia no centro cultural da sociedade em rede: a utopia da autonomia do sujeito frente às instituições da sociedade” (2012, p. 218).

No caso brasileiro, esse fenômeno, digamos, da cultura digital, e da participação política nesse contexto, começa a forjar um novo tipo de agente social. Em meus trabalhos anteriores, os livros A onda rosa-choque e Os Novos Bárbaros – a aventura política do Fora do Eixo, faço uma enumeração das características específicas que algumas redes político-culturais assumem: (1) não possuem filiações ideológicas rígidas; (2) apostam na ação como forma de encontrar caminhos para mudar a sociedade (Façocracia); (3) estabelecem conexões com a esquerda libertária e recebem influência de movimentos como o anti-globalização que surgiu no final da década de 1990 e feneceu na primeira década do século 21; (4) incorporam o discurso publicitário e de disputa no interior do capitalismo, principalmente na construção de ações e campanhas de comunicação em rede; (5) não estão vinculados a partidos políticos, apostam no pós-partidarismo, mas não se colocam contrários ao diálogo com essas forças; (6) não se subordinam aos movimentos sociais surgidos nas três décadas anteriores da redemocratização brasileira, mas se associam a essas forças em ações específicas; (7) apostam na defesa de uma nova democracia, inclusive influindo em processos como o eleitoral e a construção de políticas públicas; (8) apostam na valorização do comum e dos commons, com uso de ferramentas e softwares livres e o questionamento da propriedade intelectual nos termos impostos pela indústria cultural; (9) o Do It Yourself (DIY) – faça você mesmo – evolui para o Do it Together (DIT) – fazer juntos, organizando-se em coletivos táticos, alguns fixos, outros provisórios; (10) reivindicam a ética hacker, com a criação do verbo raquear, que passa a ser a forma de se relacionar com as estruturas tradicionais de poder, ou seja, promover fissuras em sua organização e introduzir elementos que possam modificá-lo; (11) Constituem-se como laboratórios de experimentos políticos em rede, muitos deles provisórios, como é o caso do próprio #ExisteAmoremSP; (12) a cultura passa a constituir o lugar de afirmação e de produção da transformação social, forjando uma nova cultura política, baseada no afeto e na afirmação da singularidade diante das imposições coletivas.

Outro conceito que formulei nesses trabalha anteriores é o de ativismo reticulador, que nos serve como complemento àquilo que Castells compreende ser a principal forma de poder na sociedade informacional: o poder para criar redes. Ou seja, as organizações que praticam o “ativismo reticulador” são aquelas que tecem redes, que, como no tecido reticular de nossos cérebros, se desenvolvem estabelecendo conexões entre diferentes elementos. Há várias formas de praticar o “ativismo reticulador”. Uma delas observa-se em levantes como o Occupy Wall Street, em que indivíduos e grupos políticos se articulam em rede para promover uma ampla manifestação contra o capitalismo contemporâneo. Há também formas menos amplas, como a reunião dos coletivos e indivíduos em torno do #ExisteAmoremSP.

V

Recompilo as imagens encadeadas anteriormente e a elas acrescento alguns elementos. Tomando como base os casos e fenômenos acima descritos, de fato podemos dizer que estamos diante de um novo território ciberpolítico, formado pela sobreposição continua da ação nas redes e nas ruas. No caso brasileiro, tomando como base os antecedentes de junho, podemos identificar  seis fatores que estimularam essa reconfiguração político-cultural[16]:

• Uma redução do espaço de participação e colaboração na construção de políticas públicas na transição de Lula para Dilma. Sem dúvida, a expressiva inclusão social via consumo de massa ocorrida de 2003 a 2010 engendrou a necessidade de mais e melhores serviços pú Não à toa, portanto, muitos dos cartazes abertos pelos manifestantes nas ruas tomadas exigiam justamente melhoria da educação, da saúde, da segurança pública e do transporte;

• A centralidade adquirida pelos novas tecnologias de informação e comunicação, que se popularizaram no país nos últimos anos, em especial de sites de redes sociais, como o Facebook, uma verdadeira ágora proprietária da política contemporânea;

• A expressão de uma geração decepcionada com os rumos da política institucional;

• A influência viral das revoltas em rede, que têm se espalhado pelo planeta a partir da Primavera Árabe, dos indignados espanhóis e do Occupy Wall Street dos EUA, entre outras importantes iniciativas de desenvolvimento do “espaço da autonomia”;

• A reabertura das ruas por iniciativas de protesto, de diferentes colorações, de 2011 a 2013, do Churrascão da Gente Diferenciada ao #ExisteAmoremSP;

• A conformação, nos termos descritos por Castells, de um novo tipo de rede militante, baseada em indivíduos e coletivos interconectados, e também de agrupamentos políticos de coloração anarquista/autonomista que se dedicam ao trabalho de base e à micro-política.


REFERÊNCIAS

Rodrigo Savazoni é jornalista, escritor e realizador multimídia. Mestre em Ciências Humanas pela Universidade Federal do ABC. Autor de CulturaDigital.Br (Azougue, 2009), A onda rosa-choque (Azougue, 2013) e Os Novos Bárbaros – a aventura política do Fora do Eixo (Aeroplano, no prelo). Um dos criadores da Casa da Cultura Digital, do Festival CulturaDigital.Br (2009-2011) e da plataforma pública de redes sociais CulturaDigital.Br. Atualmente dirige o Instituto Procomum.

AVRITZER, L. Conferências Nacionais: ampliando e redefinindo os padrões de participação social no Brasil. Texto para discussão (IPEA. Brasília), v. 1, p. 7-24, 2012.

BENTES, Ivana. Redes colaborativas e precariado produtivo. Le Monde Diplomatique, v. 2, p. 09-127, 2007.

CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002.

CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. 10. ed. São Paulo: Paz e terra, 2007.

CASTELLS, Manuel. Communication power. Nova York: Oxford University Press, 2009.

CASTELLS, Manuel. Networks of outrage and hope. Cambridge; Malden: Polity Press, 2012.

COHN, Sérgio; SAVAZONI, Rodrigo. CulturaDigital.Br. Rio de Janeiro: Azougue, 2009.

COSTA, Eliane. Jangada digital. Rio de Janeiro: Azougue, 2011.

GIL, Gilberto. Discurso do Ministro da Cultura, Gilberto Gil, em Aula Magna na Universidade de São Paulo (USP). Disponível em: <http://www.cultura.gov.br/noticias-ancine1/-/asset_publisher/QRV5ftQkjXuV/content/ministro-da-cultura-gilberto-gil-em-aula-magna-na-universidade-de-sao-paulo-usp-/11025> Acesso em: 27 ago. 2013

GIL, Gilberto. Discurso de posse como Ministro da Cultura do Governo Lula. Disponível em: <http://www2.cultura.gov.br/site/2003/01/02/discurso-do-ministro-gilberto-gil-na-solenidade-de-transmissao-do-cargo/> Acesso em: 29 ago. 2013

GIL, Gilberto; FERREIRA, Juca. Cultura pela palavra. Rio de Janeiro: Versal Editores, 2013.

GORZ, Andre. O imaterial: conhecimento, valor e capital. São Paulo: Annablume, 2005.

JUDENSNAIDER, Elena; LIMA, Luciana; ORTELLADO, Pablo; POMAR, Marcelo. Vinte Centavos: a luta contra o aumento. São Paulo: Veneta, 2013.
LEMOS, André. Cibercultura: tecnologia e vida social na cultura contemporânea. Porto Alegre: Sulina, 2002.

ORTELLADO, Pablo; PARRA, Henrique; RHATTO, Silvio. Movimentos em marcha: ativismo, cultura e tecnologia. São Paulo: Edição do Autor, 2013.

SADER, Emir (org.) Lula e Dilma: 10 anos de governos pós-neoliberais no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2013.

SAVAZONI, Rodrigo. A Onda Rosa-Choque: reflexões sobre redes, cultura e política contemporânea. Rio de Janeiro: Azougue, 2013.

SILVEIRA, Sergio Amadeu da; JOSGRILBERG, Fábio Botelho. (Orgs.). Tensões em rede: os limites da cidadania na internet. São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2012.

SILVEIRA, Sergio Amadeu da; MACHADO, Murilo Bansi; SAVAZONI, Rodrigo Tarchiani. Backward march: the turnaround in public cultural policy in Brazil. Media, Culture & Society, v. 35, p. 549-564, 2013.

TURINO, Célio. Ponto de cultura: o Brasil de baixo para cima. São Paulo: Anita Garibaldi, 2010.

[2] “Conferências nacionais: ampliando e redefinindo os padrões de participação social no Brasil”. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=15077>. Acesso em: 18 ago. 2013.

[3] O artigo pode ser lido no Scielo: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-33002009000300004&script=sci_arttext> Acesso em 21 abr. 2014

[4] “Hackers resolvem problemas e compartilham saber e informação. Acreditam na liberdade e na ajuda mútua voluntária, tanto que é quase um dever moral compartilhar informação, resolver problemas e depois dar as soluções para que outros possam resolver novos problemas” (Gil, 2004, online).

[5] Fonte: Fundação Getúlio Vargas. Disponível em: <http://eaesp.fgvsp.br/sites/eaesp.fgvsp.br/files/arquivos/gvpesqti2013ppt.pdf>. Acesso em: 19 ago. 2013

[6] Fonte: Ibope/Net Ratings. Disponível em: <http://idgnow.uol.com.br/internet/2012/12/14/ibope-numero-de-internautas-no-brasil-passa-de-92-milhoes>. Acesso em: 20 ago. 2013.

[7] No livro A onda rosa-choque publiquei um artigo intitulado “O duplo perfil do Facebook”, em que falo da modulação binária dessa rede proprietária, que é instrumento de libertação e de cerceamento ao mesmo tempo. Essa é uma das características mais expressivas da sociedade do controle, em que as forças que aprisionam e libertam podem ser as mesmas, operando apenas em modulações distintas.

[8]Depoimento do idealizador do evento Churrascão da Gente Diferenciada. Acesso em: <http://www.aoscubos.com/opiniao-eu-fui-ao-churrascao-de-gente-diferenciada-diz-internauta/> 21 abr. 2014.

[9]“Marcha da Liberdade ocorre em mais de 40 cidades”. Disponível em: <http://noticias.r7.com/cidades/noticias/marcha-da-liberdade-ocorre-hoje-em-mais-de-40-cidades-20110618.html>. Acesso em: 20 ago. 2013.

[10]O registro do Manifesto se encontra no livro Movimentos em marcha. Disponível em: <http://emmarcha.milharal.org>. Acesso em: 20 ago. 2013.

[11]Manifesto de convocação do Ato #AmorSimRussomanoNão: https://pt-br.facebook.com/events/492426367449347/ Acesso em 15 fev. 2014.

[12]Página do #ExisteAmoremSP no Facebook: https://www.facebook.com/ExisteAmorEmSp/info Acesso em 15 de fev. 2014.

[13]Conforme explico na introdução do meu livro A onda rosa-choque: “A ideia de fundir azul e vermelho numa ‘aliança rosa’ surgiu do desconforto com os mapas eleitorais da cidade, que opõem a periferia (vermelha) ao centro (azul), aludindo a petistas e tucanos. Esse mapa, explorado à exaustão pelos grandes veículos de comunicação, criou nos últimos anos um estigma que impede a cidade de enxergar as nuances complexas de sua configuração política. Como se houvesse apenas um bloco sólido branco e conservador, a ocupar os bairros centrais, e outro negro e progressista nas bordas da metrópole. Nada mais simplista. Combater essa dualidade tacanha era um dos objetivos do #ExisteAmoremSP, que, longe de ser a proposição de uma terceira via, procurou vocalizar a necessidade de se construir, na cidade betaglobal, pactos alternativos, em torno de temas como a generalizada violência policial que nos assola. Como tratava-se de um movimento de afirmação da diversidade e das liberdades individuais, o uso do rosa-choque, cor estranha à política, também se apresentou como forma de questionar o patriarcado e o comportamento sexualmente repressor” (Savazoni, 2013, p. 18).

[14]Neste documentário é possível acompanhar a performance de Criolo durante o #ExisteAmoremSP: “http://www.youtube.com/watch?v=MNPpDslLttw” Acesso em 15 fev. 2014.

[15] Todas as citações que se seguem são baseadas na edição espanhola da Alianza Editorial.

[16]Importante destacar que este artigo encerra sua reflexão nos episódios antecedentes de junho de 2013. Acredito que ele pode ser útil para a análise dos desdobramentos da política que estão em curso neste momento, mas não nos estendemos para uma avaliação mais pormenorizada da conjuntura atual.

dossiê
Tempo de leitura estimado: 48 minutos

ENTREVISTA COM MARCUS VINICIUS FAUSTINI

Nos últimos anos, um conjunto de iniciativas culturais movidas por organizações da sociedade civil nos espaços populares do Rio de Janeiro passou a vocalizar explicitamente a perspectiva do “território”, até então ausente de seus discursos. A “ação no território” passou a substituir, inclusive, a narrativa da “cultura da periferia”, que, desde a virada para o século XXI, vinha identificando o conjunto desses movimentos. Marcus Vinicius Faustini, em projetos como o Reperiferia, a Escola Livre de Cinema de Nova Iguaçu e a Agência de Redes para a Juventude, foi um dos primeiros protagonistas dessa “virada territorial”. Em entrevista a Eliane Costa, ele fala aqui sobre a apropriação do conceito (geográfico) de território pela cultura em diálogo com a cidadania nas periferias do Rio.

Marcus Faustini
Marcus Faustini

Eliane Costa: Foi somente a partir de um determinado momento que alguns agentes culturais começaram a trazer para a narrativa de seus projetos a questão do território. Você foi um dos primeiros. Como se deu essa inflexão?

Marcus Faustini: Vou dividir em três momentos. Pra mim, isso foi se construindo como um campo mental. O primeiro momento foi quando eu ainda dirigia peças clássicas e  fui dirigir, em São Paulo, uma peça que o [Gianfrancesco] Guarnieri tinha escrito. Ele escreveu para eu dirigir, e, nesse momento, eu pensei assim: caramba! Vou virar um diretor de teatro em São Paulo. Eu fui pra São Paulo e  lá fiquei oito meses , mas eu vinha pro Rio duas vezes por semana para dar aulas em Santa Cruz, com grupos de Itaguaí e grupos do Cezarão.

Eliane: Isso já era o Reperiferia?

Marcus Faustini: Estou te contando o começo do Reperiferia, quando o conceito apareceu. A peça lá em São Paulo foi um fracasso, mas valeu porque eu me vi com duas inquietações: a primeira porque ali eu ainda trabalhava na lógica da representação, do “vamos representar o povo brasileiro”, a ideia de que o teatro pode transmitir algo que mude as pessoas. A segunda porque comecei a perceber que eu era mais integral na minha relação com as coisas que eu estava fazendo como artista, como quando eu estava trabalhando em Santa Cruz. Minha prática ali tinha muito mais sentido. Essa prática atiçava minha pesquisa muito mais do que montar um espetáculo naquele momento.

Eu já tinha uma certa inquietação de ver como era representado o lugar que eu vivia, de perceber que a música, o rock, as linguagens da indústria cultural estão presentes na periferia, e que a periferia não era o outro… Era impossível pra mim produzir uma representação que desse conta daquilo. Eu costumava dizer que a periferia era o contemporâneo.

Isso não era ainda um projeto teórico e nem um projeto estético, eram questões que se apresentavam por conta dos trânsitos que eu fazia. Foi aí que decidi voltar pro Rio e reconstruir tudo de novo. Entendi que  o teatro não era meu lugar, que eu devia então pegar o modo de pensar do teatro para agir no território, que eu chamava de meu lugar, eu ainda não chamava de território. Mas, foi imediata a ideia de território! Esse foi então o meu primeiro contato com a ideia de território.

Eu acho que a palavra território apareceu depois da palavra periferia no meu fazer e no meu vocabulário mental de palavras que estimulam minha pesquisa. A primeira coisa que penso é a ideia de repensar e refazer a periferia. Reinventar para colocar a periferia  nesse lugar do contemporâneo, porque aquele lugar de folclore, de algo puro, carente, não davam conta do que eu estava vendo e vivendo ali.

Naquele momento, eu já pensava assim: bom, se o imaginário brasileiro coloca tudo o que vem da periferia em tipos já consolidados — o malandro, o operário, o marginal — preciso fazer aparecer novos imaginários… Nesse campo de representação que já está consolidado não vou conseguir inventar nada. Então com as oficinas eu vou agir no território. A oficina não é dar aula para um cara que trabalha na periferia, não é só formar uma pessoa em uma linguagem que ela ainda não sabe, é sim, o fazimento dentro do próprio território.

Então, procurei o [Anderson] Barnabé e umas pessoas que trabalhavam comigo e disse: acho que temos que mudar tudo. Acho que está tudo errado, precisamos misturar linguagens e tentar disputar esse campo do contemporâneo. Então, a palavra periferia foi o primeiro indício de território que apareceu, mas com uma pegada de subjetividade e não de marcar posição do ponto de vista de que somos do gueto, porque sou marcado por uma experiência errante, não identitária, dentro da cidade. A ideia era pensar como estimular essas subjetividades para que aparecessem.

Aí fizemos a Escola Livre de Teatro, reunindo formação e ação. E na primeira ação da escola, que começou com um agrupamento, como um modo de agir e não como uma escola institucionalizada, montamos um curso para começar a escutar as histórias dos moradores do Guandu, isso em 2003/2004, em uma comunidade de Santa Cruz. Esse trabalho era misturado com atores e essas histórias  foram contadas dentro das casas. Tudo isso com a ideia de que precisavam aparecer novas subjetividades, e que a função da arte talvez fosse agir no território popular e não representar o território popular.

Eliane: Mas aí você já usava a palavra território?

Marcus Faustini: Ela já começava a aparecer. Por causa de algumas leituras, Bourdieu por exemplo. Quando você falou da geografia, fiquei aqui tentando pensar, e me lembrei de um livro que marcou muito esse nosso primeiro momento, que foi um livro de literatura que analisava como Dom Quixote era um romance de território. Porque ele demarcava fronteiras: você vê que os monstros no Dom Quixote são todos de outros países. Então era a fronteira… Nesse momento eu já tinha contato com a obra de Milton Santos. Sempre fui atrás de referências das ciências sociais, por causa da minha formação na militância estudantil. Não bastava só a pesquisa da linguagem artística. Era tudo meio atravessado, pois essas eram leituras de meio de caminho. Aí começa a aparecer a discussão de território. Esse foi o primeiro ponto, já agindo no território.

Eliane: Nessa ocasião você já tinha lido Deleuze, Foucault, que você às vezes cita nas suas falas?

Marcus Faustini: Não. Isso vem depois. Vem pelo Milton Santos. E é ali então que eu compreendo que a ideia de território é a ideia de produção de sujeitos. Então, o território não é o lugar, território é o espaço-tempo que os sujeitos inventam em ação, naquele espaço em que eles estão colocados, naquele lugar, naquela região.. O território como invenção do sujeito, como invenção de imaginário, por isso acho que tem muito a ver o diálogo do território com o campo da cultura digital, pois é um campo de invenção que você faz ali com sua rede, com seus posts, com suas escolhas, com o que você associa com a sua ação na vida. A cultura digital não é só uma representação do real.

O segundo momento, foi quando comecei a usar isso e a fazer. Eu tinha feito um documentário sobre atores que viviam na miséria e fui divulgar esse documentário num programa do Rodolfo Bottino. Aí eu cruzo com o Jailson Silva [diretor do Observatório das Favelas]. Eu já sabia quem era ele e a partir daí começo a prestar mais atenção no Jailson. Eu estava então muito brigado com o campo da arte, porque se tornou um campo. E eu me tornei um cara que disputava esse campo, porque eu dizia que tudo estava na Zona Sul e essas coisas, então comecei a encontrar o Jailson e a ver que ele e o Jorge Barbosa [também diretor do Observatório de Favelas], usavam a palavra território como favela, e como território também. Pensei: bom, acho que tenho uma força aqui, a força dos intelectuais…

O terceiro momento em que vejo que a palavra território é uma palavra importante foi quando conheci o cinema documentário de dispositivo, que me foi apresentado pelo Cézar Migliorin. Eu estava fazendo o filme Carnaval, bexiga, funk e sombrinha, que já tinha um recorte territorial, para mostrar como os bate-bolas não eram apenas cultura popular espontânea. Que, na verdade, ali tinha um sistema de economia territorial, que cada turma de bate-bola mudava sua roupa de acordo com o território. Fui filmar pensando como essa questão, e com a disputa de cidade e periferia, era coisa do contemporâneo e não só popular. Eu queria disputar o território do contemporâneo. Conheci o Cézar, que é professor de cinema da UFF, e ele me disse: cara, o que você está fazendo é cinema de dispositivo, você tem que conhecer. Então, eu conheço uma série de cineastas de documentário, como o [Mohsen] Makhmalbaf, que fez o Salve, Cinema, o  Rodrigo Fonseca , o próprio Eduardo Coutinho… Aí eu vejo que aquele cinema documentário, onde o artista não é o centro para representar o mundo, onde o artista escolhe um dispositivo para agir no mundo. E percebi que isso servia como estética para mim, não no cinema, mas na metodologia. Então, tudo isso se junta para mim, e fecha.

Se no primeiro momento as ideias do Milton Santos, da literatura, da arte me dão um ponto de partida de lugar de fala, o Jailson, o Barbosa e o Observatório de Favelas me dão uma legitimação do campo intelectual para eu colocar algo novo dentro da arte, o cinema de documentário me dá uma maneira de agir no território, como linguagem. A partir disso eu fui trilhando um caminho, de falar sobre isso, de pensar sobre isso, de ler sobre isso.

Em 2008, quando estava na Secretaria de Cultura de Nova Iguaçu, passei a pensar que toda política pública deveria ser territorializada e não com linguagens artísticas, porque as políticas de linguagens artísticas significavam manter a desigualdade territorial. Quando você faz um edital de teatro solto, a chance de você premiar alguém da periferia é muito menor, já quando você faz territorializado você vê que o teatro que deve ser apoiado em Santa Cruz é o teatro de rua, porque aquele é o fazimento das pessoas do teatro em Santa Cruz. Então, eu já estava formulando, a partir disso, a Escola de Cinema, com as crianças. Eu já estava criando metodologias, de pegar a câmera e filmar todo mundo dentro das casas, dos seus bairros, pessoas que colecionavam fotos. Era o cinema como disparador de ação no território. No projeto Minha rua tem história a gente ouvia histórias de jovens nas esquinas, essas histórias iam para um blog, e desse blog viravam aula, grafite. O que pensei naquele momento foi: já que já tenho os intelectuais, vou ser o cara que inventa práticas estéticas nesse campo do território. Uma prática estética social, porque tem um vazio nisso. Eu brincava com o Jailson: se você não sabe fazer isso, eu vou fazer essa parte. Vou entrar nesse campo e vou inventar. Não vou dar só oficina, não vou montar uma escola para formar as pessoas, eu vou criar um método. Isso foi um grande debate… e aí eu comecei a interagir com muita gente.

Eu não tinha dúvida nenhuma de que a minha contribuição seria através de ações estéticas e sociais. Porque era isso que tinha me motivado a deixar de fazer peça e a voltar pro Rio…

O guia afetivo da periferia surgiu porque eu tinha vontade de mostrar que havia uma dimensão de afetos ali, não só o catártico, mas no sentido de se afetar mesmo. Então, ali no Guia tem coleção de ruas, de memórias pela cidade. Eu já estava tentando um projeto estético do território e da vida, criando uma nova representação. Ali eu já estava pensando em tentar criar um projeto de representação, eram as minhas pazes com a representação de novo. É possível, eu pensava: agora que eu já estou inventando uma prática de ação estética no território, eu vou tentar começar a produzir uma representação de território. E eu já tinha o dispositivo, porque era assim: escolher ruas pelas quais passei, coisas que vi. São os dispositivos, você não vem com uma coisa fechada, você escolhe um disparador, e desse disparador você opera. É uma maneira de agir sobre o território, porque o território não está dado, ele pode ser inventado.

Eliane: O território é um dispositivo político?

Marcus Faustini: Sim. É um dispositivo político. Eu acho que com o Jailson eu saquei que é uma narrativa política, que é melhor do que a de periferia.

Eliane: E o que o território traz a mais, pra além da noção de periferia?

Marcus Faustini: Traz subjetividade, traz ação. A periferia de alguma maneira está ligada à ideia de gueto, de exclusão e de não invenção. Na periferia você vê tudo igual, mas quando você combina com a ideia de território começam a aparecer diferenças, subjetividades, um convite para a ação, pois não existe território sem ação. Aparecem pequenas diversidades, porque há diversidade mesmo dentro de uma mesma favela…  A ideia de território traz a de sujeito, porque também não existe território sem sujeito. Isso me trouxe uma atitude política também, do tipo: vou fazer escola de teatro em Santa Cruz, no bairro mais pobre, e em Austin, na periferia. Isso determinou um ethos, vamos aonde ninguém vai, e vamos levar práticas contemporâneas e ação. É estabelecer uma dimensão política de ação, de produção. Isso veio junto com a cultura digital, então a gente começa a postar os conceitos, assim como os vídeos que produzimos.

Eliane: Você se refere à cultura digital pelas possibilidades de criar e compartilhar? Ou mais que isso?

Marcus Faustini: É… a cultura digital também me deu uma forma de criar. Porque o próprio passinho, que a gente viu nascer, mostra que os moleques  que dançavam para lá e para cá no baile,  agora dançam mais rápido porque é em frente à câmera. Então, o que era vida antes, vira linguagem no baile, por causa da câmera. Isso inventa uma nova cultura. Cultura digital e periferia estão muito ligadas. Não é só uma divulgação do que se faz, a cultura digital é um processo que cria novas estéticas, novos campos de conexão política e de modos de agir.

Eliane: E modos de expressão, de circulação, mobilidade…

Marcus Faustini: Isso! O território traz uma força política, ele traz um modo de agir. Eu acho que o território e a força que isso vem tomando têm a ver com essa ideia de que os pobres no Brasil não são uma só identidade, são diversas, têm subjetividades, tem errância, não é um bloco como o povo do folclore, o povo de raiz. Tem trajetórias que dizem muito respeito à coisa urbana, a uma geração urbana errante . O território é uma narrativa sobre sua experiência de invenção naquele lugar, ele não é só um lugar, se você muda a narrativa, você muda o território. Território é uma disputa de narrativas. É um conceito muito aberto para as disputas e invenções. Região, bairro, comunidade são noções que deixam tudo muito fechado para a ação política. Já com a ideia do território você pode inventar a Maré como um território de produção artística. Esse conceito foi a minha salvação como artista, mudou meu modo de pensar. Como artista, como ativista, como empreendedor, como tudo. Foi um conceito chave.

Eliane: E nesse conceito chave, quando você se viu um ativista do território, era o território da periferia, do Cezarão? Qual era o seu território?

Marcus Faustini: Eu acho que é o território do campo popular do Brasil.

Eliane: O território para você é sempre o não hegemônico?

Marcus Faustini: Olha, para mim é, mas não estou dizendo que é só isso. Estou colocado no não hegemônico e vejo a desigualdade. Eu me coloco nesse lugar. Tem território de afirmação de hegemonias. Ou talvez não? Porque quando você tem a hegemonia você é o poder, você não é mais território. Você passa a querer fazer a manutenção do poder. Você não inventa mais. O poder é extremamente conservador…

Eliane: O território então seria um terreno em disputa, um campo de forças?

Marcus Faustini: De disputa e de invenção. De disputa da cidade também. A noção de território é mais pública, porque dá espaço para errância, onde pode chegar gente que não está ali na comunidade. Por isso a minha implicância com coletivos, porque coletivo é um pé para o privado, o coletivo se acha especial e quer que a cidade o aceite com sua especialidade. A dimensão pública é a de se dar um jeito no qual qualquer um pode entrar na ágora, e pode passar a protagonista. É um pouco do que eu tento fazer com a Agência: vamos pegar qualquer jovem e não só quem tem ideia, e fazer esse cara ter ideias e entrar no debate da cidade. Então, eu prefiro a dimensão pública à dimensão privada, a do comum. A dimensão de trabalhar com território me fez trabalhar com evangélicos, com funkeiros, com ativistas, com empreendedores, e eu sou grato por isso, porque essa noção de território me deu muito mais inserção na minha cidade do que quando eu era engajado na ideia marxista de operários e burguesia.

Trabalhar com o conceito de território te dá mais espaço para trabalhar, dá mais espaço para aparecerem pessoas que não falam igual a mim. Porque se trabalho com um programa muito fechado, de revolucionários ou de especialistas, não vou ter isso. Então, pra mim, que trabalho com a dimensão pública como a dimensão mais importante, o conceito de território é o que me serve mais.

Eliane: Território é simbólico, é chão, ou é simbólico projetado no chão?

Marcus Faustini: Vai desde o conceito físico de fazer recortes: Rocinha, Batan, comunidade popular. E acho que política territorial deve ser georreferenciada, porque o território também se presta à política pública. Acho um avanço esse edital agora em que a Maré tem um orçamento, o Complexo do Alemão tem outro. Assim abrem-se as possibilidades de aparecerem as diferenças, a produção e a invenção daqueles lugares, ainda não estão legitimados. Se você vai por linguagem, se faz um edital de periferia hoje, só vai aparecer quem já é grande na periferia.

Estou para publicar um texto na coluna [no jornal O Globo] que é “O fim do boom da periferia”. Estou preparando com calma, porque acho que agora ela está em um outro lugar, não estou dizendo que é ruim, mas que está em outro lugar, ela já foi incluída, e agora outras dimensões se colocam nessa construção. Então é isso, se eu faço hoje um edital de periferia só vai entrar quem é grande. Agora, se eu faço recorte territorial aparecem as diferenças.

Eliane: Georreferenciando mas como invenção dos sujeitos naquele lugar….

Marcus Faustini: Sim, você tem que ter uma georreferência. O meu lugar de fala é a periferia e o Rio de Janeiro. A minha questão é a cidade do Rio de Janeiro, é que ela se torne uma cidade popular. Isso tem uma intencionalidade política.  A prática foi mais rápida do que o próprio conceito.

Eliane: Uma ressignificação do conceito…

Marcus Faustini: Você é a primeira pessoa que reflete sobre isso, dessa maneira, juntando todas essas pontas. Porque a urgência era de prática, então, eu acho que as pessoas foram para a prática. Até porque quem agarrou primeiro esse conceito foi gente que estava na prática e não na academia. Então, acho que tem usos residuais… eu também não tenho clareza, estou aqui formulando isso.

Eliane: Você utiliza o termo território somente para os espaços populares da cidade?

Marcus Faustini: Talvez porque isso tenha sido usado por esses atores em um primeiro momento. Então, ficou muito associado. Foram os atores que trabalhavam nesse campo, tanto o da sociologia, da ação social, quanto da arte, que reivindicaram esse conceito como um conceito de uso político.

Eliane: Quando você fala do território você está se colando dentro de uma luta? São territórios de engajamento?

Marcus Faustini: O meu território de engajamento é esse campo dos territórios populares do Rio de Janeiro, que eles passem a ser legitimados como campo de produção e não só de recepção. Historicamente, eles são dados como campos de recepção, na lógica do: vamos levar cultura para os pobres. Vamos conscientizar as pessoas, vamos dar acesso… Mas eu acho que temos que ter o direito é à produção. O Rio de Janeiro represa seus imaginários, poderia produzir muito mais! Só se vai para a favela para filmar a rua, isso é o maior clichê da favela. Isso é não ser território, é ser um imaginário clichê do que é aquilo ali, porque ali tem vidas, tem invenções, tem memórias. A disputa de memória é decisiva para a dimensão de território. Território é um campo político e estético.

Eliane: Mas quando um gestor público da prefeitura, ou do Estado, fala assim: “Eu vou fazer política para os territórios”, está se referindo a que?

Marcus Faustini: Eu acho que tinha mesmo que ser incorporada a noção de território à política pública. Não deve ser a única coisa, mas certamente a noção de território ajuda em duas coisas: uma é a democratização do direito à produção e a outra é a explosão de mais imaginários, porque o Rio de Janeiro tem um imaginário muito represado, o de cidade maravilhosa e do popular extraordinário, da alegria coletiva. Aí vão aparecer subjetividades.

Eliane: A política pública vai atuar sobre os territórios que estão sendo inventados…

Marcus Faustini: Isso, eu acho também. Reconhecer as noções e os usos do conceito de território pode ser um elemento da política pública, mas acho que isso ficou muito residual, não tem um campo conceitual ainda. É mais consistente  na sociologia, nas ciências sociais, na geografia, mas essa transição para o campo da cultura e da ação social,  trouxe uma novidade. A prática parece ter sido  maior do que a produção conceitual.

Eliane: Naquele episódio em que gangues de academias da Zona Sul ameaçaram que iriam retirar dos ônibus os meninos das favelas que chegassem à Ipanema… para eles a praia de Ipanema não seria um território?

Marcus Faustini: Sim, para eles é o território deles. Exato. Acho que não existe território sem reivindicação dos sujeitos, da sua produção. Então ele é um conceito cultural.

Eliane: Vem da geografia…

Marcus Faustini: Mas é que aí entra um preconceito com a dimensão da cultura, de que ela é só uma expressão. Só que isso vai ter atravessamentos, eu não estou reivindicando a centralidade da cultura, mas acho que esse foi o uso de território que a gente da [área da] cultura colocou.

Eliane: Você acha que é um uso que ultrapassou a discussão sobre território que se faz dentro do campo da geografia? Porque mesmo lá, o território é um conceito em movimento mesmo…

Marcus Faustini: Acho.

Eliane: A geografia contemporânea trabalha bastante com a ideia de território como campo de forças, como falamos aqui…

Marcus Faustini: Mas na hora que a geografia vai explicar o fenômeno artístico fruto dessa produção a partir da ideia de território, ela é classificada, geralmente, no campo da identidade. Que já era essa a ideia de alta cultura e de baixa cultura, o que vai trazer um problema posterior. Porém, na hora de explicar o fenômeno artístico, dizem: “isso é cultura popular”. E não levam adiante a novidade nem a curiosidade. Por exemplo: o passinho. O passinho não é só cultura popular. E eu vi muita gente classificando o passinho como cultura popular. Mas ali tem uma dimensão urbana que vai além do que a gente conhece, ali é o contemporâneo, é a cultura digital, que são conceitos do campo da arte contemporânea. Na hora de estudar o fenômeno que é fruto dessa dimensão de território geográfico, eu acho que fica um pouco mais conservador. Porque acaba caindo no campo da cultura popular. É uma impressão que eu tenho.

Em uma política de território você mapear dentro de uma comunidade só os artistas que são reconhecíveis no universo do que a gente já chama de arte, não adianta… Se você vai para a Maré e mapeia apenas músicos, você não está fazendo uma política de território, você está fazendo uma política de região e de identidade cultural que vem do passado, que classifica, que hierarquiza, que só reconhece o que está nesse panteão.

Eliane: Não basta a territorialização das verbas da política pública, tem que haver troca.

Marcus Faustini: Tem que haver troca, tem que estar aberto à invenção. Esse conceito de território traz novos desafios para a política pública, não é fácil de resolver, não é só dizer: está aqui a quantidade de verba. Tem um nível de participação e de acompanhamento que a política de território deve ter, e para o quê as políticas de cultura que apenas reconhecem o artista que já faz, não estão preparadas. Na política de identidade, de consagração, você reconhece alguém, então fica assim: toma, você faz isso e aquilo. Na política de território o próprio agente público tem que estar ali trocando, porque ela é dinâmica. Você não está atrás do fenômeno apenas artístico, mas dos encontros que esses fenômenos artísticos produzem dentro do território. Aí você pode juntar uma rezadeira com um grafiteiro em uma ação de território. Você pode não dar dinheiro para o cara que está fazendo o fenômeno artístico, mas para os processos de vida. A casa Fora do Eixo, o rolezinho são exemplos disso.

Eliane: Pois é, acho o rolezinho um excelente exemplo, é uma coisa que eu estou estudando também. Quando a molecada programa um rolezinho, e aí eles vão pro shopping, pro estacionamento do supermercado, eles estão entrando em um outro território: são espaços de consumo de bens simbólicos distintivos, não acha?

Marcus Faustini: Sim. E reinventando aquele território. Porque esse território não é só lugar de compra, é um lugar para o nosso lazer, já que nós não temos outro lugar de lazer, esse daqui também vai ser lugar de lazer. Talvez tenha sido um dos maiores atos políticos que a gente já teve, estético e político. É quase um happening dentro do território, uma intervenção urbana. E os conservadores classificam isso, de balbúrdia como forma de de controle. Já os mais progressistas acham que isso está fazendo um bem como expressão política, mas nao perceben sua dimensão estética. E, enquanto não se reconhecer a dimensão estética desses novos fenômenos a gente mantém as hierarquias. Esse é o meu entendimento.

Exisrem pensamentos estéticos ali, mas ainda não tem massa crítica para isso, porque a crítica está nesses conceitos, nessas categorias conceituais desse outro tipo de arte, desse Brasil de alta e de baixa cultura, de artesão. Quem pensa por essa lógica de artesão nunca vai entender que o moleque dança, faz seu vídeo, mistura vida, e ele não tem ateliê, é meio a vida toda inventada, ele que se filma. Eu acho que tem uma coisa boa aparecendo também que é uma nova noção de espetáculo. Porque antes, na periferia cabia só a vida, aí vinham os mediadores e organizavam aquilo como espetáculo, como livro, como filme, como documentário ou como próprio espetáculo [de teatro] mesmo. Mas, esses vídeos na internet, essas caminhadas de entrar em shopping, os rolezinhos, isso é a própria ideia de espetáculo. Os moleques que fazem caminhadas de patins na Cidade de Deus e pela cidade, falando poesia, performando, isso é uma nova ideia de espetáculo, e eu acho muito interessante a periferia entrar na disputa da ideia de espetáculo.

Eliane: Os saraus também, não é?

Marcus Faustini: O sarau é ocupação, ele é uma nova disputa no campo do espetáculo, ele não é só um bando de gente alternativa buscando um lugar para se expressar, já que não tem palco… Não é um movimento dos sem palco, é uma escolha estética.

Eliane: As duas coisas, né?

Marcus Faustini: É. Começou assim [como o movimento do sem palco], mas rapidamente se transformou em uma escolha estética. Ou seja, inventa territórios.

Eliane: E a própria coisa do passinho… Tem uma coisa estética e tem outra coisa, que o Julio Ludemir [criador, com Rafael Nike, das batalhas do passinho] falou e que eu acho muito legal: esses garotos foram criados na lanhouse, vendo a vida do outro lado da tela. Com o passinho esses meninos passam para o outro lado da tela.

Marcus Faustini: Sim. E estão na vida.

Eliane: E começam a circular em uma cidade que não tem mobilidade pra eles, uma cidade com espaços interditados….

Marcus Faustini: Então, eu acho que isso rompe com aquela ideia de que nós devemos representar os pobres. Essa cultura de território não quer só a representação de como é a minha favela, ela quer produção de presença. Ele diz: queremos presença! Por isso que a intervenção urbana faz sentido, e cobrar protagonismo faz sentido, porque sai daquela lógica de: vamos representar aquela favela que a gente não compreende. Vamos fazer um filme sobre ela. Sai da ideia de representação, e entra a ideia de produção de presença. E que é assim: é do nosso jeito, do jeito que queremos. Isso tem vários indícios, como o tipo de espetáculo, que é interativo, geralmente; ele não é uma caixa, ele é outra coisa. Acho que isso foi influenciando, é o que eu vejo, mas eu não estou aqui para dar conta de tudo e explicar como é. É apenas o meu ponto de vista, a partir desse meu lugar de fala, porque acho que se criou uma ecologia e foi muito poderoso,. Se você for ver tem muito pouco tempo desde que isso explodiu. E mesmo com a descontinuidade das políticas, isso continua forte. Especialmente aqui no Rio de Janeiro.

Eliane: E como é em São Paulo? Lá se fala de território ou de periferia?

Marcus Faustini: Lá ainda se fala de gueto.

Eliane: Uma coisa de não se misturar?

Marcus Faustini: O Mano Brown vem até fazendo uns esforços de romper com essa lógica, bem interessante.

Eliane: Eu vi uma declaração dele de que o funk é mais libertário que do o hip-hop.

Marcus Faustini: Mas por quê? Porque o funk é um corpo presente, mais presente do que a mensagem do hip-hop. Aí ele começa a perceber que a presença do meu corpo, do meu jeito… o corpo não é só um instrumento da racionalidade, ele é o próprio discurso. Quando você bota o presente, você bota o corpo.

Eliane: E funk ostentação ?

Marcus Faustini: O funk ostentação nasce do vídeo clipe. Claro! Por que o cara vai ostentar onde? No vídeo clipe! Não faz sentido ostentar só na vida. Ostenta mais ainda. Porque eu vou me filmar, eu vou me fotografar e vou botar na rede. Quando era para ostentar só para ele mesmo, ele botava uma camisa, isso ou aquilo. Mas quando você passa a querer mostrar, você ostenta mais ainda. Então, o funk deixa de ser só uma cultura musical, passa a ser uma cultural audiovisual e de vida. Ninguém faz uma música de funk hoje sem pensar no clipe. Você já pensa no clipe que você vai fazer. Eu acho que na indústria fonográfica, a música ainda é o grande centro. Mas nas culturas mais populares, seja em Belém, com o tecnobrega, o audiovisual é muito importante, ele é uma das categorias de criação da música.

Eliane: Território tem a ver com a visibilidade? Na cena da desigualdade e da invisibilidade social…

Marcus Faustini: Total. Porque reivindicar, ser um território, te coloca em um lugar de visibilidade.. Toda visibilidade é política. Ela é uma escolha, é acentuação de um tipo de visão. Se a gente encerrasse hoje o uso do conceito de território no Brasil, eu diria que ele ajudou muito já.

Eliane: E você vê isso fora do Rio de Janeiro? Você vê outras pessoas falando sobre isso, o território, na prática cultural?

Marcus Faustini: Acho que no Pará, em Belém, já vejo as pessoas usando isso.

Eliane: Mas usando essa expressão de território?

Marcus Faustini: Sim, e na Bahia também. Os acadêmicos da Bahia, o pessoal da UFBA, eles usam essa ideia.

Eliane: Ah sim! Na política pública, eles têm os agentes territoriais e todo um programa nessa perspectiva.

Marcus Faustini: Não, não. Digo na academia também.

Eliane: É que o [Albino] Rubim hoje é o Secretário de Cultura. Ele vem da academia e é também o Secretário de Cultura. E você tem razão, tem o Enecult, que discute diversos trabalhos acadêmicos nessa linha também.

Marcus Faustini: É. Então, eu acho que se difundiu de maneiras muito diversas, e foi muito bom como esse conceito superou o conceito de Ponto de Cultura muito rápido, superou como instrumento mesmo.

Eliane – O Ponto de Cultura foi um dispositivo? Um grande dispositivo chancelado pela cultura?

Marcus Faustini: Foi uma política de aproximação das coisas que não se entendia, mas que estavam excluídas. Aí foi assim: “Vamos criar isso aqui, para o poder público começar a se relacionar com isso tudo que a gente não dá conta, o popular que está subalterno”. A partir do momento que isso começou a existir e veio o conceito de território, o conceito de território dá mais chances de aparecerem diferenças e subjetividades do que o conceito de cultura popular. Ele diz muito a respeito desse Brasil urbano.

Eliane: A ideia de cultura popular vem com todo um imaginário junto… parece que já está pronta, está feita?

Marcus Faustini: Isso. Parece que ela é fixa. E o conceito de território permite ser meio urbano, meio rural, meio contemporâneo. Ser meio surpreendente, onde surgem coisas. Combinações diferentes.

Eliane – Qual a relação entre o que a gente está falando aqui, o território, e o Ponto de Cultura?

Marcus Faustini: O territorio surgiu a partir do Ponto de Cultura. Parece que ele juntou dois pedaços de fios ligados na tomada e deu um “tchun”, disparou a possibilidade da ação no território, a chancela para a cultura na ponta, para o agente cultural na ponta. Isso o Ponto de Cultura fez, e depois o Ponto de Cultura saiu, mas ainda existe, apesar de não mais com aquele tom que tinha e nem tão ligado à questão do digital. Eu acho que naquela hora, se não tivesse o digital não teria a capacidade de juntar a visibilidade do digital com o protagonismo do território, que foi a grande faísca.

Eliane: Você acha que foi a narrativa que você criou, o seu território, que te levou a, hoje, estar escrevendo no maior jornal da cidade ou discutindo política pública, até com o secretário de cultura, no Facebook? Teria acontecido sem a narrativa que você criou?

Marcus Faustini: Jamais, jamais. O conceito de território me deu tudo. Me deu uma nova maneira de ser artista, de me tornar uma pessoa com voz no debate público, me deu uma nova maneira de pensar a produção e um campo teórico que ninguém dominava bem e que dava para eu ir inventando. Talvez se eu entrasse em um campo teórico da cultura popular ou da assistência social, eu teria que respeitar, eu seria cobrado para respeitar hierarquias. Então, esse campo também me trouxe essa possibilidade.

Eliane: Um frescor, uma liberdade…

Marcus Faustini: É. E como ele está em aberto, ele me ajudou. Então os meus três pilares foram aqueles que eu já disse: primeiro, o Milton Santos, voltar a trabalhar no território e não só fazer teatro, mas incorporar a ação. Depois, perceber a força política disso com o Jailson e o Barbosa. E o terceiro foi a estética do cinema de documentário que me ajudou: se eu queria criar ação na vida e não só representação, eu achei no cinema de documentário um modo de agir. Se você pegar a Agência, ela tem um pouco dessa estética no cinema de dispositivo, a gente dispara uma ação no território e vê o que aparece, a gente não vai lá pra explicar o território. Então, a gente caça ideias e vai criando formas para lidar com isso e ir produzindo junto. O território é tudo menos o mapa estabelecido, né? Ele é o mapa que a gente inventa.

Eliane: A partir de um mapa?

Marcus Faustini: Isso. Ele é uma sobreposição, ele é um remapeamento, ele é outra camada. É o chão, que seria a produção dos homens naquele lugar. Eu diria que o conceito de território ajudou a gente a pensar de maneira política e filosófica as regiões. Se antes a gente só tratava a região como lugar, agora a gente politiza e dá dimensão estética àquelas regiões.

Eliane: E por que isso não seria a identidade cultural daquele lugar?

Marcus Faustini: Porque eu acho que um conceito não existe em essência. Não estou dizendo que isso é uma verdade, mas foi o modo com que aprendi a lidar com os conceitos. O conceito é o seu uso, para mim o uso do conceito de identidade hoje, é muito mais conservador do que gerador de novas potencialidades. Então, eu não uso o conceito de identidade, mas eu entendo ele.

Eliane: Ele parece mais fixo também.

Marcus Faustini: Sim, é mais fixo mesmo. Eu sou mais a ideia de diferença, pois eu quero que apareçam as diferenças, na diferença cabe eu reconhecer quem não é organizado, quem ainda não tem expressão como agente político. Na identidade eu só reconheço aquele que já tem fala, que já tem dicção, que tem vestimenta. O território ajuda as coisas a irem aparecendo. Você vê que quando a gente começou a usar o conceito de território, mesmo quando é em um território em que a gente está agindo, outros começam a reinvindicar seu uso. O conceito de território é tão bom que faz imediatamente todo mundo se empoderar, ele segura a ideia de poder. Então, se você está agindo em um lugar, imediatamente aparece outro, que diz: “Saquei!” Porque está todo mundo muito próximo… No conceito de território quem conseguiu ter alguma expressão não está tão distante. Ele é um conceito muito forte, muito forte.

É um lugar de invenção, tem a ver com espaço social, mas é um lugar de invenção. A gente não está aqui para traduzir a teoria na ação prática. O que eu acho também que aconteceu como efeito do uso de território, foi que muito artista e ativista social ganhou status de intelectual. Porque ao falar de território, categorizou em um campo mais de disputa teórica.

Eliane: Mais sofisticada.

Marcus Faustini: É, sofisticou. Então você vê pessoas como o Dudu de Morro Agudo, que passam também a ter legitimidade. Você vê o Adailton [Medeiros] falar de território para falar do Ponto Cine. Antes o artista era convocado para esses lugares para quê? Para dar oficina, e o cientista social era o dono da ONG, era o coordenador. Hoje, você tem uma série de ONGs que têm artistas coordenando, como o Junior Perim. Têm pessoas do campo da arte coordenando ONGs, isso faz uma mudança. O uso do conceito de território, de alguma maneira leva as pessoas para um debate intelectual.

Eliane: Mas eu acho que isso aí vem antes da pegada do território. Quando entra um Celso Athayde criando a CUFA, em 1996, quando ninguém falava de território ainda.

Marcus Faustini: Acho que o Celso e o Junior do AfroReggae sempre tiveram muita clareza do lugar político que podiam ocupar. Os dois para mim são os mais conscientes dessa perspectiva.

Eliane: Até porque eles foram desbravadores, porque você chegar tocando tambor em Vigário Geral, depois de uma chacina…

Marcus Faustini: Eu acho incrível essa história. E se não tivesse o Junior do AfroReggae, não teria um campo para eu trabalhar. Eu me lembro de olhar pra ele e pensar: pô, esse cara faz isso e acho que eu posso fazer também, mas um pouco diferente… Tinha uma referência. Acho que quando o cara diz “Sou da periferia”, ele está dizendo: “Sou excluído, sou o que não é, não sou centro, não sou nada. Eu não sou.” Ele se nega ao debate. Mas quando ele diz: “Eu sou de tal território.” Ele está disputando um lugar.

Eliane: Ele se coloca na potência e não na carência.

Marcus Faustini: Ele passa a ser potência com o uso do território. Periferia estava ligada à ideia de carência. A periferia está ligada à ideia do não ser, porque a periferia só existe se tem um centro. O cara pensa: eu quero estar no centro. Quando você reclama território você está querendo outra centralidade.

Eliane: Isso foi uma construção, uma narrativa ou uma disputa do imaginário, como você fala?

Marcus Faustini: Acho que foi, mas não foi como um projeto teórico anterior à prática. Porque a impressão que eu tenho é de que tudo aconteceu muito rápido. Eu usei o conceito porque dizia muito mais respeito ao que eu acreditava como disparador artístico, seja para a ação social ou para a produção estética do que a ideia de periferia. Eu fui mudando, porque isso se demonstrou muito mais ligado à minha produção, por ter mais sentido para o meu modo de fazer. Eu não sei fazer uma história de médico. É o meu limite e a minha potência ao mesmo tempo. Não estou dizendo que isso deva ser tudo, mas isso me trouxe até aqui, e realmente acho que cumpriu seu propósito, que foi de além de inventar nossas vidas, foi o de deixar um legado. Esse é um dos propósitos de quem trabalha nesse campo. Não vamos sozinhos ser quem faz a trajetória, mas vamos construir nosso lugar de fala, ao mesmo tempo trazendo gente.

O território é uma categoria de ação. Não é uma análise do que eu faço ou dos efeitos sobre o que faço, ela é uma categoria para eu poder criar. Não é um estudo, é a partir do estudo.

Eliane: Você tem uma frase que eu gosto muito: “A Agência não é uma oficina de empreendedorismo, ela trabalha o jovem da favela como em um processo de parkour, em que ele vai pulando e dizendo: aqui já está legal, agora vou pra outro salto…”

Marcus Faustini: [Vai] para a vida.

Eliane: E você também fez isso na sua trajetória, pulando da periferia para o território…

Marcus Faustini: Isso não foi intencional do ponto de vista teórico. Me vejo sempre como um artista, com um projeto de campo sensível. Então, ele delimita um campo sensível, para o qual ele não quer dar uma explicação, ele quer criar uma imagem, uma ação. Ele quer criar o que  Deleuze vai chamar de perceptos, o campo de percepção e não de explicação. Então, de alguma maneira eu trabalho com os conceitos assim: isso aqui me serve, isso aqui vai me levar adiante, isso aqui é um bom conceito para eu trabalhar aquela outra coisa que eu intuí. Então, talvez eu faça um uso teórico irresponsável. Um uso que se validou para a ação.

Eliane: Mesmo não tendo sido um projeto conceitual teórico, você já leu muito mais coisas do que você pensou que leria, inclusive. E, nas coisas que você leu, você encontrou justificativas para coisas às quais você chegou por outros caminhos?

Marcus Faustini: O conceito de território me levou a estudar.

Eliane: Então, qual é a sacola que você traz hoje?

Marcus Faustini: Eu trago muita coisa. O cinema de dispositivo, eu estudo muito isso, o [Jacques] Rancière, um cara que escreve sobre democracia, ele tem um livro que se chama O mestre ignorante, que é a história de um cara que não sabia falar inglês, mas tinha que ensinar inglês para uma turma que também não sabia então ele cria processos de ação e de mediação. Isso foi uma das coisas que me influenciaram. O Culturas híbridas, do Canclini, foi um livro que foi uma virada na minha cabeça… Foi importante pra desconstruir o projeto de modernidade da América Latina para mim, a ideia de alta e baixa cultura, e como isso estava ligado a um projeto de modernidade. Por isso que não gosto muito da ideia de realismo fantástico, porque reforça a perspectiva eurocêntrica de colocar a gente como o outro do mundo. Tem um livro que o Barbosa me deu, chamado No breviário do Mediterrâneo, que é um cara que anda por aquela região e vai narrando as coisas que encontra, ele é um geógrafo subjetivo. O Chris Marker, é documentarista e tem um livro sobre ele chamado O bestiário de Chris Marker, onde ele narra um pouco dos monstros que vai encontrando e vai ressignificando a partir do território. O que eu ando lendo muito agora é sobre diferença, estou lendo um livro que é um conjunto de teses francesas sobre diferença. Existe a possibilidade de construir uma política de diferenças? Não se trata mais de comunidade. É como criar política para o errante, como isso é um campo de força, e não só valoriza a ideia liberal de sujeitos soltos, o campo da diferença é um dilema. Eu sei que quando discuto essa questão do território, dos sujeitos em ação na cidade, tem uma grande chance de ser capturado pelo liberalismo, então estou estudando isso.

Eliane: É a mesma coisa com o empreendedorismo; na Agência você preferiu um olhar político sobre ele, não é?

Marcus Faustini: Sim, para politizar. Esse é um gesto permanente no trabalho da gente [da Agência] aqui, que é pegar campos que não estão politizados e politizar com a presença da gente disputando. Em Por uma outra globalização, Milton Santos categoriza a globalização como fábula, como perversidade, como possibilidade. Quando li esse livro, eu disse: agora vou narrar tudo como três campos. Às vezes eu narro a periferia como fábula, aquele modelo mental me marcou profundamente para poder narrar… pegar uma coisa e desconstruí-la com aquelas três possibilidades do Milton Santos. Acho que a coisa do desejo do Deleuze foi também importante, mas ela veio depois.

Eliane: O que do Deleuze?

Marcus Faustini: Da ideia do sujeito desejante, retirar o desejo só da sexualidade e coloca-lo no projeto de vida. Pensar a vida como potência do desejo, e não a vida apenas como uma realização pessoal, mas a vida de maneira desejante o tempo inteiro. Observar como o capitalismo quer controlar esse corpos, e como a gente pode produzir uma vida que se autoinventa. Foi daqui que tirei a frase que para mim é motor: “Estar na vida é muito mais importante do que estar no mundo.” O mundo você agencia, a vida você inventa. Eu acho que tem um pouco disso, tem um pouco  do Rancière, tem muito do cinema de dispositivo, tem muito da convivência com o Jailson e de muita discussão, de brigar, voltar, discutir.

Acho que o Conveniência da cultura, do [George] Yúdice foi muito importante, que é para pensar o entendimento de em qual geração eu estava colocado, e de como trabalhar isso. Algumas conversas com a Helô [Heloisa Buarque], que sempre chamou a atenção para essa dimensão de não-gueto, de subjetividade. Eu sempre tento, no discurso das pessoas, perceber as pequenas frases, de tudo que a pessoa falou, tem uma coisa que é o motor. Acho também que escrever a coluna, esse exercício de escrever semanalmente, foi me obrigando a pensar. Quando fiz o Carnaval, bexiga, funk e sombrinha eu disse que os bate-bolas não eram só cultura popular, era cultura de território, e tem uma professora na Uerj que me odeia por causa disso, porque ela diz que isso é cultura popular, porque ela estava muito ligada na pesquisa do folclore e eu tentei demonstrar que aquilo era marcado por dimensões territoriais, e não só como uma expressão espontânea do povo, uma expressão genuína, mas que tinham contradições contemporâneas e até operações mesquinhas, de disputas territoriais, não era uma coisa imantada pela pureza popular. E que as pessoas nos bate-bolas não vivem o personagem do guru popular o ano inteiro, mas que são pessoas que têm profissões mundanas, são policiais, trabalham em bar, e é uma cultura até masculina, que os caras precisam se mascarar para se tornarem visíveis. E mobiliza muito, tem mais de cem turmas na periferia do Rio de Janeiro. E eu via aquilo como um fenômeno contemporâneo, tanto é que no filme não tem nenhum intelectual falando, só eles [os bate-bolas]. Acho que isso também foi importante para a definição  do conceito de território, que era um conceito que dava possibilidade de pessoas do território falarem como intelectuais, e não ter sempre um intelectual pra falar, do tipo: fala o povo que faz, e agora vem um intelectual que explica. Acho que o hip-hop teve um papel importante, porque o hip-hop reinventou a militância no Brasil. Quando a militância estava frágil, o hip-hop vem e traz uma militância de juventude, diferente das que são políticas, do movimento estudantil, ele dá uma força. Ah, e tem também o [Richard] Sennett, que foi muito importante para mim, conhecer ele, conversar com ele, ler ele.

Eliane: Você esteve com ele agora?

Marcus Faustini: Sim, em Londres. Tem dois anos. Porque no Juntos ele fala do conceito de cooperação comunitária e de como isso precisava virar pop. Ali me deu um estalo: cara, o que eu estou fazendo é cooperação comunitária! E, eu estou fazendo cooperação comunitária. A Agência não é só empreendedorismo não, ela é um tipo de cooperação comunitária, mas eu estou embalando isso um pouco para trazer a juventude. Então, acho que fui pegando esses conceitos para poder trabalhar. Acho que a arte contemporânea também foi determinante, a coisa do inventário, do mapa, de não fazer discursos sobre coisas como representação, mas disparar coisas imprecisas e que depois dão dobras, ações. Acho que Paulo Freire, no sentido do núcleo de criação comunitária. É o Paulo Freire que diz que o processo de educação para liberação tem que ser a partir de núcleo que olhe o mundo. Tem um pouco do Teatro do Oprimido às avessas.

Eliane: Como assim?

Marcus Faustini: No sentido que a gente não os classifica como oprimidos, deve-se reconhecer uma identidade de oprimido para lutar contra o opressor. Você pode inventar um lugar seu, mas a ideia é trabalhar a arte, e se lá se trabalhava de maneira didática para conscientizar, aqui, por sua vez, é para poder fazer a pessoa se expressar. Se expressar, achar o seu lugar na cidade, tomar os instrumentos.

Eliane: Mas você já falou muitos e eles formam um conjunto que faz sentido. E a experiência de ser Secretário de Cultura em Nova Iguaçu?

Marcus Faustini: A experiência de Nova Iguaçu me deu coragem para ter escala e institucionalizar. Porque, para o cara de origem popular, institucionalizar é garantir direitos. De alguma maneira, a classe média está institucionalizada mesmo dizendo que não, porque ela já está nas redes de legitimação, ela não precisa lutar para estar em uma rede. Além das condições de vida, você já cresceu com arquitetos, você já cresceu com gente que tem lugar de fala na cidade. Se a periferia vive de maneira coletiva, ela não se institucionaliza e nem disputa, por isso que construir uma escola, um prédio na periferia para não ser só uma ação, para as pessoas reconhecerem assim: cara, isso aqui é uma escola, uma escola.

O conceito de empreendedorismo. Como politizá-lo? Empreender a vida. A negação ao conceito de economia criativa foi decisiva. Em um determinado momento tentaram me capturar e me jogar para o campo da economia criativa, porque economia criativa é que vai dar possibilidade para essa galera crescer, diziam. Eu fui resistente no início, e depois fui pensando e partilhando esse pensamento com todo mundo. O que surgiu de interessante é que surgiu muito mais gente, é a primeira geração com uma quantidade expressiva de agentes culturais e políticos da periferia. Na minha época, nós éramos tão poucos que a gente se reconhecia. Agora, você tem, e é impossível o cara sentar a bunda em uma Secretaria [de Cultura] e não ter que pensar em Realengo, em Santa Cruz, porque vão aparecer uns malucos lá de uma maneira muito mais forte do que tinha antes. Eu quero fazer parte de uma geração, de uma geração que descobriu um modo de inventar um sentido, que contribuiu para alargar imaginários e para diminuir desigualdades. Estou bem contente com esse lugar.

dossiê
Tempo de leitura estimado: 50 minutos

A escuta do tempo

Avenida Brasil
Avenida Brasil

Para a escrita de ImagináRios, partimos das narrativas de percurso, misturando passado, presente e futuro, compondo um mosaico com fragmentos de um imaginário de cidade que tem a Avenida Brasil como artéria poética dos nossos corações. Fluímos como água pelos rios que vivemos, pois é isso que fazemos: andamos com os pés, e sobre trilhos e rodas, subimos passarelas. Nossa memória é a única coisa que resiste a tantas demolições.

Entre os incontáveis fragmentos de pensamento que invadem nossas cabeças a todo segundo, existem espaços, hiatos. Esses momentos de reflexão usados para montar as ideias ficam bem evidentes quando usamos a oralidade como dispositivo de comunicação. Uma fala… um espaço… uma palavra… outro intervalo… uma frase. E por mais extensos que sejam, esses intervalos raramente são suficientemente longos para o comunicador que vive a narrativa em outros dispositivos além da oralidade. Uma foto, graffiti, texto, um batuque. Dispositivos que preenchem o espaço.

Escolhemos viver a cidade das pessoas. É a partir delas que construímos nosso caminho. Nesses percursos encontramos o Simas. Em um desses encontros, no Bode Cheiroso — boteco na Tijuca com o melhor chá de macaco desse país — decidimos percorrer bares e praças do subúrbio para pensar a história dessa cidade. Entre chás, cervejas, ovos coloridos e sanduíches de pernil, conversamos sobre nosso trauma com a escola e ele sobre o seu com a academia. Falamos da urgência de romper esses muros, deixar todos eles bem baixinhos, de modo que se possa fazer uso das estruturas sem necessariamente ser usado por elas. Simas lembrou de Milton Santos e a experiência de aprendizagem a partir da escassez. No subúrbio o novo já nasce velho. Estácio, Tijuca, Vila Mimosa, Penha, Méier, Quintino, Honório Gurgel, Olaria e Engenho de Dentro. Fomos em algumas das nascentes de todos esses Rios que nos banham todos os dias. Rio que nunca é o mesmo e que jamais será um só. Quando O Globo fala que “vale a pena atravessar o túnel para…” e aborda esses lugares apenas através da violência, apoiando o estigma que ele mesmo  ajudou a construir, ele mata a maior parte da memória da cidade.

É de extrema urgência que se diversifiquem as narrativas sobre o Rio de Janeiro, mas é ainda mais urgente que se mudem os autores dessas narrativas. Nem as Helenas, nem os Zé Pequenos, nem os Nascimentos e muito menos o Leblon dão mais conta da representação que se faz de quem mora por aqui. Trabalhamos a partir da escuta, justamente porque se acabaram as referências. Bibliografia para a nossa galera é a própria vida, e tudo o que nela pulsa. Quem se propõe a ouvir não precisa reduzir as formas de viver. Saber de onde a gente vem para saber para onde a gente vai. “Quando os caminhos se confundem, é necessário voltar ao começo/ não sabe pra onde ir? tem que voltar pro começo/ pra não perder o rumo, não pode esquecer do começo.” Se fosse apenas uma justificativa para nos encontrarmos e bebermos umas cu de foca, como diz o Simas, já prestaria o seu importante papel. O Norte Comum nasce (se recria) na necessidade de se encontrar e registrar a cidade dessas pessoas, para não deixar que as narrativas fundamentais para a história do Rio de Janeiro caiam no precipício do esquecimento que a cidade reserva para suas memórias que apontam a injustiça de sua formação. Debaixo dos novos museus e trilhos do amanhã, existem trilhos e ossos fundadores — fundamentais dos nossos passados esquecidos.

E o que mais fizemos nesse tempo foi conhecer pessoas e lugares: escutar, fazer amizades. Olhos nos olhos. Ter encontrado e escutado toda essa gente é definidor no que entendemos por Norte Comum hoje. Toda memória tem poder de transformação. É necessário que adotemos cada vez mais a cultura da escuta dessas memórias. Quem sabe assim, um dia, o Rio possa trazer em suas estátuas, bustos, nomes de ruas e monumentos públicos as caras dessas pessoas, que doaram seu sangue e seu suor como tinta para a mesma minoria de sempre escrever sua história.

Integrantes do Norte Comum.
Integrantes do Norte Comum.

 

ImagináRios
toda criança ama andar de ônibus.

1
Sentar de manhã cedo no banco da Estação Central do Brasil e observar o vai e vem do trilho é como estar na beira da praia em dia de mar revolto. Todos os trens chegam lotados e as pessoas saem deles apressadas. Cada desembarque é uma onda violenta que vai levando tudo que se põe no caminho. Os ramais são as nascentes, que foram formadas lá atrás, quando uma tempestade de muita gente foi caindo sobre cada um desses lugares e essas pessoas foram penetrando em cada espacinho que tinha e dando origem a um grande lençol chamado subúrbio. Deodoro, Paracambi, Santa Cruz, Japeri, Belford Roxo, Saracuruna, Guapimirim e Vila Inhomirim. Um subúrbio forjado com muita remoção. Higienização maquiada de progresso. Reforma Urbana. Todos os dias, de diversos cantos desse grande lençol, imensos cardume de peixes são levados por uma forte correnteza. Cada estação um rio afluente, Triagem, São Francisco Xavier, Méier, Jacaré, e o corpo d’água sob os trilhos vai inchando até quase vazar, peixes-humanos, que aprenderam a respirar mesmo no aperto do ar. O mar só é salgado porque, há mais tempo que se pode contar, todos os dias, todos os rios desembocam em sua vastidão azul. Assim como o centro da cidade só pulsa porque os subúrbios da cidade e suas gentes desembocam nele. É aí que começa a nossa viagem. Vamos no trem contra essa correnteza, indo em direção à nascente. Também somos peixes, dos que nadam contra a maré para desovar. Nesse mesmo fluxo damos vida às nossas criações. Saber de onde a gente vem, para saber para onde a gente vai. O mar, das fotos em finais de tarde de ressaca, entrando nos rios. O retorno pra casa da gente que o salga, e o (re)fluxo do rio é em direção à nascente. Na nossa viagem o subúrbio é o centro.

Sempre pensei no trem como uma imensidão. Lembro que a primeira vez que andei foi com meu pai, que trabalhou durantes vários anos na antiga Companhia Brasileira de Trens Urbanos. Embarcamos na estação da Penha Circular e fomos até a Central. No caminho ele foi me contando sobre os bairros e as estações, o que cada um dos equipamentos do trilho fazia para conduzir o sentido que o trem deveria pegar para não bater de frente com o outro. Fiquei curioso porque se o caminho já estava traçado, o motorista fazia o quê? Foi quando ele me levou até a cabine do maquinista. Nossa! Acho que é uma das memórias mais antigas que eu tenho, junto com o título do Flamengo de 1992 e a queda da arquibancada da Raça. Depois de velho eu li uma poesia do Galeano que na hora me veio aquele dia na cabeça. Falava da história de um filho que nunca havia visto o mar, e quando dava de frente com a imensidão do oceano, virava pro pai e falava: Me ajuda a olhar! Sempre cresci ouvindo as histórias onde o meu pai contava o quanto era perigoso o trabalho dele, dizia que qualquer mole morria ele e a maioria das pessoas que trabalhavam de verdade na cidade: Transporte de trabalhador é o Trem! — ele falava com aquele jeito de sindicalista das antigas. Eu cresci ouvindo meu pai e minha mãe falando do quanto o patrão deles era filha da puta e como quanto mais duro se trabalhava, menos valor se tinha — Por isso que tu tem que estudar, fazer faculdade, buscar estabilidade!

Último vagão. Olhos, ouvidos e todo o corpo atento. Encostado no fundo vejo tudo como um palco de teatro. Todo mundo é ator. Trabalhar de 10 a 12 horas por dia, contando o tempo lento do trânsito na cidade, e ainda encontrar alegria e inventividade para construir um cotidiano que sobrevive a tanta opressão é pura arte. As janelas são como telas de cinema. É como se o trem fosse invadido por um filme sobre o Rio de Janeiro, construído por seus moradores em 24 histórias de resiliência por segundo. Viajar de trem para o subúrbio é como ter acesso ao material bruto desse filme, que é dirigido e editado pelas mesmas cabeças há 450 anos. Os cortes escolhidos não dão conta da complexidade da experiência de viver o Rio, e reduzem as formas de vida de quem mora na cidade. Imagino a reação de quem só conhece o Rio a partir dessas imagens de sempre, como das milionárias campanhas publicitárias da prefeitura, ao andarem pelos ramais de Trem. O susto deve ser parecido com o que levaram os espectadores de um dos primeiros filmes da história, “A chegada de um trem na estação”, dos irmãos Lumiére. Dizem que os que assistiram pela primeira vez aquelas imagens, chegaram a acreditar que o trem invadiria a sala de exibição, atropelando toda a plateia. A multiplicidade das vozes nos vagões é uma das principais ameaças ao projeto de cidade vendido pela Prefeitura do Rio, que no ano anterior às Olimpíadas gastou mais de 130 milhões em publicidade.

A trilha sonora é só sucesso. Mais uma vez você mudou, e a gente não se fala mais, da outra vez, você jurou, que o que passou ficou pra trás, eu avisei que era melhor esquecer e só viver em paz. Cadê você? Que deu um nó, cria os sonhos e depois desfaz. Não vem que não tem, não vem que não tem, quem quer comprar barato compra com o Gordão do Trem! O baile segue na rádio vagão. Dia de semana é tenso, pra tu vim com essas besteira, pega a visão, fim de semana é safadeza, aproveita que a mamadeira ta cheia. Projeto Jesus Cristo é o caminho, a verdade e a vida. Drogas nunca mais. Vidro fumê, enrolando vários beck, som no último volume, escutando Filipe Ret, do jeito que ela gosta, hoje eu tô marrento demais, os menor é sagaz é o que te satisfaz, várias danadinha no contatinho do pai. Extra! “Enfim uma boa notícia. Conta de Luz vai ficar mais baixa mês que vêm”. Me olha direito, me pega com jeito que eu vou gostar, me beija sem medo, com calma e desejo que eu vou gamar, seja cavalheiro, pensa em mim primeiro, senão vai me assustar, não me chame pra cama, me chame pra festa, talvez um jantar. Te ensinei certinho, te ensinei certinho, hoje tu tira onda porque eu te ensinei certinho. Super Cola só vai pagar 1 real agora! Rasgou, descolou, soltou, Super Cola funcionou!

Centenas vão sentados, milhares vão em pé. O trem nem bem começou a andar e essa frase pichada em um muro dentro da Estação da Central do Brasil invade o vagão. Os milhares de pichadores que espalham suas tipografias pela cidade tatuaram a maioria das estações de trem do Rio. Já ouvi muitas histórias dessas madrugadas de bombardeio como eles chamam. Nunca pichei. Na verdade já até caguei uns muros na vida, mas nunca tive o hábito de colocar nome. Nem nunca tive um nome. O que eu mais absorvi da cultura do xarpi é a gualin do riotracon. Um doriope da nhami davi valafa dotu riotracon. Minha mãe ficava louca. Falava que era coisa de maconheiro. Também não entendia como eu podia ficar feliz por perceber que tinha um nome novo no muro lá de casa, que era metade feito de pedrinhas eternas, daquelas que não tem como pintar por cima do nome. Sempre pirei em imaginar como que os caras faziam para conseguir chegar em alguns beirais. Subir em um muro fininho, passar pendurado para o parapeito de uma janela um pouco mais baixa do que o alvo pretendido, até conseguir, depois de ter escalado a grade da janela, chegar no beiral mas alto. Luz, Camêra, Pichação! Um amigo lá da Penha que pixa Nobã costuma dizer que a pichação e o graffiti são a história escrita nas ruas. Acho que essa pode ser a materialização da diferença entre a pichação e o graffiti no Rio nos dias de hoje. Vejo uns amigos que já conseguem viver de graffiti e enquanto, para as políticas culturais e para todo o imaginário da cidade, é possível viver e conviver com o graffiti, a pichação e os pichadores continuam perseguidos, e perseguindo a sobrevivência. Talvez a pichação e os pichadores causem tanta revolta por seu modo de fazer questionar o tempo todo a propriedade. Além dos muros das casas, tem o domínio de uma tipografia que a maioria da sociedade não consegue decifrar. A história do  Rio é marcada pela sua dificuldade em conviver com o que não consegue compreender. É assim desde o extermínio dos povos indígenas até a época em que foi o principal destino de pessoas escravizadas na história da humanidade — quando seus portos receberam o maior número de africanos escravizados durante a diáspora. Essa história continua sendo escrita com o sangue da juventude preta e favelada, que insiste em reagir a tantos anos de violência sofrida, utilizando seus corpos como forma de expressão. Tráfico de drogas, arrastão, baile de corredor, pichação, saidinha de banco, bater carteira… Maioria preta e pobre. Uma população carcerária que cresceu mais de 160% em 15 anos. Maioria preta e pobre. Personagens inclusos no repertório a ser apagado da memória da cidade

Eu tenho CD e tenho DVD, cabem muito mais porque as músicas são em MP3. Aqui você vai levar mais de 2 mil cópias de verdade. É em pasta, gente, pelo amor de Deus é em pasta! Você vai colocar no seu DVD e ele vai abrir igualzinho tá aqui. Pagode, funk, forró, sertanejo, pop, rock, tudo misturado. Aqui você vai levar Imaginasamba, Nosso Sentimento, Sorriso Maroto, Thiaguinho, Péricles, MC Smith e Carol, Zeca Pagodinho, Alcione, MC TH, Ludmilla… Vou sair na Globo? Se sair eu vou cantar meu rap aqui da mercadoria. Tem que ficar famoso, irmão, de alguma forma. Tá difícil. A vida de camelô é choque de ordem! Vai vendo…

De estação em estação, é a arte dos ambulantes que nos indica uma possibilidade para pensar uma economia onde nos relacionemos mais com as pessoas e menos com marcas e juros.

Faz pouco tempo que passou das nove horas da manhã e o sol já tomou a estação de trem de Bangu. O calor no Rio de Janeiro não tem estação no ano nem horário certo. A luz bate na placa escrita “Perigo Não Ultrapasse” e invade o banco onde alguém dorme um sono profundo. O banco tinha a única sombrinha que restava na estação, mostrando a tática de quem conhece muito bem aquele espaço. Do outro lado a gente olhava tentando descobrir se era realmente ele, mas só podia ser. Na real poderiam ser outros tantos milhares de moleques pretos, que usam as estações de trem da cidade como o quintal de casa. Mas o tamanho do corpo deitado e aquela maneira de se esparramar como uma criança durante o sono era a cara dele. Antes que o primeiro de nós conseguisse questionar em voz alta, ele se espreguiçou e virou a cabeça com um meio sorriso, como quem sonha um sonho bom. Caralho, é o Patric mermo! — Falamos todos juntos no meio de gargalhadas. Era a segunda vez que a gente encontrava com ele em nossas viagens. Na primeira vez que nos trombamos foi no cinema. Estávamos falando sobre como a câmera é dispositivo para reações paradoxais. Ao mesmo tempo que gera uma inibição, que pode disparar uma hiper performatização de si. Patric chegou do nada e perguntou se a gente estava chapadão. Respondemos que sim. Ele perguntou se queríamos filmar ele indo de bicho. Não entendemos muito bem e ele foi ficando do lado de fora da porta que ia se fechando. Ficamos sem saber o que ele estava tentando nos dizer, quando do nada ele brota com seu sorriso pelo enquadramento do vidro, do lado de fora da porta. Cinema. Surfava se equilibrando em uma portinha que só existe no último vagão dos trens novos. Voltou cheio de marra.

//Maneirinho, como, o Bicho!/ Qual seu nome cara?// Patric. Estamos ai fortemente pesadão, vou de bicho de novo!/ Disse isso e saiu pela porta novamente, como aqueles jogadores que não gostam de dar entrevista, falam com a bola nos pés. //Será que eu vou até Madureira?/Não, não. Chega aí pra gente trocar uma ideia. Tem quantos anos Patric?// 15./ Tá estudando?// Tô. Tô na 8º./ Como tu teve essa ideia?// Primeira vez fiquei cheio de medo. Mas depois que fui foi maneirinho./ Vários amigos teus também fazem essa parada? Pegam Jacaré no trem?// Tá vendo./ Alguma vez já deu merda com alguém. Alguém já se machucou?// Já, pô. O menó ficou agarrado pela mochila. Escorregou do trem, bateu na placa da Supervia e morreu./ Ficou com medo não?// Nada./ Tem medo de que?// Morrer./ Tua mãe tá ligada nesse rolé?// Tá nada. Ia fica boladona, arriscado de eu cair e morrer. Mas eu sei que não acontece nada. Vou marolando. Ainda mais na onda do baseado, então, pô… Uma beleza./ Gosta de fazer o que marolando Patric?// Fuma Maconha. Fazer várias merda. Xingar esses polícia filha da puta. São tudo cuzão nessa porra, tem tudo que morrer./ Qual teu sonho Patric?// Meu sonho é ser bombeiro. Ou paraquedista./ Tá treinando então né?// Tá vendo. Chegar na hora do avião vou ter que pular né?/ Tá maluco. Fico boladão. Papo de 1 minuto, 1 minuto e meio que tu fica no céu mané!// Já fiquei no céu já./ Tu já voou Patric?// Já pô. De um prédio pro outro./ Pulou da laje?// Claro pô. Já cai na outra laje bãn, pulei pra outra na sequência e sai voado. Tava fugindo dos polícia. Se eles me pegam iam me matar pô. Tava no radinho esse dia./ Tá trabalhando Patric?// Trabalho em Madureira. Já vendi bala no trem. /Fazia umas músicas boladas pra vender?// Claro pô. “Não vem que não tem…”/ Hahahahaha

// Não vem que não tem, não vem que não tem. Passageiro sangue bom, compra bala no trem./ Bolada a música. Vendia bem?// Vendia pô./ Tu faz o que em Madureira?// Entrego papel./ Cadê tá ai?// Tá pô./ Lê ai pra gente?// Fico com vergonha.// Tu que sabe, se não estiver afim de boa também.// Não, demorô. Vou ler. //

PRIMEIRAMENTE, BOM DIA, VENHO AQUI CHEIO DE VERGONHA, MAS SEI QUE A PIOR VERGONHA É MATAR E ROUBAR MAS MINHA MÃE NÃO ME ENSINOU A ROUBAR E NO MOMENTO ELA SE ENCONTRA DESEMPREGADA, PASSANDO POR MOMENTOS DE DIFICULDADES COM MEUS IRMÃOS PEQUENOS, POIS SEMPRE FALTA UM PÃO, LEITE E FRALDAS, ENTÃO VENHO ATÉ AQUI PEDINDO UMA AJUDA NÃO IMPORTA A QUANTIA OU ATÉ MESMO UM TICKET REFEIÇÃO. DEUS AJUDA A QUEM MATA A FOME DE UMA CRIANÇA. FICO AGRADECIDO.

/E o futebol Patric?// Ta rolando. Jogo na escolinha do Vasco./ É canhoto ou destro?// Canhoto claro./ Joga de que?// Lateral./ Gosta de marcar ou de atacar?// Marcar né. Mas se tiver que atacar nós ataca./ Disposição Patric?// Tá vendo. Só aqueles passes bolados./ Mas como é a escolinha. Treina lá e depois vai pro Vasco?// Isso. Depois que chega no Vasco vai treinar no Barcelona./ Quer jogar no Barça?// Claro pô. Dar uma vida maneira pra minha mãe./ Tá vivendo né, Patric? Isso ninguém vai poder dizer que tu não tá.// Tá vendo. Valeu menózada. Vou descer aqui em Madureira./ Valeu mano, É nós. Mas se liga, tu não deixou o contato com a gente pra gente marcar de te mostrar as imagens depois.// Pô, mas minha mãe vai brigar./ Não vamos explanar não pô. Queremos te mostra pra ver se tu gostou do resultado.// Demoro anota ai 99359****. Ele desceu e o comentário no trem continuou.

/////Caralho, tanta gente querendo viver e o moleque arriscando a vida se pendurando no Trem. Que isso, tá de sacanagem?///// Tá vendo o moleque pediu pros cara tirar foto dele se pendurando no trem. Vai vendo.///// Hospital lotado de gente querendo viver e o cara jogando a vida fora.///// Se quisesse morrer mesmo ia formar na boca. Só no Rio mesmo!///// Se bem que outro dia um cara lá nos Estados Unidos também não invadiu a escola matando todo mundo. ///// É verdade tá foda.

 

2
Meu nome seria Gabriel. Meu avô sempre quis um neto que tivesse esse nome, então minha mãe daria o nome de Gabriel ao filho. Nasci Gabriela. Mulher, a gosto e contragosto. Nomeada em homenagem ao que não sou. Querem homens, a cidade me quer homem, eu já quis ser homem. Quando criança eu invejava os corpos masculinos, tão soltos e impulsionados a viver e experimentar, e eu mais atirada e moleca que fosse introjetava inevitavelmente um monte de pudores. As calcinhas tampadas, as portas fechadas, os toques indevidos, os palavrões não ditos, as bolas longe dos pés, muitas bonecas. Queria ser menino só pra não ter medo de me machucar, eu pensava assim, esquecendo um pouco das belezas de ser menina, não entendia bem, porque eles se jogavam inconsequentes e suas brincadeiras eram sempre mais divertidas, achava que era uma coisa natural e que não tinha como entender mesmo. Me metia e estava constantemente entre os meninos, mas meu corpo tinha ainda suas travas e medos, meus peitos que começavam a crescer, pediam cuidados, e chamavam olhares desagradáveis. Menstruar me faria mulher, e eu me vi mais uma vez assustada com o corpo feminino se manifestando em mim. Circular pela cidade é ainda entender as limitações objetivas desse corpo que é tão meu quanto sujeito às crueldades da vida. A cidade me fere com seus obeliscos e falos, com suas estruturas rígidas e feitas para e pelo “Gabriel”. Sigo andando na madrugada, a contra gosto de minha mãe, esperando horas nos pontos de ônibus. Colocar o corpo na rua já é em si uma manifestação.

Sempre gostei de futebol, de jogar mais que de assistir, mesmo assistindo mais que jogando. Poucas meninas se animavam a jogar futebol na escola, e jogar com os meninos requeria paciência para algumas reclamações e piadas, eu fazia não me importar, mas sei que joguei bem menos que gostaria. Gostava do nervoso que vinha de dentro quando a bola chegava no pé, que comumente acabava num chute meio espasmo lançando a bola sem muita precisão, ainda assim, e contando com o nervoso, eu tinha meus dias. Inspirada, numa partida fiz 4 gols, sendo um contra e alguns passes errados, sempre correndo de um lado pro outro. Eu sou zagueira que nem meu pai, flamenguista também. Ele joga bola com a sabedoria de quem não aguenta mais correr com os tantos quilos a mais, eu jogo correndo com a vontade e a sede, compensando a minha pouca esperteza com a bola no pé. Muitas vidas de bonecas. Ainda assim, zagueira que me entendi, levo muita porrada, e dou aos montes no embolado do jogo, os maus olhos diriam que jogo como um menino. Foi com ele que fui a primeira vez ao maracanã, aquele monte de gente, eu mal conseguia olhar o jogo. Olhava as pessoas, as bandeiras, sempre tinha uns caras tocando surdo, os rostos, uns mais tensos que outros, os apertos e os gritos, as vezes eu via um passe antes de olhar pra arquibancada do outro lado. Nesses anos, antes do maracanã fechar pra reforma, acompanhei vários jogos, e vi o flamengo se foder mais que se dar bem, mesmo que ganhando. Voltei no maraca com meu pai, meu tio, e várias vezes com minha tia, e os primos todos. Passei a gostar mesmo de ir ao maracanã no dia que entendi que ali eu podia falar palavrão com minha família e não seria errado e eu não levaria esporro, todo mundo falava. Acompanhei mais o jogo a partir daí, esperava o gol, e PUTA QUE PARIU, CARALHO!!!!! GOL!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! Todo mundo se abraçava e eu gastava todos os palavrões que me vinham à cabeça, queria ir ao maracanã toda semana.

Não gosto de sentir medo, mais que isso, não suporto me colocar no lugar do medo. Mas sou mulher, e vivo na cidade. Ouço, leio e vejo, meus amigos, homens, contando e vivendo suas experiencias na cidade, seus rolés, seus corpos tão mais soltos e vibra em mim tudo que já podei, e todas as vontades que já me foram silenciadas.

No verão a água desce sem muito aviso prévio. Vem urgente, com sede de encontro.

Chovia de molhar os sapatos em 3 segundos e ainda assim eu fui impelida a sair pra rua, mesmo de tênis. Nessa chuva de susto, que nos faz parar pra ver ela passar, minha rua virou um rio, e eu lembrei que a maior parte das ruas que alagam nesse Rio de Janeiro já foram mesmo rios e que, retirados de sua existência, é quando chove que se refazem. O centro é todo assim, a Rua da Carioca, a Praça da Bandeira, rios destituídos mas que em ímpeto selvagem de tempos em tempos quando a chuva os encontra sem nem tantos milímetros cúbicos nos mostram a cara. Quando chove eu me deixo ser também, desaterro as existências e me permito ser uma a cada gota que cai. Fui chamada à rua pelos trovões que anunciavam a chuva e que como o tambor, me convidava a existir e por isso me mover. A vontade: me desproteger, despir e descobrir, tirar as roupas e as camadas, o rio mergulhando no mar ou a chuva caindo em todos os cantos e poças. Chove como todo verão mas eu não sou a mesma e me sinto mais água que nunca.

Vi minha rua retornar a rio, e junto dela, eu. Numa caminhada de uma ida e uma volta, na ida, os pés secos, na volta, encharcados.

Eu acho que toda criança ama andar de ônibus.

Atravesso a ponte Rio-Niterói quase todo dia a caminho da faculdade, já tem uns 3 anos. Ainda não cansei de ver a baía, os barcos, as gaivotas e as montanhas. Cada dia o céu é um, e acho que comecei a gostar mesmo dos céus do outono depois que esse trajeto entrou na minha vida. Pego o 371 Campo de Santana, na porta de casa, ele vai por São Cristovão e rápido chega na Leopoldina, desço ali e subo a escada pra atravessar pro outro lado. Gosto muito da Leopoldina, e da passarela que passa por cima daquele rio enrijecido e destituído do ser como tantos outros na cidade. Passando para o outro lado, às vezes paro pra olhar os carros passarem, e observar o fluxo intenso indo ou vindo para o centro da cidade. Pensei numa cena de filme ali, naquela passarela da minha vida, um cuspe em direção ao rio, e aquela parte de mim caindo naquela água morta, uma pequena morte de mim, um impulso de quase ir. São as partes que vamos deixando ao longo dos caminhos, que nos permitem reinventar e renascer. Ali venta bem, e quando chove forma poças que os fluxos de pessoas procuram desviar, dependendo do dia eu sigo mesmo o caminho delas, os pés molhados. Direto eu tenho vontade de atravessar as grandes ruas por baixo, e conseguir chegar na ponte que corta o rio, nunca tenho coragem, os carros e ônibus passam meio loucos. Pra Niterói, pego qualquer ônibus que me deixe na Rua da Conceição, antes torcia pra ter um lugar sentada, agora já tenho me arranjado nas entradas com apoios entre as roletas e a janela, o mais perto da janela possível. Volto da faculdade já de noite, todo dia, às 23h estou na Leopoldina ou Cidade Nova, pegando ônibus ou metrô, dependendo do meu humor. De 2013 pra cá peguei muito 474, 472, 277 na madruga, a caminho de casa, Benfica, Zona Norte. Sento sempre perto do motorista, o banco mais na frente possível, o fundo do ônibus é dos homens, uma territorialidade clara, ainda mais a essa hora, só sento ali com meus amigos, que de forma engraçada não pensam duas vezes para qual lugar do ônibus ir. Minha expressão em geral é dura, o que possivelmente só parece me proteger de qualquer coisa. Todo dia, assim que entro no ônibus conto quantas mulheres, 2 ou 3, 5, 6 quando o busão passa mais cheio. À noite as ruas são deles. E toda mulher que coloca o corpo em movimento “deveria estar ciente do risco”. Eu gosto das ruas à noite, aqui perto de casa, ou mesmo no centro. As luzes amarelas e os movimentos nos bares, os encontros e desencontros. Mais ainda, gosto de ver o dia amanhecer, é mais seguro de voltar pra casa também, me prometi não andar mais de táxi, uma das formas é voltar só de manhã. Descendo do metrô Triagem e passando por cima da linha do trem já vi vários céus clareando por trás do viaduto, tem uma casa verde atrás de um terreno baldio que fica especialmente bonita a essa hora. Fico hipnotizada pela beleza sofrida de ver os trabalhadores se encaminhando para os seus serviços, acordando a cidade, descendo os rios para desaguar no mar, as reais luzes que se acendem são as dos olhos, o sistema complexo e cruel que ainda assim só sobrevive pela disposição desses corpos. Um dia nunca é só mais um dia, mesmo sendo. Seu Antônio vende tapioca na descida do metrô das 5h às 10h da manhã há 10 anos, tem seus amigos que passam todos os dias e reclamam quando ele viaja pra Paraíba visitar a família. Seu Orlando vende em horário desconhecido o hambúrguer mais barato da região, tá R$ 2,50, já foi R$1, eu e minha irmã catávamos moedas pela casa, gosto mais quando ele não está com o cabelo pintado e os fios brancos contam histórias. Um dia desses, depois de tantos anos de vizinhança descobri que ele é músico, e tem vários LP’s gravados, um possível parceiro para o barbeiro saxofonista que chegou aqui na rua há menos tempo. Nazaré escuta pagodes na rádio enquanto trabalha, é costureira de mão cheia apesar das enrolações, mas não importa tanto se deixa o tempo do relógio de lado, o caminho até o Arará nos dias de sol me traz a infância, e o vento me contorna mais uma vez. Toda vez que escolho fazer esse caminho, estou bem. Ando minha rua no sentido contrário, de preferência na calçada oposta do hospital do exército. Atravesso um pouco antes do Prezunic, com tempo de olhar a praça, os ferro-velhos, e o movimento dos moto-táxis. O cheiro da pele queimando no sol. Na padaria dobro à direita, e agora a oficina de costura dela está em frente à quadra, mas ficava mais pra dentro e mais perto da antiga mercearia do meu avô, Seu Ary. Querido no Arará, a mercearia na Leopoldo Bulhões, que era também casa, onde minha mãe cresceu e eu, minha irmã e nossos primos passamos as tardes enquanto nossos pais trabalhavam, é uma das lembranças vivas e pulsantes da minha criança. Toddynho, pão com ovo, os passarinhos, gatos e cachorros, máquina de cortar mortadela, ajudar meu avô no caixa era tarefa disputada, em cima do banquinho eu me sentia importante, a mangueira enorme que tinha a copa na varanda do 2º andar, as mangas jogadas no chão da rua, os picolés feitos na forma de gelo, com suco em pó e palito de dente, vendidos a 10 centavos. As novelas mexicanas, os muitos amigos, os fiados, e os cachaceiros de todo dia. Quando o tráfico mandava fechar, meu avô, que era bem quisto não fechava completamente, deixava meia portinha aberta. Meus pés podem sentir os dois pequenos degraus de entrada, azul fosco. Aquele nosso parque de diversão contava com a versão móvel da kombi bege, e volta e meia íamos com ele fazer compra na Cadeg, era o único carro em que podíamos andar na frente mesmo sem ter 10 anos, porque era antigo e não seguia as mesmas regras de trânsito, aliás as regras eram todas menos burocráticas nas cidades invisíveis do passado.

 

3
Rio Comprido, o primeiro bairro do Túnel Rebouças pra cá. As novelas eles filmam do túnel pra lá. Era assim que explicava pros meus amigos paulistas, onde é que eu vinha passar minhas férias todos os anos. Sempre de ônibus. Expresso Brasileiro, 1001, Itapemirim, Cometa. Dependia da grana e dos horários de partida. 08:30h ou 23:30h. Lembro do ônibus sem ar condicionado parar no meio da Serra pra lavarmos o rosto numa bica e comprar coco, R$ 2 reais. Na rodoviária era R$ 8. Hoje as empresas não param mais nos pequenos comércios a beira da estrada. Só GRAAL. Grupo Alimentício Augusto Liberato. O Gugu domina todas as paradas. Água de coco a R$ 8 reais. Na caixinha Tetra Pack.

Sempre preferi viajar de noite, pelo calor e por não perder o dia. Durmo bem em qualquer lugar.

Da rodoviária de Osasco até a Novo Rio dava umas 6 horas, quase sempre capotava em 2/3 do trajeto. A imagem que colore minhas lembranças de chegada é o nascer do sol na Av. Brasil, um vermelho tao contrastante ao cinza paulistano que ficava pra trás. Ficou pra trás. Me mudei.

O cinza de São Paulo tá no olhar das pessoas.

Os Paulistas adoram se vangloriar da excelência em seus serviços. O olhar cinza de quem serve. O olhar cinza de quem é servido. Tentam colorir o ambiente com palavras frias de recepção. É educação, eles dizem. Bom dia Senhor.

Aqui nego tem um olhar vermelho. Tipo a aurora na Av. Brasil. A polidez não tá presente nas palavras. Lembro como os caixas de supermercado do Sendas faziam questão de raramente responder meu bom dia. Assim como os motoristas e cobradores. Respeitei tanto isso. O serviço não estava sendo feito por um serviçal.

Calor pra caralho no ônibus sem ar condicionado. Motorista fritando ao lado do motor enquanto troca passagem e quase sai na porrada com um taxista. Tudo ao mesmo tempo. E eu com meu bom dia.

Boa noite pro motorista da van. 3 da manhã, Tô meio bêbado. Lapa é foda. Boa noite pra gatinha sentada no fundo. Ela sorri. Sento ao lado, confiante. A gente faz assim. Todo mundo sabe. Se ela sorri pra você é porque tá querendo. Nunca me considerei um cara escroto. Mas eu não tenho que achar nada. Minhas ações me definem. Começo a fazer carinho em seu joelho. Super respeitoso pô, com a ponta dos dedos, delicado tá ligado? Ela se vira pra mim, olhando nos meus olhos.

Esse clima de conquista é muito bom.

Pera… ela não tá sorrindo

Dispara: “Tá com algum problema na mão?”

Tem o olhar vermelho.

Peço desculpas e olho fixo pra frente. Como eu posso ser tão invasivo? Que noção de dominação e posse é essa que trago enrraigada em minha herança de homem branco? Quantos abusos transpiram desses homens? De mim. Quantos abusos cercam e mutilam essa mulher? E as outras que têm medo de se pronunciar: “tá com algum problema na mão?”

Bom dia pro motorista da Van. 410 descendo o Catumbi. Muita polícia travando o trânsito. O tiro comendo solto no São Carlos. Bom dia?

E o jornal resume assim:

“Segundo a polícia, 13 bandidos foram mortos no confronto que aconteceu na manhã de hoje”.

Meu estômago fazia outra leitura:

13 anos. A avó geme com o menino em seu colo. A cabeça tombada, aberta, mancha de vermelho a sua saia florida. Seu irmão treme, apavorado, sentindo o frio da pele intumescida. Grita quando vê se aproximar os homens de preto, com máscaras e toucas que deixam apenas os olhos arregalados à mostra. A saliva escorre dos lábios que não conseguem se fechar, travados pelo choro incontido. A avó tira o lenço que lhe prendia os cabelos para tapar o rosto do neto, desfigurado pela pele flácida que se soltou perto da orelha, rasgada pela bala. “A bala da justiça” diziam uns do asfalto.

O troféu deve ser exibido às câmeras. Tiram o corpo dos braços da velha, que tomba no chão em histeria. A camisa do uniforme é rasgada e arrancada do dorso da criança. Agora está caracterizado como bandido: bermuda, sem camisa e havaianas. Arrastam o “mais um” ladeira a baixo. As objetivas são ajustadas, clicks são disparados de trincheiras improvisadas. Os homens de preto dão uma pausa em sua marcha e expõe o “traficante” para o mundo. Olhos sedentos se agitam em torno da cena. O garoto é jogado para dentro do caveirão, e faz coro fúnebre a outros três jovens-negros-mortos.

Mais 9 vieram depois. A toque de caixa, o vermelho cresce no olhar carioca.

 

4
Eu não sou daqui. aprendi a existir na cidade grande, no caos, na selva de pedra bruta e misteriosa. Aprendi a ter gosto por gente (é tanta, que chega a ser um milagre todo mundo viver naquela cidade). Sempre gostei de andar na rua, sou uma pessoa da casa, da toca, da concha, mas sem a rua não sou nada. Aprendi a andar rápido pela multidão, a andar com pressa, a ter pressa, prazo, hora a cumprir, a se comprometer — São Paulo me ensinou a existir na cidade. Andar, ficar esperto, ver por todos os lados, ser, reparar em detalhes. É a minha casa, e a saudade reina, apesar de ser logo ali. É a minha raiz, e como diria Itamar Assumpção, não é amor, é identificação absoluta, mas aí veio o Rio. O Rio é uma mulher linda, e demorei a encontrar com ela. Ainda é meio desconhecida. Aqui aprendi que tudo se faz na rua… Aprendi a ser o carnaval, água, vento, e tudo que flui naturalmente. Que amizade não se faz fácil, e a solidão está escondida nos olhos de cada um.

Moro na Zona Sul. Cheguei aqui trabalhando na Maré e no Leblon ao mesmo tempo. Fazia aula e ensaiava de dia, e vendia roupa pra madame no shopping de noite. Dinheiro rápido…. Não saía da loja até bater minha meta, acho que era uns 6.000 por dia. Você tem que interpretar, é puro teatro. Deu pra fazer muito estudo antropológico lá. Trabalhava todo dia, e domingo fazia mais dinheiro. Voltava pra casa com o 434 já quase lá pra meia noite, e o ponto em que eu descia era no cemitério, depois do túnel. Corria disparada pra casa. A rua não é mais minha quando não tem ninguém.

Gosto de morar longe do trabalho, gosto de ter que me locomover, e desse movimento casa-mundo. Engraçado, eu amo atravessar o busão lotado e encontrar um mini cantinho pra mim lá no fundo, ou andar pela Central do Brasil muito rápido pelas pessoas, como se achasse brechas entre elas, espaços pra mim, mini espaços para o meu corpo existir. Tipo um jogo, um vídeo-game rápido. Vira e mexe você esbarra em alguém, “ai desculpa”, “perdão”, mas ninguém se ouve. Falo pra mim mesma. Ninguém pisa no chão, geral anda flutuando.

No busão sempre estou de fone ouvindo música. A trilha sonora é tudo, determina o meu humor desde de manhã. Indo pra Maré sempre boto um popzão, uns eletrônicos loucos, uma batida forte. Pra mim combina com a Av. Brasil, com o caos dela, a beleza estranha de cada passageiro, motorista apressado, ambulante. Eu amo o ambulante que vende descascador de legumes. Ele traz os legumes na mala, e descasca na hora, comprovando a qualidade do produto.

Muitas vezes quando tem operação, o caveirão entra pela rua do galpão. É sempre de manhã ou de noite. Os militares fazem sua coreografia de domínio da rua e pose de poder, em busca dos bandidos que lá já não mais estão. Tudo para, e logo volta. Quando tem tiro ali muito perto, todo mundo pára, e logo volta a trabalhar. Quando morre um, todo mundo pára, e depois segue sua vida. Morrem muitos, todo dia. Sempre, pelo rio todo, pelo mundo todo. A gente pára, e continua. Continua fazendo o que acredita que vale a pena, e que talvez sirva pra alguma coisa. A realidade é insuportável, e se você for parar mesmo pra olhar, você não levanta da cama todo dia de manhã.

Escolhi o Rio, e ele me ensina coisas todos os dias. Atravesso voada a Brasil em qualquer parador ouvindo minha boa Beyoncé, pra chegar na Maré e fazer aquilo que acredito que talvez sirva pra alguma coisa. Pra mim, pra cidade, pro mundo, pras pessoas, uma por uma, as que vejo trabalhando no shopping e entrando no ônibus, comendo um joelho com refresco, ou fumando crack na esquina da rua.

Tudo tem que mudar, mas se faz de pouquinho. Todo dia, toda hora, a vida toda, em todo lugar.

 

5
Madrugada, voluntários da pátria. Estou na dúvida se ando até a praia pra pegar os ônibus que vêm de copa, ou se espero dar 5h da manhã, pra pegar o metrô. Nessa horas sempre me pergunto o porquê de não ter transporte público de madrugada, com tanta gente trabalhando e consumindo todos os dias nas noites do Centro e da Zona Sul do Rio. O pior é saber que eles fazem só quando tem muito turista aí, só pra linha 1, a linha única, no carnaval da cidade cartão postal. É sempre uma merda, e cada vez pior, chegar e sair da Zona Sul da cidade. Se não fossem as praias, os cinemas e os amores (mora lá? não, namoro lá), não teria motivo para vir, mas os cinemas de rua do meu bairro fecharam todos antes dos meus 10 anos de idade. Quando os filmes, as cervejas ou os beijos acabam depois da meia noite, é sempre ruim pra voltar. Sei que o 410 não passa mais, porque agora pega direto pelo Santa Bárbara depois do Catumbi, que escutei falar — como acho bonita a favela no morro fazendo o black power sobre a silhueta da cabeça do túnel. O 409, que pra mim é táxi, — na madrugada é igual estrela cadente, se passar faço pedido e tudo — não sei nem se vem até botafogo mais, ou se para na Lapa. Agora não posso mais pegar de ponto final a ponto final, pra tomar um banho de cachoeira no Horto. Se já estava difícil com o sumiço das cores e a mudança do número das linhas, depois os pontos do BRS, de agora em diante todo mundo que vem da Zona Norte é obrigado a fazer baldeação pra chegar nessa parte da cidade, a parte mais privilegiada — na verdade sempre fez baldeação, trem> metrô, metrô na superfície. Haja carga no bilhete único. Se os subúrbios margeiam as linhas de trem, a zona cool da cidade margeia a linha 1 e futuramente a linha 4 do metrô. Linha única. É onde reside a cidade projetada, e onde residem os que projetam a cidade. Jornalistas, urbanistas, publicitários, artistas de berço, phds universitários. A Globo mora na Zona Sul e na recente Barra Olímpica. Então, tudo longe da Lagoa, das praias, ou da Lapa, (agora da região portuária), eles chamam de lá. É lá: lá onde eles não fazem ideia de como se vive, lá onde moram seus funcionários que não aparecem na TV, que não escrevem, que não atuam, que não pensam as pautas, que não anunciam, que não assinam, que não enriquecem —, lá onde eles dizem que só há violência, lá onde moram os marginais, os bandidos, os traficantes — lá onde eles dizem que o BOPE vai proteger a alguém, que não é ninguém, além deles mesmos. Então Lá, é onde mora a maior parte da população do Rio de Janeiro. Mas não vou deixar o ódio me dominar. Decidi voltar de ônibus pra ver o dia nascer.

Mais uma vez amanhecendo no ponto da praia de Botafogo, dei uma mijada numa réplica de bronze do Pão de Açúcar, entre as pistas de alta velocidade — poderia ser multado pelos guardinhas do lixo. O céu laranja está filetado em mil pedaços, no reflexo das janelas espelhadas do Mourisco. Com um olho no sol que já pinta com a sua cor o fundo do mundo sobre as grandes pedras conectadas por um fio, — sempre que olho pra Urca penso que aquele é o maior condomínio privado falsamente público, que já vi, — e o outro olho no viaduto de onde vêm os ônibus de Copa. Fico atento, pois se for 426 atravesso correndo para a pista de dentro, mais perto do shopping, mas se for 415, tenho que atravessar correndo voado as pistas mais rápidas e maiores, pra pegar o busão lá na beira da praia, onde rolou durante um tempão a roda de rima c.c.r.p. de Botafogo, antes de ser proibida pela polícia. Agora eu não sei mais se acontece ou onde acontece, mas antes de ser na praia era ali no meio das pistas do meio, perto da Farani, mas também tinha sido proibido pela polícia. As rodas do circuito carioca de ritmo e poesia acontecem em vários bairros do Estado, é uma rede social do rap, que faz um monte de gente circular pelo Rio. Meu busão chega, e corro para a pista da praia, agradeço ao motorista por me esperar, o ônibus anda, passo a roleta, bilhete único R$ 3,80, não é noite de terça-feira, mas uma música do Mc Sabotage sempre toca na minha cabeça quando vejo as placas com as setas apontando para a >> Zona Norte, ironicamente, enquanto o filme da cidade passa em 24 violências por segundo, enquadrado pela janela do busão: na Zona Sul, maluco/ cotidiano difícil/ mantenha o proceder/ quem não conter tá fodido.

Quando olho para os apartamentos vazios dos prédios dos que têm os bolsos cheios, que moram de frente pra parte limpa da Baía imunda, olhando o cristo nos olhos, olhando aquelas salas do tamanho da minha casa, eu sempre vejo meus avós, garçom e cozinheira, eu sempre vejo mulheres limpando as grandes janelas oleosas de maresia; eu sempre vejo um jovem negro amarrado numa placa de trânsito do Aterro do Flamengo, com o pescoço preso a um cano por um cadeado de bicicleta, nu, espancado, pelos filhos dos donos do destino dos jovens negros. Passando pelas estações lembro dos artistas de rua agredidos pelos seguranças do metrô. Na Lapa são espaço-flashs: beber no gramadão, anfiteatro, sombra, descanso demora, batalhas de rima, vários baseados, galera de tudo que é galera <<<< 2016, tudo cinza, praça de guerra de um exército só, tendas do quartel nômade da Lapa Presente, o bonde não passa mais na foto, enquadrado na mol-dura->Polícia de radinho em todos os lados, trabalham para os comércios, cheios de uniformes diferentes. Daltônicos, só enxergam branco ou preto. Na praça Tiradentes a guarda lembra a grade, e no Saara eu sempre vejo jovens grafiteiros espancados por barra de ferros, pintados de tinta no corpo inteiro, sendo esculachados e filmados, expostos na internet, para servir de exemplo para toda juventude que picha muros no Rio de Janeiro. No trem, ambulantes fazem sua arte diária com os slogans mais criativos do mercado, atendem seus clientes de um jeito mais afetivo, e na maioria das vezes mais econômico. Gosto de passar a pé no meio das pistas da Presidente Vargas a essa hora, o corredor de prédios espelhados transformam tudo num mosaico. Olhando pelo vidro de trás, a Candelária na contra luz da manhã, parece uma mesquita árabe — era criança, sempre lembro da foto no jornal O Povo, 8 corpos a mais na conta da PM — conversa fiada. Lembro de milhares de pessoas na Avenida em junho de 2013. Tô vendo o sol subir sobre a Providência, vejo a cidade nascendo. A torre do relógio é uma arma atirada pro céu desde 1943, construída pelo Estado Novo para ser o prédio mais alto da América do Sul, com seus 136 metros deixou pra trás os arranha céus de São Paulo e Buenos Aires, sendo então a maior construção de concreto do mundo, na época, inclusive, quase 40 metros maior que sua grande inspiração inglesa, se tornando assim o Big Ben carioca. De 2016 em diante, sempre que estiver triste vou ver o vídeo que o Kadu Ori fez do dia em que pichou, pendurado nos ponteiros, o relógio da Central do Brasil.  Diante desse cenário das violências, foi lá num dos lugares mais altos e vistos, deixar um aviso, no meio do relógio que marca o tempo da cidade: nossa pátria está onde somos amados. Ao invés de apagar, deviam era tirar aqueles ponteiros de lá, jogar no lixo, construir um novo relógio a partir dessa frase, um novo tempo pra criar um novo espaço, uma nova cidade.

Já na praça Saens Pena, a pé, as igrejas e as farmácias ainda não estão abertas — todas elas foram cinemas de rua que já não existem há mais de 20 anos. Cheguei a assistir filmes em algum deles. No que tenho mais contato hoje funciona uma igreja, e um bar, que tem o mesmo nome do extinto cinema, Cinema Britânia, onde bebo cerveja, maracujá, e tomo café com leite e pão com manteiga pela manhã, à noite como moela, e ostra às terças. O Cinema Olinda tinha 3.500 lugares, dizem os velhos que jogam pião, baralho e purrinha todos os dias na praça, quando eu conheci o espaço já se chamava shopping 45, e já não tinha o mesmo formato — uma vez o Bla foi lá no topo deixar o nome dele em sequência, aproveitou, deixou a planta, e alguém pegou o topo do prédio ao lado também, onde é o Bob’s. Dizem que o único prédio de cinema tombado foi o América, onde hoje é a drogaria Pacheco, que é 24h, ali na Rua das Flores. Bem em frente, na outra esquina da Rua das Flores, onde existe um sebo de livros e gatos na entrada, era o Cinema Metrô, que hoje é uma Igreja Universal do Reino de Deus. Entrava muito ali para sentir o frescor do pé direito imenso com ar-condicionado, beber uma água de graça, a troco de alguns papéis e um falatório do pastor que eu não entendia nada. É bom entrar em igreja pra descansar. O cinema que eu mais fui é o Tijuca Palace, no fundo da galeria do Miguel Couto. O cinema funcionou entre 1967 e 1993, não assisti filme nenhum lá, mas invadi várias vezes pra brincar de piques na infância, e depois na adolescência, pra fumar maconha, matar aula, poder ler e ficar tranquilo. A galera roubava os cartazes dos filmes pornôs brasileiros que eram exibidos nos anos derradeiros do cinema. As salas eram grandes caixas fechadas, com cadeiras que pareciam esqueletos, e um ar de carpete pra respirar, era bonito: qualquer feixe de luz que entrava, por minúsculo que fosse, formava um grande holofote na sala. Nos fins de tarde, por volta dos 15, a gente ia lá namorar, e assistia o filme do pôr do sol através de um buraquinho qualquer de luz com as imagens projetadas pela nossa paixão. Bruni, Comodoro, Rio, Roma, Art-Palácio, Eskye, Santa Rita, Carioca, Santo Afonso, Avenida, Teatro Brasil, e tantas outras salas, tantos outros filmes e histórias. Os velhos que me contam com um brilho nos olhos tão forte que coloco uma tela sobre toda a praça e assisto ao filme da história de cada um deles que há 30, 40, 50, 60, 70, 80 anos atrás, viveram e conheceram um monte de gente na chegada dos bondes, na demora na praça, entre a saída e a entrada de algum filme norte-americano, francês ou brasileiro, estiveram ali, e estão até hoje, como se fosse naqueles tempos. Mas ninguém liga pros velhos, sempre lembro da minha vó falando disso. Eles dizem, isso aqui era uma maravilha, até que chegaram as obras do metrô ainda na década de 80, e todo comércio morreu de vez, inclusive os cinemas de rua, que não só na Tijuca como em todos os bairros da Zona Norte e Oeste do Rio se extinguiram quase que por inteiro, enquanto algumas raras no Centro e na Zona Sul mantiveram ativas algumas salas de rua, e todo o resto virou shopping.

Como já não tinha cinema pra me emocionar, e nem ensaio de carnaval do Salgueiro e da Unidos fechando a Conde de Bonfim para desfilar, o que mais me tocava, sem ser futebol, era a arte visual mais próxima de mim, a pichação. Lembro até hoje de uma das caminhadas mais triunfais da minha vida: eu e meu irmão, pescoços inclinados pro alto, olhos brilhando num dia nublado, admirando a obra de arte que o Plock tinha feito, pegando todos os prédios de mais de 10 andares no quarteirão anterior ao da praça, que começa na esquina do Banco do Brasil e acaba na esquina do Santander, em frente ao Itaú. Mais de 5 prédios gigantes e enfileirados, nenhum nome tremido, composição de efeito. Como que ignoram alguém escrever de cabeça pra baixo a mais de 20 metros de altura do chão? Pra quem nunca fez parece fácil, mas se aprende a falar ao contrário, a escalar viadutos com cordas, prédios gigantes por todo tipo de tubulação externa, janelas, vasculhantes, grades, marquises — Cipostes, inventar uma tipografia própria, e visão pra escolher lugares interessantes para encaixar tatuagens na pele da cidade. Arte democrática e marginal. Um morador da Usina, ao lado do abandonado Carrefour, deixou avisado, pichou o muro de sua casa com tinta branca e rolo em caps lock: QUEM PIXAR O LOCAL SUJEITO A LEVAR TIRO. Só quem anda de ônibus todo dia, ou a pé pra lá e pra cá, e entende os códigos desse mundo, que se entretêm durante uma viagem, olhando os diferentes nomes e recados. Na esquina da Uruguaina com a Presidente Vargas, alguém pixou lá em cima que amava Renata <3♥.

Mais perto de casa tudo é saudade. Caminho como se voltasse pra dentro de mim mesmo. Cada bairro é um mundo. Minhas idades e cidades imaginárias. Vivo a cidade visível, e existo na minha cidade invisível, construída todos os dias, pretérito do futuro imperfeito: o passado é o prefácio do futuro. Entre tantas idas e vindas, nesses caminhos, as ruas são rios que correm dentro de mim, eu sou um ônibus, um barco, um peixe. No meu Rio tem mais prédios que árvores, mas eu ainda vejo muitos seres encantados, no fundo do que acham que é só escuridão, tem muita luz.

2016

Quantos menores de idade atravessam a cidade em busca da liberdade que só a rua dá?

Dependem do transporte contando sempre com a sorte beirando muitas vezes a linha tênue entre a vida e a morte.

Vários vã o entre vãos, vêm e vão nem sempre sãos só com a certeza de que estão sós.

Em busca da felicidade da novela estampada em cada tela em cada tela luminosa de uma alegria à pós.

Quantos de nós percorrem o fluxo sem se dar conta de que são possíveis outros caminhos.

Formigas seguindo em linha, umas atrás das outras, onde não [se] questionar é corriqueiro. Conseguir interromper esse processo e pensar formas de relação, convivência e, sobretudo sobrevivência, é fundamental para experimentar a cidade em suas nuances mais profundas.


*Essa é uma intervenção literária; é um recorte textual da pesquisa cotidiana que o Norte Comum desenvolve há alguns anos na cidade do Rio de Janeiro. Tudo é referência. Participaram da experiência de escrita remix coletiva: Jv Santos, Gabriela Faccioli, Dora Selva, Pablo Meijueiro, Carlos Meijueiro, Thiago Diniz e Jonas Rosa. Esse texto foi realizado a partir do convite da organização da publicação Nó em Pingo D’água — rastros de sobrevivência, que ainda será publicada. “Tudo está dito tudo está visto nada é perdido nada é perfeito eis o imprevisto tudo é infinito.”

artigo
Tempo de leitura estimado: 16 minutos

EU É UM OUTRO (Je est un autre)

Resumo: Rimbaud e as questões da linguagem e da alteridade na modernidade.

Palavras-chave: poesia; linguagem; alteridade.

Resumé: Rimbaud et les questions de la langage et de l’altérité dans la Modernité.

Mots-clés: poésie; langage; altérité.

 

Eu é um outro. É desta proposição do poeta Rimbaud (2009), em carta a Georges Izambard em 13 de maio de 1871, que queremos partir e não chegar, senão seria o lançamento de uma âncora em um porto definitivo que negaria o modo de existir de quem ousou a poesia como vida errante e esta como poesia da errância.

Ao postular tal frase o poeta se atém ao paradigma gramatical da língua francesa que tem por premissa organizacional a posição suprema do sujeito no início de qualquer sentença. Tal frase que configura uma estrutura gramatical sequencial correta, com a posição do sujeito, verbo e predicado dentro das normas que determinam a língua francesa, no entanto, desobedece aos princípios de concordância entre o sujeito e o verbo assim como com o predicado.

Primeiramente, observemos a relação entre o sujeito e o verbo. Uma frase cujo sujeito esteja na primeira pessoa do singular exige que o verbo concorde com este sujeito. Ou seja, não pode haver concordância se o sujeito for da primeira pessoa e o verbo estiver na terceira do singular, como é o caso da sentença proferida pelo poeta. Assim, tem-se um estranhamento que imediatamente interpõe-se na recepção do leitor, ou ouvinte, ao constatar que há uma dissonância gramatical entre o que determina a regra e o que propõe esta frase. Deste modo, há um discurso que emerge imediatamente ao se ouvir tal frase: é o que se refere à norma da língua. Roland Barthes (1978) afirmou que a língua é fascista, pois ela não somente nos obriga a falar, como ela nos impõe um discurso dentro de regras que impedem a expressão além das margens estabelecidas.

O verbo ser aplicado ao sujeito nesta proposição deveria estar na primeira pessoa e não na terceira. Tal utilização “equivocada” da conjugação verbal, no entanto, não denota o desconhecimento da língua francesa, como aqui, por exemplo, foi acusado Carlos Drummond de Andrade ao utilizar o verbo ter no lugar de haver ao formular seu célebre verso: “no meio do caminho tinha uma pedra”. Na língua portuguesa o registro coloquial articulado por grande parte dos falantes no Brasil procede de modo inverso ao determinado pela norma gramatical, com a conjugação de verbos na terceira pessoa do singular com a primeira pessoa do plural, como por exemplo: nós vai, nós é. Mas esta proposição do poeta francês é inusual em qualquer língua pois há um desacordo entre o sujeito e a conjugação verbal. Se pensarmos que o poeta devia conhecer a língua francesa, pressupõe-se, então, que tal erro gramatical tenha um propósito. E qual seria este? Apenas provocar um efeito estético de afrontar as normas gramaticais? Efetuar um desvio da norma somente por uma gratuidade experimental de desconstruir o correto para efetivar outra possibilidade expressiva? Ou teria algum sentido a mais do que isso?

Observemos então as particularidades desta proposição em sua conformidade organizacional discursiva. Primeiramente este sujeito, o EU, posiciona-se no início da frase, como todo e qualquer enunciado habitual e corriqueiro de uma língua. O fato desta proposição não se ajustar ao padrão normativo já deve ser considerado como algo a ser pensado devido ao fato dela se situar em uma aparente conformidade ao regrar linguístico e, no entanto, seu ordenamento gramatical afrontar a lógica.

A palavra sujeito em sua raiz etimológica tem por significação as seguintes definições: posto debaixo, colocado, situado abaixo; posto diante, exposto a; subordinado, submetido, sujeito, dependente; que está à mão, à disposição, que está pronto; acrescentado, colocado depois; colocado perto, próximo, vizinho; substituído, falsificado; levado para cima. Todas estas definições têm um ponto em comum que é o de configurar uma condição de inferioridade do que está posto debaixo, exposto a, subordinado, submetido, dependente, substituído. Aquilo que deveria ser da primazia no discurso, por seu posicionamento convencional sempre se situar no início das frases, no entanto, tem um sentido contrário: a submissão, a subordinação e a inferioridade. O eu, o sujeito, que supostamente representaria, em qualquer enunciado, a voz da enunciação a comandar o discurso da frase, talvez, seja, na verdade, o comandado, não somente pela ordem da língua, mas por um conjunto de normas sociais que lhe determinariam um posicionamento ordenador de aparente comando mas que não se traduz, efetivamente, em uma autônoma condição livre. O conceito de sujeito, no qual suporíamos a efetivação de alguma ação, enquanto substantivo, de acordo com a primeira acepção lexical dicionarizada, é, na verdade, o indivíduo dependente ou subordinado a um suserano no regime feudal, vassalo e súdito. A segunda acepção do dicionário, algo não muito confiável para se pensar no sentido e não no significado estrito das palavras, refere-se a uma pessoa indeterminada, cujo nome não se enuncia. Na sentença rimbaudiana o sujeito da oração está sob a forma do pronome pessoal, um eu. Este pode não se referir propriamente ao eu do poeta, como institui um fundamento da teoria literária ao separar o poeta que escreve seus poemas do eu lírico que pode não remeter ao indivíduo. Este eu pode ser entendido como uma abstração que ultrapassa a condição individual para abarcar uma noção mais ampla que se refira ao conjunto da espécie humana como um todo, e não a um específico eu que se refira exclusivamente ao poeta.

Se Descartes (1999) pressupunha o eu como fundado exclusivamente pelo pensar a constituir o ser, o eu que Rimbaud postula não se funda no pensamento, mas na relação com um outro. Outro eu, perguntaríamos? Se a proposição do poeta postula que eu é um outro, este outro seria outro eu? Ou seja: a sentença fundaria seu alicerce na noção de que o eu que parece me constituir é também a mesma instância que constitui todos os outros eus que não sou eu? Se eu penso que sou eu, tal premissa parece constituir todas as formulações dos outros eus que se pensam como tal. Ou seja: cada um como um único e exclusivo eu, quando essa mesma ideia se repete em um jogo de espelhos infinito que reflete unicamente a face de cada eu que se pensa como único. Essa proliferação de eus, no entanto, parece se fundar na ideia de que o outro, que também se pensa como um eu, não seja um eu, mas um outro. Entretanto, este outro parece ser também um eu. Assim, a relação infernal entre eu e os outros, na concepção sartriana, aqui fundar-se-ia na constatação de que há somente um eu a se pensar a si mesmo como centro do seu pensar? Tal exclusividade da centralidade do eu como constituinte do sujeito exclui do seu âmbito a ideia de que o outro também seja um eu, pois o eu não se pensa como um outro para o outro, mas apenas como eu para si próprio. Teríamos, dessa forma, apenas um eu que ignora o outro também como eu. Assim, o que o poeta parece querer postular é que qualquer eu é um outro eu para si próprio.

Rimbaud ao estruturar a sentença sob uma forma gramaticalmente incorreta, ou seja, ao fazer concordar o sujeito, o eu, a primeira pessoa do singular, com o verbo ser na terceira pessoa, traz à tona uma questão não propriamente gramatical, mas que remete à própria representação do nosso pensar. E a língua é uma forma estrutural de se pensar o que concebemos como universo. O verbo ser, de função predicativa, ou seja, aquilo que confere um atributo, qualidade ou propriedade a um ser, às vezes se constitui como um sentido vazio e desempenharia a função de ligação entre o sujeito e o predicado, como registra o dicionário. Entretanto, devemos pensar que a sentença do poeta parece não propriamente afirmar algo mas postular uma questão que se refere aos rigores da lógica fundada no Ocidente. O princípio da identidade se funda na ideia de igualdade identitária entre dois termos em que A:A. Heidegger (1973) supõe neste traço identitário o verbo ser. Se A é igual A, ou seja, uma coisa é uma coisa, e não outra coisa, temos concomitantemente o princípio da identidade como instância determinante do princípio da não contradição. Neste, uma coisa não pode ser simultaneamente outra coisa, assim como o eu não pode ser outro. Dentro deste modo de pensar o eu é o eu e nada mais que o eu. Ou seja, o eu não pode ser um outro. Se postulamos anteriormente que o eu da sentença de Rimbaud poderia ser cada eu considerado na perspectiva de um eu como um outro, ou seja, como um eu que é também outro eu, parece que bifurcamos em uma vereda que parece apontar outro sentido além dessa noção de alteridade.

Estaria Rimbaud a nos apontar aquilo que mais tarde outro poeta, que escreveu em nossa língua, problematizaria o eu como uma instância múltipla e não unificada, indefinida, complexa e paradoxal? O pensarsentir, ou o sentirpensar, de Fernando Pessoa (2006) parece ser corolário desta proposição fundadora do poeta francês que ao asseverar o eu como um outro postularia que o conceito de alteridade se funda na interioridade deste terreno movediço que é o próprio eu, e não exclusivamente na representação do eu do outro como um outro eu. O poeta português ao lançar mãos de personas, sob a forma de heterônimos, para configurar a multiplicidade de eus que habitam sua identidade, parece partir da postulação rimbaudiana que pressupõe que para o próprio eu este se constitui como outro. A multifacetária identidade pessoana desconstrói a ideia de unidade, uniformidade e igualdade que determina que o eu é igual ao próprio eu. Essa equação especular é prismatizada por um variegado caleidoscópio que não situa mais em um centro absoluto a ideia de um eu definitivo.

Jorge Luis Borges no conto “O outro” narra a ficção de um encontro entre ele, já velho e cego, consigo próprio ainda novo diante de rios diferentes em espaços diversos a configurar o conceito heraclitiano da transformação permanente das coisas. Se o eu que me constituía no passado não é mais o mesmo que ainda habita este corpo, que também não é mais o mesmo, aquele eu agora para mim é um outro que não reconheço mais. O que seria então o eu? E minha identidade é uma inconstante à deriva em um vagar cujo viver seja sempre a imprecisão daquilo que não possui a precisão, a certeza e o definir exato do navegar? Este somente é preciso, como exatidão, frente à imprecisão do viver que não se guia por bússolas ou astrolábios.

O princípio da identidade funda-se na relação de igualdade entre dois termos em que um não é o espelho do outro, posto que a imagem especular é sempre o inverso do refletido, mas uma absoluta simetria que exclui a contradição. Eu seria, de acordo com este princípio, o mesmo eu e não outro. Dentro desses princípios lógicos alguns hão de pensar a proposição do poeta francês como uma licença poética do eu lírico a devanear na terceira margem da poesia, território não alicerçado nos rigores do pensar claro das ideias distintas. Rimbaud pensa o eu não na relação identitária de igualdade, mas de diferença a constituir esse terreno movediço que Freud nos mostraria com suas obscuridades a mascarar o que pretensamente se apresenta como unidade e inteireza. Ao afirmar que o eu é um outro, o poeta questiona o princípio da identidade como uma relação de igualdade absoluta, e pensa o eu como um universo desconhecido para si próprio. Outro eu habitaria o mesmo eu que se apresentaria, então, como diferença do mesmo e não como igualdade absoluta. No lugar da igualdade, a diferença, e ao invés de identidade unitária, uma permanente transformação que não repousa mais na definibilidade da certeza absoluta de uma verdade inquestionável, mas na inconstância de uma identificação que se modifica como as águas de qualquer rio em um constante correr.  A proposição de Rimbaud instaura um modo de pensar que não mais se funda nos princípios lógicos norteadores da tradição ocidental, pois não concebe mais as coisas por noções opositivas, em que isto não pode simultaneamente ser aquilo já que somente se pode definir uma coisa, de acordo com estes princípios, quando esta se constitua como unidade indissolúvel e não paradoxal. O pensamento poético trafega na contramão do pensar lógico e postula que o modo opositivo de conceber as coisas não reflete a constituição dinâmica de um universo que se funda em uma integração indissolúvel de algo com seu contrário. O que pensamos como opositivo, e, portanto, não sendo idêntico nem constituinte de uma identidade definida, aos olhos iluminados do poeta por outra luz, aparece como uma dinâmica integrativa dos contrários como constituintes do mesmo pela diferença, e não pela exclusão do que o difere. O que constitui o eu não se funda na igualdade de si próprio, mas naquilo que é excluído por aparentemente não se conformar dentro da estreiteza de uma relação uniforme. O eu como um outro se apresenta nesta complexa proposição como um desvio do pensar lógico que somente se determina pelo conceito de identidade como igualdade, unidade e uniformidade. Para o pensar poético, como afirmou o poeta Octavio Paz (1982), isto é aquilo: concomitantemente, simultaneamente, inseparavelmente. Deste modo o eu é também um outro não somente para a noção de alteridade em que cada eu é um outro para outros eus, mas como um pensar dinâmico que não mais repousa na confortável estabilidade da identidade em oposição à contradição. O contraditório em que isto e aquilo se fundem em um todo integrativo questiona as identidades fixas, como nos mostra Deleuze (2000), a partir dos paradoxos que postulam um pensar distante dos princípios que regem nossa lógica.  A poesia, principalmente a de Rimbaud que instaura isto que aqui denominamos de literatura subterrânea, não se funda no modo lógico de pensar. Talvez por isso Aristóteles, (Heráclito, 1973) cujo livro sobre a lírica tenha desaparecido, tenha denominado Heráclito de obscuro. No pensar poético as equações lógicas se subvertem e integram em uma unidade indissociável o que se constitui logicamente como oposições distintivas. Assim, o eu não se apresenta na exclusividade de um mesmo eu, mas na “inclusividade” diferencial do seu oposto como parte integrativa e indissociável de uma relação dinâmica e não estática.

Rimbaud com seu modo “intuitivo” de pensar, de acordo com o parecer de um raciocínio lógico, funda outro pensar que não se dissocia do sentir, do imaginar, do inventar, do contradizer. Incorpora tudo de forma alquímica para operar uma transmutação do pensar em outra concepção de poiesis, diversa da ideia do fazer platônico que postula apenas o utilitário, já que o poeta nada realizaria de produtivo, mas apenas imperfeições diante do inteligível da verdade ideal única, definitiva e definida. O poetar rimbaudiano postula a fantasia como constituinte indissociável do pensar. Se a lógica ocidental se estrutura por oposições, estas devem ser entendidas, de acordo com o pensamento poético, não como anuladoras do que lhe é contrário, mas como partes constituintes de uma integração dinâmica indissolúvel. A lógica poética não se funda no modo opositivo, mas integrativo que sob o prisma da lógica das ideias claras e distintas se configura como paradoxal, contraditório e ilógico.

Assim o eu, sob o prisma poético, sendo outro não se constitui como uma contradição, mas como condição inerente ao modo de ser que conjuga em si próprio seu contrário. Se o inferno são os outros. e se o eu é um outro, ou outros, então o inferno encontra-se dentro de cada um já sendo outro não compreensível para si mesmo.


*José Carlos Pinheiro Prioste é coordenador do setor de Teoria da Literatura do Instituto de Letras da Univeridade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Publicou o ensaio “No enveredamento das sertanias” em Crítica literária contemporânea, 2013.

REFERÊNCIAS

HERÁCLITO. Os pré-socráticos. Trad. W. Regis. São Paulo: Abril Cultural, 1973.

BARTHES, Roland. Aula. Trad. Leyla Perrone-Moysés. São Paulo: Cultrix, 1978.

DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. Trad. L.R.S. Fontes. São Paulo: Perspectiva, 2000.

DESCARTES, René. Discurso do método. Trad. Enrico Corvisieri. São Paulo: Nova Cultural, 1999.

HEIDEGGER, Martin. Que é isto – a filosofia? Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1973.

PAZ, Octavio. O arco e a lira. Trad. Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.

PESSOA, Fernando. Obra póetica. Rio de Janeiro: Nova Aguillar, 2006.

RIMBAUD, Arthur. Correspondência. Trad. Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Topbooks, 2009.

Recebido em: 01/03/2016
Aprovado em: 08/03/2016