Paloma Vidal nasceu em 1975 em Buenos Aires e, aos 2 anos de idade, mudou-se com os pais para o Rio de Janeiro, onde passou a infância e a juventude. Esse estar entre duas línguas e duas culturas marca profundamente sua produção literária. Desde a publicação, em 2003, do seu primeiro livro de contos, A duas mãos, suas temáticas literárias têm sido, em geral, as interferências entre culturas, lugares e gerações, o deslocamento e as vivências em trânsito, o necessário retorno ao passado e a recuperação da memória. Hoje, Paloma vive em São Paulo, é professora de Teoria Literária na Universidade Federal de São Paulo, crítica, tradutora, editora da revista Grumo e autora do blog Escritos Geográficos (www.escritosgeograficos.blogspot.com). Publicou ensaios acadêmicos, contos, poesia, teatro e dois romances: Algum lugar (2009) e Mar azul (2012). Conversei com a escritora em agosto de 2015, em sua acolhedora casa, rodeada de muitos livros e saboreando uma xícara de café.
Num dos textos que fazem parte de A duas mãos, você escreveu: “Serei a mulher que não dá nome aos seres para não sujeitá-los”. Gostaria que comentasse essa frase e falasse um pouco sobre o que a levou à escrita e o que pretende que a sua escrita seja.
Paloma: Esse livro trabalha muito com a questão feminina, tem uma perspectiva da mulher que tem a ver com essa ideia de como se tornar sujeito em vez de ser sujeitada. Esse é um livro que nasce desse impulso de querer ter uma voz, de encontrar uma voz. E talvez essa questão de nomear de algum modo sirva para tentar limitar o que poderia ser aberto. Nesse livro tem muito a ideia de uma certa indefinição em relação às características das pessoas e dos lugares. Ele hoje me parece até um pouco estranho, por exemplo no fato de que em vários contos os espaços não são claramente determinados. O conto “A ver navios” remete à minha avó e à cidade de Buenos Aires, mas tudo isso, a cidade e a geração, não é nomeado nunca. Houve uma mudança bem importante do primeiro livro [A duas mãos] para o segundo [Mais ao sul]. Foi como se essa busca precisasse ser mais específica, mais determinada por uma experiência singular, mais autobiográfica, mais ligada a certos acontecimentos, inclusive históricos, que determinaram justamente o fato de eu querer escrever, como se naquele momento esse impulso tivesse a ver com essa questão do feminino. Comecei escrevendo por uma sensação muito forte de que a voz da mulher tinha que ser conquistada de modo árduo. Depois fui entendendo que tinha de me apoderar daquilo de um modo mais particular, mais meu. Todos os contos desse primeiro livro têm essa questão, não só porque as personagens são mulheres, mas porque elas estão em situações frequentemente de assujeitamento.
Eu diria que, de certa maneira, essas personagens estão como que aprisionadas ora a um casamento de longa duração, ora a uma espera de alguém que não vem.
Paloma: Essa é uma questão curiosa. Esse livro [A duas mãos] foi apresentado por meio de uma bolsa da Biblioteca Nacional da qual a professora Beatriz Resende era jurada e, quando ela me conheceu, falou que achava que era um livro de uma mulher mais velha, e acredito que isso se relaciona com essa sensação de aprisionamento que pouco tinha a ver com uma menina mais nova e havia também umas personagens que eram mais velhas em situações meio sem saída. Ela se espantou muito. Nesse conto, onde está essa frase que você resgatou, ainda tem essa coisa do futuro. Não dá para entender essa frase senão nesse momento do meu processo. Na verdade, esse é um livro a que eu tenho voltado várias vezes, tenho uma relação de muito carinho por ele, por ter sido um momento de tentar, um momento de começar. Eu fiz análise por vinte anos com uma mesma analista para quem disse que tinham sido vinte anos para basicamente poder escrever. Esse livro e a minha análise estão muito relacionados. Não é muito fácil ter uma ideia do que você quer fazer e achar que pode mesmo fazer isso.
A sua escrita trata fundamentalmente de viagens, deslocamentos, exílio, viver em trânsito. A ideia de ser estrangeiro, de estar sozinha numa cidade desconhecida, de não pertencer a lugar nenhum surge, por exemplo, tanto em Mais ao sul como em Algum lugar. Gostaria que falasse um pouco sobre a importância desses temas no seu trabalho.
Paloma: Embora eu ache que exista esse tema dobrando os diferentes livros, cada um deles tem o seu problema. No Mais ao sul tinha uma pergunta, os contos vão meio que circundando uma mesma questão sobre o que é pertencer a algum lugar, sobre o fato de um sujeito nascer num lugar e ter uma relação de naturalização com esse lugar. Essa relação não é nem um pouco óbvia. Cada livro tem uma busca que em geral é muito própria, muito subjetiva, pessoal. No meu caso, não tenho uma vontade de problematizar de uma maneira muito abstrata, mas sim de uma maneira particular, que diz respeito a mim, à minha experiência. Acho que todos eles acabam tocando nessa questão, que é a da naturalização, de uma ideia de identidade. As identidades são sempre problemáticas. Na situação de uma pessoa que mudou de país, isso fica muito evidente. A verdade é que todos nós temos aquela ideia de que fala Julia Kristeva: ela mostra, por meio da psicanálise, como subjetivamente somos estrangeiros a nós mesmos. Na verdade, se a gente conseguisse entender isso talvez pudesse ser mais aberta em relação a essas identidades. Tem uma condição que é de todos os sujeitos e que é também de todas as nações, é uma questão que se expande e vai além do indivíduo. Os meus livros acabam tratando de como a gente poderia enxergar essa estrangeiridade no mundo contemporâneo.
A epígrafe de Algum lugar [Se llega a un lugar sin haber partido de otro, sin llegar. Silvina Ocampo] apresenta o tema do deslocamento, mas também o da importância das raízes que transportamos conosco. Como se pode, no mundo contemporâneo, conciliar estas duas realidades: o deslocar-se (forçada ou voluntariamente) e a necessidade de procurar as raízes?
Paloma: Essa é talvez a questão de como construir um espaço. No caso de Algum lugar, era realmente isso de estar numa cidade que é tão pouco amigável e ao mesmo tempo de ter de construir o meu espaço aí. A pergunta nesse livro foi: “Como é que esse espaço pode se tornar meu?”, porque na verdade a gente precisa de referências e familiaridade.
Mas nesse romance parece haver um constante questionamento da viagem e até um certo distanciamento emocional da protagonista-narradora face, por exemplo, ao namorado que vai com ela nessa viagem, mas também face à mãe que parece estar mais entusiasmada com a viagem do que a própria filha. Parece haver a tentativa de buscar familiaridade e adaptação ao espaço e, ao mesmo tempo, uma certa resistência a pertencer de fato, como se a protagonista-narradora não se deixasse tocar na sua interioridade.
Paloma: Talvez haja mesmo uma resistência dela a pertencer de fato. Essa é uma questão relevante. Quando se é muito marcada pela falta de pertencimento, tem uma barreira que é muito difícil de romper, essa barreira da adaptação, é como se de algum modo se adaptar fosse render–se ao lugar. Tem um pouco disso na minha literatura. Como pertencer sem perder o que te define? Essa é uma questão muito difícil, porque no final das contas a única coisa que você realmente tem é a sua estrangeiridade, que também pode ser uma identidade e isso é um aspecto sobre o qual eu penso muito.
Pode definir estrangeiridade?
Paloma: Estrangeiridade é esse não ter, não conseguir aderir, é essa falta de adesão, esse distanciamento, esse olhar de fora o tempo todo, é o nunca conseguir estar dentro da situação, como se de algum modo você sempre estivesse olhando a situação de fora, como se você fosse uma espécie de espectador.
Como nos contos “Espectadora” ou “Cena no jardim”?
Paloma: Sim. Essa questão é uma espécie de dilema para mim. E talvez seja até para a própria literatura. A posição de espectadora é uma posição muito literária, propensa à literatura, porque justamente isso possibilita a escrita, tanto que os escritores têm um pouco essa dissociação entre a escrita e a vida. Porque se você está dentro da situação, em geral não quer escrever sobre ela, você está dentro, está vivendo; o escritor por outro lado está olhando de fora. Pelo menos é o que acontece comigo. Tenho o dilema de como continuar escrevendo abandonando essa posição de espectador, de estrangeiro, como se de algum modo a escrita tivesse nascido para mim da percepção de que era desse lugar de estrangeiro que eu podia escrever. E que ao mesmo tempo eu poderia dar sentido a uma experiência que sempre foi de muita falta. Ao mesmo tempo que a literatura parece dar um sentido a essa experiência, e tem uma busca que é por um pertencimento, parece que essa busca está meio fadada ao fracasso. Talvez abandonar esse lugar seja abandonar a própria literatura. Esse é um desafio para qualquer escritor porque tem um momento em que talvez ele precise se deslocar. No meu caso é até mais radical, pois é como se eu tivesse de me deslocar do deslocamento.
Nos seus textos, as personagens parecem estar envolvidas em uma melancolia e solidão, às vezes até profunda e traumática. Estou pensando, por exemplo, na protagonista do conto “Espectadora”, mas também na protagonista de Algum lugar. Este último livro é, aliás, percorrido por uma profunda sensação de perda e de desamparo que se vai materializando nos diversos sonhos narrados, e numa certa incapacidade de relacionamento emocional da protagonista com os outros. Reconhece a presença desta melancolia, ou estarei treslendo o seu texto? Se sim, pode comentar os efeitos dessa melancolia?
Paloma: Isso está relacionado justamente com o que eu estava falando. É como se a literatura mergulhasse nesse sentimento de estrangeiridade. É desse lugar que o texto se escreve e nesse sentido este é um lugar muito melancólico, de alguém que está num lugar, como diria Freud, de luto melancolia. É um livro de alguém que está mergulhado nessas perdas.
Mas a melancolia é da escritora ou das personagens?
Paloma: É certamente das personagens. Se eu, escritora, estivesse mergulhada na melancolia, não poderia escrever. O livro é movimento e isso é já sair da melancolia, e mesmo dentro dele há movimentos que têm a ver com as rupturas que acontecem ali, com o filho, com essa outra viagem que acontece no final. Tem uma melancolia porque é um livro que fica ali remoendo a impossibilidade de pertencer. Todos os livros, e talvez Mar azul mais do que todos, são profundamente melancólicos. Neste último há até um aprofundamento dessa melancolia, houve um movimento para ver até onde eu posso ir, porque comparando as protagonistas de Mar azul e Algum lugar, a primeira é mais isolada, mas vive numa cidade com espaços públicos convidativos, em que se pode andar a pé, uma cidade em que no geral os estrangeiros se sentem bem, pelo menos dentro de um certo imaginário, principalmente os argentinos. Mas, mesmo nessa cidade, essa protagonista consegue ter um isolamento radical.
Ainda sobre Algum lugar: o livro tem dois momentos em termos de ritmo e tempo cronológico, um mais lento que compreende a chegada a Los Angeles e as vivências nessa cidade até a volta ao Rio, onde a protagonista descobre estar grávida e onde acaba por ficar. Depois do regresso ao Rio, a narrativa tem saltos temporais, terminando C. (o filho) já com dois anos. Pode comentar os efeitos dessa estrutura?
Paloma: Isso corresponde um pouco ao processo de construção do livro. Ele foi escrito muito colado a uma vivência em Los Angeles, inclusive com uma escrita concomitante à experiência, porque eu mantinha um blog. Foi uma escrita feita ao longo da viagem, ela tem mais a característica do diário, que vai acompanhando os dias sem tantos saltos temporais. E, de algum modo, eu quis depois sair disso, acho que fiquei com esse dilema de como organizar essa experiência lá em Los Angeles, que foi tão forte e ao mesmo tempo tão distante da minha realidade no Brasil. Sempre tive a sensação de que esse livro deu um sentido a algo que realmente parecia não ter sentido nenhum. Porque eu de fato passei um ano naquela cidade sem entender o que estava fazendo ali.
E daí as perguntas retóricas que percorrem toda a narrativa, servindo para problematizar o porquê da viagem?
Paloma: Isso mesmo. As perguntas evidenciam a falta de sentido do que eu estava fazendo ali. Eu que já tenho dificuldade de adaptação, por que fui parar nessa cidade que claramente não ia me acolher? Há uma certa perplexidade de me ter colocado numa situação de estrangeiridade extrema. Acho que a estrutura do livro é um pouco forçada, porque é como se eu precisasse colocar essa experiência ao lado de uma outra vida, inscrevê-la em Los Angeles na vida dessa personagem através do que ela tem de mais próprio, que é a relação dela com a cidade da infância e do imaginário da mãe. Ela acaba se encontrando com a mãe através do filho. São realmente dois momentos que eu tentei juntar. Se esse livro fosse passar pelo crivo de uma oficina de escrita, por exemplo, não seria aceito certamente. Ele tem uma estrutura defeituosa. Na verdade, realmente os meus livros são defeituosos e talvez existam para mostrar o processo da minha própria escrita. O livro é um processo de separação em vários sentidos. Também trata de como as cidades contribuem para que sejamos pessoas diferentes. Uma coisa que me perturbava quando pequena era perceber que as pessoas eram diferentes dependendo dos contextos. Parecia até uma coisa falsa, não tinha uma verdade que se mantinha, mas depois descobri que na verdade a gente é múltipla. A relação com as cidades apresenta o mesmo tipo de angústia, somos vários com cidades diferentes.
A propósito de cidades e de espaço. Acha que os seus textos podem integrar-se naquilo que se poderia ler como literatura urbana?
Paloma: Nunca pensei nesses termos. Poderia escrever sobre qualquer tipo de espaço. A questão é que a minha vida sempre se passou em cidades e as coisas sobre as quais quis escrever têm a ver com o espaço urbano. Mas, por exemplo, o meu próximo romance vai se passar numa cidade pequena. O que aconteceu é que, até o momento, os meus livros se passam em cidades grandes, como Los Angeles, Rio e Buenos Aires, justamente porque eu precisei falar de experiências de estrangeiridade ligadas a vivências em cidades grandes e diferentes. Realmente não tenho nenhum tipo de fidelidade a categorias.
Mas qual é o impacto da cidade nas suas personagens, isto é, como é que elas são afetadas pelo espaço? Em alguns textos, a cidade parece ter um efeito de alienação sobre as mulheres.
Paloma: Um das coisas que eu consegui ganhar com o livro Algum lugar e a minha experiência em Los Angeles foi a relação com um espaço específico. Acho que isso também acontece em alguns contos de Mais ao sul, mas não em todos. Nas primeiras coisas que escrevi eu tinha muito medo dessa especificidade, um pouco como se não soubesse lidar com essa singularidade dos lugares e como falar desses espaços. Na verdade, agora estou pensando, do que eu tinha medo era do realismo, de uma certa ingenuidade na representação dos lugares, no sentido dessa falta de questionamento de como a literatura se relaciona com a realidade. A opção então foi a do distanciamento. Mas a questão da alienação está presente, sim, num embate dessas mulheres todas em relação ao espaço da cidade, a como sobreviver neles.
Ligada com esta questão da reconstrução do passado, gostaria que falasse um pouco sobre a importância dos sonhos na sua escrita. Há passagens em Algum lugar que têm um forte pendor performativo, e em que a narradora se dirige diretamente ao leitor.
Paloma: É verdade, os sonhos têm um lugar fundamental na minha escrita. Nesse livro, tinha uma vontade de dar uma outra dimensão dessa experiência da protagonista, uma dimensão que tem a ver com mais uma camada que ela não entende direito e que se pode relacionar com o passado dela. Os sonhos têm essa capacidade de trazer aspectos inesperados. E como eu fiz análise durante muitos anos, os sonhos são algo muito presente no meu trabalho, são como que uma outra capa da experiência e, no livro, eles cumprem essa função de interpelação, que não é só a ideia da interpelação ao leitor, mas também a ideia de que os sonhos surgem como uma interpelação externa, ao próprio sujeito. No fundo, estou falando da ideia de Lacan de “extimidade”, uma coisa que é própria mas que ao mesmo tempo está vindo de fora. O uso da segunda pessoa nessas passagens do livro tem precisamente a função de falar desses aspetos que se encaixam na experiência mas não totalmente. É uma forma que encontrei para juntar espaços e tempos diferentes.
O tópico dos pássaros, das aves, surge em vários dos seus textos que compõem Mar azul, o subcapítulo com que o livro termina intitula-se precisamente “Pássaros” e parece ser até uma espécie de arte poética. Gostaria que falasse um pouco sobre a presença e o simbolismo das aves na sua criação literária.
Paloma: Poderia falar de simbolismo, mas do que eu gosto mesmo neste tema é o fato de o pássaro ser algo bastante concreto, é um dado do real que entra nos meus livros como um tipo de companhia. Vejo os pássaros como uma espécie de coleção, como algo que eu vou colecionando em cada livro, uma marcação que me acompanha em diferentes momentos, de marcação do tempo, como as crianças que colam figurinhas na porta dos seus armários e aquilo fica como marca de vários momentos passados. Brinco com essa imagem como uma temática clássica, mas também com o meu próprio nome. Esse último texto de Mais ao sul é na verdade um conjunto de fragmentos, de microficções, nos quais eu brinco com a questão autoral.
Outra questão que é visível na sua literatura é a interferência entre culturas, visível tanto no uso do espanhol e do inglês quanto nas inúmeras referências literárias e cinematográficas. E há também uma dimensão de transnacionalidade na sua escrita que parece ir mais além do que essas questões. Estou pensando especificamente no tema da imigração. Acha que a sua escrita pretende alargar as fronteiras do Brasil e refletir sobre a experiência imigrante?
Paloma: Esse talvez seja um tema que faça parte de uma espécie de projeto. Todas as literaturas têm questões e temáticas fortes relacionadas com a identidade nacional. O Brasil não é exceção e, talvez por ser um país tão grande, a literatura brasileira acaba sendo muito autocentrada, como se ela se bastasse justamente por causa da diversidade e da multiplicidade cultural que existem aqui. No meu caso, existe uma ideia de fazer uma literatura que se coloque em diálogo com coisas que estão fora, que mostre um pouco meu jeito capenga de ser brasileira. Me questiono o que é ser brasileira ou argentina. Um amigo me disse uma vez que ser brasileiro ou argentino é não se perguntar isso, e estou sempre me perguntando. O meu novo livro de contos é passado praticamente todo fora e tem esse desafio de falar sobre outros lugares que não os lugares comuns para mim: o Brasil e a Argentina. Será que eu consigo falar sem ser desse lugar? Não quero fazer uma literatura que pretenda igualar todos os lugares, trata-se mais de uma mudança de foco, preciso falar de como se pode ser estrangeiro em qualquer lugar. O novo livro resulta de uma tentativa de desestabilizar os meus próprios espaços confortáveis.
A ideia da transnacionalidade aparece em textos de vários escritores brasileiros contemporâneos. Acha que esse é um traço da literatura contemporânea?
Paloma: Acho que sim, que é um traço da literatura contemporânea, da minha geração, para fugir de certos estereótipos sobre a literatura brasileira, isto é, da ideia de que ela deveria tratar de determinadas questões e temas. E aí acho que o risco é uma relação com o mercado, ao querer responder ao que um determinado mercado internacional espera da literatura brasileira. Acho que há muitos escritores que estão fazendo coisas interessantes nesse sentido. De um modo amplo, dá até para identificar um movimento de muitos escritores pelo caminho do cosmopolitismo, mas há modos de cosmopolitismo muito diferentes, o que realmente importa é o que cada escritor faz com isso. É, por exemplo, muito diferente um livro feito no âmbito de um projeto como o Amores Expressos de um livro de João Gilberto Noll ou de Paisagem com dromedário de Carola Saavedra, livro que trabalha com o espaço de forma muito indefinida.
Sei que esta é uma pergunta bastante ingrata, mas não vou resistir: como professora de Teoria Literária e também crítica de literatura, como vê a sua proposta literária no panorama da literatura brasileira contemporânea?
Paloma: É curioso isso. Tenho consciência, claro, não só porque sou professora e crítica, mas também porque na verdade todos os escritores e artistas contemporâneos são atravessados pela crítica, pelo discurso sobre as obras, sobre suas obras. A gente produz obras e discurso sobre as obras, então, claro que eu tenho uma certa consciência que se refere a todas essas questões de que já falamos: da estrangeiridade, da identidade, das fronteiras nacionais, de fazer interferências que não sejam tão óbvias numa literatura que talvez seja bastante autocentrada e bastante realista. O que pretendo fazer tem tudo a ver com essas ideias, mas, por outro lado, os livros acabam sendo experimentos que têm a ver com uma experiência e a necessidade visceral de tratar de certos temas. Uma questão que me persegue é pensar no que a literatura ainda pode fazer. A minha escrita tem um lado de experimento muito forte, não pretendo simplesmente contar uma história. O diálogo inicial de Marazul, entre duas meninas que não são nomeadas, tem muito a ver com uma vontade minha de experimentar com essa linguagem. O desafio da literatura é saber o que mais se pode fazer com a linguagem. Há uma capacidade muito poderosa de renovação na escrita que é muito fascinante.
Você escreve poesia e também mantém um blog, mas a maior parte dos textos que escreveu até hoje são em prosa. Em que gênero se sente mais à vontade?
Paloma: Não me sinto realmente uma romancista. Não penso em histórias longas. Não é disso que eu gosto. Sou mais uma escritora do fragmento. Acho que João Cabral de Melo Neto disse alguma vez que havia escritores gordos e escritores magros. Gostei dessa ideia, e talvez eu seja uma escritora bem magra, como um cisco mesmo, um pequeno cisco, na medida em que eu realmente gostaria de fazer literatura com o mínimo.
* Patricia Martinho Ferreira é licenciada em Estudos Portugueses (2005), mestre em Teoria e Análise da Narrativa (2009) pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (Portugal) e mestre em Ensino do Português como Língua Estrangeira (2012) pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto (Portugal). Atualmente, frequenta o doutorado em Estudos Portugueses e Brasileiros na Universidade de Brown (EUA). Tem apresentado trabalhos nas áreas das literaturas portuguesa, brasileira e africana de língua portuguesa.
Resumo: O presente ensaio busca examinar a construção do conceito de autoficção enquanto uma espécie de sintoma da diluição das fronteiras entre o público e o privado. Além disso, o ensaio também tem como objetivo observar que a autoficção, enquanto experimento literário, permite a construção de uma lúcida representação política da contemporaneidade, conforme demonstra a obra de Ricardo Lísias.
Abstract: This essay seeks to examine the construction of the concept of autofiction as a kind of manifestation of the blurring of boundaries between the public and private sectors. In addition, the essay also aims at observing how autofiction as a literary experiment allows the construction of a lucid political representation of contemporaneity as evidenced in the work of Ricardo Lísias.
O tempo transcorrido e, sobretudo, as transformações políticas das últimas décadas, o novo traçado mundial e o desdobramento incessante das tecnologias, que foi além de qualquer previsão, transformaram definitivamente o sentido clássico do público e do privado na modernidade a ponto de essa distinção se tornar frequentemente indecidível. Leonor Arfuch, O espaço biográfico.
Na contemporaneidade, as fronteiras entre o público e o privado têm se tornado cada vez mais fluidas e fugidias. Tal assertiva não é minha, ela habita o senso comum e pode ser entreouvida aos quatro cantos, sendo revestida por uma certa aura de verdade unívoca e espelhamento de um sintoma próprio daquilo que se convencionou nomear como pós-modernidade[i]. A construção da imagem de um cotidiano marcado pela incessante quebra e vazamento desses limites provoca de forma imediata a busca por novos modelos de compreensão dos arranjos sociais que favoreceram o fenômeno e, por outra perspectiva, resultaram dele.
Contudo, talvez a expressão que melhor sintetize o fenômeno não seja o rompimento e a invasão das outrora rígidas fronteiras entre público e o privado, e, sim, a definição de uma possível inversão destes dois espaços. Foi em busca de um conceito que pudesse abarcar as especificidades dos fenômenos contemporâneos que o psicanalista francês Serge Tisseron revisita a expressão “extimidade”, em francês: extimité, formulada inicialmente por Jacques Lacan. Segundo nos relata Eurídice Figueiredo, no livro Mulheres ao espelho: autobiografias, ficção e autoficção, o psicanalista utiliza o conceito como operador de uma reflexão acerca do programa televisivo Loft Story, um reality show francês, e busca compreender os contornos do “movimento que leva cada um a desvelar uma parte de sua vida íntima, tanto física quanto psíquica” (Figueiredo, 2013, p. 68). Em outras palavras, o termo pode ser empregado para nomear os atos de evasão de intimidade. É possível aplicar o termo cunhado por Lacan e ressignificado por Serge para analisar não apenas o reality show em questão, como também um amplo elenco de produtos culturais contemporâneos, que começa nas inúmeras redes sociais virtuais e alcança as modernas câmeras digitais que possibilitam a captura instantânea de flashes do cotidiano. Nos três exemplos citados a extimidade é performatizada devido ao reconhecimento do outro, cuja atuação é fundamental na validação da vida exposta e para a própria alimentação do desejo de apresentar a intimidade. Nas palavras do próprio Serge Tisseron:
Para validar minha percepção de mim, autentificar o que mostro, tenho justamente necessidade do outro. E quando me desvelo, ele se desvela por sua vez. O desejo de extimidade é inseparável da busca relacional. Sua valorização está organizando novas regras sociais, que não são mais perigosas que as precedentes. Apenas devemos aprender a conhecê-las[ii] (Tisseron apud Figueiredo, 2012, p. 69).
É na reivindicação do outro que se fixa o gesto primeiro deste desejo de expor a intimidade. Não se trata de um exibicionismo, mas de uma formulação consciente do que será exposto a outrem, na qual se determina qual a identidade que será oferecida e esta é reconstruída pelo outro que a recebe e a desvela.
A oferta da imagem de uma nova relação entre público e privado na abertura de meu ensaio é útil para compreendermos uma espécie de sintoma da produção literária contemporânea, a autoficção. Claro está que a construção do neologismo autoficção não está relacionada de modo claro e objetivo ao cenário apresentado anteriormente, afinal são outras a contingências que impulsionam a edificação do conceito. No entanto, é possível localizar traços de extimidade para recuperar o conceito de Serge Tisseron, na elaboração do termo autoficção, proporcionando uma nova leitura da questão.
Antes de iniciar tal protocolo de leitura, é necessário narrar como o conceito de autoficção foi construído e quais seriam os seus elementos constituintes. Podemos afirmar que foi Serge Doubrovsky o criador não apenas do termo, como também do primeiro romance considerado autoficcional. A narrativa é conhecida, mas isso não nos impede de apresentar essa história: a ideia de criação de um texto que apresentasse a convergência de identidade entre autor, personagem e narrador surgiu para Doubrovsky a partir da leitura que realizou do estudo de Philipe Lejeune sobre textos autobiográficos. De forma mais precisa, foi a busca da oferta de uma resposta positiva para o questionamento de Lejeune acerca da existência de um texto que possuísse a característica citada acima que impulsionou Serge Doubrovsky para a criação do romance Fils, tido como a primeira obra autoficcional. Diana Klinger, em Escritas de si, escritas do outro, recupera os principais questionamentos teóricos que moveram Doubrovsky em sua teorização, observando que foi a apresentação de uma pequena dúvida de Lejeune sobre a existência ou não de “um romance no qual houvesse identidade de nomes entre autor, narrador e personagem” (Klinger, 2007, p. 42) que mobilizou Doubrovsky a redigir uma carta a Phillipe Lejeune e principalmente para a publicação de Fils. Segundo a leitura de Diana Klinger, o romance foi escrito “com a intenção premeditada de preencher essa “caixa vazia” (p. 42) localizada no quadro teórico de Lejeune. Com a publicação do romance, o autor não apenas oferece a Phillipe Lejeune a oportunidade de lidar com um novo objeto de estudo – um romance que apresenta em sua estrutura uma identidade entre autor, narrador e personagem – como também inaugura um conceito crítico. Com o objetivo de alcançar uma possível definição do conceito, cito a definição de autoficção dada pelo próprio autor: “Ficção de acontecimentos e de fatos estritamente reais; se se quer, autoficção”. E conclui: “nem é autobiografia nem romance, e sim, no sentido estrito do termo, funciona entre os dois, em um reenvio incessante, em um lugar impossível e inacessível fora da operação do texto” (p. 43). Na oferta desta singular definição para o conceito, é perceptível uma certa imprecisão, que é construída em oposição a conceitos basilares da teoria literária, que passam a ser visitados com o desejo de propor um novo arranjo que permita a convergência de estruturas anteriormente antagônicas e não associáveis. Não se trata de uma negação a esses conceitos, a intenção é edificar um difícil espaço fronteiriço, delimitado a partir do acionamento de determinados pactos de leitura que desvirtuam alguns modelos de interpretação da escrita ficcional. O resultado dessa operação crítica é a tentativa de acentuar o caráter inédito da proposta construída por Doubrovsky e oferecer os contornos de um possível novo gênero literário. Afinal, ao propormos um exame crítico sobre a autoficção, além de acompanharmos o processo de elaboração de um conceito, estamos igualmente observando a formação de um gênero literário, conforme sublinhou Jean-Louis Jeannelle, no ensaio A quantas anda a reflexão sobre a autoficção?, quando afirma que: “É raro poder assistir às diferentes etapas da vida de um gênero, colhidas em menos de três décadas, de seu nascimento até a sua legitimação. Sob esse ponto de vista, a autoficção parece um verdadeiro caso de escola” (Jeannelle, 2014, p. 130). Por estarmos diante do nascimento de um gênero, estamos igualmente diante de um terreno a ser construído e consolidado, seja em uma perspectiva normativa ou descritiva. E será Philippe Lejeune um personagem fundamental nesse processo, ao propor a escrita da trajetória da autoficção em texto apresentado num colóquio realizado na Universidade de Nanterre, no ano de 1992. Com o sugestivo título de Autofictions & cie, o colóquio reuniu alguns dos principais pesquisadores especializados no tema e pode ser lido como o gesto final do processo de formação do gênero. O texto de Lejeune apresenta a estrutura de uma peça teatral dividida em cinco atos que aludem a datas fundadoras da autoficção. Jovita Maria Gerheim, na apresentação do volume de textos Ensaios sobre a autoficção, define o ensaio do crítico francês como um dos primeiros a examinar o percurso de construção conceitual da autoficção e também por antecipar “as questões e divergências que se revelarão mais tarde na discussão sobre o conceito em sua apropriação” (Jovita, 2014, p. 09). A antecipação saudada por Jovita Gerheim repousa na observação de que Lejeune identificou uma possível fragilidade na estrutura normativa oferecida por Doubrovsky. Tal fragilidade permite que seja problematizada a própria concepção de gênero proposta pelo criador do neologismo. Pois, seguindo os passos de Doubrovsky, a autoficção é a convergência de identidade entre autor, personagem e narrador. No entanto, Lejeune problematiza tal definição e a coloca em xeque quando questiona a real possibilidade de agrupamento sob uma mesma égide de textos que, ao contrário de Doubrovsky, assumem a ficção como norte referencial mesmo mantendo a convergência de identidade entre autor, personagem e narrador: “Mas seria de fato um gênero? Como poderia ela englobar sob um mesmo nome os que prometem dizer toda a verdade (como Doubrovsky) e os que se entregam livremente à invenção?” (Lejeune, 2014, p. 27).
Uma possível fuga dessa querela conceitual seria assumir de modo claro e objetivo que a autoficção é um gênero próprio da pós-modernidade, conforme leitura realizada pelo próprio Doubrovsky, segundo nos informa Eurídice Figueiredo a partir das contribuições de Philippe Vilain:
A autoficção, tal como concebida por Doubrovsky, seria uma variante pós-moderna da autobiografia na medida em que ela não acredita mais numa verdade literal, numa referência indubitável, num discurso histórico coerente e se sabe reconstrução arbitrária e literária de fragmentos esparsos da memória (Figueiredo, 2012, p. 63).
Se a inventiva criação conceitual de Doubrovsky pode ser saudada como uma espécie de marca sintomática da pós-modernidade, a que forma fixa ela busca se opor e produzir alguma forma de ressignificação senão à matriz dos textos biográficos que marcam a modernidade e o apogeu da noção de sujeito? Claro está que tal equação assume a feição de uma leitura evolutiva e, principalmente, baseada em uma teoria dos reflexos, que pode ser resumida em uma pequena sentença: na modernidade temos a autobiografia e para a pós-modernidade localizamos a autoficção. O binarismo da análise também oferece certa rigidez, que pode denotar a estruturação de um quadro fixo que coloca em lados diametralmente opostos a autobiografia e a autoficção. Contudo, ainda que ciente da precariedade de tal exercício comparativo, faz-se necessário observar que a emergência de textos autoficcionais – por problematizarem a noção de verdade e colocam em xeque a autoridade do discurso autotélico – dialoga de forma direta com as novas configurações do sujeito contemporâneo, cindido em sua identidade fragmentada e contraditória. E, por outro turno, analisando o processo de construção da noção de indivíduo na modernidade, conforme nos recorda a crítica argentina Leonor Arfuch, não podemos esquecer que “confissões, autobiografias, memórias, diários íntimos, correspondências, traçariam, para além de seu valor literário intrínseco, um espaço de autorreflexão decisivo para a consolidação do individualismo como um dos traços típicos do Ocidente” (Arfuch, 2010, p. 36). Nesta chave de leitura, de um lado estaríamos diante do que se convencionou nomear como um “espaço da interioridade”, que foi produzido por uma nova configuração do lar burguês que possibilitou a obtenção de uma privacidade própria à construção da subjetividade e criação de formas de escrita de si, e por outro lado acompanhamos na contemporaneidade a emergência de uma escrita que problematiza a própria identidade do sujeito na pós-modernidade.
Se um dos elementos normativos de um texto autoficcional é a intenção explícita de promover uma convergência entre as identidades do autor, personagem e narrador, o escritor paulistano Ricardo Lísias é por excelência um dos mais profícuos nomes desse gênero literário pós-moderno. Ao menos dois de seus romances oferecem tal homonímia, sem falar em uma série de contos assinados pelo autor que igualmente traz em seu bojo tal característica.
No conjunto da obra de Lísias, de imediato um conto em especial merece a nossa atenção, a começar pelo sugestivo título que o autor oferece à narrativa: “Autoficção”. Trata-se do único título inédito no volume de contos Concentração e outros, lançado pelo autor em 2015. Na abertura do conto, o narrador nos oferece uma nota no mínimo inusitada:
O começo dessa história é conhecido: no final do ano passado, em um manifesto quase incompreensível divulgado pelo Facebook, Ricardo Lísias anunciou que desistia de escrever para, por fim, dedicar-se às artes plásticas. O golpe publicitário funcionou e, cinco dias depois, a Galeria Fortes Vilaça, em uma exposição que durou apenas três horas, vendeu oito dos dozes trabalhos que Lísias apresentou (Lísias, 2015, p. 79).
De imediato, no início do conto, nos é apresentado um importante índice exploratório da narrativa. Refiro-me à forma depreciativa com que o narrador retrata o personagem Ricardo Lísias, classificando seu gesto de abandono da literatura e ingresso no mundo das artes como um golpe publicitário. O tom empregado pelo narrador é próprio de uma linguagem jornalística que relata os episódios a partir de um ponto de vista parcial que não se exime de emitir julgamentos e conduzir os leitores em um terreno formado por uma única versão. Tal aspecto é importante, pois transforma o conto em um verdadeiro pastiche de um texto jornalístico que aciona Lísias como personagem para a elaboração de um perfil. A estrutura da narrativa é simples e dotada de um humor peculiar ao promover uma leitura irônica de uma matéria jornalística que investiga o fato de Ricardo Lísias ter abandonado a literatura após ganhar uma grande quantia com a venda de suas obras em uma galeria de São Paulo e se refugiar em Berna, capital da Suíça. A descoberta do paradeiro do escritor é uma façanha realizada pelo narrador da matéria: “Depois de longa investigação, a reportagem conseguiu localizá-lo vivendo em um subúrbio elegante de Berna, capital da Suíça” (p. 80). É esse sujeito indefinido, que somente próximo ao término conseguimos identificar como uma mulher, que conduz os leitores na apresentação de um perfil de Ricardo Lísias, buscando desvelar as reais motivações do autor ao deixar o campo literário e passar a atuar nas artes plásticas.
Se em um primeiro momento já somos advertidos de que a ação de Ricardo Lísias foi um golpe publicitário, resta compreender o funcionamento desse golpe. Diversas versões são oferecidas. Dois dados tornam o percurso investigativo ainda mais nebuloso: o primeiro é o fato de que os nomes dos compradores dos trabalhos de Lísias serem mantidos em segredo e o segundo é a ausência de informações sobre os valores arrecadados pela venda das obras. Alguns críticos passam a acreditar que Lísias foi o comprador das próprias obras, um gesto deliberado para gerar publicidade, e outros avaliam que não é impossível imaginar esse valor para as obras, pois “no mundo da arte contemporânea tudo é possível” (p. 79). No entanto, a dose de maior ironia está dirigida não ao universo dos críticos de arte ou ao mercado de arte contemporânea, mas sim ao espaço restrito do meio literário. Pois, segundo nos relata o conto, apenas os visitantes da exposição, em sua maioria de pessoas ligadas ao mercado editorial e literário brasileiro, conheceram as obras de Ricardo Lísias, da qual só consta a existência de um único registro fotográfico de autoria de um visitante. A dose irônica repousa na forma como o autor dos registros fotográficos lida com as imagens: “Segundo ele, se os trabalhos nunca aparecerem, as fotos podem virar a própria obra e seu valor de mercado aumentará muito” (p. 80). De forma sucinta e com um humor peculiar, o autor problematiza diferentes campos da produção artística, examinando as suas relações com o mercado financeiro, oferecendo uma perspectiva crítica para observar o lugar da arte contemporânea, retratado como um setor destinado às grandes transações financeiras que possibilita o trânsito de alguns milhões, e o mercado literário, representado como um meio marcado pela falta de recursos e por sordidez. Além disso, o autor também recupera o debate sobre a aura da obra de arte em um contexto pós-aurático ao oferecer a percepção do personagem que busca preservar as imagens das obras, acreditando que elas irão se converter na própria obra caso ocorra o desaparecimento do trabalho original.
No tocante às obras, que são descritas a partir das imagens realizadas pelo personagem anônimo que espera enriquecer com elas, temos uma importante reflexão acerca dos limites da autorrepresentação, seja em uma perspectiva literária ou das artes plásticas, a partir de duas séries: “Autorretrato” e “Autoficções”. A primeira apresenta basicamente “o rosto de Lísias, em diferentes poses, com texto não identificado datilografado por cima e algum tipo de intervenção” (p.80). Já a outra série, “trata-se de uma colagem de todo tipo de papel que, em diferentes perspectivas, formaria a biografia de Lísias” (p. 80). A breve descrição das obras é um interessante campo de investigação teórica acerca dos limites da autorrepresentação. Ao colocar em evidência a convergência entre dois campos de experimentação artística específicos, a saber a literatura e as artes plásticas, nos é oferecido como resultado a própria incompletude da obra. Mesmo que em diálogo, as intervenções plásticas e o texto literário não acomodam uma imagem precisa e clara do próprio autor. Afinal, a texto datilografado por cima do rosto de Lísias não é identificado e a colagem dos mais variados tipos de papel propõe uma biografia imprecisa para o autor. Importa também observar um dado de grande relevância oferecido pelo narrador, as imagens não estão em perfeita qualidade, impedindo a obtenção de uma leitura legítima das obras. Em outras palavras, Ricardo Lísias também investe na estruturação de um importante debate acerca da verdade, resultando na apresentação de duas perspectivas. Primeiro alimentando a narração de uma reportagem jornalística assumidamente investigativa e, em segundo lugar, na constante problematização acerca da real existência de uma verdade a ser localizada. Afinal, como nos é relatado no próprio conto, “Se não fossem os processos na Receita Federal, a fuga do artista, a revolta muda da Galeria Fortes Vilaça e as testemunhas, poderíamos inclusive supor que tudo não passa de outro conto de Ricardo Lísias” (p. 80). É nessa clave que temos que nos colocar diante do texto de Lísias, lendo-o a partir dessa única verdade plausível e concreta: trata-se de um texto assinado por Ricardo Lísias. Tal constatação é simples, mas guarda uma importante abertura interpretativa que permite a construção de um protocolo de leitura próprio para os textos do autor e proporciona uma nova análise da presença de determinados pactos autoficcionais no conjunto da obra de Ricardo Lísias. Para tornar mais clara a proposta aqui engendrada, é possível equacioná-la na forma de uma questão: quais são os efeitos esperados por Ricardo Lísias no constante uso da homonímia entre escritor, personagem e narrador em seus romances e contos?
Antes de propor esse protocolo de leitura, torna-se rentável apresentar os outros textos do autor que visitam o complexo terreno da chamada autoficção. O céu dos suicidas, romance publicado em 2012, pode ser classificado como um texto formado a partir da “ficção de acontecimentos e de fatos estritamente reais”, para citar novamente a definição de Serge Doubrosvky, devido à forma como Ricardo Lísias narra o suicídio de André, um amigo de faculdade. O romance apresenta como protagonista um especialista em coleções que abandonou o hobby e passou a atuar como uma espécie de consultor de colecionadores, com as funções de avaliar coleções e orientar os iniciantes na prática. Alguns elementos permitem nomear e classificar O céu dos suicidas enquanto um texto de autoficção, o mais patente é localizado na página 119, no trecho em que narra a chegada do personagem ao Líbano. Em busca de informações sobre a origem de sua família, o narrador localiza um arquiteto que provavelmente seja um primo distante e vai ao encontro deste em um café:
Acordei com fome no meio da tarde. Antes de pedir um lanche, fui olhar os e-mails. Minha irmã mandava outro número de telefone e o arquiteto me pedia para procurá-lo no celular. Liguei imediatamente e ele, muito simpático, marcou um café para o final do dia “na região mais animada da cidade”.
Eu não via clima para badalação, mas aceitei. Logo avistei meu parente. Por trás de uma mesa, ele acenou e depois me chamou pelo nome: Ricardo Lísias (Lísias, 2012, p. 119).
A ausência de um romance que apresentasse em sua estrutura uma identidade de nomes entre autor, narrador e personagem, identificada por Phillipe Lejeune, na primeira edição de seu estudo O pacto autobiográfico, é novamente preenchida aqui, agora não mais por Serge Doubrovsky, mas, sim, por Ricardo Lísias. Não há como não se chocar com a presença do nome do autor enquanto forma de nomeação do personagem-narrador do romance. A presença do nome do autor cria uma fissura no tecido narrativo e produz um efeito de estranhamento que o lança a uma espécie de fronteira interpretativa. Trata-se, é claro, de um jogo no qual o próprio autor coordena e orienta as suas investidas no campo ficcional não apenas como sujeito autoral e produtor do discurso, mas, igualmente, como personagem e matéria da narrativa. O leitor é parte ativa desse jogo, sua leitura não é passiva e muito menos funciona apenas como um simples identificador das marcas biográficas do autor que corroboram para a classificação do romance enquanto um texto autoficcional. Resta ao leitor e à crítica construírem formas de compreensão dessas investidas e interrogar quais as ressonâncias desse ato de convergência entre duas formas em princípio antagônicas, a autobiográfica e a ficção.
No entanto, se em O céu dos suicidas, Ricardo Lísias havia provocado certo estranhamento ao construir como protagonista um personagem homônimo, o ápice desse experimento autoficcional será apresentado no romance Divórcio, publicado em 2013. Posso afirmar sem erro que o primeiro impulso de todo e qualquer leitor que se debruça sobre o livro de Lísias é o desejo de um mergulho no cotidiano privado ao autor e adentrar no relato do fim do casamento dele. Pois, o divórcio apresentado no título é o divórcio de um personagem homônimo ao autor, que também é escritor e publicou os livros O céu dos suicidas e O livro dos mandarins, títulos idênticos aos assinados pelo escritor Ricardo Lísias. Tal qual ocorre em outras narrativas do autor, o enredo é simples: casado há apenas quatro meses, o narrador do romance encontra por acidente o diário da mulher e se depara com frases pouco elogiosas a sua personalidade – “O Ricardo é patético, qualquer criança teria vergonha de ter um pai desse” e “Casei com um homem que não viveu. O Ricardo ficou trancado dentro de um quarto lendo a vida toda” – e com a descrição de uma relação extraconjugal da mulher durante o festival de cinema de Cannes, onde ela estava cobrindo jornalisticamente o evento. Atordoado com a descoberta, o personagem se separa da mulher e passa por uma violenta crise emocional que só é vencida com o uso quase terapêutico dos treinos de corrida, que culminam em uma participação na Corrida de São Silvestre. Esses dois elementos, a descoberta do diário e a descrição dos treinos de corrida, oferecem uma composição própria ao romance, que resulta em uma estrutura espiral – a cada novo quilômetro percorrido, um novo fragmento do diário é oferecido ao leitor. Para alcançar o fim do romance, o leitor terá que percorrer quinze capítulos, ou quilômetros, como o próprio autor nomeia as divisões internas da obra. Assim, ao término do romance temos a descrição da participação do personagem/narrador na Corrida de São Silvestre. O ato de concluir a prova representa não somente o desfecho do romance, mas igualmente a vitória sobre uma violenta crise depressiva que abalou o estado emocional do personagem. O uso terapêutico dos treinos de corrida reconstruiu a saúde emocional do personagem/narrador Ricardo Lísias e igualmente favoreceu a recomposição de sua própria pele, pois de forma recorrente o personagem afirma que a descoberta do diário e, consequentemente, da traição, o deixou sem pele – uma imagem que oferece a dimensão exata do estado de fragilidade que dominou o corpo do personagem durante a violenta crise de depressão que o atingiu.
Diante do breve quadro apresentado – que tem como principal imagem a existência de um escritor que intencionalmente busca fundir sua identidade à do seu próprio personagem – creio que pude justificar de modo preciso a minha afirmação em relação aos leitores que percorreram as páginas do romance em busca de um relato acerca da vida íntima do escritor. No entanto, acredito que a adoção da autoficção como gênero e, principalmente, a proposta de criação de uma homonímia entre escritor, personagem e narrador, não obedece ao desejo de expor e narrar aspectos da vida íntima do escritor. Ricardo Lísias não promove ou realiza nenhum gesto de extimidade ao construir uma narrativa que apresenta pactos autoficcionais. O efeito alcançando – para responder à pergunta oferecida anteriormente – é justamente a problematização do lugar da literatura na sociedade contemporânea, a partir do debate acerca da autonomia da arte literária, e a caracterização da classe média, visitada de maneira ácida por meio da representação crítica dos profissionais jornalistas. De posse desse referencial de leitura do romance Divórcio, a trama autoficcional se torna secundária, ressoando apenas como um indício inusitado da estrutura da obra. Nessa perspectiva, posso afirmar que recebe um vulto mais expressivo o exame da classe média brasileira, retratada de forma cáustica, fator que faz emergir a dicção política do autor. Cito uma passagem particularmente esclarecedora dessa percepção:
Ao encerrar o treinamento para a São Silvestre, já tinha percebido que na verdade minha ex-mulher é apenas uma versão malfeita e ansiosa da classe alta brasileira. Ela adora dizer que teve a infância pobre: subi na vida trabalhando (Lísias, 2013, p. 54).
A passagem deixa claro que a estrutura do romance está situada em um terreno movediço. Torna-se quase impossível desvincular os aspectos biográficos do autor de sua representação de setores específicos da sociedade brasileira. Em outras palavras, o ataque à classe média, na passagem acima, parece se resumir a um ataque à ex-mulher. O individualismo burguês e a confiança na força do próprio trabalho, que são em um primeiro momento características atribuídas à ex-mulher do narrador/personagem, surgem como elementos definidores de uma elite. Antes da publicação de Divórcio e O céu dos suicidas, o autor apresentava como elemento corrente de sua prosa ficcional uma “elogiada dicção política”, já presente em seu primeiro livro, Cobertor de estrelas, segundo observa Luciane de Azevedo, em ensaio publicado no livro O futuro pelo retrovisor. Ainda segundo a análise da crítica, alguns dos textos dessa possível primeira fase da carreira de Lísias – Cobertor de estrelas, Duas praças e O livro dos mandarins – apresentam um traço comum, pois são
Textos tramados a partir do entrelaçamento de duas linhas narrativas, a escolha de temas políticos (a questão dos sem teto, a referência à tortura e às ditaduras latino-americanas), a fala repetitiva e cortada por anacolutos, enfim, a escrita cuidadosamente trabalhada vai aparecer reiterada não apenas nos depoimentos do autor, mas também por outros comentários críticos sobre sua obra (Azevedo, 2013, p. 83).
Os elementos elencados por Luciane de Azevedo podem ser facilmente identificados no romance O livro dos mandarins, que narra com um inegável humor e em tons caricaturais o empenho do personagem Paulo na conquista de uma promoção no banco em que trabalha que lhe renderá a oportunidade de transferência para a China. É nesse romance que a dicção política de Lísias recebe maior impulso e envergadura. Tenho consciência de que a expressão dicção política é vazia e imprecisa, não definindo de modo claro o exercício de representação construído pelo autor. Para melhor esclarecer esse traço característico da prosa de Lísias, posso esclarecer que sua dicção política está diametralmente oposta a uma instrumentalização ou engajamento explícito. Nessa perspectiva, o exame do competitivo mundo dos executivos das instituições bancárias é conduzido por um olhar crítico que oferece o humor como mecanismo de ataque, resultando numa representação irônica e ácida do mundo coorporativo e do capital financeiro. Atados ao cotidiano do personagem Paulo, conhecemos as engrenagens de um grande banco internacional. Mas tal conhecimento é superficial. Não é possível visitar a fundo os mecanismos de poder, algumas barreiras são impossíveis de serem transpostas. O próprio resultado da transferência de Paulo revela esse importante dado. A dicção política, para retomar o elemento-chave da prosa de Lísias, pode ser localizada no simples gesto do autor nomear todos os personagens do romance como Paulo, marcando a perda da identidade como um elemento intrínseco ao universo do mundo corporativo. A ironia é sutil e altamente corrosiva.
A proposta de leitura que busco construir para a análise de Divórcio é baseada neste elemento citado anteriormente: a dicção política de Ricardo Lísias. Nessa perspectiva, pretendo oferecer um modelo de interpretação do romance que não percorra a igualmente instigante leitura dos mecanismos criados pelo autor para a criação de um espaço autoficcional no interior de sua obra. Nessa perspectiva, a crise depressiva causada pela descoberta dos diários proporciona a construção de uma nova compreensão dos fatos e dos eventos, por meio de um olhar desnudo, livre da idealização de um laço amoroso, torna-se possível alcançar um dado oculto. “Por que não percebi antes?”, é a pergunta natural a ser construída pelo personagem. A resposta também a ser ofertada é igualmente natural e talvez a única plausível: “Não percebi antes porque estava apaixonado” (p. 209). Tal procedimento pode ser localizado em diferentes momentos, sobretudo quando o personagem/narrador do romance analisa a atuação profissional de jornalistas e oferece ao termo “fonte” um sentido dúbio. É possível afirmar que a leitura crítica do papel da imprensa tem como objetivo atingir sua ex-mulher, mas alcança toda uma classe profissional.
Ela foi didática na explicação que me deu: você nunca vai entrar em uma redação sem ser indicado. Alguém ali te conhece ou foi atrás de informações sobre você. É o mesmo sistema com as fontes. Jornalismo é fontes, repetiu a frase que eu já tinha ouvido. Jornalismo é fonte. Depois, se você precisa, ela te ajuda também. O jornalismo é uma rede (p. 63).
No trecho torna-se possível alcançar a imagem exata que Ricardo Lísias busca oferecer para a sua caracterização da classe média brasileira, baseada em uma atuação que deseja alcançar benefícios próprios a todo custo, principalmente quando lida com a coisa pública. O individualismo aqui ressurge como elemento passível de crítica e traço danoso de uma categoria profissional, a saber, os jornalistas. Novamente, as críticas lançadas à ex-mulher confundem-se com as dirigidas aos jornalistas e vice-versa. A indistinção é um dado proposital, busca-se transformar em uma trama política as questões que foram primeiramente examinadas em uma esfera privada. Além disso, é interessante notar que a explicação didática oferecida pela ex-mulher – lida e analisada como um traço natural e pertencente ao funcionamento da imprensa – assume uma outra dimensão quando apresentada pelo próprio narrador/personagem, recebendo uma feição crítica que a aproxima de uma denúncia. No entanto, a denúncia não repousa na constatação de que o jornalismo é uma rede formada por troca de interesses individuais, denuncia-se a própria naturalidade com que a rede é formada e mantida. O jogo de interesse revela a existência de uma trama promíscua:
Uns poucos anos antes de me dizer que queria ficar comigo para sempre, minha ex-mulher contou para uma porção de gente, rindo do jeito meigo e ao mesmo tempo espalhafatoso dela, que estava tendo um caso com o secretário de Cultura de São Paulo (não sei se o velhote ainda ocupa o cargo, não vou conferir). Claro que ele é casado. Outro caso foi com o dono de um cinema que depois ela colocou na capa do jornal. No jornalismo, aprendi, pessoas que dão informações privilegiadas chamam-se fontes (p. 37).
O fragmento que revela a maior acidez do discurso do personagem/narrador acerca da classe média é apresentado já próximo ao término do romance, no capítulo treze, quando o autor, através de um exercício de metalinguagem, apresenta ao leitor o processo de construção do romance e os possíveis problemas de estrutura do mesmo. Trata-se de uma leitura comentada do livro, semelhante a um processo de revisão da própria obra. No entanto, se há uma inesperada quebra da estrutura da narrativa, revelada pelo acionamento de uma nova voz do narrador, que agora passa a comentar trechos e elementos pregressos da narrativa, o capítulo também é assumidamente didático e tem como função organizar a estrutura do livro, definindo os elementos que o próprio narrador julga importantes e os aspectos excedentes e suplementares. Somos então orientados pelo narrador a problematizar a forma como a classe média é apresentada no romance:
Hoje, acho que outro defeito de Divórcio é a caracterização da classe média várias vezes citada no livro. É um conceito difícil porque com certeza não serve para todas as pessoas na mesma situação social. Em alguns momentos, coloca a classe alta junto. Talvez devesse ter englobado duas categorias no simples termo “elite brasileira” (p. 201).
O trecho é revelador do sentido crítico que o personagem/narrador deseja oferecer à caracterização de setores da sociedade. Seja lançando seu olhar para a classe média ou, de modo mais preciso, para a classe alta, não importa, o alvo é apenas um: a “elite brasileira”.
No entanto, a dicção política do autor não é acionada apenas para tematizar o Outro. Com o objetivo de construir um retrato crítico da classe média, o recurso alcança igualmente o próprio narrador/personagem Ricardo Lísias, que surge na narrativa autoficcional a partir das descrições e representações contidas nos diários da ex-mulher. Gostaria de chamar a atenção para uma sentença que se faz presente em parte significativa do romance: “E o Ricardo? Por um acaso o Ricardo foi para alguma guerra na África? O que ele sabe da vida?” e em outro trecho diz: “O Ricardo ficou trancado dentro de um quarto lendo a vida toda”. Esses dois trechos abrem uma importante fresta de leitura. Ambos fragmentos apresentam de forma subjacente um questionamento sobre a relação entre experiência e narrar. Nos diários da ex-mulher está posta uma lúcida chave de interpretação do romance. De uma forma ou de outra, nos diários está dito que o Ricardo nunca viveu, ficou trancado a vida toda lendo, nunca foi a uma guerra, é um sujeito patético e um quase autista. Resta então questionar, sobre o que, afinal, o Ricardo pode escrever? Eu respondo, sobre o seu próprio divórcio, a única experiência traumática que de fato vivenciou. Não é uma guerra, mas pode ser um evento dotado de muita violência.
Após esse breve percurso na obra autoficcional de Ricardo Lísias, podemos afirmar que a homonímia e o relato ficcional de episódios reais não são impulsionados pelo desejo do autor em tornar público aspectos e eventos de sua vida privada. A estrutura normativa proposta por Serge Doubrovsky está mantida, mas o resultado oferecido é potencialmente outro. A autoficção surge aqui enquanto suporte possível para a edificação de um exame crítico que aciona o humor como forma ácida de leitura de aspectos da vida pública. Seja enquanto conceito ou como um gênero próprio da pós-modernidade, a autoficção, principalmente a produzida por Ricardo Lísias, está em uma espécie de fronteira entre o público e o privado. No entanto, nos textos assinados pelo escritor paulistano, o público é retratado a partir de um experimento literário que se quer próximo ao espaço da privacidade do personagem/narrador/escritor Ricardo Lísias.
* Paulo Roberto Tonani do Patrocínio é professor adjunto do Departamento de Letras-Libras da Faculdade de Letras da UFRJ e autor dos livros Escritos à margem: a presença de autores de periferia na cena literária brasileira (7Letras/FAPERJ, 2013) e Cidade de lobos, a representação de territórios marginais na obra de Rubens Figueiredo (Ed. UFMG/FAPERJ, 2016), além de, junto com João Camillo Penna e Alexandre Faria, co-organizador do livro Modos da margem, figurações da marginalidade na literatura brasileira (Aeroplano, 2015).
REFERÊNCIAS
ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010.
AZEVEDO, Luciane. Ricardo Lísias: versões de autor. In: CHIARELLI, Stefania; DEALTRY, Giovanna e VIDAL, Paloma. (Orgs.). O futuro pelo retrovisor: inquietudes da literatura brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Rocco, 2013.
FIGUEIREDO, Eurídice. Mulheres ao espelho: autobiografia, ficção e autoficção. Rio de Janeiro: EdUERJ/FAPERJ, 2014.
JEANNELLE, Jean-Louis. A quantas anda a reflexão sobre autoficção? In: NORONHA, Jovita Maria Gerheim. (Org.) Ensaios sobre a autoficção. Belo Horizonte: UFMG, 2015.
LEJEUNE, Phillipe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Belo Horizonte: UFMG, 2008.
LEJEUNE, Phillipe. Autoficções & cia: Peça em cinco atos. In: NORONHA, Jovita Maria Gerheim. (Org.) Ensaios sobre a autoficção. Belo Horizonte: UFMG, 2015.
KLINGER, Diana. Escritas de si, escritas do outro: o retorno do autor e a virada etnográfica. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012.
LÍSIAS, Ricardo. O livro dos mandarins. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.
LÍSIAS, Ricardo. O céu dos suicidas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.
LÍSIAS, Ricardo. Divórcio. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013.
LÍSIAS, Ricardo. Concentração e outros. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015.
NORONHA, Jovita Maria Gerheim. (Org.) Ensaios sobre a autoficção. Belo Horizonte: UFMG, 2015.
NORONHA, Jovita Maria Gerheim. (Org.). Apresentação. In: NORONHA, Jovita Maria Gerheim. Ensaios sobre a autoficção. Belo Horizonte: UFMG, 2015.
Recebido em: 20/01/2016
Aprovado em: 18/02/2016
Notas
[i] Tal afirmação surge como um possível diagnóstico da contemporaneidade. Para uma melhor compreensão da questão, cito trabalhos que examinam a quebra das fronteiras entre o público e o privado e, principalmente, estudos que avaliam o impacto das novas redes sociais na produção dessa nova experiência de subjetividade que se coloca no espaço fronteiriço entre o público e o privado: DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997; SIBILIA, Paula. O show do eu: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008; LIPOVETSKY, Gilles. A era do vazio – ensaios sobre o individualismo contemporâneo. São Paulo: Manole, 2005, entre outros.
[ii] O trecho citado foi traduzido por Eurídice Figueiredo, no livro Mulheres ao espelho: autobiografia, ficção, autoficção. Apresento aqui o trecho no original: “Pour valider ma perception de moi, authentifier ce que je montre, j’ai justement besoin de l’autre. Et quand je me dévoile, il se dévoile à son tour. Le désir d’extimité est inséparable de la quête relationnelle. Ce valorisation est en train d’organiser de nouvelles règles sociales, qui ne sont pas plus dangereuses que les precedentes. Nous devrons juste apprendre à les connâitre” (Tisseron, 2012).
Même s’il en avait contesté la vérité, il aurait eu le plus grand mal à ne pas croire à quelque chose d’extrême et de violent, car de toute évidence un corps étranger s’était logé dans sa pupille et s’efforçait d’aller plus loin (Blanchot, 1950, p. 18).
Resumo: Em La nuit juste avant les forêts, monólogo de Barnard-Marie Koltès, o narrador se apresenta como o “estrangeiro”. Se a designação do personagem remete ao estranhamento que problematiza todas as relações ao longo da peça, ela também parece encenar a única possibilidade na constituição das linhas de força em que o homem pode formar uma comunidade possível. Em Dans la solitude des champs de coton, outro texto do autor, essa ética da alteridade ganha novo impulso ao colocar os dois únicos personagens em rota de colisão, compondo o espaço do que um deles chamará de a “linha fatal”. O objetivo desse artigo é pensar a formação dessas linhas em Koltès, refletindo sobre as deambulações desse homem que se move entre o risco do esfacelamento diante do estranhamento e o traço vacilante da comunidade.
Abstract: In La nuit juste avant les forêts, a monologue written by Barnard-Marie Koltès, the narrator presents himself as the “foreigner”. If the name of the character refers to the strangeness that questions all the relationships in the play, it also seems to stage the only possibility in the constitution of the lines of force in which the man can form a possible community. In Dans la solitude des champs de coton, another Koltès play, this ethics of alterity gained new impulse placing the only two characters in collision course, composing the space that one of them will call the “fatal line”. This work intends to analyse the composition of these lines, thinking about the displacements of this man who moves between the risk of disintegration before the strangeness and the vacillating trace of the community.
O teatro contemporâneo francês apresenta uma enorme variedade de escritas dramatúrgicas. Contudo, o que poderíamos chamar de uma “tradição da vanguarda”, da qual fazem parte autores como Samuel Beckett e Antonin Artaud, vai estabelecer uma nova filiação mais para o final do século XX, representada por dramaturgos como Valère Novarina e Bernard-Marie Koltès. Na trilha de toda a problematização acerca da linguagem estabelecida por essa tradição é que tais autores desenvolverão suas dramaturgias. Trata-se de ecoar, de certa maneira, aquilo que Evelyne Grossman, em um livro sobre Artaud, Beckett e Michaux, considera como traço essencial desses escritores: “Primeiramente, um questionamento incansável quanto às formas da verdade e do sentido (…)”[i] (Grossman, 2004, p. 9). Porém, ainda que a linguagem continue a ser uma questão para dramaturgos como Koltès e Novarina, estes se encontram, como afirma Franck Evrard, “liberados da obsessão beckettiana de uma fala ameaçada por um desaparecimento definitivo (…)” (Evrard, 2008, p. 490). É isso que permite a esses autores realizar a ligação entre essa vanguarda e um teatro mais político, promovendo um encontro aludido por Barthes anos antes, em seus Ensaios críticos. Ao comentar essa relação, o crítico havia afirmado que “poderíamos esperar bastante de um autor dramático que soubesse dar à nova arte política que desejamos, os poderes de descondicionamento do antigo teatro de vanguarda” (Barthes, 2002a, p. 342). Dessa forma, unindo uma extrema atenção ao uso da linguagem a uma preocupação com um campo de problemas em que se encontram questões como as relacionadas à alteridade e à comunidade, Koltès recupera o tema do descondicionamento aludido por Barthes. Ao abordar assuntos caros à parte importante do pensamento da segunda metade do século XX, Koltès acaba por produzir um teatro que não deixa de ser inventivo no plano formal e ao mesmo tempo potente do ponto de vista de sua força política.
Tomemos o exemplo de uma de suas peças. Em La nuit juste avant les forêts[ii], o narrador se apresenta como o “estrangeiro”. Se a designação do personagem remete ao estranhamento que problematiza todas as relações ao longo da obra, ela também parece encenar a possibilidade de constituição das linhas de força através das quais o homem possa formar uma comunidade possível, na qual as singularidades se sobreponham aos indivíduos. Penso aqui na distinção feita por Jean-Luc Nancy no livro La communauté désœuvrée, para quem, “a individuação destaca entidades fechadas de um fundo informe” (Nancy, 1986, p. 69), enquanto, opondo-se ao império dos indivíduos, as singularidades apontam para o fato de que “não há ser singular sem outro ser singular” (p. 71). As singularidades inscrevem-se, assim, em um sistema de partilha que marcam ao mesmo tempo a possibilidade e impossibilidade de suas existências. O que está em questão nesses comentários é a tentativa de distinção entre os princípios da comunidade dos seres-em-comum e o da sociedade dos indivíduos, responsável, ainda segundo Nancy, por uma atomização da vida que impede a própria constituição da comunidade.[iii] Em Dans la solitude dans les champs de coton[iv], outra peça de Koltès, podemos entrever essa comunidade em risco sob a forma de uma “terrível crueldade”: “a verdadeira e terrível crueldade é aquela do homem ou do animal que torna o homem ou o animal inacabado, que o interrompe como pontos de suspensão no meio de uma frase, que se vira após tê-lo olhado, que faz, do animal ou do homem, um erro do olhar (…)” (Koltès, 1986, p. 31). Formado por um extenso diálogo travado entre apenas dois personagens, o negociante e o cliente[v], esse texto pode ser lido como uma tentativa de se pensar as formações das linhas de força em que as singularidades se constituem sob a forma daquilo que Nancy nomeará como comparução. Esta, segundo suas formulações, significa “que o ser não é comum no sentido de uma propriedade comum, mas que ele é em comum”[vi] (Nancy, 1986, p. 201).
O inacabamento a que alude Koltès se dá, como podemos perceber, pelo desvio de um olhar que impede a realização do plano relacional em que o ser viria a se constituir por meio da comparução. Embora de forma distinta, esse mesmo movimento também aparece em La nuit juste avant les forêts. Destinado ao teatro, há de se observar nesse texto de Koltès um forte desejo de diálogo, no qual, paradoxalmente, ninguém responde àquele que fala, originando um discurso de ritmo alucinado em que o monólogo não cessa de ser obsedado por uma experiência de enunciação tensionada entre a troca e o isolamento, o oral e o escrito. Essa tensão pode ser percebida através de diversas estratégias, evidentes na própria materialidade textual. Em seu artigo “Da fala à escrita”, Barthes afirma que o discurso escrito estabelece uma nova ordem em relação ao discurso oral por meio de “dois artifícios tipográficos que se juntam, assim, aos ‘ganhos’ da escritura: o parêntese, que não existe na fala e que permite assinalar com clareza a natureza secundária e digressiva de uma ideia, e a pontuação, que, como sabemos, divide o sentido (…)” (Barthes, 2002b, p. 539). O curioso é que em La nuit, a pontuação parece corresponder antes a uma tentativa paradoxal de recuperar um sopro o mais próximo possível da fala através de signos gráficos. Koltès elimina todos os pontos finais – parágrafos ou não – entre as frases, criando um ritmo alucinante, cortado, entretanto, de tempos em tempos, por duas marcas tipográficas: o parêntese e o travessão. Os dois permitem ao autor a introdução de digressões que provocam variações rítmicas na monotonia de longos blocos contínuos de enunciação. Se os parênteses possibilitam a inserção de comentários mais breves, o travessão, em diversas ocasiões, parece abrir o discurso para novas direções, como em uma conversação mais livre em que os gestos e expressões facilitassem um acordo entre locutor e alocutário, sem necessidade de retomadas explícitas do que havia sido interrompido a cada novo desvio. Além destes, um outro uso importante é o que Koltès faz dos dois pontos, o qual, contrariamente ao travessão, parece centrar a atenção exclusivamente sobre o locutor. No geral, o conjunto desses dispositivos tem muitas vezes por efeito uma espécie de ‘intromissão” fantasmática através da qual, mesmo ausente, a voz do alocutário se fizesse ouvir; como se as palavras pronunciadas pelo estrangeiro ganhassem volume no seio de um ruído anônimo de uma voz de fundo, jamais personalizável, mas essencial à manutenção desse quase diálogo em que ele “ousa gritar: camarada!” (Koltès, 1988, p. 7).
Em meio a essa designação genérica, os nomes próprios encontram-se ausentes, e mesmo aqueles conhecidos – mas não revelados –, não passam de artifícios para impedir a revelação do nome real. Assim, ao falar de alguém que havia conhecido, o estrangeiro revela: “não sei seu verdadeiro nome, o que ela me disse não era o seu (…)” (Koltès, 1988, p. 34). Isso faz com que essa voz de fundo que sustenta esse quase diálogo se dissolva em uma coletividade composta pelo jogo entre os pronomes “eu” e “você”[vii]. Se pensarmos no que foi dito até aqui, fica claro o lugar ambíguo ocupado por esse “você”. Promovendo a possibilidade de interlocução que coloca o texto em movimento, é ele, de fato, a primeira palavra da peça: “Você estava virando a esquina da rua quando eu te vi (…)” (Koltès, 1988, p. 7). Contudo, como sabemos, por se tratar de um monólogo esse “você” jamais assume a posição de uma primeira pessoa tomando a palavra, mesmo quando implicado diretamente por meio do apelo dirigido pelo estrangeiro. Diante desse silêncio, o alocutário termina por assumir a posição de um on, pronome que em francês opera entre a indeterminação e a coletividade, lançando o estrangeiro em um plano vacilante entre todo mundo e alguém.
Ao falar do personagem central da peça Roberto Zuco, também de Koltès, Jean-Pierre Sarrazac explica que este é “colocado à revelia no centro, obrigado a imergir no Número, numa multidão que o ultrapassa e o engole, numa multidão na qual, inexoravelmente, ele vai acabar por se afogar” (Sarrazac, 2013, p. 138). No caso do estrangeiro, a indeterminação indicada há pouco apresenta um duplo aspecto: ao mesmo tempo em que arrisca dissolver a formação das individualidades em consonância com o que diz Sarrazac em relação à Zuco, ela também opera como potência de um puro devir, permitindo as encarnações de singularidades no ato da comparução. Jean-Christophe Bailly, em um texto em que retoma um livro escrito anos antes com Nancy, define assim essa relação dos seres-em-comum: “sua comum aparição ao que se encarna ou se exencarna (sem se fixar em todo caso) na ordem da linguagem, no sonhodas coisas que é a linguagem” (Bailly, 2012, p.129). Na comparução, encarnar e exencarnar não se opõem, mas dão, isto sim, conta desse movimento em que o próprio da voz não é uma voz exatamente própria, mas uma sonoridade inscrita entre as linhas da partilha em que emergem os seres uns em relação aos outros. Ou seja, nesse processo, as singularidades são aquilo que se dão existências umas as outras na medida mesma em que marcam seus limites. O estrangeiro, se se arrisca a cada movimento a perder-se na multidão anônima dos planos por que passa, é também aquele que pode destruí-los, forçando o real a novas configurações das linhas de suas coordenadas. Eis sua reação diante dos seres repentinamente perdidos, deambulando sem direção:
onde ir agora, onde ir, eles se perguntam, como se, lá do alto, houvessem sido traçadas zonas sobre um plano onde eles devem estar todas as semanas, e cujas portas se abrem a cada sexta sobre a rua das putas ou o resto, e senão: onde ir, sem outra solução, e eu, eu assinalei, desde que não trabalho mais, toda a série de zonas que os safados traçaram para nós, sobre seus planos, e nos quais eles nos fecham com um traço a lápis (Koltès, 1988, p. 43).
E se o estrangeiro não se sente jamais em casa nessa deambulação pelas zonas impostas, é a possibilidade do encontro que o mobiliza desde o primeiro momento do livro, gerando essa ambiguidade entre o desejo de andar e aquele do encontro. Como ele confessa a “você”, “toda a minha vida eu quis sair por aí, correr de tempos em tempos, parar em um banco, andar lentamente ou mais rápido, sem nunca falar, mas você, é diferente, e isso desde que eu te vi (…)” (Koltès, 1988, p. 56). Em sua estranheza absoluta, a iminência de uma relação apresenta-se o tempo todo na peça, traçando o plano vacilante onde a comunidade pode ter alguma chance de existência. Por tudo isso, pode-se dizer que nos textos assinalados, o par estranho/estrangeiro torna-se bastante representativo das relações de força entre as linhas de cada plano, existentes apenas sob o regime dessa arriscada partilha.
Como dito anteriormente, se por um lado o estrangeiro nos remete ao estranhamento que problematiza toda relação, por outro, ele parece representar a única possibilidade de um vir a ser. Essa tensão acaba por eliminar qualquer possibilidade de uma dialética em que o encontro pleno marque seu termo final, pois, como nos lembra Christophe Bident, “o ser que aparece aproxima tanto quanto afasta” (2014, p. 9), significando, assim, “o fundo do espaço ou do olhar, o fundo a partir do qual todo espaço ou todo olhar é possível” (p. 9). Seguindo essa afirmação, pode-se dizer que em Koltès, o estrangeiro é aquele que, por força de seus constantes deslocamentos, eleva ao máximo esse tensionamento entre as linhas de formação espacial de onde a comunidade pode emergir. É a figura de uma espera que encontramos tecida, espera entre a esperança do encontro e seu obstinado adiamento. Nesse grau zero do encontro, o próprio tempo pode entrar em colapso, especializado pela tensão descrita, um tempo que passa “ao lado”, como podemos ler em uma passagem de La nuit: “(…) as horas passam do teu lado, foi então que eu pude compreender que você é apenas uma criança, tudo passa do teu lado, nada se move (…), eu evito os espelhos e não paro de te olhar, você que não muda” (Koltès, 1988, p. 56). O comentário é seguido por uma digressão abrupta, através da qual o estrangeiro se desloca em ritmo acelerado para o centro de uma outra história, desfazendo rapidamente a estabilidade da relação anunciada. Nesse jogo entre espera e recusa, o espaço é um espaço iminente, mas jamais realizado, um espaço constantemente “em vias de”, que não cessa de retraçar suas coordenadas.
Em Dans la solitude, a espera própria a essa cartografia aparece marcada pelo uso do futuro do pretérito que se opõe à visualidade concreta do encontro, criando efeito semelhante de um “quase” que mantém a suspensão dos corpos nessa iminência sem resolução. É o que percebemos nessas palavras dirigidas pelo cliente ao negociador: “(…) na estranheza de nossa aproximação, eu teria acreditado que você se aproximava de mim. De longe, eu teria acreditado que você me olhava. Eu teria me aproximado de você. Esperando de você… muitas coisas” (Koltès, 1986, p. 43). Porém, contrariamente ao estrangeiro que funcionaria como esse ponto zero do encontro, os personagens de Dans la solitude chegam a definir suas singularidades, um em relação ao outro, sem, entretanto, a realizarem plenamente. Essa suspensão que procurei apontar é que leva Bident a afirmar que a obra de Koltès “encarna uma consciência exacerbada da escrita como estiramento do sublime e como ética da alteridade, como manutenção da questão da comunidade, como manutenção do ser-em-comum” (Bident, 2014, p. 49). Todavia, a questão a se colocar é se, como parece sugerir Bident, em Koltès seria possível pensar essa passagem entre a manutenção da comunidade enquanto questão à sua realização na figura do ser-em-comum. E é aí que talvez se encontre a maior diferença entre as formações das linhas que constroem o plano da comunidade em La nuit e em Dans la solitude. Nesta, o negociante diz em dado momento ao cliente:
E se eu digo que você fez uma curva, e certamente você vai sustentar que era um desvio para me evitar, e eu afirmarei em resposta que foi um movimento para se aproximar, é porque, certamente, afinal de contas você não desviou, e toda linha reta existe apenas em relação a um plano, e nós nos movimentamos segundo dois planos distintos, e finalmente só existe o fato de que você me olhou e eu interceptei seu olhar ou o inverso, e, portanto, absoluta que ela era, a linha sobre a qual você se deslocava tornou-se relativa e complexa, nem reta nem curva, mas fatal (Koltès, 1986, p. 18).
É a partir desse cruzamento de linhas que o cliente e o negociador têm alguma chance de existir, desfazendo a geografia das individualidades para inscrevê-las no plano tecido por essa linha fatal em que ambos inscrevem-se como ser-em-comum. A fatalidade aqui é o termo da relação através da qual um e outro se apresentam como a chance e o limite dessa mesma existência. Como nos diz Nancy,
A articulação a partir da qual a comunidade se forma e se distribuí não é uma articulação orgânica (…). Certamente, essa articulação é essencial para os seres singulares: estes são o que são na medida em que são articulados uns sobre os outros, na medida em que são repartidos e distribuídos ao longo de linhas de força, de clivagem, de torção, de acaso, etc., cuja rede faz seu ser-em-comum. E essa condição significa, além disso, que esses seres singulares são, uns para os outros, fins (Nancy, 1986, p. 186-187).
Voltando à questão de Bident, o problema é que se em Dans la solitude o plano da comunidade que daí adviria chega – ainda que com toda a dificuldade, como vimos – a se vislumbrar, o mesmo não parece se dar com os deslocamentos do personagem de La nuit. Problematizando essa possibilidade, o estrangeiro nos diz ao final da peça:
corro, corro, corro, sonho com o canto secreto dos árabes entre eles, camaradas, eu te acho e seguro teu braço, desejo tanto um quarto e estou molhado, mama mama mama, não diga nada, não se mexa, eu te olho, eu te amo, camarada, camarada, eu, eu procurei alguém que fosse como um anjo no meio desse bordel, e aí está você, eu te amo, e o resto, cerveja, cerveja, e continuo sem saber como poderia dizer, que confusão, que bordel, camarada, e depois sempre a chuva, a chuva, a chuva, a chuva (Koltès, 1988, p. 63).
Nesse desejo de diálogo – sempre sem resposta – em que a enunciação se faz entre a aceleração rítmica marcada pela falta de pontuação e a interrupção pela repetição dos termos, o estrangeiro se desloca entre o canto secreto dos camaradas árabes e um camarada, no singular. No entanto, este último é figurado apenas pela presença de um fragmento de corpo, especificamente de um braço através do qual o estrangeiro trava, literalmente, contato – “seguro teu braço”. Essa incompletude da forma não faz senão ecoar a palavra que garantiria a interlocução, mas que continua a faltar: “continuo sem saber como poderia dizer”. É o que se pode perceber também pela repetição final por que termina o texto, a qual parece apontar para essa falência que acaba por provocar novamente o desvio do olhar. Na procura pelo que não pode estar senão alhures, o estrangeiro volta a dispersar as linhas de força com as quais o plano da comunidade é quase traçado, mas nunca realizado. Como nos diz o estrangeiro de Baudelaire ao final de um texto homônimo por que começam seus poemas em prosa: “- Eh! O que amas, então, extraordinário estrangeiro?/ – Eu amo as nuvens… as nuvens que passam… lá… lá… as maravilhosas nuvens!” (Baudelaire, 1975, p. 277) Dito de outro modo, em La nuit juste avant les forêts, o estrangeiro é aquele que não para de embaralhar as linhas de formação do plano em que se inscreve o ser-em-comum, mantendo-o como questão entre o olhar que procura o outro e seu incessante desvio para o que não está aí, para o fora onde cai “a chuva, a chuva, a chuva, a chuva.” Eis sua chance e sua fatalidade.
*Rodrigo Ielpo é doutor em Literaturas de Língua Francesa e História e Semiologia do texto e da imagem em regime de cotutela pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e pela Université Paris 7. Professor de Literatura Francesa na Universidade Federal do Rio de Janeiro, realiza pesquisa na área de literatura francesa e literatura comparada, tendo publicado diversos artigos sobre literatura e processos de subjetivação e as relações entre literatura e história.
REFERÊNCIAS
BARTHES, Roland. Essais critiques. In: Œuvres complètes II. Paris: Seuil, 2002a, p. 269-528.
BARTHES, Roland. De la parole à l’écriture. In: Œuvres complètes IV. Paris: Seuil, 2002b, p. 537-541
BAUDELAIRE, Charles. L’étranger. In: Œuvres Complètes I. Paris: Gallimard, collection Bibliothèque de la Pléiade, 1975, p. 277.
BAILLY, Jean-Christophe. Retour sur la Comparution. In: Figures du dehors: autour de Jean-Luc Nancy. Nantes: Nouvelles Cécile Défaut, 2012. p. 127-133.
EVRARD, Frank. Les écritures dramatiques. In: La littérature française au présent. Paris: Bordas, 2008, p. 489-524.
GROSSMAN, Evelyne. La défiguration. Paris: Les Éditions de Minuit, 2004.
KOLTÈS, Bernard-Marie. La nuit juste avant les forêts. Paris: Éditions Minuit, 1988.
KOLTÈS, Bernard-Marie. Dans la solitude des champs de coton. Paris: Éditions Minuit, 1986.
NANCY, Jean-Luc. La communauté désœuvrée. Paris: Christian Bourgois, 1986, p. 69.
SARRAZAC, Jean-Pierre. Sobre a fábula e o desvio. Trad. Fátima Saadi. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2013, p. 138.
Recebido em: 08/03/2016
Aprovado em: 16/04/2016
Notas
[i] Todas as traduções dos textos estrangeiros citados neste artigo são de minha autoria.
[ii] Publicada em 1988, La nuit juste avant les forêts foi apresentada pela primeira vez no Festival d’Avignon, em 1977.
[iii] “O individualismo é um atomismo inconsequente que esquece que o que está em jogo no átomo é a questão de um mundo”. In: Nancy, Jean-Luc. La communauté désœuvrée. Paris: Christian Bourgois, 1986, p. 17.
[iv]Dans la solitude des champs de coton foi publicada em 1987, mesmo ano em que foi criada e apresentada pela primeira vez, no teatro Nanterre-Amandiers.
[v] O fato de que em nenhuma das peças haja o uso de nomes próprios é relevante dessa tentativa de dissolução das individualidades em favor das singularidades.
[vi] Pode-se dizer que a comparução diz respeito ao em-comum próprio à comunidade à qual estamos inapelavelmente expostos pelo simples fato de estarmos no mundo. É nesse sentido que o singular se opõe ao individual, pois diferentemente deste, aquele não pode ser pensado sem essa exposição dos seres entre si, os quais são, por essa razão, constituintes dessa comunidade ao mesmo tempo em que são constituídos por ela.
As relações contemporâneas entre a atividade editorial e a difusão de textos
Resumo: O presente trabalho busca discutir a atividade editorial na contemporaneidade, problematizando suas especificidades. Para isso, inicialmente faremos um apanhado teórico, passando por Barthes, Sennet, Guerreiro Ramos, Guy Debord e Feenberg, além de alguns autores que analisam especificamente o mercado editorial. Com as novas tecnologias, criam-se novas possibilidades de divulgação de textos, não necessariamente intermediadas pelos editores, e essa nova realidade pode alterar substancialmente o modo como os textos são divulgados.
Palavras-chave: editor; atividade editorial; filosofia da tecnologia.
Abstract: This work tries to analyze the publishing activity in the contemporaneity, discussing its specificities. In order to do so, initially we’re going to present some theoretical considerations, using Barthes, Sennet, Guerreiro Ramos, Guy Debord and Feenberg, apart from some authors that analyze specifically the publishing market. With the new technologies, new text divulgation possibilities are created, not necessarily intermediated by editors, and this new reality can alter substantially the way texts are divulged.
Keywords: publisher; publishing activity; philosophy of technology.
A primeira biblioteca de Alexandria (em oposição àquela que hoje existe e que é comumente conhecida como “a contemporânea biblioteca de Alexandria”) se insere no imaginário cultural como um momento icônico da consolidação do saber. Em uma cidade grandiosa, fazendo o elo cultural entre a Grécia e o Egito, objetivo central dela era obter uma cópia de cada texto jamais escrito (Philips, 2010). A destruição da biblioteca durante o primeiro milênio da era cristã ganhou contornos míticos, havendo diversas narrativas disponíveis para esse evento histórico. Não obstante a narrativa eleita, a destruição é marca significativa da perda de textos antigos (Philips, 2010).
A queda da primeira biblioteca de Alexandria (Fonte: Hutchinsons History of the Nations, 1910/Wikipedia).
Essa imagem nos ilustra a questão de poder que envolve o campo do saber. Conhecer é perigoso. Pensando sobre o processo de difusão do conhecimento relacionado à atividade editorial, iremos primeiramente buscar entender teoricamente o seu fundamento, e para isso escolhemos Barthes como ponto de partida.
Segundo Barthes, não existe fruição em uma cultura de massa (1987, p. 51). Ele opõe o texto de prazer ao texto de fruição:
Texto de prazer: aquele que contenta, enche, dá euforia; aquele que vem da cultura, não rompe com ela, está ligado a uma prática confortável da leitura. Texto de fruição: aquele que põe em estado de perda, aquele que desconforta (talvez até um certo enfado), faz vacilar as bases históricas, culturais, psicológicas, do leitor, a consistência de seus gostos, de seus valores e de suas lembranças, faz entrar em crise sua relação com a linguagem (p. 21-22).
Manter simultaneamente as rédeas do prazer e da fruição é fruir da consciência do ego (prazer) e procurar a sua perda (fruição): “é um sujeito duas vezes clivado, duas vezes perverso” (p. 22). O prazer é associal – só o lazer é social – o que reforça a necessidade de sua experiência individual. Além disso, enquanto o prazer é dizível, a fruição não o é, sendo “inter-dita”.
“Para escapar à alienação da sociedade presente, só existe este meio: fuga para frente” (p. 54). A linguagem fica comprometida no momento em que se repete. A fruição é justamente esse movimento de transgressão para frente. “Freud: no adulto, a novidade constitui sempre a condição da fruição” (p. 55). A fruição transgredindo a linguagem ou a repetição excessiva, a todo transe (como músicas encantatórias, litanias, ritos etc.) se direcionam a um esvaziamento do significado, a uma entrada na perda, tornando erótica a palavra. Em oposição, o texto-tagarelice recalca a fruição no estereótipo, caindo em uma repetição vergonhosa da linguagem, ápice da forma bastarda da cultura de massa. “O estereótipo é esta nauseabunda impossibilidade de morrer” (p. 58).
Essa possibilidade de romper com o ego aproxima o medo da fruição, em uma recusa da própria transgressão. Enquanto o texto do prazer é a busca de segurança – “inconsciente acolchoado” – o texto de fruição é perverso por estar “fora de qualquer finalidade imaginável, mesmo a do prazer”. Tal como uma mônada, ele se basta a si mesmo, ele é “absolutamente intransitivo” (p. 68).
Essa visão sobre a intransitividade do texto de fruição dialoga profundamente com a revisão no papel autoral defendida por Barthes e Foucault, dois ícones no movimento de morte autoral que ocorreu no século XX. Este último chegou a afirmar que “o autor deve se apagar ou ser apagado em proveito das formas próprias ao discurso” (Foucault, 1969, p. 294). Segundo Compagnon (2012) contemporaneamente é aceito um retorno amigável do autor, problematizado, não autoridade exclusiva para construção de sentido, mas com ele colaborando. Não obstante, Barthes e Foucault marcam uma mudança no paradigma de interpretação literária, quando o leitor passa a ser um agente central para a construção de sentido no texto.
Com base nessa visão, Barthes nos coloca a questão: como ler a crítica? O crítico seria um leitor em segundo grau, tornando-se o seu voyeur, observando clandestinamente o prazer do outro, entrando na perversão. E o leitor da crítica seria um leitor em terceiro grau, em uma perversão que segue ad infinitum. A crítica versaria sempre sobre textos de prazer, jamais sobre textos de fruição, na medida em que textos de fruição só dialogariam entre si.
Pensando sobre a atividade editorial, nessa linha o que moveria o editor seria um fetiche, fetiche de obter prazer no prazer alheio, de orquestrá-lo, de escolher cada pequeno elemento da construção do livro-objeto, desde a sua própria possiblidade de existir até a gramatura do papel onde ele tomará forma. Esse fetiche se aplicaria tanto ao editor-publisher, responsável pelo catálogo de uma editora, quanto ao editor-gerente, responsável pela atividade de produção de um livro. Em ambas as situações o fetiche da orquestração se mostra presente como centro da atuação do editor.
É importante destacar que o fetiche é aqui entendido como um modo específico de obtenção de prazer, não necessariamente tendo uma carga ética negativa. Esse fetiche pode ter um fundamento não obsessivo, em uma estrutura de flexibilidade que tome consciência da sua função enquanto parte de um todo que visa o ser-mais do homem (ser-mais conforme problematizado em Paulo Freire). Isso teria uma maior tendência de ocorrer, por exemplo, em editoras com um fim filantrópico ou educativo (como as editoras universitárias), onde o objetivo central é a promoção do livro-divulgação, um texto de fruição que carrega consigo a reflexão crítica.
Por outro lado, o fetiche do editor pode ter um fundamento obsessivo que se materializaria na necessidade de controle do mundo, angústia pela fuga da desordem, do imprevisto, do caos. A necessidade de controle direcionada para o leitor transformaria o fetiche da edição em fetiche sádico, controlando o prazer alheio. Instaurado o sadismo, o editor se movimentaria em um desejo de glorificação narcísica.
Uma questão importante é que esse fundamento obsessivo no fetiche do editor é uma prática promovida pelo contexto econômico contemporâneo. O editor é antes de tudo um funcionário, membro de uma organização muitas vezes transnacional, com mecanismos difusos de controle de capital, que visa fundamentalmente ao lucro.
Para compreender o editor-funcionário, é preciso compreender o contexto onde ele está inserido. Sennet entende que a sociedade capitalista moderna literalmente corrói o caráter dos indivíduos. “O termo caráter concentra-se sobretudo no aspecto a longo prazo de nossa experiência emocional. (…) Caráter são os traços pessoais a que damos valor em nós mesmos, e pelos quais buscamos que os outros nos valorizem” (Sennet, 2007, p. 10). Entretanto, o primeiro paradoxo advém de como poderemos buscar metas de longo prazo em uma economia dedicada ao curto prazo? Sennet defende que “as qualidades do bom trabalho não são as mesmas do bom caráter” (p. 21). Entretanto, na sociedade moderna, tais comparações são feitas sem maiores preocupações. Os bons padrões para o trabalho, repletos de uma racionalidade instrumental, são transportados para a vida pessoal, transformando-a em uma extensão mecanomórfica da realidade empresarial.
Diversas dessas qualidades do bom trabalho capitalista que são prejudiciais ao caráter humano são citadas. Por exemplo, o mote moderno “‘não há longo prazo’ é um princípio que corrói a confiança, a lealdade e o compromisso mútuo” (p. 24). “A rotina industrial ameaça degradar o caráter humano em suas próprias profundezas” (p. 41). O mote moderno de flexibilidade implica desprender-se do próprio passado, ausência de apego, confiança para aceitar a fragmentação. O trabalho é cada vez menos legível, no sentido de permitir ao trabalhador o entendimento do que se está fazendo, e o trabalhador gradualmente se aliena. A fluidez, tão defendida no contexto empresarial, torna o indivíduo focado apenas em metas de curto prazo. Permanecer num estado contínuo de vulnerabilidade (arriscar-se constantemente) embota o espírito humano. E, assim, o caráter humano é degradado pelo próprio sistema econômico no qual estamos inseridos.
Chaplin e a ironia da rotina industrial (Fonte: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/f/f7/Chaplin_-_Modern_Times.jpg)
Ramos corrobora com essas afirmações ao mencionar que “através de estratégias integracionistas, isto é, mediante estratégias que visam à integração de metas individuais e organizacionais, esforçam-se eles [os teóricos e praticantes de nossos dias] para transformar as organizações econômicas em sistemas sociais de tipo doméstico” (1981, p. 96). Apesar disso, “não questionam eles [os intervencionistas humanistas], explicitamente, o caráter geral desumanizador e enganoso da estrutura de emprego da sociedade centrada no mercado, que em si mesma não permite uma coerente prática do verdadeiro humanismo” (p. 97).
Sendo um editor-funcionário, seu trabalho colaboraria então com o que Guy Debord chama de sociedade do espetáculo. Em sua visão, “le spectacle n’est pas un ensemble d’images, mais un rapport social entre des personnes, médiatisé par des images” (Debord, 1992, p. 10). O conceito de espetáculo unificaria uma grande diversidade de fenômenos e deve ser entendido como a reconstrução material da ilusão religiosa e resultado do modo de produção vigente. “Considéré selon ses propres termes, le spectacle est l’affirmation de l’apparence et l’affirmation de toute vie humaine, c’est-à-dire sociale, comme simple apparence. Mais la critique qui atteint la vérité du spectacle le découvre comme la négation visible de la vie ; comme une négation de la vie qui est devenue visible” (p. 12).
Assim como Sennet, Debord se questiona sobre a influência desse processo de espetacularização na vida humana: “Le spectacle est la réalisation technique de l’exil des pouvoirs humains dans un au-delà; la scission achevée à l’intérieur de l’homme” (p. 16). Além dessa cisão interior, a sociedade espetacular está diretamente relacionada ao processo de alienação: “L’aliénation du spectateur au profit de l’objet contemplé (qui est le résultat de sa propre activité inconsciente) s’exprime ainsi: plus il contemple, moins il vit; plus il accepte de se reconnaître dans les images dominantes du besoin, moins il comprend sa propre existence et son propre désir” (p. 20).
O espetáculo na sociedade corresponderia a uma fabricação concreta de alienação, a uma acumulação de capital a tal ordem que ela se transforma em imagem. Fundado no fetiche da mercadoria, o espetáculo transforma o consumidor real em consumidor de ilusões. A mercadoria teria o potencial de alterar o próprio mundo: “C’est dans cette lutte aveugle que chaque marchandise, en suivant sa passion, réalise en fait dans l’inconscience quelque chose de plus élevé : le devenir-monde de la marchandise, qui est aussi bien le devenir-marchandise du monde” (p. 38).
Nesse contexto, o editor-funcionário está em uma posição que mantém a troca como fundamento da sua atividade, colaborando com o “devir-mercadoria do mundo”, o que reforça a clivagem social, perpetuando o foco de sua atividade na venda de textos de prazer, textos-tagarelice que se fecham em si mesmos, aqueles relacionados a uma “prática confortável da leitura”.
Essa visão da atividade editorial como negócio, apoiada no livro-mercadoria, é discutida, por exemplo, por Schiffrin (2006). Nesse trabalho o autor problematiza a transformação que vem ocorrendo no mercado do livro com a entrada das grandes corporações. Elas incorporam conceitos alheios às editoras tradicionais, tais como a necessidade de lucro em cada obra e o incentivo a processos de fusão não criteriosos, em uma lógica corporativa que impacta substancialmente a circulação dos livros e das ideias que eles contêm. Para opor-se a ela, Shiffrin narra a demissão coletiva que ocorreu na Pantheon Books na década de 1990 e a sua tentativa de opor-se a esse modelo com a criação da New Press, uma editora sem fins lucrativos e ainda em atividade.
Epstein (2002) tem uma postura semelhante. Ele relata as transformações pelas quais passou a indústria do livro e mostra de forma crítica como ela cada vez mais se direciona para o sucesso com base na venda de best sellers muitas vezes de qualidade duvidosa.
Partindo do ponto de vista de sua atuação na Random House, Epstein mostra como a ligação entre os funcionários das editoras se transformou logo após os processos de fusões e aquisições que geraram os grandes conglomerados editoriais. O mercado editorial passa a ser, nada mais, nada menos, que um grande negócio. Nesse mercado de massa, o marketing é mais importante do que a função editorial, que se transforma em mínima (Epstein, 2002), o que nos remete à visão espetacular da sociedade a partir da preponderância da mercadoria (Debord, 1992).
Essa realidade levantada por Epstein e Schifrin é a mesma que ocorre no Brasil. Segundo Marcos Pereira, presidente do Sindicato Nacional dos Editores Livreiros (SNEL), há uma grande concentração no mercado nacional: “Atualmente, 16% do total de pontos de vendas de livros no país respondem por 70% das vendas. Além disso, 15 editoras representam 60% do mercado” (SNEL, 2015).
Um estudo recente também aponta para essa concentração, tanto no âmbito empresarial quanto geográfico. “Em 2014, por exemplo, no ranking mundial das 50 maiores editoras, o faturamento das 10 empresas líderes superava, em quase 60%, o faturamento das demais 40”. Esse processo de concentração “não só fortaleceu as grandes editoras como corporações de alcance mundial, mas também suas posições em importantes mercados nacionais” (Nyko et al., no prelo). No Brasil, um indicativo da relevância do mercado nacional (estimado em R$ 5,4 bilhões em 2014) é a “atração de grandes players internacionais, que investem no mercado brasileiro por meio da aquisição de editoras nacionais” (Nyko et al., no prelo).
Epstein mostra como um possível caminho de ‘salvação’ desse mercado de massa do livro as novas tecnologias, envolvendo principalmente e-books, máquinas com impressão sob demanda e a própria internet. Dados mais recentes colocam em questão essa aposta de Epstein: estima-se que apenas a empesa Amazon detenha de 70% a 75% do comércio mundial de e-books, avaliado em US$ 15 bilhões (Nyko et al., no prelo).
Não considerando as novas tecnologias necessariamente como ‘salvação’ de um modelo com base no lucro, mas sim como brecha que permita a emergência de outras lógicas, Feenberg é um teórico relevante para a presente discussão em função de seus estudos em filosofia da tecnologia. Esse campo do conhecimento ganha destaque na contemporaneidade, uma vez que “tecnologias têm o poder de afetar nossas vidas, o modo como nos relacionamos, produzimos e disseminamos informação” (Rozados, 2015, p. 55).
Segundo Rozados (2015), a interpretação de Feenberg sobre a internet possui três pressupostos principais: “1. Ela é uma tecnologia em fluxo, e que ainda não se estabilizou; 2. entender seu significado social requer uma compreensão de seu caráter técnico; 3. e a internet pode ser definida atualmente apenas em termos da disputa de interesses opostos que está sendo travada” (p. 55). Essa luta é considerada por Feenberg a partir de dois paradigmas dicotômicos: o modelo do consumo e o modelo da comunidade, sendo o futuro da internet dependente de qual modelo vai “prevalecer e se estabilizar, e, portanto, qual vai ter o poder de influenciar seu código técnico” (Rozados, 2015, p. 55).
O modelo do consumo segue a lógica apresentada acima, ao qual as editoras-corporações estão se submetendo. Por outro lado, o modelo de comunidade, que se baseia na organização dos usuários em comunidades online a partir de interesses comuns, é entendido quase como um negativo dessa lógica, favorecendo “formas de sociabilidade e engajamento pelas quais os indivíduos têm a possibilidade de se re-apropriarem de aspectos alienados de suas vidas” (Rozados, 2015, p. 59).
O paradigma em jogo é a oposição consumo x comunidade, competição x colaboração, mercadoria x dádiva. Para contrapor-se à lógica da mercadoria, Rozados (2015) entende que no modelo de comunidade a dádiva é um elemento regulador, entendida como uma “representação para algo que é feito sem evocar o valor monetário nas trocas entre os membros de uma dada comunidade” (p. 19). Esse tipo de troca alheia aos mecanismos de mercado é bastante interessante para pensarmos a superação do ‘devir-mercadoria do mundo’ levantado por Debord.
Rozados (2015) entende que a internet possui um elevado “potencial democratizante”, se materializando, por exemplo, na divulgação de periódicos online, elemento que alterou drasticamente questões relacionadas ao acesso, compartilhamento e participação na construção do conhecimento científico.
Trazendo essas reflexões para o campo do mercado editorial, cabe-nos pensar como as novas tecnologias colaboram com o acesso ao livro, com a difusão de ideias e conhecimentos, e com a construção de uma sociedade mais democrática. As novas tecnologias trouxeram mudanças abrangentes no processo editorial, das quais podemos destacar: 1) O barateamento do processo de edição, produção, distribuição e venda de livros físicos – novos softwares, impressão sob demanda, plataformas online de venda etc.; 2) o fim do império do livro-objeto – e-books, e-readers e novas formas de acesso a livros impensáveis há algumas décadas, e 3) o surgimento de repositórios online gratuitos, verdadeiras bibliotecas de Alexandria que simplesmente ignoram quaisquer considerações sobre direitos autorais. Sobre os dois primeiros há abrangente literatura disponível, e por isso os apresentaremos de forma resumida. Por outro lado, justamente o terceiro parece ser o que penetra mais profundamente na brecha aberta pela indústria do livro e portanto parece guardar o maior potencial democratizante dentre todos.
O barateamento do processo de edição, produção, distribuição e venda de livros físicos
Desde a imprensa de Gutenberg, uma grande gama de avanços técnicos ocorreu no âmbito das diversas etapas que envolvem a criação do livro-objeto. Os escritores, antes limitados a pergaminhos e penas, passaram pela máquina de escrever e hoje em dia podem literalmente alugar a preços extremamente baratos (por exemplo, em lan houses) o artefato técnico que viabiliza a difusão dos seus textos para o mundo inteiro. Os processadores de texto permitem que praticamente qualquer usuário com um pouco de domínio técnico do artefato – intuitivo para as novas gerações, mas ainda apresentando certos obstáculos para quem não nasceu no âmbito dessa revolução tecnológica – possa escrever, revisar e compartilhar seus textos.
As primeiras imprensas e a popularização do livro-objeto (Fonte: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/f/f8/Printer_in_1568-ce.png)
Considerando a ‘linha de produção’ do livro-objeto, o mesmo ocorreu com as etapas subsequentes: a revisão pode ser feita em um computador sem recursos avançados; para a editoração existem softwares cada vez mais acessíveis; impressoras pessoais permitem a preparação e revisão final dos originais a custos impensáveis algumas décadas atrás.
A jusante da cadeia, o mesmo ocorre. As grandes máquinas industriais que imprimiam os livros seguem o caminho da miniaturização e da personalização em massa (considerada por alguns como o centro da terceira revolução industrial), permitindo a impressão de pequenas quantidades. Em determinados casos já é realidade a impressão sob demanda, materializando o livro-objeto apenas quando da existência de uma demanda concreta, o que claramente é uma extensão do conceito de just-in-time – marca da indústria japonesa do século XX – para a cadeia produtiva do livro. Os estoques são considerados como ativos em rápida depreciação: o objetivo é diminuí-los ao máximo.
Por fim, no âmbito da distribuição, grandes plataformas na web se constituem como um espaço de aproximação entre os consumidores e a indústria do livro, diminuindo substancialmente os custos de transação associados a essa troca econômica.
Com todos esses recursos, a autoedição é um fenômeno em franco crescimento, e se introduz em uma brecha criada pela indústria do livro: o editor deixa de ser intermediário entre escritor e público. O escritor passa a ser aquele que busca entender diretamente as necessidades do seu público e se dirige a ele sem necessidade de qualquer crivo. Sem colocar em questão a sua qualidade literária, a trilogia Cinquenta tons (James, 2012) obteve grande sucesso de vendas e foi produzido por autoedição.
Por mais que a autoedição não seja estritamente uma novidade na indústria do livro – existem evidências de que fizeram isso Proust, Sterne, Luther, Whitman, Pound, Dickinson, Hawthorne e Austen, apenas para citarmos alguns (Patterson, 2012) –, o acesso a tecnologias substancialmente mais baratas permite que qualquer escritor com um capital inicial bastante pequeno o faça. Nos casos citados, eram necessários grandes empréstimos, empenhos de bens e acordos para que isso ocorresse, o que não é mais necessário.
Com a facilidade de produção e distribuição do livro-objeto, a questão que surge é como chamar a atenção do público leitor. A profusão de livros acaba fortalecendo o trabalho do crítico literário, voyeur barthiano, na medida em que o leitor médio se sente perdido em meio a um mar de informação. Além disso, nesse mar de livros tanto o marketing quanto a mídia em geral crescem de importância, em um retorno ao ‘devir-mercadoria do mundo’. Dessa forma, por mais que as novas tecnologias permitam uma democratização na produção e distribuição do livro-objeto, a sua inserção em mecanismos de mercado (o livro-mercadoria) ainda apresenta desafios para uma verdadeira democratização da cultura.
O fim do império do livro-objeto
Ainda mais recente que a internet e a revolução dos processadores de texto, o surgimento de artefatos técnicos que permitem uma leitura confortável e dispensam a necessidade do livro-objeto são a marca de uma nova revolução no setor.
Com a revolução tecnológica, o compartilhamento de textos pela internet teve um franco crescimento. O formato PDF (Portable Document File, formato proprietário da Adobe) foi uma importante padronização do código técnico de forma a divulgar textos em um padrão lido por qualquer plataforma digital. Não obstante, um obstáculo relevante era a falta de conforto ao ler um longo texto eletrônico durante horas em um computador.
Esse obstáculo vem sendo ultrapassado no século XXI com a proliferação dos e-readers, artefatos tecnológicos portáteis que facilitam grandemente a leitura de documentos eletrônicos. Algumas das principais empresas do setor são a Amazon (com seu Kindle) e a Apple (com seu iPad). Os principais padrões que surgiram são o ePub (electronic publishing), formato livre e aberto criado pelo International Digital Publishing Forum (CICOM) e o MOBI, formato proprietário detido pela Amazon.
Com os e-readers, o livro-objeto não é mais o elemento central de transmissão de conhecimento em nossa sociedade. Livros de medicina com animações e filmes misturam o que era texto impresso com a multimídia e nos criam uma questão teórica sobre como conceituá-los. A própria característica distintiva da forma romance para Auerbach (1994) – texto centrado no objeto livro – passa a ser questionável nesse contexto.
O custo de impressão e distribuição passa a não ser tão relevante em um mundo conectado à internet. O mundo virtual quebra barreiras de distância. Aparentemente trivial em grandes metrópoles como o Rio de Janeiro ou São Paulo, essa questão é de suma importância em países de dimensões continentais como o nosso, com locais a dias de distância de uma livraria ou biblioteca mais próxima.
A ausência da necessidade de uma impressão e distribuição física facilita ainda mais o processo de autoedição. Os custos envolvidos no processo de produção de um livro são reduzidos drasticamente, bastando o acesso a alguns softwares, muitos dos quais de código aberto.
Além de facilitar a autoedição e a distribuição de livros, outro elemento que marca o potencial democratizante do fim do império do livro-objeto é o acesso gratuito a obras que estão em domínio público.
Uma iniciativa nessa linha que merece destaque no contexto brasileiro é a plataforma Domínio Público (http://www.dominiopublico.gov.br/), criada pelo Ministério da Educação em 2004 que permite o acesso gratuito a esse tipo de material, especialmente em formato PDF. Os governos possuem diversas iniciativas de digitalização de obras raras que permitem a disseminação do conhecimento de formas impensáveis há algumas décadas. Por exemplo, a própria bíblia de Gutenberg, icônica para a indústria do livro, está disponível gratuitamente na British Library (http://www.bl.uk/treasures/gutenberg/homepage.html).
Outro exemplo interessante em relação à digitalização de obras raras, já no caso brasileiro, é a atuação do BNDES, que no período 2004-2015 destinou mais de R$ 42 milhões a 125 projetos de preservação de acervos, em iniciativas oriundas de museus históricos, museus de arte sacra, bibliotecas, arquivos municipais, arquivos científicos, centros universitários, entre outros, o que o torna um dos maiores apoiadores nacionais da preservação de acervos (BNDES, 2015).
Entretanto, por mais que o advento da internet já viesse permitindo a divulgação sistemática de obras que não estão sujeitas a copyright, a necessidade de lê-los em uma tela de computador ou imprimi-los acabava fazendo com que muitos leitores continuassem comprando os livros-objeto. Um fato novo que surgiu é que, em questão de poucos anos, todos os livros e traduções que estão em domínio público tiveram sua leitura verdadeiramente viabilizada a qualquer leitor que possa pagar algumas centenas de reais em um e-reader de sua preferência.
Uma incrível quantidade de livros clássicos estão na ‘nuvem’, gratuitamente. Muitas traduções também estão. Com um artefato tecnológico incrivelmente barato para o seu potencial, a democratização de acesso ao livro-cultura é cada vez mais uma realidade.
Os repositórios online gratuitos
Ao discutirmos o fim do livro-objeto, já levantamos alguns pontos sobre repositórios online gratuitos, que permitem a franca disseminação de textos, mas enfrentam a barreira de leis de propriedade intelectual, dificultando o acesso a um importante elemento da cultura contemporânea.
Entretanto, justamente nesse contexto, Feenberg e seu conceito de dádiva passam a ser relevantes para a presente discussão. Por mais que não estejam em domínio público, facilmente são encontrados livros de grande sucesso ou de grande relevância teórica na internet. A título de exemplo, a obra completa de Clarice Lispector está disponível em uma grande quantidade de websites, blogs e comunidades online.
É uma espécie de troca alheia aos mecanismos de mercado, sem evocar o valor monetário. Livros de Clarice Lispector são muitas vezes compartilhados por um ideal político-anárquico, por entender que o livro-cultura deve ser divulgado e não deve estar sujeito às rígidas regras de propriedade intelectual que priorizam o direito econômico dos herdeiros em detrimento do direito social de acesso à cultura.
A visão nesse contexto é que a cópia é um elemento central para a criação de emprego e prosperidade. “São aqueles que não querem competir que tentam legislar um direito de repousar sobre suas conquistas e tornar a cópia ilegal” (Falkvinge, 2015). A cópia chega a ser vista como um “imperativo moral”.
Novamente não se atendo a questões de valor literário, o escritor Paulo Coelho, por exemplo, é um grande defensor do pirateamento e divulgação online de livros, inclusive os seus próprios. Ele entende que o compartilhamento de obras fortalece a venda na medida em que permite a divulgação mais abrangente do trabalho do escritor (Folha de São Paulo, 2009, e O Globo, 2015).
O surgimento de repositórios online gratuitos, verdadeiras bibliotecas de Alexandria que simplesmente ignoram quaisquer considerações sobre direitos autorais, apresenta-se como a possibilidade mais pungente de democratização do acesso ao livro-cultura. Basta uma conexão com a internet e todo o conhecimento humano está ao alcance das mãos.
A atividade editorial nesse contexto
Como exposto, o elevado potencial democratizante das novas tecnologias em relação ao acesso aos livros é calcado em fundamentalmente três aspectos: 1) O barateamento de todas as etapas de produção e distribuição, permitindo a emergência de novos modelos, tais como a autoedição; 2) novos artefatos técnicos que prescindem da necessidade do livro-objeto, o que habilita o acesso a uma gama enorme de livros que não estão protegidos por direitos autorais, e ainda permite que o conhecimento alcance lugares cuja logística de distribuição não seria favorável; e 3) iniciativas de cunho político-anárquico, fundadas na dádiva, que entendem que o acesso ao conhecimento é prioritário em face de direitos de propriedade.
Com o surgimento da internet e posteriormente dos e-readers, recorrentemente questionava-se se seria o fim do livro-objeto. Após algumas décadas de internet e vários anos de e-readers, essa não parece ser a realidade. Por mais que o mercado tenha se tornado altamente concentrado, livrarias e editoras continuam existindo e publicando.
A questão que emerge é como a atividade editorial pode se adequar aos novos tempos. Como exposto, as novas tecnologias possuem um alto potencial democratizante, atuando em brechas da lógica de mercado que permitem uma divulgação significativa dos livros e, por conseguinte, do próprio conhecimento humano.
A atividade editorial não pode ignorar essa nova lógica ou tentar combatê-la com leis protecionistas mais rígidas. A própria lógica da diferenciação da mercadoria, central para a terceira revolução industrial, deve ser utilizada na indústria editorial. Os livros devem passar a ser mais interessantes, contando com estudos teóricos, referências, notas de rodapé, imagens e outros materiais que façam o leitor se interessar pela aquisição daquela edição específica de um livro. Livros com revisões ruins, tipografias ilegíveis e impressão de má qualidade, por exemplo, não são mais aceitos pelo mercado (a Bibliothèque de la Pléiade já antecipava esse movimento em quase um século).
Detalhe da encadernação da Pléiade: não é um simples livro (Fonte: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/1/12/Reliure_biblioth%C3%A8que_de_la_Pl%C3%A9iade.jpg)
No âmbito jurídico, por exemplo, a possibilidade de atualizações gratuitas e automáticas por determinado período de tempo, faz com que o Vade Mecum e outros compêndios de códigos e leis sejam especialmente interessantes para quem atua na área. Claramente, por mais que todos os códigos e leis por definição sejam livres, a possibilidade de um serviço diferenciado faz com que o leitor-consumidor veja valor naquela mercadoria específica.
O fetiche do objeto único pode ser utilizado pela indústria do livro por meio de noites de autógrafo, nas quais os escritores transformam aquele objeto seriado em um objeto único para o leitor. Rodas de debates gratuitos com escritores e teóricos podem atrair um grande público interessado e se transformarem em um espaço particularmente rico para as editoras divulgarem suas obras. A mudança da mentalidade que deve ser operada é a passagem de uma lógica centrada no livro-objeto para uma lógica centrada na experiência do leitor. O setor da música já possui muitos avanços nessa direção, com diversas bandas divulgando gratuitamente seu trabalho de forma a trazer maior público para seus shows.
Trechos de livros ou ainda livros inteiros devem ser disponibilizados online pelas editoras (a Amazon, gigante do setor, já os disponibiliza). O livro continua sendo um presente de grande valor e é nisso que deve recair o foco. Medidas protecionistas no contexto contemporâneo, com as tecnologias de compartilhamento disponíveis, só inflamarão a vontade de ultrapassá-las.
O mercado livreiro deve dialogar com os novos tempos, ou então ele sucumbirá à indústria cinematográfica, da música, e outros ramos do entretenimento que ganham cada vez maior espaço na mídia. As editoras não devem simplesmente manter uma atuação focada na lógica de mercado e no aumento de lucro ou então elas serão engolidas por corporações cada vez maiores. Uma questão relevante é que os acionistas dessas mega-corporações veem o mercado apenas em termos financeiros, deixando de lado a função de troca intrínseca a ele. Restará ao editor, aquele com experiência no setor e que pode antecipar os seus movimentos, de redirecionar as editoras para conviver de modo mais saudável no contexto das novas tecnologias. Por exemplo, a identificação de nichos não atendidos (traduções raras de um conjunto de pensadores, edições críticas de determinados autores etc.), de especificidades locais/regionais, passa a ser de grande importância, na medida em que permitem a manutenção da atividade editorial em áreas com poucos substitutivos.
Um elemento central para a manutenção de uma indústria competitiva em nossa era do conhecimento é a agregação de valor e a diferenciação de seus produtos. As novas tecnologias devem ser utilizadas em favor de uma maior difusão de novos textos de fruição, ultrapassando as barreiras geográficas e de custos historicamente associadas ao processo de difusão do livro. Ou a indústria livreira reconhece isso ou nos próximos anos assistiremos a uma pasteurização da própria atividade editorial, sempre em busca do novo best seller.
*Roy David Frankel é engenheiro de produção pela UFRJ, trabalhando atualmente no BNDES. Além disso, possui graduação e mestrado em Letras pela UERJ e cursa o doutorado em Ciência da Literatura na UFRJ. Nessa área escreve sobre aspectos teóricos da literatura. O autor gostaria de agradecer a Daniela Rozados, aos colegas do BNDES e ao Prof. Ítalo Moriconi por colaborarem com as reflexões propostas. Este artigo é de exclusiva responsabilidade do autor, não refletindo, necessariamente, a opinião do BNDES.
REFERÊNCIAS
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A presente edição da Revista Z Cultural constitui uma amostragem da disseminação do conceito do arquivo entre diversos saberes e fazeres na contemporaneidade, evidenciando suas potencialidades criativas, analíticas e interpretativas. Essa disseminação decorre de uma nova compreensão dos arquivos, relidos da perspectiva dos estudos filosóficos, antropológicos e culturais, que culminou numa archival turn efetuada nas duas últimas décadas do século passado. Com as abordagens de Michel Foucault e Jacques Derrida, no campo filosófico, o arquivo alcança novo estatuto teórico, tornando-se metáfora esclarecedora das relações entre memória, saber e poder e um operador relevante para se pensarem nossas relações com o tempo. Desvelam-se suas implicações políticas, culturais e epistemológicas: em vez de simples repositório de fatos e “provas” do passado, o arquivo é um dispositivo de poder e lugar de produção do conhecimento. Daí a relevância de se repensarem a materialidade e o imaginário dos arquivos com suas coleções, de se atentar para as complexas operações do mise an archive, construtoras da memória e agregadoras de valores.
No âmbito das artes contemporâneas, especialmente na América Latina, um olhar atento certamente detectará um disseminado gesto arquivístico, que incrementa as ficções do arquivo. Esse gesto é visível em obras de literatura e de artes visuais que tematizam figuras do arquivo — bibliotecas, museus, coleções, catálogos, listas etc. — ou apresentam o escritor na cena ficcional, exibindo suas coleções e anotações de pesquisa, suas hesitações e escolhas na fatura da obra, dialogando com personagens e leitores, na busca de uma cumplicidade colaborativa. Ou ainda em relatos que colocam em cena o artista em seu ateliê/estúdio, inventariando seus materiais — sons, cores, volumes, palavras. Um tal gesto configura, simultaneamente, o ato que concretiza a obra e a memória do seu fazer, historicizando-a; assinala a potência do fazer/dizer artístico, que não se esgota na atualização desse fazer/dizer; articula uma relação com a tradição, com um passado que se institui em uníssono com o presente. Um problema que subjaz a essa encenação e desejo de arquivo diz respeito a um excesso de memória, a seus usos e abusos. Importa refletir se tal excesso de arquivo implica uma paralisia da ação criativa, reduzindo-a a mera citação de um passado já consumado, estando a serviço de regimes discursivos da verdade ou se, pelo contrário, ao mimetizarem práticas do arquivo, a construção de provas documentais, essas ficções contemporâneas do arquivo constroem imaginações desestabilizadoras da evidência histórica, de discursos dicotômicos e dogmáticos, rasurando as fronteiras entre o imaginado e o vivido, a ficção e a realidade, a obra e a vida.
Uma análise mais adequada do papel do arquivo nas artes e na cultura da atualidade demanda obviamente um trabalho efetivo com os arquivos de artistas e escritores, que ganham relevância na medida em que se deslocam da esfera privada para o espaço público em instituições de guarda, sendo disponibilizados para a pesquisa, especialmente com o suporte das novas tecnologias da memória – a informática, o digital, a internet. Os artigos deste novo número da Revista Z Cultural refletem, como se poderá comprovar, uma acurada atenção aos arquivos artísticos, literários e culturais, quer em termos de uma reflexão mais teórica, quer no confronto corpo a corpo com seus materiais e documentos, quer ainda no que tange a suas possibilidades criativas e ficcionais.
Os artigos de Ana Cláudia Viegas, Cléber Araújo Cabral e Marília Rothier Cardoso lidam diretamente com os arquivos dos escritores Luiz Ruffato, Murilo Rubião e Jorge de Lima, respectivamente, evidenciando como em ambos, a partir dos documentos examinados – retratos, pinturas, anotações, entrevistas etc. –, se constroem imagens dos escritores que tramam uma figura autoral e incitam ficcionalizações. Elena Romiti, por sua vez, explicita a própria literatura como um gesto arquivístico ao ler La Sobreviviente, de Clara Silva, como uma novela-arquivo e estratégia de inserção no sistema literário sul-americano por parte de mulheres escritoras. Na mesma direção se move Eneida Maria de Souza ao pensar relatos autoficcionais enquanto gesto de sobrevivência da vida por meio do processo de escrita e leitura.
Com seus ensaios, Leonor Arfuch e Reinaldo Marques abordam trabalhos de mulheres artistas que se constituem nas margens do arquivo. Ao assinalar as imbricações entre arte e memória nas obras de Nury González e Marga Steinwasser, Arfuch se depara com poéticas do objeto reveladoras de uma originalidade auto/biográfica. De sua parte, ao reelaborar uma experiência de pesquisa, Marques se detém no exame do arquivo de uma artista popular – Zefa, artesã do Vale do Jequitinhonha – considerando questões relativas ao colecionar, à memória e à cultura popular. De um ponto de vista mais antropológico, José Rogério Lopes articula processos de singularização de imagens e objetos relacionados às biografias de colecionadores, configurando frames colecionistas em arranjos situacionais. Como exemplificação, recorre a duas obras cinematográficas – Un cuento chino e A coleção invisível – e uma literária, A coleção particular de Georges Perec.
Por fim, recorrendo a Giorgio Agamben e Jean-Luc Nancy, a Oliverio Girondo e Macedonio Fernández, Raul Antelo assinala a potência do arquivo ao conectá-lo com questões relevantes que passam por interações entre linguagem e discurso, ética e política, a natureza do humano e do inumano, o significado do testemunho. Movido pelas possibilidades ficcionalizantes do arquivo, Jacques Fux inventaria e reinventa a vida do colecionador e ficcionista Henry Darger, um sujeito tomado pelo “mal do arquivo”.
Cabe agora ao leitor da Revista Z Cultural conferir essas tramas possíveis dos arquivos nos artigos aqui coletados. E boa leitura!
Resumo: A partir de entrevistas e depoimentos do escritor Luiz Ruffato e de considerações acerca de seu último romance, Flores artificiais, propomos uma discussão sobre o “gesto arquivístico” da construção da figura autoral no cenário da escrita contemporânea.
Palavras-chave: Imagem do autor; obra-arquivo; Luiz Ruffato.
Abstract: Through interviews and testimonials of the writer Luiz Ruffato and his latest novel, Flores artificiais, it is proposed here to reflect the “arquivistic gesture” into the construction of author’s figure in contemporary writing scenery.
Entre as várias possibilidades de produção de arquivo na escrita contemporânea, colocamos em foco as práticas de arquivamento do eu desenvolvidas pelos escritores no processo de formação da figura autoral, seja na própria obra ou em entrevistas, depoimentos, blogs, sites, redes sociais. Nestas, “espécie de representação ao vivo da vida” (Schittine, 2004, p. 15), onde, mais do que guardar uma memória do passado, se compartilha uma memória do presente, identificamos uma das tentativas − fadadas ao fracasso − de satisfazer o desejo de “recordação total” (Huyssen, 2000, p. 25) da atualidade.
O papel preponderante da mídia na cena discursiva contemporânea nos leva a refletir sobre como ela vem desenvolvendo e modificando o funcionamento da imagem do autor. A “impressão de realidade” criada pelas transmissões “ao vivo”, “em tempo real”, incentiva a “ilusão biográfica”, pela qual “o autor surge como ‘resposta’ à pergunta feita por seu texto”, sendo que sua “vida” − em vez de dar aos leitores as chaves para a interpretação da obra − é que é reconstruída “à luz da obra que deveria explicar” (Lejeune, 2008, p. 192).
Como estudo de caso, o escritor Luiz Ruffato, que, mesmo tendo, várias vezes, se declarado avesso às novas tecnologias, mantém um perfil no facebook (https://www.facebook.com/luizruffato?fref=ts), identificado como “Página oficial de Luiz Ruffato (autorizada pelo autor e administrada por Helena Terra)”, onde se divulgam − em textos, sons e imagens − sua participação em eventos literários, lançamentos de livros, entrevistas, em meio a algumas fotos pessoais. Ao colocar seus textos ficcionais numa rede discursiva onde também entram textos alheios e os “momentos autobiográficos” (Arfuch, 2010, p. 163) dispersos em suas inúmeras entrevistas, constrói, de forma compartilhada, uma narrativa pessoal, alimentando sua (auto)produção como figura pública e constituindo sua imagem como “suporte do gesto da assinatura” (Arfuch, 2010, p. 236). “Cena arquetípica da presença midiática”, o trabalho da entrevista transforma hoje toda escrita em autobiográfica, por seu investimento “sobre o tempo, a privacidade, a história, a pessoa” (Arfuch, 2010, p. 234) do escritor, que “assume uma identidade mitológica, fantasmática e midiática” (Souza, 2002, p. 116).
Pensar a produção ficcional em diálogo com entrevistas, depoimentos, ensaios, correspondências é uma prática da crítica biográfica contemporânea, que, sem retornar ao biografismo oitocentista, “desloca o lugar exclusivo da literatura como corpus de análise e expande o feixe de relações culturais” (Souza, 2002, p. 111). Desconstruindo princípios valorizados por algumas correntes da teoria da literatura do século XX, pautados na “morte do autor” e na análise imanente da obra, o autor retorna ao campo dos estudos literários não como origem e explicação última da obra, mas como “ator no cenário discursivo” (Souza, 2002, p. 116).
O uso de entrevistas concedidas por um escritor como material de pesquisa não visa a determinar a “verdade” ou a “mentira” de qualquer declaração, mas sim a mapear a construção de sua imagem, sua “elaboração de si”. A aparente repetição de respostas a diferentes entrevistadores gera uma marca discursiva que o singulariza. Características são frequentemente reprisadas, tanto por questionamentos repetidamente direcionados ao escritor, quanto pela intenção autoral da construção de uma “marca de si”.
No caso do escritor mineiro aqui comentado, alguns traços sobressaem pela constância com que são reiterados nos “momentos biográficos” dispersos nas inúmeras entrevistas publicadas em jornais, revistas, sites: a perspectiva profissional de sua atividade como escritor; a autodefinição como um “realista” que procura dar voz à classe trabalhadora anônima; a preocupação com a busca de novas formas de representação.
Em depoimento apresentado em seminário realizado na Puc-Rio, Ruffato escolhe como ponto de partida uma foto disposta em sua mesa de trabalho:
Na mesa do meu escritório, […] há um porta-retrato. Nele, uma fotografia embaçada registra uma estranha composição: em primeiro plano um menino, trajando uma curta blusa de flanela, um desajeitado short e um sujo par de chinelos de dedo, tristes e assustados olhos semifechados. Pousadas em seus ombros magros, duas mãos femininas; ao lado, parte de uma perna de calça e uma barriga, que se adivinha em breve proeminente, indica a existência de um homem […]. Assentada sobre o braço da mulher, a mão esquerda de uma quarta pessoa. […]
Todo o meu esforço como escritor tem sido o de tentar recompor essa imagem. O menino, identifico-o, sou eu, aos cinco ou seis anos de idade. Mas quem são os outros três personagens que, numa tarde de inverno para sempre perdida, imobilizaram-se para o olhar amador de alguém por detrás da máquina fotográfica? Quais os seus nomes, de onde vieram, onde estarão agora, o que fizeram de suas vidas, foram felizes? (Ruffato, 2008b, p. 317).
Na descrição da foto, emerge a proposta estética de Ruffato: reconstruir a história desses anônimos, “inventando-lhes nomes, desenhando-lhes rostos, estabelecendo-lhes trajetórias, na ilusão de que, agindo assim, estará contribuindo para que em algum lugar alguém se lembre deles e celebre sua passagem pela Terra.” (Ruffato, 2008b, p. 324). Reafirma, também, sua concepção compromissada da literatura − compromisso com sua época, sua língua, seu país: “Não tenho como renunciar à fatalidade (será uma fatalidade?) de viver nos começos do século 21, de escrever em português e de viver num país chamado Brasil. Esses fatores, junto com a minha origem social, conformam toda uma visão de mundo, à qual, mesmo que quisesse, não poderia renunciar.” (Ruffato, 2008b, p. 323). Dentro dessa “visão de mundo”, define claramente para que, sobre o que e como escrever: “[…] para levar à frente um projeto de aproximação da realidade do Brasil de hoje, torna-se necessária a invenção de novas formas, em que a literatura dialoga com as outras artes […] e tecnologias” (Ruffato, 2008b, p. 322).
Identificando-se no primeiro plano da imagem que tenta recompor em seu ofício de escritor, este se aproxima do universo sobre o qual escolheu escrever − o do trabalhador urbano −, confirmando ser a Arte “manifestação de experiências pessoais, embora não necessariamente autobiográfica” (Ruffato, 2008b, p. 320). Sem a ingênua intenção de retratar fielmente uma realidade pessoal ou social, Ruffato vai se configurando como autor no deslizamento entre pessoa e personagem, de dentro para fora de seu texto e de novo.
Na Apresentação de seu romance mais recente, Flores artificiais (2014), lê-se:
Em 2007 lancei um livro, De mim já nem se lembra, no qual compilo cartas enviadas por meu irmão, José Célio, para minha mãe, Geni, entre 1970 e 1978, período em que ele trabalhou como torneiro-mecânico em Diadema, na Grande São Paulo. Dois anos depois, publiquei Estive em Lisboa e lembrei de você, de gravação de quatro sessões de entrevistas com Sérgio de Souza Sampaio, imigrante brasileiro em Portugal. A divulgação dos dois títulos, nos quais, mais que criador, atuo como organizador e editor, levou várias pessoas a me procurar com histórias que poderiam ser utilizadas em volume. Como nunca pretendi tornar-me coadjuvante de textos alheios, recusei as doações.
No entanto, em setembro de 2010 recebi uma correspondência que, pela singularidade da proposta, me persuadiu a repensar a decisão. A carta, que reproduzo à frente, expunha, de maneira sucinta, o desejo do remetente, Dório Finetto, de me submeter suas “memórias” para, quem sabe, “aproveitar alguns dos temas”. […]
Engenheiro, consultor de projetos na área de infraestrutura do Banco Mundial, Dório despendeu seus melhores dias em incursões aos ermos do planeta, quando conheceu inúmera gente e vastos sucedidos, convertidos em personagens e enredos de seus cadernos. São algumas dessas páginas, intituladas Viagens à terra alheia, que ancoraram em minha mesa há pouco mais de três anos. […]
Com a anuência de Dório, a quem estendi a coautoria, rechaçada de maneira peremptória, elegi alguns capítulos para, refeitos, compor o livro. […]
Alinhavei, como posfácio, breves notas sobre o passado de Dório Finetto, nas quais, entretanto, ele afirma não se reconhecer. Se pilhéria do biografado ou incompetência do retratista, eis a questão.
Enfim, ao leitor, ofereço um buquê de flores artificiais (Ruffato, 2014, p. 9-11).
O longo trecho aqui reproduzido nos permite perceber a série de jogos criados por seu narrador, que extrapolam, inclusive, as páginas deste livro, colocando o autor também em meio aos lances de dados. Os dois romances citados no primeiro parágrafo – cujas referências bibliográficas são indicadas em notas de pé de página – foram efetivamente publicados por Ruffato, o que pode ser atestado – mesmo por um leitor que desconheça suas obras anteriores – na orelha do volume que lemos. Como somos informados logo nesse início da Apresentação, esses livros também foram elaborados a partir de jogos entre autores e narradores, biografia e ficção: um composto a partir de cartas recebidas pelo narrador, que compartilha dados biográficos com o autor Ruffato; o outro que se abre com a seguinte Nota, assinada por L. R.:
O que se segue é o depoimento, minimamente editado, de Sérgio de Souza Sampaio, nascido em Cataguases (MG) em 7 de agosto de 1969, gravado em quatro sessões, nas tardes de sábado dos dias 9, 16, 23 e 30 de julho de 2005, nas dependências do Solar dos Galegos, localizado no alto das escadinhas da Calçada do Duque, zona histórica de Lisboa. A Paulo Nogueira, que me apresentou a Serginho em Portugal, e a Gilmar Santana, que o conheceu no Brasil, oferto este livro (Ruffato, 2009, p. 13).
Em seguida, somos informados que o “buquê de flores artificiais” que estamos começando a desfolhar foi escrito a partir de relatos de Dório Finetto, conterrâneo e contraparente do narrador, enviados a este por carta, reproduzida em seguida àquela Apresentação:
Prezado Luiz Ruffato,
Confesso que, embora seja de uma família de colonos italianos de Rodeiro como o senhor, não sabia da sua existência como escritor. […]
Há cerca de três anos, a doutora Regina me chamou a atenção para seus livros, disse que o senhor escrevia sobre a região de Rodeiro,* [*Nota de pé de página: Referência à pentalogia Inferno provisório, iniciada em 2005 e finalizada em 2011, que tem, entre os cenários, a região de Rodeiro, Zona da Mata de Minas Gerais, particularmente no volume I, Mamma, son tanto felice. (N.A.)] e quando fui ver descobri que os Ruffato e os Finetto têm até laços familiares comuns (Ruffato, 2014, p. 12-14).
Através de textos fragmentados, passíveis de serem lidos separadamente, mas, ao mesmo tempo, complementares, os cinco romances que compõem a série Inferno provisório – Mamma, son tanto Felice (2005a), O mundo inimigo (2005b), Vista parcial da noite (2006), O livro das impossibilidades (2008a) e Domingos sem Deus (2011) – narram o povoamento da Zona da Mata mineira por imigrantes italianos, a posterior desestruturação da vida rural frente à modernização, e a formação das metrópoles paulista e carioca a partir da migração. O primeiro volume é ambientado em Rodeiro, na década de 1950; o segundo, em Cataguases, nos anos 1960 e 70; o terceiro, também em Cataguases, nas décadas de 1970 e 80; o quarto, em Cataguases, Rio de Janeiro e São Paulo, nos anos 80 e 90; e o último, em São Paulo, no início do século XXI. Entre as famílias de pequenos agricultores que sofrem as consequências sociais e emocionais do processo de industrialização ocorrido no Brasil a partir dos anos 1950, encontramos, logo nas primeiras páginas do primeiro volume, os Finetto, que retornam no último, Domingos sem Deus, na memória de seu Valdomiro ou Mirim: “Ê mundão!, e passa a divisa do Rubens Justi, e a dos Chiesa, e a do Orlando Spinelli, e a dos Bicio, e a do seu Beppo Finetto, e a dos Micheletto, Ê italianada!” (Ruffato, 2011, p. 18).
A atribuição da coautoria de seu último romance a Dório Finetto cria mais uma dobra no jogo entre autores e narradores, personagens e pessoas reais, biografia e ficção. Interessado em “fazer uma literatura profundamente engajada na história do Brasil” (Ruffato, 2005c), confundindo com a História as histórias pessoais − ele mesmo, um migrante e neto de imigrantes portugueses e italianos −, Ruffato se considera um “re-escritor” e sua escrita, sempre “provisória”. Como traço de um projeto estético que se define pelo reaproveitamento, seus textos transitam, se reescrevem, se reembaralham, conforme advertido nas notas finais de alguns volumes da série Inferno provisório:
Possível que alguma passagem de Mamma, son tanto felice, primeiro volume de Inferno provisório, seja reconhecida. Em verdade reembaralhadas, aí estão uma das Histórias de remorsos e rancores (totalmente reescrita), três de (os sobreviventes) (revistas) e duas inéditas (Ruffato, 2005a).
Possível que alguma passagem de O mundo inimigo, segundo volume de Inferno provisório, seja reconhecida. Em verdade reembaralhadas, aí estão seis das Histórias de remorsos e rancores (totalmente reescritas), duas de (os sobreviventes) (revistas) e quatro inéditas (Ruffato, 2005b).
Todas as histórias que compõem O livro das impossibilidades, quarto volume de Inferno provisório, são inéditas, à exceção de uma, revista, que pertenceu, um dia, a (os sobreviventes) (Ruffato, 2008a).
Sua obra vai se compondo, assim, em rede, puxando fios, tecendo-se e destecendo-se, para novamente enredar-se. Reescrevem-se histórias, retomam-se personagens, citam-se obras próprias e alheias. Um texto em trânsito, inacabado, passível de diferentes arrumações e classificações – como um arquivo −, no qual se constroem cenas de escrita e leitura. Na comentada Apresentação a Flores artificiais, a rede intertextual se estende a Kafka, Carlos Sussekind, Camões (que empresta uma estrofe d’ Os lusíadas à epígrafe das Viagens à terra alheia, de Finetto), Almeida Garret (cujo título Viagens na minha terra é emulado pelo personagem-autor Dório Finetto). A referência aos românticos aponta para o papel do escritor mineiro de crítico de sua própria obra, quando busca orientar a leitura de seus livros, seja acrescentando-lhes notas e apresentações, seja oferecendo caminhos para seus leitores em entrevistas e depoimentos. Também aqueles exerciam uma certa pedagogia da leitura, através de prefácios, posfácios, notas, ensaios autobiográficos sobre sua formação como escritores. Talvez a referência a esse ideário oitocentista mais explícita do autor de Eles eram muitos cavalos esteja no título dado ao citado depoimento apresentado em seminário realizado na Puc-Rio: “Até aqui, tudo bem! (Como e por que sou romancista – versão século 21)” (Ruffato, 2008b, grifo nosso).
Assim como em seus precursores, tais paratextos denotam, muitas vezes, uma falsa – ou pelo menos, dúbia – referencialidade. Da mesma forma que a já transcrita nota explicativa no início de Estive em Lisboa e lembrei de você atribui a narrativa a depoimentos do personagem Sérgio colhidos pelo escritor L.R., o posfácio de seu último romance, “Memorial descritivo”, assinado por Luiz Ruffato, é descrito na Apresentação como “breves notas sobre o passado de Dório Finetto”, baseadas “em três memoráveis encontros, dois no Rio de Janeiro (café da manhã na Colombo, do Forte de Copacabana, e almoço no Rio Minho, na rua do Ouvidor) e um em São Paulo (almoço no Consulado Mineiro, em Pinheiros). Além disso, interpelei familiares e conhecidos de Rodeiro” (Ruffato, 2014, p. 11). Os detalhes das circunstâncias dos encontros, possíveis indicadores da veracidade da história narrada, contrastam com a afirmação de que Dório Finetto não se reconhece nessas notas. Ao simular a construção de provas documentais, antes desestabiliza do que reafirma a evidência histórica, rasurando fronteiras entre o imaginado e o vivido, a ficção e a realidade, a obra e a vida.
No lugar de confissão e fidelidade, falsas pistas e artifícios. Nesses artifícios, flagramos o “gesto arquivístico” do autor, compondo e recompondo sua imagem e sua obra, revertendo-as uma sobre a outra. É possível reconhecer o autor na obra? A visão de mundo daquele nos ajuda a compreender o que escreve? Ou, no meio do caminho, obra e autor – categorias fugidias − se constroem na impossibilidade do retrato? Ou tudo não passaria de pilhéria do biografado? Eis as questões.
*Ana CláudiaViegas é professora associada de Literatura Brasileira do Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e pesquisadora do CNPq, desenvolvendo projeto sobre personagens-escritores na prosa ficcional brasileira contemporânea e a formação de escritores-personagens na cena literária atual. Tem diversos ensaios publicados sobre a prosa de ficção brasileira produzida nas últimas décadas.
Referências
ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Trad. Paloma Vidal. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010.
HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória. 2ed. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.
LEJEUNE, Philippe. A imagem do autor na mídia. In: LEJEUNE. O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Trad. Jovita Maria Gerheim Noronha e Maria Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008, p. 192-204.
RUFFATO, Luiz. Flores artificiais. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
RUFFATO, Luiz. Domingos sem Deus. v. V. Rio de Janeiro: Record, 2011. (Coleção Inferno Provisório).
RUFFATO, Luiz. Estive em Lisboa e lembrei de você. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
RUFFATO, Luiz. O livro das impossibilidades. v. IV. Rio de Janeiro: Record, 2008a. (Coleção Inferno Provisório).
RUFFATO, Luiz. Até aqui, tudo bem! (Como e por que sou romancista – versão século 21). In: MORGATO, Izabel & GOMES, Renato Cordeiro. Espécies de espaço: territorialidades, literatura, mídia. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008b, p. 317-324.
RUFFATO, Luiz. Mamma, son tanto felice. v. I. Rio de Janeiro: Record, 2005a. (Coleção Inferno Provisório).
RUFFATO, Luiz. O mundo inimigo. v. II. Rio de Janeiro: Record, 2005b. (Coleção Inferno Provisório).
RUFFATO, Luiz. Luiz Ruffato e seu inferno provisório. Entrevista concedida a Ronise Aline. 2005c. Disponível em: <http://www.paralelos.org/out03/000684.html>.
SCHITTINE, Denise. Blog: comunicação e escrita íntima na internet. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.
SOUZA, Eneida Maria de. Notas sobre a crítica biográfica. In: –––. Crítica cult. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, p. 111-120.
Resumo: A partir do diálogo entre dois retratos de Murilo Rubião e de dois manuscritos desse escritor, este ensaio tem como objetivo a leitura do arquivo literário desse autor. Com isso, esse trabalho visa a sugerir tanto um procedimento de escrita como de escuta da memória literária custodiada e materializada nos arquivos.
Palavras-chave: Murilo Rubião; arquivos literários; crítica biográfica; ficções do arquivo.
Abstract: Based on the dialogue between two portraits of Murilo Rubião and two manuscripts written by this writer, this paper suggests an essay, which has as a goal the “reading” of this author literary archive. In this matter, this work proposes both a procedure of writing and of listening of the literary memory subsided and materialized in the archives.
Proposta – onde o autor se indaga: como “ouver” o arquivo?
(…) sobretudo, tentei evidenciar o fato de que todo livro nasce na presença de outros livros, em relação e em confronto com outros livros (Calvino, 2003, p. 266).
Quando se pensa em pesquisas a partir de fontes documentais, indaga-se, sobretudo, acerca das táticas de abordagens do corpus adotadas pelos pesquisadores. De imediato, uma questão se impõe: “como trabalhar os indícios ou traços que chegaram desde o passado (…), como torná-los legíveis, de maneira a fazê-los falar”? (Pesavento, 2008, p. 63). Na busca por modos de leitura dos arquivos literários, os seguintes versos de Quevedo colocam o problema sob os signos da conversa e da escuta: “Vivo en conversación con los difuntos, / Y escucho con mis ojos a los muertos” (Quevedo apud Rocha, 2011, p. 17). Nestas poucas linhas, perscruta-se a sugestão da leitura como forma de escuta. Assim, o pesquisador, ao ler e manusear registros presentes em arquivos, encontra-se investido não só na condição de ouvinte e intérprete que se põe a “ouver” histórias alheias – mas também como narrador que ficcionaliza corpos, vozes e narrativas acerca dos habitantes que povoam os arquivos.
Tomando como corpus as representações da leitura presentes nas narrativas “O documento” e “O mistério”, de Murilo Rubião, bem como em um retrato do escritor feito por Aurélia Rubião, pretende-se pensar o gesto do pesquisador de ler o arquivo para escrever a partir dele, sobre ele e contra ele. Nesse percurso do ler ao escrever, concebe-se o arquivo de um escritor não apenas como palimpsesto de tempos, valores e vozes culturais a decifrar – mas, sobretudo, como local propício à elaboração de ficções, quer de ordem teórica ou não. De espaço de preservação, ordem discursiva composta por traços da memória literária, o arquivo literário desdobra-se em lugar de questionamento e an-arquia das imagens de pensamento instituídas a propósito da literatura.
As proposições acima servem de corolário para o texto que se segue: uma encenação crítico-ficcional das relações entre escrever e ler. O mote da abordagem advém do seguinte comentário: “Como todo scriptor é leitor antes de pegar da pena, todo leitor que procura compreender e interpretar um processo escrito enfia-se, sem perceber, na roupa do scriptor a fim de melhor reconstruir os caminhos e a direção da escrita” (Grésillon, 2011, p. 08). A partir desta sugestão, compôs-se um “quase roteiro”, no qual a leitura (ou sua incapacidade) é tema que se desdobra, simultaneamente, em narrador e personagem – a figura do pesquisador, apresentado como lector a sondar as estratégias de escrita de um scriptor. Para tanto, o pesquisador se apropria de vários discursos do e sobre o escritor e o arquivo,[1] deslocando-os e os expandindo mediante a elaboração de narrativas teóricas. Assim, da tentativa de fixar a poética implícita de uma obra, delineiam-se traços de uma poética da leitura – que poderia ser vista, também, como poética dos rastros.
Antes de passar a este exercício de escuta, gostaria de fazer dois comentários. O primeiro concerne ao jogo de vozes que se poderá perceber ao confrontar a primeira com a segunda e a terceira cenas. Buscou-se criar um atrito entre a voz distanciada, própria ao discurso científico, em contraponto à proximidade do sujeito afetado pelo objeto de sua pesquisa. Já o outro comentário diz respeito ao tom descritivo da narrativa que se segue. Não se trata de “dar a ouver” o arquivo literário pesquisado em sua totalidade; pelo contrário, intenta-se mostrar não só a impossibilidade de um mapa definitivo, mas, sobretudo, de aludir aos inúmeros percursos de leitura – seja da teoria literária, da história da literatura, da obra de um escritor, de sua fortuna crítica etc. O que se propõe, no experimento a seguir, consiste em sugerir mais de uma figuração do (i)legível que se insinua no (mal de) arquivo literário.
1ª cena – quando o leitor narra sua leitura
Aqui, uma voz, adentrando territórios de silêncio, tenta ser mais de uma (Brandão, 2005, p. 03).
Atraído pelos rumores das páginas, aventuro-me em meio à ordem de um arquivo literário. Antes de iniciar minha jornada, lembro que, certa vez, elaborei um mapa do local. Consulto as anotações e encontro um esboço.
Planta-baixa do Acervo de Escritores Mineiros / UFMG. Fonte: Elaboração do autor.
Mesmo que o desenho não coincida exatamente com a geografia atual do espaço, ao menos irá auxiliar em sua visualização. Por instantes, leio os traços na folha à minha frente, até que escolho uma dentre as várias entradas do labirinto. Enquanto caminho, penso que a organização das salas por vizinhanças confere ao lugar o aspecto de uma pequena cidade de vidro habitada por espectros. Não demora até que chego à encenação de como poderia ter sido o laboratório daquele escritor por quem me interesso.
Sala Murilo Rubião. Fonte: AMR/AEM/CELC/UFMG.
Examino à minha volta, em busca de algo na montagem que capture meu olhar, até que percebo, ao fundo da sala, um quadro parcialmente oculto pela porta aberta de um armário. Dirijo-me a ele e me coloco a observá-lo.
Retrato do escritor Murilo Rubião. Aurélia Rubião, 1937. Óleo sobre tela. 65 x 48 cm. Fonte: AMR/AEM/CELC/UFMG.
Neste retrato, vê-se um homem com o olhar voltado para o livro em suas mãos. O terno escuro, a calvície acentuada, o bigode bem talhado, somados ao cinza esfumaçado que compõe o plano de fundo, contribuem para atribuir certo ar de solenidade à composição. Apesar de tantos elementos, os traços e a fisionomia indicam que ainda se trata de um jovem. Sua expressão, aparentemente tranquila, pouco contrasta com a tensão insinuada pelas sobrancelhas arqueadas. Os olhos semicerrados e a cabeça ligeiramente inclinada para baixo apontam para o foco do olhar: um livro, do qual não se nota título ou autor. A pose do leitor e a expressão compenetrada do retratado me remetem a outra imagem, “Jovem moça lendo”, de Jean-Honoré Fragonard. No entanto, diferente da tematização pitoresca de uma cena doméstica de leitura, feita pelo pintor francês, a cena de leitura do retrato de Rubião parece dramatizar (ou talvez buscasse fixar) um instante decisivo – o contato do indivíduo com uma herança, uma prática e um objeto que irão modelar as condições de narração de sua história futura: a tradição letrada, a leitura, o livro.
Continuo a ler a tela. Noto que, abaixo de uma das mãos, há uma assinatura e uma data: Aurélia Rubião, 1937. As informações fazem com que me lembre de alguns dados e do vínculo entre a retratista e o retratado. Por este período, ela, com seus 36 anos, tinha certo reconhecimento no meio artístico como pintora; ele, jovem nascido em uma família de escritores e letrados, era um estudante de Direito que contava entre 20 e 21 anos, mas já tateava sua poética, ora atuando como jornalista, ora publicando narrativas e poemas em jornais e revistas locais. Se um retrato é como um espelho, ele deve refletir, ainda que de maneira estilizada, aspectos daquele que se encontra diante dele. Isso me faz pensar: teria sido o quadro feito apenas para representar a paixão de Murilo pelo livro e pela leitura? Ou a ideia de Aurélia teria sido construir uma imagem do primo como homem de letras, a fim de que, pelo efeito da contemplação diária da tela, ele afivelasse ao rosto a máscara do escritor? Caso não tivesse título, ele poderia ser “Retrato do escritor quando jovem”.
Após tomar minhas notas, lembro-me de que ainda há mais locais para percorrer. Olho ao redor, a fim de prosseguir a busca, e sou atraído por um corredor, espécie de galeria em que arranjos de retratos e fotografias compõem uma narrativa visual, semelhante a um “túnel do tempo”, sobre a vida do escritor retratado. Outra vez, um retrato do escritor convoca a atenção não só pela imagem, mas pela repercussão que há entre a tela lida antes e estas que se apresentam, agora, ao olhar.
Montagem museográfica do Acervo Murilo Rubião. Fonte: AMR/AEM/CELC/UFMG.Retrato do escritor Murilo Rubião. Petrônio Bax, 1987. Óleo sobre tela. 70 x 60 cm. Fonte: AMR/AEM/CELC/UFMG.
Se o primeiro apresentava um jovem em 1937, neste vemos um homem 50 anos depois. Aqui, o pintor não só dá vida à figura de Murilo Rubião como escritor, vemos o criador em meio a suas criaturas, imerso numa atmosfera que busca remeter o espectador a seu universo ficcional. Posicionado no centro da tela, o escritor tem a cabeça coroada por uma espuma semelhante a nuvens (seria uma alusão a certo aspecto onírico de alguns de seus contos?) Circundando-o, há elementos que figuram sua profissão e que também dão título a alguns de seus textos mais conhecidos. À esquerda, na altura do rosto, alguns livros, nos quais se leem os títulos de sua obra, mesclam-se a um girassol vermelho quase translúcido. Logo abaixo, uma flor (de vidro?), um tinteiro e uma caneta, na qual se lê o nome do escritor. À direita, a cartola, ícone que caracteriza o personagem de seu conto mais emblemático (“O ex-mágico da taberna minhota”), que também é o título de seu primeiro livro. Sem dúvida, este retrato fixa a imagem de um escritor canonizado.
Após a pausa motivada pelo retrato poético de Bax, retomo a caminhada e chego ao local que procurava: a biblioteca e o arquivo construídos pelo escritor ao longo de sua vida. Por um instante, observo o lugar. Livros, cerâmicas, garrafas, fotografias e estantes de madeira dividem espaço com móveis de metal. Resisto a consultar o índice de documentos que tenho comigo e me lanço à procura de alguns fios para esta narrativa.
Reserva técnica do Acervo Murilo Rubião. Fonte: AMR/AEM/CELC/UFMG.
Percorro prateleiras, passando de uma estante a outra. Abro gavetas, repletas de pastas meticulosamente organizadas, das quais retiro e folheio numerosos documentos sem, contudo, encontrar nenhum traço que testemunhe possíveis segredos da escrita dele. Após percorrer quase todo o cômodo, olho para o único lugar que não investiguei ainda: um armário de metal. Ao abri-lo vejo, em seu interior, várias pastas, dispostas de maneira caótica, sem ordem aparente. Observo o conjunto e, sem saber por onde começar, decido consultar todas, uma a uma. Recortes de jornal repetidos, agendas antigas, cadernetas, recibos, carteiras de trabalho, diplomas… Sei que um arquivo se compõe de restos, mas a certeza não afasta a impressão de buscar vestígios de sobreviventes (o escritor? A escrita? A “vida escrita”?) em meio a destroços. Neste momento, deparo-me com algo que provoca minha atenção. Trata-se de uma pasta cinza, de fecho elástico, marcada pela ação dos tempos. Em sua capa, há um pedaço de papel fixado com fita adesiva, no qual se lê “Anotações Antigas para Contos Improváveis 08”.
Pasta “Anotações Antigas para Contos Improváveis 08”. Fonte: AMR/AEM/CELC/UFMG.
Enquanto olho para a pasta, imagino os conteúdos que estariam em seu interior, à espera de minha leitura. Por um instante, divago: e se as anotações que se encontram ali forem as necessárias para comprovar minhas hipóteses sobre o improvável dos contos do escritor? Movido pela possibilidade de desvendar esse e outros mistérios, abro a pasta.
Dentro, folhas de tamanhos variados, dispostas sem ordem aparente, exibem manuscritos e datiloscritos que se assemelham a rascunhos de narrativas. Alguns estão “limpos”, outros possuem rasuras. No conjunto, os textos (já seriam documentos?) apresentam datas que vão de 1937 a 1957; no entanto, também há outros, sem data. Estranho, penso, as outras pastas, as que se localizam nos arquivos, encontram-se organizadas cronologicamente. Já esta, escapa à regra – como o tempo fragmentado, oscilante e fora dos eixos que se manifesta nos contos do escritor.
Coloco-me a folhear o material ali mesmo, de pé. Em meio aos papéis encontro uma lista manuscrita, espécie de índice em que se podem ler 15 títulos de estórias – se esboçadas ou se improváveis, ainda não tenho ideia. Ao lado de cada inscrição, há o que parecem ser os argumentos de cada uma das narrativas. Dentre todas, uma chama minha atenção, a de número 8: “‘O documento” (história de um homem que leva a vida toda decifrando um documento)’”. Ao ler estas linhas, sinto-me tomado pela febre do arquivo, volto a folhear freneticamente as páginas da pasta em busca desta narrativa. Após algum tempo, localizo uma folha sem data, na qual leio:
O documento (parábola). Fonte: AMR/AEM/CELC/UFMG.
O DOCUMENTO
(Parábola) Levou a vida toda decifrando um documento. Palavra por palavra. Cinquenta anos em cima do documento. Um dia, alguém [xxxxxxxxxxxx] lhe diz: — Sabes que levaste a vida toda em cima deste papel, que estás velho e morrerás dentro em pouco. O ancião olha o rosto no espelho, acaricia os cabelos brancos. Pega no documento, sacode-o[,] e volta adecifrá-lo.[3]
Neste texto curto, podemos observar algumas questões: não sabemos se o ancião sabe ler; não é mencionado em que língua o documento é escrito (ou mesmo se é um texto); a origem do documento não é revelada (não sabemos se é público ou privado), assim como seu teor (ou “segredo”) permanece insondável. Mas há duas imagens que despertam (minha) atenção e sobre as quais gostaria de me deter um instante. De um lado, o texto ilegível, que o leitor não consegue fazer falar, pesadelo materializado de todo leitor e pesquisador (principalmente o que lida com arquivos, literários ou não). De outro, um leitor não identificado que dedica sua vida a decifrar algo que lhe escapa à compreensão. Apesar dos esforços, o teor do documento permanece indevassável a seus (e nossos) olhos. Mesmo diante do fim próximo, ele persiste na tarefa de perscrutar, nos intervalos entre as palavras, os sentidos que se alojam no silêncio da página.
Quanto a mim, que estou com esta narrativa nas mãos, ocupo-me da relação entre o documento de escrita e a indicação “parábola”, colocada entre parênteses, abaixo do título. Lembro-me do que disse um crítico, de que “a parábola traz em si a relação com uma outra estória – quando não com a história em sentido estrito” (Alcides, 2008, p. 83). No entanto, a que narrativa este documento se vincularia? Será que o escritor estaria a questionar a decifração como modalidade de leitura? Ou, ao dramatizar o gesto da leitura no texto, estaria propondo uma teoria (ou alegoria) sobre sua própria escrita? Com receio de me esquecer de tantas questões, tomo nota de todas e prossigo com as explorações.
Diante das possibilidades interpretativas que a decifração deste mistério poderia abrir, leio a página outra vez, palavra por palavra. Ao passo que o olho se acomoda, as poucas rasuras presentes na folha me interpelam o olhar, sacudindo-o. Incomodado pelos abalos, que inquietam a leitura, viro a página. Para meu espanto, vejo que no avesso (trama do bordado?) há outra estória, manuscrita, com o título sugestivo de “O mistério”.
O mistério. Fonte: AMR/AEM/CELC/UFMG.
O mistério
Devia ser uma coisa sutil. Um mistério. Todos a entendiame pouca importância [xxx] davam. [xxxxxx]. a ela. Somente a mim incomodava não decifrá-la. Não perguntaria a ninguém, como seria [ ] lógico, porque sabia, de ante-mão, que não me falariam. Tinha que ser mistério apenas para mim. [xxx] Pens[a?] em mil maneiras de descobrir o sentido daquilo tudo, sem [t?]ardar, ou melhor, indagando de tão sutil maneira que ninguém percebesse o que eu desejava[4]
Mais uma vez, um narrador-personagem a quem é vedado o entendimento de um segredo. Ao contrário da aparente resignação do personagem de “O documento”, o narrador de “O mistério” se mostra incomodado por não conseguir decifrar o oculto – que, paradoxalmente, é acessível a “todos os outros” que, estranhamente, não davam importância a tal situação. À medida que leio, outros pontos da narrativa convocam minha atenção: o aspecto sutil do mistério; o ardil de indagar “os outros” sobre o sentido sem que percebessem; o narrador ser o único membro de uma comunidade que não é iniciado nos ritos que permitem conhecer a revelação de que consiste o mistério; a constatação de que “tinha que ser mistério apenas para mim”.
Cada vez mais atordoado pelo mal do arquivo, passo em revista os indícios que coletei até o momento, a fim de organizar minhas reflexões. Em comum, estes textos apresentam duas cenas de leitura que têm, por objeto, algo ilegível. O personagem de “O documento” dedica sua vida à tarefa de ler um texto que, por sua vez, resiste à tradução. Já o narrador de “O mistério” busca “mil maneiras de descobrir o sentido daquilo” que, por algum motivo, escapa ao entendimento. No primeiro, a leitura se repete sem se concluir, como se a inscrição no papel fosse portadora de significados abertos e ocultos (ao modo das parábolas bíblicas, tão caras ao escritor) ou, ainda, como se a trama, aparentemente fechada e calculada, apenas indicasse, paradoxalmente, a lógica de um mundo precário – o nosso ou aquele das ficções de Rubião? No segundo, o mal-estar da personagem ocasionado pela dificuldade de acesso a um segredo pressuposto (o mistério), de ler “uma coisa sutil” partilhada pelos outros.
Tomado de assalto pelos enigmas de meu próprio texto, sinto algo se aproximar – seria o ilegível a partir do qual se move a poética do escritor? Súbito, hipóteses se esboçam. Poderíamos dizer que as parábolas configuram teorias sobre a leitura literária? Ou seriam estas narrativas rubianas figurações de sua escrita, um esforço de refletir acerca de sua linguagem por meio da própria ficção? Ao dramatizar as dificuldades de ler a memória cultural (o “documento”) ou o mundo (a “coisa sutil”), Rubião estaria refletindo acerca da capacidade de representação do texto ficcional, tal como fez em “Marina, a intangível”? E quanto ao protagonista d’“O documento”, leitor “que morrerá em pouco”, mas que persevera obstinado em sua experiência de leitura infinda; de que maneira ele se relaciona com a leitura (e com as ficções feitas a partir) dos arquivos literários? Qual seria a atualidade, para os estudos literários, destes fantasmas (do escritor, da obra, do leitor etc.) que rondam os acervos dos escritores? Talvez…
2ª cena – destinerrâncias, ou quando se mapeia a escuta
É provável que quanto mais avançarmos, menos teremos uma visão geral (Manguel; Guadalupi, 2003, p. VII).
Súbito, alguém interrompe o fluxo de pensamentos: “Senhor, infelizmente está na hora de fecharmos.” Peço um instante, a fim de guardar os papéis consultados e organizar os fragmentos que reuni para sair do texto. Enquanto caminho, reflito acerca da impossibilidade de solver os enigmas e espectros da criação que se insinuam nos arquivos literários. Mas outra dúvida penetra meus pensamentos: como dar a ler esta experiência de escrever a escuta? O mapa do início já não seria suficiente, pois apenas ofereceria uma representação sem vida do espaço literário, sugerindo algo semelhante a um mapa que poderia indicar, a quem o lesse, algo semelhante aos rumos de uma caça a tesouros (e não se trata disso). À medida que a saída da página se aproxima, uma imagem se esboça – a de uma carta náutica. Sim, um mapa destinado não a orientar, mas a conduzir à errância no labirinto de inscrições e vozes de que cada documento ou obra se faz. E com tais palavras, saio, tendo o cuidado de não cerrar as portas (do arquivo e do texto).
*Cleber Araújo Cabral é doutorando em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela UFMG. Pesquisador do Núcleo de Estudos dos Acervos de Escritores Mineiros, da FALE-UFMG. Publicou, como organizador, os livros Leite criôlo: edição fac-símile (2012), Em defesa do patrimônio: correspondência entre Manoel José de Paiva Júnior e Rodrigo Melo Franco de Andrade (2013).
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Fonte: Acervo Murilo Rubião. Série Iconografia – Subsérie Quadros. Acervo de Escritores Mineiros – Centro de Estudos Literários e Culturais. Belo Horizonte, UFMG.
RUBIÃO, Aurélia. [Retrato do escritor Murilo Rubião]. 1937. Óleo sobre tela. 65 x 48 cm. Fonte: Acervo Murilo Rubião. Série Iconografia – Subsérie Quadros. Acervo de Escritores Mineiros – Centro de Estudos Literários e Culturais. Belo Horizonte, UFMG.
Fontes primárias consultadas
RUBIÃO, Murilo. “O documento (parábola).” [s.d.]. Fonte: Acervo Murilo Rubião. Série Produção intelectual do titular. Pasta Anotações antigas para contos improváveis. Acervo de Escritores Mineiros – Centro de Estudos Literários e Culturais. Belo Horizonte, UFMG.
RUBIÃO, Murilo. “O mistério.” [s.d.]. Fonte: Acervo Murilo Rubião. Série Produção intelectual do titular. Pasta Anotações antigas para contos improváveis. Acervo de Escritores Mineiros – Centro de Estudos Literários e Culturais. Belo Horizonte, UFMG.
Notas
[1] Para uma relação dos discursos (a partir dos quais se constrói e) com que este texto estabelece diálogos, consultar as referências, ao fim deste texto.
[2] Siglas de Acervo Murilo Rubão, Acervo de Escritores Mineiros, Centro de Estudos Literários e Culturais, Universidade Federal de Minas Gerais.
[3] RUBIÃO, Murilo. “O documento (parábola).” [s.d.]. Acervo Murilo Rubião. Série Produção intelectual do titular. Pasta Anotações antigas para contos improváveis. Acervo de Escritores Mineiros – Centro de Estudos Literários e Culturais. Belo Horizonte, UFMG. Os trechos entre colchetes visam a transcrever as rasuras, tal como presentes no manuscrito. Quanto às marcações em itálico, estas são de minha autoria.
[4] RUBIÃO, Murilo. “O mistério.” [s.d.]. Acervo Murilo Rubião. Série Produção intelectual do titular. Pasta Anotações antigas para contos improváveis. Acervo de Escritores Mineiros – Centro de Estudos Literários e Culturais. Belo Horizonte, UFMG. Os trechos entre colchetes que possuem interrogação, tais como “Pens[a?]” e “[t?]ardar” visam a informar quanto a dúvidas sobre a grafia dos trechos assinalados. Quanto às marcações em itálico, estas são de minha autoria.
Resumo: Este artigo propõe reconhecer a condição de novela-arquivo em La sobreviviente (1951) de Clara Silva. Estudam-se as distintas modalidades que a ficcionalização do arquivo adota na trama narrativa, para então valorizar sua condição como estratégia de ingresso no sistema literário da região latino-americana, até o momento fechado à escrita narrativa das mulheres.
Palavras-chave: Narrativa latino-americana; arquivo ficcional; mulher; estratégia de ingresso.
Resumen: Este artículo propone reconocer la condición de novela-archivo en La sobreviviente (1951) de Clara Silva. Se estudian las distintas modalidades que adopta la ficcionalización del archivo en la trama narrativa, para luego valorar su condición como estrategia de ingreso al sistema literario de la región sur latinoamericana, hasta el momento cerrado a la escritura narrativa de las mujeres.
Palabras-clave: Narrativa latinoamericana; archivo ficcional; mujer; estrategia de ingreso.
La sobreviviente fue la primera novela publicada por Clara Silva (1902-1976), en 1951.[1] La publicó el sello editorial argentino Botella al mar. Si bien es cierto que la historia de la literatura uruguaya no guarda un recuerdo significativo de esta ópera prima, su estudio crítico y genético puede arrojar luz sobre los modos de articulación y ficcionalización de los archivos latinoamericanos y europeos. Y también sobre la constitución de esta ficcionalización en una estrategia de ingreso al sistema literario por parte de la novela escrita por mujeres.
Tapa de la segunda edición de La Sobreviviente (1966).
En este sentido, inaugura un tipo de novela que se constituye en ficción de su propio proceso genésico. Tanto sus versiones éditas como el amplio dossier genético que gira a su alrededor, permiten reconstruir un proceso en el que cuentan significativamente las marcas intertextuales, que revelan fuentes y conexiones con otros archivos transoceánicos, en un movimiento típico de la literatura latinoamericana.
Esta vocación metanarrativa materializada en la ficcionalización del archivo de La sobreviviente se relaciona a su vez con aspectos autobiográficos de la autora, tales como su experiencia de investigadora en el Instituto Nacional de Investigaciones y Archivos Literarios, fundado en 1948, y que a partir de 1965 pasó a ser el Departamento de Investigaciones de la Biblioteca Nacional de Uruguay. O su condición de esposa del fundador de la crítica literaria nacional, Alberto Zum Felde (1887-1976), así como sus amistades literarias, entre las que se destaca la de Guillermo de Torre (1900-1971), con quien mantuvo una larga amistad signada por la influencia que tuvo en su quehacer literario, de la que da cuenta un epistolario que se extiende en un periodo de más de veinte años.[2] También su papel de gestora cultural que la posicionó como presidenta de la Sociedad Amigos del Arte, como conferencista y crítica literaria.
Pero más allá de estas posibles causalidades, pesa el perfil de una escritura doblemente periférica, por ser latinoamericana y femenina, que obliga al doble movimiento de escritura y reflexión para la comprensión y constitución de la propia identidad escritural. Dicho perfil también conecta con el rasgo constitutivo del sistema latinoamericano vinculado a las redes literarias, cuya convergencia con el contexto explica el modus operandi de su archivo (Maíz, Fernández Bravo, 2009).
La novela se centra en su protagonista, Laura Medina, que es mostrada desde el interior de su conciencia. El conflicto que experimenta se centra en un individualismo que la lleva a vivir encerrada en sí misma, separada de su prójimo, poniendo barreras múltiples, como la del libro – Elegías del Duino (Rilke, 1923) – que lleva bajo el brazo al salir a la calle, o la que se expone en frases como la que levanta ante su amante ocasional: “Me quiero a mí misma”.
Laura Medina sostiene un duelo interno con la otra Laura, un personaje que encarna la idea de que existen otras posibilidades para el ser del personaje y su desarrollo de vida en la novela, recordando el reproche hecho por Sartre a Mauriac, a quien el primero acusaba de que sus personajes no fueran libres sino determinados de antemano por el novelista.[3] Un conflicto que se desenvuelve a través de tres capítulos – “Yo soy Laura Medina”, “Conjeturas” y “Laura contra Laura” –, en el que se juega la identidad del personaje y que finalmente se resuelve cuando la protagonista decide eliminar los límites del yo y fusionarse con el prójimo:
Caían, como frutos podridos después de una tormenta, las idolatrías del Yo (…) Y de la angustia, y de la confusión de su carne y de su espíritu, y del resentimiento, y del asco, y del miedo, saldría milagrosamente recreada otra vida. Otra mujer. Una mujer que afrontara la vida, con sus sentidos claros, sanos. Con la responsabilidad activa de sí mismo, dentro de su tiempo. Sin yo. Sin mí. Con todos (Silva, 1966, p. 132).
De acuerdo a una lógica de duplicación, es posible leer en esta novela la trama de la génesis del personaje y la trama de la génesis de la escritura; la primera a través de la ficcionalización del conflicto entre la existencia de dos posibilidades de identidad para la protagonista; la segunda, a través de la ficcionalización del archivo literario con el que se vincula la novela. Y entre ambas tramas un puente ficcional que permite entrever los entretelones del proceso escritural. Es así que en el pasaje de la primera a la segunda edición de La sobreviviente, se observa la misma tendencia que en el carácter contradictorio de los dos personajes de Laura Medina, porque la segunda edición borra muchas de las marcas que fueron leídas como signo de egocentrismo autobiográfico, bajo la presión de la crítica literaria uruguaya del 45, que no entendió a esta novela en su diálogo con la vertiente beauvoiriana del existencialismo francés.[4]
Un importante número de documentos de la Colección Clara Silva custodiada en el Archivo Literario del Departamento de Investigaciones de la BNU revela la relación estrecha que ella mantuvo con el existencialismo francés y muy especialmente con Simone de Beauvoir. Entre ellos destacan los que refieren a su lectura de Valoración literaria del existencialismo (1948), de Guillermo de Torre. Y los que refieren directamente a Simone de Beauvoir: una dedicatoria inédita en el manuscrito de La sobreviviente, una carta de Clara a Simone y dos respuestas de esta última.
La escritora uruguaya hizo suyo el principio según el que la filosofía y la literatura se relacionan en las producciones del existencialismo, y que Guillermo de Torre destaca citando a Simone de Beauvoir: “Si la descripción de la esencia pertenece a la filosofía propiamente dicha, únicamente la novela permitirá evocar, reflejar, en su realidad completa, singular, temporal, el flujo original de la existencia”.[5] Así es que en carta dirigida a su amigo Guillermo de Torre anuncia el tema de su futura novela a través de la expresión: “la radiografía existencial de un ser”:
(…) Y empecé la novela, no sé si será propiamente una novela o el relato de una vida a través de sus sensaciones. Esa vida bien puede ser la mía. Con sinceridad, sin miedo, allí desfilarán muchas cosas: infancia, amores, viajes, alegorías; con un lenguaje de ensueño y de realidad, no solo de realidad objetiva sino de palabras, haré la radiografía existencial de un ser, su actitud frente a la vida y a sí misma.[6]
La ficcionalización de todos estos elementos revela una modalidad de relacionamiento de la novela con el archivo literario privado y público, caracterizada por la autoreflexividad y la autorepresentación. Dos rasgos que acompañan a la literatura latinoamericana desde sus inicios, en razón de su lucha por la memoria y la identidad, puestas en riesgo a partir de la imposición de la cultura eurocéntrica. Esta última no solo fue un centro de poder impuesto desde la conquista sino también, un centro de magnetismo irresistible para el escritor latinoamericano y todas las lógicas de duplicación atienden a la imagen primigenia del escritor con el archivo europeo en la mano.
Las citas literarias, las postales europeas, las cartas, los registros de autores y libros que integran la trama ficcional de La sobreviviente forman parte de un archivo literario que es sin duda el que poseía Clara Silva en los años 1948 y 49, cuando escribió su primera novela. Por otra parte, si toda novela es parte a su vez de un archivo mayor, en este caso el matiz está en que sus elementos han sido ficcionalizados desde el momento en que pasan a formar parte de la trama del relato como elementos diferenciados e identificados.
Esta estructura semejante a un confuso palimpsesto generó la crítica adversa de los críticos del 45, que señaló la mala asimilación de sus referencias literarias, al tiempo que su exceso de intelectualismo.[7] Sin embargo, la lectura crítica y genética de la novela da cuenta de un principio de convergencia de la vida y la obra literaria, propia de la concepción existencialista, que justifica dicha estructura.
Este palimpsesto está ficcionalizado ya que desde el comienzo del relato queda claro que el archivo literario que recorre sus páginas forma parte de la vida del personaje central, Laura Medina. Así en el primer capítulo “La mañana” los elementos del mundo que esperan a este personaje son “el ropero, los libros, sus vestidos dispersos” (Silva, 1966, p. 7) y ya en la calle se la presenta en su relación íntima con el mundo literario, que funciona como muralla defensiva ante la hostilidad citadina: “Laura llevaba siempre para defenderse del asalto, para poner una cortina de ficción entre ella y aquel mundo, un libro en la mano. La presencia de algún ser mágico, el claro y ardiente equilibrio de un alma. Esa mañana, eran las Elegías del Duino” (Silva, 1966, p. 10).
En este principio de convergencia también alienta la idea de que la literatura puede sustituir a la vida, de que vale más la pena el mundo de la ficción que el adverso mundo real, o si se quiere aún más, que este último también se escribe y se crea como si fuera un libro. En este punto vale la pena recordar la propuesta de Sartre y Simone de Beauvoir referida a que una vida es un proyecto que debe ser construido y moldeado desde la libertad, como una obra literaria. El final de la novela que tenemos entre manos es un claro ejemplo de la plasmación de este concepto, ya que entonces, la protagonista elige “con un esguince imprevisto” transformarse en un ser comprometido con los demás (Silva, 1966, p.90).
Pero no solo en el cierre del trayecto de Laura Medina se percibe esta concepción sino también en los capítulos dedicados a la génesis del personaje, donde se ficcionaliza su construcción, al permitir al lector la observación del “secreto de alcoba” de la creación literaria, en palabras del crítico chileno Alone.[8] En estos tres capítulos, diferenciados tipográficamente por la letra cursiva, se presenta un segundo nivel de ficción que representa el mundo literario, un paso más allá del resto de los capítulos que representan el mundo real.
Aquí se instala el conflicto de la novela en el que las antagonistas son dos versiones opuestas de Laura Medina, una centrada en su yo y la otra en el mundo, una regida por el vacío y la angustia existencial y la otra por la fe y el amor al prójimo. Mientras que la primera ocupa el lugar protagónico en el primer nivel de ficción, la otra emerge en estos tres capítulos del segundo nivel de ficción para decir su disconformidad y luchar por sustituir a su par, cosa que consigue en el final a través de una transformación imprevista, que acontece al modo de una decisión libre, como pedían los existencialistas para el diseño de cada vida humana.
Sin duda, detrás de esta ficcionalización del perfil y del destino de esta protagonista está el problema de la identidad de la mujer y de la escritora. Una identidad que se entiende también como construcción personal, pero a través de la escritura. De modo que en este perfil y destino intervienen los libros y sus autores, el archivo.
A la hora de construir ficcionalmente esta intervención el relato se ubica en el primer capítulo del segundo nivel de ficción, titulado “Yo soy Laura”, una definición de identidad nominal, que presenta como ámbito un archivo literario ficcionalizado a través de una casa cerrada, en torno a la que la otra Laura vaga invisible sin tener acceso a ella. Una casa y un jardín artificiales. Y en ella los autores y personajes que conforman el archivo literario que se desliza por las páginas de La sobreviviente, dando identidad a su personaje: Baudelaire, Elena Mutti, Albertina, Mme. Bovary, Des Esseintes, Joyce, el Barón de Charlus, Morel, Orlando-Orlanda, Raskolnikoff, este último como “la suma de todos. O una síntesis de angustia” (Silva, 1966, p.31). Aparecen en el salón en sus actitudes y ropajes característicos, viviendo hasta comenzar a desvanecerse en corrientes de niebla, que comportan y expresan su naturaleza ficcional.
La traza de la ficcionalización del archivo funciona en base a una impronta de teatralidad, donde la visualidad intensifica su naturaleza ficticia. El gesto y la actitud al ser decodificados trasmiten el rasgo predominante del personaje, ya sea de Baudelaire, encabezando la lista como padre de la lírica moderna, a través de su indumentaria de dandi y en la actitud del poeta maldito: “Apoyado en un “chifonnier”, junto al reloj, vestido con traje negro y amplio, de anchas mangas, corbata de puntas flotantes, pantalón ceñido, zapatos blancos atados con lazos, estaba Charles Baudelaire, estudiando, sombrío, desdeñoso” (Silva, 1966, p. 30) o del “joven Stephen Dedalus Joyce, monologando (mientras se sacaba con un dedo el moco seco de la nariz” (Silva, 1966, p. 31), entre otros.
A su vez, dicha traza se ve fortalecida por la mezcla, dentro del mismo estamento ficcional, de autores y personajes. Interesa señalar que las mujeres presentadas son personajes de las grandes novelas europeas: Elena Mutti – Il piacere, de D’Anunzio –, Albertina – Àla recherche du temps perdu, de Proust –, Madame Bovary – Madame Bovary, de Gustave Flaubert –. Personajes femeninos del canon europeo creados por escritores hombres. En esta muestra del archivo literario ficcional de La sobreviviente, no ingresan los nombres de escritoras mujeres, salvo el de Virginia Woolf, que se hace presente, elípticamente, a través del personaje andrógino de Orlando-Orlanda.
Desde el punto de vista temporal los personajes y autores convocados se ubican entre la segunda mitad del siglo XIX y las primeras décadas del siglo XX. Como es de uso el archivo se cierra para los autores coetáneos, como sucede con la casa de la novela. Los referentes literarios directos de La Sobreviviente, Simone de Beauvoir, Sartre y Henry Miller, sobre el que volveremos, no ingresan en este archivo ficcional y quedan en los entretelones de la trama argumental, sutilmente relacionados a través de citas sin fuente a la vista o de relaciones de intertextualidad, que solo pueden ser advertidas por lectores especializados.
El rasgo de la hermética clausura de la casa y del archivo ficcional que representa, se destaca nuevamente en el momento en que la narración se enfoca, dentro del mismo capítulo, en la instancia en que el personaje de Laura Medina relata cómo ingresó finalmente a la casa, a través de un espejo:
Empecé por ser sólo una mancha pálida en la superficie del espejo. Al principio nadie se fijaba en mí. Pero como me interponía entre la imagen y el espejo, intentaron sacarme. Me frotaron fuertemente. Pero yo persistía agrandándome. No querían admitirme; pero al fin comprendieron que yo era un punto de contacto con la vida, la condensación necesaria en una forma. Entonces me dieron el aliento. Y de todos los sueños y de todas las sensaciones y de todos los movimientos, una sensación, un sueño, un tacto, un cuerpo y sus asuntos; y un alma náufraga y desgarrada (Silva, 1966, p. 33).
De modo que se explicita la dificultad para ingresar al archivo pero también se revela que la clave que franquea el paso es el contacto del personaje con la vida. Con lo que queda ficcionalmente planteada la presentación del archivo literario, su funcionamiento y la fuerza que según la concepción estética de la autora, permite la entrada al sistema. Una fuerza que se centra en la relación de la literatura y la vida, tal como fue expuesta por los escritores existencialistas franceses de su época, y que estuvo presente como principio rector, en la obra de Clara Silva, desde su primer libro de poesía La cabellera oscura (1945).
La ficcionalización del archivo literario constituye un hilo narrativo que recorre toda la novela, con la diferencia de que en el primer nivel de ficción los registros carecen de la teatralidad aludida en los capítulos del segundo nivel. En este primer nivel siempre se dan al modo del registro de títulos de libros y autores o de citas literarias y la diferencia entre ambas modalidades, radica en el reconocimiento explícito de la autoría, que redunda en la canonización del creador. Y desde ya es necesario advertir que en este punto Clara Silva recoge la visión del archivo literario de su época y que por tanto en su novela los canonizados son los que también lo eran fuera de ella. Las citas, las más de las veces, suelen aparecer sin su fuente y si no se trata de pasajes muy conocidos de la literatura bíblica, quedan formando parte de un discurso coral carente de reconocimientos individuales.
A través de un primer plano del registro de títulos y autores se observa que surgen aislados en relación con las acciones o recuerdos de la protagonista o según el procedimiento de las enumeraciones extensas. Un ejemplo de la primera modalidad es aquel en que se contrapone la imagen de la protagonista niña con la de protagonista joven y cada una en relación con un libro, la primera junto a su carpeta de la “Escuela Urbana, Nº 20” y el libro Adelante y la segunda, junto a Les lettres, de Marcel Proust (Silva, 1966, p.41). Ambos registros tienen una filiación autobiográfica, según la documentación probatoria de la predilección de Clara Silva por la obra de Proust y también de su asistencia a la Escuela Urbana Nº 20, radicada en el Archivo Literario de la Biblioteca Nacional de Uruguay.
Por el contrario, las enumeraciones extensas de títulos de libros y autores mantienen una relación más estrecha con el archivo público, medianamente lejos de lo autobiográfico. Así se comprueba en el capítulo titulado “Ciudad”, donde la protagonista, en su reiterado ejercicio de flâneur, se traslada por las calles de una metrópoli, que al cerrar los ojos podría ser París o Madrid y donde luego de la postal de la Place de Vosges y la casa de Víctor Hugo, se sitúa en la librería de una ciudad latinoamericana, que bien podría ser Buenos Aires, ante la oferta indiscriminada de una “selva de libros” que dan lugar a la siguiente enumeración:
En la librería, con una redundancia fatigosa, se apilaban los libros. Desaparecían los libros entre los libros. Sartre. Joyce. Gide. Hugo Wast. Constancio Vigil, Plutarco. Wells. Tres por 10 pesos… A elegir (…) Nunca se había traducido, se había impreso tanto, con esta inquietud vertiginosa. “Por siempre ámbar”… “Las estrellas miran hacia abajo”… “La náusea”, “Flor de durazno”, “La cortina de hierro”, “Las llaves del reino” (Silva, 1966, p. 56).
Una enumeración que aporta a través del título Por siempre ámbar (1944), la presencia indirecta de una escritora estadounidense coetánea de Clara Silva, que no se nombra en La sobreviviente, y cuya identidad es Kathleen Winsor (1919-2003). La novela había sido prohibida en catorce estados de su país, en razón de las escenas sexuales explícitas que presentaba sin ningún tipo de encubrimiento al lector y en los cuatro o cinco años que distaban entre su publicación y la redacción del relato de la uruguaya, seguía siendo un referente encubierto pero referente al fin, en lo que hace a la escritura del sexo que en su momento se consideró pornográfico.
Los autores del archivo que se filtran desde el contexto de La sobreviviente a su trama participan en el conflicto de la novela, que encarnan los dos yoes del personaje Laura Medina. A modo de muestra basta leer la lista de autores que la mitad reprimida de la protagonista demoniza:
Desde la infancia, más aún, desde la sombra de la placenta, me fueron infiltrando el virus amargo de la disconformidad (…) Falsificando la vida. Falsificando los sueños. Falsificando la muerte. Y el destino. Baudelaire, Nietzsche, Proust, Barbusse, Joyce, Gide, Huxley… Tantos. ¡Cómo los odio…! Los quemaría en una hoguera, por crueles, por pérfidos, por destructores… (Silva, 1966, p. 87).
Y en el sentido contrario, en el mismo capítulo “Conjeturas” del segundo nivel de ficción, este otro yo de Laura Medina, reflexionando sobre su situación de otredad, define su identidad sumergida a través de “necesidades respetables, tales como ir a misa, leer a Romain Rolland, acostarse con el marido” (Silva, 1966, p. 88). El nombre del autor de la biografía Mahatma Gandhi (1923), Premio Nobel e ícono del pacifismo y amor universal, divide las aguas del archivo de La sobreviviente, formando parte del conflicto.
Otras enumeraciones apuntan a ingresar en la novela el archivo cultural de la época, así sucede en la caminata de la protagonista, en el capítulo “El niño muerto”, cuando en medio de una multitud se mezclan personajes de diferentes niveles ficcionales y reales, en su punto de mira. A través de este procedimiento se consigue presentar el archivo que ha entrado en el imaginario del personaje, desde su momento histórico: Neruda, Stokovsky, De Gaulle, Stalin, Elizabeth Arden, Gabriela Mistral, el rey Gustavo, Bergamín, Ramón Gómez de la Serna, Churchill, Chaplin, Rita Hayworth, Maritain, Gandhi, Gérard Philipe, aparecen junto a personajes de la novela como el amigo que le traía noticias de Dios y Mariusa (Silva, 1966, p. 96-97).
La misma mezcla de planos se percibe en la enumeración de los arquetipos de la mujer de la época, del capítulo titulado “Condición de mujer”, donde se presentan personajes reales y ficticios, que una vez más tienden el puente entre la novela y su contexto, desvaneciendo las fronteras que convencionalmente separan sus territorios. La lista da cuenta de una selección que si bien en la ficción novelística se atribuye a “los profesores”, pasa sin duda por el filtro de una escritora culta y actualizada, que centra su foco en nombres de procedencia europea: Mme Curie, Marjorie Bloom, Madame Bovary, Ana Karenina, Albertina, Fanny, Helen, Lucy, Gesica, Kio Kio. Una vez más la sola presencia de Gabriela Mistral[9] comparece en representación de las escritoras latinoamericanas, siendo indicio de la dificultad de la mujer a la hora de ingresar al sistema literario de una sociedad que sigue resistiendo desde convenciones patriarcales.
Un autor presente en el archivo de La sobreviviente, pero que recibe tratamiento de ingreso a través de la cita de sus pasajes y no de su reconocimiento identitario, es Henry Miller (1891-1980). Lo que llama más la atención es que la relación con la obra de este autor no solo se revela en la cita en francés de pasajes de Trópico de Capricornio (1939) sino en intertextualidades, que al ser desbrozadas, llevan a concluir que esta novela que causara escándalo y prohibiciones en su momento de publicación, es un referente tan importante para La sobreviviente como lo fue L’Invitée de Simone de Beauvoir. El denominador común es que ninguno de los dos autores tan estrechamente ligados a la novela de Clara Silva se reconoce a través de una identificación nominal explícita.
Uno de los ejes que relaciona a Trópico de Capricornio con La sobreviviente es el relacionamiento de vida y obra. Y con el mismo sentido que supera los límites de lo autobiográfico, para acceder a la representación del ser en el mundo. Más allá de las distancias, es sabida la atención que prestaban por entonces Jean Paul Sartre y Simone de Beauvoir a la literatura norteamericana, de la que explícitamente el primero se reconoce deudor.
El exceso de individualismo lleva en ambas novelas a observar el mundo moderno desde una distancia marginal y solitaria. Una característica que también lleva a ambos textos a abundar en marcas personales, que van desde formulaciones pronominales a actitudes francamente amorales, en lo que hace a la relación con el prójimo.
La transgresión de los límites en lo que refiere al tema del sexo es otro rasgo que acerca a las obras de estos autores, sin querer por esto asimilar a La sobreviviente a las escenas obviamente más obscenas de Miller, pero que enfrentan las escenas sexuales frontalmente y sin el problema de la culpa. En lo que hace a esta cuestión, sirva de ejemplo el diálogo secreto que se entabla entre las novelas a través de la imagen del toro, que suele estar presente en las escenas de sexo protagonizadas por Laura Medina: “Le subía a lo largo de la espalda, como una lengua, como una enorme y porosa lengua de toro, humedeciendo las zonas del olvido” (Silva, 1966, p. 23) y que en Trópico de Capricornio se presenta como “el gran padre de la fornicación, el Padre Apis”.[10] También, la transgresión opera en ambos textos a través de la destrucción de los binomios esposa/puta o sexo/amor, propios del patriarcado.[11]
Otro aspecto del diálogo de Clara Silva con Miller atañe a la ciudad moderna que los protagonistas observan en sus traslados o peregrinajes de flâneur, con el sentimiento inhóspito del que transita por mundos infernales. Paseos que en La sobreviviente cada tanto ofrecen una fuga hacia un pasado que se afinca en las postales europeas que trascienden el tiempo y la muerte, pero que en Trópico de Capricornio no ofrecen ningún tipo de liberación. Se trata de novelas urbanas que presentan los lugares de trabajo de los protagonistas como metáforas de la sociedad moderna, donde se cosifica la vida de los hombres, al punto que solo cuentan como nombres que entran y salen en registros de empleo o de cadáveres.
Las dos novelas también comparten un estilo lírico, que en el caso de La sobreviviente fue visto por los críticos del 45 como una falta al objetivismo del género novelístico. Las isotopías del relato proceden sin duda del discurso lírico en el que Clara Silva fortaleció su instrumento en el inicio de su carrera. El fragmentarismo, el discurso onírico, el flujo de la conciencia, la no linealidad temporal son rasgos que se observan en la estructura del relato y que conectan con la traza lírica de sus dos primeros libros de poesía –La cabellera oscura y Memorias de la nada –, además de hacerlo con la novela de su tiempo.
Finalmente, la punta del iceberg del diálogo de La sobreviviente con Trópico de Capricornio está conformada por las citas que ingresan en la primera novela desde la segunda, en su versión francesa. Citar a través de una edición francesa a Trópico de Capricornio, no solo revela la proximidad de Clara Silva con esa lengua y su cultura, sino también la convergencia del texto de Miller con los libros de los existencialistas franceses, que se daba dentro de su zona de lectura.
La cita ingresa al texto de La sobreviviente, en el capítulo “Ciudad” y se da cuando la protagonista se pregunta sobre su decisión si le llegara el momento de elegir entre su época o el pasado del “decadentismo exquisito”. Es entonces en que se pronuncia decididamente por su época de grandeza y fealdad, de “monstruosidad transformada en belleza” hasta desembocar en el interrogante que la descifre:
“Elle avait, comme toutes les autres, une sorte de sexe personnellment impersonnel, dont elle était inconsciemment consciente. Dédale obscure et souterrain doté de divans et de cosycorners, de niche moelleuses et d’ édredons de feuilles de mûrrier”. Allí reposaba del vacío dinamismo de las ciudades el hijo de la época, en una regresión infra-humana a fuerza de civilización. “Nous avions pour demeure la carcasse de instincts, pour nourriture les mémoires ganglionnaires…”[12]
Se trata de tres citas que son extraídas de un contexto en que Miller narra distintas experiencias sexuales, de modo que las imágenes refieren directamente a los órganos femeninos que el narrador personaje penetra. En el caso de La sobreviviente, el contexto donde se insertan refiere al mundo moderno de las ciudades, que se presenta como “centro oscuro de la materia”. Y sin embargo, la imagen del laberinto oscuro y subterráneo representa en ambas novelas a un mundo regido por los instintos y entre ellos de manera central, por el sexo. El propio Miller páginas adelante escribe: “La amarga experiencia me ha enseñado que lo que sostiene el mundo es la relación sexual” (1996, p. 266).
La misma imagen del laberinto oscuro y subterráneo se constituye en metáfora de la novela de Clara Silva, que se presenta como archivo ficcional, cuyo corpus también adquiere el valor semántico de un cuerpo, en el que la pulsión sexual transgrede la frontera que separa el límite textual de su contexto literario y cultural.
Antes que Roland Barthes teorizara sobre la muerte del autor en 1967, Clara Silva presenta su novela archivo como tejido de citas, en que su discurso se mezcla con el de sus intertextos y en el que su figura de autora renuncia a la individualidad al ingresar en el colectivo. El final de La sobreviviente ficcionaliza esa renuncia a la posesión individual del texto y en este sentido, una vez más, Laura Medina funciona como alter ego que elige su destino de pérdida identitaria.[13]
Clara Silva dio otro aporte al problemático tema de la frontera flexible de la literatura y la vida, a través de la portada de la segunda edición de La sobreviviente, en la que presenta una foto que la retrata de espaldas y cuya identidad solo puede ser descubierta al investigar en su archivo fotográfico personal. Dicha foto forma parte de una serie donde el cambio de postura permite el encuentro con el rostro de la escritora.
Colección Clara Silva. Archivo Literario de la Biblioteca Nacional de Uruguay.
La cuestión de la sobrevivencia no es ajena a la ficcionalización del archivo literario en esta novela ya que cumple la función estratégica de configurar el ingreso al sistema literario, constituyéndose en otro mecanismo de autorepresentación. La configuración de un sujeto de escritora invisible en el sistema-archivo de la época concede a la literatura un poder genésico.[14] Ambiguamente Laura Medina ha transitado por las páginas de la novela, entre personajes inmortales, para luego desaparecer entre la multitud como acontece cuando se cierra un libro. Sin embargo, el personaje sobrevive en la casa de la ficción a la cual entró con la fuerza que le fue dada por su contacto con la vida.
Sin duda, la trayectoria de Clara Silva a través del mundo de la poesía y la literatura en general, explica su discurso metaficcional centrado en la pluralidad de voces de autores, lectores y personajes. Todos ellos constructores de esta obra abierta,[15] que a partir de la renuncia del autor, asegura su sobrevivencia.[16] Pero no debería olvidarse que este desdibujamiento identitario, diseñado desde la textura múltiple de la novela archivo y desde la trama también plural de la génesis del personaje central, tiene una raíz más profunda que se asienta en el lugar de la mujer escritora que no ha sido aún aceptada dentro de la casa cerrada del sistema literario de la región sur latinoamericana. Una situación que la obliga a deambular en la invisibilidad por los márgenes del sistema-archivo adoptando diferentes máscaras y estrategias, sin el lugar fijo de un autor en posesión de su territorio escritural.
Esta fue la cuestión que Emir Rodríguez Monegal, el primer crítico que abrió fuego sobre La sobreviviente, no quiso considerar, por entender que quedaba fuera del límite de la literatura. Sin embargo, señaló su lugar en “la crónica de nuestra historia literaria” y con ello dejó un espacio abierto para su futuro ingreso al archivo:
Por ciertos elementos accesorios esta novela parece a ratos, un roman à clef (…) la misma protagonista podría tal vez ser identificada a la luz de este retrato parcial: El pelo llevado hacia atrás con violencia, descubría sus sienes, y apretándose en un moño sobre la nuca, le daba una graciaclásica griega. Pero quizá no convenga examinar estos elementos; ellos pertenecen más a la crónica de nuestra historia literaria que a la literatura misma. Más vale dejarlos a consideración de algún historiador futuro, si lo hay (Rodríguez Monegal, Marcha, 630, p. 15).
Para Rodríguez Monegal, la novela de Clara Silva parece un “roman à clef” y al sugerir posibles identidades para algunos de sus personajes y para la propia protagonista, pone el foco en el centro temático que rechazó: el conflictivo ingreso de La sobreviviente al archivo literario de la región, a través de su ficcionalización; un tema que conlleva la aceptación de una marca personal con un producto escritural alternativo.
*Investigadora del Departamento de Investigaciones de la Biblioteca Nacional de Uruguay y profesora de literatura iberoamericana en el Instituto de Profesores Artigas. Última publicación: Las poetas fundacionales del Cono Sur. Aportes teóricos a la literatura latinoamericana (2013). El presente artículo es un adelanto del libro Archivos ficcionales: La sobreviviente, de Clara Silva. Edición crítica y genética, en prensa.
Referências
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Notas
[1] Clara Silva nace en Montevideo en 1902 e inicia tardíamente su trayectoria como escritora en 1945, con la publicación del libro de poesía La cabellera oscura. Por este motivo se la ubica dentro de la generación del 45.
[2] Por la importancia que tuvo esta amistad literaria en el proceso creativo de La sobreviviente, el epistolario inédito de Guillermo de Torre dirigido a Clara Silva será publicado en la edición crítica y genética: Archivos ficcionales: La sobreviviente, de Clara Silva, de próxima publicación. Se trata de un conjunto de ochenta cartas dirigidas a la autora uruguaya, datado entre 1943 y 1963, que se conserva en el Archivo Literario de la Biblioteca Nacional de Uruguay.
[3] En “M. François Mauriac et la liberté”, N.R.F., París, febrero de 1939. Y en Situations I París, 1947. Ambos artículos citados por Guillermo de Torre, en Valoración literaria del existencialismo (1948, p.73).
[4] Estudio en profundidad la relación de La sobreviviente y L´Invitée de Simone de Beauvoir, en el libro Archivos ficcionales: La sobreviviente, de Clara Silva, de próxima publicación.
[5] Guillermo de Torre toma la cita de “Litterature et métaphysique”, en Les Temps Modernes, abril, 1946.
[6] D. 2283058.9. Colección Guillermo de Torre. Biblioteca Nacional de España.
[7] Ver: Emir Rodríguez Monegal, “La sobreviviente”, en Marcha Nº 630, p. 15. Mario Benedetti, “El panorama de la producción literaria nacional”, en diario La Mañana, 30 de diciembre de 1962, p. 13. Ángel Rama, “Doble imagen de Clara Silva”, en Marcha Nº 1230, p. 113.
[8] Alone es el seudónimo de Hernán Díaz Arrieta (1891-1984). Publicó “La sobreviviente”, en El Mercurio de Santiago de Chile, el 21 de diciembre de 1952, p. 2.
[9] Gabriela Mistral (1889-1957) fue la primera escritora latinoamericana en ganar el Premio Nobel, en 1945.
[10] El toro sagrado de la mitología egipcia. Cito por la traducción de Cátedra: 1996, p. 269.
[11] En este punto el crítico chileno Alone intuyó la filiación de las escenas sexuales de La sobreviviente, al consignar que la autora podría ser vista como “una Henry Miller con faldas”.
[12] Las tres oraciones de esta cita en francés no están registradas en relación de continuidad en la novela Trópico de Capricornio (1996, p. 59).
[13] Según Barthes “la escritura es ese lugar neutro, compuesto, oblicuo, al que va a parar nuestro sujeto, el blanco y negro donde acaba por perderse toda identidad, comenzando por la propia identidad del cuerpo que escribe” (1987, p. 67). En este punto la escritura de mujeres latinoamericanas se adelanta al concepto que emerge en los años sesenta.
[14] En el poema “El canto de la sangre”, del libro La cabellera oscura se propone como principio ontológico permanente a la voz poética: “y esta voz,/ un clamor desesperado/ de no dejar de ser,/ en la supervivencia/ de su canto.”
[15] En 1962 Umberto Eco publica su Opera aperta donde paralelamente a Barthes postula la idea de que el lector reescribe la obra al leerla, generando el borramiento del autor.
[16] Ya T. S. Eliot en 1921 recordaba la relatividad de la figura individual del autor por estar dentro de una tradición literaria y cultural que le daba significado, en “Tradition ande the individual talent” (The Sacred Wood. London and New York: Methuen, 1986, p. 47-59).
Resumo: Este texto tem como objetivo transportar o conceito de sobrevivência do historiador de arte Aby Warburg (1866-1929) para o espaço literário, em que se valoriza a inserção de formas do passado no presente, por meio da estratégia de rompimento do modelo de temporalidade cronológica, articulado como começo e fim, declínio e progresso. O ato de escrita se configura como ato de leitura da experiência autobiográfica, por meio da transposição ficcional aí processada, o que resulta nos gestos relativos à superação e ao suplemento da vida e à condensação de tempos heterogêneos. Relatos autoficcionais comprovam esse gesto de sobrevivência da vida pelo processo de escrita/leitura.
Palavras-chave: Jacques Derrida; Aby Warburg; arquivo; Silviano Santiago.
Abstract: This text aims to relocate Aby Warburg’s (1866-1929) concept of “survival” into the literary space. The said concept valorizes the insertion of past forms into the present by means of strategies of rupture with the model of chronological temporality, which is predicated on the notion of start and finish, decline and progress. The act of writing is effected as an act of reading of the autobiographical experience by means of the fictional transposition processed therein, which results in the gestures pertaining to superseding and supplementing life and to the condensation of heterogeneous times. Autofictional accounts corroborate this survival gesture of life through this writing/reading process.
Keywords: Jacques Derrida; Aby Warburg; archive; Silviano Santiago.
A grande fantasia (…) é que todos esses papéis, livros ou textos, ou disquetes, já me sobrevivem. Já são testemunhas. Penso o tempo todo nisso, no que virá após a minha morte, quem viria, por exemplo, olhar esse livro que li em 1953 e se perguntará: “Por que ele assinalou isso, colocou uma flecha aqui?” Sou obcecado pela estrutura sobrevivente de cada um desses pedacinhos de papéis, desses traços (Derrida, 2001, p. 31).
Inicio este texto com a citação de Derrida a propósito do rastro de vida e obra deixado nos “pedacinhos de papéis” e nos livros marcados de seu arquivo particular. Trata-se de um recado que assinala sua sobrevivência tanto como leitor quanto como escritor, na esperança de ser lido por gerações futuras que irão revitalizar sua escrita e possibilitar a permanência do traço e da assinatura autoral. Mesmo antes da morte física, o desejo de sobrevivência do escritor diante do legado intelectual já se apresenta como projeto fantasista de perpetuar-se para além da morte. Morte e vida são componentes indissolúveis para o entendimento da sobrevivência, à medida que esta é entendida, segundo Derrida, como sendo “a vida para além da vida, a vida mais do que a vida”. Com esse raciocínio, a dimensão temporal da existência – e do arquivo – rompe com as oposições entre antes e depois, entre vida e morte, pelo aspecto anacrônico conferido às categorias relativas ao passado e ao futuro.
Se, no pensamento de Derrida, o arquivo não trata do passado, mas é questão de futuro, na ação do arquivista em selecionar o que é preciso guardar, corre-se sempre o risco de se estar violentando algo, destruindo o que deveria permanecer arquivado. Nesse sentido, a reconstituição fragmentária do percurso da escrita/leitura do filósofo de seu arquivo não poderá omitir a lição desconstrutora do “mal de arquivo”, a constatação de ser a tarefa infindável, sem limite de tempo e espaço. Como destino, o arquivo se sustenta pela interpretação que lhe propiciará uma sobrevida, por reunir nessa operação o movimento simultâneo de acender/apagar certezas, de ser fiel/infiel às palavras do autor. A própria noção de futuro precisa ser redimensionada no vocabulário de Derrida, à medida que se descarta a divisão temporal entre os períodos, contaminados pela sobrevivência simultânea de passado, presente e futuro. O conceito de devir, instaurado tanto por Derrida quanto por Deleuze e Guattari, responde melhor por esse movimento filosófico no qual “futuro e passado não têm muito sentido; o que conta é o devir-presente: a geografia e não a história, o meio e não o começo nem o fim, a grama que está no meio e que brota no meio, não as árvores que têm um cume e raízes” (Deleuze, Parnet, 2008, p. 33).
O arquivo poderia ser entendido, igualmente, na linha semântica da sobrevivência, como espectral, por se situar entre a vida e a morte, o visível e o invisível, o real e o ficcional. Espectro que se sustenta pelo paradoxo, por se caracterizar além do presente, sempre por vir, sem se prender às instâncias de passado e futuro. Situa-se no limiar do acontecimento, aparecendo e desaparecendo no momento de sua aparição. Nas palavras de Derrida, no livro Espectros de Marx, “Moment spectral, un moment qui n‘appartient plus au temps, si l’on entend sous ce nom l’enchaînement des présents modalisés (présent passé, présent actuel: “maintenant”, présent futur).(…) Furtive et intempestive, l’apparition du spectre n’appartient pas à ce temps là, elle ne donne pas le temps, pas celui-là” (Derrida, 1993, p. 17). Heterogêneo, intempestivo e deslocado em relação ao presente, o tempo do espectro, como da sobrevivência, legitima a existência da leitura como gesto em contínua transformação. Os rastros de Derrida no seu arquivo, a herança legada aos leitores e seguidores de sua obra se constituem como desafio à prática desconstrutora, no sentido de se levar em consideração que no processo de revitalização da escrita exige-se também o deslocamento de saberes instituídos. Cito a passagem de Pensar em não ver, livro de entrevistas feitas com Derrida e publicado pela Editora da UFSC:
Quanto a mim, posso morrer a cada instante, o rastro fica aí. O corte está aí. É uma parte nos dois sentidos do termo: ela procede, ela emana de mim, mas ao mesmo tempo separando-se, cortando-se, desligando-se de mim. (…) O rastro é a definição de sua estrutura, é algo que parte de uma origem mas que logo se separa da origem e resta como rastro na medida em que se separou do rastreamento, da origem rastreadora. É aí que há rastros e há começo de arquivos. Nem todo rastro é um arquivo, mas não há arquivo sem rastro. Portanto, o rastro, isso sempre parte de mim e sempre se separa (Derrida, 2012, p. 120-121).
Percebe-se a associação realizada pelo filósofo entre sobrevivência, rastro e espectro, por constituírem o movimento anacrônico da origem, o ir e vir de acontecimentos que não cessam de deslocar lugares e de incentivar o distanciamento do sujeito perante si próprio. Nesse gesto sobrevivente deixado pelo rastro, o sentido de pós-vida ressurge na sua caracterização espectral, como um fantasma, por mobilizar vida e morte como instâncias inseparáveis. Estanca-se a vida e a morte, num processo simultâneo de sobrevivência, em que se apaga a noção de fim último das formas, assim como se desloca o suposto início dos acontecimentos. Se a vida refere-se ao início, a morte, ao fim, é preciso embaralhar e anacronizar passado e futuro. Palavras, textos, traços desse arquivo exposto à visitação insurgem no presente da leitura efetuada por futuros estudiosos da obra de Derrida. Em resumo, essa proposta de leitura desconstrutora deveria obedecer a determinados princípios inaugurados por uma geração de pensadores que desestabilizaram a compreensão positivista dos saberes e a prisão à ordem sucessiva do tempo. Para Derrida, em particular, a sobrevida corresponde à ideia de se manter, sem vida, num estado de puro suplemento à vida, mas, sobretudo estancar a morte, ação que não a estanca, permitindo, ao contrário, que ela dure: “mais plutôt arrêter le mourir, arrêt qui ne l’arrête pas, le faisant, au contraire, durer.” (Derrida, 1986, p. 152).
Seria ainda pertinente associar o conceito de escrita como morte, desenvolvido por Derrida ao longo de sua reflexão teórica, com o intuito de desfazer essa dicotomia entre vida/morte. Uma homenagem feita por um de seus amigos por ocasião de seu falecimento ressalta essa preocupação em seus escritos, por considerar a morte mola propulsora da própria vida e vive-versa. Não haveria, portanto, razão para celebrar o fim do filósofo, uma vez que sua escrita já anunciava esta ausência como forma de sobrevivência e não de desaparecimento total. Como a escrita, o legado de Derrida funciona como esta meia-presença, comparável ao espectro, à lembrança, ao texto escrito. Nas palavras de Charles Ramond, no texto em homenagem a Derrida, todo texto escrito tem valor testamentário, o que redimensiona a morte para além de sua natureza puramente factual. Na interpretação filosófica, conviver com a morte seria uma forma de relegá-la ao seu lugar de espectro e não de finitude: “En ce sens, tout écrit, comme le dit Derrida, dans La voix et le phénomène, a une valeur testamentaire. Toute la culture est comme un immense testament, tout lecteur est en position d’héritier, et tout auteur à la place d’un mort (Ramond, 2007, p. 88).
Warburg e a sobrevivência das formas
Mais de um século antes da presença de Derrida no gesto desconstrutor da filosofia, Aby Warburg, historiador da cultura e da arte, nascido na Alemanha em 1866 e morto em 1929, em momento importante de proliferação das ideias vanguardistas e revolucionárias – modernidade que se impunha nas várias áreas do conhecimento – recupera o conceito de sobrevivência, o “pós-viver”, entendido como “um ser do passado que não para de sobreviver” (Didi-Huberman, 2013, p. 29).
Como historiador da arte, sua preocupação é menos existencialista e mais metodológica e epistemológica, uma vez que se insurge contra o conceito evolucionista da história, a qual se desloca para a compreensão heterogênea e intervalar dos períodos e das hierarquias culturais. Para Derrida, o conceito de sobrevivência respondia por uma indagação filosófica da existência, ampliando-se para a construção da obra como legado espectral, a partir da ponte entre obra e vida, justapondo morte e vida. Para Warburg, a sobreposição de tempos artísticos e de valores culturais responderia pela construção do arquivo/biblioteca como montagem de livros e de formas distintas.
A reflexão de ambos, no entanto, se apresenta em concordância, no sentido de apontar a importância da concepção de arquivo como sobrevivência e do aspecto anárquico, heterogêneo e fantasmal de saberes que resistem ao tempo e se insurgem, intempestivamente, no nosso presente. Contemporâneo de Nietzsche, Warburg comungou com o filósofo a concepção da arte como potência e força vital, como reflexão sobre o tempo histórico desprovido de seu aspecto positivista e historicista. O intempestivo, em Nietzsche, aproxima-se do conceito de sobrevivência e de devir, por remeter ao ato de agir contra o tempo, levando em conta o gesto de estranheza temporal. O devir não se caracteriza por uma linha contínua e, segundo Didi-Huberman, “precisa, pois, do movimento, da metamorfose: fluxos, refluentes, pretensões sobreviventes, retornos intempestivos” (Didi-Huberman, 2013, p. 29).
É necessário acrescentar que um dos leitores principais de Warburg, o filósofo e historiador da arte Didi-Huberman, desenvolve o conceito de sobrevivência (Nachleben) segundo o trabalho realizado pelo teórico alemão das formas artísticas do Renascimento como revitalização de formas da Antiguidade Clássica. Seu pensamento põe em dúvida a consideração do passado como letra morta, desprovido de força, por estar constantemente emergindo no presente. Os rastros no arquivo de cada época passam a ser citados em momentos distintos, movimento de resistência à noção conservadora de tradição, influência e herança. Rompida a cadeia linear na recepção desses conceitos, elimina-se a certeza de que o que vem depois seria influenciado pelo que veio antes, ou que o progresso cultural dependeria de novas descobertas do presente. A crítica literária há muito tem se desvencilhado dos preconceitos de ordem evolutiva, por não considerar a morte das teorias e seu desaparecimento como condição de seu abandono, desuso ou finitude. Essa posição investe na releitura do presente como meio de apontar o que ainda merece ser reintroduzido como reflexão na contemporaneidade. Torna-se evidente, contudo, a dependência que a academia tem dos manuais escolares com os quais os atuais e futuros professores irão ter de conviver, como a prisão aos estilos de época, a continuidade histórica se instalando como força evolutiva e o emprego da noção de influência como condição de fidelidade a modelos culturais hegemônicos.
A construção do arquivo de Warburg – uma biblioteca com 60 mil volumes e um atlas de imagens intitulado Mnemosyne – contracena com o de Derrida, desta vez por ser dotado, diferentemente, de obras de diversas disciplinas e de conceber um atlas na forma de montagem heterogênea de fotos de peças artísticas e de outra ordem. Se para Derrida, a leitura de seu arquivo pessoal estava vinculada à desconstrução da razão filosófica ocidental, por assinalar a concomitância de vida e morte segundo a proposta existencialista e estética, para Warburg, o interesse seria o legado de uma biblioteca heterogênea e reveladora da visão antropológica/artística de seu proprietário. Em ambos nota-se a preocupação com os deslocamentos dos campos de saber, dos períodos históricos e da ausência de hierarquia dos lugares geográfico-culturais.
Esse raciocínio que incide no gesto de deslocamento é praticado por Warburg em vários sentidos: seja por meio da noção de impureza encontrada nos registros artísticos, indo contra uma “história da arte estetizante”, seja pela montagem de seu arquivo como anarquivo de objetos e materiais que não pertenciam ao cânone estético ocidental. Ao lado de reproduções de fotos de obras da arte, por ex., se expunham em telas de tecido preto selos postais, baixos-relevos antigos, recortes de jornais, moedas com efígies, gravuras, montagem que não obedecia a ordem linear de leitura, por sustentar um espaço híbrido de significação. Mas o principal movimento teórico/vital efetuado por Warburg para o aprimoramento do conceito de deslocamento reside na viagem realizada ao Novo México, nos Estados Unidos, no final do século XIX. Nessa aventura antropológica, o pesquisador se interessa pelo estudo dos índios hopi e dos rituais da serpente entre os índios pueblo. Extrapola, assim, o quadro estetizante da arte e se lança na descoberta de associações entre imagens artísticas da ninfa europeia e da serpente ameríndia, ao condensar a velha Florença com o Novo México. Nessa proposta de construir um determinado saber-montagem, nas palavras de Didi-Huberman, tem-se a abertura para a constituição de um arquivo que aponta as limitações do historiador de arte e acena para as pesquisas pós-colonialistas da atualidade. Essa viagem ao território dos hopi propicia a montagem entre antiguidade, indianidade e cultura popular; embora o pesquisador tenha se pautado pelo encontro de vestígios do Renascimento no universo indígena, recupera sinais de culturas marginalizadas, num gesto de deslocamento do cânone artístico ocidental inaugurado pela cultura europeia.
A experiência da alteridade praticada pelos teóricos os quais desenvolveram as concepções de arquivo cultural encontra no escritor brasileiro Silviano Santiago uma de suas manifestações exemplares. Conhecedor da obra de Derrida, tendo sido o divulgador no Brasil de sua teoria, em várias de seus livros, entre eles, Em liberdade, de 1981, se apropria do conceito de suplemento, ao ficcionalizar o suposto diário do intelectual Graciliano Ramos, ao sair da prisão. Suplemento no sentido de que não pretendeu adicionar à obra de Ramos uma leitura de natureza binária e complementar, mas promover seu descentramento no ato de leitura/escrita. Trata-se de um procedimento que não consiste em adicionar um texto ao outro, mas em suprir sua falta. O conceito de entre-lugar de 1972 será determinante para o entendimento desse espaço intervalar que desloca e movimenta as heranças literárias, revivendo acontecimentos do passado e reintegrando-os ao presente. O crédito do crítico literário a Derrida pela criação do conceito é devidamente afirmado em seus depoimentos, em que conjuga a herança teórica europeia com a lição latino-americana de Borges: “o lugar de observação, de análise, de interpretação não é nem cá nem lá, é um determinado “entre” que tem que ser inventado pelo leitor” (Santiago, 2013, p. 4).
Da obra de Warburg, o escritor brasileiro não tinha conhecimento quando escreveu Viagem ao México, embora convivesse com a obra de Walter Benjamin, herdeiro declarado das teorias anti-historicistas do teórico alemão, principalmente quanto ao desdobramento do conceito de tradução como sobrevida conferida ao original: “Do mesmo modo que as exteriorizações vitais se mantêm intimamente relacionadas com os seres viventes, sem todavia os afetar, a tradução nasce também do original, procedendo neste caso não tanto da vida como antes da “sobrevivência” da obra. Isto porque a tradução é posterior ao original, e, como os tradutores predestinados nunca a encontra na época da sua formação e nascimento, a tradução indica, no caso das obras importantes, a fase em que se prolonga e continua a vida destas” (Benjamin, 2008, p. 27).
Recentemente, em dois artigos publicados no Estado de S. Paulo, no Suplemento Sabático e posteriormente em livro, Aos sábados, pela manhã, Silviano aponta a importância da obra de Warburg para o avanço dos estudos pós-coloniais. Destaca a viagem ao Novo México e recoloca a questão do deslocamento cultural como abertura para reflexões sobre a quebra da hegemonia do pensamento europeu. Não é sem razão que o interesse do escritor brasileiro pelo historiador das artes se justifique pela trajetória ficcional realizada no seu livro sobre Antonin Artaud, em que se ficcionaliza o encontro do ator/autor europeu com a magia dos rituais indígenas do México. O seu descontentamento com o ambiente artístico e intelectual europeu na década de 1930 motiva o encontro com a “terra do sol”, as drogas e o conhecimento de outras realidades até então desconhecidas do continente americano. Pela mediação de um autor francês em viagem à América Hispânica, Silviano ficcionaliza o entre-lugar do escritor latino-americano, à medida que não só escreve o romance/ensaio, como também se insere na narrativa como duplo de Artaud. Ou vice-versa. No artigo citado sobre Warburg, o ensaísta assim se expressa:
Warburg importa o Ocidente clássico para fotografar as imagens sacrificiais da dança da chuva no Novo México e no Arizona. Exporta o Novo México e o Arizona para fotografar as imagens artísticas do ocidente dionisíaco e cristão. O bônus – dado de presente por Michelangelo – é a revista à Renascença florentina. Examina no Museu do Vaticano a escultura grega em que Laoconte e seus dois filhos são estrangulados por serpentes marinhas. (…) Transmite ao leitor efeitos de superposição e de deslocamentos imaginários de imagens. Leiam-se os intervalos. (…) A teoria é o entre-lugar ficcional que reposiciona as imagens do Novo Mundo no ocidente e as deste nas Américas (Santiago, 2013, p. 179-180).
Ao conceito de entre-lugar se justapõe o de intervalo, montagem que aproxima e separa as imagens postas em confronto, formando uma construção compósita feita de associações, deslocamentos e distorções. A “iconologia dos intervalos” em Warburg responde pelo rompimento com a causalidade e a continuidade entre imagens distanciadas no tempo. A posição de Silviano frente à obra de Warburg reside na coincidência em relação ao processo intercultural pautado pelo descentramento e pelo extremo reconhecimento da alteridade. Embora a viagem tenha sido realizada com diferenças – o escritor brasileiro elege um artista francês para chegar ao México, assim como o teórico alemão vai até a América – o diálogo de culturas responde pela defesa de sobrevivência das formas esquecidas e recalcadas. O que o Silviano acrescenta a esse diálogo seria a encenação, pelo romance, da experiência vivida por um europeu em terras do considerado Novo Mundo, com o objetivo de apontar os esquecimentos e desastres provocados pela ação colonizadora.
No intuito de deixar uma reflexão para os leitores deste breve ensaio de sobrevivências, cito uma passagem de Didi-Huberman com vistas a iluminar e servir de ponte para os textos aqui enunciados:
(…) o que sobrevive numa cultura é o mais recalcado, o mais obscuro, o mais longínquo, e o mais tenaz dessa cultura. O mais morto, em certo sentido, por ser o mais enterrado e o mais fantasmático; e igualmente o mais vivo, por ser o mais móvel, o mais próximo, o mais pulsional. É essa, de fato, a estranha dialética da Nachleben (Didi-Huberman, 2013, p. 136).
*Professora emérita da UFMG. Pesquisadora do CNPq. Autora, entre outros livros, de Modernidade toda prosa (em coautoria com Marília Rothier Cardoso), Janelas indiscretas, correspondência entre Mário & Henriqueta (Org.), Crítica cult, Crítica & Coleção (Org. com Wander Melo Miranda) e Sobrevivência e devir da leitura (Org. com Dylia Lysardo Dias e Gustavo Bragança).
Referências
BENJAMIN, Walter. A tarefa do tradutor. Trad. de Fernando Camacho. Belo Horizonte: FALE/UFMG, Viva Voz, 2008.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Devenir-intense, devenir-animal, devenir-imperceptible. In: Mille plateaux. Capitalisme et schizophrénie. Paris: Minuit, 1980.
DERRIDA, Jacques. “Entre le corps écrivant et l’écriture.” Entrevista a Daniel Ferrer, Genesis, n. 17, dezembro de 2001.
DERRIDA, Jacques. Rastro e arquivo, imagem e arte. Diálogo. In: Pensar em não ver: escritos sobre as artes do visível. (1979-2004). Org. Ginette Michaud, Joana Masó, Javier Bassas. Trad. Marcelo Jacques de Moraes. Revisão técnica: João Camillo Penna. Florianópolis: Editora UFSC, 2012. p. 120-121.
DERRIDA, Jacques. Spectres de Marx. Paris: Galilée, 1993.
DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente. História da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Trad. de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.
RAMON, Charles. Hommage à J. D. – ce qui nous revient. Cités, 30, PUF, 2007.
SANTIAGO, Silviano. Literatura é paradoxo. Entrevista concedida a Carlos Eduardo Ortolan Miranda. Disponível em htttp:uol.com.br/ttopico/htm/textos. Acesso em: 06 jun. 2011.
Resumo: Henry Darger foi um colecionador e um ficcionista. Trabalhou exaustivamente com a questão artística, memorialística e com o “mal de arquivo”. Personagem subterrâneo, traumatizado e talvez genial, deixa uma obra e uma história que ainda merece ser investigada e desvelada. Neste texto proponho inventar, inventariar e ficcionalizar a vida, a obra e o projeto heroico de Henry Darger.
Palavras-chave: Henry Darger; arquivo; coleção; ficção.
Abstract: Henry Darger was a collector and fictionist. He worked extensively with the artistic question, memoirs and the “Mal d’Archive”. A hidden artist and a traumatized person —perhaps a genius, he leaves us an incredible work and a touching story that still deserves to be investigated and unveiled. In this paper I propose to invent, and fictionalize his life, work and the heroic project of Henry Darger.
Keywords: Henry Darger; archive; collection; fiction.
1.
Ele lamenta profundamente que a sua vida tenha chegado ao fim. Ele não teve amigos, não teve filhos, nunca conheceu uma mulher. Ele nunca sentiu prazer em desfrutar de uma bela refeição, em fazer uma viagem a uma praia, em conhecer uma pessoa. Nunca gostou de jogar conversa fora, nunca se incomodou com a existência dos outros e nunca se importou com a própria vida. Nunca viveu, nunca amou, nunca foi amado. Mas mesmo assim lastima o inevitável fim. Ele sentirá saudades, muitas saudades, do fantástico mundo que inventariou só para si próprio.
Ele desaparece em 1973. Oitenta e um anos não vividos, mas de profunda imaginação e dor. Ele era uma pessoa reclusa, solitária e completamente isolada do mundo físico. Um ermitão. Um asceta. O maior dos eremitas. Escritor e artista? Ele escondia um grande segredo. Um mistério que o pulsionava a acordar e devotar todas as horas do seu dia durante vários anos. Décadas. Vidas. Um sacerdócio que o compelia a viver, e fugir, da própria loucura. A sua missão na Terra.
E ele ressurge surpreendentemente após sua morte. Seus vizinhos entram em seu apartamento para limpá-lo e descobrem um impressionante mundo. São mais de trinta mil páginas escritas. Milhares de desenhos, cadernos, jornais, revistas. Um outro universo. E nada era sem razão. Nada era por acaso. Nada era contingente. Havia ali, talvez, o maior dos romances já escritos, com 15.145 páginas. Sua autobiografia, da vida que inventou ou que recalcou, com 5.084 páginas, e um outro livro iniciado, mas não finalizado, com 8.000 páginas. Além disso, os vizinhos estupefatos diante de algo que nunca compreenderam, ainda encontraram o registro de mais de dez anos de anotações sobre a temperatura e o tempo. Tudo catalogado e contrastado com a previsão fornecida pelo jornal local, muitas vezes dissonante com as notas. Ali tudo estava ordenado de um modo definitivamente provisório ou de um modo provisoriamente definitivo. Que diferença faz? Tudo era arte. Criatividade. Loucura. O mundo naquele quarto inóspito era mais que infinito. Inumerável. Impossível. Como já dizia Blanchot: “No imaginário reside o infinito”.
E assim viveu alguém que nunca viveu de fato. Mas que se eternizou. Assim é o projeto artístico e enciclopédico de Henry Darger. Com um valor inestimável. Incalculável. Inverossímil. E sem razão alguma.
2.
Ele era católico. Permaneceu temente à invenção de qualquer outro deus. Frequentava a missa com assiduidade. Diversas vezes por dia. Venerava e odiava a religião, mas vivenciava receios profundos: “Será que sou um verdadeiro inimigo da cruz ou sou um santo muito arrependido?”. Tinha medo, muito medo do que a religião era capaz de fazer. Seu corpo é prova viva disso. Ele tem as marcas da fé, da devoção, da santidade dos padres e das freiras cravados em seu cadáver. Ele foi abusado, espancado, subjugado em função de algo que nunca compreendeu. Teria sido culpado por algo que jamais imaginou? O sobrenome de sua mãe, Fullman, teria sido responsável pela tortura? O nome, e a cultura inventada da sua própria mãe, que desapareceu quando ele ainda era muito criança, e de quem ele não guarda nenhuma lembrança, seriam os responsáveis pela sua loucura, pelo seu sofrimento, pela sua herança maldita e pelas perversões católicas tatuadas em seu corpo? A culpa do deicídio, “o seu sangue recaia sobre nós, e sobre nossos filhos” foi sentido por ele, mesmo sem se atinar? Sua família foi convertida à força no passado? Sua mãe assimilou uma outra cultura? Ele, e sua memória, diluíram-se ao longo do tempo? Viveu o esquecimento da aculturação? Por que Deus, padres, freiras, impingiram tanto sofrimento a ele? Ao mundo? Será que, então, a loucura, e a arte, foram a sua única saída?
A verdade ardilosa é que ele apenas viveu recluso. Escondido. Encarcerado na sua própria prisão. Na sua própria arte e vontade de profanar a si mesmo e ao mundo. Um mundo que ele excluiu por vontade e trauma. Um mundo que o descartou, por contingência e crueldade. Ele viveu preso como um menino. Isolado e desconhecido como algum criminoso. Porém foi redescoberto e glorificado como um dos maiores artistas “outsiders” após sua morte. Sua loucura, sua obra, sua imaginação, ilustram diversas questões políticas, institucionais, culturais, religiosas, estéticas. Seu desaparecimento como louco está profundamente ligado ao seu ressurgimento como artista único.
3.
Ele escreveu um romance. O verdadeiro romance. Aquele escrito para nenhum leitor. Aquele que vive, ama, pulsiona, só em busca da verdadeira arte do autor. Mas um autor que não deseja, de forma alguma, criar arte, imponência ou beleza. Autor que escreve pois é só naquele instante que está vivo. Só naquele instante que compreende, e justifica, a razão contingente do seu sangue vermelho, cruel e ridículo, que insiste em correr nas veias daquele que sofre. Artista que deturpa o sentido, o ato, a experiência. Seu romance The story of the Vivian Girls, in what is known as the realms of the unreal, of the glandeco-angelinian war storm, caused by the child slave rebellion, com suas 15.145 páginas, escrito durante sessenta anos (1911 a 1971) é magistral ou terrível? Isso importa? São quinze vezes mais fantasias que as próprias Mil e uma noites, que prometem a eternidade. São sessenta anos de labuta, um evento comparável a Goethe, a um Fausto reinventado. Uma experiência vislumbrando o nada.
O livro narra uma guerra épica entre a nação cristã de Abbieannia e seus aliados, contra os ateus de Glandelinia. Este último, um estado autoritário que deseja perpetrar a escravidão das crianças forçando-as a trabalhar em sinistras fábricas. O autor inspira-se na Guerra Civil Americana, nas alusões aos jovens pobres e urbanos de Charles Dickens, e nos mundos fantásticos de Oz e outras invenções de L. Frank Baum. Assim ele constrói sua criação. Assim ele apresenta todos os problemas que vislumbrou. E assim ele aparece com todas as soluções que deus nenhum é capaz de fornecer.
Nessas quinze mil páginas ele questiona a fé, a bondade, a coragem, além de se recordar constantemente das experiências dolorosas de sua infância, quando viveu em uma casa de “caridade” para meninos em Chicago. Ele, personagem, e também o Salvador do próprio livro, narra suas desventuras no asilo em que de fato viveu. Esse lugar era destinado a pessoas portadoras de deficiência mental. Na cidade de Lincoln, Illinois. E foi lá que o autor/ator/criança foi confinado em sua adolescência. Dor narrada em busca de uma expiação.
Essa sua arte, ou seu fingimento apócrifo, simbolizaria a descrição de seu estado mental interno: uma externalização perturbadora de sua experiência traumática familiar; uma eterna revisitação das cenas horrendas de sua infância, uma tentativa inútil de penitência e expiação. Quase fadado ao esquecimento. Ao desaparecimento. Ao lixo.
Mas em 1973, boom! Ressurreição. Milhares e milhares de páginas redescobertas. Ele era o novo Santiago. Um Arthur Bispo do Rosário ainda mais meticuloso. Um verdadeiro personagem de Borges. O único autor do “O idioma analítico de John Wilkins” e de “Funes, o memorioso”. O novo Lineu, Diderot, D’Alembert. O verdadeiro, único e possível escritor e artista. O inventor da ficção, literatura e de uma outra realidade.
4.
“Era uma vez um menino que nasceu. Nasceu no dia 12 de abril de 1892”. Ele começa a escrever a própria história. O motivo. A razão. A pulsão. E ele ainda não está louco. Somente vive o luto e o sofrimento da memória que se esvai lentamente. “O menino nasceu e não se recorda do dia em que sua mãe morreu e nem quem adotou sua pequena irmã”. Aqui ele começaria um outro W ou a memória da infância.
Ele não se lembra da mãe nem da irmã. Passou a vida inteira em busca de alguma memória que pudesse lhe dar conforto. Desconhece o nome das pessoas mais importantes da sua essência. Desconhece a própria cultura e os valores. Passa a vida em busca da lembrança de um carinho, de um beijo, de um sorriso, de uma explicação. E nem em suas milhares de páginas consegue desvendar os mistérios desse deus que constantemente insiste em abandoná-lo. Sua mãe desaparece e ele tem que ficar com seu pai. Ausente. Duro. Louco.
Ele não fica muito tempo com seu pai. Este é enviado para um lugar em busca de um tratamento para a loucura. Problema comum na época. Questão mal diagnosticada e muito perseguida. Aos oito anos, então, seu pai, muito enfermo para tomar conta do menino, impõe-lhe o caminho do orfanato. Um lugar conhecido ironicamente como “A missão das mulheres da piedade”. E lá é um horror. Uma abominação. Um inferno. Um estupro. Foi lá que ele descobriu a cor do seu sangue. A hediondez e a beleza, da religião. Foi lá onde ele sentiu a culpa dos seus antepassados. O sangue recaindo sobre seus ombros.
Mas ele também perturbava seus colegas. Além de sua presença constrangedora, ele emitia barulhos, e fazia gestos, que molestavam todos. Por quê? Nem ele sabe. Ele tinha o rosto do crime atribuído injustamente ao seu povo. Ao povo que nunca nem sequer conheceu. Assimilação total? Não. Muito mais que isso.
E inserido nesse inferno, recebe a pior das notícias. A notícia de que o sonho da chegada de seu pai, salvando-o do mal, da perseguição, da dor e da loucura, nunca mais seria possível. Nunca. Jamais. A morte de seu pai, e de seus sonhos ainda calcados na realidade, era eterna. “Eu não chorei. Não consegui. Eu senti uma tristeza tão profunda, que nem consegui derramar algumas lágrimas. Senti uma dor tão terrível. Eu preferia ter chorado, se tivesse conseguido”.
Assim ele se encontra sozinho no mundo. Inteiramente abandonado. Desassistido. E ainda é odiado pelos colegas e pelas freiras. E ainda lhe atribuem um outro pecado. Pecado que o enviará para um lugar ainda pior. Que fará com que ele se recorde desse abrigo com saudosismo.
5.
Eles o culpam por algo natural. Normal. Banal. Algo que todos sempre fizeram e fazem. Mas que aborrece os religiosos, porque eles se sentem profundamente atraídos. Um desejo maldito. Proibido. Pecaminoso. Um maravilhoso desejo que eles reprimem, mas que praticam continuamente nos subsolos, nos porões, no submundo da vida. Longe dos próprios olhos.
Assim justificam sua expulsão do primeiro orfanato. Assim eles lhe atribuem a loucura que nunca mais abandonará seu mundo. Assim deixam registrado o motivo: “Formulário”: “At what age and in what manner was any peculiarity first manifested? Self abuse from six years. Is the child very nervous? Yes. State any peculiar habits the child may have. Self abuse. Is the child given to self abuse or has it ever been? Yes. What cause has been assigned for its mental deficiency? Self abuse. Is it considered congenital or acquired? Acquired. Is the child insane, or has it been pronounced insane by a physician? Yes.”
Pronto. Ele é louco por se masturbar. Por exibir seu falo proibido. Por se expor ao prazer. Mas ele só descobre essa culpa anos depois. Inicialmente disseram-lhe que ele tinha um problema no coração. Seu coração estaria no lugar errado (assim como sua mente e seu falo?). “I was taken several times to be examined by a doctor, who on the second time I came, said my heart was not in the right place. Where was it supposed to be in my belly?…I did not know it at the time, but now I know I was taken to the doctor to find out if I was really feeble-minded or crazy…Had I known what was going to be done with me I surely would have run away”.
Hoje ele sabe que foi levado ao médico, não para que fosse procurado o lugar do seu coração, da sua alma, da sua paixão, da sua culpa, mas para confirmarem a loucura que sugeriam habitar seu corpo. Aquele corpo endemoniado. Infectado pela busca do próprio prazer. Do prazer que excitava os outros. Que contagiava o gozo dos religiosos. E isso é extremamente perigoso. É necessário esconder. Pecado. Transgressão. Perversão. Assim ele teve que ser despachado para um outro lugar. Longe dos olhos, e do olhar, da suposta sanidade.
Ele foi enviado para uma clínica de crianças com problemas mentais. Ali eram todos loucos, esquizofrênicos, perigosos e poetas. Mais de mil e quinhentas crianças habitavam aquele lugar. Ali eles não eram tratados. Eram apenas ameaçados, desprezados, escravizados. Trabalhar. Trabalhar. Trabalhar. “Só o trabalho enobrece?” Será? “Estaria me tornando nobre, santo e casto labutando todos os dias durante dez horas? E sem fazer nada, nada de útil? Cercado por pessoas, que perdiam a gana, o sentido e a vontade de viver?”
Ele ficou nesse asilo para loucos durante sete anos. Labão? Jacó? Verdade, poesia ou ficção? Porém só houve crueldade, nada de recompensa ao final. Ele só viveu a terrível e profunda saudade de uma história que nunca contou.
Finalmente ele foge do asilo e vai trabalhar como limpador de chão num hospital em Chicago. Trabalho que realizou durante toda sua vida. Trabalho que lhe fez sofrer muito. Muitas vezes chegou até a imaginar que o orfanato fosse o Paraíso. Aqui também ele é maltratado. Subjugado. Depreciado. Nada bom acontece na sua vida. Nunca acreditou que a vida fosse um presente de Deus.
Então, em 1909, ele resolve criar o próprio mundo. O grande projeto de sua vida. Uma tentativa de ludibriar a realidade e satisfazer a si próprio. Tem início o projeto enciclopédico de escrever, e ilustrar, uma imensa epopeia. Quinze mil páginas. Quinze mil sonhos multiplicados, recriados, rebuscados. A vida que viveu foi só um rascunho pífio da nobre literatura que se propõe a fazer.
Ele começa a colecionar revistas, gibis, jornais, figuras, tudo. Ele aprende a ilustrar, desenhar, recriar. Ele copia e reinventa imagens e ilustrações. Ele descobre uma técnica própria. Ele reproduz livros, histórias e nomes que gosta. Ele se inspira em O mágico de Oz, A cabine de Tom, Dickens, Penrod.
Mas ele sabe muito bem do personagem de Scrooge, de Dickens, “um velho pecador, extorsionário, violento, ganancioso, avarento, ambicioso e sovina”. Aquilo aliena sua alma. Aquilo se choca com seu ser. Com o seu “eu”. Com a sua busca. Ele se perde ainda mais. Mais e mais ele já não sabe quem ele é.
Em 1917 ele se junta ao Exército. Mais uma terrível experiência. Ele tem que abandonar o agradável mundo que estava criando e enxergar coisas que não queria conceber. Guerra. Morte. Estupidez humana.
Ele é dispensado do Exército por um problema na visão. Observava o mundo de forma diferente demais. Nada dali podia ser real. Possível. Plausível. Seus olhos miravam outras vidas. Outros caminhos. Milhares e milhares de outras páginas. Assim sua obra, em função de uma vida impenetrável, vai surgindo lentamente.
6.
Em seu romance ele se lembra de um inimigo terrível. O inimigo que será responsável pela escravização das crianças. Inimigo com quem ele, Darger, personagem de si mesmo, vai lutar contra. Manley, na história e na vida, era seu dibouk, aquele que o perseguiu, importunou, molestou.
Mas ele também, surpreendentemente, teve um amigo. Um parceiro. Uma alegria para enfrentar o mundo. Woody Shloeder. E ele e o amigo foram os fundadores de uma instituição de proteção das crianças. Eles eram os salvadores, os heróis, os grandes guerreiros lutando contra as injustiças da Terra e do Céu. Combatendo com voracidade o maldito Manley.
Ao longo de sua vida e obra, Darger dedicou-se a blasfemar e idolatrar um Deus desconhecido. Ele respondeu à injustiça divina através da sua obra, visitando o sofrimento nos personagens cristãos. A maioria dos seus personagens são crianças. Algumas inocentes. Outras nem tanto. Ele se preocupa com a teodiceia. Sua obra surge como uma explicação última para o problema do bem e do mal, e ele se representa como um santo virgem e justo.
7. Self abuse era conhecida como uma prática malévola de masturbação insana. Um crime. Em meados do século XIX, a loucura como resultado de “autoabuso” tornou-se uma crença popular e figurou nas categorias de insanidade moral. Era um diagnóstico importante, porque a masturbação era uma expressão comum de sexualidade. E isso era um problema que devia ser combatido.
Sexualidade, masturbação, loucura: atribuições bem judaicas que habitavam o imaginário popular na época. Darger sabe muito bem disso. Sente e vive a culpa, a perseguição, a imposição da loucura. A sexualidade lhe sai dos poros. Ele quer. Precisa. Gosta. Mas é impedido. O gozo lembra-o dos espancamentos por que passou.
E ele tem uma ideia. Talvez uma forma de compreensão da criminalização do prazer. Ele constrói um mundo em que a mulher é completa. Em que não há culpa. Ou teria construído essa mulher/menina por completa ignorância em relação ao outro? O que saberia ele das mulheres? Apenas que, em forma de freiras, abusaram constantemente dele? Teriam elas se exposto alguma vez? Ou ele apenas experimentou o prazer, e a dor, por meio de surras, de penetrações e perversões? Como entender o outro? Assim ele representa a mulher/menina que não conhece. Elas aparecem, milhares e milhares delas, com um falo. Um pequeno falo. Um falo guerreiro. Essas heroínas são chamadas de Vivians.
As Vivians têm pênis porque elas representariam a Igreja? A culpa, a perversão, o abuso e a falsa castidade? As Vivians são o exemplo mais explícito de mimetismo de imagens católicas. Suas descrições e imagens adulteradas. Assim ele representa a beleza, a coragem, a santidade e a perversão. As Vivians são vítimas de torturas e também as responsáveis. As Vivians representam um paralelo em relação à violência extrema e sexualizada imposta aos corpos femininos presentes na tradição medieval. Assim Darger brinca com a construção da santidade fálica dessas meninas. Ele elabora o mistério de suas qualidades aparentemente sobrenaturais. Ele dá atenção à beleza física em vez do comportamento. Ele discute a perfeição ficcional. A perfeição da mulher com pênis.
Já que nenhuma mulher nunca poderá escapar de seu próprio corpo, ele impõe uma santidade ainda mais marcante. A tentação do diabo reverbera através do corpo e da sexualidade. Assim, em seu mundo mágico, as meninas assumem esse estranho papel. Elas são personagens diferentes. Inusitados. Distintos de tudo que já fora concebido. Não havia nada que elas não conseguiriam realizar. Todas elas, figuras metafóricas de ninfas, amazonas, crianças, possuíam essa pequena espada. A mulher/menina, a relação sexual, a completude, existiam, de fato, em seu mundo.
8.
“Nessa história as crianças são escravizadas há mais de quarenta anos. Crianças, separadas de seus pais, são obrigadas a trabalhar exaustivamente, sem receber um centavo, e em condições terríveis de vida”. Assim mistura vida e obra. Lembranças e recalques. Sofrimento sublime.
Ele se recorda das irmãs de caridade ao longo de seu trabalho. Que caridade era aquela? Uma caridade que só lhe causava angústia. Medo. Desprezo. Adulteração. Ele foi violentamente violado pela certeza da boa-fé. Da fé divina. De um deus que só o fez sofrer, no corpo, o crime perpetrado dos outros.
As crianças, no entanto, aparecem muitas vezes alegres. Felizes. Sempre a brincar. Talvez com um olhar angelical. Tímido. Reservado. Infantil. Mas quando são pintadas nuas, algo ressoa como uma punição. Um castigo divino. Elas sentem culpa. Há uma maldição em seus retratos. Há sofrimento. Já os meninos nus são colocados na história para serem sacrificados. Humilhados. Blasfemados. As crianças, meninos e meninas, foram sequestradas de seus lares. Tiveram suas roupas arrancadas. Foram amarradas em árvores esperando a crucifixão. A expurgação do pecado que não têm. E ele, Darger, seria o Salvador, o Mashiach, dessa miséria toda.
Mas ele não entende. Não compreende o motivo da dor que teve que passar. Ele frequenta com ardor as missas. Muitas missas. Um santo? Um santo arrependido? Um demônio recuperado? Um ser humano comum? Inocente e malicioso como uma criança?
Agora ele gosta de crianças. Sente uma atração inexplicável por elas. Sempre sentiu? Mas o que é esse desejo? Santo ou demoníaco?
Quando muito jovem, nunca sentiu atração pelas crianças. Elas viveram, com ele, naqueles infernos. Elas sofreram a mesma dor do esquecimento e da tortura. Mas, ao crescer, percebeu a pureza e a verdade que nelas se escondiam. Começou a desejar algo que não compreendia. Assim seu mundo foi criado para elas. E ele era o Salvador, o Escolhido, o Messias das crianças esquecidas, órfãs e maltratadas.
Em 1917 ele até tentou adotar uma criança. Mas negaram-lhe. E a única forma que encontrou em tê-las ao seu lado foi através da coleção exaustiva de fotos. Um Lewis Carroll reinventado. Carroll colecionava fotos de crianças nuas, mas as retratava vestidas. Darger colecionava fotos de crianças vestidas, mas as retratava nuas. Nuas e completas, sempre com a presença do falo. Anjos? “Não há nada de mais esplêndido, mais bonito, mais sublime, nas criações humanas que os desenhos e desejos dos anjos”. Por isso a invenção das Vivians.
Anjos eternos: “But to give the reader ease of mind I would say never worry [about-JM] them. Violet and her sisters seen the end of the war and the glorious effects of the victory, and Heaven knows how long they lived after that. But in this story where people and children are so good, angel possessed children, for angel possessed they were, do not die until they go to heaven alive. They can be killed of course, but do not die naturally. They are in the same position as people in the Oz land, and angel possessed children stay children until they go to heaven and then they are most beautiful children ever imagined.”
E nesse outro mundo criado ele compõe músicas. Acordes. Arcanjos. Ele sabe de tudo que acontece em seu mundo. Ele contabiliza todos os mortos, todas as batalhas, todas as brigas, guerras, casualidades. Ele sabe o número de canhões, de armas, de personagens, de invenções. Ele apresenta um relatório dos valores empregados nas batalhas, dos imóveis conquistados e perdidos, das fronteiras criadas e roubadas. Ele sabe todos os nomes dos generais, guardas, famílias, histórias. Nomes. Nomes. Nomes. Tabelas, muitas tabelas de datas, batalhas, conquistas. Ele é o verdadeiro Perec?
As meninas retratadas sempre são mais corajosas que os homens. Por quê? Porque elas são completas? Qual o motivo de sua admiração pelas meninas? Pelas guerreiras? Pelos anjos?
As meninas-anjos são belas. Ele perscruta por elas: “Nunca se conseguiu pintar a beleza, já que ninguém nunca a viu na realidade”. A realidade, que ele não conhece, é a menina sem pênis. Mas ele almeja mais. Ele de fato pinta o que imagina. A perfeição. A completude. A relação sexual.
Ele fala das meninas-anjos, mas estaria falando também da possibilidade artística? Do artista em busca do seu complemento? Qual é o sentido da arte? Qual o sentido de seu legado? Ele fez algo com intuito de fazer arte? De construir algo belo? Ele se preocupou com a beleza estética? Ou ele fez tudo isso para se livrar dos fantasmas? Para fugir da lembrança? Para escapar do seu desejo pecaminoso? Ou apenas para viver inserido na sua própria criação?
9.
E ele, também, inventa um outro personagem para fugir de si próprio, e até do mundo fictício que concebe. Ele é Henry Dargarus, nascido em São Paulo, um lugar que julgava ser especial, alegre, feliz. Um lugar, talvez, onde crianças não fossem perseguidas, escravizadas e abusadas. E nem que precisassem guerrear constantemente. Um lugar encantado pela beleza da inocência, da utopia e do sonho. Um lugar que ele não conhecia, mas que imaginava ser mais que perfeito. São Paulo seria um dos seus muitos reinos do irreal?
Ele, como legítimo artista, mente, subverte, subtrai. Ele vai ao padre da Igreja e diz que foi abusado sexualmente por uma linda italiana de dezessete anos que, além de corromper seu corpo, rouba-lhe a carteira. Ele descreve a mulher-menina, como uma heroína má, que o subjuga e o descarta. Quem foi ela? Qual foi seu sonho? Qual o motivo da invenção? Teria sido ela uma mulher completa?
Ele se vê diante da loucura. E não sabe como ela o ataca. Ele busca significados. Significantes. Uma menina então é notícia em todos os jornais. Ela foi assassinada. Estuprada. Dilacerada. Sua foto circula. Sua foto é tocante. Henry abraça sua dor. Annie Aronburg, a menina que habita o realms da realidade é transportada para o reino do fantástico. “Annie Aronburg foi assassinada e estuprada por ser a líder de uma rebelião de crianças”. Em seu mundo uma enorme guerra começa em virtude do assassinato da menina.
Ele representa Annie Aronburg e pergunta “O que é estupro? Violação? De acordo com o dicionário significa desnudar uma menina, cortá-la e observar seu interior”. Ele não sabe. Fantasmas habitam seu corpo. Sua mente. Seu falo. Ele observa as mulheres/meninas/anjos de dentro. Dentro de si. Violando constantemente seus monstros.
No livro, In the realms of the unreal, “a inocência vive a constante sombra do perigo”. Ele próprio, já louco, sabe do maniqueísmo em seu mundo. “O poder de Henry Darger de representar a beleza é proporcional ao seu poder de representar o hediondo”. Ele busca o crime e o sublime.
Ele vive uma luta constante por encontrar seu lugar perdido. Ele quer entender porque a vida lhe foi tão cruel. E porque ela é tão horrenda para tantos. Como a religião explicaria isso? Como não blasfemar: “Quando era jovem, nos dias de fúria, queimava várias imagens de santos, e golpeava a cara de Cristo”. Ele luta contra a religião por toda a vida, mas nunca consegue abandonar a fé.
10.
Em 1953 Henry Darger começa a redigir diários com eventos meteorológicos. “Os meus diários do tempo são mais confiáveis que os repórteres que preveem algo que nunca acontece”. “Hoje faz sol. Às 10 am 12º. 13º às 11 am. Um pouco mais de 13º de 15 às 17h. De 12h às 14h 13º. Ventos do leste. 21h faz 9º”. Contingência. Acaso. Vontade divina? Fracasso. Ele dedica-se ao tempo. Ele lê a previsão do tempo no jornal e a compara todos os dias. Confirma todos os erros. E isso o castiga. Ele desafia Deus, ou qualquer tipo de previsão? “Ele disse que choveria hoje. E onde está a chuva? Porque ele diz chuva quando nem um pingo de água cai do céu? Ele passa por um idiota. Será que ninguém nos céus outorgou que não há como prever sempre o tempo? Os Céus não permitirão as palavras da Bíblia”. Henry tomou notas do tempo, todos os dias, várias vezes ao dia, e discutiu exaustivamente com a previsão, durante dez longos anos.
Listas. Listas. Listas. Previsões pífias. Explicações inúteis. Tentativa de controle da contingência. Será que um mundo que viveu Auschwitz, que fez com que pessoas desaparecessem e sofressem, pode prever alguma coisa? Ele sabe que não, apesar da tentativa de controlar o mundo que cataloga.
11.
Ele nunca conversou com ninguém. Nunca se sentiu confortável em olhar alguém nos olhos. Nunca conseguiu interagir no mundo “real”. Nesse mundo que só lhe trouxe motivos dolorosos. Traumáticos.
Será que a loucura, o autismo, o Asperger de Darger, foi adquirido em função da dor? Do sofrimento? Ele se tornara um solitário por opção ou tinha, de fato, modificado suas estruturas mentais em função do sofrimento?
Tudo isso está escrito e apagado nas suas entrelinhas. Quinze mil páginas de um romance. Trinta mil páginas de escritos. Tudo para manter o mundo utópico e infantil. “Você acredita que, ao contrário das outras crianças, eu nunca quis me tornar um adulto? Eu gostaria de ser uma criança para sempre. Infelizmente sou um adulto, e um velho próximo da morte”.
E, perto de deixar a vida terrena, foi levado para o mesmo asilo no qual seu pai ficou, e morreu, anos atrás. Deixou para trás seu mundo, suas páginas, suas letras, suas crianças, e suas invenções.
Henry não sobreviveu muito tempo. Ao abandonar suas palavras, seus desenhos, seus sonhos preferiu partir. 13 de abril de 1983, um dia depois de completar 81 anos, Henry desapareceu.
Alguém teve uma vida mais solitária que ele? Alguém teve uma vida mais rica que ele? Não viveu, não amou, não saboreou a falsa realidade de vida. Mas ele redigiu trinta mil páginas, milhares de desenhos, inúmeras histórias, sofrimentos e alegrias incontáveis. E lá ele reinou. Foi o Salvador e o Mashiach. Foi o criador e o destruidor. O que, então, é mais rico? A realidade, que não existe, ou a ficção, que insiste em ser desacreditada?
“Sempre foi a minha maior alegria sentar e observar as princesas Vivians, suas maneiras elegantes, sua beleza, suas delicadezas. Tudo isso me ajudou a compreender o mistério das meninas, coisa que nenhum livro nunca conseguiu explicar. Elas me amaram. E eu as amei”.
Darger nos revelou, portanto, o mistério das meninas. Da mulher. Da mãe. Dessas meninas que aparecem retratadas com um pequeno falo.
* Vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura 2013 com o livro Antiterapias e vencedor do Prêmio Capes de Melhor Tese de Letras/Linguística do Brasil em 2011, versão do livro Literatura e Matemática: Jorge Luis Borges, Georges Perec e o OULIPO. Pesquisador Visitante na Universidade de Harvard (2012-2013), pós-doutor em Teoria Literária pela Unicamp (bolsa Fapesp) e pós-doutorando em Literatura Comparada pela UFMG. Doutor em Literatura Comparada e Doutor em Língua, Literatura e Civilização Francesa (UFMG/Lille 3).
Resumo: O artigo revisa uma trajetória de estudos do autor sobre os processos de singularização de imagens e objetos em relação com as biografias de colecionadores, para evidenciar os elementos que configuram frames colecionistas, em arranjos situacionais. A seguir, analisa três obras artísticas contemporâneas que exploram o potencial desses frames na elaboração de roteiros e enredos de narrativas fílmicas e literárias e estabelece correspondências entre as mesmas. Das correspondências estabelecidas, conclui-se que os frames colecionistas reproduzem ilusões situacionais de contenção dos sentidos de realidade e ação, mas podem ser ressignificados em ilusões coletivas, que abrem o sentido de realidade para novas possibilidades de ação.
Palavras-chave: Colecionismo; objetos; frames colecionistas; obras artísticas.
Abstract: The article reviews a trajectory of author’s studies on singling processes images and objects in relation with the collectors biographies, to show the elements of frames collectors in situational arrangements. The following examines three contemporary artistic works that explore the potential of these frames in the development of scripts and plots of filmic and literary narratives, and establishes correspondences between them. The established correspondences, it is concluded that the collectors frames reproduce situational illusions containment of reality senses and action, but can be reinterpreted in collective illusions, which open the sense of reality to new possibilities for action.
A relação entre coleções e biografias dos indivíduos é um tema que atravessa minha trajetória de vida, desde a infância, e refere-se também à trajetória do objeto de investigação que me trouxe ao tema aqui discutido. A trajetória deste estudo começou quando faleceu minha avó, em 1995. Dona Anézia era uma senhora de 84 anos, então. Nascida em Natividade da Serra, um pequeno município na Serra do Mar, da zona rural do Vale do Paraíba, no estado de São Paulo, onde passou a infância e a adolescência, se mudou para Taubaté, na mesma região, quando casou, e ali permaneceu até falecer. Beata fervorosa, devota de Nossa Senhora da Imaculada Conceição e de São José, era também costureira e dona de casa. Após os momentos de dor pelo seu falecimento, meu pai procedeu um inventário das poucas posses da avó. Entre vários objetos pessoais que ele separou, despertou-me imensa curiosidade uma coleção de estampas de santos (chamados santinhos) que ela guardava em uma caixa, junto a fotos de família, várias pagelas do popular Calendário do Sagrado Coração de Jesus e alguns poucos livros de doutrina católica e de difusão de histórias de santos. Solicitei o material para mim e o levei para casa, onde o li, classifiquei e sistematizei, para uma primeira interpretação daquelas imagens e textos.
No conjunto, os materiais permitiam compor um diário da vida da avó, notadamente influenciada pela intensa dedicação aos princípios religiosos do catolicismo. Percebi que os tempos de sua vida – ou ciclos vividos – foram contados e destacados em pagelas do Sagrado Coração de Jesus, guardados segundo a importância dos acontecimentos ou dos textos impressos nos versos das pagelas. Outros acontecimentos, como nascimentos, primeira comunhão de parentes, aniversários, casamentos, falecimentos e missas de 7º dia, estavam registrados em uma infinidade de santinhos que ela manteve preservados, alguns por dezenas de anos. Outros santinhos e imagens que ela dava para parentes, ou recebia dos mesmos, com dedicatórias extensas, juntamente com algumas fotos de missionários com quem ela manteve contato, durante vários anos – em suas atividades de coletora de dízimo ou de coordenadora da catequese na Paróquia da Imaculada Conceição, próxima da sua casa – possibilitavam compreender o processo de sua formação religiosa e sua inserção em uma rede de contatos, onde atuava como intensa difusora dos mesmos princípios católicos que professava. Entre outros achados, deslumbrou-me a ideia de que as imagens religiosas eram um poderoso veículo de mediação para as trocas sociais que ela tanto incentivava.
Desde esse primeiro contato com os significados dos ciclos de vida registrados por dona Anézia em sua coleção de santinhos, optei por pesquisar e refletir sobre a relação reconhecida entre esses elementos. Essa opção resultou em processos de investigação variados sobre a relação entre imagética e religião popular, onde busquei configurar as variações de um campo de produção de sentidos que orienta o ethos religioso (Lopes, 2010).
O desdobramento desse campo de produção foi, gradativamente, se abrindo e articulando com outras esferas de ação e reflexão, desde as correspondências das práticas de colecionismo com os ciclos de vida dos colecionadores, às formações culturais das coleções como repertórios de memória individual e coletiva, e aos agenciamentos que os colecionadores operam desses repertórios em processos de pré-patrimonialização cultural, no contexto das políticas contemporâneas de valorização de bens materiais e imateriais.
No conjunto das produções anteriores, firmou-me a percepção de que as coleções guardadas pelos indivíduos, com sentidos pessoais, estabeleciam relação com registros de memória ou algum registro de permanência das coisas, em certo ciclo de vida, como suportes para a comunicação em processos de interação, de alguma forma[1].
Nessa orientação, pude perceber que as pessoas projetam um sentimento de apego ou afeto às suas coleções, constituído na dinâmica biográfica a condicionar o sentido de preservação e guarda dos objetos. Isso ocorre porque, à medida que separamos certos objetos do seu contexto “natural”, transformamos esses objetos, atribuindo-lhes propriedades que os distanciam de outros objetos, com propriedades distintas; a atribuição de sentido impressa a tais propriedades é que define e constitui as possibilidades de correspondência que as coleções expressam com os acontecimentos da vida e seus significados, impelindo os indivíduos a dedicarem cuidados necessários à sua manutenção. Esse processo cria uma familiaridade com os objetos. Trata-se de uma forma de extrair o objeto de seu contexto e de aproximá-lo de um contexto ou ambiente personalizado, metamorfoseando suas propriedades a partir do sentido de familiaridade, o que, acrescido de uma perspectiva de duração, adquire valoração e é utilizado como bem de marcação social (Douglas, Isherwood, 2006). Esse apego, ou afeto, é uma forma de valorização decorrente da familiaridade que se estabelece com as coleções e constitui o que poderia denominar de frame colecionista[2].
Assim, mesmo percebendo que o colecionismo apresentava uma diversidade grande de estímulos e intencionalidades, tornou-se importante enfatizar que essas práticas devem ser pensadas em razão da biografia das pessoas, como sugere Kopytoff (2008), quando analisa as relações entre a biografia dos indivíduos e a dos objetos que eles adquirem, como processos de singularização. Para esse autor, a mercantilização dos objetos ocorre na “área homogênea das mercadorias”, enquanto a singularização ocorre na “área extremamente variada das avaliações privadas” (Kopytoff, 2008, p. 118-19).
Desde a constituição de um bem colecionável, a passagem de uma área para outra acontece na medida em que a inserção dos objetos em situações biograficamente determinadas torna-os “culturalmente sinalizados como um determinado tipo de coisas” (Kopytoff, 2008, p. 89) que adquire singularidade. Isso implica pensar que, na configuração de uma toponímia das coleções, ou das experiências e vivências dos colecionadores, os objetos são percebidos ou pensados nas maneiras pelas quais se exteriorizam tais singularidades.
A questão colocada nessa díade constituída pelas coleções, que oscila entre as formas de mercadoria e de bem cultural, corresponderia então ao conflito contemporâneo entre a produção e a singularização dos objetos, “causando o que parece ser anomalias cognitivas, inconsistência de valores e incertezas para a ação” (Kopytoff, 2008, p. 111). Ou seja, assim como os objetos adquirem biografias no processo de singularização relacional que estabelecem com seus possuintes, eles também moldam as biografias dos sujeitos, pela canalização dos impulsos individuais que os condicionam como bens culturalmente singularizados.
Essa díade operacionaliza um imperativo social de desempenho que condicionaria as performances dos atores, ao produzirem, apropriarem ou manipularem os objetos, de forma a colocar em situações liminares os diversos elementos simbólicos e os próprios atores sociais aí envolvidos, em modelos a serem seguidos ou transgredidos (Yúdice, 2006).
Os objetos colecionáveis e a formação do self colecionista: entre a guarda e a exposição
Além da percepção que associa coleções a biografias dos indivíduos, a investigação da correspondência entre coleções e ciclos de vida dos colecionadores evidenciou que, em certas situações de passagem entre tais ciclos, ou frente a mudanças ocorridas na duração de um ciclo, o frame colecionista pode sofrer alterações, ora atualizando a identidade de uma coisa colecionada, em novas propriedades, ora diversificando as coisas colecionáveis, de forma a ressignificar as mudanças vividas (Lopes, 2010a).
Nas investigações realizadas, constatei que as coleções que se diversificaram na forma de exteriorização dos objetos colecionáveis guardam histórias particulares e afetividades constituídas em interações diversas, que se confundem com a trajetória biográfica dos colecionadores; já as coleções que mantiveram identidade entre tema e objetos restritos a uma forma de exteriorização guardam lembranças de um ciclo vivido pelos colecionadores, embora também valorizados afetivamente. Ampliando agora essa percepção, busco enfatizar que essas formas de exteriorização e afeição se diversificam na razão pela qual as coleções possibilitam aos indivíduos constituírem redes de sociabilidade, e vice-versa. Assim, compreendo que o sentido atribuído a tais coleções extrapola sua correspondência com um ciclo de vida em que se originou, adquirindo novas significações, incorporando novas referências e amadurecendo junto com seus proprietários[3]. Esse é o sentido impresso em várias histórias associadas com as peças das coleções, segundo os indivíduos pesquisados. Nesse sentido, a percepção das formas de exteriorização expõe-se como um recurso discursivo, pois a prática de colecionar tende à comunicação. Entretanto, esse recurso abafa um movimento de percepção contrário, mas complementar, de interiorização de si em relação com a interiorização dos objetos. Esses movimentos complementares são constitutivos do self colecionista.
Para Mead el mundo en que vivimos es un terreno de objetos sociales: objetos cuya existencia está implicada en nuestra propia experiencia como “self”. La constitución del self-como-objeto, la identificación del “self ” como centro de actividad y el objeto como otro centro de actividad se dá siempre como identidad de respuesta (Domenéch, 2003, p. 27).
Exemplos disso encontrei na disposição organizada dos objetos das coleções pelos espaços domésticos e próprios dos colecionadores. Uma constante nos casos coletados, em que as coleções são regularmente expostas, a organização desses objetos é condicionada por tipificações estabelecidas nas redes dos colecionadores, reforçando os sentidos apreendidos nessas interações. São coleções racionalizadas, como descreve Marshall (2005), mas essa racionalização se torna possível pela mudança dos sentidos que se estabeleceram inicialmente entre os colecionadores e seus outros significativos (os pares nas interações em torno das coleções), para um sentido de negociação daqueles com um outro generalizado (Mead, 2004), ou organizado (aqueles que reconheço como pares potenciais, a partir dos significados de suas ações interpretados por tais frames).
Já as coleções que permanecem guardadas referem-se ao esgotamento do sentido de colecionar, interrompido com o fim de um ciclo de vida ao qual os objetos colecionados correspondiam, em ação. Sem identidade de resposta com essas coleções, as mesmas se ausentam dos centros de atividade que constituem o self dos indivíduos, em seus novos ciclos de vida. Nesses casos, as coleções repousam em gavetas, caixas, pastas, ou outros locais, e o apego ou a afetividade estabelecidos com elas podem renovar-se periodicamente, conforme as lembranças pessoais as atualizem ou exijam. Daí que certos adultos, por exemplo, queiram afirmar-se como outros significativos para seus filhos, na mesma busca por fazer interessar um motivo de colecionar, como seus pais lhes incentivaram, mas sem encontrar receptividade. Provavelmente porque, para os interesses que regulam o centro de atividades dos seus filhos, os objetos apresentados não se apresentem como referenciais atualizados para constituir concepções e sistemas de afirmação de uma vontade compatíveis com a experiência contemporânea.
Nesse sentido, pode-se retomar a homologia buscada, no início deste estudo, entre imagem e coleções de objetos.
La “cosa” física existe en tanto que objeto percibido u objeto manipulado, nunca antes. Como objetos percibidos existen en el tiempo, pueden ser objetos distantes; como objetos manipulados son reales, existen, están exclusivamente en el presente. Aunque um objeto esté distante a mi mano o no esté a mi alcance físicamente, su realidad sólo puede ser experimentada en y a través de un acto, aunque sea un acto que alcanza o construye el futuro […]
La transición de la distancia a la experiencia de contacto se dá cuando el individuo asume una “actitud reflexiva” hacia su percepción del objeto (Domenéch, Iñiguez, Tirado, 2003, p. 27-28).
Trata-se de um processo de interiorização do indivíduo na interação com a ordem ou a dinâmica material da cultura, que constitui sua identidade de ação: tocar, manipular e compreender os objetos, compreendendo a si nessa interação. Analisar tal interação implica reconhecer “[…] un papel clave en la construcción y mantenimiento de la realidad, y, en definitiva, observar como la relación del self con el mundo físico se configura como relación social. […] Los objetos son relevantes porque permiten la definición de un “self” encarnado o corporeizado dentro de un ambiente concreto” (Domenéch, Iñiguez, Tirado, 2003, p. 21-22).
Enfim, essa atitude reflexiva com as coleções permite compreender a implicação da dinâmica dos bens materiais e imateriais na produção das sociabilidades características dos ciclos de vida dos indivíduos.
Desde essa perspectiva, buscarei empreender, aqui, outra variante destacada das investigações anteriores. Trata-se de perceber que a implicação acima pode auxiliar a compreender, também, a ambivalência entre presença e ausência que caracteriza a relação entre os colecionadores e as coisas colecionadas, mediadas por modulações da realidade figurativa (Francastel, 1993) que produzem alternâncias entre imagens figuradas e não-figuradas (Aumont, 1995; Debray, 1995). Nesse encalço, seguirei a orientação de Chanquía (1998, p. 9), que se apropria da noção de “contratos de visibilidade”, de Jean-Claude Passeron (1991), para expressar “aquello que guía la recepción de una imagen por parte de un público, proveyendo a los sujetos, atrapados en dichos contratos, de un ver y un decir que marca su recepción de una obra determinada”.
A análise situacional dessa concepção recorre à descrição de três narrativas artísticas cujos roteiros ou enredos são elaborados sobre a relação entre os selfs e os frames colecionistas, nas interações interpessoais ou públicas: os filmes “Un cuento chino”[4] e “A coleção invisível”[5], e o livro “A coleção particular”, de Georges Perec (2005).
Arte e frames colecionistas: entre o visível e o invisível
O filme Um cuento chino discorre sobre o inusitado encontro e a convivência de Roberto e Jun. Roberto é o proprietário de uma loja de ferragens em Buenos Aires, com hábitos rígidos e compulsivos. Solitário, acorda toda manhã, toma café com pão sem miolo e começa a trabalhar, convivendo com fornecedores inescrupulosos e clientes neuróticos e chatos. Ao final do expediente, retira-se para sua casa, contígua à loja, faz sua refeição rotineira e começa a ler jornais encomendados de diversos países de língua espanhola, procurando notícias absurdas que lê e depois recorta para colocar em um álbum. Geralmente bebe algo depois e dorme sempre às 23 horas. A casa de Roberto tem um pátio cheio de bugigangas das quais ele não consegue se desfazer[6]. E além do hábito de recortar e guardar notícias de jornal, Roberto também encomenda e coleciona pequenos objetos de cristal, guardados em um móvel da sala, junto com a foto de sua mãe, já falecida, e que ele visita toda semana no cemitério, levando flores.
Jun é um chinês que, após a morte repentina da noiva, causada pelo choque de uma vaca que cai do céu sobre um barco onde ambos estavam, em um lago da província de Tsuchen, abandona sua vida de pintor de brinquedos artesanais na China e resolve mudar para a Argentina, em busca de um tio (ta puo) que já residia no país, com o endereço do mesmo tatuado no braço.
Enquanto Roberto passava uma tarde descansando perto do aeroporto e observando decolagens e aterrissagens de aviões, o recém-chegado Jun é jogado para fora de um táxi, após ser roubado pelo taxista. Sem dinheiro e sem falar espanhol, Jun aproxima-se de Roberto pedindo ajuda e aí começa a relação tumultuada dos dois. Roberto é um sujeito cheio de manias, que só tem um amigo, que lhe traz os jornais encomendados, e tem uma cunhada (Mari) que, após o falecimento do marido, se apaixona por Roberto, mas é sempre educadamente rejeitada. A convivência com Jun vai perturbando insuportavelmente sua rotina, mas ele é um bom sujeito e não tem coragem de abandonar o chinês à própria sorte. Assim, ele busca resolver seu dilema recorrendo à embaixada chinesa, na busca do tio de Jun.
Enquanto o tio não é encontrado, a convivência dos dois personagens vai expondo situações problemáticas, pela ausência de diálogo e diferenças culturais. Em um dado momento do filme, Roberto e Mari descobrem em um entregador de comida chinesa a possibilidade de comunicarem-se com Jun. Assim, aspectos da vida de uns e outros vão se desvelando pela mediação do entregador e os fios que tecem a trama do filme vão se esclarecendo. Perto do final do filme e após uma crise de convivência mais séria, Roberto chama o entregador para comer com ele e Jun e pede que traduza a conversa entre ambos. Nessa última conversa, Jun questiona seu hábito de ler e colecionar recortes dos jornais, ao que Roberto busca o álbum de notícias e explica que coleciona notícias absurdas, que retratam o quanto a própria vida é absurda e sem sentido. Jun responde, então, que para ele tudo tem sentido na vida, inclusive a morte da noiva.
Nesse momento do filme, que explicita e sintetiza o roteiro muito bem traçado antes, Jun questiona o que levou Roberto a iniciar essa coleção. Essa pergunta o leva a expor sua biografia. O pai havia migrado da Itália, fugindo dos horrores da segunda guerra, e se estabelecido na Argentina, com a loja de ferragens. Quando Roberto já era jovem, explode a Guerra das Malvinas e ele se alista, sem o pai saber. Após “a derrota humilhante dos argentinos” (sic), Roberto retorna para casa e descobre que o pai faleceu logo após recortar uma notícia de um jornal italiano que ele assinava, onde constava uma foto de Roberto no campo de batalha. O acontecido marca o jovem Roberto que, perturbado, vai dormir às 23 horas, como sempre o faria, dali para adiante.
Diante da insistência de Jun de que tudo tem sentido na vida, Roberto folheia o álbum de notícias que colecionava e começa a ler algumas das mais inusitadas, para o convencer. Nessa sequência, lê justamente a notícia da morte da noiva de Jun, pela queda da vaca que veio do céu. A vaca teria caído de um avião de ladrões de gado em fuga, que foi atingido por tiros de camponeses armados. Para estabilizar o avião, os ladrões liberam a carga e, absurdamente, uma das vacas atingiu os dois noivos que passeavam romanticamente em um barco. Após ouvir a história, Jung conta que essa era a história dele e deixa Roberto atônito, não acreditando na coincidência. Após essa cena, o filme encaminha-se para um final redentor de ambos. No caso de Roberto, ele se abre à possibilidade de relacionamento com Mari e a uma vida com menos obsessões.
Aqui, importa destacar que o hábito colecionista de Roberto se inicia com um evento crítico (o falecimento do pai que vê sua foto no jornal), quando estava com 19 anos. No filme, apesar de ser um adulto perto dos cinquenta anos, Roberto ainda mostra ater-se ao elemento inusitado da ruptura causada pela morte do pai, que o levou a iniciar a coleção, desdobrada depois na coleção dos objetos de cristal, tão apreciados pela mãe dele. As duas coleções possuem propósitos distintos e complementares: a coleção de notícias atende a propósitos dele – ou talvez, à sua insistência em mostrar que nada tem propósito na vida – enquanto os objetos de cristal são colecionados para a mãe, ou em memória dela. Não é à toa que a crise mais séria no relacionamento perturbador com Jun se dá após o mesmo ter quebrado, por descuido, o móvel que guardava esta coleção, reduzindo os objetos a cacos.
Todas as manias de Roberto revelam, ao final, reproduzir um trauma causado pela situação da perda do pai, o que desencadeou uma lógica circular e pessimista de perceber a realidade como destituída de propósitos. Dessa forma, sua coleção tinha o sentido paradoxal de evidenciar e reforçar constantemente a ausência de sentido da realidade. Fechado em sua coleção, Roberto fechava-se às possibilidades da realidade, e sua casa e sua rotina eram reflexos disso.
O filme A Coleção invisível narra a busca de uma coleção famosa de gravuras e desenhos empreendida por um proprietário de loja de antiguidades. Beto é um homem perto dos trinta anos, filho de um casal proprietário de uma tradicional loja de antiguidades no Rio de Janeiro, que vive despreocupado e frequenta festas e casas noturnas com amigos. Um dia, o pai falece e a família descobre que a loja está passando por uma crise financeira. Beto se vê forçado a assumir a loja e buscar alternativas, mas não se reconhece com sensibilidade para isso. Nessa busca, ele e um empregado da loja revisam os registros dos negócios realizados pelo pai e descobrem recibos de venda de uma coleção de gravuras e desenhos de um artista brasileiro, feita há trinta anos para o colecionador Samir, um rico proprietário de fazenda de cacau, em Itajuípe, no sul da Bahia.
O artista que produziu as gravuras se tornara muito famoso e a coleção, em consequência, se tornara valiosa. Beto se lembra de histórias que seu pai contava sobre Samir, fazendeiro do interior, rico e gastador, e presume que poderia adquirir a coleção para revendê-la, imaginando que o colecionador a tivesse adquirido como investimento, ou que estivesse desatualizado de seu valor. Seguindo essas possibilidades, Beto viaja até a cidade de Itajuípe.
A viagem descortina para Beto vivências do interior do país, com suas personagens e as privações sociais geradas pela economia decadente do cacau. Nesse cenário, aproxima-se de um adolescente local, que o guia pela cidade e a região. Essa relação lhe propicia conhecer Saada, única filha de Samir, que administra a fazenda do pai. Descobre que a fazenda fica longe da cidade e está em crise, também, devido a constantes pragas de bruxas na lavoura, e que Samir está vivo, mas velho e cego, vivendo recluso na fazenda.
Beto se apresenta a Saada e conta seu interesse pela coleção. A mesma reage com indiferença e desprezo, acusando-o de ser mais um explorador da capital, interessado em lucrar com a coleção do pai, que está velho e doente, e sugere que ele vá embora. Frente à resistência de Saada, Beto resolve fazer incursões à fazenda, na tentativa de encontrar o próprio Samir, mas sem sucesso. Acaba por conhecer a esposa de Samir, que reage com a mesma indiferença e resistência, impedindo-o de conhecer o colecionador e a coleção, que seria a última coisa de valor que restara àquele. A mulher informa Saada do ocorrido e esta ameaça Beto com uma arma, caso se aproxime novamente da fazenda.
Desanimado com o fracasso de seu empreendimento, e comunicado que sua mãe estava adoecendo, Beto volta ao Rio de Janeiro. Porém, sem encontrar outra alternativa para a crise da loja, resolve realizar nova viagem a Itajuípe. Dessa vez, a estratégia utilizada para acessar Samir passa por conhecer Saada, mulher bonita e sozinha, de quem passa a aproximar-se regularmente. Os diálogos com Saada descortinam novas percepções sobre a vida local, mas a resistência e a desconfiança dela e da mãe acerca de seu interesse na coleção permanecem. Uma de suas incursões à fazenda, entretanto, propicia um encontro inesperado com Samir, que aparece de pijama na varanda da sede da fazenda. Beto aproveita o momento e se apresenta a Samir como filho do proprietário da loja que o mesmo tanto frequentou, no passado. No diálogo, fala sobre as histórias que o pai lhe contava sobre a amizade dele com Samir e de seu interesse por conhecê-lo. Samir reage com simpatia, afirmando que pensava estar morto para o mundo, e aí se inicia uma empatia entre ambos. Durante a conversa, a esposa de Samir aparece e questiona a presença de Beto, mas o contato já estava estabelecido e Samir simpatizara com ele. Como haviam conversado sobre as gravuras e desenhos adquiridos pelo colecionador, Samir o convida para jantar e conhecer a coleção. E aí as situações anteriores se entrelaçam.
A noite do jantar, na fazenda, é movida por diálogos saudosistas sobre a relação de Samir com o pai de Beto, que se estabeleceu durante os anos em que o colecionador ia adquirindo as gravuras e desenhos que possuía. Entre as viagens para o Rio de Janeiro e a aquisição das peças da coleção, Samir fala para seu interlocutor que foi desenvolvendo nessa relação uma sensibilidade para apreciar as expressões artísticas contidas nas peças, que mesmo depois de cego é capaz de descrever de memória. Nesse momento, pede à filha que traga a coleção para mostrar a Beto.
Saada se retira e logo retorna à mesa de jantar com um grande álbum, entregue ao pai. Samir passa o álbum a Beto, pedindo que o abra e folheie devagar, para ele comentar as expressões de cada peça. Para a surpresa de Beto, o álbum está repleto de folhas brancas. As cenas que seguem são de esclarecimento, em dois sentidos que se emaranham como sequências alternadas.
O primeiro sentido emerge da cumplicidade que se forma, entre Beto, Saada e a esposa de Samir. Enquanto Samir descreve os traços, os motivos e a composição sublime impressos nas expressões estéticas de cada peça do álbum, eles entreolham-se, sem dizer uma palavra, denunciando o vazio do álbum. O segundo sentido emerge da admiração que todos dirigem a Samir, especialmente Beto, pela capacidade de lembrar cada detalhe das gravuras e dos desenhos que não mais estão ali, e ainda maravilhar-se e sensibilizar-se com essas expressões, como se ali ainda estivessem.
Beto desloca sua atenção para Samir e vai folheando o álbum, enquanto ouve atentamente os comentários do colecionador. Fecham-se, assim, os círculos de negociação e cumplicidade entre os que enxergam, sem ter o que ver, e aquele que não enxerga, mas interiorizou a capacidade de ver, e preserva a capacidade de descrever o que acredita, ou imagina, estar ali presente.
A sequência final do filme mostra Beto, Saada e a esposa de Samir conversando na fazenda. Saada explica que as gravuras e desenhos foram vendidos, aos poucos, para saldar dívidas que se acumularam na crise da fazenda. Elas agradecem a Beto pelo silêncio que preservou Samir de uma grande decepção e se despedem. Beto sai, sensibilizado pela história e para novas buscas.
Até aqui, algumas distinções se projetam dessas descrições e merecem destaque. Trata-se dos arranjos que se formam daquele papel chave dos objetos para a construção e manutenção da realidade, enfatizados por Domenéch, Iñiguez e Tirado (2003), e que configuram o frame colecionista como arranjo situacional de um self que se encarna ou assume corporeidade em um ambiente concreto, através dos “contratos de visibilidade”.
Em Un cuento Chino, a coleção de notícias absurdas (imagens não-figuradas) e a dos objetos de cristal tornam-se um fator importante para a configuração do frame colecionista – formado pela compreensão do sentido de realidade do protagonista e pelos processos mnemônicos que orientam a organização e a representação do ambiente – e para a estruturação do self do colecionador. A recursividade com que tais objetos se atualizam e se apresentam torna-se outro elemento importante para a compreensão desses processos, uma vez que eles são progressivamente superados e sua representação passa a ser passível de exposição (comunicação) pela presença de um não colecionador, com suas desastrosas intervenções e a impressão de seu sentido de realidade sobre os mesmos processos. Expressando de outra forma, as coleções de Roberto tornavam recursiva sua representação de ausência de sentido nos acontecimentos e nas relações, marcada pelo evento crítico que as originaram. Ao aceitar uma presença exógena ao “seu mundo” (Jun) e se (in)dispor a interagir com a alteridade que ela manifesta, uma nova estrutura do self se projeta como possibilidade de abertura a novos sentidos. Assim, a influência de um elemento exógeno desarticula os arranjos do frame colecionista que aprisiona o protagonista e o liberta para novas possibilidades de interação.
Por outro lado, o filme A coleção invisível mostra que o mesmo padrão de recursividade do frame colecionista tem a capacidade de afetar, ou contagiar, o self de um protagonista exógeno que se envolve em seus arranjos, reforçando-os simultaneamente: o colecionador que se pensava morto para o mundo e o comerciante de arte que não se acreditava sensível para o ramo.
Essas situações, porém, se invertem na maneira como nelas são estabelecidos os “contratos de visibilidade” das coleções. Ao expressar aquilo que guia a recepção dos objetos, nas interações dos personagens, as coleções provêm os indivíduos de distintas formas de ver e de dizer algo sobre elas. E acompanhando a orientação de Chanquía (1998), ainda resta compreender como os frames colecionistas se apresentam e guiam a percepção pública das imagens, como objetos colecionáveis.
O livro A coleção particular, de Georges Perec[7] (2005), apresenta os elementos que permitem compor uma compreensão ampliada dessa percepção, na medida em que o autor elabora uma trama narrativa que expõe os processos de publicização das coleções de arte, nos quais os “contratos de visibilidade” subvertem as formas de ver e dizer algo sobre as mesmas.
Coleções e contratos de visibilidade na publicização dos objetos de arte
O livro de Perec, já no início, expõe o mote de uma trama desenvolvida em minúcias e atrai a atenção do leitor para a elaboração de seu enredo. Perec descreve o ambiente fictício de uma grande festividade germanófila realizada em 1913, em Pittsburgh, na Pensilvânia (EUA). Entre os eventos da festividade, ocorria uma exposição de pintores, em que se destacava uma obra, A coleção particular, de um pintor americano de origem alemã, Heinrich Kürz. Entre os vários artistas da exposição, o quadro estava exposto em uma sala que reunia obras da coleção particular de um rico empresário local do ramo de cervejas, Hermann Raffke, também alemão imigrado para os EUA. Esse ambiente é narrado a partir da repercussão da exposição na mídia impressa, descrevendo notas especializadas publicadas em vários jornais e revistas, que ora destacavam as personalidades políticas e empresariais presentes na exposição, ora destacavam a coleção de quadros exposta.
Entre as notas publicadas, destaca-se a impressão que o quadro de Heinrich Kürz causou. Uma nota curta explica se tratar de uma pintura encomendada por Hermann Raffke, que o retrata “sentado em seu estúdio de colecionador, diante de alguns de seus quadros preferidos” (Perec, 2005, p. 14). Outra nota, bem mais descritiva e analítica, apresenta detalhes do quadro e exalta efusivamente a perícia do pintor em reproduzir mais de cem quadros que estão distribuídos no estúdio retratado, detalhando três deles. O autor da nota elogia a capacidade do pintor em reproduzir os quadros da coleção, de forma que se torna difícil decidir quais seriam mais sublimes – os originais ou as reduções – e encerra sua nota com um elogio, pela surpresa de ver que Heinrich Kürz teria incluído seu próprio quadro na pintura, em uma sequência de seis reflexos, sem perder a precisão:
A coleção particular não é apenas a representação anedótica de um museu privado; por meio desse jogo de reflexos sucessivos, pelo encanto quase mágico que essas repetições cada vez mais minúsculas operam, a obra oscila num universo propriamente onírico, no qual seu poder de sedução se amplia até o infinito e no qual a precisão exacerbada da matéria pictórica, longe de ser seu próprio fim, deságua subitamente na Espiritualidade do Eterno Retorno (Perec, 2005, p. 18).
As notas sobre o quadro geram grande repercussão pública e, em duas semanas, formam-se filas de curiosos para vê-lo. Primeiro, aparecem pessoas interessadas em reconhecer a perícia das reproduções miniaturizadas em espelhos; depois, aparecem curiosos medindo as dimensões do quadro principal e de suas reduções, estabelecendo cálculos que justifiquem a maestria da técnica pictórica; por fim, especialistas que detectam a introdução de variações nos detalhes de cada quadro da coleção retratada, na sequência dos espelhos pintados pelo artista. Essa multidão de curiosos que se fixam frente ao quadro segue intensamente até que, perto do final da exposição, um visitante exasperado irrompe na sala, atira um frasco de tinta nanquim na pintura e foge em seguida.
No dia seguinte ao ocorrido, os quadros de todos os artistas, assim como a coleção de Hermann Raffke, são retirados e a exposição se esvazia. A imprensa destaca o grotesco acontecimento e se estabelece uma rede pública de solidariedade com o artista e o colecionador.
Duas semanas após, ainda em meio à repercussão pública do ataque à pintura, um longo estudo sobre o quadro é publicado em uma “revista de estética passavelmente confidencial, o Bulletin of the Ohio School of Arts” (Perec, 2005, p. 22). O artigo intitulava-se Art and Reflection, de autoria de um especialista chamado Lester K. Nowak, e expunha a teoria do autor de que “Toda obra é espelho de uma outra”: “um número considerável de quadros, se não todos, só assume seu verdadeiro significado em função de obras anteriores que nele estão ou apenas reproduzidas, integral ou parcialmente, ou ainda, de forma bastante mais alusiva, codificadas” (Perec, 2005, p. 22). Na sequência, o autor sustenta sua teoria aludindo a uma tradição artística que, “nascida na Antuérpia em fins do século XVI, perpetuou-se ininterruptamente através das principais escolas europeias até meados do século XIX”, passando a descrever qualidades de vários quadros famosos que seguiriam o princípio de figurar coleções particulares, no “ato de pintar numa ‘dinâmica reflexiva’ que hauria suas forças na pintura alheia”. Comparando as diversas figurações de coleções particulares em pauta, estabelece algumas inferências sobre as personalidades dos seus colecionadores, incluindo o próprio Hermann Raffke. Ao fim de seu longo estudo, Nowak enaltece as qualidades do quadro de Heinrich Kürz, comparando-o a outros pintores admiráveis e definindo-o como “uma imagem da morte da arte, uma reflexão especular desse mundo condenado à repetição infinita de seus próprios modelos” (Perec, 2005, p. 24).
Um ano após a exposição, Hermann Raffke é encontrado morto. A família embalsama o corpo e o veste como aparece no quadro de Kürz, sendo sepultado em um jazigo que reproduz o mesmo estúdio em que foi pintado, tendo o quadro d’A coleção particular ao fundo da sala. Raffke é sepultado sentado em uma cadeira, de frente para o quadro, tendo atrás de si outro quadro dele próprio, executado quarenta anos antes, quando viajava pelo Egito.
Após o falecimento do colecionador, seus herdeiros realizam dois leilões dos quadros que ele possuía. O primeiro, realizado alguns meses depois, reunia 116 quadros, sendo a maioria de pintores americanos e poucos europeus, em um catálogo que não incluía os quadros retratados na pintura de Kürz. Neste leilão, já se anunciava o segundo, com obras antigas de origem europeia, cujos catálogos exigiam demorada elaboração[8]. O segundo leilão, todavia, só se realizaria muito depois, em virtude dos sentimentos antigermânicos que pairavam nos EUA. Nesse intervalo, os herdeiros se transferiram para o Canadá, junto com a fábrica de cerveja.
Aqui, a narrativa de Perec estabelece um intervalo entre os leilões, para descrever longamente a publicação de dois livros. O primeiro seria uma autobiografia de Hermann Raffke, publicada em uma editora de Nova York, em 1921. Redigido por seus filhos, a partir de um conjunto de escritos e documentos deixados pelo colecionador, o livro narrava a sua infância e as aventuras vividas, na Alemanha, até migrar para os EUA, aos 16 anos, onde se tornaria um self-made man. Interessado por pintura, mas reconhecendo-se incapaz de pintar bem, começa a colecionar quadros. O sucesso de seus empreendimentos torna-o rico aos 45 anos, idade na qual deixa os negócios aos filhos e passa a viajar regularmente para a Europa, entre 1875 e 1909, adquirindo quadros e ampliando a coleção. Uma vez que conhecia pouco de arte, foi adquirindo as pinturas com o aconselhamento de cerca de trinta experts europeus variados, descritos na narrativa de Perec através da correspondência que Raffke enviava para a esposa e os filhos. Dos quase 200 quadros que adquiriu nessas viagens, Raffke mantivera uma agenda, com anotações detalhadas das viagens, itinerários, passagens de navio e de trem, contabilidades diárias e até catálogos dos leilões de que participara, também utilizados no livro[9].
A segunda obra, de autoria de Lester Nowak e “publicada em 1923 pela Editora da Universidade Bennington, era uma tese consagrada à obra de Heinrich Kürz” (Perec, 2005, p. 49). Nowak conta que ficara amigo de Kürz, ao escrever seu artigo sobre A coleção particular, e que depois do falecimento do amigo, em um desastre ferroviário, em 1914, sua irmã lhe pedira ajuda para classificar o imenso material encontrado no ateliê do artista e organizar um catálogo. Esse material era a base da tese, acrescido de um aparato crítico. O conteúdo da tese é narrado por Perec, em extensas treze páginas, expondo como Nowak teria se debruçado sobre os 1.397 desenhos e esboços traçados por Kürz para executar seu famoso quadro. Essa narrativa também se estende a comparações das principais pinturas retratadas no quadro com suas réplicas, aprofundando sua tese anterior e ampliando-a, ao depurar precisões históricas das atribuições autorais daquelas pinturas, em interlocução com obras de outros especialistas de história da arte.
Após esse intervalo descritivo, a narrativa dos leilões é retomada por Perec. O segundo leilão ocorrera em 1924, na Filadélfia, com pompa e circunstância, durante quatro dias. A fama da coleção de Hermann Raffke se difundira, atraindo famosos colecionadores e diretores de grandes museus americanos para a aquisição dos 358 itens expostos em um primoroso catálogo. Seguindo a estratégia narrativa do primeiro leilão, Perec destaca as obras principais – e seus autores – colocadas à venda, agrupadas por escolas artísticas, dia a dia: a pintura americana, a moderna pintura europeia, as escolas alemã, francesa, flamenga, holandesa e italiana.
Após onze páginas de descrição das fichas de catálogo das obras leiloadas, Perec encerra sua narrativa com um curto e súbito corte no enredo:
Alguns anos mais tarde, os diretores dos organismos públicos e privados que participaram da aquisição dos quadros do segundo leilão Raffke receberam uma carta assinada por Humbert Raffke [sobrinho do colecionador], na qual se informava que a maioria das obras que haviam adquirido eram falsas, sendo ele próprio o verdadeiro autor (Perec, 2005, p. 71).
O sobrinho do Hermann Raffke formara-se em Belas Artes, em Boston. Enquanto estudante, entre uma das viagens do tio para a Europa, Humbert levara um professor para conhecer os quadros que ele adquiriu nas primeiras viagens. O professor examinara as obras e afirmara que eram falsas, ou de pouco valor. No regresso de Hermann Raffke, o sobrinho lhe informa da falsidade e o colecionador resolve se vingar. Assim, toda a narrativa pormenorizada de Perec adquire novo sentido, evidenciando-se como um plano articulado entre o colecionador, seus filhos, o sobrinho pintor e alguns cúmplices, como Lester Nowak, “que lhe permitira, anos mais tarde e mesmo após sua morte, mistificar por sua vez os colecionadores, os peritos e os marchands” (Perec, 2005, p. 72).
As demais viagens que Hermann Raffke fizera à Europa foram para selecionar provas que forjassem a autenticidade dos quadros que seu sobrinho executava, tendo n’A coleção particular a base de toda trama: um quadro em que se retratam outros quadros, como cópias de quadros reais, mas que são cópias de quadros ilusórios.
Assim como os quadros da coleção de Raffke eram falsos, os detalhes da narrativa de Perec (2005, p. 72) também são “concebidos unicamente pelo prazer, pelo gosto de iludir”.
E aqui, a narrativa de Perec subverte a construção de sentidos que se arranjam publicamente na produção dos registros de autenticidade de obras artísticas. Os “contratos de visibilidade” que orientam e guiam a recepção pública das imagens se formam progressivamente através de uma rede de atores e instituições que dão visibilidade às mesmas, mas tal formação produz modelos, e não determinismos. Assim, os acontecimentos narrados pareciam registrar processos de legitimação de modelos autorizados de expertise artística (Bourdieu, 2008, 2007), mas estavam subvertendo esses modelos, manipulando-os desde seus interstícios.
A frase final de Perec é sintomática dessas estratégias de subversão, uma vez que sua narrativa não produz ilusão, ela manipula uma ilusão já existente, de forma a nos mostrar como os frames colecionistas se apresentam e guiam a percepção pública das imagens figuradas, como objetos colecionáveis, e das não-figuradas, como nas personalidades públicas dos colecionadores.
Concluindo: a ilusão como suporte dos frames colecionistas
As narrativas aqui consideradas buscaram circunscrever os arranjos entre os objetos e as biografias dos indivíduos na configuração de frames colecionistas e suas interações com o self dos colecionadores. Os frames colecionistas, nas primeiras narrativas, orientavam recursivamente a contenção de um sentido que guia as interações dos indivíduos, em correspondência com uma identidade de ação estabelecida num ciclo de vida. Esses frames se constituíram desde sentidos originados em eventos críticos (rupturas ou mudanças bruscas no ciclo de vida) e a contenção que operavam se rompeu por influência de fatores exógenos. A correspondência entre os frames das narrativas iniciais, porém, indicava que “os contratos de visibilidade” estabelecidos nas interações de indivíduos colecionadores com não colecionadores produzia inversões nas distintas formas de ver e de dizer algo sobre as coleções.
Já a narrativa de Perec, elaborada sobre o princípio da subversão desses contratos, introduz a ilusão como suporte dos sentidos que se arranjam nos frames colecionistas, guiando a percepção pública sobre os mesmos. Porém, revendo agora as narrativas fílmicas, é possível afirmar que o contexto das relações interpessoais nelas estabelecidas é superado quando o apego gerado na singularização com as coleções se desfaz pelo impacto de uma desilusão, ou a emergência de uma nova ilusão, na forma de uma mudança exógena, que impulsiona os indivíduos para outras possibilidades ou outros ciclos de vida.
Dessa forma, desfeitos os arranjos interpessoais, as próprias coleções podem também ultrapassar a ilusão situacional estabelecida nos frames colecionistas para serem ressignificadas em ilusões coletivas, ou sociais. E se isso ocorre, na narrativa de Perec, também por influências exógenas às intencionalidades dos colecionadores, causadoras de rupturas nos planos de ação traçados em seus projetos (Schutz, 2003), é mais por produzirem um sentimento de desapego às coleções que essas ressignificações acontecem.
* José Rogério Lopes é doutor em Ciências Sociais (PUC-SP), Professor Titular do PPG Ciências Sociais da Unisinos, RS, Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. O autor agradece ao CNPq o financiamento da pesquisa cujos dados são aqui parcialmente considerados.
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Notas
[1] Veja-se, por exemplo, a descrição que Marshall (2005, p. 17) elabora de uma circunstância colecionista observada: “1. Em uma casa muito humilde em Porto Alegre, através da porta se vê, bem cuidada e exposta em quadros na parede, uma coleção de chaveiros e, na parede ao lado, uma coleção de bonés, com curadoria impecável, rigorosamente alinhados. Rua Antonio Divan, 178, Bairro Teresópolis, porta sempre aberta”. O detalhe final da descrição indica essa projeção para a comunicação própria das coleções, implícita como permanente exposição.
[2] Se os conceitos e paradigmas devem ser compreendidos como modelos de pensamento que consolidam a estrutura dos campos científicos, tornando-os legítimos em consonância com valores sociais predominantes e aceitos, segundo Kuhn (1983), os frames definem melhor o conjunto de elementos explicativos de um fenômeno que adquirem efetividade cognitiva em uma determinada categoria de aplicação de sentidos. Assim, os frames são importantes elementos de distinção de atitudes ou elaborações de conhecimento, em subcampos do conhecimento ou de expertise societária, sendo costumeiramente reconhecidos na literatura acadêmica da Antropologia, por exemplo, como ressignificações de práticas e conceitos de análise.
[3] Em outras concepções teóricas, a diferenciação buscaria a distinção e produziria um bem e uma crença socialmente legitimada (Bourdieu, 2007, 2008), ou, ainda como bem, serviria como suporte ritual de marcação social (Douglas; Isherwood, 2006).
[5]A coleção invisível (2013). Produção brasileira, drama dirigido por Bernard Attal, protagonizado por Vladimir Brichta, Walmor Chagas e Ludmila Rosa.
[6] Uma máxima de todo colecionista, segundo Aleixo Dischinger: “quem guarda o que não precisa, sempre tem o que precisa” (apud Marshall, 2005, p. 17).
[7] Escritor francês, nascido em 1936 e falecido em 1982. Desde 1967, participou do Grupo Oulipo de literatura experimental, que destacou outros escritores como Raymond Queneau e Ítalo Calvino. Escreveu uma vasta obra, incluindo relatos autobiográficos, poesia, literatura experimental, ensaios e novelas. O livro A coleção particular foi publicado por Editions du Seuil, sob o título Un cabinet d’amateur, em 1994.
[8] Perec detalha várias fichas de catálogo dos quadros, em sua narrativa sobre os leilões, expondo a autoria das pinturas, características das obras, seu valor inicial, a receptividade dos compradores e o valor final de venda. Nesse detalhamento, alguns quadros são destacados, merecendo uma descrição mais pormenorizada, que inclui o histórico da obra ou do pintor, o contexto da execução da obra, as particularidades estéticas impressas nos mesmos (como na metodologia de análise artística exposta por Chordá, 2004) e alguns detalhes curiosos que influenciariam o valor final da venda.
[9] Perec detalha, ainda, registros deixados por Raffke de participação nos leilões e impressões sobre as obras adquiridas, em diálogos expostos com seus conselheiros contratados. Das 61 páginas que compõem a narrativa de A coleção particular, na edição brasileira, 11 delas são dedicadas aos registros de sua autobiografia.
Resumo: Arte e memória aparecem estreitamente ligadas no horizonte contemporâneo, tanto no que diz respeito às políticas oficiais, como nas práticas de diversos artistas comprometidos com o conflitivo mundo atual. Mas esse material, que às vezes margeia o arquivo, não somente pode manifestar-se enquanto elaboração metafórica das grandes tragédias de nosso tempo, senão também na pequena cena, enquanto investimento afetivo nos objetos, que a prática artística resgata de sua minúcia cotidiana para outro devir significante. Nesse registro, abordaremos a obra de duas mulheres artistas, Nury González, chilena, e Marga Steinwasser, argentina, cujo trabalho, que poderíamos definir como poéticas do objeto, tem um original selo auto/biográfico e memorialístico e, ao mesmo tempo, um envolvimento social, crítico, ético e político.
Palavras-chave: Arte; memória; arquivo; objetos; vida cotidiana.
Resumen: Arte y memoria aparecen estrechamente ligados en el horizonte contemporáneo, tanto en lo que hace a las políticas oficiales, como a las prácticas de diversos artistas comprometidos con el conflictivo mundo actual. Pero ese arte memorial, que a veces orilla el archivo, no solamente puede manifestarse en tanto elaboración metafórica de las grandes tragedias de nuestro tiempo sino también en la pequeña escena, en tanto investidura afectiva en los objetos, que la práctica artística rescata de su minucia cotidiana para otro devenir significante. En ese registro abordaremos la obra de dos mujeres artistas, Nury González, chilena, y Marga Steinwasser, argentina, cuyo trabajo, que podríamos definir como poéticas del objeto, tiene un original sello auto/biográfico y memorial, al tiempo que un involucramiento social, crítico, ético y político.
Palavras-clave: Arte; memoria; archivo; objetos; vida cotidiana.
Arte y memoria aparecen estrechamente ligados en el horizonte contemporáneo, tanto en lo que hace a las políticas oficiales, como a las prácticas de diversos artistas comprometidos con el conflictivo mundo actual. Museos, monumentos – y anti-monumentos – memoriales, festivales, performances, bienales, mega exposiciones –Documenta, Monumenta – dan cuenta de esa inquietud memorial donde el pasado – reciente o distante – se articula en el presente y puede operar como un registro crítico respecto de las diversas formas de la violencia: guerras, atentados, migraciones, éxodos, fronteras. En unos y otros casos la visualidad se enfrenta al dilema de la representación, cómo mostrar, cómo hacer justicia, en un sentido ético, a aquello que se quiere destacar no sólo como inolvidable sino sobre todo como inolvidadizo, al decir de Nicole Loraux (2008), dotando a este significante de un sentido activo, performativo, capaz de interpelar una sensibilidad y una responsabilidad común, sin caer en la banalización o el efectismo, tan caros al espectáculo mediático.
Ahora bien, ¿Qué es lo que la memoria intenta rescatar del olvido? ¿Y qué es lo que se pretende trasmitir, dejar como marca en la memoria colectiva? Los hechos del pasado, podría decirse, según la aporía aristotélica de “hacer presente lo que está ausente”, aunque en el caso de los males, “de las desgracias” (según se decía en la antigua Atenas), que traen una carga de violencia, sufrimiento y miedo, se impone cierta temperancia de modo tal que resulten irrepetibles pero no insoportables para la vida en común: he ahí su función ejemplar. Sin embargo, no es tan sencillo responder al qué de la memoria. Hay por un lado “algo” que se recuerda – una huella física, cortical – y, lo más importante, una huella afectiva, que, a la manera del sello en la cera (Platón) queda como su impronta originaria. Así, al recordar se recuerda una imagen, “una especie de pintura” dice Aristóteles, con toda la problematicidad de lo icónico: el dilema de la representación, su relación intrínseca con la imaginación y por ende, su debilidad veridictiva – y la afección que conlleva esa imagen. ¿Qué es entonces lo que “trae” con más fuerza el recuerdo, la imagen o la afección? ¿Los “hechos” o su impacto en la experiencia? Y ¿cómo llega esa imagen al recuerdo, de modo involuntario o por el trabajo de la rememoración? Interrogantes a los que se suma, por cierto, el quién, de memorias siempre en conflicto – grupos, sectores, políticas –, la tensión inevitable entre lo individual y lo común, aquello que una sociedad comparte como experiencia histórica pero que tampoco se deja apresar fácilmente bajo el sintagma de “memoria colectiva”.
Son estos interrogantes y en particular la pregunta por el cómo – es decir, por la potencia significante de la forma – los que asedian el trabajo del arte en relación con la memoria. Una relación que alienta la posibilidad de iluminar zonas dormidas, negadas, reprimidas, y estimular, en sus destinatarios, un proceso creativo en términos de imaginación y autorreflexión. Pero ese arte memorial, que a veces orilla sintomáticamente el archivo, no solamente puede manifestarse en tanto elaboración metafórica de las grandes tragedias de nuestro tiempo – la Shoah, que inspiró en gran medida los trabajos de Christian Boltanski, el genocidio de Ruanda, que dio lugar a las series de Alfredo Jaar, o la memoria de Hiroshima, en el video arte de Krzysztof Wodiczko, para señalar unos pocos ejemplos – sino también en la pequeña escena, en tanto investidura afectiva en los objetos, que la práctica artística, repitiendo el gesto de la ostranenie, rescata de su minucia cotidiana para otro devenir significante.
Una investidura afectiva en los objetos que, más allá de las prácticas artísticas, es consustancial a la construcción de la memoria y la propia identidad: el que quedó fijado en el recuerdo, el que se atesora todavía hoy, el que marca una herencia, el que traduce un modo de ser – o lo aparenta –, el objeto simbólico, el objeto de deseo…vivimos inmersos en un mundo de objetos, un mundo que – evocando un conocido poema de Borges – nos sobrevivirá…
Desde hace ya bastante tiempo los objetos cotidianos, en su más cruda materialidad, pueblan los espacios de las artes visuales, generalmente en el marco de una instalación y en una sintaxis narrativa que los distingue del ready made: no remiten a sí mismos, como gestos provocativos que adquieren su valor por su localización “fuera de lugar” en el museo, sino que crean un contexto significante que (re)define semánticamente ese lugar. Usos autobiográficos, perturbadores, inquisitivos, críticos, a menudo próximos de lo que Hal Foster (2001) llamó “el retorno de lo real”, jugando con la doble valencia que señala asimismo el concepto psicoanalítico de lo que escapa a la representación, lo no simbolizable. Usos sintomáticos de la ropa, con toda su carga histórica, generacional, emotiva: simbologías del cuerpo, de la carnalidad, de la uniformidad, y hasta de la posible cercanía con el diferente, o en acumulaciones aterradoras en relación metonímica con el número y la masacre, como en el caso de Boltanski. Este artista trabajó en sus primeras obras con series, inventarios, archivos, en una especie de “auto museificación” donde la fotografía y los objetos parecían desafiar la temporalidad y la fugacidad – y por ende la muerte. Así, llamó Búsqueda y presentación de lo que queda de mi infancia, 1944-1950 (1969) a un libro de artista que contenía una acumulación de objetos de cualquier proveniencia en su perfecta banalidad, y a otra, de las mismas características, Colección de objetos que pertenecieron a Christian Boltanski entre 1948 y 1954 (1970–1971), obras que podrían leerse justamente como “antibiografías”. Una objetualidad rodeada de un aura siniestra – fotografías, restos de materiales, cajas, ropas, luces –, que imprimió un sello singular a su práctica artística posterior, sobre todo en relación con memorias traumáticas.
Otro ejemplo del trabajo con acumulaciones aterradoras, que evocan los estragos de la violencia y la guerra en nuestra América Latina, es el de la artista colombiana Doris Salcedo, en cuya obra la relación con los cuerpos – ausentes, desaparecidos, muertos – es también metonímica, a través de ropas, utensilios, muebles, con particular énfasis en un objeto singular que los acoge tanto en lo que hace a la función institucional y política como en la simpleza de la vida cotidiana: las sillas. Utilizó ese recurso en dos obras famosas: Sillas vacías del Palacio de Justicia, 6 y 7 de noviembre (2002), una intervención-instalación en el Palacio de Justicia de Bogotá, que evoca el asalto al congreso, ataque y muerte de varios de sus representantes; y Topografía de la guerra (2003), una instalación donde apiló desordenadamente 1.550 sillas en un espacio público vacante entre dos edificios de la ciudad, configurando un impresionante volumen, en el marco de la 8ª Bienal Internacional de Estambul. Si la acumulación daba cuenta del número – o mejor, de lo innumerable – de modo abstracto, sin anclaje en ninguna geografía – ¿o acaso el número de víctimas sin nombre no es un dato que percute diariamente en el conflictivo horizonte de nuestra actualidad? – otra de sus obras, Atrabiliarios, (1992-93) invertía la modalidad significante proponiendo la singularización: zapatos gastados, de a un par, en especial femeninos, ofrecidos a la mirada detrás de la veladura de una piel, como un modo de aludir a las víctimas de la violencia en su país, individualizadas a veces a través de los mismos, pero evocando al mismo tiempo otra imagen, también aterradora, las de las pilas de zapatos del holocausto.
Por su parte, el argentino Guillermo Kuitca descubrió en el umbral de los ’80 el poder simbólico de otro objeto en intensa relación con el cuerpo, la cama, como espacio/síntesis de la vida entera – el nacimiento, el sexo, el sueño, la lectura, la muerte –, que se tornó recurrente en su obra, con connotaciones inquietantes según la versión. Las camas – y luego las “camitas” – trazaron una línea temática a la que se agregó más tarde la serie de los colchones (1992), en su cruda materialidad, intervenidos de diversas maneras, con el trazado de mapas caprichosos, hipotéticos, que señalan el oxímoron entre la intimidad del hogar y el deambular de la geografía, entre lo estático del cuerpo en reposo y el viaje – de placer o de exilio –, o bajo amenaza de cautiverio o tortura, un anclaje cronotópico, en términos de Bajtín (1978), que opera también, en el contexto argentino, como eslabón entre biografía y memoria colectiva.
A fines de los ’90, y para seguir con el objeto más recóndito de la privacidad, Tracey Emin presentaba My Bed (1998/2003), su propio lecho, rodeado de todas las trazas del uso y del tiempo, como uno de los objetos-fetiche de la Saatchi Gallery londinense, que funcionaría como un “autorretrato” reactivo y escandaloso – al tiempo que totalmente “desindividualizado” –, en tanto desacralizaba violentamente la intimidad, en su inequívoca cercanía con la sexualidad, denunciando con ironía el creciente carácter público/terapéutico que esta asume. Por esa época Lauren Berlant, en un emblemático dossier de la revista Critical Inquiry (1998) postularía el concepto de “intimidad pública”, para dar cuenta de ese giro en la subjetividad contemporánea que hacía cada vez más elusiva la distinción entre público y privado.
Hay en estas obras una diferencia radical con las tendencias del pop art de los años ’60, que afirmaban el triunfo absoluto del Objeto, el objeto banal, cotidiano, el producto desechable de la sociedad de consumo en la repetición compulsiva de su detalle, a lo Warhol, así como los Rostros-ídolos de la sociedad mediática, cuya reduplicación al infinito consumaba la borradura definitiva de la esencia, la pérdida del aura, esa irrepetible lejanía de la obra de arte de otro tiempo, cuyo adiós nos dejara Benjamin (1982) bajo la forma de una pequeña obra maestra. De lo que se trata aquí, por el contrario, es del objeto simbólico, cargado de sentido, ligado a lo afectivo, lo memorial y lo biográfico.
Una manera singular de articular lo memorial y lo biográfico en el devenir del tiempo cotidiano es la del artista conceptual japonés On Kawara, recientemente fallecido, quien desplegó desde mediados de los ’60 la serie Date paintings, en la cual cada día se proponía pintar a mano, con precisión, la fecha, con las convenciones numéricas y gramaticales del lugar donde se encontraba, sobre un tablado con fondo de color y tamaño variable, obras que eran destruidas si no lograba concluirlas ese día – así como algunos días podía dibujar más de una –, serie que supuestamente debía concluir recién con su muerte. La obsesión de registro del paso del tiempo dejando una huella – la traza, diría Derrida –, se expresaba también en las series I am still alive, (Todavía estoy vivo), telegramas o postales que enviaba a sus amigos desde distintos lugares – fue un viajero infatigable – con ese texto; o bien I got up… (Me levanté…) y la hora en la cual ese acto rutinario había sucedido; o, todavía, I met…, dando cuenta de los encuentros de ese día. En otra de sus obras, Two hundred-year calendars, – uno para el siglo XX y otro para el siglo XXI – el artista marcaba cada día de su vida con un punto en amarillo, al que se sumaba uno verde si concluía la pintura o rojo cuando no había podido hacerlo. Así, en el conjunto de estas obras, el arte se transformaba en el registro exhaustivo de la existencia, o bien el inasible fluir de la existencia se transformaba en objeto del arte, donde la recurrente referencia personal – una improbable autobiografía – no suponía en absoluto descorrer el velo de la intimidad. Por otra parte el envío de obras postales – como la ejecución de la fecha día tras día – ponían el acento en el acto de producir más que en el resultado, aunque este se integrara luego a la serie de archivo, en la desarticulación inevitable del mercado del arte, donde las obras y las colecciones se acompasan al destino de sus eventuales dueños.
Esa obsesión del tiempo, pero de un tiempo dislocado entre la inquietud de la memoria y el olvido, habitaba Kronos, una muestra antológica que el artista argentino Carlos Gallardo presentó en Buenos Aires en marzo de 2000 y que luego recorrió otras ciudades del mundo. Ciertas preguntas, insistentes, interpelaban al espectador: Qué, Quién, Cuándo, Dónde, Adónde, Cómo, Porqué. El percutir deíctico de estos significantes, inscriptos sobre acumulaciones fuertemente simbólicas de fotografías, cartas borrosas, agendas atornilladas, impresos desvaídos, tickets, mapas, capturados en viejos buzones domésticos sin nombre, o bien sobre cajas/nichos vagamente siniestras, trazaba un itinerario perturbador, desde imágenes cruentas a texturas íntimas, familiares, de las que pueden entrometerse fácilmente en la historia personal. El espacio extenso de la exposición desplegaba así la temporalidad difusa de la memoria, su desvarío, la obsesión archivadora, el olvido. Aquello resistente a la teoría –¿cómo se articula la propia vivencia a lo social, lo auto/biográfico a lo colectivo? – parecía responderse por sí mismo, de manera elíptica o metafórica, en la aglomeración de restos cotidianos al borde del objet trouvé – pedazos de viejas máquinas de escribir, relojes, cajas, almanaques antiguos – y su combinatoria casi minimalista, lo suficientemente reconocibles para crear identificaciones compartidas pero a la vez distanciados por procedimientos específicos: resinas, torsiones, veladuras, ensambles, series. Podían verse allí algunos motivos típicos de esa subjetivación del tiempo cotidiano, la cronología común y las marcas equívocamente biográficas, que ha dado en llamarse autoficción. Una historia – muchas historias – que no se cuenta por hitos cronológicos, datos precisos, recuerdos nítidos, que no se desenvuelve en una dirección, sino que se deja atisbar, imperfecta, a través de fragmentos, colecciones, rastros, inventarios, en la tensión perpetua entre el vacío de la memoria y el archivo, donde podía leerse, elípticamente, el silencio, la censura y la desaparición de los años de la dictadura. “La temática que sustenta toda mi obra – afirmaba Gallardo en el catálogo de la muestra – es la misma: el no olvido, los espacios reflexivos, las huellas, los trazos, una necesidad de que ciertos pensamientos, hechos, interrogantes, no mueran, no dejen de existir” (Gallardo, 2000, p. 28).
¿Cuál es la articulación entre estas obras, cuyos estilos, tiempos y lugares difieren en buena medida? ¿A qué responde la elección de las mismas? No por cierto a la pretensión de reunir un corpus “representativo” según el rigor académico, sino, precisamente, a un trabajo de memoria. La mía, como espectadora crítica y a la vez concernida ética y afectivamente – porque todas ellas me han interpelado en ese doble registro –, que se activó en tanto respuesta, en el sentido bajtiniano, a la sugerente convocatoria del dossier, ese “diseminado gesto archivístico” que nos lleva a “bibliotecas, museos, colecciones, catálogos, listas” donde se mezclan realidad y ficción, documentos e imaginación, anclajes históricos y memorias biográficas, en umbrales indecisos que no quieren ser franqueados en uno u otro sentido, conservando esa ambigüedad entre lo individual y lo común, que nunca se separan por completo. Prácticas artísticas donde ese gesto primordial responde tanto a la pelea contra la muerte o el olvido, como al deseo de retener la minucia cotidiana del tiempo que se escurre sin registro – a la manera de On Kawara – o quizá también, como afirmara Virginia Woolf, a la necesidad de dejar huella de la propia vida – en su caso, en un diario íntimo – para diferenciarse de sus personajes de ficción. En esta selección, quizá caprichosa, primó asimismo ese involucramiento en lo social que Rosalyn Deutsche (2007) llamó “arte público”: no aquel que se expone eventualmente en espacios públicos sino aquel que crea espacio público, cualquiera sea su lugar de exhibición, en tanto plantea una interrogación crítica a las problemáticas y sentidos de una comunidad.
Pero está también presente, con distintos matices, la sutil relación entre arte y vida, o entre la vida y la obra, cuestión que se inscribe de lleno en el espacio biográfico (Arfuch, 2002/2010), que en mi definición excede en mucho los géneros canónicos – biografías, autobiografías, diarios íntimos, memorias, historias de vida, correspondencias – para permear todos los registros de la discursividad contemporánea, de los medios de comunicación a la política, de la literatura a las artes, de la investigación científica a las redes sociales. Un espacio caracterizado por la emergencia de la subjetividad a flor de piel, donde el yo – y todas sus máscaras – tiene indudable primacía, donde las “vidas reales” le ganan terreno a la ficción y donde el cuerpo, la voz, y el relato de la “propia” experiencia mantienen su efecto de cercanía, verosimilitud y autenticidad – un rasgo de la obsesión de la “presencia”, diría Derrida – pese al radical alejamiento que suponen las tecnologías.
¿De qué manera el arte interviene en este espacio biográfico? ¿Cuál es su diferencia respecto de otras expresiones de la cultura contemporánea? Hay sin duda un sinnúmero de respuestas posibles pero en líneas generales podríamos decir que la diferencia sustancial, respecto de los medios de comunicación, por ejemplo, es su poética, el recurso a la metáfora, la alusión, la alegoría, el rodeo, tomando el método benjaminiano, la distancia del “hecho” en su crudeza y del tributo a la adecuación referencial. Así, la autoficción se impone en la literatura, el cine y las artes visuales como forma equívoca, indirecta, de dar vida al propio personaje sin las reglas de la veridicción, difuminando los umbrales entre ficción y realidad, construyendo una historia en el tiempo hipotético del podría haber sido o incorporando al relato de las peripecias la práctica del autoanálisis. Pero hay también, como vimos, maneras sutiles del trabajo con los objetos y hasta con la simpleza de los materiales que pueden llevar un perceptible sello autobiográfico. Ese es justamente nuestro próximo paso: abordar la obra de dos artistas mujeres que, en cierta sintonía con los precedentes y también en contrapunto, trazan sus propias figuras en el tapiz cambiante del arte contemporáneo en América Latina.
Poéticas del objeto I
Suele suceder que conocemos a los artistas por sus obras, expuestas en museos o galerías, y la primera relación que establecemos con ellas es del orden de la emoción – o a veces, de la indiferencia. Mi relación con Nury González, artista chilena[2], fue a partir de una obra que me produjo el impacto de un deslumbramiento. Fue en Santiago de Chile, en setiembre de 2009, en el Museo de Arte Contemporáneo Quinta Normal. Su instalación formaba parte de la Trienal de Chile, cuyo lema convocante era justamente El terremoto de Chile. Yo venía de ver – si se me permite un desliz autobiográfico – varias obras de la Trienal donde la temporalidad fugaz del terremoto se expresaba en signos de catástrofe: el desorden, la fragmentación, la fisura, las trizas de los objetos y la vulnerabilidad de los cuerpos. Una palpable literalidad habitaba las obras – y por ello, una cierta indistinción –, haciendo previsible el recorrido, cuando llegué a Sueño Velado, la obra de Nury, que me dejó literalmente absorta en el umbral mismo de la sala. Había allí dispuestas, en un amplio espacio, 45 mesitas de luz – en Chile los llaman “veladores” – con sus lámparas encendidas – en Argentina las llamamos “veladores” – con todos los objetos necesarios para acompañar el sueño y la noche. Eran mesitas verdaderas: la artista las había solicitado en préstamo a amigos y conocidos con la condición de que conservaran justamente la disposición de los objetos que tenían habitualmente en el hogar. Y allí estaban, en la quietud de la sala, con su diversidad de luces, estilos, colores, objetos, estéticamente distribuidas en una convivencia casi mágica, ofreciendo un recorrido físico – se podía transitar entre ellas – y también narrativo, que cada uno podía escoger a su manera, y leer, semióticamente, modos del habitar, épocas, clases sociales, gustos, preferencias, pertenencias, imaginar usuarios hipotéticos de esos rincones de intimidad que sin embargo no aparecían vulnerados en el espacio público, quizá porque lograban interrogar, sabiamente, el registro elusivo de lo colectivo. En efecto, la idea de la mesa de luz, en relación con el terremoto, quizá la figura más emblemática de la identidad territorial – ¿y nacional? – chilena, evocaba de la manera más intensamente vivencial, el momento temido en el cual el temblor sacude del sueño, lleva a encender la lámpara, a mirar el reloj, a saltar de la cama y calibrar la gravedad del evento, el camino a seguir, la decisión a tomar frente a la amenaza – reiterada – de la muerte: no en vano la instalación se llamaba Sueño velado. Todo eso – y tanto más – decían las mesitas encendidas en la calma de la exposición, con sus objetos marcados por la huella del tiempo y del uso – libros, relojes, remedios, anteojos, papeles, recuerdos. Un espacio biográfico anónimo – biografías mínimas, singulares, objetuales – que condensaba a la vez una fuerte identificación cultural y una memoria compartida.
Sueño Velado, Nury González.
Quiso el azar – siguiendo con mi espacio biográfico – que conociera a Nury al día siguiente, cuando ella estaba sentada en un café cerca del cerro Santa Lucía y un colega me la presentó. Allí iniciamos una larga conversación que se reanuda cada vez que viajo, y en aquella ocasión nos llevó, también por azar, a una región lejana que ambas conocíamos de distinta manera: Beirut, el Líbano, donde yo había estado dos años antes, buscando improbables “raíces en el aire”, como decía Roland Barthes, de la familia de mi padre, emigrada a Argentina en la primera década del siglo XX. Pero ¿cuál era la relación de Nury con ese territorio ajeno, golpeado por la guerra y en el eje de reiterados conflictos? Precisamente, la memoria de la guerra, plasmada en una obra que recién pude conocer tres años después, cuyo origen narra la artista en su libro La memoria de la tela:
(…) La artista libanesa Marwa Arsanios me envía cuatro cortinas del Hotel Carlton de Beirut [que había sido destruido durante la guerra civil], con el encargo inespecífico de intervenirlas. (…) Venían acompañadas de un relato escrito y de un video que registra el momento en que Marwa Arsanios descuelga esas cortinas, acto de recolección y apropiación que para ella significa una reparación – según relata – de la historia de su propia niñez en Beirut, intervenida ferozmente por 15 años de guerra civil (González, 2010).
Con ese “presente griego” en las manos, Nury decidió ponerlas en el agua, a mil kilómetros de Santiago, en el lago Riñihue – aguas mansas que guardan el recuerdo de otra tragedia, el terremoto del año ’60 – donde se mecieron por tres días, haciendo una obra que luego sus manos completarían:
Puse las telas sobre un paño blanco – estaban quemadas por el sol y por lo tanto amarillentas –, tomé los forros y los trabajé como si yo tuviese en mis manos una tela sagrada o un objeto arqueológico. Luego los dispuse sobre la mesa uniendo todos los pedacitos, y quedó igual a cuando se reconstituye un tejido en arqueología museística. Entonces, en esta gran superficie que yo pegué y después cosí, quedaron espacios vacíos, en blanco, transformándose finalmente en un paisaje. Y ese trabajo se llamó Historias de guerra, porque la guerra es eso, la cosa fragmentada, perdida. Fue bien impresionante lo que quedó como resultado (http://www.artes.uchile.cl/noticias/59316/nury-gonzalez-presenta-la-memoria-de-la-tela).
Pude ver ese resultado en 2012, en otra muestra, esta vez en Valparaíso, cuyo nombre, Alzheimer, interrogaba, en un Centro Cultural construido en el predio de la vieja cárcel que había sido centro de detención bajo la dictadura, no sólo la memoria sino también el riesgo del olvido. Allí, bajo mi mirada fascinada, una cortina púrpura, como teñida por el fénix – ese molusco que dio nombre a los fenicios y tiñó todos los emblemas de poder de las civilizaciones antiguas y su perseverancia – se había desplegado, valga la expresión, pese a su absoluta fijeza, como si estuviera aún colgada en la ventana de Beirut, con una ondulación de sus pliegues que producía una sensación confusa, una inquietante ilusión de movimiento. Era, literalmente, la memoria de la tela: el rictus de las colgaduras, el desgaste irregular del sol sobre los vidrios y la huella de múltiples desgarraduras, que se leían como extraños símbolos sobre un fondo cromático contrastante. Pude así imaginar la escena primigenia, el resultado de los bombardeos y la metralla, cuya huella había visto una y otra vez en las paredes heridas de Beirut, acallado ya el fragor de aquellas guerras. Sobre un costado, superpuesta al cuerpo de la tela, había una inscripción: “A partir de un punto determinado ya no hay retorno”. Y el nombre de la obra al pie, como escueto referente: Agujero negro.
Memoria de la tela e Historias de guerra, Nury González.
En esas tramas simbólicas donde las obras se refractan y dialogan entre sí más allá del (re)conocimiento mutuo, la artista, en una muestra individual de varias obras que llamó, en directa referencia a Sebald, Sobre la historia natural de la destrucción(2011) teje los hilos – y esto no es metafórico – de otras “memorias de la tela”, que expresan un reiterado devenir traumático y que parecen describir – con esa cualidad atemporal y anticipatoria de algunas prácticas artísticas – la travesía actual de los migrantes, que huyen, a riesgo de vida, de guerras desatadas en el suelo natal. Transcribo algunos textos que acompañaban la muestra:
UNO. Tres mantas mapuches compradas en Temuco. Tejidos que deben tener al menos cien años, llenos de hoyos, que significan para mí una especie de “memoria” de la tela. Al igual que los arqueólogos cuando delimitan con lienzos y estacas los sitios de excavación, señalé con hilo blanco cada una de las “heridas” que muestran estas telas, transformándolas en un mapa o una itineraria de la destrucción. Cada una con un texto: Al hilo de la historia, Con el alma en un hilo y Al hilo del pensamiento.
TRES. Tres dípticos digitales. Las imágenes cambian cada 15 segundos. A la izquierda, 15 imágenes de una ciudad destruida con 15 detalles del zurcido de una tela. Al centro, 15 imágenes de personas huyendo con maletas a la frontera con 15 detalles de esas maletas. A la derecha, 15 acercamientos fotográficos de personas envueltas en frazadas con 15 telas color azul y zurcidas. Azul añil como las mantas mapuches. […]
Están cruzados los desterrados y los sin tierra en la presencia de estos mantos mapuche: las tierras perdidas, los territorios perdidos, las historias perdidas. De allí también el título de esta obra, Sobre la historia natural de la destrucción. Al parecer, todo lo extraordinario que sucede se vuelve natural. Entonces, también lo sería la destrucción de toda dignidad. Llena tengo la cabeza de esa imagen (http://www.nurygonzalez.uchile.cl/).
Sueño de una noche de verano, Nury González.
La autora, que es además académica del Departamento de Artes Visuales de la Universidad de Chile y Directora del Museo de Arte Popular Americano Tomás Lago (MAPA), tiene, como sus textos lo expresan, un fuerte involucramiento teórico y político en su obra, que también podríamos incluir en la definición de arte público y arte crítico. Se articulan en su trabajo, en sutiles combinaciones, la memoria biográfica, el desarraigo, la guerra, el exilio – sus padres, militantes del bando republicano, lograron huir a través de la frontera francesa – relatos orales “apenas audibles”, practicas, labores y oficios domésticos, asignados generalmente a lo femenino, antiguas manualidades hogareñas, objetos atesorados por los ancestros y otros, en la minucia aparentemente intrascendente de los materiales – telas, hilos, lanas, tejidos, fieltros – junto con la búsqueda de archivos, documentos, fotografías, para “entretejer una memoria y reconstruir o invencionar una historia posible” que es tanto una mirada hacia el pasado – la herencia – como un desafío hacia el futuro, en términos éticos, estéticos y políticos.
Si tal obra responde en buena medida a la convocatoria de este dossier en cuanto a sus características también lo hace en cuanto a la relevancia otorgada al acto de crear, esa presencia del artista en su lugar de trabajo, hablando de sus texturas y sus materiales, dando casi mayor importancia al proceso que a su resultado. En nuestra última conversación, hace apenas un mes, Nury me contaba que el acto de echar sus telas al agua, esperando ver qué hacía la naturaleza con ellas, si quizá las llevaba hacia otros horizontes – ¿otros exilios? – o las devolvía transformadas, con nuevas marcas e inscripciones, era para ella el verdadero quehacer artístico, más allá del producto final.
Nury González.
Poéticas del objeto II
Mi relación con Marga Steinwasser[3], artista argentina, comenzó no a partir de sus obras sino por una tarea en común que involucraba su vena artística: la iniciativa de convocar a distintas personas, en círculos familiares, de amigos, de alumnos, y pedirles que entregaran un objeto ligado afectivamente a su experiencia de la dictadura, acompañado de un breve texto explicativo, con la idea de reunirlos luego en una muestra que pudiera aportar, de un modo diferente, a la elaboración colectiva de memorias cotidianas. Era justamente el tiempo de volver sobre esa experiencia cotidiana del común, que había estado relegada en cierto modo por la preeminencia de la huella traumática de la violencia represiva y los testimonios de cautiverio o exilio, los relatos de la militancia y sus cuestionamientos, y en general, las políticas de la memoria centradas en esos registros. La idea surgió de diálogos con el artista alemán Horst Hoheisel y Marga, con su experiencia estética, se unió al equipo que integramos algunos académicos, alumnos y familiares de víctimas, un equipo reducido, que trabajó en la pequeña escala – ese era el propósito, el de conservar una relación íntima con los objetos y con sus dadores – y cuya culminación fue la muestra Química de la Memoria, curada por Hoheisel y Steinwasser, que se inauguró en octubre de 2006 en la Biblioteca Nacional, en Buenos Aires, y recorrió luego otras ciudades, donde se iban agregando nuevos objetos. Posteriormente fue invitada a Chile y Uruguay, donde resultó un interesante aporte para estimular similares trabajos de memoria en esos contextos.
Por cierto, había allí una concepción de reconocimiento a la investidura afectiva de los objetos y una intención de aproximarse a la experiencia personal de los sujetos – de cualquiera, de todos – en una escala que podríamos llamar minimalista. Se ampliaba así el espectro de los inventarios, colecciones o archivos de artistas a un agrupamiento singular de protagonismo compartido, que expresaba en cierto modo cómo se vivía en la aparente normalidad de un estado de excepción.
El siguiente encuentro con Marga fue con su obra Trapo, que empezó a gestarse poco después, y cuyo comienzo ella misma explica:
Lo inicié en el año 2007 cuando sobre un repasador bordé una frase que recuerdo decía mi madre cuando yo era chica: “Que no le falte a nadie, sábana ni mantel…” A partir de allí comencé a unir con aguja e hilo de bordar distintos elementos textiles propios, de mi familia y de amigos, géneros que fui cosiendo unos con otros, manteles agujereados, ropa vieja, bolsitas de supermercado, tules, trozos de nylon para envolver paquetes, bolsitas ziploc con papeles, toallas, repasadores, cortinas de baño, puntillas, bolsas de consorcio, carpetitas primorosamente bordadas a mano, trapos de piso, almohadones, medias viejas, etc. etc. etc. Cada uno de los pedazos de tela contiene su propio relato único e irrepetible. Juntos forman mi “archivo textil” (Relato de la artista).
Se había pasado aquí de los objetos a los materiales, en su más ínfima condición, ya no la memoria de la tela reconocible en su función histórica sino como residuo, resto, en el umbral del desecho, ya cumplida y agotada su función. La memoria en su última instancia, podríamos decir, de aquello que se arroja sin nostalgia pese a que la ropa – y sus correlatos – acompañan íntimamente todas las instancias de la vida y por ende están plenos de recuerdos. Hay, en este gesto de rescate de lo singular en lo colectivo, una cierta ironía: el trapo, un significante clave en la domesticidad femenina – y las labores asignadas al género en la tradición patriarcal – también se asocia, inversamente, a otra cualidad “femenina”: los “trapos” como el objeto de deseo – la ropa – que nunca se colma. La práctica artística subvierte ambos sentidos y activa otra asociación significante, donde también están presentes el reciclaje, el don y la herencia.
Trapo, Marga Steinwasser.
El uso de la tela y la ropa es frecuente en la obra de mujeres artistas, a veces en explícita relación biográfica, resignificadas por distintos procedimientos, donde el coser y el bordar – clásicas aptitudes femeninas – son usados y contrariados de diversa manera. En el contexto de Brasil – para seguir con el cruce de fronteras del arte –, Ana Miguel, por ejemplo, trabaja entre otras cosas con corpiños, tejidos, crochet, bordados, ropa interior intervenida siniestramente; Cristina Salgado, con telas que acusan inquietantes deformaciones y aberraciones; Rosana Paulino, con fotografías de mujeres negras intervenidas con bordados o zurcidos sobre ojos y bocas que evocan aterradoramente la esclavitud. El arte se transforma así en un potencial de transformación de la experiencia vivida, una activación de lo sensible que al enfrentarse con tabúes, discriminación y sexismo llegan a producir obras, a veces asediadas por lo siniestro cotidiano, de una potente radicalidad ética y política.[4]
Si Trapo operaba una decisiva transformación del material de desecho en un objeto inusual y sorprendente, también contrariaba ciertas lógicas de la obra artística: su temporalidad – es una obra en proceso, siempre abierta; su espacialidad – no solamente puede ser exhibida en los espacios canónicos sino en distintos lugares y circunstancias; el hallazgo de una forma acabada – es cambiante según se la disponga; su contorno – que puede suscitar una proximidad amable y hogareña o tornarse una materia extraña y hasta monstruosa; y también su uso, en tanto está dispuesta al contacto con el otro – tocar, oler, sentir, envolverse con. “En este momento ‘Trapo’ mide alrededor de 180 metros de largo y entre 30 cm y 1.50 metro de ancho. Ha tomado volumen: quizás se convierta en un lugar donde poder sentarse, acostarse, descansar y quizás pensar…” nos dice la autora.
Trapo, Marga Steinwasser.
La ubicuidad de la obra in progress no solo puede cambiar los sitios de su exposición sino también pasar de la fijeza al movimiento: su uso simbólico en un video-danza o en distintas performances en la ciudad, otro de los géneros que aborda la autora. Pero también puede estimular en la propia memoria el afloramiento de lo “inolvidadizo”, aquello que quizá no estuvo presente al comienzo del trabajo de recopilación de ese “archivo textil”, donde la frase inspiradora de la madre traía tal vez el eco de un pasado lejano.
En el año 2012 mostré “Trapo” en Mülheim an der Ruhr, estado de Renania del Norte-Westfalia, Alemania, donde nació mi padre.
La familia de mi padre vivió en Mülheim durante 400 años. En 1938, a causa del nazismo, todos tuvieron que huir de la ciudad. Mi padre se exilió en Argentina; el resto de su familia huyó a Sudáfrica, Inglaterra, Palestina, etc. Algunos integrantes de la familia murieron en los campos de concentración. Después de la guerra ya nadie volvió a vivir en Mülheim.
Quise que el apellido Steinwasser volviera a sonar en la ciudad. Mostré “Trapo” en la Mediateca ubicada en el Synagogenplatz. Esta fue construida en el mismo lugar que ocupara la sinagoga hasta 1936, cuando fue quemada durante “La Noche de los Cristales Rotos”.
Desde uno de los ventanales de la sala donde estuvo expuesto “Trapo” se veía la casa donde había vivido mi padre junto a su familia. También realicé una performance delante de su casa, donde cosí parte de mi archivo textil (Relato de la autora).
“A todo trapo”, performance en video, Grupo Ensayo Abierto. Performance en Mülheim.
Por esos azares de los encuentros – o de las sintonías que los críticos culturales solemos encontrar entre distintas obras – La memoria de la tela y Trapo se encuentran confrontadas con memorias de guerras, destrucción y exilios aunque en ambas prevalece el rescate de lo viviente, aquello que es capaz de reencarnarse en un objeto vibrante, testimonial pero al mismo tiempo partícipe de un presente propositivo, no aquejado de melancolía. Y hay todavía, además de la materialidad, otra coincidencia: si Nury González trabaja en sus obras con el agua – o mejor dicho, si en sus obras el agua también hace su trabajo, evocando tránsitos y exilios – Marga se siente atraída por el río. El río simbólico que baña Buenos Aires, puerta de entrada de los inmigrantes en un país donde se suele decir que “todos venimos de los barcos”, pero también el río trágico, el que guarda las víctimas de los “vuelos de la muerte” de la dictadura. Quizá por eso decidió alguna vez llevar su instalación a la ribera, allí donde es posible acercarse hasta el borde, dejando a las espaldas la ciudad, en una relación de intimidad y en diálogo tal vez con ambas memorias.
Performance en la costa del Río de la Plata, Marga Steinwasser.
Colofón
Llegamos así al final – provisorio – de este recorrido entre archivos, colecciones, objetos y recuerdos, donde los materiales más simples de la vida son capaces de expresar al mismo tiempo rasgos sensibles de la auto/biografía difuminados en lo colectivo, sin insistencia autorreferencial ni “abuso de memoria”, sin renuncia a la ficcionalización ni repetición estereotípica y con fuerte involucramiento en lo social. Una poética de los objetos, podríamos decir, que es a la vez crítica, ética y política.
*Leonor Arfuch – Doctora en Letras por la Universidad de Buenos Aires, profesora e investigadora de la misma Universidad. Ha sido profesora invitada de las universidades de Essex (Inglaterra); UNAM e Iberoamericana (México); Católica y Diego Portales (Chile), Stanford (USA) y Estadual de Rio de Janeiro, entre otras. Obtuvo el British Academy Professorship Award (2004) y la Beca Guggenheim (2007). Es autora de varios libros de referencia, entre ellos, O Espaço Biográfico – Dilemas da Subjetividade Contemporânea, Traducción al portugués de Paloma Vidal (2010) y Memoria y autobiografía. Exploraciones en los límites (2013).
Referencias
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ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico – dilemas da subjetividade contemporânea. Trad. Paloma Vidal, Rio de Janeiro, EdUERJ Editora, 2010.
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BAJTIN, Mijail. Esthétique et théorie du roman. Paris, Gallimard, 1978.
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DEUTSCHE, Rosalyn. Conferencia “Público” en el curso Ideas recibidas. Un vocabulario para la cultura artística contemporánea, en el Museu d’Art Contemporani de Barcelona, (MACBA), 19/11/2007 (Traducción de Marcelo Expósito).
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SEBALD, W.G. Sobre la historia natural de la destrucción. Barcelona, Anagrama, 2010.
Notas
[1] Las imágenes de las obras que acompañan el texto son originales, cedidas gentilmente por las artistas e su composición es de Mariela Antuña.
[2] Nury González, 1960. Artista visual, profesora del Departamento de Artes Visuales de la Universidad de Chile y directora del Museo de Arte Popular Americano Tomás Lago (MAPA). En 1998 obtiene la Beca Guggenheim y en 2001 la Beca de Residencia de la Fundación Rockefeller en Asunción, Paraguay. Entre sus exposiciones se destacan: IV Bienal de La Habana, Cuba; Bienal de Cuenca, Ecuador; Bienal del Mercosur, Brasil; Bienal de Shanghai, China; Bienal de Valencia, España; y participación en muestras colectivas diversas en Latinoamérica y Europa, alén de muestras individuales en Chile.
[3] Artista visual, 1954. Ha hecho muestras individuales en el Centro Cultural Borges, Museo de la Memoria de Rosario, Museo de Arte y Memoria de La Plata, Biblioteca Nacional, galería Elsi del Río, Museo Imaginario de la Universidad de Gral. Sarmiento (Argentina) y en WHO de Copenhague, Dinamarca, entre otros. Participó en distintas muestras colectivas en el Centro Cultural Recoleta, Centro Cultural Borges, Museo de la Memoria de Rosario, Vórtice, Biblioteca Nacional del D.F., México; Centre d’ Art du Québec, Canadá; entre otros.
[4] He tomado los ejemplos de un extraordinario libro de análisis crítico de mujeres artistas, en un corpus que confronta Brasil y Argentina. Ver Tvardovskas Saturnino (2015).
Resumo: O poeta Jorge de Lima (1893-1953) teve vida muito ativa como escritor e médico, por isso, repórteres e resenhistas deram grande atenção a suas produções e críticos bem aparelhados trataram de seus poemas, romances, ensaios e experimentos com as artes plásticas. Mais tarde, o forte apelo de sua dicção peculiar (quase hermética) ficou praticamente esquecido. No momento, quando seus melhores poemas foram republicados e seus papéis pessoais estão acessíveis à pesquisa, é hora de ler sua obra através de perspectivas contemporâneas, aproveitando os métodos renovados de crítica biográfica. Este artigo procura discutir alguns itens selecionados a partir do arquivo de Jorge de Lima, considerando-os em contraponto com amostras dos textos publicados. O objetivo é delinear o perfil possível de um artista moderno cuja carreira peculiar escapa às tendências do movimento modernista brasileiro.
Palavras-chave: Jorge de Lima; arquivo; literatura; artes plásticas; recorte e colagem.
Abstract: The poet Jorge de Lima (1893-1953) was very active in his lifetime both as a writer and a doctor. Therefore reporters and reviewers paid close attention to his activities and well informed critics wrote about his poems, novels, essays and experiments as a visual artist. Later on, the powerful appeal of his peculiar (almost hermetic) diction was almost forgotten. Nowadays, when his best poems have been republished and his personal papers are open to research, it is time to read his work through contemporary perspectives, profiting from the renewed methods of biographical criticism. The present article tentatively discusses some items selected from Jorge de Lima’s archives, considering them in counterpoint to samples of his published writings. The aim of this paper is to try to delineate a profile of a modern artist whose particular career escapes from the main tendencies of the Brazilian modernist movement.
Keywords: Jorge de Lima; archive; visual arts, cutouts, collages.
Os arquivos seduzem o pesquisador de literatura porque acenam com uma promessa fugidia: revelar as marcas daquele instante mágico em que a arte se constrói, surgindo de acasos banais na rotina da vida. Por seu lado, o poeta pode mostrar-se generoso ou esquivo diante da cena da criação – misteriosa mesmo para seu protagonista. Há os que escondem seus segredos de prestidigitador, descartam rascunhos e silenciam sobre o trabalho árduo das inúmeras revisões do texto. Outros preservam anotações, manuscritos rasurados, marcas de leitura de seus antecessores e ainda inserem, na obra, capítulos de uma arte poética própria. Sem contar os que se consideram grandes intuitivos e não demonstram hesitação, nem conservam versões insatisfatórias. Jorge de Lima, artista curioso – titular do acervo de que este artigo se ocupa –, parece pouco preocupado em tomar notas ou guardar exercícios interrompidos, mas sua trajetória, feita de experiências com diversos gêneros e linguagens diferentes, insiste em desdobrar a escrita em indagações sobre o conceito de poesia. Embora não tenha exercido, sistematicamente, a atividade crítica, buscou, muitas vezes, fazer do próprio verso instrumento para uma filosofia da arte.
O conjunto de documentos pessoais, paratextos, reproduções de imagens e coleção de recortes, conservados no Arquivo-Museu de Literatura Brasileira da Fundação-Casa de Rui Barbosa, com certeza, não passa de uma parte dos papéis guardados por Jorge de Lima. A doação foi sendo feita pelos filhos, em mais de uma etapa, muitos anos depois da morte do escritor. Várias coisas devem ter-se extraviado; parte da biblioteca e pastas de manuscritos e datiloscritos ainda se encontram na posse de outros membros da família. Se todo arquivo é, por definição, lacunar e impõe leitura que reúna raciocínio e imaginação, neste caso, é preciso ter cautela e deslocar-se, com muito mais empenho, entre os registros inéditos acessíveis e a obra publicada – em especial, visitando sua generosa dimensão metapoética.
Dedicado a conhecer a arte em suas manifestações diversas, frequentando os clássicos e os vanguardistas, o cânone ocidental e as tradições populares mestiças, Jorge de Lima investigou, com argúcia, os elementos do fazer artístico. Estudava o legado de seus mestres e seu próprio trabalho. Perseguindo, numa quase obsessão, a matéria da poesia, nunca quis desmitificá-la; ao contrário, procurou manter a complexidade do espaço fantástico onde a situava. Por isso mesmo, quando lia Dante ou acompanhava a trajetória inesperada de Salvador Dali, devia indagar-se sobre essas vidas capazes de produzir as surpresas da arte. Deu o título de “Biografia” ao oitavo canto de Invenção de Orfeu – o épico moderno que, como clímax de sua carreira sempre ascendente, veio confirmar, com ênfase, o estatuto transtemporal e coletivo da arte literária. Num curioso registro de seu arquivo, que, pelo que se deduz, indica o reaproveitamento de um artigo já publicado, encontram-se justificativas sobre a ousadia desse experimento intempestivo. Trata-se de recortes de um impresso, colados em folha de papel, com vários períodos riscados e algumas substituições e acréscimos manuscritos. É, aí, que, assumindo a primeira pessoa (ausente da versão inicial), o autor traz explicações sobre:
(…) o Canto Sétimo[1], “Biografia”, que não dividi em partes, como fizera com os outros, mas coloquei em versos que se sucedem em grande número com os principais temas de Invenção de Orfeu. O Canto é feito em sextetos e a biografia não é apenas a do poeta, mas também a de um povo, de uma tradição, de uma herança religiosa e humana (Lima, pi, AMLB).
Se o “poeta” biografado condensa todo um povo e uma tradição, articulando, indistintamente, imaginário cultural e memória particular, também a própria escrita do poema inclui-se como matéria biografável:
Os cantos lapidários varam crivos
conduzidos por lábios preexistentes,
ritmados pelas mãos outrora adeuses
revivescidos clavicórdios múltiplos,
fabulizando os meus e os teus lamentos.
(Nem tristeza distante nem ventura!)
(…)
Contra o tempo e em poesia recompostos
somos todos poetas, natos poetas,
os que têm voz podem cantar
a doce inspiração subdivida,
gravar-se dessas noites patinadas
de sóis que foram ontem sóis cantores (Lima, 1958, p. 820, 849).
O comportamento curioso de um escritor ocupado, que, para atender demandas da circulação de sua obra, improvisa artigos, inserindo pequenas mudanças em textos já redigidos, contrasta com a gravidade de seus versos, produtores de beleza solene. Assim, o primeiro impacto do leitor de sua poesia, diante do aspecto tosco do material conservado no arquivo, leva-o a concluir que o efeito sublime resulta de práticas inesperadamente corriqueiras. Uma escrita construída pelo contraste entre um forte misticismo conservador e a ambição de destacar-se da mediania e chocar com o inusitado de uma fantasia libertária constitui a marca estético-biográfica que identifica a assinatura Jorge de Lima. Nada de precioso se guarda em seu arquivo. Onde se espera achar cadernos de estudo dos clássicos antigos, só se pode surpreender coleções de recortes da imprensa diária: informações sobre prêmios literários, concertos e teatro, em meio a uma profusão de notícias (importantes e descartáveis, significativas e fúteis, repetidas de jornais do país inteiro) referentes a cada passo da carreira do médico poeta.
Essa enorme coleção de recortes, composta, ao longo de quase cinco décadas, em grandes folhas encadernadas que perfazem vinte e sete volumes, impressiona, imediatamente, o pesquisador como índice de indisfarçável narcisismo. Desde muito jovem, no começo da carreira de médico, quando buscava também fazer-se poeta adulto depois de alguns sucessos de menino precoce, Jorge de Lima (ou alguém a seu pedido), percorria jornais da cidade e do país para guardar toda e qualquer referência a seu nome. Ainda que fora de ordem, reportagens ilustradas, notas sociais e tópicos breves de coluna de variedades (devidamente datados e referidos ao periódico onde apareceram) sucedem-se numa cartografia ambiciosa e desajeitada de personagem na busca sôfrega de reconhecimento.
O recorte que abre a coleção – trecho da “Crônica literária” de Ronda, periódico alagoano – tem data de 1917 e apenas inclui o nome de Jorge de Lima entre a “nova geração” de poetas. Próximo a esta nota, aparece o soneto “Espera”, no Jornal de Alagoas de 21 de agosto de 1917, atestando a popularidade de amostras da fase parnasiana, que marca sua estreia prematura. Dessa fase inicial, o destaque, tornado antológico, é “O acendedor de lampiões”, cuja publicação, em jornais da Bahia e do Piauí, sob o nome, já conhecido, de Hermes Fontes, causa protestos em folhas alagoanas de 1916. Mas o poeta, ainda que dedicado à “arte pela arte” dos sonetistas bem comportados, frequenta muitos outros espaços da sociedade, certamente orgulhoso desses trânsitos. Notícias coladas, nesse primeiro caderno, dão conta da carreira bem começada do médico e das repercussões de sua entrada para a política estadual. Valem, pela ironia simpática, as palavras do repórter do Brasil Jornal de 17 de junho de 1920, que aplaudem a nova trajetória parlamentar: “Parabéns ao belo poeta do ‘Acendedor de lampiões’. Sua eleição é uma necessidade, pelo menos para chegar o fósforo a muitos lampiões apagados que existem no Monroe” (J. Reporter apud Lima, Recortes 1, AMLB).
Nas décadas seguintes, quando o escritor já vive no Rio de Janeiro, bem conceituado na prática da medicina e com prestígio garantido pela crítica nacional e portuguesa, além de detentor de prêmios latino-americanos, a quantidade de recortes aumenta, em vez de reduzir-se à seleção de tópicos efetivamente importantes. Em 1936, grandes jornais cariocas e paulistas, que fazem a cobertura da Academia Brasileira de Letras, pronunciam-se sobre o currículo múltiplo de Jorge de Lima, candidato duas vezes. Como exemplo, A Noite de 22 de dezembro inclui em seu perfil: médico, antigo professor de literatura, em Alagoas, membro da Comissão de Literatura Infantil do Ministério da Educação, poeta, romancista, historiador, autor de teses científicas, entre as quais “A questão das raças no Brasil”, publicada em Leipzig, em alemão.
Ao longo da década de trinta, Jorge de Lima, depois de atravessar a fase de experimentos modernistas, quando tematiza, com humor leve, comportamentos e ritos populares, especializando-se, em certo momento, nas tradições afro-brasileiras, vai fixar-se, como sua dicção característica, no verso livre e denso da poesia espiritualizada de orientação católica, que teve início, em parceria com Murilo Mendes, com Tempo e eternidade. Durante esses anos, também publica romances, que chamaram a atenção da crítica: Calunga e O Anjo. Sua poesia da maturidade consolida-se em A túnica inconsútil. O final dos anos trinta marca a presença constante do nome e da assinatura do poeta na imprensa. Além da facilidade – e possível gosto – de fazer circular suas ideias através de artigos rápidos, dirigidos ao leitor apressado do jornal, o poeta parece acolher, com simpatia, todos os repórteres, que vão entrevistá-lo. Assim é que, a revista Vamos Ler publica longa conversa do poeta com Joel da Silveira. Para tratar da situação recente de sua matéria predileta, Jorge de Lima, logo de entrada, menciona a circulação de sua experiência artística fora dos livros, em conferência (1935) na Escola de Belas Artes e, em cursos regulares, seja no ginásio de seu estado, seja como professor de literatura luso-brasileira na Universidade do Distrito Federal. Parece que, para dar peso às suas palavras, é preciso invocar a atividade social onde esta se faz reconhecida. No entanto, os termos em que formula seu julgamento da atividade poética contemporânea apoiam-se nas grandes questões filosóficas: “As palavras desta época haviam culminado numa demorada meditação, numa prolongada observação da essência eterna da poesia” (Silveira apud Lima, Recortes 10, AMLB).
Diante dessas provas evidentes de interesse pela ação comunitária – como deputado estadual, vereador, candidato à Academia de Letras, presidente da Casa de Castro Alves – e de inegável gosto pela publicidade, pergunta-se: será um caso de compulsão pela fama? Os testemunhos de seus contemporâneos registram, ao contrário, a impressão de tranquilidade e modéstia. Para um exercício de crítica biográfica, é necessário enfrentar esse impasse. A par da força crescente da linguagem poética, mais auto-exigente a cada novo livro, propõe-se como contraponto possível as falas transcritas na imprensa, simplificadoras e apegadas a expressões convencionais. Cabe considerar que seu último trabalho literário foi a elaboração de suas memórias, publicadas aos capítulos no Jornal de Letras, entre outubro de 1952 e junho de 1953, quando tiveram de ser interrompidas. Por isso, seus oito capítulos cobrem apenas a infância, a juventude e o início da carreira médica.
Mais do que um empenho da maturidade em fazer-se próximo aos leitores, “Minhas memórias” é uma escrita quase tão esteticamente elaborada quanto a poesia. Sem recorrer a nenhum expediente facilitador, o artista convoca todo um léxico erudito, da poesia e da ciência, e, em vista do impacto estético, recupera um vocabulário regional, que contaminasse a versatilidade adulta com o ritmo fabulatório e o léxico do menino alagoano. Vale a pena seguir o ritmo e a melodia dessa música em prosa: “Vivi esses estirões de terra mangueada, aningada, massapeada, vivi com os pés no chão entre laguna e mar, entre raiz e mangue, em água salobra, mestiçada como cambembe, eu aluviônico, eu baixio, eu terra (Lima, 1958, p. 117)”.
A “guerra” dos meninos assim também dramatiza o estridor de sua violência:
(…) chegam com cadelas, com canivetes, lanham este, esmurram aquele, caem no chão, voam como caninanas, voltam em corrupio, rebulindo como carrapeta, braços de tesoura, zan, zan, zan, outras nações colaborando, os países de minerais, piás cretáceos, piás de granito, malabaristas calcários, camaradas argilosos, cupidos morenos com bodoques, sagitários com alfinetes, paus-de-urtiga, bicos-de-tucano, unha-de-urubu (…) (p. 121).
Cada um dos capítulos tem sua dicção própria para construir cenas vivas do imaginário das crianças do sertão. Sem dúvida, sabendo que registrava seu legado, Jorge de Lima recupera o encantamento pelo mundo rústico, que explora. Nessa série de instantâneos de uma intimidade sôfrega e fantasiosa, percebe-se o combate tenso entre ousadia e insegurança. Veja-se o caso paradigmático de “Cambembe” (capítulo III). Para ultrapassar, com orgulho, restos de mágoa e a vergonha colados ao artista-menino, evoca a lenda dos caetés, desertores da batalha, que se acomodam, felizes, à beira das lagoas, pescando sururu e “tocando gaitas de bambu” (Lima, 1958, p. 116). Pois, era de cambembe que o chamavam quando se retraía, no passado, das “guerras” de meninos; é de cambembe que se chama, quando, no presente da escrita, mede-se com “grandes pretenciosos, grandes guias, formidáveis reformadores” (p. 114). Insinua o sentido pejorativo de “cambembe” para ironizar a pretensão dos que minimizam a alteridade, seja étnica ou artística. Recupera a face afirmativa do epíteto, quando discorda de certa radicalidade míope das ideologias: “Agora, eu simples cambembe anoto à margem de Marx essa coisa curiosa” (p. 116). Pode-se entender que, em sua trajetória, buscava desempenhar-se bem na medicina e na arte, exibia sua erudição nas provas de concurso e na escrita literária, porque deixava-se perseguir por certos fantasmas do heroísmo, certa expectativa de vitória. Ao mesmo tempo, com sua sensibilidade de poeta e sua preocupação solidária com os que se equilibram em profissões marginais, apegava-se ao legado cambembe de sua terra; era gentil na derrota e fazia-se exímio no solo lírico.
Mencionou-se, acima, o desnível evidente entre a elevação sublime da linguagem artística – mesmo quando tocada de humor cruel – e a banalidade do material preservado. Tais contrastes acentuam o enigma da figura delineada na página dos livros e fragmentariamente inscrita no teor dos recortes e nos poucos manuscritos. O trato com o arquivo faz crescer o interesse da pesquisa. Numa tirada feliz, transcrita na biografia assinada por Povina Cavalcanti, Magalhães Júnior compara o poeta Jorge ao “engolidor de fogo” do circo (Povina Cavalcanti, 1969, p. 194). Talvez essa figura impressionante, que emerge na memória das crianças de outro tempo, sirva, mesmo, como emblema da escrita grave, lúdica, sensual e mística, que mais atrai quanto menos se deixa decifrar – escrita que, embora bem recebida na época do lançamento, hoje se insinua, rarefeita, em reedições ocasionais e esparsas publicações de luxo.
Para localizar o poeta em seu ambiente e observar as relações assimétricas entre a trajetória ascendente de sua invenção poética e a desconcertante pluralidade de sua figura pública, deve-se ajustar o foco em uma imagem recorrente nas reportagens e artigos críticos – o consultório médico. Quando se pronuncia sobre a publicação de A túnica inconsútil, Mário de Andrade considera:
Já muito se comentou, se elogiou e se caçoou sem maldade dessa espécie de salão literário que é o escritório de médico do poeta. Porque médico é Jorge de Lima, e digo por minha experiência, bom médico (…). No escritório dele há verdadeiramente duas salas de espera: uma para os clientes de medicina e outra para os clientes da poesia. E, como é de se esperar, esta última sala é bem mais espaçosa e higiênica (Andrade. In: Lima, 1958, p. 417).
De modo semelhante pronunciou-se José Condé, quando entrevistou o poeta para O Cruzeiro em 18/09/1937 (“Ouvindo uma geração”):
Procuramos o sr. Jorge de Lima em seu consultório. O ambiente lá não é exclusivamente médico, mas artístico também. Veem-se pelas paredes quadros a óleo e desenhos de vários bons artistas brasileiros: (…) Cícero Dias (…), Guignard, Santa Rosa, Cortez, Teruz e outros. Retratos de José Lins do Rego, Manuel Bandeira, Murilo Mendes e Mário de Andrade. Tudo isso ladeado de aparelhos clínicos, caixas de remédios e livros. Sobre a secretária do poeta, uma boneca de pano, pretinha, que nos traz a lembrança da negrinha Fulô… (Condé, 1937, apud Lima, Recortes 7, AMLB).
Esse cenário intriga os visitantes porque mistura objetos, atividades e pessoas que o bom senso considera incompatíveis. No seu empenho de dignificar-se na figura do “cambembe”, fazendo convergir, em harmonia tensa, impulsos e ações contraditórios – o desejo de conquistas e a acomodação na pesca de sururu, o descaso com o corpo e o capricho com os sons da gaita – o médico, que se fez professor, presidente de associações e deputado, importa para a vida o mesmo rigor estético que aplica na construção da arte. No clímax da carreira, quando se dispõe a avaliá-la, busca, no passado de sua terra, o emblema que melhor cabe no espaço fantástico, onde os sentidos e valores se mostram insólitos: o sertanejo que oscila entre “caeté” e “cambembe”, líder da tribo e criatura que cultiva a preguiça para melhor absorver-se na sua arte. Por isso mesmo, a escrita, que percorre a intimidade e o cosmos para rastrear a “Biografia” de Orfeu, registra:
Cintilância noturna, lírio ardido,
senda de combustão e vida nossa,
estrela de viajor, túnica veemente,
roseira ardente e chama consentida,
cratera viva a que vulcões se engolfam
como os uivos aos lobos. Convergências (Lima, 1958, p. 861).
Se, na maturidade, o médico-poeta, mantendo a aparência ambígua de seu local de trabalho, mistura, ostensivamente, as tarefas técnicas e as artísticas, este é seu modo visível de contrapor-se às especialidades do saber moderno, tanto quanto – “cambembe” convicto – à obrigatoriedade capitalista de acumular fundos e bens para “aguentar a vida econômica de um cidadão” (Lima, 1958, p. 148). Já nos primeiros tempos de formado em medicina, depois da publicação de alguns volumes de literatura, dedicou-se a compor uma escrita cuja dicção mítica condensasse informações selecionadas do saber científico a fragmentos da tradição poética. Em 1923, dedicou a João Ribeiro a edição bem cuidada desse ensaio singular – misto de solenidade grave, registro do pitoresco e certo tom de desafio irônico – nomeado A comédia de erros. Mesmo considerado “péssimo livro” (p. 154), no capítulo VIII de suas lembranças autocríticas, não é o caso de desprezá-lo. Trata-se de um exercício curioso de contaminação entre temas, gêneros e estilos conflitantes.
Numa quase-fantasia de história da ciência e história das sociedades, que abarca o panorama cosmológico, da formação da Terra ao aparecimento do homem, e termina, fechando o foco, em crônicas da terra do autor, quando esta ainda era a vila “Cerca-Rial-de-Macacos”, o escritor arregimenta um amplo vocabulário, com termos fora de uso, para apontar desvios e escorregões na trilha do conhecimento. Enquanto a ciência experimenta um progresso intermitente, a arte produz momentos iluminadores, irredutíveis a fórmulas. De permeio, a religião expõe sua leitura do universo. Vale citar alguns trechos-amostra, pois o livro nunca mais foi editado.
I – CAOS (chaos)
Consideremos a molécula do carbono. / Não há conjugado mais poderoso, devassando os segredos da vida, catalogizando, seriando na escala dos hidrocarbonetos, com o metro, a proporcionalidade das progressões aritméticas (…). / (…) / Caos! Sendo esta palavra um símbolo da escritura sacra, sê-lo-ia, porventura, na ciência dos homens? Faltavam-lhe de complemento, para mais inteligíveis, certos valores numéricos, a cada letra correspondendo um, e que físicos e metafísicos lhe não enxergaram, porque nos surtos peripatéticos das suas elocubrações voltaram o passo às fórmulas da biologia, onde ela está no frontispício, e é o monstruum universale, por antinomia, da própria vida, a walking shadow, na mais acertada expressão de Shakespeare (Lima, 1923, p. 6).
V – NO MEU BURGO – Cerca-Rial-de-Macacos
A nossa preclara cidade natal, antiga Imperatriz, teve originariamente o nome de Macacos, “Cerca-Rial-de-Macacos” (p. 77).
O Zé das Neves da Gaudência (da Gaudência, dizia o povo, apesar dos cônjuges viverem à parte), encontrara devolutas algumas braças de caatinga nestas redondezas, onde a fantasia dos menos afeitos a visionar temia a intromissão noturna dos espectros. E aí construiu “penates”, dotando o filho, que o apageava solícito, como as farófias do Münchauser, o comentário sonoro da risada (p. 81).
Compreende-se que o poeta maduro e médico respeitado, das décadas seguintes, quisesse esquecer o livro da juventude, com seu estilo pernóstico e sua ambição desmedida. No entanto, visto à distância, o exercício literário extravagante (sintomaticamente dedicado ao grande professor de língua portuguesa) apresenta-se como laboratório de escrita, meio de testar a potência e os limites das palavras cujo jogo sonoro e visual, para além do significado, tornou-se a base do efeito poético nos textos futuros. À medida que se examina, através do arquivo, a trajetória do artista, a impressão captada – cabe insistir – é de um esforço continuado de transvaloração de materiais. Temas e perspectivas, léxico e sintaxe, ritmo e tom – nada resultou de intuições imediatas. Em seu entusiasmo ansioso, o poeta recolhia materiais grosseiros e se lançava a experimentos, sempre com alguma ousadia. À custa do trabalho, é que a pletora de possibilidades testadas pode ir-se reduzindo. Dando-se conta dos “erros” de escolha e articulação, mas firme em seu desejo de promover a “convergência” de objetos e espaços distintos, é que atinge o ponto sublime, no próprio encadeamento excessivo de seus versos. Observe-se que Jorge de Lima, no afã de construir sua obra, talvez não se desse conta de que a veemência retórica pode trazer resultado eficiente. Em 18 de março de 1937, num comentário sobre Os sertões para a revista Vamos Ler, condena Euclides como “fanático da antropologia física” e desentende a denúncia contida no livro, considerando-o ultrapassado. Não percebe que também recorreu aos conceitos de variadas correntes científicas e a preciosismos de escrita para chegar ao efeito sedutor de suas estrofes enigmáticas.
No percurso de Jorge de Lima pela produção poética – percurso já muitas vezes delineado, que começa com os sonetos parnasianos de XIV alexandrinos (1914), passa pelos Novos poemas e Poemas negros, onde se reúnem os exercícios de nacionalismo modernista com o verso livre, num trabalho com a tradição popular, retorna ao horizonte cosmopolita sem abandonar o verso livre, em Tempo e eternidade (1935), que se propõe “restaurar a poesia em Cristo”, em parceria com Murilo Mendes, e vai-se consolidando até que culmina na indiscutível maestria de Invenção de Orfeu (1952) – é flagrante a importância do intercâmbio, tanto no plano artístico quanto crítico, com o companheiro de experimentações a propósito das linguagens do erotismo e da mística. A conquista gradual de uma dicção apropriada, certamente, tirou proveito da convivência com a densidade grave e tensa – não desprovida de humor sutil – da poesia de O visionário e Mundo enigma. É o próprio Jorge de Lima que reconhece a mão do amigo no impulso de sua aprendizagem lírica. Veja-se como J. Fernando Carneiro reporta seu depoimento, em artigo (26/08/1951) sobre o cinquentenário de Murilo:
Há dias conversava com Jorge de Lima sobre Murilo Mendes e Jorge me dizia que conhecera Murilo em 1930 e que, desde então, nunca mais pudera escrever sem pensar no leitor Murilo Mendes. E acrescentava: – “Se Murilo não tivesse aparecido na minha vida, minha poesia teria se tornado ruim. Murilo foi o anjo que me salvou” (Lima, Recortes 26, AMLB).
Em 1939, Murilo publica A poesia em pânico, coletânea cujo título de impacto confirma a liberdade da construção artística, dirigida contra os constrangimentos da arte poética. A exploração do espaço fantástico por parte dos poemas murilianos torna sua aspiração a um catolicismo transcendente nada menos que um gesto revolucionário. Não é preciso acrescentar que tal lançamento teve grande repercussão na imprensa e que Jorge de Lima guardou, entre seus recortes, várias desses comentários críticos, como o de Ruy de Carvalho e o do português Manuel Anselmo. A circunstância ficou marcada no imaginário do artista, que vinha fazendo também experimentos com as artes plásticas. Desde o início da década de trinta, certamente com alguma participação do companheiro, Jorge de Lima explorava, respondendo a sua insaciável curiosidade, a moda artística das fotomontagens. Os frequentadores de seu consultório podiam ver os produtos de seu novo interesse e Mário de Andrade opinou positivamente sobre a pequena série de tais colagens, recebidas da parte do autor. Foi assim que, em 1943, Jorge de Lima reuniu 40 pranchas fotográficas num livro a que deu o título de A pintura em pânico. Apropriando-se da expressão de Murilo Mendes, com o mesmo intento exploratório e questionador com que se apropriava das imagens recortadas, Jorge desafia o bom gosto com o rigor cruel aprendido da prática surrealista.
Num artigo escrito para o “Suplemento em Rotogravura” de O Estado de S. Paulo, em novembro de 1939, artigo reproduzido na reedição recente de A pintura em pânico (Caixa Cultural, 2010), Mário de Andrade trata, em tom leve, da fotomontagem como uma brincadeira transformada em mania. No entanto, avisa: é “um processo de expressão lírica” (p. 19) e tem cultores entre artistas de diversas tendências. Essas considerações servem para apresentar algumas fotomontagens de Jorge de Lima, onde o poeta-crítico encontra “tal habilidade técnica e possibilidades expressivas, que pode sofrer perfeitamente comparação com outros artistas célebres, que as revistas estrangeiras nos mostram” (p. 20). No espaço público carioca, essa habilidade inventiva de Jorge é notória, tanto assim que aparece, em 08/07/1939, uma longa reportagem, “A découpage – processo de gravura surrealista”, produzida por Danilo Bastos a partir de “uma palestra” com o poeta. Este ressalta a adoção da técnica pelos surrealistas mas adverte que é muito anterior ao movimento. Munido de livros franceses especializados no assunto, o poeta explica que a découpage foi um entre os “meios mais extravagantes” de que os surrealistas lançaram mão “para atingir a poesia pura” (Bastos apud Lima, Recortes 10, AMLB). Efetivamente, se se observar a construção da poesia limiana da maturidade, poder-se-á perceber que é resultado de seleção e recorte de imagens verbais do amplo acervo literário absorvido pela imaginação do poeta.
Se é lícito tomar a fotomontagem como amostra do trabalho lírico-artesanal de compor poemas modernos – incluindo-se o impressionante experimento épico Invenção de Orfeu – vale a pena deter-se no acervo de imagens incluído entre os guardados de Jorge, para conhecer seu processo de composição plástica e verbal. Esse expediente mostra-se indispensável, uma vez que não se tem acesso à biblioteca do poeta e só se encontram raríssimas anotações e rascunhos dentre seus papéis arquivados. Surpreende a variedade de imagens selecionadas e conservadas. Do material de trabalho, aí representado, ressalta a ausência de preconceito da curiosidade estética. Ao lado de postais e recortes de charges, há um guia da coleção de arte grega do Metropolitan de Nova York e várias fotografias de monumentos; em contraponto a reproduções de pintura renascentista, encontram-se reportagens sobre as atividades de Salvador Dali nos Estados Unidos e exposições da pintura brasileira moderna. Além dessa convivência estreita da tradição mais estritamente canônica com o maior ecletismo das experiências de vanguarda, os veículos da cultura de massa se veem acolhidos como fonte de investigação das possibilidades de desenvolvimento e articulação de formas e volumes. Numa pasta nomeada “Motivos de pintura”, encontram-se recortes de figurinos, com belos modelos vestindo costumes da moda; reproduções de arte sacra; cenas de culturas exóticas, exibidas pelo National Geographic, fotografias de esportes, máquinas, prisões e turismo na linguagem própria da imprensa popular.
Imagens guardadas pelo artista para eventuais futuras fotomontagens (Fonte: AMLB).
Fica evidente que a dicção clássica do poeta resulta de sua imersão perspicaz e rigorosa na velocidade complexa da vida moderna. Ele mesmo confirma a necessidade imperiosa de abandono das convenções, ao destacar, no texto de apresentação da mostra das esculturas de Bruno Giorgi, em outubro de 1948, a escolha da “livre pesquisa e [d]o trabalho solitário” em rejeição aos “processos medíocres da rotina do ensino” (catálogo, Cx. 12, AMLB). Quando define a carreira do escultor como “estrada real”, por caminhar “entre o classicismo e o modernismo”, e lhe atribui a “sóbria monumentalidade que só Mozart conseguiu nas geometrias de suas composições” (idem), está, na verdade, caracterizando sua própria obra.
(Fonte: www.apinturaempanico.com).
É sintomático que os recortes, colecionados para servirem de “motivos de pintura”, tenham saído, na maioria, de jornais e revistas da década de quarenta – o momento em que Jorge expunha quadros, produzia as fotomontagens, escrevia tanto os sonetos da maturidade quanto Anunciação e encontro de Mira-Celi e ainda se preparava para a grande aventura de Invenção de Orfeu. Essa década fértil corresponde ao máximo rigor na observação de um imaginário cultural de tempos e espaços diversos, para daí recortar os fragmentos mais instigantes. A forma rara e sugestiva poderia estar tanto num desenho de publicidade quanto numa reprodução de pintura consagrada. O movimento de construção dos poemas – em especial de Invenção de Orfeu, investigação poética que reescreve a épica clássica em dicção moderna – também se faz dos gestos virtuais de recorte e colagem. Se a maioria dos materiais é nobre, resgata os fragmentos antológicos do topo do cânone ocidental, seu impacto ganha atualidade na convivência com o tom coloquial das frases, captadas de cantigas populares mestiças, de imagens corriqueiras e chocantes, que entram pelas janelas dos prédios metropolitanos, e de fiapos de memórias, evocadas no movimento lírico de devir-criança do poeta. No oitavo canto, que biografa o poeta – personagem múltipla, condensadora de gerações de artistas – e o poema – caracteriza-se o espaço onde se cruzam ecos da poesia em diferentes momentos e climas:
Ó meninos, ó noites, ó sobrados,
ó sonetos vindouros, quatro nandares
de rimas e azulejos, Isadoras,
Isas, Ineses, Lúcias, inda em flor,
os dias transformando-me e a vós outras
relativas pessoas. Nós aqui (Lima, 1958, p. 870).
* Marília Rothier Cardoso é professora associada da PUC-Rio, publica artigos críticos com apoio em arquivos literários em periódicos especializados; lançou, com Eneida Maria de Souza, o volume Literatura toda prosa, na coleção “Modernismo + 90”.
Referências
Arquivo Jorge de Lima – Arquivo Museu de Literatura Brasileira da Fundação-Casa de Rui Barbosa
LIMA, Jorge de. A comédia de erros. Rio de Janeiro: Jacintho R. dos Santos, 1923.
Resumo: Ler um arquivo toca em grandes questões: linguagem e discurso; ética e política; a natureza do humano e do inumano; o significado do testemunho, levando-nos a novas compreensões de discurso, linguagem, subjetividade e política. Até umas pequenas signaturas podem ser úteis aos futuros cartógrafos.
Palavras-chave: Arquivo; cultura contemporânea; imaginação visual; arte.
Abstract: To read an archive touches on big issues: language and speech; ethics and politics; the nature of the human and the inhuman; the meaning of testimony, leading us to a new understanding of speech, language, the subject and politics. Even some few signposts may be helpful to future cartographers.
L’ambiguità della relazione malinconica con l’ oggetto veniva cosí assimilata alla manducazione cannibalica che distrugge e insieme incorpora l’ oggetto della libido; e dietro gli orchi malinconici degli archivi legali dell’ ottocento torna a levarsi l’ ombra sinistra del dio che inghiotte i suoi figli, quel Cronos-Saturno la cui tradizionale associazione colla malinconia trova qui un ulteriore fondamento nell’identificazione dell’ incorporazione fantasmatica della libido malinconica col pasto omofagico del deposto monarca dell’età dell’oro (Giorgio Agamben – Stanze).
Todos sabemos que o flâneur é o protagonista da leitura urbana na modernidade, percorrendo ruas em acelerado processo de transformação. Em compensação, o arquivista opera, em seu espaço, a autêntica gênese das possibilidades citadinas e das próprias potências urbanas, agindo sempre como em um canteiro, a tal ponto que poderíamos dizer que o canteiro (chantier) funciona como um arquivo da memória cidadã.
La ville a commencé par le chantier et elle ne peut vivre que par lui, voire en lui. La ville se construit en se déconstruisant. Se déconstruisant, elle se désassemble pour s’assembler autrement, pour assembler une incessante altérité toujours transformable, toujours continuée, toujours renouvelée. Le chantier met au jour l’équilibre incessamment métastable de l’urbanicité (Nancy, 2010, p. 17).
Jean-Luc Nancy considera que este regime “de canteiro” verifica-se, em particular, na imagem fotográfica, graças a um aspecto peculiar dela, que se une, por sua vez, à própria captação mecânica da imagem, mas que dela também se distingue, entretanto, à maneira do elemento objetivo que se separa do subjetivo. Entende assim Nancy que a técnica fotográfica é a deserança de origem e fim, interrupção interna da existência, que se traduz em intervalo que separa a produção do produto. Essa separação de todo autos, de todo Si-mesmo, mostra que a ordem natural, a physis, foi rasgada desde o início e encontra-se rompida, alterada ou tocada por uma tekné ou pela intromissão de um Outro, que não cessam de desbordá-la e desdobrá-la, enquanto ilimitado processo de impressão (Faure, Lacoue-Labarthe, Nancy, 2004). Em última análise, o canteiro, a cidade e, por tabela, o arquivo são o real, entendido, porém, como sujeito e não como objeto. Em última análise, para Nancy, um autor é apenas uma máquina, um canteiro, onde se efetiva a lógica do com, a sintaxe das conexões[1]. Um arquivo.
Das Buch der Bücher (O livro dos livros, 2012) é um conjunto de livros que a Documenta 13 encomendou a artistas como William Kentridge, Alejandro Jodorowsky e Abraham Cruzvillegas, ou a filósofos como Cristoph Menke e Suely Rolnik. O conjunto inclui notas preparatórias de Walter Benjamin para o Livro das Passagens; um volume de cartas entre Theodor Adorno e Thomas Mann, prefaciado por Enrique Vila-Matas, reproduções facsimilares dos cadernos de Lukács, enquanto aluno de Georg Simmel, ou o conjunto de esboços de William Kentridge para um de seus stop-motion films desenhados sobre o tempo. Em Lexicon (2011), este mesmo artista sul-africano nos fornece um outro exemplo eloquente dessas operações de canteiro. Sobre um exemplar de um Graecum lexikon, editado em Londres, em 1825, Kentridge faz uma série de impressões sucessivas que se transformam numa cafeteira expresso, a partir da página numerada 20, em vermelho, pelo artista. É a mesma página em que também lemos, por exemplo, o verbete euktaios, ou em latim, optabilis, isto é, desejável. E essa cafeteira italiana vai se definindo mais claramente na página que contém eupistos, fidedigno, mas também euplastos, maleável, a tal ponto que, girando em torno de si mesma, a impressão, verdadeira mancha-sombra do desejo, torna-se um gato à página 40 (também numerada 983), onde nos encontramos, enfim, com a galáxia de kineo, mover-se, deslocar-se (Kentridge, 2011). Tal como no Lexikon, a cidade, onde também impera o canteiro, se transforma igualmente em substância extensa, em função dessa condição informe do urbano, da memória e da própria imagem do presente, uma exterioridade para si, incessantemente fora de si, que não se concentra em lugar nenhum, substância cuja consistência é toda ela um recuo e um retorno, substância de constante deslocamento, sistema de posições e de movimentos incessantes que, em poucas palavras, poderíamos chamar de geometria analítica. Nela não focalizamos mais o vazio referencial que “se vê” nas imagens, mas captamos a pletora de sentidos e passamos a ver, nessas imagens (da memória e do arquivo), uma saturação plástica mediada pela técnica. Nesse ponto, diríamos que as imagens de arquivo, por exemplo, captam, em sua desobra (des-oeuvrement), o duplo regime da visualidade. O historiador referencial julga nelas poder ativar o regime do detalhe, mas a visão que a máquina nos fornece, em seu canteiro de obras, postula, entretanto, para o arquivista, um regime centrífugo de evocações, um regime que tende muito mais à mobilidade e à crítica de toda substancialidade da imagem, através de uma gaia ciência da imagem, indefinidamente lábil, nova e afirmativa em sua própria provocação (Didi-Huberman, 1995).
A partir da noção de canteiro, poderíamos dizer então que os arquivos são semoventes espaços simbólicos, onde sempre há metamorfose e transformação, embora essas consequências não provenham de um gesto subjetivo externo, mas sejam efeito do próprio material que aí se acumula. No caso da literatura, essa transformação não decorre de nada além da própria linguagem. A modernidade dos arquivos não estaria pois na memória (na matéria) acumulada, mas residiria, entretanto, nesse esquecimento do sentido simbólico dos materiais, através dos quais conseguimos, finalmente, ter acesso à mobilidade histórica. Assim sendo, o trabalho do arquivo é, em última análise, an-arquivista e poderíamos mesmo concluir que o arquivo, longe de ser um mero repositório do humanismo, representa o que, na cultura ocidental, há mesmo de inumano, pois sabemos que uma cultura torna-se inumana conforme ela amplifica seus museus e abandona os lugares de culto a seus mortos.
Ora, sabemos que a situação presente é a de uma cada vez mais pronunciada diferenciação ou abandono da Biblioteca em favor do Arquivo. Se a biblioteca remete à tradição, analisa o filósofo espanhol Miguel Morey, isso é porque sua tarefa é preservar, militarmente, o presente, defendendo-o com relação a qualquer crítica, e firmando, aliás, a verdade desse presente numa série de normas que, paradoxalmente, se depreendem da própria tradição. É claro que isto marca limites à própria ação histórica atual, porque estamos fadados a continuarmos restritos tão somente ao jogo possível para uma determinada tradição. Ou, conforme explica o próprio Morey, não há no arquivo, diferentemente da biblioteca, um critério de seleção que diga que existem textos que merecem estar nele e outros que não têm a dignidade suficiente para estar ali. Porque figurar no arquivo não implica nem exige nenhuma etiqueta de nobreza. E, no entanto, a experiência do saber de uma época somente poderá ser cabalmente restituída se trouxermos à luz tudo o que esta época produziu sob o regime da fala, sem nenhum critério de seleção, que forçosamente se deixaria conduzir por aquilo que supomos que esta época tenha pensado, adivinhando-o a partir do pensamento presente. O exemplo de Foucault, nas suas pesquisas, é bem conhecido: trata-se sempre de analisar domínios relativamente restritos, mas sempre por inteiro, exaustivamente. Deve-se ler tudo o que se escreveu sobre o assunto em questão, na época dada, examinar todos os arquivos que há sobre ele, sem privilegiar alguns discursos, como aqueles que realmente criam uma reflexão pertinente, com relação a outros, que são mero material menos nobre. Assim, a palavra de ordem poderia ser agora: exaustividade e suspensão de todo princípio de seleção, diante da aristocracia da biblioteca. Dito de outro modo, o discurso sempre antes e acima do pensamento (Morey, 2007, p. 23).
Contudo, essa questão do arquivo vir a ocupar o espaço e a função da biblioteca abre um limite, não já para o iluminismo, porém, para a simples possibilidade de uma ação pedagógica. Se aceitamos o diagnóstico de Morey, somos levados a concluir que, para Foucault, o saber existe para interromper a pressão do passado, e quando isto acontece, o que se obtém não é a materialidade de nada acumulável, que possa se chamar conhecimento, mas a disponibilidade de um espaço de experiência, agora totalmente aberto graças à intervenção arqueológica. As coisas que nos diziam serem impossíveis, a partir do momento em que se cortou com a memória que ditava essa impossibilidade, convertem-se em abertamente disponíveis. Sob esse ponto de vista, a biblioteca da tradição cumpria uma função que já não pode mais cumprir, e este fato tem muito de liberdade, mas também tem um quê de inquietação. A estas alturas, já não é mais necessário insistir na liberdade que se promove através da crítica, mas, talvez seja oportuno salientar que a substituição da biblioteca pelo arquivo leva a um ponto de crise, talvez o mais violento da sociedade ocidental, no fracasso educacional, verdadeiro fracasso formativo, com o qual nos ameaça. Se saber é cortar, qual o saber que ainda podemos ensinar nas escolas? A promessa que acompanhava a substituição da biblioteca pelo arquivo era uma promessa de desaprendizagem, graças à qual íamos poder desaprender, aprender a nos desprender das velhas ataduras que amarravam nossa experiência e nosso comportamento aos ditados de uma tradição enormemente falaciosa, interessada e sectária. No lugar disso, agora temos o espaço aberto do arquivo. Mas desse espaço aberto não se deduz necessariamente nenhuma pedagogia. Não está claro, porém, se o que dele se deduz é mesmo a impossibilidade de qualquer pedagogia. Em todo caso, o que o arquivo faz, de fato, é outorgar à pedagogia um caráter enormemente problemático.
A sombra de Saturno
O arquivo poderia ser caracterizado, em suma, como um canteiro de obras, como um espaço de incessante desconstrução e reconfiguração axiológica. A esse respeito, Françoise Le Penven, apoiada numa ideia de Gianfranco Baruchello e Henri Martin, argumenta que, se Marcel Duchamp pode ser apontado como fundador da arte contemporânea, é justamente porque ele altera a maneira de produzir arte. Não é mais um artista produzindo obra, mas um arquivista, um homem de projetos e conjecturas, em que o inacabado se opõe ao acabado e em que as notas, o texto, não funcionam mais como um texto de comunicação mas como um protocolo de trabalho (Le Penven, 2003). Cria-se, a partir daí uma situação particularmente inquietante. É o artista que produz a obra ou, pelo contrário, é a obra que produz o artista? Em um dos fragmentos de Espantapájaros (1932), o poeta argentino Oliverio Girondo pergunta-se:
¿Nos olvidamos, a veces, de nuestra sombra o es que nuestra sombra nos abandona de vez en cuando?
Hemos abierto las ventanas de siempre. Hemos encendido las mismas lámparas. Hemos subido las escaleras de cada noche, y sin embargo han pasado las horas, las semanas enteras, sin que notemos su presencia.
Una tarde, al atravesar una plaza, nos sentamos en algún banco. Sobre las piedritas del camino describimos, con el regatón de nuestro paraguas, la mitad de una circunferencia. ¿Pensamos en alguien que está ausente? ¿Buscamos, en nuestra memoria, un recuerdo perdido? En todo caso, nuestra atención se encuentra en todas partes y en ninguna, hasta que, de repente advertimos un estremecimiento a nuestros pies, y al averiguar de qué proviene, nos encontramos con nuestra sombra.
¿Será posible que hayamos vivido junto a ella sin habernos dado cuenta de su existencia? ¿La habremos extraviado al doblar una esquina, al atravesar una multitud? ¿O fue ella quien nos abandonó, para olfatear todas las otras sombras de la calle?
La ternura que nos infunde su presencia es demasiado grande para que nos preocupe la contestación a esas preguntas.
Quisiéramos acariciarla como a un perro, quisiéramos cargarla para que durmiera en nuestros brazos, y es tal la satisfacción de que nos acompañe al regresar a nuestra casa, que todas las preocupaciones que tomamos con ella nos parecen insuficientes.
Antes de atravesar las bocacalles esperamos que no circule ninguna clase de vehículo. En vez de subir las escaleras, tomamos el ascensor, para impedir que los escalones le fracturen el espinazo. Al circular de un cuarto a otro, evitamos que se lastime en las aristas de los muebles, y cuando llega la hora de acostarnos, la cubrimos como si fuese una mujer, para sentirla bien cerca de nosotros, para que duerma toda la noche a nuestro lado (Girondo, 1999, p. 88).
Girondo nos confirma uma característica da sombra que ela compartilha aliás com o canteiro e o arquivo. Ao se mostrar, é o monstro que nela vemos:
Le chantier est um monstre qui tient à la fois de l’hydre (multiplicité de têtes et de cous torves, renaissants aussitôt que tranchés) et du sphinx (composition de lion, de taureau, d’aigle et d’homme). Comme la première, il grouille, comme le second, il veille immobile sur sa propre énigme: c’est-à-dire sur son Idée même, dont il brouille l’aspect alors qu’il en étaye et ajuste les schèmes (Nancy, 2010, p. 36).
O arquivo e o desenho de protovidas
Em 2003, na primeira instalação de 7 Fragments for Georges Méliès, no Baltic Art Centre de Visby, na Suécia, William Kentridge ensaia o que ele chama de protoliving drawing, desenho potencial gerado por suas especulações acerca da reversibilidade do tempo. Diante de uma invasão de formigas, o artista admite:
I had been thinking of reversals all along, but up till then in terms of reversals of time, rather than reversals of tonality. I reversed the film, the white of the paper becoming the dark of the night sky and the black of the ants becoming white dots that would coalesce into galaxies or constellations. For the rest of the week I continued filming ants, three short fragments of which were used in Journey to the Moon. (…)
A bullet-shaped rocket crashes into the surface of the moon, a fat cigar plunged into a round face. When I watched the Méliès film for the first time at the start of this project, I realised that I knew this image from years before I had heard of Méliès. I was far advanced in the making of the fragments for Méliès. I had resisted any narrative pressure, making the premise of the series, what arrives when the artist wanders around his studio. What arrived was the need to do at least one film which surrendered to narrative push. The various props accumulated in the six weeks of making the other fragments threw themselves forward. The espresso pot and cup from Tabula Rasa became respectively the rocket ship and telescope, the rubbed-out landscapes from Moveable Assets the basis for the moon landscape, the reversed catching skills from Auto-Didact the metaphor for weightlessness, and the dark shape that becomes the window of the rocket was one of the messy sheets of Tabula Rasa II (‘good housekeeping’) which perforce meant the inside of the studio was the inside of the rocket. Méliès’ moon is of course a late 19th century colonial moon, an image of difficult terrain and savages. My lunar landscape is Germiston, just outside Johannesburg; in effect the same landscape from which the rocket takes off.[2]
A estratégia de William Kentridge nos permite pensar não só em uma literatura portátil, como a de Vila-Matas, mas, fundamentalmente, em uma literatura potencial, cuja virulência não estaria na matéria positivamente acumulada, mas nesse esquecimento do sentido simbólico dos materiais, nesse retorno enviesado e invertido de suas marcas, através das quais temos acesso à própria mobilidade histórica. Voltar à dinâmica do arquivo pode-nos assinalar então uma via para tanto. Relembremos, portanto, que, em 1922, uma escritora italiana, notabilizada por suas traduções de língua inglesa, Ada Salvatore, prefaciando a própria tradução de Tristram Shandy, observa que
A Sterne è stata fatta ripetutamente l’accusa di plagio. Il dottor Ferriar di Manchester há avuto la pazienza di recercare tutte le fonti alle quali Sterne aveva attinto; e nelle sue Illustrations of Laurence Sterne (oggi introvabile) rivelò che, oltre ad aver avuto a “collaboratori” Rabelais, d’Aubigné, Scarron, ed altri scrittori meno noti del XVI secolo, egli si era servito senza alcuno scrupolo dell’Anatomia della Malinconia di Burton (1624).
Il plagio di alcuni brani è innegabile; ma si può dire che da questa tendenza ben pochi grandi ingegni sono stati immuni. Nessuno di noi ha certo dimenticato le accuse fatte in questi ultimi anni ad Emilio Zola, e quelle che Enrico Thovez scrisse, documentandole, contro il più grande poeta italiano vivente. Del primo diceva il Daudet: “Zola non tolera il talento negli altri: lo prende e lo mette nei suoi libri, e alla fine s’ immagina che sia suo”. Lo stesso potrebbe forse dirsi dello Sterne, senonchè dobbiamo convenire che egli seppe cosi bene scegliere i materiali del suo mosaico e seppe disporti con tanto buon gusto da farsi quasi perdonare la indelicatezza; ed aggiungiamo che i passaggi plagiati hanno indubbiamente minor valore di quelli che sono dovuti alla sua osservazione diretta e all’arte somma ch’egli aveva nel dipengere con pochi tratti figure umane, cogliendo soprattutto il lato ridicolo d’ogni attegiamento e d’ogni caso, anche doloroso, della vita dei suoi personaggi (Salvatore, 1922, p. XIII-XIV)[3].
Alguns anos mais tarde, o escritor argentino Macedonio Fernández, usaria essa mesma passagem de Salvatore para fundamentar uma escritura potencial futura. Escreve Macedonio:
A Sterne se le hizo repetidamente la acusación de plagio. El Dr. Farriar de Manchester ha tenido la paciencia de buscar todas las fuentes en las cuales Sterne ha bebido; y en su Illustrations of Laurence Sterne (hoy inencontrables) reveló que, además de haber tenido por colaboradores a Babelain, d’Aubigné, Scarron y otros escritores menos notorios del siglo XVI, él se había servido sin ningún escrúpulo de la Anatomía de la Melancolía de Burton (1624).
El plagio de algunos trozos es innegable; pero se puede decir que de esta tendencia bien pocos grandes ingenios han estado inmunes. Ninguno de nosotros ha, por cierto, desmentido las acusaciones hechas en estos últimos años a Emilio Zola, y aquéllas que Enrique Thovez escribió, documentándolas, contra el más grande poeta italiano viviente. Del primero decía Daudet: “Zola no tolera el talento de los otros: lo toma y lo pone en sus libros, y al fin se imagina que es suyo.” Lo mismo podría quizás decirse de Sterne, si no fuera que debemos convenir que él supo tan bien escoger los materiales de su mosaico y supo disponerlos con tanto buen gusto hasta hacerse casi perdonar su indelicadeza; y agregamos que los pasajes plagiados tienen indudablemente menos valor que aquéllos que se deben a su observación directa y al arte sumo que en el pintar con pocos trazos figuras humanas, cogiendo sobretodo el lado ridículo de cada actitud y cada caso, aun doloroso, de la vida de sus personajes.
Macedonio transtraz, como diria Guimarães Rosa, o comentário de Ada Salvatore, sem mencioná-la no entanto, talvez por não ser uma crítica de renome e sim uma tradutora de livros de forte apelo popular, tal como E o vento levou de Margaret Mitchell ou as cartas da freira portuguesa Mariana Alcofarado. Mas essa irrelevância concedida por Macedonio à figura do escritor (não necessariamente por ser mulher ou tradutora) é sintomática de uma reconfiguração do próprio trabalho de escritura, em que o autor não é mais alguém que produz uma obra, mas um arquivista, um homem de projetos e conjecturas, para quem o inacabado opõe-se ao acabado e para quem as notas, a marginália, os esboços e anotações não funcionam mais como textos de comunicação, mas como protocolos de trabalho. Macedonio percebe então que, mais importante que o pensamento, é o discurso e aventa, a partir daí, uma hipótese literária de fortíssimas consequências:
Podría no sólo legitimarse esta conducta sino realizar una gran escuela, o mejor, una revolución en el arte (pues el procedimiento puede extenderse de la literatura a las demás disciplinas artísticas). […]
El modo de satisfacer este designio de literatura infinita, de acrecentamiento indefinido del arte, consiste en aprovechar de las experiencias ajenas no sólo en cuanto a ejemplos de voluntad de experiencia sino en adoptar los productos mismos, los hallazgos difundidos en las grandes obras que no han podido librarse totalmente de la impura realidad, que esconden aún demasiado cosmos oxigenado y rutilante o tenebroso, que aún no han colmado la creación circular e inalienable del paramundo de la Literatura. Hay antologías que del soneto más perfecto de un autor de genio sólo estiman recordables uno o dos versos; es un criterio brillante, de alta civilización poética. Si un nuevo poeta pudiera sin crítica apropiarse de esos dos versículos que son lo excelente de toda la vida creadora de un gran poeta y, relacionándolos, según su genio, con otros dos o tres de otro poeta y algunos más de poetas de otros países, realizar un poema perfecto, o por lo menos dueño de un instante de perfección, la literatura progresaría sin sigilo, elocuentemente. Tal obra perfecta sería reelaborada por generaciones sucesivas que irían reperfeccionándola – enmendando una palabra, un acento, una puntuación – como un Mallarmé infinito. Como en economía política se practican los procesos de integración horizontal y vertical de explotación industrial, así en arte: o generaciones sucesivas perfeccionando los mismos productos concretos (no los arquetipos literarios o famosos “thèmes” franceses), o bien colectividades de artistas trabajando fervorosos sobre un mismo poema ponencia, ensayando y reensayando y entrecriticándose (incluso bajo la forma de proceso judicial y con un Fiscal que representara la severidad de la Eternidad), con método semejante al único que ha podido inventar la naturaleza para la resolución de sus prodigios: el “ensayo en número abrumador” (Jacob) o el método de “la prueba y el error” (Yeonings).
“El alquimista Mallarmé extrae lentamente de los abismos del lenguaje el producto de fusiones misteriosas y llena apenas al hueco de nuestras manos de cristales al estado insostenible y helado…
El mago Mallarmé sondea y tortura las palabras mismas, las somete a las más singulares combinaciones y a las más insólitas temperaturas, para forzarlas a abandonar un poco de sus poderes más secretos, de sus virtudes más insecuestrables” (Thierry Maulnier).
Y aún así, melancólicamente, el demiurgo Mallarmé a veces desfallece o dormita (Horacio). ¿Por qué? Porque es un solitario. (¿O es que la fatalidad del arte es la obra absolutamente individual y absolutamente falible?) Cuando poetiza, en uno de sus más famosos poemas (“Brise marine”), que figura en las antologías más rigurosas:
Je partirai! Steamer balançant ta mâture,
Lève l’ancre pour une exotique nature![4]
o
Et peut-être, les mâts, invitant les orages
Sont-ils de ceux qu’un vent penche sur les naufrages
Perdus, sans mâts, sans mâts, ni fertiles îlots…[5]
quizá el gran Mallarmé, el extraordinario inventor de aquel “cygne d‘autrefois“ que recuerda que es él:
Magnifique mais qui sans espoir se délivre
Pour n’avoir pas chanté la région où vivre
Quand du sterile hiver a resplendi l’ennui…[6]
y
Tout son col secouera cette blanche agonie
Par l’espace infligée à l’oiseau qui le nie…[7]
subpiensa que los hombres no merecen tan laborioso desconsuelo, que no hay lector suficientemente pausado y artista como para prepararse con un día de ocio y noble silencio a leer extáticamente ese soneto, y a sólo retornar a las labores o imaginaciones cotidianas después de haber merecido el don de ese poema. Por eso el mago renuncia a dominar alguna última fuerza del mal o de la languidez, aquella “exotique nature” o aquellos “mâts invitant les orages” y a los que “un vent penche sur les naufrages perdus”. Si la especie humana lo merece, podría alguna vez, en memoria de Mallarmé, intentarse el poema infinitamente perfectible, de generación en generación de poetas (Ricardi/Fernández, 1944, p. 5).
O modelo literário de Macedonio não é portanto o da memória mas o do esquecimento. Não nos propõe uma literatura de biblioteca, mas uma ficção de arquivo, o poema infinitamente perfectível: “si un nuevo poeta pudiera sin crítica apropiarse de esos dos versículos que son lo excelente de toda la vida creadora de un gran poeta y, relacionándolos, según su genio, con otros dos o tres de otro poeta y algunos más de otros poetas de otros países, realizar un poema perfecto, o por lo menos dueño de un instante perfección, la literatura progresaría sin sigilo” (Idem, Ibidem).
Sin sigilo e sin siglo. Enlaçando Sterne e Mallarmé, como essa máquina da qual nos falava Jean-Luc Nancy, Macedonio está nos fornecendo uma peculiar linha evolutiva da ficção, aquela que vai de Machado de Assis[8] a Augusto de Campos.[9] Mas além disso, o texto de Alberto J. Ricardi-Macedonio (indiretamente, de Ada Salvatore-Macedonio, ou mesmo de Sterne-Macedonio), antecipa aquilo que François Le Lionnais (que frequentara os círculos de Max Jacob e de Jean Dubuffet, sendo também próximo de Marcel Duchamp e Raymond Roussel, o que, em última instância, o conduz à frente do Collège de Pataphysique), promoveria a partir de 1960, o Ouvroir de littérature potentielle (OULIPO), onde se destacariam Georges Perec ou Italo Calvino.
Repetitividade da mídia, impressão do arquivo
Jean-Luc Nancy nos fala do arquivo como um chantier. Le Lionnais ou Queneau preferem o ouvroir, a oficina. Mas, em todo caso, o arquivo permanece ligado a uma noção de produtividade, de repetição, de iteração e esses modos vinculam-se, em última análise, à tecnologia contemporânea, cujo modo de produção e circulação é essencialmente repetitivo e reprodutivo. A obra de arte, tal como Benjamin já o detectara, só pode ser analisada em função de sua reprodutibilidade intrínseca (uma potencialidade) e não necessariamente sua reprodução (um produto final, um efeito) (Weber, 2008). Duchamp chegou a considerar que uma pá era o objeto estético mais deslumbrante já visto (In advance of the broken arm, 1915). Em 1924, o bureau de investigações surrealistas foi confiado por Breton a Artaud com o intuito de constituir um arquivo do inconsciente. Mais do que sondarem o registro do imaginário, muitos artistas exploraram, daí em diante, a dimensão do real, como Card File (1962) de Robert Morris, Lament of images (2002) de Alfredo Jaar, a exposição de Jenny Holzer Arquivo (galeria Cheim & Read; Nova York, 2006; galeria Barbara Krakow, Boston, 2007) ou a obra de Luis Camnitzer, Memorial (2009). Luc Boltanski é talvez um dos mais representativos quanto à transformação do artista em arquivista, como atestam suas exposições Migrantes ou Flying books, que escavam o tempo a contrapelo (Wechsler, 2013). O curador Dieter Roelstraete concebeu a exposição The Way of the Shovel: Art as Archaeology (O caminho da pá. Arte como arqueologia), no Museu de Arte Contemporânea de Chicago (2013-4), como manifestação desse impulso arquivístico que hoje podemos constatar na obra de artistas tais como Pamela Bannos, com os negativos resgatados do lixo; Derek Brunen; Mariana Castillo Deball, como sua instalação Stellae Storage; Tacita Dean ou Mark Dion. O artista tailandês (nascido, porém, em Buenos Aires) Rirkrit Tiravanija usa um arquivo jornalístico e uma tradução errônea para validar a hipótese de Guy Debord, em The days of this society is numbered (2012). Em todos eles verificamos, em suma, não já a simples reprodução mecânica mas a reprodutibilidade técnica, na medida em que, quando pensamos em reprodutibilidade, estamos pensando em inscrição, marca, vestígio. Em termos artísticos: fotografia, cinema ou vídeo. Mas não esqueçamos aliás que, quem diz video, produz Witz (engenho) e, ao mesmo tempo, Wissen (sabedoria).
Mas a universel reportage, a doxa diária, mesmo quando anestésica, também instala-se em nossas vidas em termos de repetição, ou antes, repetitividade, no cerne mesmo da nossa vida. A mídia eletrônica é justamente essa potencialidade futura, essa virtualização que constantemente separa o hinc et nunc do far away and long ago, renunciando, porém, à potência da linguagem, essa mesma que habita no arquivo. Walter Benjamin intuiu essa questão no seu ensaio sobre a obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica (1936) e, na sua esteira, Giorgio Agamben assinalou, em O homem sem conteúdo (1970) que
Dovunque un’ opera d’ arte è oggi prodotta ed esposta, il suo aspetto energetico, cioè l’ essere-in-opera dell’ opera, è cancellato per far posto al carattere di stimolante del sentimento estetico, di mero supporto della fruizione estetica. Il carattere dinamico della disponibilità per la fruizione estetica, oscura, cioè, nell’ opera d’ arte, il carattere energetico della stazione finale, nella propria forma. Se questo è vero, allora anche l’ opera d’ arte, nella dimensione estetica, ha, come il prodotto della tecnica, il carattere della dýnamis, della disponibilità per…, e lo sdoppiamento dello statuto unitario dell’ attività produttiva dell’ uomo segna, in realtà, il suo trapasso dalla sfera dell’ enérgeia a quella della dýnamis, dall’ essere-in-opera alla mera potenzialità.
Il sorgere delle poetiche dell’ opera aperta e del work-in progress, che si fondano su uno statuto non energetico, ma dinamico dell’ opera d’ arte, significa appunto questo momento estremo dell’ esilio dell’ opera d’ arte dalla propria essenza, il momento in cui – divenuta pura potenzialità, il mero essere-disponibile in sé e per sé – essa assume coscientemente su di sé la propria impotenza a possedersi nella fine. Opera aperta significa: opera che non si possiede nel proprio eîdos come nel proprio fine, opera che non è mai in opera, cioè: (se e vero che opera è enérgeia): non-opera, dýnamis, disponibilità e potenza (Agamben, 1970, p. 99).[10]
Mais tarde, em 1996, numa passagem de Meios sem fim. Notas sobre a política, o próprio Agamben resumiria essa condição com uma questão que perpassaria seus últimos escritos e que define, em suma, a potencialidade do arquivo:
La politica è ciò che corrisponde all’ inoperosità essenziale degli uomini, all’ essere radicalmente senz’ opera delle comunità umane. Vi è politica, perché l’ uomo è un essere argós, che non è definito da alcuna operazione propria – cioè: un essere di pura potenza, che nessuna identità e nessuna vocazione possono esaurire (questo è il significato politico genuino dell’ averroismo, che lega la vocazione politica dell’ uomo all’ intelletto in potenza). In che modo quest’ argía, queste essenziali inoperosità e potenzialità potrebbero essere assunte senza diventare un compito storico, in che modo, cioè, la politica potrebbe essere nient’ altro che l’ esposizione dell’ assenza di opera dell’ uomo e quasi della sua indifferenza creatrice a ogni compito e solo in questo senso restare integralmente assegnata alla felicità – ecco quanto, attraverso e al di là del dominio planetario dell’ oikonomia della nuda vita, costituisce il tema della politica che viene (Agamben, 1996, p. 109).[11]
*Raul Antelo é professor titular de Literatura Brasileira na Universidade Federal de Santa Catarina e pesquisador-sênior CNPq. Publicou, entre outros, Na ilha de Marapatá; Literatura em revista; João do Rio: o dândi e a especulação; Parque de diversões Aníbal Machado; Algaravia – Discursos de nação; Maria com Marcel.
Referências
AGAMBEN, Giorgio. L’uomo senza contenuto. Milão: Rizzoli, 1970.
AGAMBEN, Giorgio. O homem sem conteúdo. Trad. notas e posfácio de Cláudio Oliveira; prefácio de Gilson Iannini. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.
AGAMBEN, Giorgio. Mezzi senza fine: Note sulla politica. Turim: Bollati Boringhieri, 1996.
AGAMBEN, Giorgio. Meios sem fim: notas sobre a política. Trad. Davi Pessoa; revisão da trad. Cláudio Oliveira. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
DIDI-HUBERMAN, Georges. La ressemblance informe. Ou le gai savoir visuel selon Georges Bataille. Paris: Macula, 1995.
MALLARMÈ, Stéphane. “Brisa marinha”. In: CAMPOS, Augusto et al. Mallarmé. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1974, p. 45.
MERQUIOR, José Guilherme. De Anchieta a Euclides. Breve história da literatura brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1977.
MOREY, Miguel. El lugar de todos los lugares. In: VARIOS AUTORES. El mal de archivo. Madrid: Comunidad de Madrid, 2007.
NANCY, Jean-Luc. Trafic / Déclic. Strasbourg: Le Portique, La Phocide, 2010.
NANCY, Jean-Luc, BAILLY, Jean-Christophe. La comparution. Paris: Christian Bourgois, 1991.
SALVATORE, Ada. Prefazione. In: STERNE, Lorenzo. La vita e le opinioni di Tristano Shandy. Trad. Ada Salvatore. Ilustrações Benito Boccolari. Milão: Bietti, 1922.
RICARDI, Alberto J. (pseud. Macedonio Fernández). El plagio y la literatura infinita. Papeles de Buenos Aires, nº 3, Buenos Aires, 1944.
WEBER, Samuel. Benjamin’s-abilities. Cambridge: Harvard University Press, 2008.
WECHSLER, Diana. Boltanski Buenos Aires. Paris: Les presses du réel/ Buenos Aires EDUNTREF, 2013.
Notas
[1] “‘Marx’ est d’abord, en un sens, une puissante machine à arpenter et à redistribuer tout un espace commun à une époque (et commun dans tous les sens), l’espace commun, précisément, de l’investigation de ces espaces communs que sont l’économique, le social, le juridique, le politique, l’idéologique, tels qu’ils émergent pour eux-mêmes, et dénudés, dans l’époque de l”économie politique’ et de la clôture des significations (de la ‘métaphysique’). Plutôt que de s’échapper dans l”originalité’, ‘Marx’ consiste à tenir Marx en retrait, opérant depuis ce retrait la mise au jour de ce qui reste lorsque vacillent les prétentions à réinterpréter le monde, une fois de plus. Ce qui reste, un chantier commun (et le ‘commun’ en tant que chantier, espace défoncé, désordonné, ni construit, ni déconstruit)” NANCY, Jean-Luc ; BAILLY, Jean-Christophe, 1991, p. 73.
[3] Devo à proverbial gentileza de Ettore Finazzi-Agrò a consulta deste exemplar, constante da Biblioteca de Filosofia da Universidade de Roma (La Sapienza).
[4] “Eu partirei! Vapor a balouçar nas vagas, / Ergue a âncora em prol das mais estranhas plagas”. Mallarmè, In: Campos, 1974, p. 45.
[5] “E é possível que os mastros, entre as ondas más / Rompam-se ao vento sobre os náufragos, sem mas-/ tros, sem mastros, nem ilhas férteis, a vogar…” (ibidem).
[6] “Magnífico mas que em esperança bebe / Por não ter celebrado a região que o recebe / Quando o estéril inverno acende a fria flora” (Idem, ibidem, p. 63).
[7] “Todo o colo estremece sob a alva agonia / Pelo espaço inflingida ao pássaro que a adia” (ibidem).
[8] Brás Cubas é um romance sterniano em que Machado opta pela forma livre do predecessor. Não obstante, José Guilherme Merquior aponta dois traços que seriam diferenciais em relação a Sterne, um é “a feição filosófica e sardônica do humorismo machadiano. Essa ironia álgida, eivada de ‘rabugens de pessimismo’, como confessa o finado autor, é muito diversa do humorismo eminentemente simpático e sentimental do Tristam Shandy. O travo acre e angustiante que nos deixa a ‘galhofa’ de Machado falta por completo ao licor amável de Sterne; mas a natureza inquietadora do humor machadiano deriva justamente da sua propensão inquisitiva e filosófica, da sua qualidade de visão problematizadora. A segunda diferença é a natureza fantástica da situação narrativa. Sterne regurgita de excentricidades, mas todas elas são, em última análise, imputáveis às desordenadas preambulações do espírito do Tristram, ao contar a sua autobiografia; Sterne queria explorar no romance a teoria de Locke sobre a associação de ideias, chave do processo psíquico; daí haver nele muita fantasia, mas não o fantástico. Decididamente fantástica, porém, é a moldura narrativa do Brás Cubas; a começar pelo fato de ser o romance de um defunto, ‘memórias’ radicalmente póstumas…” (Merquior, 1977, p. 166-167).
[9] Em 1955, Augusto de Campos afirmava, em “Poesia, estrutura”, que “Mallarmé é o inventor de um processo de organização poética cuja significação para a arte da palavra se nos afigura comparável, esteticamente, ao valor musical da série, descoberta por Schoenberg, purificada por Webern, e através da filtração deste, legada aos jovens compositores eletrônicos, a presidir os universos sonoros de um Boulez ou um Stockhausen. Esse processo se poderia exprimir pela palavra estrutura“. E em “Poema, Ideograma”, ele mesmo concluía que “as subdivisões prismáticas da Ideia de Mallarmé, o método ideogrâmico de Pound, a simultaneidade joyciana e a mímica verbal de cummings convergem para um novo conceito de composição – uma ciência de arquétipos e estruturas; para um novo conceito de forma – uma ORGANOFORMA – onde noções tradicionais como início, meio, fim, silogismo, tendem a desaparecer diante da ideia poético-gestaltiana, poético-musical, póetico-ideogrâmica de ESTRUTURA”. Antes disso, porém, na revista de Macedonio, podia-se ler, igualmente, “Ensayos sobre música I” (Papeles de Buenos Aires, nº 2, nov. 1943) e II (na mesma revista, nº 3, abril de 1944), de Juan Carlos Paz e, mais tarde, em 1950, era possível também rastrear, nas páginas de uma outra revista portenha, Arte Madi, a defesa dos mesmos princípios reivindicados por Augusto de Campos, saindo porém da pena de Hans Joachim Koellreuter (“Carta abierta”, Arte Madi, nº 4, out. 1950; “Un nuevo mundo sonoro”, ibidem, nº 6, out. 1952).
[10] Na tradução brasileira: “Onde quer que uma obra de arte, hoje, seja produzida e exposta, o seu aspecto energético, isto é, o ser-em-obra da obra, é apagado para dar lugar ao caráter de estimulante do sentimento estético, de mero suporte da fruição estética. Isto é, o caráter dinâmico da disponibilidade para a fruição estética obscurece, na obra de arte, o caráter energético da estação final, na própria forma. Se isso é verdadeiro, então também a obra de arte, na dimensão estética, tem, como produto da técnica, o caráter da δύναμιζ, da disponibilidade para…, e o desdobramento do estatuto unitário da atividade pro-dutiva do homem indica, na realidade, o seu ultrapassamento da esfera da ένέργεια para aquela da δύναμιζ, do ser em obra para a mera potencialidade.
O surgimento das poéticas da obra aberta e do working in progress, que se fundam em um estatuto não energético, mas dinâmico da obra de arte, significa precisamente esse momento extremo do exílio da obra de arte de sua própria essência, o momento em que – tornada pura potencialidade, o mero ser-disponível em si e para si – ela assume conscientemente, sobre si mesma, a própria impotência em se possuir no fim. Obra aberta significa: obra que não se possui no próprio εíδος como no próprio fim, obra que não está jamais em obra, isto é: (se é verdade que obra é ένέργεια): não obra, δύναμιζ, disponibilidade e potência” (Agamben, 2012, p. 111-112).
[11] Na tradução brasileira: “A política é aquilo que corresponde à inoperosidade essencial dos homens, ao ser radicalmente sem obra das comunidades humanas. Há política porque o homem é um ser argós, que não é definido por nenhuma operação própria – ou seja: um ser de pura potência, que nenhuma identidade e nenhuma vocação podem exaurir (este é o significado genuíno do averroísmo, o qual liga a vocação política do homem ao intelecto em potência). De que modo essa argía, essas inoperosidades e potencialidades essenciais poderiam ser assumidas sem se tornarem uma tarefa histórica, isto é, de que modo a política poderia ser nada mais do que a exposição da ausência de obra do homem e, quase, da sua indiferença criadora em relação a qualquer tarefa e somente nesse sentido permanecer integralmente destinada à felicidade – eis o que, através e para além do domínio planetário da oikonomia da vida nua, constitui o tema da política que vem” (Agamben, 2015, p. 126-127).
A lição de Zefa _ Revista Z CulturalResumo: O presente artigo consiste numa reflexão sobre o arquivo de uma artista popular – Zefa, artesã do Vale do Jequitinhonha – a partir da reelaboração de uma experiência de pesquisa. Em tom mais ensaístico, consideram-se os modos de colecionar, os materiais e o fazer artístico na arte popular, explicitando-se questões relativas ao arquivo, à memória e à cultura popular.
Palavras-chave: Arquivo; coleção; artista popular; Zefa; Vale do Jequitinhonha.
Abstract: This article is a reflection on the archive of a popular artist – Zefa, a Jequitinhonha Valley artisan – following the re-elaboration of a research experience. In essayistic tone, materials collecting processes and popular art practices are considered, raising issues as to the concepts of archive, memory and popular culture.
Keywords: Archive; collection; popular artist; Zefa; Jequitinhonha Valley.
De Arassuaí, eu trouxe uma pedra de topázio.
João Guimarães Rosa. Grande sertão: veredas.
Fins de janeiro de l987. Um jovem pesquisador viaja pela primeira vez a Araçuaí, cidade situada no Vale do Jequitinhonha, no noroeste de Minas Gerais. Conhecido pela pobreza e carência material, o Vale apresenta, no entanto, uma riqueza cultural que se manifesta no artesanato, na música, na literatura popular. Acompanha-o uma colega de pesquisa, natural da região. Aos solavancos, por uma estrada de terra irregular, o ônibus se move vagarosamente pelas chapadas do Vale. As sombras monótonas das plantações de eucalipto contrastam com o fulgor de um céu enluarado. Uma lua cheia reina absoluta, transformando a paisagem em pura prataria. Desperto, o jovem pesquisador parece redescobrir a magia de um céu estrelado, obstruído, nas grandes metrópoles, pela potência das lâmpadas de vapor de sódio, sortilégio da eletrificação e do progresso. Difícil conter lembranças da infância fazendeira vivida na zona da mata mineira, ouvindo estórias e casos em torno de um fogão de lenha. Na bagagem, ele e sua colega levam um projeto de pesquisa – a literatura popular no Vale do Jequitinhonha –, repasto de aspirações universitárias. Entre o sono e a vigília, assaltam-no devaneios existenciais e acadêmicos.
De Belo Horizonte a Araçuaí são 620 quilômetros. À época, o asfalto só chegava até Diamantina, garantia de uma viagem mais confortável em ônibus mais novo; de lá até Araçuaí, eram uns 320 quilômetros percorridos num ônibus velho – uma jardineira –, que esticava a viagem para 13 horas. Índice contundente de uma modernização truncada e desigual que marca o continente latino-americano, o asfalto somente chegou até muitas cidades do Vale somente nos anos 1990. Com o governo de Newton Cardoso (eleito em 1988), que se empenhou em substituir o “negócio” do artesanato, pouco efetivo na geração de empregos segundo ele, por “fábricas de louças”. Ao voltar a Turmalina poucos anos mais tarde, o jovem pesquisador se deparou com as chaminés de uma dessas fábricas e não pôde conter um sentimento de estranheza, como um retorno no tempo, quando o trabalho mecânico na indústria substituía o trabalho manual. No final do século 20, o Vale experimentava um fenômeno antigo, dos primórdios da era moderna. Só que numa outra configuração, em que arcaicos resíduos culturais e técnicos se mesclavam a aparatos tecnológicos mais modernos ou ultramodernos – computador, internet, televisão. Nessa modernização tardia, o asfalto tinha como objetivo maior facilitar o escoamento do carvão vegetal produzido em grandes extensões das chapadas do Vale, atendendo-se à demanda sobretudo das usinas siderúrgicas situadas na região metropolitana da capital mineira, especialmente as da cidade de Sete Lagoas, e, obviamente, aos interesses das companhias de reflorestamento que investiam na plantação de eucalipto no Vale. Por conta desse avanço retardado de um capitalismo industrial pelo interior do país, muitos pequenos proprietários do Vale chegavam a vender suas pequenas propriedades paras essas reflorestadoras e passavam a trabalhar nelas, a troco de salário mínimo, como matadores de formigas, ferozes inimigas dessas matas de eucalipto que sugavam os córregos e nascentes de águas da região.
* * * * *
Na abertura de Tristes trópicos, Lévi-Strauss confessa seu ódio às viagens e aos exploradores. Uma pista possível para explicar tanto desconforto, ele dá quando diz que “não há lugar para a aventura na profissão de etnógrafo”, que “só serve para o avassalar” (Lévi-Strauss, 1986, p.11). Mas será por que não tem aventura na sua profissão? Talvez porque, no âmbito da universidade moderna como instância a serviço do Estado-nação, o processo de normalização e disciplinamento daqueles saberes destinados a serem ciências tenha imposto uma hegemonia do Método. Hipostasiado, o Método obliterou a heterogeneidade dos caminhos – dos métodos – para a construção do conhecimento. O Método, as hipóteses explicativas excluíam muitas vezes a possibilidade do imprevisto, do acaso, da aventura. Marcada por uma teleologia científica, a viagem não passava frequentemente de um subterfúgio para se confirmar uma resposta já previamente pensada, inviabilizando um efetivo encontro com as diferenças, com a alteridade. Mas o próprio Lévi-Strauss já desconfiava dessa hipertrofia do método científico, do caráter virtual e inacabado de nossas abstrações e teorias, ao colocar a arte e a ciência para dançarem juntas em trabalhos posteriores. Veja-se, a propósito, a bela “Abertura” de O cru e o cozido, em que, por meio de um pensamento analógico e inventivo, sem se ater a um método único, se vale da música para pensar o mito (Lévi-Strauss, 1991, p. 09-38).
Numa jornada que mergulha noite adentro, o jovem pesquisador viaja sem saber ainda do desconforto de Lévi-Strauss com as viagens. Desloca-se no espaço e no tempo, no espaço-tempo. Ao chegar a Araçuaí, em torno das 9:00 horas, sob o sol escaldante de janeiro, ele, sua colega e alguns estudantes bolsistas de iniciação científica estão ruços de poeira, parecendo outros. O primeiro gesto, ao descerem do ônibus, consiste em espanar com as mãos a grossa camada de poeira que cobre roupas e corpos, para recuperar uma identidade subitamente evaporada. Evolando-se no ar, essa poeira assemelha-se ao pó, cheio de ácaros, que se deposita sobre os documentos de um arquivo, que o pesquisador desavisado inspira, infectando-o de uma febre de arquivo. Carolyn Steedman se debruça sobre essa febre do arquivo, que se abate sobre Jules Michelet, por exemplo, ao ler de modo literal o título do livro de Derrida, Mal d’archive, na tradução em inglês: Archival Fever. Lendo a obra de Vico, em janeiro de 1824, Michelet anotou em seu diário que havia se intoxicado com seus princípios históricos. Ao compulsar velhos documentos e livros, respirou também o pó que os cobria, contraindo literalmente os males do arquivo, doenças típicas de homens cultos, letrados. No silêncio do arquivo, onde acredita que o passado vive, Michelet compreendeu que a tarefa do historiador social consiste em dar vida aos mortos, ressuscitá-los. Especialmente àqueles cujas breves existências não estão arroladas nos documentos do Estado (Steedman, 2002, p. 69-72). Para ele, o sonho do historiador consiste em dar voz aos mortos, encontrando um sentido para suas efêmeras existências. E, assim, pacificá-los.
Em seus usos, pois, desvela-se essa subterrânea conexão do arquivo com os mortos, como forma de garantir-lhes a paz e descanso eterno. E de, caso retornem para nos interpelar, poder dizer-lhes, especialmente àqueles que sucumbiram em conflitos e guerras extremos, que não morreram em vão, que aprendemos algo com seu sacrifício. Como bem nos mostra o filme J’accuse (1919) de Abel Gance, feito ainda em meio aos escombros deixados pela experiência devastadora da Primeira Grande Guerra. Nesse trabalho, Gance parece antecipar essa onda de filmes sobre zumbis (Walking dead) que retornam em série e nos assombram hoje, menos talvez como reflexão histórica sobre o passado do que como puro divertimento.
Ao se livrar da poeira, o jovem pesquisador mal percebia que sua viagem a Araçuaí, ao Vale do Jequitinhonha, equivalia a um mergulho no arquivo. No arquivo teórico e prático latino-americano, com seus saberes locais, heterogêneos, mesclados. É como se o Vale fosse um grande arquivo ao ar livre, com seus documentos expostos às intempéries do tempo – as inscrições de figuras rupestres que Seu Pedro Cordeiro Braga lhe mostrara na Serra das Almas; o rio Jequitinhonha assoreado pela ganância das mineradoras, que atravessara a pé indo até a referida serra; o missal vermelho de capa dura que vira na matriz de Minas Novas; seus narradores populares maquinando estórias. (Afinal, se pensado nos termos de uma escala temporal cósmica, da “Grande Narrativa” em que se insere o processo de hominização narrado por Michel Serres em Narrativas do humanismo (2015), não seria nosso planeta um grande arquivo?) Nessa ideia de mergulho, de imersão, como não surpreender as imagens marinhas associadas à representação do arquivo, assinaladas por Arlette Farge? Com suas subdivisões em fundos, distinto tanto dos textos quanto dos documentos, o arquivo mostra-se desmesurado e invasor, como as marés, as inundações e as avalanches. Mas produtor de um “efeito de real” (Farge, 1989, p. 7-26). Numa outra viagem, de Diamantina ao Vau, contornando a Pedra Redonda, onde nasce o Jequitinhonha, o professor Rodolfo lhe havia dito que, em tempos pré-históricos, aquela região fora coberta pelo mar, como demonstravam vestígios de conchas incrustadas nas rochas.
Na medida em que se adentra pelo Vale, o jovem pesquisador caminha em direção às bordas, aos limites do arquivo, como possibilidade de pensá-lo. Tomam-no sensações estranhas, como a de penetrar numa terra estrangeira, numa “terra ignota” – tal qual Euclides da Cunha ao se aproximar dos sertões de Canudos –, apreendendo as fronteiras internas da nação, seu outro interior. Foucault nos lembra da impossibilidade de descrever nosso próprio arquivo, que seria indescritível em sua totalidade e incontornável em sua atualidade, dando-se por fragmentos, regiões, níveis. O arquivo consiste, para ele, num sistema de regras que possibilita a produção de enunciados; do interior de suas regras é que falamos. Não se reduz a um espaço físico, a uma topologia, onde se guardam os documentos, registros. Disso avulta uma questão intrigante: Onde, pois, começa e onde termina o arquivo? Ainda mais com essa onda digital, que açula a compulsão de tudo registrar, arquivar, segundo uma memória transbordante, ilimitada? Se para Derrida, no entanto, o arquivo pressupõe impressão e exterioridade, uma domiciliação – o princípio topológico, ligado ao começo, ao qual se articula um princípio nomológico, de comando e poder, como contido na Arkhê grega (Derrida, 2001, p. 11-16) –, difícil todavia delimitar seu início, perscrutar suas fronteiras. Assim, para Foucault,
a análise do arquivo implica uma região próxima de nós mas diferente de nossa atualidade: a orla do tempo que cerca o nosso presente, aquilo que fora de nós nos delimita; implica o afastamento de nossas próprias práticas discursivas; permite o nosso diagnóstico ao nos desprender de nossas continuidades e dissipar nossas identidades; o arquivo nos mostra como diferença, que a nossa razão é a diferença dos discursos e a nossa história a diferença dos tempos e nosso eu a diferença das máscaras, e a diferença como a dispersão que somos e fazemos (Foucault, 1987, p. 151).
A viagem, o deslocamento em direção à orla, aos limites, às fronteiras – estratégias para se pensar o arquivo. Modos de se distanciar de nossas práticas discursivas e suas regras de funcionamento. Formas de experimentar nossas descontinuidades, nossas fissuras, nossas diferenças. Teatro do estranhamento de nós mesmos, dispersão e concentração.
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Em Araçuaí, cidade situada no médio Jequitinhonha, esperam os pesquisadores Zefa e Lira, artesãs do Vale, e Sá Luiza, benzedeira, todas elas contadoras de casos, histórias, mais o velho Paiada, líder comunitário. Zefa, nome artístico e de guerra, talvez mais real que Josefa Alves dos Reis, nascida em 1925 em Poço Verde, Sergipe, beirando hoje os seus 90 anos. É uma das mais antigas artesãs de Araçuaí, aonde chegou em 1962, depois de pelejar em Teófilo Otoni, fugindo da seca do Nordeste (Vieira in Moura, 2013, p. 25-28). Inicialmente fazia trabalhos de cerâmica, até descobrir as possibilidades da madeira; especializou-se numa técnica antiga utilizada pelos índios para produzir seus personagens nordestinos, que lembram a Guerra de Canudos.
A cidade está situada às margens do rio Araçuaí, principal afluente do Jequitinhonha, e do ribeirão Calhau. Araçuaí, nome indígena que significa “araras grandes”. Os primeiros habitantes da região foram índios do grupo dos tapuias. Habitantes do interior, não falavam línguas do tronco tupi e eram considerados bárbaros pelos demais. Tapuio designa também o caboclo rude, o mestiço. Ao local chegam mais tarde portugueses, mestiços paulistas e da costa da Bahia, detentores de maiores recursos e que tomaram conta do lugar. O acesso à região se devia muito ao trabalho dos canoeiros, que subiam e desciam o rio transportando homens, cargas e mercadorias. Junto com os tropeiros, os canoeiros tinham muitas histórias para contar. Conta-se que, na fundação da cidade, destaca-se o papel das meretrizes. Na confluência dos rios Araçuaí e Jequitinhonha, num local muito agradável onde aportavam as canoas para a troca de mercadorias, um certo padre Carlos Pereira de Moura fundou a Aldeia do Pontal, purificando-a com a expulsão de todas as meretrizes, que amenizavam a dura vida de barqueiros e canoeiros. Sem rumo, elas migraram rio Araçuaí acima, tendo sido acolhidas na Fazenda da Boa Vista, de Luciana Teixeira, que cedeu suas terras às emigrantes. Os canoeiros mudaram de porto e, no novo local, se desenvolveu o arraial do Calhau – nome devido à grande quantidade de pedras redondas encontradas por lá –, que deu origem à cidade de Araçuaí, por volta dos anos de 1830 e 1840. Com o progresso, a estrada de rodagem e o movimento dos ônibus e caminhões substituíram a navegação pelo rio. A cidade foi dando as costas para o rio e se virando para a rodovia, num típico movimento do processo modernizador. Os canoeiros são hoje apenas uma lembrança preservada por monumento na praça da Matriz. Monumentalizados para o esquecimento.
Índios, mestiços, canoeiros, tropeiros, prostitutas, portugueses, paulistas e baianos – como são misturadas e impuras as origens, que uma história idealizada procura sublimar, purificar, tornar séria, invocando um tom épico para narrá-las… A épica e o relato eloquente das origens, da gênese das nações e linhagens familiares. Não foi em vão, lembra-nos Foucault, que Nietzsche nos convidou a rir das origens, parodiá-las, rebaixá-las, trazendo-as para o chão de uma história efetiva (Foucault, 1986, p. 15-37). Uma história despida das significações ideais, de teleologias vagas, em que prevalece o acontecimento como singularidade. Afinal, as coisas são sem essência e os começos são inumeráveis, múltiplos, disparatados.
Pelas mãos de Lira os pesquisadores são introduzidos na comunidade dos artesãos de Araçuaí. Além de artesã, Lira, ou Maria Lira Marques Borges, é uma liderança comunitária, uma cantadeira, participante do Coral Trovadores do Vale fundado pelo Frei Chico. Musical, Lira é lira, poesia extravasando seu porte contido e contaminando memórias de lutas e dificuldades do povo afrodescendente, que encontram expressão em suas máscaras de barro. Ela os leva primeiro ao velho Paiada, que relata histórias da grande enchente de 1979, legitimadas pela experiência: “Falo porque vi e vivi e posso provar!” E, depois, até Zefa, que mora numa casa da periferia da cidade, juntamente com sua cunhada e única companheira da experiência de migração, Francisca. De porte médio, cabelos curtos, a pele crestada pelo sol, seu rosto retém um sorriso que logo desabrocha numa fala mansa e se espraia por sua arte dramática de contar estórias.
Ao entrar na sala-ateliê de Zefa, de chão batido, o jovem pesquisador fica assombrado com as quatro paredes totalmente cobertas, de cima a baixo, com capas e páginas recortadas de revistas da comunicação de massa: Veja, Isto é, Realidade, Manchete, entre outras. Imagens de políticos, esportistas e artistas pop do imaginário urbano convivem com figuras do imaginário rural, lendário. É como se as paredes, caiadas de branco, constituíssem páginas de um estranho álbum em que ela colasse imagens várias de sua coleção particular prontas para pavonearem a imaginação criadora. Uma figura do arquivo, não por acaso álbum vem do albus latino, alba, designando o branco e, na prática médica, o “branco do olho”; com Horácio, albo passou a indicar um dia feliz (Silva, 2008, p. 51). E o que primeiro lhe chamou a atenção foi, mais ao canto da parede em frente, a imagem do saci-pererê entre Madonna e Michael Jackson, como se estivessem batendo um papo animado. Num tom de voz que trai certa decepção, pergunta à artesã: “Zefa, por que tudo isso, essas páginas e imagens nas suas paredes?” Ao que ela responde de pronto, amparada num largo sorriso: “Ah moço, é pra eu me inspirar!” Depois de penosa viagem às profundezas do Brasil, ruía a fantasia romântica do inexperiente pesquisador a respeito de uma genuína cultura popular brasileira. Aí, nessa sala-ateliê, Zefa lhe ministra uma lição teórica cujo alcance lhe escapa e que o deixa meditativo, melancólico. Desse encontro e dessa lição, como rastros esgarçados, restam algumas fotos.
Zefa, o jovem pesquisador e Francisca – Arquivo R. Marques.
Meio atordoado, o pesquisador acadêmico lança seu olhar pelo ateliê: troncos de madeira empilhados, matéria-prima para futuras esculturas, instrumentos do ofício (enxó, martelo, lixas etc.), um banquinho de madeira. Não dá conta ainda de apreender nem a casa-ateliê de Zefa como um arquivo local, o arquivo de um artista popular, nem Zefa como colecionadora. Mas Zefa efetua certas práticas do colecionador: seleciona, recorta, recolhe e combina imagens e textos contidos em capas e páginas de revistas da comunicação de massa, desfazendo um formato típico da cultura massiva hegemônica – a revista –, para compor uma coleção particular. Num gesto de apropriação, desterritorializa ícones culturais e políticos para reterritorializá-los, compondo uma coleção fantasmagórica, anômica, porquanto desgarrada daquela “libido do pertencer” que molda as identidades modernas – pessoais, nacionais e culturais – de modo muitas vezes essencialista e intolerante frente à alteridade (Serres, 205, p. 50). Combinando-os à sua maneira, segundo outra lógica e valores locais, confere a esses objetos sígnicos significados suplementares, singularizando-os. Na sua montagem, retira as imagens da linearidade temporal e as justapõe, de modo que torna simultâneo o não-simultâneo. Disponibiliza-as para novos usos, em função de seu projeto/labor artístico, movida por um saber local e enquanto um sujeito situado, constituindo um mundo próprio, que a individualiza também. Como uma coleção tecida nas bordas do arquivo, do sistema mundo, que se faz também pela reunião de materiais variados e úteis ao ofício do artesão. A exemplo do colecionador benjaminiano de livros, habitando um mundo que oscila entre os polos da desordem e da ordem, do caos criativo e da obra conformada, Zefa usufrui da posse de sua coleção. Por meio desta mantém “a mais íntima relação que se pode ter com as coisas. Não que elas estejam vivas dentro [dela]; é [ela] que vive dentro delas” (Benjamin, 1987, p. 235). Por esse cuidado com seus materiais heterogêneos é que Zefa se torna também uma fisiognomista dos objetos de uma cultura local, entrelaçada com elementos das culturas nacional e global, em perene transformação, devir.
Zefa esculpindo – Arquivo R. Marques.
O jovem pesquisador se refaz de seu atordoamento quando Zefa convida os visitantes para a cozinha, a fim de lhes contar umas estórias, acompanhada de seus gatos. Além de artesã, Zefa é também apurada narradora, duas técnicas que domina com maestria. Em suas performances narrativas, combina elementos míticos, religiosos, fictícios e históricos sem regras pré-definidas e formatos fixos. Estranha a lição de Zefa: não falou muito, não dissertou nem fez asserções ou demonstrações por meio de uma cadeia argumentativa lógica e coerente, segundo um método pré-estabelecido. Nada daquilo próprio de um discurso acadêmico a que um pesquisador está acostumado. À maneira de Benjamin – no arquivo N do trabalho das Passagens: “Método deste trabalho: montagem literária. Não tenho nada a dizer. Somente a mostrar” (2006, p. 502) –, ela somente mostrou e… contou causos: o primeiro automóvel que chegou a Araçuaí, o primeiro avião – outros modos de ler eventos e realizações de uma modernização tardia. Por meio de um saber narrativo, numa montagem de estórias, ela conferia sentidos a ícones do mundo pop, industrial e tecnológico, aproximando-os de elementos míticos e lendários – o automóvel com seus faróis acesos, vislumbrado pelo caboclo numa curva da estrada à noite, assemelhava-se a um dragão jorrando fogo pelas ventas; o pequeno avião que passava em voo rasante sobre o cemitério da cidade, ao final de um enterro, era o caixão do compadre Vicente indo para o céu. Outras formas de construção do conhecimento.
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Desejoso de mudar o mundo, entretido com o futuro de utopias revolucionárias, o jovem pesquisador não lograva compreender que Zefa lhe ministrava uma dupla lição. Como se podia ver mais claramente agora, à distância. Uma lição mais visível contida no conteúdo mesmo daquilo que ela mostrava, relacionada às práticas de uma cultura popular brasileira, latino-americana. A outra lição, invisível, subentendida no evento mesmo desse encontro entre o pesquisador e a artesã. Uma lição que apontava para uma crítica do arquivo teórico latino-americano.
Só bem mais tarde o jovem pesquisador, agora já mais vivido e lido, logrou visualizar e elaborar alguns elementos da lição invisível de Zefa. Sinal evidente da decalagem entre o vivido e o narrado, o evento e o saber, a reflexão, forjados sobre ele. Na sua lição, Zefa denunciava, sem explicitá-lo, a exclusão de inúmeros sujeitos do processo de construção dos saberes, da formação de uma cultura nacional, da elaboração do arquivo teórico da nação. Zefa com seus saberes populares, selvagens, rebeldes ao crisol do método científico.
Ao ler tempos depois o ensaio Culturas híbridas: estratégias para entrar y salir de la modernidad (1990), de Néstor García Canclini, o pesquisador não pode deixar de lidar com uma curiosa experiência do já vivido: a teoria que um acadêmico formulava em academias do Norte para explicar as mesclas culturais no espaço latino-americano – com a fusão do erudito, do popular e do massivo – já havia sido elaborada de forma singular por Zefa a partir de uma práxis artística. Ela havia lhe mostrado, teorizando por outros meios, que o artista popular se apropria, traduz e reinventa diversos materiais, extraídos de diferentes âmbitos culturais a fim de construir o próprio. Que as culturas não existem em estado puro, separadas umas das outras, mas que andam todas muito misturadas, segundo um jogo de forças em relação. Que as artes conversam entre si e contar histórias e esculpir formas na madeira ou no barro compõem variado repertório de um saber narrativo. Que na narrativa, em vários formatos e linguagens, relatando e combinando o vivido e o imaginado, é que melhor se pode dizer e experimentar “quem sou eu”, “quem é você”, “quem somos nós”.
Da mesma forma, a lição de Zefa se reavivou na memória do pesquisador quando, lendo as “Notas sobre a desconstrução do ‘popular'”, Stuart Hall, após desconstruir a interpretação equivocada das conexões da cultura popular com a tradição e formas tradicionais de vida, vistas como impulso tão somente conservador e retrógrado, assinala que a cultura popular é lugar de transformações, marcado pela dialética da contenção e resistência. E pontua: “Quero afirmar o contrário, que não existe uma “cultura popular” íntegra, autêntica e autônoma, situada fora do campo de força das relações de poder e de dominação culturais.” (Hall, 203, p. 254) Ao desarmar a dicotomia entre uma autêntica e uma falsa cultura popular, o crítico cultural jamaicano chama a atenção para o poder da inserção cultural, desfazendo a imagem das pessoas comuns como tolos culturais, dado que são capazes de reconhecer como suas realidades são representadas e remodeladas pela indústria cultural. Com seu arquivo e sua arte, não era isso que Zefa teorizava mostrando para o jovem pesquisador, que a imaginava protegida num espaço cultural virgem? Não era essa sua maneira de se posicionar como sujeito nos processos e choques interculturais?
À proporção em que as experiências do passado iam se constituindo menos como fatos consumados que como virtualidades, prontas a irromper no presente, o pesquisador mais se dava conta da atualidade da lição de Zefa. Do fato de que nossas experiências e aprendizados do passado, enquanto resíduos e sobrevivências de outroras no agora, interferem nas leituras e pesquisas do presente, suplementando-as com significações imprevistas; assim como as leituras e perquirições do presente iluminam a compreensão dos aprendizados do passado. E pôde confrontar-se com o que lhe pareceu de certa forma monstruoso no arquivo/coleção da artista popular: o caráter excessivo de sua memória, visível nas paredes/álbum “entulhadas” de imagens, imagens que lhe pareceram despropositadas naquela primeira visão. Intempestivas, pode ver assim agora. Espécie de antecipação fantasmagórica de uma memória total disponibilizada hoje em dia pela tecnologia da informática, do digital.
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Em sua leitura do fenômeno do dejá vu, Paolo Virno nos esclarece a respeito do funcionamento da memória ao retomar a observação de Henri Bergson de que o ato de recordar uma experiência imediata não se dá de forma posterior à percepção, sendo antes contemporâneo a esta. Recordação e percepção se dão em uníssono no presente e o traço mnésico constitui um correlato daquela experiência. De maneira que, ainda segundo Bergson, cada momento de nossa vida contém um aspecto virtual, o da recordação, e um aspecto atual, o da percepção. A partir disso Virno levanta uma tese: enquanto a percepção fixa o presente como algo real, um fato acabado reduzido a dados unívocos, a recordação o preserva no campo da simples possibilidade, como uma virtualidade; há um presente percebido como agora e um presente do qual se tem memória. Entre essas duas maneiras de tomar posse do nosso “agora” há, para Virno, “uma diferença modal: modalidade do possível ou modalidade do real, memória da potência ou percepção do ato” (Virno, 2003, p.22). No dejá vu, ambas as modalidades operam simultaneamente com o real e o possível, o atual e o virtual coexistindo num mesmo evento. Mas o passado, enquanto fato acabado, só pode ser tão somente repetido, como eterno retorno do igual, e o sujeito o revive como mero espectador.
No desdobramento de sua argumentação, Virno articula o possível à forma do passado e acrescenta uma diferença de natureza, não de grau, entre o atual e o virtual: ambas as modalidades se relacionam a um mesmo conteúdo de experiência, mas a potência revela-se independente do ato, não se deixando assimilar por ele; antes, alcança sua maior força quando se sustenta ao lado do ato. O passado constitui o centro dessa temporalidade da potência; todavia, na esteira de Bergson, trata-se de um passado indefinido, incalculável – um “passado em geral” –, como virtualidade pronta a irromper no presente, desvelando outras possibilidades do vir a ser. Como matriz do passado em geral, a faculdade mnésica é a condição mesma da recordação do presente, identificando-se a diversas outras faculdades, como as da língua, do intelecto. Mas sem que, em função da diferença de natureza existente entre eles, a faculdade se equipare ou se reduza ao ato concomitante. A língua, como potência do dizer, não se esgota nas palavras ditas, por exemplo, é inatualizável enquanto pura potência. Daí se pode concluir: toda a relação com o passado é anacrônica, visto que se dá a partir do presente; cabe ao aqui e agora definir o que deve retornar. Entretanto, se enquadrado a partir de um presente, o passado não é matéria inerte reduzida ao ato; antes, como virtualidade, tem a possibilidade de interferir no presente assinalando outras posibilidades de devir, de atualização.
Por conta disso, Virno (2003, p. 34-41) distingue um anacronismo formal de um anacronismo real. Ambos constituem uma recordação do presente, entretanto, no primeiro, como uma forma-passado, o gesto recordado está instalado num passado indefinido em estado atual, em que ato e potência se sustentam, evidenciando a brecha entre um poder-fazer e os atos consumados, brecha em que Virno situa a matriz da historicidade. Diversamente, como oposto simétrico do primeiro, no anacronismo real essa brecha entre ato e potência é ocultada e a potência – o passado enquanto virtualidade – encontra-se reduzida ao ato prévio. Vinculado a um conteúdo do passado particular e fechado, o anacronismo real, ou o dejá vu, não passa então de um falso reconhecimento, como já assinalado por Bergson. Nele, enquanto um presente contrabandeado por meio de um anacronismo formal, o pensador italiano detecta os impulsos dos discursos sobre o fim da história, uma marca da ideologia pós-moderna, e que associa à modalidade da história antiquária descrita por Nietzsche, dominada por um excesso de memória. A essa inclinação, Virno dá um nome específico: modernariato, entendido como uma sensibilidade antiquária que traduz interesse de ordem sentimental, estética e comercial, por objetos e coisas pertencentes a um passado recente, insuflado por um afã colecionista furioso e cego (Virno, 2003, p. 61).
Pois bem, em ambos os anacronismos, na recordação do presente, Virno reconhece um excesso de memória. E leva em conta a advertência nietzschiana de que a hipertrofia da memória paraliza a ação, inibe os impulsos vitais, a criatividade, bloqueando o futuro. Mas, concordando com Nietzsche, desloca o argumento deste a seu favor: a cantilena do “fim da História” é fruto não de um excesso de memória, mas do encobrimento deste pelo dejá vu sob a forma de uma veneração do passado enquanto nada mais que mimetismo, imitação. Na medida em que a recordação do presente operada pelo anacronismo formal se configura como dispositivo público, o excedente de memória resulta num excedente de história – acredita-o Virno (2003, p. 48-64). Liberada da degradação do falso reconhecimento, a superabundância de memória pode colocar o passado a serviço da vida, incrementando nosso senso de historicidade, o diálogo do presente com o futuro, estimulando nossas faculdades criativas.
Sem incorrer na idealização da práxis artística de Zefa, sujeita às relações de poder que atravessam o campo da cultura popular, pode-se dizer que o arquivo de Zefa já indiciava no outrora a disseminação do gesto de arquivar. Um gesto elevado à enésima potência na contemporaneidade pelas tecnologias da comunicação, da memória eletrônica, do digital, da internet. Afinal, o conhecimento e a arte pressupõem colecionar e arquivar materiais e signos e recombiná-los de forma inventiva. Como todo artista, Zefa assim procede com seus materiais heterogêneos, alguns extraídos de sua realidade material do presente, outros enquanto signos e imagens do passado; coleciona, arquiva para combiná-los de forma mais livre em seu fazer artístico, sem hierarquias, à maneira de um bricoleur. Procede da mesma forma que um escritor da cultura erudita ou um pesquisador acadêmico, que também colecionam e arquivam: palavras e imagens, materiais e informações. Segundo Ivette Sánchez, as práticas da leitura e da escrita são modos de colecionar, indispensáveis para novas escrituras, elaborações e invenções. Todo artista é um colecionista (Sánchez, 1999, p. 10-19).
Marcado por uma superabundância de imagens, situado no âmbito de um passado indefinido, seu arquivo exprime a potência de seu fazer artístico, tecido por imagens oriundas de várias camadas de outroras e agoras. Trata-se de uma forma-passado que institui um antes como pura virtualidade, prestes a se atualizar em sua ação escultórica no presente. Todavia, as esculturas feitas não esgotam a potência do seu fazer; seu arquivo performa a memória desse fazer. Detecta-se nele um excesso de memória, é bem verdade. Mas esse excesso de memória, em vez de pesar sobre seu agir, obstruindo-o, parece constituir a afirmação mesma de sua potência criativa, de sua arte, em diálogo permanente com o passado enquanto virtualidade – um presente sob a forma da recordação – e com o próprio presente enquanto atualidade e abertura para o futuro.
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De Araçuaí, Riobaldo trouxe uma pedra de topázio. Presente de Riobaldo que era para ser de Diadorim, mas que, por artimanhas do destino (ou da narrativa?), acabou nas mãos de Otacília. Que dom secreto de Riobaldo se incrustava na pedra de topázio? Pode bem ser um saber narrativo, como na muiraquitã de Macunaíma. Uma das mais importantes pedras preciosas, a pedra de topázio tem cor variável e forma massas irregulares, como vário e heterogêneo é um saber narrativo. De Araçuaí, trago uma pedra de topázio que me foi dada por Zefa. Lição de Zefa: seu saber narrativo, sua arte de mostrar mais que demonstrar. Na cadeia narrativa, essa pedra só faz sentido se circular, ampliando suas possibilidades de significação. Por isso, passo-lhes a pedra de Zefa, para que possamos, como uma comunidade interpretativa, melhor apreender novas possibilidades do arquivo teórico e prático latino-americano.
Reinaldo Marques é professor de Teoria da Literatura e Literatura Comparada nos cursos de graduação e pós-graduação da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais. É pesquisador do CNPq. Foi presidente da Associação Brasileira de Literatura Comparada no biênio 2000-2002 e diretor do Centro de Estudos Literários e Culturais/Acervo de Escritores Mineiros da UFMG no período de 2008 a 2012. É autor de Arquivos literários: teorias, histórias, desafios (Ed. UFMG, 2015).
Referências
BENJAMIN, Walter. Passagens. Org. Willi Bolle. Trad. Irene Aron e Cleonice Mourão Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006.
BENJAMIN, Walter. Desempacotando minha biblioteca. In: BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho e José Carlos Martins Barbosa. São Paulo: Brasiliense, 1985. V. 2: Rua de mão única, p. 227-235.
CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas: estratégias para entrar y salir de la modernidad. México: Grijalbo, 1990.
DERRIDA, Jacques Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Trad. Cláudia de Moraes Rego. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.
FARGE, Arlette. Le goût de l’archive. Paris: Seuil, 1989.
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 3. ed. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987.
FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a genealogia e a história. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 6. ed. Org. e trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1986, p. 15-37.
HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Tad. Liv Solvic et al. Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003.
Resumo: Este texto, a partir de estudos de autores que trabalham questões de representação no cinema e na produção estética em geral, busca refletir sobre a utilização do olhar como ferramenta de identificação e sobre as modificações na maneira de filmá-lo ao longo dos anos. Além disso, procura pontuar a utilização do olhar em um cinema ligado a aspectos sensoriais.
Palavras-chave: Olhar; cinema; linguagem.
Abstract: This article intends to reflect on the use of filmed looks as a way of identification, and the modifications on the way to film it between the decades, with the use of authors that study questions of representation on cinema and in other aesthetic productions. Beyond that, the text researches the use of looks as a sensorial aspect in representation.
Keywords: Look; cinema; representation.
O artigo insere-se em uma necessidade em obter melhor entendimento sobre a representação do ato de olhar dos indivíduos retratados no cinema. Acreditamos que o olhar filmado, um dos principais mecanismos de identificação utilizado pelos filmes, por sua própria potencialidade em fortalecer relações interpessoais, é um dos elementos que mais se modifica a partir de novas concepções artísticas.
Dessa maneira, buscamos apontar para a possibilidade de utilização desse ato de olhar representado no centro de discussões acerca dos filmes, acreditando nele como um canal de possibilidades infinitas de articulação. Nesse sentido, nos utilizaremos principalmente dos estudos de Jacques Aumont, em sua obra O olho interminável, em que o autor reflete sobre a relação entre o olho, o cinema e a pintura, e O cinema e a encenação, em que apresenta-nos algumas noções de articulações básicas do cinema, ao relacioná-lo com o teatro. No que diz respeito a elementos ligados a um cinema sensorial, buscamos uma leitura sobre os estudos da noção de irrepresentável, de Jacques Rancière, além da noção de presença, do alemão Hans Ulrich Gumbrecht, que propõe a análise de objetos estéticos em sua potencialidade de “tangenciar corpos humanos” (Gumbrecht, 2010, p. 38), causando um efeito de presentificação.
Em nossa reflexão, nos organizaremos em duas partes. Em um primeiro momento, buscando apontar maneiras de apropriação do olhar pelo cinema, exemplificando mecanismos básicos de identificação e refletindo sobre a descentralização desses mecanismos a partir de novos movimentos cinematográfico, para, finalmente, propor uma relação entre o olhar e um cinema sensorial.
Elementos de identificação
Antes do olhar, cabe-nos pontuar a importância do rosto na representação fílmica. Nos identificamos com as expressões que funcionam como sinais irradiados por ele. Para Bordwell, o rosto funciona como “um teatro dos estados da alma, em constante mutação”, e a “atuação em um filme se apoia fortemente numa gama de expressões faciais culturalmente reconhecidas” (Bordwell, 2008, p. 64).
Essa última observação, indica-nos caminhos para pensar na representação do rosto nos mais diversos lugares. Por mais variados que sejam os significados das expressões faciais nas culturas ao redor do mundo, a percepção dessas expressões como fator principal de identificação com o outro, parece ser uma característica universal. Os filmes muitas vezes utilizam-se de elementos difundidos universalmente para potencializar a identificação dos mais variados espectadores com suas representações.
[…] grande parte das histórias contadas no cinema atravessa com facilidade as fronteiras culturais. Uma razão plausível para isso é que o cinema incide em tendências perceptivas muito difundidas. Os estilos que vieram a dominar o cinema parecem ter se afinado, por tentativa e erro, com algumas disposições universais cognitivas e perceptuais. Muito antes do advento do cinema, apareceram algumas similaridades na maneira como vemos, escutamos ou compreendemos as regularidades do mundo (Bordwell, 2008, p. 67).
A aparente percepção “natural” do cinema é assim uma sistematização, que acaba transformando e ditando as convenções utilizadas (Aumont, 2004, p. 145). Dentro das disposições cognitivas e perceptivas, interessa-nos aqui, principalmente, a nossa relação com o olhar. Os olhos são “os maiores irradiadores de informações dentro do rosto, visto que o olhar acompanha as expressões faciais correspondentes […] e somos extraordinariamente sensíveis ao ângulo específico desse olhar” (Bordwell, 2008. p. 64). Além disso, uma “constante transcultural” é a de que o ser humano “explora o ambiente com os olhos”, movendo a fóvea em direção à zona de interesse. O ato de olhar torna-se então central em nossa relação de empatia com outros indivíduos e sua representação é utilizada por essa sua potencialidade de representação de sentimentos humanos e de identificação por diversos meios artísticos1.
No cinema, algumas formas de representação do olhar humano tornam-se também mecanismos básicos de identificação do espectador com o ser retratado. O famoso efeito Kuleshov, desde sua concepção no início dos anos 20, ainda nos explicita esse potencial do olhar como “janela da alma”, na medida em que nos aproxima de um suposto sentimento do personagem. O experimento nos insere também na utilização da montagem para intensificar o efeito que se deseja conferir a esse olhar, ao intercalar o mesmo plano de um homem com um caixão, um prato de comida e uma mulher atraente (Gardies, 2008, p. 37).
Ainda que não possamos diminuir os efeitos dos olhares filmados à simples utilização de planos intercalados a eles, percebemos o grande potencial existente nesse recurso, que parece existir principalmente pela manipulação e identificação em relação ao olho da pessoa retratada. A ampla utilização do recurso do plano/contraplano segue predominando de forma muito semelhante, pelo menos desde o início da década de 20 até hoje, nos mais variados gêneros de cinema.
Plano/contraplano como um dos artifícios de linguagem do cinema que ainda perdura de forma semelhante. Fonte: A Paixão de Joana D’arc (1928) e Still the Water (2014).
Somos, dessa forma, muito guiados por um raccord2 ligado ao olhar, que se torna um importante recurso na localização direta do espectador com o espaço representado. A utilização de um plano em que o personagem olha ou interage, com algo ou alguém que não está enquadrado, consequentemente intensifica a expectativa sobre o objeto que se observa, tornando-se um elemento pulsante de identificação, além de colaborar na compreensão da localização dos personagens dentro da cena.
A preocupação com a localização do espectador, baseada em mecanismos humanos de identificação, é tida mesmo em relação à montagem entre um plano e outro. O montador e teórico Walter Murch, em seu livro Num piscar de olhos, utiliza a metáfora do piscar, ao relacionar a montagem com esse mecanismo psicológico, “que interrompe a aparente continuidade visual de nossa percepção” (Murch, 2001, p. 60).
Ainda que os filmes utilizem-se da eficiência do plano/contraplano para estabelecer sentidos muito claros, os significados desse tipo de representação parecem sempre sofrer grandes abalos ao longo da história do cinema, na medida em que surgem novas preocupações formais. Ensaios como The Birth of a New Avant Garde: La Camera-Stylo (1948), do crítico francês André Astruc, em seu famoso conceito de câmera-caneta, defendem a valorização do ato de filmar com o posicionamento do autor de cinema enquanto artista de seu meio, não mais subjugado a um texto existente. De acordo com Astruc, o diretor “deveria ser capaz de dizer eu, como o romancista ou o poeta” (Astruc, 1948, p. 1).
O olhar, com esse tipo de movimento, em determinados filmes, sofre interferências em seu mecanismo de identificação, possuindo uma decupagem que não mais prioriza o plano/contraplano como única saída para intensificar relações humanas. A ideia da câmera-caneta de Astruc data de uma época em que novos cinemas começaram a surgir em diversos lugares, como o Neorrealismo italiano; mais no final da década de 50, a Nouvelle Vague francesa; e, posteriormente, o Cinema Novo brasileiro – além de diversos outros movimentos em países como o Japão, a Argentina e a antiga Tchecoslováquia.
Esses cinemas nacionais, ao valorizarem a figura do autor, trazem consigo um trabalho de intensa reflexão sobre a forma. No que diz respeito ao olhar, há uma utilização cada vez maior de elementos como a quebra da quarta parede, dos jump cuts, de planos com o personagem de costas ou em enquadramentos abertos, do falso raccord, entre outros recursos que “subvertem” a centralidade do olhar.
De acordo com Aumont, “o quadro se define tanto pelo que ele contém como por quanto ele exclui” (Aumont, 2004, p. 136). Nesse sentido, gostaríamos de voltar a pontuar o “fora de quadro”, que foi cada vez mais utilizado ao longo dos anos em sua capacidade de instigar o espectador que imagina o que vai além da “borda” do enquadramento. O olhar direcionado para um outro personagem ou objeto que não está enquadrado, ao evidenciar a ausência deste na imagem, pode emanar sentidos que ultrapassam a significação direta, ao problematizar o espaço representado.
Presença através do olhar filmado
Pensemos, nesse sentido, na representação do invisível, do impalpável; ou seja, “figurar o ar, a atmosfera, […] a luz, em dar conta desses fluidos misteriosos” (Aumont, 2004, p.226). A preocupação do cinema em figurar aspectos que atingem diretamente a sensorialidade do espectador, parece cada vez mais evidente. O filósofo Jacques Rancière, ao trazer a ideia de uma arte irrepresentável, diz que ela repousa sobre uma “impossibilidade de uma experiência se expressar em sua língua própria” (Rancière, 2012, p. 137). O “novo visível”, para o autor, faz parte de um “regime estético da arte” em que “os temas não encontram-se mais submetidos à regulagem representativa do visível e da palavra, não mais submetidos à identificação do processo de significação à construção de uma história” (Rancière, 2012, p. 133).
Nesse sentido, podemos pensar que uma utilização do campo/contracampo, ao criar um sentido espacial e sentimental mais “direcionado”, mostrando, por vezes de forma exaustiva, os olhares e reações, pode privar a construção de sentimentos mais complexos que possam ser explorados de outras formas. Se refletirmos sobre o pressuposto de Aumont, de que a montagem é “uma das maiores violências jamais feitas à percepção ‘natural'” (Aumont, 2004, p. 103), percebemos que ela possui uma responsabilidade enorme nessa construção de ações, no sentido de que impõe um olhar diferente ao espectador.
A fascinação do plano longo sempre repousou mais ou menos sobre a esperança de que, nessa coincidência prolongada do tempo do filme com o tempo real (e o tempo do espectador), algo de um contato com o real acabe advindo. Por isso o plano longo é, a princípio, destinado a valorizar o não-é-grande-coisa e o quase-nada (Aumont, 2004, p. 66).
A utilização do plano de longa duração é, sem dúvidas, mais recorrente em um cinema que busca cada vez mais suprimir a montagem, criando significados mais abertos e indiretos. O plano do olhar filmado, ao ser submetido a um tempo maior de duração, acaba por gerar outras relações com o espectador. Acreditamos que tais relações podem ser reflexo de um cinema que se preocupa menos com sentidos fechados e com sentidos diretos de significação. O cinema de fluxo3, por exemplo, trabalha com essa ideia de uma narrativa rarefeita, mais ligada ao subjetivo do que à significação estrita.
Essa concepção, ainda que se distancie de um discurso totalizante, preocupa-se com outros elementos que talvez escapem de um conjunto de “limitações” próprias do meio. Não submete assim a obra cinematográfica a seus artifícios de identificação direta, mas, ao buscar um acesso ao sensível através de uma forma específica, pode elaborar formas variadas de representação – e apresentação – do objeto filmado com o espectador, que o atinja em caminhos inesperados.
Nesse sentido, Rancière analisa o regime representativo da arte, que “regula as relações entre o dizível e o invisível, entre o desdobramento de esquemas de inteligibilidade e o das manifestações sensíveis” (Rancière, 2012, p. 127). Na sequência dessa reflexão, o autor defende que se há algo irrepresentável, ele o seria pela “impossibilidade de uma experiência se expressar em sua língua própria” (Rancière, 2012, p. 137).
A noção de atmosfera, de Jacques Aumont, trata também dessa matéria que o cinema não atinge diretamente, mas remete em sua linguagem.
É tudo isso que o cinematógrafo vira de cabeça para baixo, que ele ultrapassa definitivamente com seus efeitos de realidade, inocentes, e inocentemente perfeitos. A atmosfera continua aí impalpável e, se se quiser, irrepresentável; mas não deixa de estar presente no cintilar das folhas (agitadas pelo vento, pelo ar, concluem infalivelmente os críticos: é mesmo o vento que eles querem ver). Mas sobretudo, é claro, o fugidio é enfim fixado, e sem labor. É de acordo com o trabalho pictórico que se mede o melhor do milagre do cinematógrafo: ele substitui, com efeito, as centenas de folhas duramente pintadas, uma por uma, em Theodoro Rousseau, pelo aparecimento imediato de todas as folhas. E, além do mais, elas se mexem… (Aumont, 2004, p. 36).
Quanto ao olhar filmado no cinema, acreditamos que seu deslocamento pode proporcionar, não somente no cinema de fluxo, uma oscilação entre o prazer de contato com a composição, e um certo “mistério”, decorrente da negação em revelar o que o personagem vê. Nessa oscilação, podemos localizar um grande número de possibilidades representativas, decorrentes de combinações diversas desses diferentes elementos de linguagem.
O olhar, em sua potencialidade de criar identificação, e ao relacionar-se de forma tão próxima aos demais seres humanos, possui aspectos que parecem também relacionarem-se a nós de forma mais instintiva. Sendo assim, cabe-nos aqui refletir sobre o conceito de presença, de Hans Ulricht Gumbrecht, que propõe um contato com os objetos estéticos que considere impactos não transmitidos através do sentido, mas sim mais próximos de um efeito de tangencialidade espacial, referindo-se “às coisas que, estando à nossa frente, ocupam espaço, são tangíveis aos nossos corpos e não são apreensíveis, exclusiva e necessariamente, por uma relação de sentido” (Gumbrecht, 2010, p. 9). Esse efeito de presença teria a capacidade de nos impactar justamente por “tangenciar corpos humanos”, e o autor defende que observemos essa potencialidade desses efeitos.
[Entendo] a palavra “presença”, nesse contexto, como uma referência espacial. O que é “presente” para nós (muito no sentido da forma latina prae-essere) está à nossa frente, ao alcance e tangível para nossos corpos. Do mesmo modo, o autor pretendia usar a palavra “produção” na linha do seu sentido etimológico. Se producere quer dizer, literalmente, “trazer para diante”, “empurrar para frente”, então a expressão “produção de presença” sublinharia que o efeito de tangibilidade que surge com as materialidades de comunicação é também um efeito em movimento permanente. Em outras palavras, falar de produção de presença implica que o efeito de tangibilidade (espacial) surgido com os meios de comunicação está sujeito, no espaço, a movimentos de maior ou menor proximidade e de maior ou menor intensidade (Gumbrecht, 2010, p. 38).
Gumbrecht, em outro momento de sua reflexão, irá desenvolver um conceito de epifania, ligado a esses efeitos, que tem como uma de suas características o fato de que “sempre que um objeto da experiência estética surge e por momentos produz em nós essa sensação de intensidade, ele parece vir do nada” (Gumbrecht, 2010, p. 141). Nesse sentido, a montagem pode colaborar em um impacto inesperado, e gostaríamos de pontuar aqui dois desses momentos. O filme Cães errantes (2014), dirigido por Tsai Ming-Liang, revela um ponto de vista com um raccord de tempo não convencional, a partir do olhar de dois personagens que olham para fora de quadro durante cerca de 15 minutos. Iniciamos na expectativa de uma revelação, e passamos, no decorrer do plano, a ressignificar os demais momentos que foram representados até então. Quando ocorre o corte, valorizamos intensamente esse ponto de vista que nos foi negado durante o longo tempo do plano anterior. Outra relação particular com o olhar filmado, presente no filme Tio Boonmee, que pode recordar as vidas passadas (2012), do tailandês Apichatpong Weerasetakhul, é a do impacto da revelação de um ser que, em meio à montagem da imagem de um boi que desprende-se de uma corda, com imagens de uma floresta, inesperadamente aparece encarando o espectador, com dois olhos vermelhos. O olhar, em sua analogia com os olhos humanos que encaram o espectador, e seu surgimento repentino, possuem um impacto que parece se relacionar primeiramente com aspectos sensíveis, para depois ser conceitualizado racionalmente dentro da narrativa.
Relações particulares com a representação do ato de olhar. Fonte: Cães errantes (2014) e Tio Boonmee, que pode recordar as vidas passadas (2010).
Acreditamos que os exemplos citados, ainda que pontuais, estão inseridos em consequências atuais na forma de lidar com o olhar filmado. Além disso, esse olhar, que é menos inserido em um mecanismo ágil de identificação racional, propõe uma relação que exige sempre novos formatos de análise do objeto fílmico. O estudo acerca da presença, ao considerar esses aspecto de relação com as materialidades da comunicação, parece-nos um importante instrumento na (talvez paradoxal) tarefa de captar o sensível.
Conclusão
Ao observar algumas modificações na maneira de filmar o olhar, cabe-nos refletir se essa diversidade de posicionamentos não ampliam o número de tipos de cinema que estariam se preocupando em retirar da câmera sua pretensa função objetiva. Além da descentralização do olhar, surgem também novas manifestações que, por utilizarem-se de sua centralidade, potencializam muitos dos aspectos de contato com o espectador.
De qualquer forma, percebe-se um movimento que busca fugir de uma postura “autoritária”, que controla os pontos de vista através da montagem. Essa postura, ligada a um cinema rarefeito, de tempos longos, com contenções narrativas, é cada vez mais aparente em diversos tipos de produções culturais.
Cabe-nos refletir, dessa maneira, sobre campos teóricos que nos possibilitem uma aproximação com o objeto fílmico através do olhar filmado, pensando-o como um elemento central na forma cinematográfica. Acreditamos que o esforço de retorno às origens desse mecanismo podem nos ser muito úteis, para qualquer tipo de contato que tenhamos com o olhar, tanto no cinema, como na produção estética em geral.
*Germano Teixeira de Oliveira é mestrando do Programa de Pós-graduação em Comunicação Social da PUCRS (Capes). É diretor e roteirista dos curtas-metragens Um conto à deriva (2011), e Objetos (2015). Assina a montagem de três longas-metragens e de mais de dez curtas. Atua também como curador de mostras e festivais, como no festival Diálogo de Cinema de Porto Alegre, e CLOSE – festival nacional da diversidade sexual.
**Carlos Gerbase é doutor em Comunicação Social pela PUCRS (2003) e pós-doutor em Cinema pela Universidade Paris III – Sorbonne Nouvelle (2010). Professor titular da PUCRS, atuando no Curso Superior de Tecnologia em Produção Audiovisual (graduação), no Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM/FAMECOS) e no Programa de Pós-Graduação em Escrita Criativa da Faculdade de Letras da PUCRS (FALE). É roteirista e diretor cinematográfico desde 1978.
Referências
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AUMONT, Jacques. O olho interminável. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
AUMONT, Jacques. O cinema e a encenação. Lisboa: Texto&Grafia, 2008.
AUMONT, Jacques. Dicionário teórico e crítico do cinema. Campinas: Papirus, 2003.
BELTING, Hans. Antropología de la imagen. Madrid: Katz, 2010.
BORDWELL, David. Figuras traçadas na luz: a encenação no cinema. Campinas: Papirus, 2008.
GARDIES, René. Compreender o cinema e as imagens. Lisboa: Texto&Grafia, 2012.
GUMBRECHT, Hans Ulricht. Produção de presença. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC, 2010.
RANCIÈRE, Jacques. O destino das imagens. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.
STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. Campinas: Papirus, 2003.
MURCH, Walter. Num piscar de olhos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
Obras audiovisuais
A PAIXÃO DE JOANA D’ARC. Carl Dreyer. França, 1928, filme.
STILL THE WATER. Naomi Kawase. Japão, 2014, digital.
TIO BOONMEE, QUE PODE RECORDAR AS VIDAS PASSADAS. Apichatpong Weerasetakhul. Tailândia, 2012, digital.
Notas
1O olhar representado, trabalhado no sentido de ampliar nossa empatia com a representação dos seres, é uma preocupação, por exemplo, da concepção do retrato na pintura do século XV. A frontalidade do olhar do ser representado, que busca nosso olhar, “anula a distância com o rosto vivente”, sendo um “meio do corpo no sentido de que convida o espectador a participar (Belting, 2011, p. 156).
2De acordo com Jacques Aumont, em seu Dicionário teórico e crítico do cinema, o raccord é “um tipo de montagem na qual as mudanças de planos são, tanto quanto possível, apagadas como tais, de maneira que o espectador possa concentrar toda sua atenção na continuidade da narrativa visual” (Aumont, 2003, p. 251).
3Caracterizado pelos críticos franceses Stéphane Bouquet, Jean-Marc Lalanne e Olivier Joyard, entre os anos de 2002 e 2003 em edições da Cahiers du Cinéma.
Resumo: O presente estudo tem o interesse de discutir a poesia dentro da semiosfera, pensando como a mesma se movimenta no universo da telemática. A poesia enquanto instrumento de linguagem se apresenta como um elemento significante no que tange à produção de sentidos. O processo de mediação entre os objetos da cultura na formação da imagem e os significados oriundos disso é o que interessa aqui, ou seja, a pesquisa, a partir de análises de poetas ibero-americanos, visou discutir a função da poesia em relação aos cenários culturais em seus momentos de processos tradutório-dialógicos. O artigo se concentrou em autores que discutem comunicação e poesia, tendo a semiótica da cultura como sustentação teórica maior. Foram desenvolvidos diálogos entre a semiótica da cultura e a poesia de poetas ibero-americanos. Foi possível perceber vestígios de informações que escapam à ideia de um olhar binário. Fatos esses visíveis nos poemas aqui analisados, pois os mesmos se apresentam como experiências agudas bricoladas de linguagens.
Palavras-chave: Poesia na semiosfera; poetas ibero-americanos; semiótica da cultura.
Abstract: This study has the interest to discuss poetry within the semiosphere, thinking how it moves in the telematics universe. Poetry as a language tool appears as a significant factor with regard to the production of meaning. The process of mediation between the objects of culture in shaping the image and the meanings arising that is what matters here, that is, research from analysis of Latin American poets, aimed to discuss the function of poetry in relation to scenarios cultural in their time of translational-dialogic processes. The article focused on authors who discuss communication and poetry, and the semiotics of culture as more theoretical support. Dialogues have been developed between the semiotics of culture and the poetry of Latin American poets. It was revealed traces of information that are beyond the idea of a look binary. These facts visible in the poems analyzed here, as they present themselves as acute experiences languages.
Keywords: Poetry in the semiosphere; latin american poets; cultural semiotics.
Semiosfera e processos tradutórios
Existe uma intensa relação/tensão cultural acontecendo o tempo todo dentro da semiosfera. Lótman (1979) define Semiosfera como sendo o espaço cultural onde habitam os signos. Dentro dela os processos de comunicação, bem como os códigos de linguagens se desenvolvem, e isso ocorre por conta dos constantes encontros de diferentes culturas. Tais encontros provocam explosões, as quais apresentam novos elementos culturais, esses por sua vez se confeccionam e se mostram possíveis por conta dos processos tradutórios. Do ponto de vista filosófico, essas explosões culturais lidam com as imprevisibilidades, estas fazem florescer novas configurações nos múltiplos cenários das representações socioculturais. Esses movimentos ocorrem dentro das dinâmicas dos encontros culturais, através de processos dialógicos. Nesses processos duas ou mais formas de cultura se encontram, travando diálogos e recriando experiências sensíveis/estéticas potentes, as quais reconfiguram os campos das forças culturais. Isso tudo, na teoria de Lótman, ocorre dentro da Semiosfera.
Os objetos da cultura e os sujeitos da cultura nesses diálogos constantes apresentam/provocam diversos processos metonímicos. Dentro de vários fenômenos produzidos pelos sujeitos, temos a poesia como um interessante ponto de partida em relação a melhores entendimentos sobre esses diálogos. A poesia segundo Pinheiro (2013) serve como um interessante instrumento em se tratando de se pensar os sintáxicos processos tradutórios. Partindo de que a poesia enquanto produção cultural é criada, recriada e transita de maneira contínua nas relações de linguagens dentro das mais variadas sociedades, pode-se supor que a mesma faça parte conexa das tramas socioculturais diversas.
Lótman (1979) defende que a cultura possui fluxos intensos e muitas vezes imprevisíveis, fato esse que atribui a ela um movimento não ortogonal. Esses movimentos apresentam ordens ou desordens muitas vezes distantes da ideia de olhares binários. O que interessa aqui é justamente o que acontece no meio, nos processos, nos choques culturais dentro das semiosferas, pois isso, segundo Lótman (1979), acaba produzindo terceiros elementos. O presente artigo enquanto natureza qualitativa se concentrou no método dedutivo, o qual foi alicerçado por referências bibliográficas que tratam diretamente e indiretamente sobre o tema. Foi dada ênfase em teorias atreladas à semiótica da cultura no que diz respeito às análises desenvolvidas. Em relação aos possíveis trâmites tradutórios/terceiros elementos, Pinheiro diz que:
Os inúmeros processos de tradução se dão a partir das colisões e trocas entre culturas dominantes de centro e variantes da periferia. As dicotomias centro e periferia, invariante e variantes, etc., não são mais suficientes, pois nos obrigam a pensar a superação da lógica binária depois desta, como condição de pensamentos instauradas. E este depois é terrível e risível. É preciso observar o território antes, sem, fora dessa lógica. O que surge é outro laboratório in vivo (Pinheiro, 2013, p. 16).
Partindo dessa ideia, podemos pensar que a poesia pode estar localizada nesses espaços não binários, ou seja, no meio, nos cantos, nas dobras, no fora, na fusão entre centro e periferia, periferia e centro. Pensando na velha máxima de que a informação se movimenta na relação simétrica entre emissor/mídia/canal/receptor, o argumento de Pinheiro desconstrói essa regra, uma vez que desloca não só o movimento, mas o resultado dos novos elementos oriundos dos assimétricos choques/conflitos culturais. É nessa direção que as possibilidades de outras narrativas podem emergir como elementos significantes em relação aos sistemas de linguagens. Nessa linha de raciocínio, Pinheiro aponta que:
Aqui dado o caráter súbito e excessivo das combinações entre códigos, séries de linguagens, em meio ao magma primitivo, os processos dinâmicos de produção de textos só dependem do respeito às fronteiras que separam centro e periferia, alto e baixo, antigo e novo, nas situações em que a narrativa da intelligentsia (da mídia ou classe média) se impõe. Tal posição não é pequena: provém de uma lenta invasão combinada de discursos clássicos, eclesiásticos e tecnocapitalistas trazidos dos países de centro para a América Latina. Porém, a marca diferencialmente, o devir relacional, a absorção e tradução do outro como variação inclusiva, já estavam a caminho: o encaixe de elementos e materiais díspares, provenientes de inúmeras civilizações, favorece, concomitantemente, a inserção da natureza na cultura (Pinheiro, 2013, p. 17).
Os processos tradutórios exercidos pelos poetas em se tratando da poesia latino-americana deixa isso transparecer aos montes. A poesia serve nesse passo para preencher certas lacunas em relação às dinâmicas de linguagens, pois acelera as imbricações entre os códigos, os textos, as séries e as paisagens. Tal acontecimento acaba ocasionando, a partir dessas fusões/junções, sintaxes combinatórias multiculturais. O que deve ser encontrado, fruto de olhares mais atentos, são os elementos constituintes das e nas culturas. Elementos esses que passam despercebidos ou são ignorados no que fere olhares mais tradicionais ou unilaterais. Existe um claro movimento, segundo Canclini (2010), de instabilidade e fragmentações do trato com os objetos da cultura, isso gera novas formas de relações entre as pessoas e as coisas e as coisas com as pessoas. Os textos, transitando nos mais variados ambientes, se conectam de maneira sintomática com as paisagens múltiplas e solares típicas da América Latina.
O importante é não perder de vista que tudo isso acontece em plenos espaços semiosféricos. Nesses espaços, as contínuas e aceleradas interações entre os mais variados códigos e signos se dão de maneira intensa e performática, uma vez que todo o processo de produção/condução das mensagens acontece cheio de sentidos, frutos de diálogos constantes entre sujeitos/paisagens/objetos da cultura. Machado (2007) defende a cultura como sendo um dispositivo pensante que não se encerra nunca. A cultura é algo vivo, em profunda e dialógica pulsão, onde tudo possui ritmos em tempos diferentes, o tempo todo, todo tempo. Em relação à semiosfera, Machado mostra que:
Conceber a cultura como relacionamento inteligente entre sistemas de signos implica situar campos de interação entre diferentes forças. Os estudos sobre semiosfera partem de dois eixos principais: o processamento de informação e a constituição da semiose no contínuo das relações espaço-temporais. Esses dois eixos articulam informação e texto cultural de modo a explicitar o funcionamento do universo da mente e, por conseguinte, o próprio modo pelo qual se propõe pensar a informação na cultura (Machado, 2007, p. 59).
O olhar semiótico atrelado à ideia de semiose implica uma relação de se compreender que para se pensar em linguagem é preciso existir linguagem, ou seja, um signo sempre está amarrado a outro, em um processo interminável de causas e efeitos. Lótman (1981), nesse prisma, argumenta que a semiose possui a capacidade de movimentar códigos e linguagens diversas e que esse processo não pode ser pensando de maneira bipolar. O que importa na realidade é o entendimento/identificação dos rastros deixados nas ações da produção de sentidos em relação às informações a serem produzidas. Devem ser levadas em conta não as transmissões, mas sim as transmutações dos gestos criadores. O ponto de atenção em relação às transmutações está ligado às mediações, e estas, por sua vez, darão forma e fluidez aos cenários culturais. Barbero (2013) chama isso de “comunicação em processo”: uma vez que os elementos culturais estão em movimento, os dispositivos mediadores entram em ação, produzindo significados a partir dos inúmeros sentidos possíveis atrelados às intenções ou conteúdos textuais.
Pensando nos processos tradutórios, principalmente os que dizem respeito à poesia feita na América Latina, os textos apresentados por Pinheiro deixam clara tais transmutações. Como no poema Cancion de Nicollás Guillén:
¡De qué callada manera/se me adentra usted sonriendo,/ como si fuera/la primavera!/(Yo, muriendo.)/Y de qué modo sutil me derramó en la camisa/todas las flores de abril./¿Quién le dijo que yo era/risa siempre, nunca llanto,/como si fuera/la primavera?/(No soy tanto.)/En cambio, ¡qué espiritual/que usted me brinde una rosa/de su rosal principal!/¡De qué callada manera/se me adentra/usted sonriendo,/como si fuera/la primavera!/(Yo, muriendo.)
Pinheiro (2013) defende que Guillén sempre em seus poemas desenvolvia uma relação sonora direta entre as paisagens, as pessoas e sua poesia. Essa semiose marca o traço forte da poesia de Guillén, onde construções sintáticas apresentam uma forma visivelmente mestiça, migrante e solar, transmutada. O poema apresenta em sua narrativa possibilidades de pensar os objetos contidos nele transitando pelos “entres”, nas dobras, onde muitas vezes olhares apressados nem percebem a marchetaria que construiu/moldou as sensibilidades e os sentidos do que está sendo dito/escrito. O poeta nos leva por caminhos curvilíneos, não ortogonais, intuindo mostrar os nexos possíveis entre os sujeitos da cultura, a paisagem e os objetos da cultura. A tradução feita por ele de todos esses elementos de maneira sintética se expressa nos versos do poema de forma sutil e aguda ao mesmo tempo, pois todos os signos e significados que trazem o poema se mostram em um fluxo ritmado e em trânsito dentro da semiosfera.
Paisagens, nexos e a letra
Cesar Vallejo. Fonte: https://cdeassis.files.wordpress.com/2012/03/vallejo_1.jpg
Uma das características marcantes da poesia latino-americana consiste no fato de que os poemas sempre trazem em si uma estética narrativa clara de mistura entre natureza/sujeito-corpo/ cultura. Uma das possíveis razões pode ser o fato das aglomerações diversas que aqui se deram em se tratando dos processos de colonização, uma vez que a mistura de tradições culturais foi inevitável (pois os conflitos culturais dentro das inúmeras práticas sociais aconteciam em abundância). A mestiçagem se dava em todas as produções dos diversos objetos da cultura. A poesia deixava isso bem evidente, como por exemplo, o poema “Desnudo em barro” de Cesar Vallejo:
Como horribles batracios a la atmósfera, /suben visajes lúgubres al labio. /Por el Sahara azul de la Sustancia /camina un verso gris, un dromedario. Fosforece un mohín de sueños crueles. /Y el ciego que murió lleno de voces de nieve. Y madrugar, poeta, nómada, al crudísimo día de ser hombre. /Las Horas van febriles, y en los ángulos /abortan rubios siglos de ventura. /¡Quién tira tanto el hilo: quién descuelga /sin piedad nuestros nervios, /cordeles ya gastados, a la tumba! /¡Amor! Y tú también. Pedradas negras /se engendran en tu máscara y la rompen. /¡La tumba es todavía /un sexo de mujer que atrae al hombre!
Nesse poema fica visível a condensação entre paisagem, objetos e sujeitos em seus intermináveis dilemas existenciais. Olhar e mão do poeta seguem na direção de evidenciar um movimento metonímico que escapa dos corpos e se funde nas paisagens, voltando em seguida, de novo, como elemento traduzido para os corpos. O que cabe aqui é pensar que as questões normativas, tradicionais, que quase sempre trilham em óticas binárias perdem força. Isso ocorre por conta das múltiplas possibilidades culturais oriundas das misturas, característica típica da América Latina. Pinheiro nessa linha mostra que:
Assim como num poema é desejável que se teçam nexos recíprocos da letra ao verso e às estrofes, do mesmo modo, guardadas as diferenças e proporções, podem-se verificar os encaixes e adaptações sintáticas das séries da natureza (todo o reino mineral, vegetal e humano-animal, e das séries da cultura (arquitetura, festas, vestuário, culinária) com os processos criativos dos meios de comunicação, do jornal impresso à telemática (Pinheiro, 2013, p. 20).
Acontece que nos poemas é possível encontrar certo fluxo contínuo em relação a encadeamentos elásticos no que tange as marchetarias socioculturais próprias dos espaços solares latinos. Pegando a ideia de Canclini (2013) em se tratando das relações variáveis múltiplas no campo da cultura, surge o conceito de hibridismo (desenvolvido por ele), onde as conexões dos múltiplos agentes culturais aparecem em boa parte da poesia latino americana. Em Vallejo isso fica evidente, é fácil encontrar diversos elementos conversando. Tais conversas resultam nas imagens poéticas descritas por ele em seus poemas. Barbero (2013) quando se refere a desenvolvimentos de entendimentos dessas mediações (conversas) culturais diz ser necessário elaborar perguntas a partir de outros lugares deslocados. Deve ser mudado tanto o lugar das perguntas como as próprias perguntas a serem feitas. Tal fato envolve diretamente o universo das telemáticas, uma vez que as mídias permitem tais possibilidades. O interessante é perceber que as perguntas a serem feitas por quem busca entendimentos mais sensíveis, deve se concentrar em rupturas e descontinuidades com o pensamento centro-europeu tradicional. Barbero diz:
Não creio que seja possível mudar de lugar, sem mudar o lugar a partir do qual as perguntas são formuladas. É o que tem mostrado, nos últimos anos, a tendência a colocar questões que rebaixam a “lógica diurna” e a desterritorialização que implica assumir as margens não como tema, e sim como enzima (Barbero, 2013, p. 290).
É justamente essa desterritorialização marginal que deixa a poesia latino-americana se tornar espetacular no quesito de misturas possíveis em termos de linguagem. Culturalmente falando, as estruturas de linguagens presentes na poesia apresenta ritmos flutuantes, os quais são refletidos nos sistemas modelizantes mestiços. Pinheiro (2013, p. 21) escreve que “aqui se desdobra o campo das relações assimétricas, que necessita de um material de liga adligante (que prende, agarra) nas junturas sintáticas do texto”, essa liga adligante é facilmente tecida nos versos pulsantes da poesia latino-americana. As junturas ficam visíveis nas transições sensoriais pertencentes nas narrativas poéticas, como fora mostrado nos poemas de Guillén e Vallejo apresentados acima.
Variadas linguagens, telemática e os escapes
Em épocas onde o digital/virtual predomina é interessante despertar algumas reflexões. Existe todo um movimento cultural que de certa forma afasta as pessoas do presencial/corporal e as coloca em rede, no chamado campo virtual/interconectado. Na ótica binária de pensamento, aparece a ideia apressada de que hoje, por conta dos inúmeros recursos/ferramentas comunicacionais/tecnológicos a vida se apresenta mais “dinâmica”, “conectada”, mais “sofisticada”, isso em certo ângulo, é uma ideia equivocada. O próprio conceito do que é moderno ou o que é tradicional normalmente, segundo Canclini (2010), parte de um olhar de mão única, um olhar que Barbero (2013) delega como resultado da influência dos processos de colonização.
O interessante é pensar que mesmo em tempos de certa pressa nas dinâmicas cotidianas, a poesia ainda resiste. Glissant (2005) inclusive propõe uma “poetização da prosa acadêmica”, uma espécie de metodologia libertária que se concentra na narrativa poética enquanto instrumento válido de análises e produção científica. Inúmeros sites são dedicados à poesia. Ela segue em fluxos, mesmo em tempos digitais. Tais fluxos derivam em nexos atemporais. Tais nexos dão liga dentro das semiosferas entre a poesia, paisagens e os sujeitos da cultura. Isso resulta em uma relação corpo/cultura/natureza dialógica, onde os vastos estímulos externos/internos ganham forma através das letras, transformadas em palavras, resultadas em poemas.
Manoel de Barros. Fonte: https://confrariadaspalavras.wordpress.com/category/manoel-de-barros/
Podemos encontrar isso, por exemplo, no poema “O apanhador de desperdícios” de Manoel de Barros:
Uso a palavra para compor meus silêncios./Não gosto das palavras/fatigadas de informar./Dou mais respeito às que vivem de barriga no chão /tipo água pedra sapo. Entendo bem o sotaque das águas
Dou respeito às coisas desimportantes/e aos seres desimportantes./Prezo insetos mais que aviões./Prezo a velocidade das tartarugas mais que a dos mísseis./Tenho em mim um atraso de nascença./Eu fui aparelhado para gostar de passarinhos./Tenho abundância de ser feliz por isso./Meu quintal é maior do que o mundo./Sou um apanhador de desperdícios:/Amo os restos como as boas moscas./Queria que a minha voz tivesse um formato de canto./Porque eu não sou da informática:/eu sou da invencionática./Só uso a palavra para compor meus silêncios.
O poema de Manoel de Barros apresenta diversos ingredientes importantes. É notória a intenção/ideia de construir a narrativa a partir da mistura de elementos plurais, mixes entre corpo/natureza/cultura. A conexão entre sujeito e paisagem se emaranha durante todo o ritmo do poema. Manoel de Barros utiliza experiências sensíveis saídas direto do seu grande laboratório aberto de sensações. E tudo isso não se apaga ou se distancia da pulsante e aguda rotina dos sujeitos contemporâneos. Pinheiro (2013) nessa direção argumenta que:
As tecnologias, desse modo, sejam da sociedade industrial ou da telemática, passam pelo crivo de uma outra velocidade inscrita nas séries da cultura, que acelera suas partículas de acordo com as leis da proximidade barroco-antropofágica e sintático-metonímica (via o molejo sanfonado) onde o que interessa não é o que se armazena apenas em quantidade para frente, mas sim essa estranheza alheia lateral que se pode deglutir (Pinheiro, 2013, p. 28).
Essa citação de Pinheiro aponta para o possível diálogo entre o universo da telemática com as pulsões poéticas, mesmo que isso esteja ocorrendo em outro tempo. Pensando aqui no que o mundo chamado de “plugado” apresenta em termos de deslocamentos das estruturas cognitivas dos sujeitos da cultura dentro das sociedades, é importante perceber que nos tempos atuais, mesmo que as relações estejam dentro dos universos digitais, o não digital ainda resiste, permanece. A antropofagia barroca ainda se apresenta viva, é possível ver isso nas mais diversas tramas que acontecem nas cidades, que circulam nas ruas, que se mostram nas relações entre os objetos e sujeitos da cultura. Isso é identificado nos bares, nas praças, nos espaços públicos em geral. Ou seja, discurso e prática mesmo que em alguns momentos aparentemente rumam para direções opostas, acabam se encontrando nas relações sintático-metonímicas. Tais relações acontecem nos espaços habitados, principalmente nos abertos, solares, públicos. Nesses espaços as sensações acontecem, resultado dos fenômenos vividos pelos sujeitos. E isso, independentemente da época ou das tecnologias do momento, sempre esteve latente, como mostra o poema “Con la primavera”, de José Martí:
Con la primavera/Viene la canción, /La tristeza dulce /Y el galante amor./Con la primavera /Viene una ansiedad /De pájaro preso /Que quiere volar./No hay cetro más noble /Que el de padecer: /Sólo un rey existe/El muerto es el rey.
José Martí. Fonte: http://www.perlavision.icrt.cu/josemarti/pages/libros.html
Na poesia latino americana ocorrem visíveis bricolagens entre os considerados distantes, dicotômicos, separados. A poesia tem o poder de juntar tudo dentro de processos sensoriais assimétricos. Acabam ocorrendo combinações claras entre corpo/natureza/cultura. Não de maneira separada ou polarizada, mas sim de maneira aglutinante, complexa, confluente. Os ritmos e rimas da poesia latina rumam para encontros e desencontros vocálicos sensoriais que se espelham quase que em métricas musicais do próprio cotidiano. Pinheiro (2013) em relação a isso diz que:
A aceleração dos contágios entre séries culturais (poéticas, arquitetônicas, mobiliarias, culinárias etc.) e aquelas midiáticas (radio, jornal, televisão, cinema, vídeo) redesenhou e redistribuiu em vaivém formas porosas e não ortogonais (um cromatismo em fligrana de gestos e traços), aquém e além da razão dual, muito apropriadas para as traduções interfronteiriças. (Pinheiro, 2013, p. 33).
As traduções referidas na citação acima se espalham, escapam dentro do universo da telemática justamente pelas brechas ainda possíveis dos contágios, conflitos culturais. Lótman (1978) defende a arte como um dos meios de comunicação, onde a mesma se apresenta como linguagem. Tal linguagem se expressa em textos, textos artísticos os quais se encarregam de narrar os intermináveis choques culturais que acontecem nos espaços semióticos. Existe uma grande e robusta complexidade no discurso poético. Isso acaba gerando a necessidade do desenvolvimento de outras percepções em se tratando da compreensão da intenção do texto.
A poesia se apresenta como um fenômeno cheio de significações que tratam de mostrar imagens que circulam no mundo da abstração. No entanto, é uma melhor codificação da informação passada que resultara na emoção ideal ou perto do ideal intuída no processo criativo. O fato é que a poesia possibilita imersões em águas subjetivas profundas e agitadas no bom sentido. Isso pode ser observado no “Poema da cachoeira” de Oswald de Andrade:
É a mesma estação rente do trem/Toda de pedra furadinha/Meu pai morou alguns anos aqui/Trabalhando/Um dia liquidou/Ativo passivo/Cinco galinhas/E deram-lhe uma passagem de presente/Para que eu nascesse em São Paulo/Como não houvesse estrada de rodagem/Ele foi na de ferro/Comprando frutas pelo caminho.
Como pode ser observado no poema, existe uma relação direta, imbricada, bricolada entre os objetos e os sujeitos da cultura, num ritmo fluido, onde paisagem e sujeitos/objetos não só dialogam como se fundem em novos elementos em movimento. Tomando uma ideia de Bachelard (1988) na qual o sujeito se maravilha com as imagens poéticas, é possível pensar o próprio sujeito como sendo as próprias imagens poéticas, tamanha a semiose que acaba ocorrendo nesses processos dialógicos. Fato esse visível no poema de Oswald de Andrade.
Oswald de Andrade. Fonte:http://www.brasil247.com/pt/247/cultura/42199/O-inquieto-Oswald-de-Andrade.htm
Considerações finais
O brevemente discutido neste artigo foi justamente a ideia de perceber que mesmo em tempos de tecnologias móveis a poesia ainda está aí, circulando de um jeito ou de outro nesse mundo telemático e acelerado dos tempos atuais. Lótman (1979) defende que na constituição de sistemas de signos os mesmos são marcados pela diversidade. Semioticamente falando ocorre inter-relações num mesmo espaço cultural, isso gera diálogos diversos, logo, convivências culturais aparecem, o que acaba gerando novos signos. Isso pensando em sistemas de artes é algo potente, uma vez que, daí nascem novas/velhas formas de expressão. A cultura da diversidade enquanto manifestação humana se apresenta radicalmente contra uma ideia de regularidade e normatização, uma vez que, dentro da semiosfera, as pulsões rompem barreiras e mudam paradigmas. As construções significantes são permitidas e identificadas enquanto elementos dos espaços sociais em fluxo, esses se mostram recheados de diversidades vivas, fluidas e intensas, as quais geram nexos porosos, curvilíneos. Pensando nessa fluidez, Bachelard (1988) mostra que o êxtase da imagem provoca sempre um ato de novidade. Essa novidade da imagem só pode ser possível se os espaços sociais estiverem sendo vividos de maneira plena, entrópica, sinestésica, poética. Bachelard (1988) defende que a consciência imaginante vive a imagem poética. Pensando assim, é possível supor que a poesia causa um efeito de mão dupla, pois ao mesmo tempo em que expressa se faz expressar, criando assim, uma liga entre o poeta, o meio e o leitor (não necessariamente nessa ordem), e essa liga se dá justamente através da imagem criada a partir do poema comunicado. Essa imagem não só forma a intenção como dá suporte para a imaginação transitar por todos os lados possíveis, lados que são resultados dos processos tradutórios.
O importante é perceber que tais fenômenos na América Latina acontecem no externo, nas ruas, no solar. É interessante identificar que nesses espaços abertos, repletos de universos colidindo-se, unindo-se, confluindo-se todos ao mesmo tempo, habita a poesia. Os registros desses fenômenos cotidianos mapeiam a própria rotina de vida, o ritmo das relações, as intempéries desarmônicas do que acontece nas cidades são traços marcantes dos espaços diversos que aqui se apresentam. É sabido compreender que tudo isso acontece impresso na cultura, pois é nas relações semióticas entre sujeitos/objetos/paisagem que a própria dinâmica da vida pode ser pensada, independentemente de quais suportes tecnológicos de comunicação estejam disponíveis ou mais utilizados. O fato é que as pessoas ainda se encontram transitando de maneira pulsante nas semiosferas, como brevemente foi possível se observar através de uma forma de leitura textual dos poemas apresentados neste estudo.
*Therence Santiago Alves Feitosa é doutorando em Comunicação e Semiótica na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e professor na UNIP e na Estácio – SP. Autor do livro de crônicas e poemas Sobre biologia, cotidiano e o lado de dentro.
Referências
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Quando anunciada, durante a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) de 2011, a nova versão do Programa de Apoio à Tradução e à Publicação de Autores Brasileiros no Exterior gerou interesse imediato e expectativas em autores, tradutores, agentes literários e editoras. Não era para menos: a iniciativa da Fundação Biblioteca Nacional (FBN) garantia o investimento de R$ 12 milhões até 2020 no fomento à tradução e à difusão de obras da literatura brasileira no exterior. Logo, editais complementares vieram para impulsionar o programa, tais como o de Apoio à Publicação de Autores Brasileiros na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), o de Residência de Tradutores Estrangeiros no Brasil e o de Intercâmbio de Autores Brasileiros, além da criação da Revista Machado de Assis – Literatura Brasileira em Tradução, todos com a missão de projetar e difundir internacionalmente a nossa literatura. Passados quatro anos desde o anúncio do programa e dois do protagonismo do Brasil no maior evento literário do mundo, a Feira do Livro de Frankfurt, o momento parece propício a um primeiro balanço: o que vem funcionando bem, o que não deu certo, quais os desafios e perspectivas para os próximos anos no desenvolvimento do programa, sobretudo em uma conjuntura administrativa de restrições orçamentárias? Em conversa com as editoras executivas da Z Cultural, Agnes Rissardo e Ieda Magri, a diretora do Centro de Cooperação e Difusão da FBN, Moema Salgado, e o coordenador do Programa de Apoio à Tradução e à Publicação de Autores Brasileiros no Exterior, Fábio Lima, formulam respostas a essas questões e seguem confiantes nos objetivos do programa. “O esforço do Brasil em difundir a literatura brasileira no exterior é também o desejo de fazer parte de um fundo comum cultural da humanidade. Acredito muito na penetração nesse fundo, seja por meio da participação em feiras, do nosso programa de tradução, da RevistaMachado de Assis ou de intercâmbios”, pontua Moema.
Como vocês avaliam o Programa de Apoio à Tradução e à Publicação de Autores Brasileiros no Exterior? Essa iniciativa é saudada por ser capaz de projetar a literatura brasileira internacionalmente, mas também recebeu várias críticas, a mais contundente talvez seja a de que as editoras estrangeiras recebem o dinheiro e não fazem um bom trabalho de divulgacão do livro traduzido, o que acaba não mudando muito a situação da visibilidade do autor brasileiro fora do Brasil. Vocês acham que isso ainda é um problema ou foi desenvolvida alguma forma de controle, além da exigência que as candidaturas apresentem um plano de marketing e distribuição?
Moema Salgado – Apoiamos a tradução de uma forma complementar: nunca cobrimos os custos inteiros de tradução, produção e publicação, simplesmente oferecemos apoio para a editora viabilizar um projeto de tradução no exterior. Esse programa já existia em diversos países, e muito anteriormente ao Brasil. É uma forma complementar de divulgação de uma cultura no exterior, o que não quer dizer que é o programa que vai permitir que a China inteira leia Jorge Amado. Mas se fizermos dez chineses lerem Jorge Amado será uma contribuição, uma abertura. Em 2011, houve uma reformulação bastante significativa do programa e, aos poucos, buscamos sempre aperfeiçoá-lo, o edital evoluiu bastante desde que começou nos anos 1990. Não sabemos se aqueles mil, dois mil, cinco mil exemplares foram todos vendidos, distribuídos em pontos específicos, determinados, mas são formas de nos precavermos. Antes dos anos 1990 não existia nem o contrato de direito autoral entre a editora e o autor. Depois passamos a exigir documentos jurídicos da empresa, o plano de distribuição e o contrato com o tradutor. Essas exigências são muito importantes porque o centro do programa é o tradutor: procuramos sempre ter certeza de que a editora já tem um tradutor contratado e que ele tem um currículo sólido.
De que forma é feita a avaliação do currículo do tradutor?
Fabio Lima – Fazemos uma avaliação básica do tradutor, mas tendemos a não julgar muito a qualificação. Não precisa ser superexperiente e recomendado, mas queremos saber quem ele é, o que faz, onde se formou e o que já traduziu.
Moema Salgado – Mas também é limitada a nossa capacidade de avaliar a tradução de um autor para o russo, por exemplo. Ao menos nos garantimos de que aquele tradutor já fez alguma tradução e que tem uma formação para isso.
Essas exigências existem desde a criação do programa ou foram elaboradas após a reformulação de 2011?
Moema Salgado – Antes de 2011 o programa tinha algumas exigências práticas, porque isso é inerente à administração: estamos falando de recurso público, não dá para conceder apoio financeiro sem essas regras mínimas de controle. Tentamos adequá-las em função da realidade do mercado editorial internacional. Ao longo desses últimos quatro anos, tentamos ouvir dos agentes e editores quais eram os problemas, o que era mais difícil e mais fácil. Traduzir uma ficha de inscrição ou uma carta para o português, por exemplo, às vezes limitava o interesse da editora em se inscrever. Por isso, passamos a permitir que eles se inscrevessem em inglês. Tentamos facilitar algumas coisas, mas por outro lado controlar outras, como esse Plano de Distribuição, o contrato e o currículo do tradutor, um plano de promoção, tudo o que não exigíamos antes de 2011. E acho que isso nasceu de um contato nosso com esses atores do mercado, e também com as instâncias de controle interno, procuradoria e auditoria. Eles diziam: “vocês estão frágeis, precisam ter mais garantia de que se trata de uma editora séria, de que ela está juridicamente registrada”. Tentamos ter ao máximo essas informações. A inscrição passa por duas etapas: a primeira é uma avaliação mais técnica e procura verificar se eles têm todos os documentos e se estão suficientemente reais e sérios. Se sentimos alguma fragilidade nessa primeira fase da habilitação, procuramos saber mais e contatamos, por exemplo, o Ministério das Relações Exteriores (MRE) para que a Embaixada, localmente, consulte a editora. E a segunda fase da inscrição é o julgamento pela comissão avaliadora, que é mais da relevância do projeto. É uma avaliação bastante subjetiva.
Vocês costumam rejeitar projetos nessa segunda fase? Como funciona?
Fabio Lima – O balanço é sempre positivo, a comissão chega a um consenso de que mesmo que fosse um autor relativamente desconhecido para o público brasileiro, poderia valer a pena divulgar, mediante a apresentação do projeto, da editora e tudo o mais. Mas sim, houve casos em que projetos foram rejeitados como um todo, não necessariamente pela relevância do autor, mas por uma certa inconsistência do projeto.
Em média, quantas inscrições recebe cada edital? Há um limite de aprovação?
Moema Salgado – É muito variado. Na verdade, tudo acontece em função do orçamento disponível naquele ano. De 1991, quando foi criado, até 2011 houve uma inconstância: às vezes havia recurso para dez bolsas de tradução, às vezes para duas, trinta ou mesmo para nenhuma. O resultado direto era que as editoras estrangeiras não se sentiam suficientemente confiantes no programa para investir em seus respectivos projetos de tradução. Em 2010, com a assinatura do termo de compromisso entre o Ministério da Cultura (MinC) e a Feira do Livro de Frankfurt, houve essa nova compreensão de que a literatura é uma forma importante de penetração internacional da cultura brasileira, o tal do soft power, que foi muito falado naquele período do ministério, e o programa seria uma forma de dar perenidade à presença da literatura brasileira no exterior. Então, desde 2010, começaram a surgir mais recursos, já nesse espírito da participação do Brasil como país convidado da Feira do Livro de Frankfurt. E não é uma especificidade com o Brasil. No acordo da Feira com os países homenageados há uma cláusula especificando que eles precisam criar ou reforçar o seu programa de apoio à tradução, porque a organização do evento quer realmente estimular a tradução dos livros nesses países.
O Brasil já havia sido o país convidado da Feira do Livro de Frankfurt em 1994. Na ocasião, já existiam essas exigências? É possível estabelecer uma comparação entre a participação do país naquele ano e em 2013?
Fabio Lima – O programa já existia, mas acredito que não existiam essas exigências. Mesmo assim, se pegarmos a data das publicações, vamos achar muito livro publicado por volta de 1994. Houve sim um movimento do governo de apoiar a tradução de livros naquela época, e certamente teve algo a ver com Frankfurt. Na Alemanha, principalmente, as edições de livros importantes foram de 1993, 94, alguns em 95, 96, tudo é um ciclo. Agora temos um outro ciclo por conta de Frankfurt 2013.
Moema Salgado – Era outra visão da difusão da cultura no exterior. Tínhamos outro contexto político e econômico no Brasil. É realmente difícil comparar a experiência de Frankfurt em 1994 com 2013 porque eram conjunturas muito diferentes.
O que a Fundação Biblioteca Nacional realizou depois de 2010 para estabilizar o programa?
Moema Salgado – São vários elementos que contribuíram para isso. É uma visão interna do MinC de que o Programa de Apoio à Tradução é uma política pública, uma política de Estado, talvez uma das mais longas de apoio à cultura brasileira no exterior. E que merecia ter um reforço orçamentário e financeiro. Desde 2010 essa foi uma compreensão muito clara do MinC, que dedicou recursos importantes para o programa em 2011, 2012, 2013 e até 2014. Trata-se de um programa estratégico para a projeção internacional do Brasil, que começou a ser construída com o início do governo Lula, com o Gilberto Gil no MinC. E se o programa de tradução já existia, se era uma experiência bem-sucedida, se havia uma demanda e também mais interesse pela cultura brasileira, pela literatura brasileira, o que mais poderia ser feito se não investir no programa existente? Começamos assim a fazer um trabalho de divulgação do programa: estávamos presentes em todas as feiras, divulgando, conversando com os editores, com os agentes literários brasileiros, estrangeiros, com os tradutores, e criou-se uma rede de contatos que foi muito importante. E eles sempre perguntavam: “mas o programa continua? É confiável?”, e respondíamos: “sim, está tudo certo, vai continuar, podem se inscrever”. Acho que hoje temos um programa que ganhou um corpo fora do Brasil, o que é muito legal, e as pessoas se inscrevem. E agora, nesse contexto de restrições orçamentárias de 2015, é uma questão difícil porque o que construímos nos últimos quatro anos consolidou uma imagem, e agora há uma expectativa, uma demanda muito grande. Antes recebíamos poucas inscrições, hoje em dia são muitas.
Fabio Lima – Recebemos em torno de 180 inscrições e temos mais de 160 bolsas aprovadas. Mas este ano só tivemos uma reunião do edital do ano passado e foram 61 aprovadas. O edital antes abria num mês e fechava as inscrições dois meses depois. Agora mantemos o edital aberto por dois anos sem interrupção: fizemos um em 2011, outro em 2011-2013 e outro em 2013-2015, com um cronograma de reuniões ao longo do ano. A editora envia a inscrição a qualquer momento e será avaliada em alguma reunião. Nem sempre dá para acompanharmos o ritmo do mercado editorial, os livros às vezes têm que sair antes, então algumas vezes o projeto não pôde ser apoiado porque a editora publicou antes da avaliação. Mas tentávamos sempre nos adaptar: a editora mandava, avaliávamos na reunião seguinte. E acabou em maio esse edital, o novo foi lançado em junho. Na primeira reunião de avaliações, em agosto, 53 bolsas foram aprovadas.
Moema Salgado – O que é raro nos editais da área pública. Os projetos e editais do MinC raramente ficam abertos continuamente. Aliás, o programa de tradução é muito sui generis dentro do sistema MinC, porque é um edital que beneficia apenas editoras e instituições estrangeiras (normalmente é só para brasileiras), e o contrato que temos é em dólar com as editoras, o que gera uma dificuldade interna em termos de pagamento, pois tem que ser pela taxa de câmbio do dia, e as oscilações do dólar complicam muito as nossas vidas, mas trabalhamos para tentar superar essas dificuldades. Realmente, não é um programa fácil de administrar, não é um edital que se apoia num produtor cultural brasileiro, que precisa ter um registro ou Lei Rouanet. É um programa muito diferente.
Nos últimos quatro anos, a Biblioteca Nacional também lançou editais complementares, entre eles o Programa de Intercâmbio de Autores Brasileiros e o Programa de Apoio à Publicação de Autores Brasileiros na CPLP. Qual é a proposta desses programas e por que foram criados?
Moema Salgado – Em nossas reuniões com editoras, agentes, escritores e festivais literários, eles diziam: “é muito legal o programa de tradução, mas é importante que o autor venha para divulgar”. Por isso lançamos o edital do Programa de Intercâmbio, para apoiar as instituições estrangeiras, editoras ou festivais, ou feiras literárias estrangeiras, a convidarem o autor para uma participação, uma palestra, um lançamento de um livro, porque isso realmente contribui para a presença da literatura brasileira no exterior. Por mais que a editora nos mande o plano de ação, de divulgação e distribuição, se sabemos que o autor vai para lá, vai falar em uma mesa, uma palestra, tem um lançamento, isso gera outro impacto. É importante dizer que a nossa relação direta de apoio não é com o autor. O pedido é feito pelo festival ou pela editora no exterior.
Fabio Lima – O primeiro edital é de 2012 e passamos a lançá-lo todos os anos desde então. O resultado foi muito bom: as editoras pediram um apoio para fazer tour, chamar o autor, combinando com alguma feira ou não. Na Feira de Guadalajara, no México, há um projeto que se chama Destinação Brasil desde 2012. O edital de 2015 foi lançado em junho, a reunião de avaliação aconteceu em agosto e 27 projetos foram aprovados. Em 2012 foi um apoio nosso, mas veio do Itamaraty. E, em 2013 e 2014, foi por meio do edital de intercâmbio. Eles chamaram uma série de autores, que compareceram, com uma programação bem interessante. Ano passado teve um festival na França que também convidou dez autores brasileiros, e pudemos apoiar.
Moema Salgado – Já o edital do Programa de Apoio à Publicação de Autores Brasileiros na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) também abriu uma nova frente, porque realmente são países estratégicos para o Brasil, e queremos divulgar mais junto aos países africanos de língua portuguesa. Por isso, o edital de Apoio à Tradução e à Publicação lançado em junho deste ano passou a admitir inscrições de editoras de países de língua portuguesa.
A Biblioteca Nacional desenvolve ainda o Programa de Residência de Tradutores Estrangeiros no Brasil, que cobre custos de residência no país de tradutores estrangeiros que já estejam trabalhando na tradução de uma obra brasileira e queiram participar de uma imersão na nossa cultura. Quais têm sido os resultados e os desafios desse programa?
É interessante termos contato com esse tradutor que está às vezes lá na Croácia traduzindo Aluísio de Azevedo e quer passar um período aqui, tendo contato com o idioma ou com uma fonte primária ou com o autor, quando ele está vivo. Nesses casos, a imersão é superimportante. O nosso sonho era, inicialmente, tentar reproduzir o que existe na França e na Alemanha: oferecer uma casa que recebesse os tradutores, mas as dificuldades administrativas são grandes. Nesses países, a associação de tradutores está envolvida na gestão. E aqui no Brasil, infelizmente, essa associação é mais dispersa, menos organizada. Chegamos a fazer uma reunião com eles para conversar sobre essa ideia, mas a administração pública não tem como gerir um projeto assim. No Brasil agora começa a se perceber que o tradutor realmente é um ator importantíssimo nessa difusão, tanto na recepção de textos estrangeiros quanto na divulgação de textos brasileiros. Os tradutores são muito mal remunerados no Brasil em relação a outros países. E isso é um desafio nosso, sempre tentamos valorizar o tradutor porque ele precisa ter meios, não pode ser apenas um trabalho extra que ele faz para complementar o salário. É um trabalho profissional. Quando estivemos na Suécia, no ano passado, achei interessante que o país tinha acabado de regulamentar uma lei que exige a inscrição do nome do tradutor na capa do livro. Normalmente ele fica na folha de rosto. E, realmente, o autor é o autor, mas o tradutor é um outro autor.
Fabio Lima – Já tivemos dois editais desse programa, um em 2012 e outro em 2014. As residências aconteceram em 2013, com 15 participantes, e em 2014, com cinco.
Vocês mencionaram os cortes no orçamento do governo federal. Qual é a expectativa em relação a essa conjuntura com tantos projetos em andamento?
Moema Salgado – Estamos todos vivendo no mesmo país e sabemos que a situação não é específica da Biblioteca Nacional, do Ministério da Cultura e do governo, são vários fatores. E há os municípios, estados, todos com problemas orçamentários. Mas podemos confirmar que foram concedidas 83 bolsas de Apoio à Tradução e Publicação e 23 bolsas de Intercâmbio. Esse número, em um contexto de contingenciamento e restrições orçamentárias, é muito positivo, significa que há uma grande sensibilidade pela continuidade e aposta no equilíbrio do programa, que teve um boom de 2011 a 2014. Ficou de um tamanho que até para a nossa equipe é difícil administrar 200 bolsas de tradução por ano, como aconteceu em 2013. Por isso acho que o programa foi muito generoso, e era o papel dele realmente abrir frente para vários autores. Tivemos essa abertura nos últimos anos, e teremos que nos adequar obrigatoriamente à realidade. O recurso que nos era disponibilizado nos permitia apoiar até Chico Buarque e Paulo Coelho, que não precisariam obrigatoriamente. O nosso apoio para esses livros, por exemplo – e isso é um argumento que eu acho muito defensável – é que ele, por menor que seja, pode ajudar numa diminuição do valor da venda do livro nesses países. Apoiar a Gallimard, uma supereditora francesa, para traduzir Chico Buarque ajuda, talvez, a pagar uma divulgação a mais, o tradutor um pouco mais ou diminuir o preço da venda ao público. Não estamos viabilizando a tradução do Chico Buarque na França, eles fariam de outra forma, trata-se de um apoio. Acho que a tendência do programa agora é afunilar. Na última reunião do edital 2013-2015 em abril, a comissão, que é composta por pessoas da Biblioteca Nacional e de fora, chegou a uma proposta de critérios novos, além daqueles do edital, que seriam os de priorizar autores que nunca apoiamos.
Fabio Lima – A comissão quer priorizar a publicação de autores não apoiados e, depois de certo momento, menos apoiados, autores que tenham menos bolsas em geral. O critério desse cenário mais restrito em termos orçamentários é esse.
Moema Salgado – Autores de não ficção, por exemplo, foram pouco apoiados nas feiras, tanto Frankfurt, Bolonha, Paris. Acho que tem uma produção intelectual no Brasil superimportante que merece ser traduzida, divulgada, e que a gente apoiou menos nesses últimos anos, o que foi reforçado pela comissão. Ela também procurou apoiar países nunca apoiados, por exemplo, o Japão, onde já foi traduzido um livro do Bernardo Kucinski. Dessas 60 inscrições que a comissão divulgou na última reunião, classificamos todas, mas selecionamos apenas 50% delas. Desses, elegemos os autores e países que eram pouco ou nunca apoiados e também, claro, levando em consideração os critérios do edital a respeito da relevância do projeto para divulgação da cultura brasileira. E foram quase 450 bolsas em quatro anos. O programa fez essa primeira penetração massiva e agora aquela editora lá na Suécia que conheceu os textos de Ferreira Gullar talvez consiga publicar o próximo sem o apoio. O Luiz Ruffato, por exemplo, é um autor que hoje em dia está sendo demandado, Daniel Galera também, e muito provavelmente não precisarão mais das bolsas.
Fabio Lima – Acho que todo apoio para tradução, independentemente de ser literatura brasileira ou qualquer literatura, é bem-vindo. Quem pediu apoio para esses livros foram editoras pequenas, médias, independentes. Qualquer editora vai fazer bom uso desse dinheiro, e acho que qualquer apoio é justificado para essas editoras menores. Havendo recurso, a gente deve apoiar.
Existe algum estímulo específico da Fundação Biblioteca Nacional para os países da América Latina, já que somos todos vizinhos?
Fabio Lima – Na América Latina o contato é sempre mais próximo. Argentina e México são os países que demandam mais e com os quais temos feito mais contato. No caso dos tradutores latino-americanos de residência, no primeiro edital foram três argentinos e, no ano passado, uma argentina.
No balanço feito pela FBN para a Feira de Frankfurt, o Uruguai aparecia como o país que tinha a maior importação de livros brasileiros. No entanto, não aparecem ali muitos livros de ficção e nem bolsas. Qual é, afinal, a relação do Brasil com o Uruguai?
Fabio Lima – Pode ser importação direta dos livros em português, não temos esses dados. No Uruguai o que houve de projeto mais interessante foi uma editora, a Yauguru, que fez uma parceria com uma editora brasileira, a Grua. Fizeram livros bilingues de autores brasileiros no Uruguai, e de autores uruguaios no Brasil. Foi um projeto bem legal que surgiu desse edital. E na Argentina também surgiu um projeto interessante, de duas tradutoras, Bárbara Belloc e Teresa Arijón. Elas estão com o Renato Rezende na coleção Nomadismos. Eles começaram a fazer uma série de ensaios na Argentina, e agora lançaram aqui e também publicaram ensaios brasileiros lá. A comissão olha esses países da América Latina como um mercado interessante. Na última reunião, aprovou uma bolsa para o Equador.
Como avaliam o projeto Brazilian Publishers, criado em 2008 numa parceria entre a CBL e a Apex-Brasil para promover ações de promoção comercial destinadas a divulgar o conteúdo editorial brasileiro das editoras participantes em eventos no Brasil e no exterior?
Moema Salgado – Acho importante dizer que a divulgação da literatura brasileira no exterior não depende só do Ministério da Cultura. É um esforço conjunto que une várias instituições: o MinC, o Ministério das Relações Exteriores (MRE), as embaixadas e a Câmara Brasileira do Livro (CBL). E há o projeto Conexões, do Itaú Cultural, que também tem um esforço de mapear esses focos de interesses da literatura brasileira. Estamos sempre em contato com a CBL, as nossas participações nas feiras internacionais eram, na maioria das vezes, ou com a CBL, ou com o MRE, com as embaixadas que organizavam os estandes. É totalmente complementar, porque não adianta fomentarmos o apoio à tradução se as editoras brasileiras não vão às feiras estrangeiras com o interesse de vender também. É claro que não vão ficar ricas vendendo direitos, mas têm que fazer esse esforço de se internacionalizar. Acho que o Brazilian Publishers tem esse mérito.
Fabio Lima – No caso do Brazilian Publishers eles também dão conta do mercado, tem uma forte presença nas diretrizes, nessa coisa da pesquisa, mercados alvo etc., do tipo de editora que se associa mais ao projeto. Têm um peso interessante as editoras de livros técnicos, de livros científicos, que é uma outra entrada, diferente do livro de literatura.
Moema Salgado – E eles fizeram muito essa reivindicação para que o Programa de Apoio à Tradução apoiasse também livros técnicos, científicos e profissionais. Mas isso foi muito discutido internamente com a CBL, que o MinC, a FBN, a comissão avaliadora não têm competência para avaliar, por exemplo, um manual de cirurgia odonto-maxilofacial.
Vimos que os mercados alvo do Brazilian Publishers para exportação de livros do Brasil na América Latina são Chile, Colômbia e México. E, no caso da Europa, França e Alemanha. O que determina essas escolhas?
Moema Salgado – A questão é mercadológica. É um olhar da agência de promoção de exportação que vai dizer quais são os mercados que estariam interessados em comprar produtos brasileiros. E a gente tem uma ação complementar. Na verdade, tentamos diversificar esse interesse. É importante estar em Frankfurt, mas também em Bolonha, que é a feira para literatura de crianças e jovens, e em Guadalajara, que é uma grande feira das Américas. E Bogotá, ou seja, a Colômbia é um país onde queremos estar presentes. Estivemos em 2012, o Brasil foi o país homenageado, e há um fortíssimo interesse na literatura brasileira, no texto em português, parece que o maior número de estudantes estrangeiros hoje no Brasil é de colombianos. O Instituto Brasileiro em Bogotá tem uma fila de espera, cerca de dois mil alunos aguardando para ter aula de português. Há uma demanda, inclusive de compra direta de livros em português, o que é muito diferente da nossa abordagem. Mas eu acho que a América Latina, de forma geral, é uma região estratégica para o Brasil, enquanto governo, porque há uma troca importante. Existe a proximidade geográfica e do idioma. E cultural mesmo. Na nossa participação em Bogotá foi muito interessante o discurso de uma autoridade que falou sobre como estamos tão próximos e ao mesmo tempo de costas uns para os outros. Os países latino-americanos de língua espanhola são muito voltados para a Espanha e nós, para a Europa de maneira geral.
Com relação à França e à Alemanha, eu acho que tem um interesse histórico e mútuo muito antigo. E a França sempre esteve entre os quatro países que mais solicitaram bolsas do programa de tradução. Esse inventário dos livros brasileiros já traduzidos no exterior é um desafio que todos nós queremos vencer, mas realmente a gente não consegue, são as instituições. Agora estamos conversando com o Itamaraty para ver se conseguimos atualizar esse levantamento, porque é muito difícil cobrir o universo ou o mundo todo, mas tem o Index Translationum, que é da Unesco e está muito defasado, a Academia Brasileira de Letras tem um levantamento dos imortais brasileiros no exterior e nós temos o nosso universo de livros já apoiados para o programa de tradução.
Como se dão as aquisições de direitos autorais entre editoras da América Latina? Há autonomia ou os direitos passam pela Europa e pelos EUA?
Fabio Lima – A negociação de direitos entre a América Latina é pouquíssima. Os apoios à editora Alfaguara foram todos em publicações na Espanha, que é o país que centraliza esses autores. Tanto que as editoras que se beneficiam do apoio são as editoras pequenas e médias. Na Argentina, por exemplo, não são as grandes que pedem apoio.
Nos últimos quatro anos, o Brasil participou como país convidado da Feira de Guadalajara, da Feira do Livro de Frankfurt, da Feira Internacional do Livro de Bolonha e do Salão do Livro de Paris, entre outras. Há como estimar as trocas literárias entre o Brasil e os países em questão geradas por esses eventos? Em que medida eles promovem o aumento da procura por traduções de obras brasileiras?
Moema Salgado – A Biblioteca Nacional cuidava antes da participação do Brasil nas feiras do livro. Mas a organização, que é muito pesada e complicada, saiu da BN para que ela pudesse voltar para as suas missões primeiras de guarda, preservação, conservação e difusão. Esses grandes eventos agora são produzidos pelo MinC e a Diretoria do Livro e Leitura, Literatura e Biblioteca (DLLLB), que está vinculada à Secretaria Executiva do MinC. Nós participamos, de uma forma ou de outra, porque é o entendimento que temos: não adianta ter uma feira, levar o autor, se depois ele não é traduzido, não adianta termos o nosso programa de tradução sem que haja uma difusão. Houve uma época, realmente, em que não podíamos passar numa feira, pois todos queriam convidar o Brasil para ser país homenageado. Quando ainda cuidávamos da participação nesses eventos, havia uma previsão das feiras do livro de Nova York e de Londres. Mas eu acho que realmente chegou a hora de fazer um balanço dessas participações. Desde 2012 tivemos pelo menos uma por ano, sendo que Frankfurt é muito pesada, era uma participação muito complexa. E tive informações de outros países que já tinham recusado a participação em feiras porque na verdade é um investimento muito grande do país homenageado. O ministro da Cultura declarou em Paris que ia fazer um balanço, entender quais são os pontos estratégicos de fato para se investir. E eu acho que talvez seja o momento de apostar mais nessas ações continuadas nas feiras. Por exemplo, fomos homenageados em Bogotá em 2012, mas de lá para cá a nossa participação foi muito tímida na Colômbia. Então não adianta ser um “fogo de artifício” e depois não estar lá todo ano pelo menos com um grupo de editores, com autores. Por isso que a Feira de Guadalajara para a gente é estratégica, porque eles têm esse investimento continuado, querem ampliar a presença do Brasil no México, na literatura, aos poucos.
A participação pontual do Brasil nos eventos literários é uma das maiores críticas feitas por professores e editores no exterior. Nesse sentido, como o programa da FBN lida com o desafio da continuidade de ações no âmbito internacional?
Moema Salgado – O que eu acho interessante, tanto nessas temporadas culturais como nas homenagens, é pelo menos começar a estabelecer cooperações que sejam de médio e longo prazo. Por exemplo, em Frankfurt, por mais que o investimento tenha sido enorme, se a gente conseguisse que dez autores tivessem realmente sido conhecidos pelo público alemão, eu acho que já seria muito importante, ou pelo público especializado, pela mídia, artistas também. Que entrem nesse universo de uma literatura que é conhecida. Eu gostei muito do discurso que o presidente da Biblioteca Nacional, Renato Lessa, proferiu na Suécia, dizendo que esse esforço do Brasil em estar presente na literatura nas feiras internacionais e no programa de tradução vem em parte do desejo de fazer parte de um fundo comum da literatura, cultural e internacional. Da mesma forma que quando pensamos em Virginia Woolf, por exemplo, hoje ela não é apenas uma escritora de uma nacionalidade circunscrita, pensamos que ela faz parte de um fundo comum cultural da humanidade. Adoraríamos que Machado de Assis entrasse nesse fundo comum, ele ainda não é assim tão conhecido no exterior. Acredito muito na penetração nesse fundo, seja por meio da participação em feira, do nosso programa de tradução, da RevistaMachado de Assis ou de intercâmbio.
Mas, voltando à pergunta, acho que o MinC está com um plano de internacionalização de ter pelo menos uma participação nessas quatro grandes feiras: Bolonha, Frankfurt, Guadalajara e não sei se Colômbia ou Paris. E o Itamaraty e as embaixadas do Brasil no exterior também querem manter uma presença. Quando as embaixadas podem assegurar pelo menos um estande pequeno na feira, elas fazem porque é importante ter uma presença contínua.
Como é pensada a distribuição da Revista Machado de Assis? Além da divulgação em feiras, há alguma outra estratégia para que ela chegue a outros países?
Fabio Lima – A gente precisava de um meio para divulgar os autores brasileiros, produzir um excerto já em língua estrangeira, em inglês principalmente. E pensamos na revista, que começou impressa e digital. A impressa para divulgar em feiras e pelas embaixadas. Fizemos um número em 2012, mais dois em 2013, dois em 2014, e o mais recente para o Salão do Livro de Paris, em março deste ano. Só que agora decidimos que a revista vai ser apenas online, por causa do custo-beneficio. No Salão do Livro de Paris já tinha um ponto para divulgar, conseguir juntar as editoras, os projetos, mas fora das feiras é mais difícil. O próximo número da revista será lançado em novembro, na Feira de Guadalajara.
A revista publica trechos de traduções em inglês e espanhol, mas, este ano, por ocasião do Salão do Livro de Paris, a publicação trouxe também traduções em francês. Vocês pretendem continuar com esses idiomas ou passarão a trabalhar com outros?
Fabio Lima – Houve um número em alemão também. Mas acho que os idiomas preponderantes serão sempre o inglês e o espanhol. Isso depende muito do que recebemos e chegam muito mais textos em inglês do que em outros idiomas. As inscrições chegam já com o texto traduzido e o Itaú Cultural, que é quem cuida disso, vê se a tradução está em nível apresentável. Nesse último número, houve uma série de textos em francês que não passou por esse crivo e não entrou.
Vocês consideram que a visibilidade no exterior gerada pelas traduções influencia de alguma maneira o consumo interno de literatura?
Fabio Lima – Sem dúvida. Isso ainda tem muito a ver com a maneira como o Brasil enxerga a projeção cultural, o autor passa por um crivo insano de ter sido aprovado fora para ganhar visibilidade interna. Não sei se o autor passa a vender mais no Brasil porque está sendo traduzido lá fora, mas ele ganha, sim, uma certa visibilidade, um status.
Moema Salgado – Quando aparece na apresentação ou na orelha do livro: “Traduzido em cinco idiomas”, ele passa a ser visto de outra forma.
A procura pelas editoras estrangeiras no programa é mais forte para autores mais visíveis, mais conhecidos?
Moema Salgado – A nossa estatística nos últimos anos aponta que os principais são os clássicos: Machado de Assis, Clarice Lispector e Jorge Amado para as bolsas de tradução. Mas isso reflete também um pouco que editoras precisam de apoio para publicar. É claro que essas grandes editoras não vão do dia para a noite traduzir Machado de Assis ou Aluísio de Azevedo, porque são empresas, têm fins lucrativos e não é nenhum mal, pelo contrário, mas então o nosso apoio, na estatística, são os clássicos. Logo depois tem uma miríade de autores, por exemplo, Daniel Galera, muito pedido hoje em dia, além de Adriana Lisboa, Luiz Ruffato, entre outros.
A visibilidade do autor é um critério na aprovação das traduções? O que acontece no caso de autores que tenham apenas uma obra publicada por uma editora pequena no Brasil, por exemplo?
Fabio Lima – Até hoje tivemos condição de apoiar tanto o autor de grande visibilidade quanto o autor de quase nenhuma visibilidade. Não levávamos muito em conta essa questão da visibilidade interna. Mas pode ser que num determinado momento venha a ser um critério. É uma coisa muito difícil favorecer um autor que já tem visibilidade interna, podemos pensar “vamos apoiar esse porque ele não tem visibilidade aqui, mas ele vai ser uma nova voz, um caminho”. Por outro lado é melhor apoiar um autor que já tem uma visibilidade no país, pois isso vai consolidar a posição dele no mercado que já tem. Isso é sempre negociado a cada apoio que temos que conceder. É importante termos um critério, mas tem que haver flexibilidade. E esses nomes mudam de ano a ano.
Como são constituídas as comissões julgadoras? Quem faz essa avaliação?
Fabio Lima – Em 2012, 2013, havia sempre dois consultores externos na comissão, dois ou três funcionários da Biblioteca Nacional, um funcionário de um outro organismo do MinC e gente da Casa Rui Barbosa, ligados à tradução e à literatura. No último edital, restringimos a participação do consultor externo a um representante, e mais um representante da BN e outro do MinC. É essa a formação, no novo edital talvez a gente mude também essa comissão.
Moema Salgado – Nessa comissão devemos agregar pessoas do MRE, do Minc, um consultor externo e outras duas pessoas da BN. Porque realmente é difícil julgar, num universo de relevância, pois pode ser que tenha um autor desconhecido por 50% da comissão. Mas, nesses casos, para as reuniões fazemos uma ficha por inscrição que resume as principais informações sobre o autor, a editora, o tradutor, e se o autor for realmente desconhecido, anexamos uma resenha ou uma menção a uma resenha, ou orelhas escritas por um autor de quem se tenha uma referência.
Fabio Lima – É uma relevância mas também não é o tipo de um prêmio literário, não é isso que estamos avaliando. O primeiro desafio é conseguir alguém que traduza. E aí a Revista Machado de Assis entra com o instrumento, porque se traduzir dez ou cinco páginas do seu livro já dá uma ideia do que é o texto.
Vocês consideram os prêmios literários um incentivo à leitura e divulgação da obra dos autores contemporâneos? Falem um pouco sobre a importância desses prêmios.
Moema Salgado – A Biblioteca Nacional tem dois grandes prêmios: o Camões, que é binacional, com o governo de Portugal, e o Prêmio Literário da Biblioteca Nacional, que conta com nove categorias. Eles são anuais e também representam uma operação grande, complexa, porque são muitos livros, muitas inscrições, pequenos, médios, grandes, todos os autores se inscrevem. A comissão é formada por categoria, é sempre composta por três avaliadores que avaliam e pontuam. É sempre difícil julgar um volume grande de livros, que nem sempre são comparáveis. Por exemplo, é difícil comparar um projeto gráfico da Cosac Naify com um projeto gráfico de uma editora que não tem nem meios de imprimir com a mesma qualidade.
Fabio Lima – O prêmio tem as categorias Tradução, Romance, Conto, Ensaio Literário, Literatura Infantil, Literatura Juvenil e Projeto Gráfico. O Jabuti também tem a categoria Tradução. Mas eu acho que o prêmio Paulo Rónai, que é de tradução, tem um papel muito importante. Há poucos prêmios, e acho que no Brasil só temos esses dois para tradução: Jabuti e o da Biblioteca Nacional.
Algo que faz muita falta são encontros com os autores finalistas do prêmio. Embora o da Biblioteca Nacional seja realizado em apenas uma etapa, um trabalho de divulgação desses autores poderia proporcionar mais visibilidade a eles. Ir às escolas, fazer conversas na própria BN e nas universidades é um trabalho verdadeiramente forte e necessário de difusão da literatura. Além disso, o prêmio é importante para o autor que, com o valor recebido, pode produzir o seu próximo livro.
Moema Salgado – Sem dúvida. Realmente não fazemos isso, mas não é um custo importante, já que temos o espaço, o auditório. É uma excelente ideia, vamos convidá-las para o prêmio, para a mesa. Que ótimo. Agradecemos. Realmente é um ano difícil. Há bastante tempo que trabalhamos em cooperação, em parcerias várias, mas este ano, em especial, precisamos trabalhar em parceria. Tinhamos um acordo de cooperação com a Faculdade de Letras da Universidade Federal Fluminense (UFF) sobre o tema da tradução. Todo ano fazemos um colóquio, uma oficina, e uma mesa de debate no âmbito da Flip, em Paraty. E nosso interlocutor na UFF, Johannes Kretschmer, é um grande parceiro, um militante, daqueles que trabalham pela causa. O nosso contato com as universidades é importante, e não fazemos mais por falta de tempo e organização interna. Já realizamos algumas vezes aqui na BN debates com autores e seus tradutores. E os pesquisadores são sempre bem-vindos tanto para participação, realmente debatendo, tanto para divulgação com os alunos, isso para nós é muito valioso. A Biblioteca Nacional está aberta a parceiros, ideias e debates, dentro desse nosso universo.
* Agnes Rissardo é pós-doutora em Literatura Comparada pela Université Sorbonne Nouvelle – Paris 3 e pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
** Ieda Magri é professora adjunta do Programa de Graduação em Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e autora de Olhos de bicho (Rocco, 2013).
Desafio. Essa palavra e o sentimento que ela agrega foram recorrentes durante a feitura desta edição da revista. Tratava-se de mapear o estado da arte dos estudos sobre o digital a partir do viés da Antropologia. Não sendo esse meu campo de estudos par excellence, estava instigada a delimitar o mapa enquanto conhecia mais desse território recentemente “descoberto”, porém já bastante povoado por indagações, vertentes e abordagens. Sem dúvida, nesse sentido, “desafio” era ao mesmo tempo um aviso – eu teria que sair de terrenos mais confortáveis e conhecidos – e um estímulo.
Esta edição é o resultado disso e é a partir daí que pode ser pensada e lida: um aviso de que temos mais a conhecer a respeito e um estímulo à produção e ao pensamento sobre os impactos e relações do digital sobre e com as Ciências Sociais e a Antropologia, de forma mais restrita, e sobre – e com – os mais diversos segmentos sociais.
Sem pretender esgotar o assunto, então, mas com a ambição de traçar um pequeno panorama que aponte para buscas mais aprofundadas, a edição apresenta o esforço de percorrer alguns dos caminhos já trilhados nesse campo. Assim, dois olhares principais e complementares serão reconhecíveis ao longo dos trabalhos aqui expostos.
O primeiro privilegia a análise dos sentidos atribuídos pelos grupos sociais às suas práticas digitais, e as conexões destas com suas vidas cotidianas. Nessa direção, por exemplo, podemos considerar o conceito de polymedia, proposto e explicado pelo antropólogo inglês Daniel Miller (coordenador do Instituto de Pesquisas Digitais da Universidade de Londres) em sua entrevista, como uma forma de dar conta dos diversos usos e tipos de meios de comunicação e de seu entrecruzamento nas práticas sociais. Suas próprias pesquisas sobre a relação entre os contextos culturais e os modos de pensar e agir sobre o digital são mostras do rendimento do conceito. Também os artigos sobre o Museu da Favela, de Monica Machado (ECO-UFRJ), e sobre o consumo de smartphones por jovens da periferia de Santa Maria (RS), de Sandra Rúbia da Silva e Camila Rodrigues Pereira (UFSM), indagam sobre tais sentidos e conexões.
Uma segunda trilha de aproximação ao universo virtual enfatiza as possibilidades teórico-metodológicas abertas pelos novos meios e seus usos. Para dar conta desta perspectiva, uma boa ferramenta conceitual é a teoria do ator-rede, sugerida, entre outros, por Bruno Latour. Nessa teoria, os pressupostos da própria pesquisa científica – e, no caso presente, antropológica – se encontram em foco e os estudos se concentram em rastrear as maneiras pelas quais os desempenhos dos atores repercutem e são delineados a partir da interação em rede. Essa é a proposta desenvolvida, por exemplo, no artigo de Jean Segata (UFRN) sobre as novas configurações que pode assumir a etnografia a partir de suas pesquisas efetuadas online.
A partir de indagações teórico-metodológicas também se pode entender melhor as contribuições do artigo de Myriam Sepúlveda dos Santos (PPCIS-UERJ) sobre os limites e fascinações da criação de um museu virtual (o Museu Afrodigital) e as questões que suscita para a elaboração da memória coletiva de um grupo social. Ainda com o mesmo impulso se pode entender melhor o artigo sobre as relações entre o uso do virtual e o espaço público como vértice de uma nova discussão sobre a esfera pública e a atuação política, de Patrícia Silveira de Farias (ESS-UFRJ) e Margarida Mussa Tavares Gomes (IFF-Campos/PROURB- UFRJ). Também as possibilidades de novos caminhos de expressão e divulgação das pesquisas, como as revistas científicas virtuais, são exploradas nesta edição por meio da entrevista com o editor da Virtual Brazilian Anthropology (Vibrant), o antropólogo Peter Fry (UFRJ).
Enfim, compartilhamos da afirmação de Miller de que a Antropologia é um ótimo caminho para se entender o que representa o novo contexto do expressivo uso do virtual, no que ele tem de desafio, de aviso e de estímulo para a vida nas sociedades complexas. Assim, resta-me fazer um convite para um mergulho nesse campo do conhecimento que, espero, seja prazeroso, tanto quanto produtivo.
Patrícia Silveira de Farias Organizadora desta edição
Há um conhecido dispositivo que equipa aviões e locomotivas no auxílio à determinação de causas de acidentes, é a chamada caixa preta. Na verdade, trata-se de dois sistemas independentes: um gravador de voz que registra as conversas da tripulação e o som ambiente das cabinas e um outro, de dados, que registra a aceleração, a velocidade, a altitude, os ajustes de potência e outras tantas performances desses aparelhos. Em si, tanto a voz como os dados de performance não fornecem garantias causais, mas como ambos os dispositivos operam com uma inscrição eletrônica de tempo, é possível sincronizar os dois conjuntos de informação, de modo que eles passem então a produzir alguma explicação a posteriori.
Há também outra caixa preta, que como se sabe, é uma metáfora para o que se conhece nas ciências sociais como teoria dos sistemas. Trata-se de uma estratégia teórico-metodológica utilizada na análise de ditos sistemas fechados, complexos, com estruturas internas desconhecidas. Nesse modelo, o que se tem à mão são os dados de entrada e de saída – os ditos input e output. Impossibilitados de uma descrição do processo de transformações nos dados de entrada, resta, nesse caso, por comparação àqueles de saída, a proposição de algumas hipóteses, que na maior parte das vezes, toma o próprio sistema como a explicação da mudança.
Certo é que ambas as caixas pretas têm o objetivo de explicar um fenômeno ou evento a partir da determinação de causas. O que as diferencia, além da literalidade de uma e da metáfora da outra, é o tipo de privilégio de acesso às informações que nelas passam. A caixa preta de aviões e locomotivas pode ser aberta e dispõe ao investigador os registros dos seus dispositivos. Já aquela da teoria dos sistemas não; o processo interno é misterioso – podemos observar o que entra, e como sai, mas a sua aparente vantagem está na entrega de dados prontos, cabendo ao pesquisador apenas o atestado do fato, enquanto a outra exige um longo trabalho de produção a partir da descrição minuciosa das inscrições humanas gravadas num dispositivo e daquela do equipamento, gravadas em outro, cujo dado se forja, apenas a partir do encontro de ambas.
Ao longo deste trabalho, farei uso dessas caixas pretas na forma de um recurso ilustrativo sobre modos de se fazer etnografias, em especial, no ciberespaço. Quero, com isso, mostrar que existe um modelo de operação etnográfica, cujo lastro é vasto na disciplina, que funciona à maneira de uma caixa preta da teoria dos sistemas, e que se estendeu aos estudos sobre ciberespaço. Ao passo disso, quero situar um posicionamento particular em relação a essa atividade, com forte inspiração na Teoria Ator-Rede, que se compara às caixas pretas de aviões e locomotivas, e que aqui se inscreve na forma de uma crítica.
Faz quase um ano, recebi um e-mail de um velho conhecido. Nunca fomos propriamente amigos, mas estudamos na mesma turma em algum dos anos do ensino fundamental, participamos em corais de igreja e, anos depois, nos encontramos no Orkut. Lá, eu, ele e mais algumas dezenas de pessoas, constituímos duas comunidades: Lontras e Estudei no Regente Feijó. Para quem conheceu o Orkut, a participação em comunidades não é algo estranho. Tratava-se de um tipo de espaço que se criava com o intuito de congregar pessoas em torno dos mais diversos temas: música, cidades, comidas, roupas e qualquer esquisitice que fosse. Aquelas duas, em particular, respondiam diretamente por Lontras, um pequeno município de menos de dez mil habitantes, localizado no Alto Vale do Itajaí, a meio caminho do litoral e da serra, no Estado de Santa Catarina.
Como muito do que se viveu nessa época de Orkut, essas comunidades começaram pequenas e pouco movimentadas, foram atraindo participantes, tiveram seus “dias de glória”, foram se apagando, até caírem no esquecimento, como aquela própria rede social que as suportava. Mais precisamente, no caso de Lontras e Estudei no Regente Feijó, isso se deu entre o início de 2005 e se estendeu até o fim de 2007. E foi nesse intervalo que eu fiz o meu trabalho de campo a partir delas, que resultou na minha etnografia de mestrado. No meu ponto de vista, o Orkut oferecia importantes novidades em termos de comunicação e relação a partir do ciberespaço e era isso que eu desejava explorar. Enquanto a voz corrente das discussões sobre internet/ciberespaço/cibercultura era carregada de expressões como “comunicação global”, “desterritorialização”, “novos lugares”, “novos amigos”, “novas experiências”, o Orkut me remetia a uma experiência de localidade, de território, de velhos lugares, velhos amigos, antigas experiências e, contra o “novo” da moda, esse foi um dos elementos centrais que procurei sustentar com o meu trabalho naquela época (Segata, 2008).
Página inicial da rede social Orkut (2008)
Lontras foi o lugar onde cresci e passei a maior parte de minha vida. A composição do lugar é típica dos interiores brasileiros: uma praça central, a “matriz” da Igreja Católica, “o colégio”, “o mercado”, alguns bares e um pequeno comércio que não faz muita história. A pequena população, aglutinada, em sua maioria na região central da cidade, permitia, facilmente, uma familiaridade entre todos. Assim, a minha decisão em fazer uma etnografia a partir daquelas comunidades era fortemente inspirada na maneira como Gilberto Velho conduziu e problematizou os seus primeiros trabalhos em Copacabana (Velho, 1980). Ali, eu, o remetente daquele e-mail daquele outro dia e mais uma dúzia e meia de pessoas, nos envolvemos numa série de conflitos, motivados em torno da figura de um dito fake – Penisvaldo – que era motriz de um conjunto de relações que iam do riso ao ódio, das lembranças de nossas infâncias na cidade ao levantamento de hipóteses sobre a sua verdadeira identidade – o que, no melhor dos casos, levou a uma imensa crise nas comunidades, com as mútuas acusações e xingamentos, que culminaram na revelação do fake e consequente dispersão do grupo.
Em linhas gerais, foi esse conjunto de relações que formou a minha etnografia. Ali, com alguma inspiração na figura do estrangeiro e no papel sociativo do conflito em Georg Simmel (1968, 1983, 2004a, 2004b), discuti formas de sociabilidade a partir da produção de espaços online e offline, como também a produção de memória e identidade. Visto de hoje, o trabalhou incidiu com a ideia de cidade amplamente refletida por Michel Agier (2011), como algo produzido pelo antropólogo a partir de práticas, relações e representações situacionais negociadas nas práticas dos sujeitos. E isso incluiu, e muito, o que se produziu online.
Mas não foram essas boas lembranças que motivaram o e-mail do velho conhecido. Ao contrário. Alguma coisa já não fazia mais sentido nisso tudo. Para ser mais direto, ele me exigia, sem muitos rodeios, que tirasse do site da Biblioteca da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) a minha dissertação e que não viesse a reimprimir alguma nova edição do livro que ela deu origem. Além disso, eu deveria encontrar alguma maneira de fazer desaparecer dos mecanismos de busca do Google, resultados de pesquisa que relacionassem o seu nome aos conflitos nas comunidades do Orkut. Deu-me prazo e encerrou com a mensagem, copiada ao seu advogado, que se levasse a processo, caso houvesse alguma objeção minha.
Página da comunidade Lontras, do Orkut (2007)
O incômodo que levou àquela situação tão final se dava pelo fato de que, segundo ele, era possível identificá-lo no meu texto, por conta de descrições e usos de print screen como forma de registro, tratado, assim, como recurso metodológico. De fato, “bichinha”, “padreco”, “encrenqueiro”, “mimadinho da mamãe” eram algumas das formas insultantes dirigidas a ele por algumas pessoas da comunidade. E isso se visualizava facilmente nos resultados de pesquisa do Google. Mas, havia os poréns. Não era eu quem fazia os insultos e o meu texto não fazia menção a isso, e, no mais das vezes, eu era o alvo preferido dos xingamentos naquele espaço. Isso porque, no desenrolar dos conflitos e à falta de se saber quem era Penisvaldo, passei a ser acusado de sê-lo, já que segundo muitos, eu me beneficiaria, em termos de material a ser pesquisado, com a provocação de tantas situações conflituosas. Além de tudo, o próprio reclamante, naqueles idos de 2005, havia permitido sua inclusão na pesquisa, inclusive, solicitando-me que não fizesse a substituição do seu nome. Mas, agora, o cenário era outro. Ele veio a se tornar um bem-sucedido empresário, cujos funcionários passaram a fazer circular alguns desses registros. E se no mundo da internet o tempo parece mais acelerado, o passado também chega mais rápido, no duplo sentido que isso possa ter.
Afetado com aquela situação, solicitei à biblioteca que se fizesse a retirada temporária do trabalho até que eu pudesse fazer alguma revisão, como também entrei no Orkut por meio de meu usuário do Google, para extinguir de vez aquelas contas. Dei um retorno a ele sobre minhas ações e sugeri que, no caso do Orkut, para que os instrumentos de pesquisa não o detectassem mais, que ele fizesse o mesmo. A solução foi dada, mas certo é que não se trata de uma questão resolvida, já que as discussões que envolvem a ética na pesquisa antropológica não se encerram com esse desfecho provisório, tampouco no fôlego pequeno que desejo dar a esse tema aqui, neste trabalho. O ponto sobre o qual dirijo minha atenção diz mais respeito a outra situação que esse episódio fez aparecer: as sobras de nossas etnografias.
O episódio do e-mail me fez voltar ao Orkut oito anos depois de minha etnografia. Vez ou outra, logo depois de terminar meu trabalho, eu ainda entrava lá, falava sobre o trabalho, sabia das “novidades de Lontras” e coisas desse gênero, com os poucos que ainda frequentavam aqueles, até que cessei por completo minhas participações, quando praticamente todos já estavam no Twitter e no Facebook. O curioso dessa experiência foi encontrar lá, registrado publicamente, um conjunto de textos e fotografias postadas num espaço praticado por um conjunto de pessoas por algum tempo. Não eram os dados do meu trabalho de campo, não eram as relações das quais participei. Eram registros, rastros, sinais, evidências – quase fósseis – de que algo aconteceu. Diferentemente de plataformas que sustentam redes sociais como o Facebook, que eliminam os registros de quem cancela (temporariamente ou definitivamente) a sua conta, o Orkut preserva o que foi publicado, apenas descaracterizando o registrador, tornando aquilo produção de um “anônimo”. E lá estavam as conversas, agora, todas anônimas.
Página da comunidade Estudei no Colégio Regente Feijó, do Orkut (2005)
Isso me fez pensar no modelo de etnografia que tradicionalmente praticamos, pelo menos, desde Malinowski. O aparato e o método são bastante conhecidos e repetidos por antropólogos até hoje. Ele consiste, basicamente, no desenvolvimento da habilidade de tornar “a ordem cultural das coisas” irrefutável, a partir da distinção clara entre “os resultados da observação direta e das declarações e interpretações nativas e, de outro, as inferências do autor, baseadas em seu próprio bom senso e intuição psicológica” (Malinowski, 1978, p. 20). Para isso, é preciso contar com boas condições de trabalho, especialmente, o longo tempo de convivência entre os nativos, sem a necessidade de depender de “outros brancos”, como ele já ensina n’Os Argonautas. Esse livro, aliás, não traz apenas um estudo etnográfico, mas viria a se tornar a própria referência sobre como fazer algum. E desde ele, já fica bastante assinalada a agência do antropólogo na produção dos fatos e resultados, já que ele é o observador privilegiado, e sua perspicácia, a medida de correção.
É claro que eu não me renderia à infelicidade de reduzir a Etnografia a duas ou três fórmulas celebradas por Malinowski. Mas há, ali, uma essência naturalizada dessa prática, que vai ganhar, além de críticas, alguns incrementos com a popularização da obra de Clifford Geertz, desde os anos de 1970, em especial, o seu acento na descrição densa e no valor metodológico do relativismo: desde eles, todos os antropólogos sabemos o que é uma etnografia, até termos de explicá-la (Geertz, 2013). E não é incomum completarmos essa tarefa infortuna com algum desfecho do tipo “mas não é só isso”, como que havendo algum mistério para iniciados. Mais que isso, a nós é dada a épochè de uma visão suspensa, que consegue ver em perspectivas ou mesmo, nas profundidades e entrelinhas, onde se escondem os sentidos, que fazem com que nativos não saibam muito de si, senão, por meio de nós. Aqui, vem a primeira caixa preta: o antropólogo, como um sistema[1].
O ponto que gostaria de destacar aqui é o forte acento na ideia de experiência vivida e problematizada pelo antropólogo, como sendo ela a maneira privilegiada de se fazer etnografias. Ainda como um vasto campo de extração de consequências, essa ideia poderia ser bem resumida nos dizeres de Goldman, para quem,
os antropólogos são um tipo de cientista social para quem a socialidade não é apenas o objeto ou o objetivo da investigação, mas o principal, se não o único, meio de pesquisa. O cerne da questão é a disposição para viver uma experiência pessoal junto a um grupo humano com o fim de transformar essa experiência pessoal em tema de pesquisa que assume a forma de um texto etnográfico. Nesse sentido, a característica fundamental da antropologia seria o estudo das experiências humanas a partir de uma experiência pessoal (2006, p. 167).
Esse tipo de postura começa a ter seus problemas exorcizados em um trabalho bastante difundido de Bruno Latour: Jamais fomos modernos. O livro está organizado a partir da descrição das disputas entre Hobbes e Boyle. Hobbes com a sua predileção por tornar a política matematicamente demonstrável, enquanto Boyle queria reproduzir, sob condições controláveis, a natureza em laboratório. No que Latour (2009) chama de “guerra das ciências”, vence Boyle, logo ele que abdica da razão matemática em favor da doxa. Essa doxa em questão, é claro, não é uma crença comum de massas crédulas, mas um novo modelo de estudo da natureza, sob às condições controláveis de um laboratório, às vistas de testemunhas confiáveis, bem aventuradas e sinceras, que se reúnem em torno da cena da ação e atestam a existência de um fato. Essa invenção, de estilo empirista, sustenta a realidade muito mais pela adesão dos pares que testemunham o evento transformado em fato, do que pelo esforço em conhecer a sua verdadeira natureza.
A questão é que, na antropologia, a situação parece um pouco mais complicada, pois no exercício da etnografia, o etnográfo (digamos assim, “o cientista”) acumula também a função de “testemunha confiável”: ele é, em razão das condições de pesquisa, o experimentador e o observador da experiência. Os seus campos ou objetos de estudo, na maioria das vezes, são uma escala controlada de um conjunto muito mais amplo de pensamentos e práticas; os seus dados, ou seja, aquilo que as pessoas dizem ou fazem nas suas associações com outras entidades, são transformados em fatos pelo antropólogo quando ele as seleciona em detrimento de suas razões de pesquisa, e são, assim, atestadas como existentes para os seus pares, por meio do seu testemunho confiável, registrado no seu texto – inscritor de uma realidade. O resto, varre-se para debaixo do tapete.
Não quero, com isso, invocar algum fantasma cartesiano, legislador de uma tradição científica impiedosa quanto à impossibilidade de análise do que é do universo do privado, como é o caso da experiência. Mas certo é que fontes de erro a essa postura já foram amplamente deflagradas, como é o caso da notória precariedade da ideia de objetividade, tanto do observador como do seu relato e a tensão que se põe em seu oposto, àquela de uma acusação subjetivista, alegórica e autoritária da representação (Clifford, 1986, 2002) ou o problema da projeção de conceitos antropológicos às realidades estudadas (Strathern, 2006; Viveiros de Castro, 2009). Aqui, quero dizer que o antropólogo se torna uma caixa preta. É ele o ponto de intersecção entre input e output. Ele seleciona, teoriza e inscreve uma realidade a partir de uma perspectiva privilegiada: a de sua experiência vivida – ela não é uma totalidade, não é a realidade, mas uma produzida sob condições especiais de seleção (Clifford, 1986). De modo mais amplo, é nele que se opera uma tradução metafísica, já que não é difícil se encontrar alguma etnografia que trate de violência, gênero ou sociedade e seus problemas, em outros contextos, que talvez não tenham violência, gênero ou sociedade, mas cujos arranjos são relativizados para se conformarem a uma espécie de “forma diferente de”.
Nisso, o meu pressuposto aqui é o de que a Etnografia no ciberespaço naturalizou os artefatos e as formas de acesso criando, assim, uma espécie de terreno paradoxal que, ao mesmo tempo, é neutro e autoexplicativo. Neutro, porque, no mais das vezes o artefato parece cumprir o papel de “novo cenário” para um conjunto de fenômenos já bastante familiares para a maior parte dos antropólogos. Nisso, ele também se torna autoexplicativo porque serve de adjetivo desse fenômeno nesse novo cenário. Não é estranho então que se anunciem etnografias sobre novas formas de sociabilidade no ciberespaço, sobre a produção artística digital ou sobre o ativismo político ou movimentos sociais nas redes, sem se dar conta de que se trata aqui de uma conjunção entre a velha metafísica da disciplina, que orienta o entendimento desses fenômenos em outros contextos e uma nova embalagem, forjada com a adjetivação do ciberespaço, do digital ou da rede.
Cabe situar, é claro, que a rede que veio com o advento da cibernética, no contexto da cibercultura, virou uma espécie de sinônimo da world wide web. Acontece que, essas redes da cibernética, se referem àquilo que transporta informações de conexão em conexão, por longas distâncias, em especial, mantendo essas informações intactas. Importa, nesse caminho, a relação entre a entrada e a saída de dados: ela é, nesse caso, um sistema fechado, complexo, com estruturas interiores desconhecidas, que no mais das vezes nem vale a pena conhecer, já que ele, na qualidade de sistema fechado, é por si só o elemento explicativo de qualquer modificação entre o que entrou e o que saiu, independentemente do que acontece lá dentro. Esse também parece ser o problema com a ideia de história e, principalmente, de contexto, para não citar também, de sociedade, cultura, sistema, conjuntura etc. Essas palavras funcionam também como uma espécie de sistema fechado: não sabemos o que acontece lá dentro, mas comparamos algo a partir de um ou outro momento da história ou entre um e outro contexto, suas modificações são autoexplicativas por esses aparentes sistemas, sem nos atentarmos, mais detalhadamente, para o que acontece dentro deles.
Faz tempo que falamos em Cibercultura e que dizemos fazer etnografia no ciberespaço. Aqui, os problemas têm derivações, pois no ciberespaço, aparentemente, conseguimos identificar redes. Sim, por que não?: veja-se as chamadas redes sociais, com seus programas e gentes e interações de múltiplas formas. Parecem todos objetos plenamente passíveis de descrição e, assim, certos comportamentos são X porque acontecem no Facebook, diferentemente de certas relações que são Y porque acontecem no Twitter, e assim por diante. Isso tudo, sem contar que o próprio ciberespaço é uma ideia desgraçada, que vira e mexe nos faz pensar num lugar especial da realidade, com propriedades especiais de explicação sobre o que entra e o que sai dele. E aí aparecem as novas formas de comunicação, novas comunidades, novas identidades, até uma cultura nova: a Cibercultura. Assim, o ciberespaço se torna uma caixa preta: basta comparar sociabilidade, arte ou ativismo, antes e depois dele, ou seja, como eles entram nele por um lado, na formas produzidas pela antropologia tradicional, e como saem por outro, a partir das ditas etnografias no ciberespaço. Se houver diferenças, a explicação está na caixa: caixa ciberespaço, caixa antropólogo.
Mas convenhamos, tudo isso funciona muito bem na disciplina, desde que não deixemos rastros. Mas eu os havia deixado. Eles estavam lá, escritos naquelas comunidades onde fiz meu trabalho de campo, e isso é grave, já que entre nós, como já bem criticou Clifford (1986), a escrita é nossa textualização por excelência: quando é pior, é evidência ou prova. Assim, é no descentramento disso que vem a minha insistência na abertura dessa caixa preta da etnografia, como um sistema fechado que produz, misteriosamente, algum resultado. Vamos então, àquela outra, a caixa preta que funciona como aquelas de aviões ou locomotivas.
Para antropólogos como eu, que se interessam por ciência e tecnologia, a publicação de A vida de laboratório, de Bruno Latour e Steve Woolgar (1988, publicação original de 1979), é um mito de origem. A partir dele, a Antropologia passou a se inscrever nos Science Studies, já que os autores quiseram compreender como a ciência é construída, por meio do estudo de um laboratório de Endocrinologia, aos mesmos moldes de uma Antropologia feita em seus tradicionais campos de estudo. O trabalho foi originalmente publicado no final dos anos de 1970 e, para a época, o seu diferencial em comparação com a filosofia da ciência, que se popularizava com Thomas Kuhn, Karl Popper ou Paul Feyeraband, era a suspensão de questões como realidade ou verdade dos resultados. De modo etnográfico, interessava a descrição de rotinas, como a manipulação de animais, equipamentos, gráficos, as políticas de publicação, as tabelas ou mais precisamente, a maneira como informações dispersas forjavam dados arranjados numa folha de papel que passavam àqualidade de fatos, utilizados por algum pesquisador, como demonstração científica. A tese central de A vida de laboratório é a de que “o fato científico, estável e estabelecido como ‘natural’ é o resultado de um processo de construção” que apenas se completaria na medida em que é capaz de apagar todo e qualquer traço de si próprio (Kropf; Ferreira, 1998, p. 592). Ou seja, produzir um fato requer estratégias eficazes para a eliminação dos vestígios de como ele foi produzido. Assim, os cientistas não seriam os descobridores de fatos ou verdades, mas inscritores deles[2].
Quando eu escrevi Lontras e a construção de laços no Orkut eu inscrevi uma realidade. Há um enredo que conduz o leitor a pensar no modo como foram timidamente se constituindo aquelas comunidades no Orkut, e como elas vão ganhando densidade, especialmente a partir dos conflitos em torno de Penisvaldo, e como elas vão se desfazendo com a revelação de seu segredo. Para isso, eu precisei suspender o tempo, não pensá-lo cronologicamente, mas em densidades. E são essas densidades, algum tipo de explosão, que só ganham forma como que acelerando os frames, ou seja, organizando situações que, em si não formam um conjunto, um todo, um momento. São dispersões editadas e causalidades construídas.
A receita para isso é conhecida: comecei lendo Simmel, para aprender a ver o tipo forma e sociação que eu queria encontrar. Em seguida, as etapas do que eu imaginava ser um estudo sociotécnico. Separei o técnico do sócio e passei a analisar os registros do dispositivo: o que é a plataforma, como ele nomeia certos elementos, como se faz para acessar e registrar ações nela. Depois, fui para o sócio, que eu entendia serem as relações entre os humanos: então passei à análise das falas, em forma escrita nas comunidades, como também as outras, que eu coletava por meio de um gravador de voz, em conversas que eu tinha em Lontras, com alguns dos mesmos participantes das comunidades do Orkut. Enfim, eu pensava o “programa Orkut”, com os seus bits, bytes ou pixels, como uma rede – um lugar especial onde humanos poderiam se associar – uma espécie de cenário ou contexto tecnológico. E novas associações se faziam conforme novas possibilidades técnicas iam aparecendo naquele programa. E como o Orkut, outros programas faziam isso, como o e-mail, as listas de discussão, as salas de bate-papo ou os blogs; e outras ainda, como o Twitter, por exemplo, com seus 140 caracteres. Enfim, eu pensava em um humano protagonista que criava novas técnicas e que permitia se recriar nelas, num jogo assimétrico de regras “humano-agente e técnico-agido”. O sociotécnico seria então um rótulo dessa síntese que entendia o sócio como conjunto humano e o técnico como o conjunto das demais coisas, não humanas. Em outros termos, eu tinha dois dispositivos: um de registro da máquina, outro de registro dos humanos, como nas caixas pretas de aviões. O problema era que eu pensava que por si só, em justaposição, eles produziriam algum resultado. Eu desconsiderava a associação e ficava com as partes.
Nesse aspecto, tornou-se fundamental avaliar o estatuto da ação. Latour (2012), já bem nos provocou com a ideia de que um ator não é uma peça que já está no tabuleiro e que depois age – e mais que isso, que não se refere exclusivamente aos humanos. Um ator é um ente provisório que se constitui na ação. Ele não existe como repertório, pronto e definido. Por conseguinte, a ação também é eventual; não se trata de um ato que localiza e distribui sujeitos e objetos em algum tabuleiro. Daí o propósito de sua tão discutível expressão ator-rede: com ela, o que se pretende, apesar das leituras equivocadas, é justamente apagar os vestígios de origem da ação. Talvez faça uns quinze anos ou mais, eu ouvia e lia alguns colegas desse campo de estudos, da cibercultura, cogitando qualquer coisa como substituir diários de campo e outras formas de registro tipicamente utilizadas por antropólogos em campo, por logs de arquivos ou print screens de telas. Ali, estaria tudo. Um retrato completo e fiel de alguma realidade em estudo. O que é um grande equívoco, pois se trataria de se tomar, em separado, os diferentes registros do dispositivo. Quando eu voltei ao Orkut recentemente, e encontrei as evidências que mencionei, isso se tornou mais claro. Eu não reconheci aquela Lontrascom os seus laços. Tinha algumas gravações dispersas, que não formavam um ator-rede. Estava lá todo o percurso, que deveria ter sido apagado, depois do resultado produzido.
A consideração dessa agência distribuída é que me fez aproximar o tipo de etnografia que eu gostaria de praticar a partir do ciberespaço, com o modo de funcionamento das caixas pretas de aviões e locomotivas. As vozes gravadas, certamente, são de humanos. Os dados de performances desses veículos são, certamente, de não humanos. Mas isso não implica, de modo algum, uma relação de sujeito-objeto ou causa e efeito, e o que mais me agrada é que, por si só, eles são elementos que pouco ou nada ajudam a compreender um evento, como um acidente, por exemplo. É apenas com a associação de dados e vozes por meio da inscrição eletrônica de tempo que emerge algo. As pontas – o humano e o não humano – se perdem. Fica o efeito, a associação, a rede. Isso, é assim que eu estou pensando a rede. Há elementos humanos e não humanos que por si só não me dizem nada; eles não estão em posição de sujeito e objeto e o que se produz com eles, em geral, não é uma relação de causa e efeito. Agora, associados, eles constituem um ator-rede. Ela não é um dado, mas o resultado sempre provisório de associações. A provocação que vem com isso reside no desafio de fazer recuperar aqui a nossa capacidade de dar um passo a mais nas descrições, atentando-nos, até o esgotamento, aos muitos atores constituintes desses eventos. Nisso, na perspectiva que passei a adotar, a rede já não estava mais lá – não era um objeto, como na cibernética – não era o que estava em descrição, mas o método para descrever algo. A rede, desde essa perspectiva latouriana é um modo pelo qual podemos ordenar certas experiências (e experimentos), em nossos textos. Ela é um resultado e não um dado: a descrição de uma rede é uma maneira de dispor os rastros deixados por atores no curso de suas ações (Venturini, 2008; 2010; Segata, 2009; 2013; Rifiotis, 2012; Máximo et al, 2012).
A Etnografia, da perspectiva defendida aqui, não toma como diferença essencial o ciberespaço de qualquer outro contexto em que se realize. No mais das vezes, ela se volta contra a produção dessas externalidades ou casos especiais, e ainda assume algumas características peculiares: ela não retrata uma realidade, mas produz uma espécie de imagem de uma associação – não a imagem de indivíduos ou partes que se associem, menos ainda, na busca de causas ou sentidos ocultos dessa associação ou a partir da perspectiva deles ou de seus pontos de origem ou dos contextos que os agregam. Falo da captura de efeitos, do evento, do contingente, o que não tira o antropólogo da cena, já que ele é parte do efeito produzido, especialmente porque todo esse processo se dá sob a forma de tradução. As supostas essências, as purezas, os cálculos, os registros, são transformados na ação. A própria metafísica que dá algum entendimento a tudo isso não permanece intacta, e isso faz a coisa se tornar realmente complicada[3].
Ao antropólogo, nessa via, resta a tarefa de manipular ideias, conceitos familiares, registros, que sejam reconhecidos entre seus pares, de modo a poder exprimir os alheios. A Etnografia é, assim, uma legítima produção laboratorial: ela vem com camadas de estratégias, que fazem aparecer esses efeitos. Conforme bem provoca Strathern:
Nós pensamos nos antropólogos como os típicos criadores de dispositivos por meio dos quais é possível compreender o que outras pessoas acham e em que acreditam. E, claro, como simultaneamente empenhados em construir dispositivos através dos quais se pode afetar aquilo que seu público acha e acredita. Preparar uma descrição requer estratégias literárias específicas, a construção de uma ficção persuasiva: uma monografia precisa estar arranjada de tal maneira que possa expressar novas composições de ideias. Essa se torna uma questão sobre sua própria composição interna, a organização da análise, a sequência pela qual o leitor é introduzido a conceitos, o modo como as categorias são justapostas ou os dualismos são invertidos. Confrontar o problema é confrontar o arranjo do texto. Dessa forma, quando o escritor escolhe (digamos) estilo “científico” ou “literário”, ele assinala o tipo de ficção que faz; não se pode fazer a escolha de evitar completamente a ficção (2013, p. 43-44).
Seja nas Ciências Naturais, seja na Antropologia, a experimentação é um ato de criação: ela produz fenômenos, os estabiliza e com eles refina suas próprias teorias. Seguindo Hacking (2012), o êxito das Ciências Naturais está em controlar fenômenos que na natureza se encontram instáveis, por meio das técnicas e instrumentos disponíveis no laboratório. No mesmo caminho, talvez o êxito da Antropologia seja o de colocar alguma ordem na bagunçada “vida social”, por meio do texto etnográfico. No entanto, cientistas da natureza e antropólogos não são variáveis descartáveis das suas próprias elaborações. A Etnografia, assim, é um evento, um efeito de relações. Trata-se, assim, muito menos de uma experiência do que de uma experimentação, um ato de criação. Nesse caso, a virtude de um pesquisador não repousa na sua capacidade de se colocar distante da sua produção, de se apagar do processo de criação. Ele deve avaliar a sua capacidade de exorcizar a sua presença, e torná-la consciente e explícita no resultado do seu trabalho[4]. A questão é saber até onde estamos dispostos a abrir essa caixa preta e mostrar toda a maquinaria de nossas produções.
* Jean Segata é professor do Departamento de Antropologia e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Tem mestrado e doutorado em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), onde também realizou pós-doutorado. Atualmente é pesquisador da Équipe de Recherche “Hommes/Animaux: questions contemporaines” do LAS/EHESS, do Grupo de Pesquisas “Espelho Animal: antropologia das relações entre humanos e animais” do PPGAS/UFRGS e do “Grupo de Pesquisas em Ciberantropologia” – GrupCiber do PPGAS/UFSC. E-mail: jeansegata@gmail.com.
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Notas
[1] Para ilustrar essa questão, destaco aqui uma sugestão de Malinowski (1978, p. 36) para a prática da etnografia. Segundo ele, “nesse tipo de pesquisa, recomenda-se ao etnógrafo que de vez em quando deixe de lado máquina fotográfica, lápis e caderno, e participe pessoalmente do que está acontecendo. Ele pode tomar parte nos jogos dos nativos, acompanhá-los em suas visitas e passeios, ou sentar-se com eles, ouvindo e participando das conversas […]. Esses mergulhos na vida nativa – que pratiquei frequentemente não apenas por amor à minha profissão, mas também porque precisava, como homem, da companhia de seres humanos – sempre me deram a impressão de permitir uma compreensão mais fácil e transparente do comportamento nativo e de sua maneira de ser em todos os tipos de transações sociais”.
[2] Trata-se daquilo que Latour e Woolgar (1988) chamam de inscrição literária. Em outros termos, o procedimento de registro da descoberta de um hormônio seria uma espécie de conto, fabricado dentro de um quadro de interesses, que inclui as crenças, os hábitos, os saberes, a tradição dos heróis fundadores e das revoluções. O investimento etnográfico do livro de Latour e Woolgar (1988) trouxe para os Science Studies, uma diferenciação entre “ciência” e “pesquisa”, justificando o uso da palavra francesa faire (faz), em oposição a palavra fait (feito ou fato). Anos mais tarde, em Le métier de chercheur, regard d’un anthropologue (2001), Latour insiste no acompanhamento da pesquisa que, segundo ele, é o momento onde a ciência está em ação, ou seja, onde ela está em produção de dados, que combinados às teorias vigentes, podem chegar a algum novo fato, que pode se constituir em um novo paradigma. Entre algumas diferenciações entre ciência (science) e pesquisa (recherche), para ele, a ciência é “certa”, “fria”, “sem ligação com política ou sociedade”, onde o “fato é aquilo que não se pode discutir” pois já está feito. Enquanto isso, a pesquisa é “incerta, arriscada, quente”, “numerosamente ligada à política e à sociedade”, onde o “fato é aquilo que é construído” ou que está sendo feito. “Os fatos são feitos”. Essa é uma velha provocação de Gaston Bachelard, ligada a uma ambiguidade etimológica da palavra francesa fait: ela tanto pode designar fato como feito. Ou seja, ela serve para descrever “algo que se fabrica” (que pode ser feito), como algo que “não pode ser fabricado, pois já está dado (que está feito, pronto, acabado)”, ou seja, um fato ou uma realidade que se impõe a nós, pois já está feito, é independente e externo à nossa análise. A questão que é interessante é a de que o fato pode ser aquilo sobre o que a ciência “se fabrica”, pois estuda o fato, como aquilo que é fabricado pela ciência, pois ela pode fazer o fato enquanto lugar de pesquisa e descoberta.Trata-se daquilo que Latour e Woolgar (1988) chamam de inscrição literária. Em outros termos, o procedimento de registro da descoberta de um hormônio seria uma espécie de conto, fabricado dentro de um quadro de interesses, que inclui as crenças, os hábitos, os saberes, a tradição dos heróis fundadores e das revoluções. O investimento etnográfico do livro de Latour e Woolgar (1988) trouxe para os Science Studies, uma diferenciação entre “ciência” e “pesquisa”, justificando o uso da palavra francesa faire (faz), em oposição a palavra fait (feito ou fato). Anos mais tarde, em Le métier de chercheur, regard d’un anthropologue (segundo ele, é o momento onde a ciência está em ação, ou seja, onde ela está em produção de dados, que combinados às teorias vigentes, podem chegar a algum novo fato, que pode se constituir em um novo paradigma. Entre algumas diferenciações entre ciência (science) e pesquisa (recherche), para ele, a ciência é “certa”, “fria”, “sem ligação com política ou sociedade”, onde o “fato é aquilo que não se pode discutir” pois já está feito. Enquanto isso, a pesquisa é “incerta, arriscada, quente”, “numerosamente ligada à política e à sociedade”, onde o “fato é aquilo que é construído” ou que está sendo feito. “Os fatos são feitos”. Essa é uma velha provocação de Gaston Bachelard, ligada a uma ambiguidade etimológica da palavra francesa fait: ela tanto pode designar fato como feito. Ou seja, ela serve para descrever “algo que se fabrica” (que pode ser feito), como algo que “não pode ser fabricado, pois já está dado (que está feito, pronto, acabado)”, ou seja, um fato ou uma realidade que se impõe a nós, pois já está feito, é independente e externo à nossa análise. A questão que é interessante é a de que o fato pode ser aquilo sobre o que a ciência “se fabrica”, pois estuda o fato, como aquilo que é fabricado pela ciência, pois ela pode fazer o fato enquanto lugar de pesquisa e descoberta.
[3] Nesse caso em particular, Marilyn Strathern (2006, p. 27, 43-44), já levantou esses problemas, que em suma, dizem respeito a fugir do recalcitrante investimento de procurar nos outros os nossos problemas metafísicos. Nas suas palavras, “o problema é de tipo técnico: como criar uma consciência de mundos sociais diferentes quando tudo o que se tem à disposição são termos próprios. […] Quando se coloca em face de ideias e conceitos de uma cultura concebida como outra, o antropólogo está diante da tarefa de adaptá-lo a um universo conceitual onde haja espaço para elas e, portanto, de criar esse universo”.
[4] Parafraseando Wagner (2010) “o futuro da Antropologia está em sua capacidade de exorcizar a diferença e torná-la consciente e explícita”. Igualmente, como bem assinalou Feynman (2010, p. 342): “o primeiro princípio é que você não deve enganar a si mesmo – e você é a pessoa mais fácil de enganar. Então você tem que ter muito cuidado com isso. Depois de não ter enganado a si mesmo, não é fácil de enganar outros cientistas. Você apenas tem que ser honesto de uma maneira convencional depois disso”.
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