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O consumo de smartphone entre jovens de camadas populares

O pensamento que sempre existiu em relação às camadas populares é que elas consumiam somente para sobreviver. Para os estudos de consumo, até as últimas décadas, essa classe era invisível; bem como para o próprio mercado e para a academia no geral, a classe popular não era considerada um mercado consumidor de produtos e serviços (Rocha, 2009). Todavia o poder de consumo das classes populares vem aumentando consideravelmente nos últimos anos. O aumento da oferta do crédito, as facilidades nas condições de pagamento, cartões de crédito, entre outros, fizeram com que muitas pessoas que viviam à margem da miséria, pudessem ir às compras.

Essa transformação processada no mercado brasileiro fez com que uma vasta parcela da população do nosso país entrasse no mercado de consumo (Rocha; Silva, 2009). Com o aumento do consumo, cresceu também o aumento da oferta de novos produtos. Os smartphones – telefones inteligentes – surgiram há poucos anos no mercado e no ano de 2013 tiveram suas vendas mais que dobradas. Hoje o Brasil é o quarto maior consumidor de smartphones, ficando atrás apenas da China, dos Estados Unidos e da Índia[1].

O que se pretende com este artigo é apresentar os resultados de um estudo realizado com adolescentes de camadas populares da cidade de Santa Maria e refletir sobre a relevância que os smartphones têm na vida desses jovens, bem como pensar em como se dá a conexão dos adolescentes em seus dispositivos móveis.

A amostra da pesquisa é composta por dezesseis jovens com idades entre doze e quinze anos pertencentes à classe popular. Conversamos com esses dezesseis adolescentes, realizamos entrevistas, e alguns ainda tornaram-se nossos amigos nas redes sociais. Porém o total de jovens observados foi de 137, número de alunos matriculados na sétima e na oitava séries na escola na qual realizamos a pesquisa – uma escola estadual de ensino fundamental da cidade de Santa Maria (RS). Preservamos a identidade dos adolescentes; os nomes que aparecem neste artigo são fictícios. O nome que usamos para representar a instituição de ensino é Vila Real. A coordenação da escola pesquisada pediu anonimato, visto que o uso de celulares na escola é um assunto delicado – é proibido por lei no Rio Grande do Sul o uso de celulares em sala de aula nas escolas públicas.

Juventude e culturas digitais

Definir o significado do termo juventude é uma tarefa difícil, principalmente na contemporaneidade. Rocha e Pereira (2009, p. 15) entendem que a ideia de juventude e a experiência de ser jovem podem ser traduzidas por um processo constante de mediação entre valores, hábitos, gostos, atitudes, estéticas e práticas sociais. Afinal, os autores lembram que a ideia de jovem foi criada como um espaço intermediário, “que faz a transição entre uma maturidade adiada e uma infância espremida”.

Podemos dizer que as relações sociais e os sistemas sociais estão em constante mudança. Essas mudanças implicam o aparecimento de novos padrões estruturais. Segundo Recuero (2011) a mediação pelo computador, por exemplo, gerou outras formas de estabelecimento de relações sociais. A sociedade está se adaptando aos novos tempos e passando a utilizar a rede para formar novos padrões de interação, criando formas novas de sociabilidade e novas organizações sociais.

Para caracterizar o jovem da atualidade, que já utiliza essas novas formas de interação e sociabilidade, citamos um termo utilizado por Castro (2012): os screenagers. A autora utiliza essa denominação para caracterizar o adolescente que se divide em ser receptor, produtor, fã e consumidor em uma interação com múltiplas telas. Quando Jenkins escreve sobre a cultura da convergência, ele utiliza os adolescentes como exemplo:

Um adolescente fazendo a lição de casa pode trabalhar ao mesmo tempo em quatro ou cinco janelas no computador: navegar na internet, ouvir e baixar arquivos mp3, bater papo com amigos, digitar um trabalho e responder e-mails, alternando rapidamente as tarefas (Jenkins, 2008, p. 44).

O cotidiano de muitos adolescentes hoje é permeado por longas horas de interação com conteúdo advindo de uma ou mais telas, e esses sujeitos geralmente estão em contato com outros por meio da internet e de outras telas. Na análise de Castro (2012) é destacado o embaralhamento de fronteiras entre trabalho e lazer, ócio e tempo produtivo; pois o jovem é privilegiado por poder acessar diversos sites e fazer múltiplas conexões ao mesmo tempo. Para a autora há tempos o consumo e a tecnologia convivem em uma espécie de pacto de cumplicidade e retroalimentação. A tecnologia também está tão rápida, que hoje podemos comprar um smartphone de última geração e no próximo mês ele já se tornou obsoleto; o descarte rápido de peças e equipamentos hoje é estimulado com o lançamento contínuo de novas versões de um mesmo produto.

A questão do pertencimento e da sociabilidade nos dias de hoje para os jovens é de muita importância. O uso do celular se transformou drasticamente, e ele não é usado mais somente para realizar chamadas por voz (Lemos, 2007; Ling, 2004); ele é um artefato que possibilita que o indivíduo esteja sempre conectado, atualizado, dentro das redes sociais e interagindo tanto com a pessoa da sua turma quanto com uma pessoa que está do outro lado do mundo.

A adolescência é uma fase em que os indivíduos desenvolvem a sua identidade e senso de autoestima e os dispositivos móveis se tornaram uma parte da vida cotidiana dos adolescentes e do seu processo de emancipação; a partir dessa informação é possível sugerir que a adoção dos telefones celulares pelos jovens não é simplesmente a ação de um indivíduo, mas sim de um grupo de indivíduos alinhando-se com a cultura de pares (Ling, 2004).

Smartphones e o estar conectado

O smartphone é definido como um telefone inteligente – um telefone celular que possui um sistema operacional e funções mais complexas do que o do aparelho celular simples (Teleco, 2013). Segundo Teleco os principais sistemas operacionais hoje são: Android (Google), Symbiam (Nokia), iPhone OS (Apple), BlackBerry (RIM), Bada (Samsung) e Windows Phone (Microsoft). Além das variadas funcionalidades que o smartphone já possui por si só, ele ainda permite que o usuário acesse a internet, acesse lojas online e que também instale aplicativos no aparelho; o número de aplicativos existentes e as funções que eles exercem são praticamente incontáveis.

Jenkins em 2008 já afirmava que os telefones celulares não eram apenas aparelhos de telecomunicações. Além de nossos telefones nos permitirem jogar, fazer download de informações da internet, tirar e enviar fotos ou mensagens de texto, cada vez mais eles estão nos permitindo assistir a filmes, baixar capítulos de romances, comparecer a shows musicais em lugares remotos (Jenkins, 2008) e ainda criar e compartilhar conteúdos.

Os telefones celulares hoje apresentam, ao mesmo tempo, “funções de conversação, convergência, portabilidade, personalização, conexão através de múltiplas redes, produção de informação (texto, imagens, sons), localização” (Lemos, 2007, p. 23). Para cada função que o usuário deseja exercer, existe um aplicativo[2] diferente. Uma pesquisa de 2013 revelou os dez aplicativos mais usados no mundo inteiro[3]. Em primeiro lugar, o aplicativo mais utilizado atualmente é de geolocalização, o Google Maps, que fornece mapas do mundo inteiro, trajetos e fotos dos lugares; entre os dez apps[4] mais usados encontramos também o Facebook, o Twitter, o WhatsApp e o Instagram.

Alguns dos fatores que tornam os telefones inteligentes e os seus estudos tão relevantes são a mobilidade, a portabilidade, a capacidade de produzir conteúdo imediato, a conexão e a difusão em rede, e acima de tudo o fator da disseminação massiva desse artefato, que segundo Lemos (2007) faz de qualquer indivíduo um produtor, distribuidor e consumidor de imagens, mesmo que virtualmente. O autor também disserta que imagens e vídeos feitos por pessoas comuns através de seus dispositivos realizam a tarefa de registrar eventos cotidianos, desde amigos conversando até usos mais importantes em momentos de guerrilhas urbanas, acidentes, catástrofes, entre outros.

O modo como os jovens tem utilizado a internet e o telefone celular em suas vidas hoje, entrando e saindo simultaneamente dos âmbitos offline e online, nos indica que a participação nesses dois mundos está integrada a uma experiência cotidiana, que circula constantemente entre o interior e o exterior de nossas casas, nas diversas formas de ser e habitar os distintos campos do público e do privado (Winocur, 2009). Para Winocur, a intensa experiência de socialização digital não substituiu o mundo real, e sim está ligada a ele.

Os smartphones no cotidiano dos adolescentes

Para pensarmos a relevância que os smartphones têm na vida dos adolescentes de classe popular, analisamos os usos que eles fazem do dispositivo móvel em seu cotidiano. Os jovens que participaram desta pesquisa foram observados e questionados sobre fatores como: frequência do uso do dispositivo móvel, utilização na escola e fora da escola, hábitos cotidianos que envolvem o celular, funções mais utilizadas, entre outros.

Ling (2004) acredita que a possibilidade de ter um telefone disponível, sempre à mão, alterou os hábitos existentes anteriormente, quando somente existia o telefone fixo. O telefone agora é individual; cada indivíduo possui o seu número, de uso pessoal, e pode usá-lo para entretenimento, comunicação, trabalho, enfim, para o que achar mais conveniente, a qualquer momento e em qualquer lugar.

No cotidiano dos adolescentes entrevistados o que mais se vê presente é o uso das redes sociais. Para a maioria, o consumo de smartphone no dia a dia está ligado à comunicação e ao bate-papo. Observamos que a presença diária e constante do telefone celular na vida dos jovens é essencial. Todos relataram que se sentiriam perdidos se ficassem sem o celular por um dia e que cultivam sentimentos como amor e carinho pelo aparelho. Além disso, quase todos os entrevistados utilizam seu smartphone para funções básicas como relógio, despertador, calculadora e agenda.

 Os dispositivos móveis atualmente são de uso pessoal e são portáteis. De acordo com Ling (2004) eles foram adotados rapidamente e ligados ao nosso corpo para uma ampla variedade de práticas sociais, que ultrapassam as funções primárias de comunicação; assim como os elementos do cotidiano, as tecnologias sem fio, e principalmente o celular, são percebidas como instrumentos essenciais da vida contemporânea. Quando elas falham, os usuários tendem a se sentir perdidos porque desenvolveram uma relação de dependência com as tecnologias (Ling, 2004).

Acho que os jovens tão usando muito o celular hoje pelo fato de ser fácil de levar pra vários lugares, de carregar e porque nele tem tudo. Tem câmera, relógio, internet, GPS; eles podem fazer todas as coisas que necessitam sem o computador por exemplo (Manuela – 14 anos – 8ª série).

O pensamento de Manuela vai ao encontro da teoria de Ling (2004) e Lemos (2007). A jovem acredita que os principais motivos para a ascensão do consumo de celular entre os adolescentes são os fatores híbridos, de mobilidade e de portabilidade. Para Lemos, o telefone celular hoje é um dispositivo híbrido, porque carrega funções de telefone, computador, máquina fotográfica, câmera de vídeo, processador de texto, GPS, entre outras; é móvel pois é portátil e conectado em mobilidade funcionando por redes sem fio digitais, ou seja, de conexão; e é multirredes, já que pode empregar diversas redes.

Outro ponto interessante comentado nas entrevistas com os jovens é o fato de o smartphone representar uma forma de segurança e de maior independência no dia a dia dos adolescentes. Quase todos os informantes relataram que seus pais pedem para que eles levem o celular para a escola caso aconteça alguma coisa inesperada, para alguma emergência.

Tenho celular desde os oito anos. É que a minha mãe trabalhava no Centro, então desde pequeno eu tinha que ir pegar ônibus sozinho, aí eu tinha que ter celular pra falar com ela. Sem o celular eu não poderia falar com a minha mãe, não poderia fazer minhas coisas. Eu acho que o celular é uma forma de segurança, porque se eu estiver tipo perdido, me machucar e essas coisas assim eu posso avisar (Gustavo – 12 anos – 7ª série).

Os jovens não relataram nenhum tipo de incômodo causado pelo rastreamento, pelo contrário, acham importante estar sempre com o celular para quando precisarem recorrer a alguém e consideram fundamental avisar aos pais onde estão e com quem estão.

As formas de apropriação de mensagens de texto e ligações

As mensagens de texto e as ligações por muito tempo foram as principais funções utilizadas em um telefone celular. Hoje, com a possibilidade de uso de internet e aplicativos no smartphone, muitos dos serviços de SMS e chamadas foram substituídos. Existem aplicativos que, conectados à internet, nos possibilitam fazer chamadas gratuitas e enviar mensagens para todos os nossos amigos sem pagar um centavo. Porém ao notar essa mudança de cenário na telefonia, empresas como Claro, Vivo e TIM[5] criaram novos planos, dando ênfase ao baixo custo para ligações e valores mínimos por pacotes de mensagens.

Em relação ao uso de mensagens de texto e ligações, alguns jovens entrevistados relataram possuir planos para ligações e mensagens. Bárbara utiliza um plano da Claro, no qual a chamada custa R$ 0,21 e paga-se R$ 0,50 por dia para enviar mensagens à vontade; ela diz que chega a enviar 50 torpedos por dia. Melinda tem um plano da TIM, e o utiliza mais para ligações, pois seu pai mora em outro estado com sua irmã mais velha, em Recife, e a chamada custa apenas R$ 0,25. A jovem conta que chega a ficar de meia hora a quarenta minutos no celular conversando com seu pai. Luís não possui internet em casa e nem 3G no smartphone, por esse motivo, é um dos informantes que mais utiliza o serviço de SMS. Ele paga R$ 5,00 por um pacote de 100 mensagens e chega a enviar mensagens de dois em dois minutos.

Castells et al. (2007) nos recordam que o SMS é o meio de comunicação que emergiu como o mais importante entre os jovens. O SMS, assim como as chamadas de voz, cumpre funções de comunicação instrumental e expressiva. Para os autores, graças ao SMS os jovens criaram também suas próprias linguagens. O curto espaço para escrever mensagens nos celulares, 160 caracteres, fez com que os adolescentes inventassem novas e exclusivas maneiras para se comunicar.

Os adolescentes e sua ligação com a música

Para compreendermos um pouco a importância da música na vida dos jovens pesquisados primeiramente vamos falar de Janaína. Janaína, que tem 15 anos e está na 7ª série, vive com dois tios emprestados e não chegou a conhecer seus pais. Os tios são bem mais velhos que ela (uma tem 82 e o outro 65 anos), são muito rígidos e não entendem as novas tecnologias e tendências do momento; talvez seja por esse motivo, pela educação dos tios, que a jovem não confia no uso da internet pelo smartphone. A relação de Janaína com os tios é complicada, e a música para ela é uma forma de fugir, é um escape. Ela gosta de escutar rock e escuta muita, mas muita música. No intervalo da escola Janaína quase nunca está sem seus fones de ouvido. Além de ouvir as músicas, ela ainda faz uma coisa diferente com seu smartphone: canta e grava com o gravador de voz, aí depois escuta algumas vezes e apaga.

Janaína se considera viciada em celular, muito em razão da música, pois não consegue sair de perto do telefone e ficar muito tempo sem escutar suas bandas favoritas. A jovem acredita que muitas vezes o smartphone atrapalha, pois ela deixa de estudar e de prestar atenção em algumas coisas em casa para ficar escutando música. Por causa dos fones de ouvido a menina também deixa de ouvir muitas pessoas falando com ela, até mesmo as ordens de seus tios. Podemos perceber que a música para um jovem que possui problemas com a família, além dos financeiros, é uma maneira de esquecer suas dificuldades, sua vida real, e entrar em um refúgio.

Nesses meses de observação pudemos notar também que no intervalo da escola muitos alunos escutam música sozinhos, com seus fones de ouvido, fazendo o seu lanche. Para esses o intervalo parece ser solitário, mas eles aparentam estar felizes, relaxados e aproveitando o recreio do seu melhor jeito. Todavia há jovens que escutam música juntos, em duplas, dividindo os fones de ouvido, conversando e interagindo. O uso do celular nesses casos passa de individual para uso coletivo, ele vira uma ferramenta de sociabilidade, onde a tecnologia pode ser compartilhada. E ainda há aqueles que não utilizam os fones de ouvido, os funkeiros, que gostam de escutar e colocar suas canções favoritas para todos ouvirem.

Existe também uma espécie de rixa entre os jovens da escola pesquisada, na qual os funkeiros sofrem preconceito por escutar as canções sem fone de ouvido. Pelos depoimentos notamos que os alunos que gostam de rock e de outros estilos musicais, não gostam das atitudes dos funkeiros. Eles são julgados “bagaceiros” e vulgares por escutarem canções com letras apelativas e ainda sem fones, para todos perceberem.

Funkeiro não sabe usar fone de ouvido. E eu falo mesmo. Funkeiro não usa fone, só rockeiro. Porque o funkeiro quer se mostrar, quer mostrar aquelas músicas que falam nada a ver. O rock não precisa mostrar. O funkeiro tem que descer até o chão e tem aquelas músicas que falam “ai encosta aqui, vai lá, põe a mão lá e não sei o quê”, e essas músicas não são legais (Janaína – 15 anos – 7ª série).

Os outros não gostam de nós porque dizem que funkeiro não usa fone de ouvido, mas eu não uso mesmo. É só pra escutar alto mesmo, eu não gosto de escutar tipo no fone. Eu gosto de escutar pra todo mundo ouvir. Rockeiro e funkeiro não se dão, não adianta (Pablo – 14 anos – 7ª série).

 A música, no entendimento de Castells et al. (2007), é uma importante forma de autoexpressão para os jovens. E as tecnologias de comunicação sem fio hoje, como os smartphones e outros telefones celulares, permitem que os adolescentes expressem a sua identidade de maneira mais visível, em sintonia com as modas e tendências atuais (Castells et al, 2007). Para o autor, hoje o telefone móvel por si só já se tornou um símbolo da identidade dos jovens em muitos países; e não só dos jovens, mas de crianças e adultos também.

O uso de redes sociais e de aplicativos

Nesta seção buscamos entender algumas das razões para as redes sociais e os aplicativos hoje serem as principais funções utilizadas nos smartphones no dia a dia dos adolescentes. Dos dezesseis entrevistados, apenas dois não utilizam as redes sociais pelo dispositivo móvel, mas se conectam às mesmas através de seus computadores. Todos os informantes possuem aplicativos, seja de redes sociais seja de jogos, de calendário, de fotos, entre outros. Todos os usuários de smartphone têm o Facebook como seu aplicativo/rede social favorito.

Depois do Facebook a rede mais usada é o Twitter, e em seguida o Instagram. Relembrando brevemente as funções de cada uma, o Facebook permite ao usuário ter uma conta, um perfil pessoal, adicionar fotos e vídeos, criar conteúdo e compartilhar, assim como adicionar amigos, conversar com eles através de um bate-papo, criar comunidades, eventos e páginas; o Twitter tem como proposta o compartilhamento de mensagens curtas, de no máximo 140 caracteres e o Instagram é utilizado para a postagem de fotos, com suas respectivas legendas e filtros.

Percebemos ainda que as redes sociais são usadas pelos adolescentes para entretenimento. Jonas e Bárbara contam que ficam felizes quando estão online no Facebook e que dão muitas risadas quando estão escrevendo e lendo mensagens no Twitter. Além disso, muitos mencionam se sentir estranhos e até mesmo desesperados se ficam muito tempo sem entrar nas redes sociais. Eles precisam saber o que está acontecendo, quem está conversando com eles e o que as outras pessoas estão fazendo.

Na opinião de Janaína, seus amigos estão tão felizes conectados, se divertindo e conversando, que se esquecem de algumas coisas importantes como realizar os deveres de casa e de estudar.  Lemos (2007) disserta que o uso de smartphones e de outras tecnologias móveis interfere, como toda mídia, na gestão do espaço e do tempo. Como os celulares estão sempre em nossas mãos, quase 24 horas por dia junto a nossos corpos, muitos adolescentes realmente perdem a noção de tempo. O que é hora de lazer, diversão e entretenimento se confunde, ou até mesmo oculta, a hora de estudos e de trabalhos escolares dos jovens.

Ricardo e Alice acham que a vantagem de se estar conectado nas redes sociais é poder estar perto de outras pessoas, sem estar próximo fisicamente.

Quando eu tô conectado eu sinto que eu posso falar com quem eu quiser, entendeu? Em qualquer lugar e que essa pessoa não precisa tá perto de mim pra conversar (Ricardo – 15 anos – 8ª série).

Quando tô conectada sinto que posso ver os outros, às vezes alguém que tá longe eu vejo. O Facebook eu uso pra conversar com as minhas amigas, eu tenho uma prima que mora bem longe também, daí eu converso bastante com ela (Alice – 15 anos – 7ª série).

Recuero (2011) pensa que o que diferencia as relações hoje é o advento dos laços sociais mantidos a distância. A autora acredita que a tecnologia proporcionou uma certa flexibilidade na manutenção e criação de laços sociais, uma vez que permitiu que eles fossem dispersos espacialmente. Para Recuero “a comunicação mediada por computador apresentou às pessoas formas de manter laços sociais fortes mesmo separadas a grandes distâncias […] Essa desterritorialização dos laços é consequência direta da criação de novos espaços de interação” (Recuero, 2011, p. 44).

Podemos dizer que o pensamento de Lemos (2007) conversa com as ideias de Recuero, pois em seu entendimento a diferença das relações atualmente é a circulação imediata de conteúdos, a conexão planetária, fazendo de todos nós partícipes da experiência, de tudo e de qualquer coisa. As redes sociais e as novas tecnologias são capazes de manter amizades a longas distâncias, relacionamentos entre namorados que vivem em diferentes cidades, e possibilita que famílias amenizem a saudade que sentem de um filho que está em outro país.

Smartphones e sociabilidade

Desde nossas primeiras entrevistas no campo de pesquisa, interessou-nos o fato de que, para os alunos da escola Vila Real, ter um smartphone significa sentir-se incluído. Incluído na modernidade, incluído nos grupos de jovens e na escola. Os celulares passaram a ser um artefato importante que marca a aparência dos indivíduos, tornando-se não somente objetos de desejo, mas sim símbolos de pertencimento de diferentes grupos sociais (Ling, 2004; Horst; Miller, 2006; Silva, 2008).

Possuir um smartphone para nossos informantes significa “ser visto normal, que não tá nem por baixo, nem por cima, mas que nem os outros”. Os jovens entrevistados em nenhum momento se referiram aos smartphones para falar de mais ou menos status. Quase todos comentaram possuir um celular moderno para estarem iguais aos colegas. Eles não querem o smartphone mais caro, nem o “tijolão” (celular antigo), eles precisam ter os smartphones que todos têm, para estar na moda.

Ter um dispositivo móvel moderno, com acesso a internet e aplicativos, expressa pertencimento, porque para nossos interlocutores “quem é conectado é na moda. Os que estão por fora, estão desatualizados”. Assim, consideramos que os smartphones atuam diretamente na inclusão simbólica dos jovens, em uma lógica que hoje é marcada pela conectividade e pela modernidade. Na realização das entrevistas e na observação em campo, sempre que perguntávamos como alguém usava as funcionalidades e aplicativos do celular, a resposta grande parte das vezes era: “Tudo que eu faço no celular eu acho que os outros jovens fazem também”.

Mesmo possuindo um smartphone com variadas funções e com capacidade de armazenamento para muitos aplicativos, os adolescentes contaram que utilizam apenas as redes sociais e aplicativos que os colegas utilizam. Eles possuem o smartphone justamente para se incluir, para pertencer e estar onde os outros jovens estão. O pensamento de Bourdieu (2007) complementa nossa reflexão dizendo que os objetos nunca são consumidos de forma neutra. No caso dos jovens da escola Vila Real, os objetos, os smartphones, são consumidos com o objetivo de pertencer e se igualar.

Bourdieu (2007) entende que pessoas pertencentes às mesmas classes e frações de classes tendem a comportar-se e usufruir dos bens de maneira semelhante. O fato de nossos informantes quererem ser vistos normalmente pelos outros jovens, significa poder ter e desfrutar igualmente dos bens que os colegas têm. Eles utilizam o celular de maneira parecida ou idêntica para sentirem que pertencem ao universo dos adolescentes.

Perguntamos aos dezesseis entrevistados se alguma vez eles já foram vistos ou tratados de maneira diferente por causa do modelo de seu celular. Muitos comentaram que já presenciaram pessoas sendo tratadas como diferentes, tanto por terem um celular antigo – um “tijolão” – quanto por possuirem um smartphone de muita qualidade – os “playboyzinhos”.

Eu já vi pessoas serem tratadas diferente por causa do celular, mas só algumas vezes. É que é assim, quando tu tem tipo um celular mais velho ficam chamando de tijolão, e quando alguém tem um celular mais moderno daí chamam de rico né, de playboyzinho. Tem que ser meio termo (Alice – 15 anos – 7ª série).

 No entendimento de Slater (2002) é através das mercadorias e dos bens que a vida cotidiana, assim como as nossas identidades e relações sociais são sustentadas e reproduzidas. Para o autor o que consumimos determina a imagem que queremos passar e serve para identificar nós próprios e uns aos outros. O consumo de smartphones pelos jovens é uma maneira de expor suas identidades por meio de bens materiais que simbolizam um estilo de vida, um gosto. Na escola Vila Real, o adolescente que consome smartphone faz parte de um grupo que está na moda, está atualizado. Eles não são diferentes dos outros economicamente, mas usam o consumo como estratégia para construir determinada imagem de si.

Considerações finais

O nosso objeto de estudo, o smartphone, ganhou muito destaque no ano de 2013, foi bastante evidenciado pela mídia e nunca teve modelos de entrada tão acessíveis no mercado. Os dados de Teleco (2013) afirmam que o preço dos smartphones em 2012 caiu cerca de 25%, o que explica em parte a explosão de vendas desses aparelhos. Pudemos notar através da observação em campo e das entrevistas a relevância que esses aparelhos têm na vida dos jovens.

Esse dispositivo móvel é um objeto importante para a cultura material contemporânea, e estudar a sua significância e o modo como é consumido é de grande contribuição para as pesquisas de consumo. Outro fator importante para a pesquisa é o fato de o trabalho envolver o uso de smartphones nas camadas populares, pois esses tipos de bens são considerados supérfluos e são vistos com preconceito pelas camadas altas quando se encontram nas mãos de pessoas com menos poder econômico.

Hoje o jovem encontra conectado o seu lugar de pertencimento. Sim, as formas de consumir, de interagir e de socializar se modificaram. Mas essas relações mudaram basicamente de território. O que antes era feito face a face, somente agora e ao vivo, hoje pode ser feito a milhares de quilômetros. As novas tecnologias romperam as barreiras físicas e geográficas que nos eram impostas e nos apresentaram um lugar onde as relações à distância, entre diferentes cidades e países se tornam simples.

Mais do que a exposição de nossas imagens nas redes sociais, hoje se busca o que é vivido junto, a cumplicidade (Lemos, 2007), o compartilhamento do dia a dia. Os telefones celulares se tornaram uma parte muito importante da vida cotidiana das pessoas, principalmente dos adolescentes (Ling, 2004). O telefone móvel não é mais usado apenas para comunicação; ele é usado para a coordenação funcional do cotidiano e para a interação de um grupo.

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* Sandra Rubia da Silva é mestre em Comunicação e Informação (UFRGS) e doutora em Antropologia Social (UFSC). Docente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e líder do grupo de pesquisa “Consumo, Culturas Digitais e Materialidades da Comunicação”. E-mail: sandraxrubia@gmail.com

** Camila Rodrigues Pereira é bacharel em Comunicação Social – Publicidade e Propaganda. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: rp_camila@hotmail.com

Referências

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HORST, Heather; MILLER, Daniel. The cell phone: an anthropology of communication. Oxford; Berg, 2006.

JENKINS, Henry. A cultura da convergência. São Paulo: Aleph, 2008.

 LEMOS, André. Comunicação e práticas sociais no espaço urbano: as características dos Dispositivos Híbridos Móveis de Conexão Multirredes (DHMCM). Comunicação, mídia e consumo. São Paulo, Escola Superior de Propaganda e Marketing, vol. 4, nº 10, 2007.

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WINOCUR, Rosalía. Robinson Crusoé ya tiene celular: la conexión como espacio de control de la incertidumbre. México: Sigla XXI: Universidad Autónoma Metropolitana, Unidad Iztapalapa, 2009.

Notas

[1] Disponível em: < http://info.abril.com.br/noticias/mercado/2014/04/vendas-de-smartphones-no-brasil-mais-que-dobram-em-2013.shtml> Acesso em: 6 mai. 2014.

[2] Aplicativos ou aplicativos móveis são softwares desenvolvidos para rodar em dispositivos móveis como smartphones, telefones celulares e tablets. Disponível em: <http://www.alldreams.com.br/artigos/44-o-que-sao-aplicativos-mobile.html> Acesso em: 15 out. 2013.

[3] Pesquisa: Top 10 aplicativos mais usados no mundo. Disponível em: <http://top10mais.org/top-10-aplicativos-mais-usados-em-smartphones/> Acesso em: 16 out. 2013.

[4] Abreviação da palavra aplicativo que é muito utilizada pelos usuários de smartphone.

[5] As três empresas são operadoras de telefonia no Brasil. A Vivo é uma empresa do Grupo Telefônica, que adquiriu a participação da Portugal Telecom na operadora em 2010. A empresa de telefonia Claro é uma subsidiária da América Móvil para o Brasil e a empresa TIM é controlada pela Telecom Italia. Disponível em <http://teleco.com.br/> Acesso em: 29 nov. 2013.

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Museu Afrodigital: desafios na representação do passado

Nas últimas décadas observamos uma obsessão do público por temas relacionados à memória, bem como por museus e arquivos. Estes últimos têm se multiplicado com uma velocidade assustadora, adaptam-se facilmente às novas demandas e incorporam novas tecnologias em suas atividades. Autores como o filósofo francês Jean-François Lyotard (1989), ou o historiador Reinhard Koselleck (1985), identificaram uma aceleração do tempo concomitantemente à homogeneização de distâncias espaciais e temporais, à percepção linear do tempo e à procura incessante do novo. Podemos compreender a obsessão por museus e arquivos, instituições que teoricamente seriam capazes de preservar e ordenar o tempo, como inerente à insegurança do indivíduo contemporâneo frente à velocidade de comunicações, simultaneidade de lugares e aceleração do tempo.

Alguns artigos e livros já foram escritos sobre a experiência do Museu Afrodigital (Santos, 2010, 2012a, 2012b; Ferretti, 2012; Sansone, 2013). O projeto faz parte de uma iniciativa nacional, coordenada pelo antropólogo Livio Sansone, da Universidade Federal da Bahia (UFBA). A partir de uma colaboração inicial com uma instituição africana de preservação do patrimônio, o Arquivo Histórico de Moçambique (AHM), estabeleceram-se os objetivos de digitalizar e divulgar arquivos não acessíveis à comunidade acadêmica e ao público de países africanos e latino-americanos e criar museus ou exposições digitais. Além disso, estavam entre os propósitos a serem alcançados a formação de cursos internacionais à distância e a edição de livros virtuais, a serem impressos em diferentes línguas e formatos. Foram realizados contatos com instituições nacionais e estrangeiras como Biblioteca Nacional, Arquivo Nacional, Smithsonian, Unesco e Melville Herskovits Library para que documentos fossem digitalizados e disponibilizados ao público. Nesse mesmo ano de 2009, foram consolidadas participações de outros grupos universitários (UERJ, UFPE, UFMA), que se organizaram de forma relativamente autônoma e independente.

O termo “digital” precisa de alguns esclarecimentos. Não utilizamos a denominação “virtual” porque consideramos que a página da web conta com uma base física responsável pelo armazenamento de dados. Outra questão foi a escolha entre museu e arquivo, pois as atividades desenvolvidas se confundem uma vez que as novas tecnologias permitem simultaneamente a preservação e a exposição da totalidade das informações que foram selecionadas.

Após essas primeiras explicações podemos seguir em frente e investigar quais seriam os aspectos que trazem alguma especificidade aos museus digitais e em que medida eles podem ser associados à preservação da memória. Para isso, vamos analisar três aspectos comumente associados aos hipertextos, ou seja, aos textos que são veiculados nas páginas da web: interatividade, fragmentação e cópia.

Interatividade: quem tem o poder de falar sobre o “outro”?

Os grandes museus da modernidade foram criados no século XIX, paralelamente aos Estados Nacionais e à abertura das coleções particulares ao grande público. Esses museus foram construídos como lugares da objetividade e da certeza sobre a ciência e sobre lugares distantes no tempo e no espaço. A partir dos anos 1980, os mecanismos de poder presentes nas narrativas expositivas dessas instituições foram amplamente denunciados por pensadores de diversas correntes teóricas que partiam da crítica à invenção das tradições (Hobsbawm & Ranger, 1983), à sociedade disciplinar (Bennett, 1995), ou mesmo às políticas colonialistas (Stocking, 1985; Appadurai, 1999; Sansone, 2013). Intelectuais de várias correntes disciplinares, entre eles historiadores e antropólogos, afastaram-se dos museus à medida que os identificaram com comemorações cívicas e manifestações de encontros coloniais. Os museus foram associados ao esquecimento e não à memória.

O termo “memória coletiva”, cunhado por Maurice Halbwachs (1925; 1968) nas primeiras décadas do século passado, tem orientado grande parte das pesquisas relacionadas à reconstrução do passado. Segundo Halbwachs, o passado é sempre reconstruído no presente e, nessa construção, precisamos compreender as relações sociais que entrelaçam aqueles que rememoram. Poderíamos dizer, portanto, que o passado é sempre reconstruído de acordo com os interesses e conflitos do presente. Halbwachs estava preocupado com a construção do passado que ocorria a partir do que denominou de quadros sociais da memória. Seu trabalho nos ajuda a compreender que o passado não é recuperado, resgatado em forma pura, mas sim reconstruído no presente. Perde-se com isso a ilusão na memória pura. Muito embora Halbwachs não estivesse preocupado com o esquecimento ou com as implicações das relações de poder sobre o que fora lembrado, ele nos deixou uma enorme contribuição ao afirmar que as construções coletivas sobre o passado têm autoria.

A partir do movimento teórico conhecido como Nova Museologia, muitos museus distanciaram-se dos antigos discursos oficiais e da sacralização dos objetos. As propostas radicais de integração dos museus a seu meio, idealizadas no início dos anos 1970, foram expandidas e tornadas mais flexíveis. Como em outras áreas do conhecimento, foram questionadas as implicações de poder inerentes à definição do “outro” distante no tempo e no espaço. Pesquisadores, formadores de opinião, educadores, e gestores de instituições culturais passaram a problematizar a autoria das narrativas construídas.

No Brasil surgiram diversas iniciativas no campo da Museologia associadas a núcleos comunitários voltados para o fortalecimento de suas identidades, para a valorização de seus lugares de moradia e para demandas relacionadas à inclusão social. A partir do ano 2000, políticas públicas fortalecem essas iniciativas. Embora o tema da política cultural no novo milênio tenha sido objeto de diversas análises (Rubim, 2010; Santos, 2011), destaca-se a intervenção sistemática do Ministério da Cultura na arena cultural. Foram criados, nesse período, o Sistema Nacional de Cultura (SNC) e o Plano Nacional de Cultura (PNC) com o intuito de potencializar a ação governamental. Além da manutenção da defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro, meta já presente nos governos anteriores aos anos 2000, foram eleitas como questões prioritárias a valorização da diversidade étnica e regional e a democratização do acesso aos bens culturais. A partir da premissa de que todo cidadão tem direito à cultura, surgiram os programas de inclusão social, dos quais se destacou o Ponto de Cultura, que deu suporte a um grande número de projetos locais, promovendo não só o acesso às novas tecnologias por populações de baixo poder aquisitivo, mas o protagonismo cultural e o acesso à cultura por parte daqueles que se situavam à margem das atividades culturais. No campo da Museologia, foi criado o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), que tem atuado na distribuição de recursos e incentivo de novas iniciativas, bem como o programa “Pontos de Memória”, voltado para iniciativas comunitárias.

O uso de novas tecnologias permite alcançar um público imensamente maior do que aquele que frequenta museus e arquivos oficiais. Mas, certamente a distribuição de recursos acompanha a desigualdade social existente no país. Enquanto entre os 10% mais ricos, 56,3% têm acesso à internet, entre os 10% mais pobres, o percentual cai para 0,6%. A maior parte dos usuários da rede é constituída pelos mais ricos, brancos e moradores da região sudeste. Ainda assim há uma inclusão crescente de todos os segmentos. O Brasil é o 5º país mais conectado do planeta e conta com mais de 100 milhões de internautas[1]. No caso do Museu Afrodigital, conforme tabelas abaixo, observamos o crescimento contínuo de usuários desde a sua fundação, o que pode ser associado não só à expansão da internet no país, como também ao interesse específico pelo tema tratado.

 

2012

Usuários Visitas Páginas Hits Bytes
Mar 39 91 4,046 20,446 196.92 MB
Apr 71 214 1,315 6,694 146.58 MB
Mai 273 776 3,725 20,142 323.34 MB
Jun 260 499 5,089 28,044 459.79 MB
Jul 278 880 7,648 35,394 2.14 GB
Aug 273 770 3,825 28,572 985.55 MB
Sep 321 755 2,954 26,202 1.39 GB
Oct 384 933 2,908 24,654 2.38 GB
Nov 491 1,105 6,138 37,894 9.35 GB
Dec 370 934 3,307 19,840 2.02 GB
Total 2,760 6,957 40,955 247,882 19.33 GB

 

2014

Usuários Visitas Páginas Hits Bytes
Jan 5,389 13,086 44,032 149,823 71.66 GB
Feb 5,207 14,236 37,722 98,341 149.62 GB
Mar 4,103 11,573 39,520 150,397 113.44 GB
Apr 2,936 8,794 22,156 92,807 60.57 GB
Mai 4,577 10,978 20,577 75,808 85.23 GB
Jun 5,314 12,388 22,572 77,782 102.26 GB
Jul 6,340 15,114 27,349 86,953 119.95 GB
Ago 6,227 15,156 49,393 131,122 124.75 GB
Set 6,319 14,844 28,296 147,681 167.38 GB
Out 5,970 13,870 27,331 158,672 116.89 GB
Nov 6,771 14,065 28,176 237,384 96.51 GB
Dez 6,478 12,917 21,807 99,663 98.97 GB
Total 65,631 157,021 368,931 1,506,433 1382.90 GB

 

O programa do blog em que o Museu Afrodigital Rio se hospeda, oferece estatísticas sobre usuários, número de visitas, hits, ou seja, número de pedidos feitos ao servidor, e bytes, que corresponde à quantidade de arquivos que foram copiados.

A pesquisa acadêmica, que se afastara dos museus desde meados do século passado, voltou a se interessar pelos diversos significados atribuídos aos objetos, pelo seu potencial de desconstrução de narrativas constituídas, e pela possibilidade de maior divulgação de seu trabalho. No caso do Museu Afrodigital, seu suporte é dado por universidades e não por instituições de cultura. Entre os principais objetivos delineados pelo Museu Afrodigital estavam a reconstrução da memória de grupos historicamente subalternizados, através da divulgação de documentos e objetos não valorizados por instituições tradicionais, e o rompimento com a divisão entre países que produzem a cultura e aqueles que a preservam (Sansone, 2013). Por intermédio de acordos institucionais, gravações, fotografias, cadernos de pesquisa e materiais diversos foram reproduzidos de prestigiosas instituições nacionais e internacionais e divulgados pela internet. O preço a pagar pelos direitos de reprodução foi muito menor do que teria sido a construção de um arquivo ou museu nos moldes tradicionais. Os museus digitais operam segundo as leis da doação e da repatriação digital.

No caso do Rio de Janeiro, embora na página da web que foi criada haja espaços para comentários e a página seja acoplada ao Facebook, o grau de interatividade é limitado, pois o internauta não tem o poder de modificar o conteúdo do que foi construído, acrescentando imagens, textos e links. Diferentemente de iniciativas mais recentes, como museus de nações indígenas, museus de favelas, e museus de periferias, entre outros, em que os gestores fazem parte do grupo comunitário retratado, o Museu Afrodigital se volta para os diversos movimentos que lutam contra o racismo, mas não é gerido por eles. A seleção de temas e documentos a serem preservados e a escolha de expor alguns deles por meio de imagens mais elaboradas é feita por um grupo de professores e estudantes universitários. O pertencimento ao mundo acadêmico possibilita a seus organizadores a manutenção e o suporte financeiro.

Os museus digitais vinculam-se à reescrita da história e à redefinição da relação entre povos e culturas. O Museu Afrodigital divulga cópias de documentos, imagens e gravações relacionados ao passado de afrodescendentes que estavam relegadas a segundo plano em instituições oficiais e estrangeiras. Se essas narrativas são importantes para movimentos e comunidades que se identificam aos afrodescendentes, é interessante destacar que elas também encontram apoio em agências governamentais que defendem a identidade multicultural da nação. Assim, no que diz respeito ao acesso, podemos dizer que embora um número bem maior de pessoas tenha acesso aos dados divulgados pela internet do que aquele que se dirige a uma instituição com localização fixa, este acesso responde às disputas e distribuições de poder em uma sociedade.

Cópia e fragmentação: limites e possibilidades do hipertexto

Os museus e arquivos digitais têm a possibilidade de divulgar um conteúdo bem maior para um público crescente, muitas vezes sem acesso a instituições oficiais de cultura. Podem representar a democratização de um capital cultural, no sentido dado por Pierre Bourdieu (2007). Além disso, a construção desse conteúdo é dinâmica e tem graus de participação variados dos usuários. Mas o que dizer sobre o conteúdo que é veiculado?

Um aspecto central dos museus e de arquivos tradicionais é a autenticidade dos objetos colecionados. Ela dá suporte às grandes narrativas, as quais surgem como verdades sobre o passado, sobre a cultura do outro, ou mesmo sobre a ciência, sem que os critérios de seleção e exclusão se tornem aparentes. Apesar das diferentes razões pelas quais objetos tenham sido escolhidos e selecionados, eles têm poder e autoridade, devido à singularidade atribuída a eles.

Diferentemente, nas páginas da web e nos blogs, o aspecto aurático de objetos “autênticos”, situados no tempo e no espaço, é substituído pelo direito legal de reprodução. As imagens codificadas, fixas ou móveis, não podem ser tocadas, não têm o mesmo tipo de materialidade. Como ressaltado por Walter Benjamin, ao analisar o impacto de novas técnicas de reprodução sobre a obra de arte (1968a), até a mais perfeita reprodução carece de um elemento: sua presença no tempo de espaço.

Há uma percepção muito clara, por parte dos usuários, de que toda a informação que é transmitida pela internet é construída. As novas tecnologias permitem que o apagar contínuo do que foi escrito se torne um de seus aspectos centrais. Não há prova material possível do que se afirma. Importa, portanto, tal como entre historiadores da antiguidade, a confiança naquele que é o autor do texto. No caso do Museu Afrodigital, por exemplo, os textos e imagens estão sendo sempre sendo modificados, aprimorados, de acordo com as demandas existentes e novas reflexões realizadas.  As formas de apresentação e até mesmo os títulos não são mantidos, conforme exemplificado abaixo a partir do lançamento do Museu em 2011 e sua aparência atual.

Página inicial do Museu Afrodigital em 2011 quando foi inaugurado

Página inicial do Museu Afrodigital em 2011 quando foi inaugurado

Página inicial do Museu Afrodigital em 2015

Página inicial do Museu Afrodigital em 2015

 Os usuários do Museu Afrodigital em sua grande maioria são simpáticos às causas dos movimentos que lutam contra o racismo e buscam temas que atendam seus interesses específicos, que estejam de acordo com suas crenças políticas e religiosas. Eles estão bem distantes, portanto, daqueles que procuravam pelo permanente e contínuo. Como sabemos, as narrativas sobre o passado que são construídas no presente não são livres dos conflitos e disputas pelo poder. No caso da memória da população afro-brasileira, podemos afirmar que iniciativas digitais se tornam ferramentas mais abertas aos conflitos tanto do presente como do passado e são capazes de veicular informações sobre práticas como capoeira, quilombos e outras formas de resistência à escravidão, que deixaram poucos registros.

Outro aspecto a ser observado diz respeito à fragmentação contínua do texto na experiência de “navegar”. Há uma distância muito grande entre a intenção daqueles que escrevem seus textos e divulgam imagens nas páginas da web e o conteúdo aproveitado pelo usuário, que não só utiliza fragmentos do que está presente, como também acrescenta comentários. O usuário edita o texto encontrado no que se denomina “hipertexto”, ressaltando elementos que lhe são caros, criticando outros, ou mesmo dando novo sentido ao que foi copiado. Também no que diz respeito à construção da memória, tem se tornado comum a criação de blogs em que a proposta de registrar um determinado passado logo adquire um número grande de seguidores, que lá coloca suas impressões, emoções, bem como documentos e fotografias. Na construção do passado, o usuário adiciona texto e informação ao que se denomina de hipertexto.

Devido às novas características dos novos meios de comunicação, arquivos e museus digitais proporcionam novos questionamentos sobre temas como autoria, conhecimento, passado, preservação e ética (Taylor, 2010). O hipertexto atinge um público amplo e distante, mas diferentemente do texto escrito, que é fixo e adquire autonomia, ele é fluido, está sempre sendo elaborado, e permite o diálogo entre autor e receptor. Esse diálogo, contudo, acontece entre pessoas que não se conhecem e tem um produto que não pode mais ser associado a nenhum dos dois polos da comunicação.

Em Archive fever, o filósofo Jacques Derrida (1996) trouxe algumas questões provocativas ao afirmar que o conteúdo de um arquivo é determinado pela maneira pela qual este arquivo é organizado. Segundo ele, o conhecimento transmitido está intimamente associado à forma pela qual é transmitido. O conteúdo da informação vincula-se tanto ao que está escrito no documento quanto à técnica que lhe é inerente. Derrida afirma ainda que embora os arquivos obedeçam a relações de poder e à técnica utilizada na construção do passado, eles não podem ser reduzidos a esta construção, pois sua autoridade está associada à sua localização no tempo e no espaço. Próximo ao conceito de aura estabelecido por Walter Benjamin, o filósofo francês argumenta que embora os arquivos contenham apenas traços do passado, eles têm o poder de manter em aberto o desejo de conhecimento do que foi destruído e esquecido.

Nem sempre os critérios de verdade estiveram apoiados em documentos, objetos ou em sua autenticidade. Walter Benjamin (1968a), ao analisar o surgimento dos romances modernos e o impacto do texto impresso sobre antigas comunidades que tinham por base a oralidade, destacou a autonomia do texto em relação a seus autores. Nas sociedades em que predominava a oralidade, o autor mantinha o controle sobre seu texto. A invenção da imprensa alterou a noção de subjetividade e a maneira pela qual o conhecimento passou a ser produzido.

Podemos dizer que os arquivos e também os museus digitais não guardam mais nenhum traço ou testemunho do passado, e que estão sempre produzindo ativamente uma determinada memória. Nesse sentido, o desafio que enfrentamos ainda é aquele levantado por Walter Benjamin (1968b), quando afirma que “não há documento da civilização que não seja ao mesmo tempo documento da barbárie”.

A ausência do autêntico, da aura, e da localização do objeto material no tempo e no espaço, contudo, não nos impede de procurar o que chamamos hoje de memórias subterrâneas (Pollak, 1992; Portelli, 1996). Mais uma vez, é importante nos lembrarmos dos escritos de Walter Benjamin, autor que nos mostrou que, embora a reprodução das obras de arte significasse a emancipação dos objetos artísticos de sua dependência dos rituais tradicionais, apontava para novos desdobramentos políticos. Volta à cena o grande poder de comunicação e politização das novas mídias. Museus e arquivos digitais são instituições que lidam com símbolos do passado que podem ser acessados e reformulados de forma muito rápida e para uma audiência muito ampla. Eles abrem espaço para uma nova agenda de temas e responsabilidades nas disputas pelo poder. Os conteúdos das narrativas expostas podem ser acessados e reformulados em qualquer lugar do globo. O reconhecimento de que o controle de imagens e narrativas sobre o passado faz parte da construção da cidadania apenas começou.

Embora as novas tecnologias possam ser instrumentos de resistência para populações subalternas, elas se inserem no mundo que as criou e não fogem às hierarquias e desigualdades existentes. Além disso, elas estão associadas às novas formas de subjetividade, em que corpos, habilidades e modos de pensar adquirem configurações particulares. Apesar de elementos comuns no que diz respeito a controle e poder, é preciso compreender que os novos meios de comunicação não substituem os antecedentes de forma totalizante e que irão coexistir com formas orais de transmissão do passado, bem como com narrativas institucionalizadas (Taylor, 2003). Apesar das tentativas de domesticação do humano, é justamente a coexistência entre diferentes modos de pensar, ser e agir que permitem a explosão de sentidos e sua crítica.

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* Myrian Sepúlveda dos Santos é professora associada da UERJ e coordenadora do grupo de pesquisa Arte, Cultura e Poder. Seus temas de pesquisa são: memória coletiva, teoria social, estudos culturais, relações raciais, cultura popular, patrimônio cultural e, mais recentemente, violência e trauma.

 

Referências

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BENJAMIN, Walter. Thesis on the Philosophy of History. In: ARENDT, Hannah (ed). Illuminations. p. 253-264. New York: Harcourt Brace & World, 1968b.

BENNETT, Tony. The birth of the museum: history, theory, politics. London, New York: Routledge, 1995.

BOURDIEU, Pierre. Distinção: a crítica social do julgamento. São Paulo: Editora Zouk, 2007.

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TAYLOR, Diana. Save as… knowledge and transmission in the age of digital technologies. Keynote Address, Imagining Americas 2010 National Conference, 2010.

Nota

[1] Para dados, estatísticas e projeções sobre a internet no Brasil, ver o Ibope Media, http://www.ibope.com/pt-br/noticias/paginas/numero-de-pessoas-com-acesso-a-internet-no-brasil-chega-a-105-milhoes.aspx, acessado em 10 mar. 2015.

artigo
Tempo de leitura estimado: 32 minutos

Polymedia e culturas juvenis: estudo de caso em uma favela carioca

Este artigo apresenta as reflexões centrais de minha pesquisa de pós-doutorado no Departamento de Antropologia Digital da University College London (UCL)[1] e converge com a linha de pesquisa que venho trabalhando ao longo dos últimos anos e que é objeto de discussão do livro que publiquei em 2011: Consumo e politização: discursos publicitários e novos engajamentos juvenis, assim como mantém forte conexão com a linha de investigação adotada no Laboratório Universitário de Publicidade Aplicada (LUPA), onde sou uma das coordenadoras, na Escola de Comunicação da UFRJ.

Na proposição central desses estudos dialogamos sobre os usos sociais da publicidade e das novas tecnologias e suas relações com as culturas juvenis. E também em 2012, durante dez meses, como docente do projeto de extensão da UFRJ, Rio Geração Consciente, nas favelas da Maré, Cantagalo e Manguinhos trabalhei com os temas sobre sociedade de consumo e direitos e acessos.  A proposta envolveu a coordenação geral da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social no Rio de Janeiro (Sedes), em parceira com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci), o Ministério da Justiça e o Governo Federal. O projeto também teve apoio institucional da Escola de Comunicação da UFRJ, formalizado como um projeto de extensão da escola. Em função dessa parceria, lecionei durante esses meses, no ano de 2012, nos núcleos: Rede CCAP, em Manguinhos, no Imagens do Povo, do Observatório de Favelas da Maré e no Museu de Favela do Cantagalo. O compromisso assumido para minha disciplina foi o de sensibilizar os discentes nesses territórios para os diálogos acadêmicos em mídia, consumo e mediações socioculturais, bem como atuar na concepção e no planejamento de uma campanha institucional sobre o tema da sociedade de direitos, incluindo, nesse debate, o tema do direito ao consumo.

O conteúdo pedagógico do curso objetivava refletir sobre a emergência da sociedade de consumo e seus pressupostos socioculturais, percorrendo as diferentes tradições teóricas que tratam o tema, mas com ênfase em discutir consumo a partir do viés antropológico: como um modo de manifestação de linguagem e um sistema de representação sociocultural ativo.

Nos primeiros registros dos trabalhos de campo, contudo, pude observar de imediato que para a maioria dos discentes prevalecia a visão da sociedade de consumo em um única tradição: como signo do declínio contemporâneo. Esse modo de compreensão da alta modernidade aparecia bem ao estilo da releitura do “fetichismo da mercadoria” na proposição da Escola de Frankfurt: as representações da sociedade de consumo, assim como as produções publicitárias, eram frequentemente narradas como símbolos do desencantamento e estandardização do mundo. Nos discursos dos estudantes do projeto, a sociedade de consumo aparecia como reprodutora do território da exclusão, da representação simbólica da desigualdade e produtora de regimes de visibilidade e hierarquização social. As leituras dos jovens sobre consumo reduziam a expressão à ideia de sociedade consumista onde o princípio da racionalidade e da lógica científica produziria a sociedade da alienação. Por muitas vezes os (as) estudantes me solicitavam leituras de textos que se referiam à tradição crítica. A valorização dessa perspectiva estava fortemente associada à ideia de que, em um contexto de baixa escolaridade, o investimento na formação crítica é o caminho para a compreensão do mundo contemporâneo e seus impasses.

O desafio, portanto, no quadro da minha proposta, configurou-se como de dupla ordem: contextualizar e refletir sobre a ideologia fundante da sociedade de consumo, bem como promover outras possíveis leituras: o entendimento do campo do consumo – sem necessariamente associar o conceito à emergência de um modo de condição social contemporâneo do consumismo – mas como signo sensível de todo o processo comunicativo, ou como sugere Douglas (2004) como modo de “dar visibilidade e estabilidade às categorias da cultura”. Ou ainda a visão predominante nas teses de Canclini (2007) de que as experiências do campo do consumo são agentes de uma racionalidade sociopolítica interativa.

A partir dessa experiência prévia, a pesquisa se desdobrou para o exercício de refletir sobre as formas de relacionamento de jovens residentes na favela do Cantagalo, Pavão e Pavãozinho com a comunicação digital do Museu de Favela (MUF) da comunidade. Compreendendo o digital como uma experiência sociocultural, passamos a estudar como revelar os modos de interação, os sistemas de mediação dos jovens da comunidade e o fortalecimento de seus vínculos com a proposta museológica do território.

Importante salientar que, no decorrer do ano de 2013, os bolsistas do nosso projeto de extensão LUPA-ECO-UFRJ desenvolveram diversas plataformas digitais para o Museu de Favela como a revista digital[2], a criação de um hotsite e a revitalização da fanpage no Facebook.

01

Segunda edição da Revista Digital do Museu de Favela
(Fonte: http://issuu.com/museudefavela/docs/revista_4_final_issuu)

Reconhecendo, portanto, o universo digital como uma possibilidade de articulação e diálogo com os jovens moradores do Cantagalo, Pavão, Pavãozinho, e ainda, compreendendo o repertório da memória como uma ação ativa, que pode encontrar no campo das mediações digitais espaços para o exercício de suas práticas, esse estudo visa:

i)Investigar o conceito de cultura material como representação antropológica, portanto, como mediador de significação pública em representações rituais para ampliar o debate sobre os modos de consumo de meios digitais no espaço da favela. Cabe investigar a experiência digital tanto como prática de empoderamento quanto como forma de exclusão.

ii) Explorar o conceito teórico de polymedia – como uma proposição teórica para o campo da comunicação – produzido por Daniel Miller e Mirca Mandinou (2013). Polymedia é uma categoria teórica que aborda o processo de escolha na ambiência dos usos de meios digitais. Cabe, portanto, investigar como tais escolhas de mídias digitais se exercitam no espaço de relacionamento de jovens com o Museu de Favela do Cantagalo, Pavão, Pavãozinho.

Contribuições da Antropologia para o estudo do digital e dos processos comunicativos

O olhar da antropologia do consumo para os modos de mediação sociocultural na contemporaneidade abre uma perspectiva de análise com foco nos usos sociais que os sujeitos fazem da cultura material. Nesse sentido, a tese de Douglas é referencial quando propõe pensar o consumo “como a ponta do iceberg que revela toda a dinâmica sociocultural em curso” (2004, p.41).

Desse modo, essa perspectiva contribui para relativização da tese de que a fragmentação dos vínculos sociais na ambiência contemporânea é decorrência da cultura de consumo. A leitura de Miller (2010, 2011, 2012) é referencial para essa visão ao sugerir, no espírito da tradição antropológica, que as práticas do consumo são sistemas comunicativos que falam de dinâmicas socioculturais mais amplas. Suas teses contribuem para afinar o olhar para os bens de consumo como categorias socioculturais, como espaços de produção de sentido, como ancoragens sociais.

Nos meus primeiros trabalhos de campo em 2012 com os discentes nos três Núcleos – Cantagalo, Pavão, Pavãozinho; Maré e Manguinhos – embora o registro dominante das representações da sociedade de consumo como símbolo do desencantamento e da estandardização do mundo tenha prevalecido, é possível sugerir que, ao longo das aulas, os estudantes afinaram o olhar para uma nova leitura simbólica. Aos poucos, as visões dos jovens sobre consumo, que reduziam a expressão à ideia de sociedade consumista, onde o princípio da racionalidade e lógica científica produziria a sociedade da alienação, foram dando lugar a um novo olhar mais antropológico. A cultura material pode, por fim, ser observada como linguagem e dinâmica que fala em rica sintonia sobre os dramas mais expressivos da vida social. Paradoxos revelados, tanto pelas contribuições positivas como pelos riscos da cultura de consumo.

O conceito de cultura digital na abordagem antropológica também se mostra como uma fértil contribuição teórica. No livro Digital Anthropology, editado por Horst e Miller (2012), o conceito do digital é traduzido como tudo que tem sido desenvolvido ou pode ser reduzido à lógica binária, aos bits constituídos de 0 e 1. Desse modo, os autores argumentam que pensando o digital como binário é possível delinear seus precedentes históricos. Afirmam, portanto, que o sistema monetário moderno e suas consequências para a humanidade são análogos às questões da cultura digital. Assim como o dinheiro, o digital representou uma nova fase da abstração humana: produziu, paradoxalmente, a comoditização, mas também a pluralidade de culturas e a diferença. Nesse sentido, ambos os processos se fundam na dialética: o virtual e as trocas simbólicas ampliam e democratizam as relações sociais, bem como produzem reflexos negativos. No clássico estudo de Simmel (1978), o dinheiro é a base para a mercantilização das culturas e a vasta produção de bens materiais. Esse aumento quantitativo é também uma potente fonte de alienação, pois ultrapassa nossa capacidade de apropriação cultural. Em certa medida, o debate entre o digital e o humano coloca em perspectiva a profusão de abstração virtual que nos invade e supõe algum nível de superficialidade e dispersão. Assim, a expansão do ambiente digital vai produzindo efeitos positivos e negativos. A pesquisa de Karanovic (2008) sobre os softwares livres relaciona tanto os efeitos positivos das novas formas de ativismo político juvenis pelas redes sociais, como salienta os conflitos institucionais que se agravam com a política de gratuidade no ambiente da internet. Na discussão entre políticas de gênero e ativação digital, Kelty (2008) documenta que a participação feminina em processos de open source é de apenas 1,5%. Verifica-se também que somente 13% dos autores que postam informações na Wikipedia são mulheres. Assim, a cultura digital reproduz desigualdades entre gêneros.

Um outro princípio relacionado à cultura digital refere-se ao debate sobre a autenticidade. A tese, por exemplo, de Turkle (2011) trabalha no sentido de revelar que a socialidade contemporânea gerou a perda do humano e como resultante, o processo tecnológico digital cria uma sociedade robotizada. Em contrapartida, Mandianou e Miller (2011) demonstram que a narração sobre a maternidade das mães filipinas que migraram para Londres e estabelecem relações transnacionais com os filhos é construída na mediação digital. Assim, a autenticidade das relações de parentesco, nesse contexto, pressupõe uma arena de mediação com as novas tecnologias. O mundo online é simplesmente outra arena ao lado do mundo offline para a prática expressiva da maternidade e não há nenhuma razão para privilegiar um em detrimento do outro.

O debate da cultura digital a partir do viés antropológico refere-se também à experiência etnográfica e o quanto é possível traduzir suas interpretações de modo holístico. Embora possamos considerar toda etnografia como uma descrição densa de uma cultura local, como já afirmava Geertz (1997), há três dimensões do processo antropológico: os registros da análise do indivíduo na cultura, as questões que dizem respeito à própria etnografia e as questões que traduzem visões globais. Na discussão entre o local e o global, o debate antropológico sobre o relativismo cultural se insere na análise sobre o digital. Miller (2011) ao analisar os modos de interação social de moradores de Trinidad com o Facebook, afirma que internet é sempre uma invenção local de seus usuários. Mas esses modos de apropriação devem ser depois relacionados com experiências correlatas de outras culturas para visões mais holísticas.

Por fim, ainda um ponto de reflexão sobre o discurso antropológico no ambiente digital é a ambivalência entre a abertura e o fechamento da visão de mundo. A teorização do dilema aparece na análise de Slater e Miller (2007) sobre o uso da internet em Trinidad. Os autores afirmam que a internet promove novas formas de aberturas, mas em seguida sofre novos constrangimentos e controles que geram ambivalência quando se pensa nas liberdades. O trabalho de Livingstone (2009) sobre crianças e os riscos da internet revela que, associados aos benefícios dos novos usos sociais da cultura digital, nota-se o crescimento do bullying virtual, da pornografia na rede, da profusão de sites pró-anorexia e imagens violentas que são compartilhadas por menores. Tais riscos são cada vez mais monitorados por pais, instituições escolares e governos. Morozov (2011) também observa que, assim como o Twitter, o Facebook e o Wikileaks ajudaram a facilitar os movimentos da Primavera Árabe, os regimes opressivos do Irã e da Síria usaram as tecnologias digitais para identificar ativistas e puni-los.

Todos os conceitos aqui alinhavados são fundamentais para a compreensão das narrativas digitais, em especial, o conceito de polymedia (Mandinou; Miller, 2011) que se apresenta como uma categoria teórica que compreende o processo de mediatização como uma questão que envolve escolhas dos sujeitos sociais. Como vimos, pesquisando sobre as relações de parentesco de famílias nas Filipinas em um contexto transnacional – as mães migraram para Londres a fim de buscar inserção no mercado de trabalho – Mandinou e Miller (2011) observam, por intermédio de um estudo etnográfico, como as famílias se relacionam por meios digitais: e-mail, SMS, voice, mensagens audiovisuais por Skype ou Facetime. Em seus relatos dessa experiência observam que, embora uma multiplicidade de meios esteja disponível para interação social, as escolhas para o uso são marcadas pelos vínculos socioculturais mais amplos, por questões afetivas e simbólicas. E é exatamente a compreensão desses relatos que interessa à narrativa antropológica.

Portanto, a partir do quadro teórico acima desenhado, cabe refletir agora sobre as formas de articulação da comunicação digital no Museu de Favela do Cantagalo, Pavão, Pavãozinho. Nesse sentido, investigo como os jovens se comportam socialmente ao interagir com as plataformas digitais.

Primeiras impressões do trabalho de campo no Museu de Favela – Cantagalo, Pavão, Pavãozinho

O Museu de Favela é uma associação de interesse comunitário, sem fins lucrativos, fundada em novembro de 2008 por moradores das favelas de Cantagalo, Pavão e Pavãozinho, entre Ipanema e Copacabana. O projeto nasceu como um plano museológico experimentalista, sem modelos nos quais se inspirar. O conceito: um museu a céu aberto com ênfase na libertação e afirmação cultural comunitária.

O museu territorial integral de cultura de favela, talvez o primeiro no mundo, tem dois modelos de acervos: exposições permanentes instaladas nas galerias, casas ou circuitos de visitação do museu a céu aberto (como na proposta do Circuito Casas Tela) e exposições temporárias (oficinas, festivais, intercâmbios em modo de eventos). Trabalha com a ideia de um museu vivo. Os circuitos também têm importante viés político porque dinamizam a região da favela com visitação, e a agência de negócios turístico-culturais do Museu de Favela (MUFTUR) colabora para que a comunidade produza ações de gastronomia, oficinas culturais, performances musicais e dança no contexto dos circuitos. Assim dinamizam também os fluxos de recursos financeiros na comunidade.

O primeiro circuito de exposições permanente do MUF são as Casas Tela. O projeto pinta a fachada de casas com temas ou narrativas de memória escolhidas pelos moradores. A ideia é que a experiência que conjuga memórias dos moradores e arte se expresse como um novo sentido de cidadania.

02. Casas Tela

Grafite das Casas Tela, a exposição permanente do Museu de Favela

A missão institucional do MUF é realizar a visão de futuro de transformar o Morro do Pavão, Pavãozinho e Cantagalo em Monumento Turístico Carioca da História de Formação das Favelas, das origens culturais do samba, da cultura do migrante nordestino, da cultura negra, de artes visuais e danças[3].

Exatamente no espírito dessa proposta, o curso Rio Geração Consciente foi oferecido. Nesse território me cabia discutir o tema da sociedade de consumo associado às práticas de preservação cultural da memória e de experiências culturais sócio-históricas que se revelassem nos registros simbólicos de linguagens contemporâneas do consumo.

Outro tema mobilizador no debate é a referência às novas tecnologias e aos projetos de afirmação cultural. Começamos investigando as redes sociais e seus modos de representação do mundo. Em debate, levei para o diálogo um capítulo do livro de Miller em Tales from Facebook, que reflete sobre todas as mudanças que as tecnologias digitais vêm produzindo na vida social: o direito à privacidade versus o excesso de exposição. Também a supervalorização do culto ao hedonismo, as práticas e regimes de visibilidades, bem como as novas formas de conexões, os novos acessos à informação e a possibilidade de atualização de vínculos. A ambiguidade do tema da inclusão e exclusão digital sempre norteou nossas conversas: a percepção dominante é a de que todos os atores sociais na favela desejam inclusão digital. A afirmação hegemônica dos discentes em 2012 era de que todos os amigos e parentes dos estudantes do curso, moradores de favela, eram usuários regulares das redes sociais, especialmente do Facebook, mas ainda alguns adeptos do Orkut. O ponto sensível ainda estava circunscrito na qualidade da conexão, na lentidão para downloads de produtos audiovisuais. E também na questão do tempo de dedicação, na medida em que computadores eram compartilhados ou usados em lan houses. Vale observar que, ao longo do ano de 2012, pudemos observar o fechamento de diversas lan houses no território do Cantagalo, Pavão e Pavãozinho. De acordo com os jovens da comunidade, a facilidade de conexão via celulares (smartphones), que passaram a ser mais acessíveis financeiramente para as classes populares, está progressivamente concentrando o acesso à internet e retirando o interesse de plataformas mais fixas, como computadores de mesa. Esse novo comportamento pode ser curiosamente observado em áreas de convivências na favela onde existem pontos de conexão wifi: jovens passam horas animadamente sentados nas áreas de influência da rede, produzindo novos ambientes híbridos: tanto físicos, de sociabilidade, onde a interação ocorre no espaço da comunidade, como também pelas redes sociais.

03. Facebook MUF

Cover da página do Facebook do Museu de Favela produzida pelo LUPA – ECO/UFRJ

Como já abordei, durante todo o ano de 2013 produzimos no Laboratório Universitário de Publicidade Aplicada (LUPA) ECO-UFRJ, uma parceria com o Museu de Favela para a criação colaborativa de uma revista digital, do hotsite do Favela Tour Cultural e da ativação da página do Facebook. Para o desenvolvimento desses materiais institucionais de comunicação, realizamos diversas investigações qualitativas sobre os hábitos de consumo de mídia digital na favela.

Estamos nesse momento realizando as primeiras reflexões sobre um survey com quatrocentas entrevistas desenvolvidas nas comunidades de Cantagalo, Pavão e Pavãozinho, com a população de ambos os sexos, de 18 a 30 anos, classe socioeconômica C1 e C2, público que é o mais expressivo em termos demográficos na favela, como relatam os documentos de pesquisa do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (IETS) e os dados da UPP-Social, com base no censo demográfico do IBGE de 2010. O tema central do estudo é investigar hábitos de mídia dos jovens moradores da favela, além de a imagem do Museu de Favela, e captar sugestões para ampliar o relacionamento da comunidade com o museu por meio da ativação digital.

Após o survey, selecionamos desse universo uma amostra não intencional qualitativa para produção de investigação antropológica sobre os modos de uso das redes sociais, sites, blogs e aplicativos para smartphones. O objetivo foi, por intermédio da observação participante, acompanhar os processos de escolha de mídias digitais, as formas de postagens, as narrativas preferidas, os gostos compartilhados socialmente de ambientes digitais na favela, assim como investigar os caminhos para potencializar as relações dos jovens com o Museu de Favela. Foi também realizado o acompanhamento de vinte jovens da comunidade, distribuídos em função da faixa etária, do local de moradia, bem como do grau de familiaridade com o projeto do Museu de Favela.

Todo esse material empírico coletado está sendo analisado e compartilhado com o grupo de pesquisa de Digital Anthropology coordenado por Daniel Miller, propiciando, assim, uma análise comparativa dos usos sociais que jovens moradores de uma favela no Rio de Janeiro fazem da tecnologia digital com aqueles efetuados por outros atores em países como Inglaterra, Trinidad, Indonésia, China, entre outros, frutos dos estudos de outros pesquisadores do grupo da University College London. Ao fim desse artigo apresentaremos os primeiros insights dos resultados desse estudo.

Afinando o olhar para investigar hábitos de consumo de mídia digital na favela

De acordo com pesquisa divulgada em fevereiro de 2014 pela Secretaria de Comunicação do governo federal, sob o título Pesquisa Brasileira de Mídia, a internet é o meio que mais cresce em todos os segmentos sociais no país. Embora o resultado ainda revele que um pouco mais da metade, (53%) da população brasileira não tem acesso à internet, outros (47%) são usuários frequentes, sendo que 26% acessam todos os dias da semana. Importante salientar também que entre os jovens brasileiros, apenas 21% não acessam, enquanto 48% usam a internet todos os dias.

Entre os 47% de usuários do ambiente digital, a média de horas gasta em um dia no computador é de 3h39. No Rio de Janeiro a média aumenta para 3h56. Quando se avalia qual (is) os meios digitais mais utilizados, 64% dos que usam a internet acessam o Facebook, com maior destaque para o público feminino (68%) e os de 15 a 25 anos (72%). Os demais sites, blogs ou redes sociais têm baixa adesão. Os mais citados: Globo.com (7%); G1 (5,8%), Yahoo (5%); Youtube (4,9%) e UOL (4,8%). Na avaliação nacional, 84% dos 47% que usam internet acessam do computador. Já do celular são 40%, contra 8% que usam tablets.

Em pesquisa realizada em 2010 pela Firjan discutindo posse de bens e acesso às tecnologias de informação e comunicação em favelas ditas pacificadas no Rio de Janeiro, observou-se que 70% dos moradores do Cantagalo possuem celulares, contra 79% do Pavão Pavãozinho. São 45% os que possuem computador no Cantagalo, mas apenas 16% com acesso à internet. Já no Pavão- Pavãozinho, 31% possuíam computador e apenas 11% com acesso à internet.

Outro estudo realizado pelo IETS, também em 2010, revela que 60% dos moradores do Cantagalo têm contratos de celular pré-pago em 2010, contra 54% que usam telefonia fixa. Observa-se que a inclusão digital é crescente no morro, uma vez que mais de 50% dos domicílios possuem computadores, sejam eles com ou sem acesso à internet. No Pavão-Pavãozinho, 71,5% possuem contratos de celular pré-pagos contra 35,7% que preferem telefonia fixa. Em 2010, 7% da população tinha preferência por celular pós-pago. Quase a metade dos domicílios possui computadores (49%), com ou sem acesso à internet.

Em ensaio exploratório que fizemos no Cantagalo, Pavão, Pavãozinho em 2013, identificamos que entre os jovens de 20 a 34 anos, de ambos os sexos, as atividades mais realizadas na internet são:  acessar sites em comunidades virtuais como Facebook, Orkut e Myspace (34%); atualizar/publicar em comunidades virtuais (29,5%); enviar/receber e-mails (21%); enviar/receber mensagens instantâneas como MSN ou Facebook Messenger (19%); ler notícias nacionais (17%); consultar mapas, rotas, endereços tais como Google Maps (15%); assistir ou baixar fotos e vídeos (15%); fazer upload de fotos ou vídeos em sites de compartilhamento (13%); consultar guias de informações locais (12%). As mulheres gostam também de consultar sites de astrologia/horóscopo (22%); consultar a previsão do tempo (23%); procurar parceiros online/namoro (23%). Já homens estão mais inclinados a jogar games virtuais online (21%) e visitar sites esportivos (20%).

As informações levantadas nos sugerem que o crescimento da ativação digital no complexo do Cantagalo, Pavão e Pavãozinho já é uma realidade, assim como em outras favelas. Um fato relevante do comportamento de uso dos meios digitais é a profusão de interesses por redes interativas. A cultura colaborativa de enviar e receber fotos, vídeos, trocar mensagens por SMS ou Facebook Messenger é recorrente. Assim como a vivência lúdica de jogar games interativos. Tais experiências nos levam a crer que os laços de sociabilidade e a cultura interativa entre os moradores da favela se desdobram para o mundo digital.

Nesse sentido, propomos para o Museu de Favela a ampliação de suas ferramentas interativas digitais como página no Twitter, maior ativação do Facebook, a criação das hashtags (#museudefavela; #cinemufcaixadagua; #casastela; #mulheresguerreiras) para compartilhar vivências que os moradores experimentaram no MUF; assim como o Instagram para produção em rede de olhares fotográficos da própria comunidade sobre o Museu ou sobre as cenas que os moderadores desejarem documentar do seu dia a dia. Nosso estímulo se deu na direção de imaginar que o processo de memória do território pode ocorrer em um ambiente colaborativo com os próprios moradores sendo atores e autores de seus registros (fotos, vídeos, produções artísticas, textos) de suas experiências, não só com o Museu de Favela, mas com a narração da vida e dilemas da juventude que reafirma seu papel social em um território que ainda vive da dualidade da inclusão e da exclusão.

Achados preliminares sobre ativação digital no Cantagalo, Pavão, Pavãozinho

Para ampliar o nosso conhecimento sobre os usos sociais das mídias digitais no morro e tornar a ativação digital do Museu de Favela mais integrada à comunidade, iniciamos nosso trabalho de campo com um survey que buscou identificar o tempo dedicado às redes sociais, as plataformas preferidas, hábitos de usos e motivações. A intenção de iniciar nosso projeto com uma amostra quantitativa vai de encontro à problemática da escassez de dados secundários quando se estuda um tema de vanguarda como mídia social, especialmente no espaço político da favela, que sofre historicamente com essa falta de informação. Portanto, de acordo com a nossa amostra[4] de 400 entrevistas com jovens moradores de 18 a 25 anos e adultos de 26 a 45 anos, verificamos que 76% dos residentes vivem com uma média de um salário-mínimo como renda familiar mensal. Embora a taxa de desemprego seja pequena, o grau de informalidade com o mercado de trabalho é alta: 59% são registrados como trabalhadores formais; 18% são trabalhadores informais; 4 % são servidores públicos ou militares; 13% trabalham por conta própria e 7% não sabem definir em que categoria trabalham. Se a taxa de desemprego é baixa, a informalidade gera muita insegurança. Quando apresentamos esses dados para as lideranças locais do Museu de Favela, debatemos sobre a correlação entre a instabilidade da relação com o mercado de trabalho e o hábito de consumo de celulares e a viabilidade econômica de acesso à internet. Um representante local do Museu de Favela argumentou que os moradores de favela sempre desejaram os objetos de consumo da classe média. Lembramos do desejo de consumo de jovens das classes populares por tênis de marca e compreendemos esse processo menos como tradução de símbolo de status e muito mais como signo de acesso e inclusão social nos espaços públicos frequentados por jovens de classe média, como shoppings, por exemplo. Assim, podemos concluir que, atualmente, o desejo de consumo de aparelhos celulares aparece como oportunidade de inclusão no ambiente sociocultural da internet. Mais do que aparentar poder com um celular moderno no bolso, para o jovem da favela, usar uma tecnologia como 3G viabiliza navegar na internet com velocidade, já que os sistemas operacionais de internet discada são muito precários em rapidez para downloads. Os dados da pesquisa revelam que 76% dos moradores da favela entrevistados têm acesso à internet, comparados com os 24% que ainda são digitalmente excluídos. Dos que têm acesso ao mundo digital, 42% usam computadores pessoais; 32% têm telefones celulares; 4% acessam de lan houses; 4% da escola/trabalho; 1% de tablets e 1% da casa de amigos. Nossos achados também endossam que o movimento de ativação digital só vem crescendo na comunidade. São 25% os que ficam conectados o dia todo; 35% dedicam a noite para acesso à internet; 19% as tardes e 4% as manhãs. O número de horas de acesso também é bem expressivo: 15% ficam conectados o dia todo, enquanto 27% passam em média três horas por dia na internet; 25% em média duas horas; 15% até cinco horas; 7% mais de uma hora; 6% em média quatro horas e 4% em média oito horas. As plataformas preferidas na comunidade são: Facebook (99%), Whatsapp (85%) e Instagram (62%). Também investigamos as motivações centrais para o uso das redes sociais: 98% usam para enviar e receber mensagens de texto e fotos; 75% usam o chat ou inbox, especialmente do Facebook; 60% costumam falar por mensagens de voz no celular; 50% enviam áudio e vídeo pela webcam; 30% usam e-mail para trocar mensagens e 25% têm o hábito de enviar mensagens via SMS. O uso do telefone celular vem crescendo muito também: 91% dos respondentes têm acesso à telefonia móvel; destes, 54% já usam celulares smartphones. E o sistema operacional dominante é o Android / Google com 85% contra 8% que usam Apple / IOS e 7% que usam Windows / Microsoft.

Miller (2011), quando analisou os modos de interação social dos residentes em Trinidad com o Facebook, concluiu que os usos sociais da internet são essencialmente locais. Por exemplo, eles chamam o Facebook de “fasbook” ou “macbook”, pois “fas” ou “maco” na cultura de Trinidad remetem à noção de afetividade, vínculo social. Esse caso revela a importância do relativismo cultural no mundo digital. Em nossas etnografias com jovens da comunidade pudemos observar que os residentes do Cantagalo, Pavão e Pavãozinho sempre chamam o Facebook “face” como um carinhoso apelido, revelando a boa relação que mantêm com a interface. Enquanto isso, Whatsapp é jocosamente nomeado de “zap, zap”. A expressão se popularizou na comunidade através de um vídeo viral na internet de uma senhora de classe popular que, em um depoimento autoral, reclama da dispersão das filhas adolescentes depois que passaram a usar o Whatsapp. Ela sugere que suas filhas não se engajam em mais nenhuma atividade que não seja “falar no zap, zap”. O tom da sua fala é muito engraçado e reflete as concepções que nós propomos aqui. É interessante extrair um trecho de seu depoimento: “… antes minhas filhas chegavam em casa e varriam a casa, tiravam pó do chão, arrumavam as camas, mas agora acordam e de camisola mesmo começam no zap, zap, nem escovam mais o dente… mesmo que eu grite, é só no zap, zap… por Deus, quem inventou esse tal de zap, zap? Se alguém está me ouvindo, se alguém souber alguma reza pra livrar minhas filhas do zap, zap, alguma autoridade… é só zap, zap, meu Deus!”. Depois que esse vídeo se espalhou pelas redes sociais, uma vasta produção digital foi criada no Youtube com a paródia do zap, zap. O clipe mais popular na rede é do Mr.Galiza com mais de um milhão de visualizações e trata-se de uma dança com a coreografia do zap, zap. Um pedaço da letra é sugestivo do imaginário social sobre a plataforma: “Oh meu Deus… é na escola ou no trabalho / todo mundo viciado no zap, zap / Quem tem zap, zap levanta a mão?”. Há ainda outro vídeo de Mark Ball que sugere: “Ela não anda, ela desfila / Ela é fashion, capa de revista / Tira foto no espelho para postar no Facebook”.

Toda a produção cultural salientada reflete como, no imaginário social das classes populares, as plataformas digitais já estão incluídas nas retóricas sobre a vida cotidiana. As preocupações dos pais são com a intensidade de uso social da internet pelos filhos: a dispersão, os riscos, o desejo de controle. Os dados apontam também para a reflexão sobre a afetividade com as plataformas pela forma carinhosa como tratam Facebook e Whatsapp. E ainda a temática da produção de subjetividade via selfies, assim como evidencia o cruzamento dos discursos religiosos e políticos de acesso à inclusão digital.

Todas essas expressões, em suma, nos ajudam a delinear os aspectos culturais associados à dimensão da democratização do acesso digital em contextos populares de usos de tecnologia com baixo custo. Assim, como primeiros achados de nossas investigações sobre usos sociais da internet no Cantagalo, Pavão e Pavãozinho, podemos inferir que a qualidade da ativação digital na favela mantém profunda correlação com a dinâmica do território. O forte senso de sociabilidade, as representações da espiritualidade, o tom do humor e o clima jocoso do estilo de vida, bem como o desejo de reafirmação da favela como um espaço criativo e socialmente relevante e em interação constante com a cidade são os temas predominantes nos usos sociais do Facebook e do Whatsapp.  Assim, convergimos com a percepção de Miller (2014) de que as mídias sociais são espaços culturais privilegiados para compreensão antropológica das dinâmicas sociais e que refletem profundamente as contradições contemporâneas de cada localidade em sua especificidade.

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* Monica Machado é professora adjunta da Escola de Comunicação da UFRJ. E-mail: monica@insider.com.br

 

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Notas

[1] Este estudo de pós-doutorado também faz parte do grupo de pesquisa “Imaginários Urbanos”, do Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC), vinculado ao Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Letras da UFRJ. O projeto também pertence ao núcleo de pesquisa de Coordenação Interdisciplinar de Estudos Contemporâneo (CIEC) vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da Escola de Comunicação da UFRJ.

[2] As duas primeiras edições da revista digital do Museu de Favela (MUF) produzidas por nosso núcleo LUPA ECO/ UFRJ podem ser consultadas em:  http://issuu.com/bernardoremus/docs/muf_revistadigital_n1. Acesso em 17 dez. 2013.

[3] Mais detalhes sobre o Museu de Favela podem ser obtidos no site: www.museudefavela.org. Acesso em 10 abr. 2014.

[4] A amostra foi quantitativa e estratificada por cotas, com base nos dados estatísticos do Censo de 2010 e nos relatórios da UPP-Social Cantagalo, Pavão, Pavãozinho também de 2010.

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Virtual e urbano: espaço e esfera pública em contexto digital

O objetivo geral deste texto é investigar dois eixos de questões – o primeiro, ligado à área de estudos urbanos, sobre a conexão entre as noções de espaço público e esfera pública, no contexto sócio-histórico do Rio de Janeiro das primeiras décadas do século XXI. O segundo eixo, vinculado às análises sobre o digital, se detém sobre as relações entre o ciberativismo e a atuação política no espaço público urbano. Em última instância, trata-se de refletir sobre o impacto do virtual sobre as práticas políticas contemporâneas.

Começando com o primeiro eixo de questões, é preciso esclarecer que tomo aqui a definição de espaço público tal como é colocada por Goffman (2010), como “territórios não privativos”, ou seja, como determinados locais de uma comunidade em que, segundo ele, o acesso é franqueado a todos. Desta forma, neste conceito não está envolvida a centralidade da ação política; dito de outra forma, estes locais podem ou não estar permeados por discussões, manifestações ou negociações de direitos, deveres e consensos.

Já a noção de esfera pública, lembrando Habermas (2014), deve ser situada dentro do campo do debate sobre representações e práticas políticas coletivas, da construção de consensos a respeito de ações que afetem a vida dos grupos em sociedade. Nesta direção, a esfera pública se coloca como dimensão de mediação entre a vontade de um Estado-nação e daquilo que constituiria a “sociedade civil”, uma ponte entre Estado e comunidade que se caracterizaria pela apresentação e discussão dos desejos e ações dos diversos grupos sociais vis-à-vis seus representantes no aparelho de Estado.

Na área dos estudos urbanísticos, estas duas noções parecem quase se confundir, a ponto de Abrahão (2008), por exemplo, sugerir que as intervenções urbanísticas ao longo do século XX tinham como uma questão central responder a demandas de cidadania, democracia e participação social. Assim, deste ponto de vista, intervir na arquitetura da cidade era não apenas garantir a possibilidade de uma “ordem democrática”, mas construí-la.

Assim, deste ponto de vista, as ações sobre as cidades se alicerçam em um modelo de espaço público que se conjuga ao de esfera pública; desta forma, quando se ordena o espaço, pensa-se em ordenar opiniões, atitudes e movimentos coletivos.

Nos primeiros anos do século XXI, o panorama das discussões acadêmicas sobre a cidade – meu primeiro eixo – dava conta do declínio do espaço público. Desta forma, a ocupação de praças e ruas e na mesma direção a expressão da vontade coletiva através desta ocupação, era considerada “coisa do passado”. Impulsionada basicamente por crises econômicas, altos índices de criminalidade e violência urbana, pela desconfiança na ação política tradicional e principalmente pelo lazer proporcionado pela nova onda tecnológica, a assim chamada “nova cultura indoors” se definia pela comunicação online, pela permanência dos “cidadãos” em casa e pela rejeição da circulação e uso político das ruas. De nosso canto do mundo, me parecia que havia algum sentido nisso. O aumento vertiginoso do uso das redes sociais, dos games, da insegurança e da violência urbana também era sentido no Brasil; o refluxo da movimentação política – comícios, showmícios, passeatas – nas ruas e praças igualmente fazia parte do cenário brasileiro.

Entretanto, em 2011, com a chamada Primavera Árabe, os movimentos dos indignados espanhóis, as manifestações na Grécia contra a política econômica de seu governo, e os diversos Occupy espraiados pelo mundo, também em 2011, foi possível indicar que a decretação de morte do espaço público e de sua conjugação à ideia de esfera pública era prematura.

Nacionalmente, vimos crescer a volta às ruas a partir das manifestações que se iniciaram com protestos contra o aumento da tarifa no transporte público e se tornaram massivas expressões populares, as conhecidas “jornadas de junho” de 2013. Para além destes movimentos mais gerais, verificamos também a construção de ações periféricas, como o Ocupe Estelita, Ocupa Alemão e o Ocupa Maré, entre outras, que tentam canalizar as reivindicações de seus moradores para sua expressão em cenário público, em seus próprios locais de moradia. Enfim, temos, do ponto de vista dos estudos urbanos, um recrudescimento da conexão entre espaço público e esfera pública, através do aumento da participação política nestes espaços.


Arte urbana no Beco do Batman, SP
(Fonte: Instagram – Fotografia de Ivan Mussa)

Curiosamente, na virada do século e nos primeiros anos do século XXI, no campo dos estudos socioantropológicos sobre o novo ambiente digital, igualmente duas posições magnetizavam e polarizavam aqueles que refletiam as novas tecnologias da comunicação. Sem dúvida, o grande avanço tecnológico dos últimos anos, associado ao surgimento das novas mídias eletrônicas, tem produzido mudanças substanciais na sociedade, influenciando padrões de consumo, processos de produção material, de conhecimento e comunicação. Há muito estamos envolvidos na rotina dos caixas eletrônicos, cartões magnéticos, telefonia celular e outras utilidades que trazem uma nova lógica e uma nova maneira de organização social.

A chamada revolução informacional se intensificou nos anos 1990 com a propagação da internet, permitindo o rompimento de barreiras geográficas e facilitando a livre circulação de informação e conhecimento. Nos dias atuais,

[…] Os locais são completamente penetrados e moldados em termos de influências sociais bem distantes deles. O que estrutura o local não é simplesmente o que está presente na cena; a “forma visível” do local oculta as relações distantes que determinam sua natureza. (Giddens, 1991, p. 27)

Muitos são os debates e poucos os consensos sobre as consequências e implicações do acesso e uso das novas tecnologias, em especial a internet, na sociedade. Duas vertentes teóricas polarizaram desde o início o debate. Os apologistas, como o filósofo francês Pierre Lévy e o sociólogo espanhol Manuel Castells, percebem a internet como um veículo libertário. Enquanto isso, os críticos, representados principalmente pelo sociólogo francês Jean Baudrillard e pelo arquiteto, urbanista e filósofo francês Paul Virilio, a veem “como um veículo de destruição do espaço público e de controle dos cidadãos pelo estado e pelas empresas” (Sorj, 2003. p. 57). É curioso notar que, nos anos 1960/1970, outro meio de comunicação, quando de seu surgimento, também foi alvo de intenso debate; dois polos estabeleceram seus argumentos e contra-argumentos contra a televisão, num cenário muito bem descrito por Eco (1987) como um embate entre “apocalípticos” e “integrados”.

Por nossa vez, em relação às Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs), e na tentativa de aprofundar a discussão, propomos um pequeno mapeamento teórico a respeito deste debate. Pierre Lévy e Manuel Castells, apologistas, e Paul Virilio e Jean Baudrillard, críticos, foram escolhidos entre tantos outros pelo fato de que suas análises e teorias sobre os efeitos das tecnologias digitais no mundo contemporâneo apresentam as principais abordagens que se tornaram rapidamente clássicas, e vêm sendo citadas por diversos outros pesquisadores mais recentes do tema.

Manuel Castells (1999) analisa minuciosamente as transformações sociais e econômicas que ocorrem na era da informação examinando o ritmo acelerado das descobertas e aplicações da tecnologia e suas implicações. A sociedade em rede, segundo ele, seria, assim, a nova forma de relacionamento entre as elites e as empresas, determinando uma revolução nos negócios e na forma de se viver. Para Castells, os processos dominantes na era da informação estão cada vez mais organizados em torno de redes, e

[…] a presença na rede ou a ausência dela e a dinâmica de cada rede em relação às outras são fontes cruciais de dominação e transformação de nossa sociedade: uma sociedade que, portanto, podemos apropriadamente chamar de sociedade em rede, caracterizada pela primazia da morfologia social sobre a ação social (Castells, 1999, p. 497).

No entanto, faz a ressalva de que a influência tecnológica será tanto maior quanto melhor forem as condições sociais e econômicas. Assim, chega a mostrar-se pessimista quanto ao processo de difusão tecnológica entre os mais pobres, quando afirma que a comunicação mediada por computadores “excluirá a maior parte da humanidade por um longo tempo” e, como tal, “ficará sob o domínio de um segmento populacional instruído nos países mais desenvolvidos” (Castells, 1999, p. 382).

Considerado um dos maiores especialistas em cibercultura e autor de diversos livros sobre o assunto, Pierre Lévy compreende o espaço virtual como sendo o terreno onde a humanidade vive e interage nos dias atuais. Considera que esse novo espaço de interação é extremamente importante nos planos econômico e científico, e que essa importância atinge vários outros campos da vida humana.

Para Lévy, a metáfora do impacto é inadequada quando se quer referir-se aos reflexos das novas tecnologias da informação sobre a sociedade ou a cultura, pois neste contexto, a tecnologia seria algo comparável a um projétil e a cultura ou a sociedade a um alvo vivo:

As técnicas viriam de outro planeta, do mundo das máquinas, frio, sem emoção, estranho a toda significação e qualquer valor humano, como uma certa tradição de pensamento tende a sugerir? Parece-me pelo contrário, que não somente as técnicas são imaginadas, fabricadas e reinterpretadas durante seu uso pelos homens, como também é o próprio uso intensivo de ferramentas que constitui a humanidade enquanto tal (junto com a linguagem e as instituições sociais complexas) (Lévy, 1999, p. 21).

Assim, ao invés de avaliar seus “impactos”, deve-se formular projetos capazes de explorar a virtualidade que ela transporta e decidir o que fazer dela. A rede, para Lévy, é universal sem totalidade, ou seja, a rede de computadores permite às pessoas conectadas construir e partilhar a inteligência coletiva sem se submeter a qualquer tipo de restrição político-ideológica. Partindo deste princípio, Lévy encara a internet como um agente humanizador (porque democratiza a informação) e humanitário (porque permite a valorização das competências individuais e a defesa dos interesses das minorias).

O autor cunhou a expressão “inteligência coletiva” para indicar que a internet possibilita a troca de ideias, torna possível compartilhar informações e interesses comuns, e estimula a criação de comunidades e conexões[1]. Para ele, a revolução informacional constitui, portanto, a surpreendente realização do objetivo marxista de apropriação dos meios de produção pelos próprios produtores. Ainda assim, pondera que nem a informática nem o ciberespaço resolvem, com sua existência, os principais problemas da vida em sociedade. De certa forma, ao romperem com os antigos, participam da criação de novos, menos visíveis e mais instáveis poderes.

Jean Baudrillard, pensador francês que decidiu não utilizar novas tecnologias como celular e computador, afirma que, na era da “chantagem da comunicação”, a internet, mais que qualquer outro meio de comunicação, nos torna escravos da comunicação forçada, a que chama de “êxtase da comunicação” (Baudrillard, 1998, p.12).

Toda essa interrogação sobre o virtual torna-se hoje ainda mais delicada e mais complexa por causa do extraordinário blefe que a cerca. O excesso de informação, o forcing publicitário e tecnológico; a mídia, o deslumbramento ou o pânico – tudo concorre para uma espécie de alucinação coletiva do virtual e de seus efeitos (Baudrillard, 1998, p. 12).

Para Baudrillard, a comunicação não passa de um grande fenômeno consumista, e que a massa avassaladora de informações torna tudo disperso, volatilizado. Numa perspectiva niilista, acredita que as gerações nascidas na era da internet não terão ideia do que possa existir fora do mundo virtual.

Arquiteto, urbanista e filósofo,  Paul Virilio é pessimista e vê na nossa sociedade um alto risco, que ele costuma chamar de “ditadura da velocidade”. Sua inquietação diz respeito ao fato de acreditar que, nos dias atuais, o “tempo real” depende cada vez menos do espaço.

Com esse FALSO DIA produzido pela iluminação das telecomunicações, levanta-se um sol artificial, uma iluminação de emergência que inaugura um novo tempo: TEMPO MUNDIAL em que a simultaneidade das ações logo supera seu caráter sucessório (Virilio, 1999, p. 20).

A reflexão inconformista de Virilio e o tom dramático de suas palavras refletem sua preocupação com a instantaneidade e a imediatez do mundo atual. O filósofo francês acredita que, com o desenvolvimento dos transportes e da tecnologia de comunicação instantânea, o mundo de hoje convive com uma poluição dromosférica, de dromos, corrida.

Em seu livro O espaço crítico, escrito em 1993, Virilio faz um tratado radical contra as novas tecnologias que, segundo ele, tornam os homens – antes “nômades” e eternos buscadores de novos terrenos – “sedentários”, cujo espaço é a cadeira em frente ao computador. Essa é uma de suas principais críticas ao mundo informatizado: a de que o espaço humano se reduziu, restringindo a mobilidade das pessoas.

Para Virilio, com a invenção da internet, as pessoas se comunicam à distância e em breve não haverá mais relevo, não haverá mais toque. Todos nós estamos fadados, segundo ele, à inércia da comunicação televisionada. Dessa forma, o que temos é que o debate em torno das potencialidades da internet é caracterizado pela polarização entre os que a veem como um “instrumento de libertação e aqueles que a percebem como um mecanismo de destruição do espaço público e de controle dos cidadãos pelo Estado e pelas empresas” (Sorj, 2003, p. 57).

São olhares diferentes e, na maior parte das vezes, antagônicos. As posições que se confrontam, na verdade, percorrem as limitações e possibilidades, ameaças e promessas das novas tecnologias. No esforço de compreender as complexas imbricações entre os limites e as potencialidades da internet, pode-se argumentar que as diferentes posições em torno de seus efeitos estão presentes na sociedade e que, dependendo do resultado dos confrontos sociais, podem tornar-se dominantes. Para Sorj (2003, p. 57), é possível encontrar, na atualidade, tanto o efeito de potencialização da vida democrática quanto a fragilização da privacidade e da liberdade pelo controle da informação.

Em suma, de modo geral, a perspectiva otimista reúne argumentos que afirmam que a partir da internet:

i) a informação não se encontra mais restrita aos grupos econômicos que tradicionalmente centralizavam os veículos de comunicação;

ii) é possível aumentar e modificar a participação dos cidadãos na gestão e nas decisões governamentais através de consulta permanente sobre os mais variados temas;

iii) O indivíduo passa a ter direito a voz, à informação e à discussão de sua realidade de maneira irrestrita e sem intermediários;

iv) o intercâmbio cultural pode acontecer com mais facilidade, propiciando o enriquecimento da experiência coletiva;

v) o trabalho de monitoramento e controle de epidemias tem se tornado mais fácil;

vi) tornou-se fácil o acesso a banco de dados, bibliotecas e todo tipo de informação.

Numa perspectiva pessimista, alinham-se os que consideram que:

i) apesar do potencial para explicitar a diversidade cultural, a massa de informações que circula na internet representa um reflexo da dominação cultural exercida pelos que detêm o poder econômico;

ii) a rede se expande velozmente nos países centrais, mas nos países periféricos, a participação ainda é pequena;

iii) Não há como esperar pluralidade se apenas uma parte da população participa desse processo – notadamente a parcela da população que está à frente dos processos de produção e difusão da informação;

iv) a internet destrói as relações face a face, único meio capaz de gerar grupos com memória histórica e base de sustentação de uma vida pública e de ação política constante;

v) o mundo virtual facilita o controle do Estado e das empresas sobre o cidadão e leva à destruição da liberdade e da privacidade.

Avançando um pouco mais na análise, observa-se em comum, nas duas vertentes, o reconhecimento de que os avanços tecnológicos estão empreendendo inéditas e profundas transformações em todas as dimensões da vida social. Entretanto, observa-se diferenças cruciais na forma de encarar tais transformações, particularmente no que diz respeito às suas implicações políticas e, portanto, às reverberações que provocam nas relações sociais de poder e dominação.

Política.com

Centrando sua análise justamente nos desdobramentos políticos do uso das novas tecnologias, Moraes (2001), de forma otimista, irá apontar a formação de um novo tipo de ativismo, o ativismo digital, que contemporaneamente galvaniza o esforço de criação de uma “contra-hegemonia”. Assim, utilizando o ferramental teórico de Gramsci, advoga que a internet e as redes sociais têm servido cada vez mais para a formatação, divulgação e expansão de demandas dos mais variados grupos sociais, à revelia do pensamento conservador, produzindo alternativas de futuro em relação aos segmentos sociais no poder em diversos países no mundo.

Nesse sentido, segundo esse autor, as TICs teriam uma potencialidade revolucionária, do ponto de vista político, o que poderia ser visualizado em sites mantidos por algumas organizações e movimentos – entre eles, os feministas. Assim, cita o coletivo feminista Penélopes, cuja líder Joëlle Palmieri, é incisiva em afirmar que é preciso deixar o campo do simples esforço de combater a desinformação ou a informação tendenciosa, para investir em novas formas de trocar e produzir novas ações comunicacionais e políticas.

O uso político das redes por parte de organizações dos mais diferentes tipos vem sendo apontado e reconhecido por vários estudos mais recentes. Assim, a internet vem servindo de base de comunicação mais rápida, de mobilização e de ampliação de visibilidade de movimentos sociais, tanto progressistas quanto conservadores. Nesse sentido, é um uso já comum das novas tecnologias tornar visível e atuante na rede uma presença pré-existente no “mundo real”, ou, através do meio digital, expandir o alcance de organizações sociais como partidos, sindicatos, movimentos sociais organizados com as mais diversas demandas.

Nesse caso, a aceleração do tempo de recepção da mensagem é o grande ganho. Desta perspectiva, a utilização da internet segue a tradição instrumental da busca de rapidez na propagação de conteúdos através de inovações tecnológicas, algo que na modernidade se constata desde Gutenberg e a possibilidade de impressão de textos, por exemplo. Agora, a rede é mais um meio a ser usado.

Porém, os desdobramentos do uso do digital vêm apontando para outras direções e outras formas de relação política com estes meios. Volta-se aqui aos acontecimentos de 2011 nas ruas de várias partes do mundo. Sim, desde então, é possível falar não numa morte do espaço público em favor da vida doméstica, ou de uma rede particular e individual, mas numa revitalização da conexão entre esfera pública e espaço público. Sem dúvida, isso reflete, em alguma medida, o uso da rede tal como acima descrito: manifestações convocadas por movimentos sociais organizados que enchem praças, ruas, avenidas.

Todavia é possível perceber também que as redes sociais cumprem o papel de convocar e compartilhar não apenas a partir de grupos, mas também – e em boa medida – a partir de indivíduos. A ideia de “comunidades com o mesmo interesse” nos faz lembrar das regiões morais da cidade de que nos falou Park (1967); nelas, se uniam indivíduos para exercitarem seus interesses em comum. Para além de organizações e coletivos, serão então neste caso as relações interpessoais que farão o papel de criar demandas, bandeiras, movimentos e manifestações. Nesta direção, passa-se a valorizar justamente a ausência de lideranças, de partidos ou grupos de suporte e apoio, e o uso dos meios digitais passa a espelhar o que muitos autores já analisaram como sendo a “crise da política institucional”: a desconfiança em relação a modelos tradicionais de se fazer política, como partidos, o sistema representativo, sindicatos e movimentos organizados. Neste caso, o meio não propaga o que já existe; cria uma outra forma, por vezes contrária, em outras complementar, em relação ao pré-existente. De toda forma, nestes dois casos, esta “ágora”, ou “esfera pública”, conformada digitalmente, se conecta ao espaço público, é a ele endereçada e nele se atualiza.

Outra forma de considerar a relação entre a política e o meio digital, porém, não tem a ver com esta conexão, mas sim com a configuração individual da política em nossos tempos. O tuitaço – uso do Twitter por militantes, no mesmo horário e durante determinado tempo, em favor de uma causa – tem como meta colocar determinado assunto entre os mais comentados do Twitter. Para isso, gira em torno de uma palavra ou expressão – as hashtags.  Essas palavras de ordem, criadas individual ou coletivamente, vão “tomando a rede” a partir da ação de cada internauta que a ela adere, comenta e compartilha.

A “invasão” de sites, páginas, perfis, blogs de organismos sociais, instituições governamentais e grandes corporações privadas também comunicam uma intenção muitas vezes não de coletivos, mas de indivíduos insatisfeitos. Isto pode se dar através de uma ação “hacker”[2], como a invasão pura e simples de páginas e compartilhamento/modificação de informações ali postadas, ou “derrubando” a página em questão a partir de uma sobrecarga forçada; ou também através do que se chama de “trollar”, ou seja, fazer piada ou ridicularizar alguém através de comentários na sua própria página ou em algum fórum. Dessas formas, desestabiliza-se direta e imediatamente a entidade que se quer atacar politicamente.

Investigando ainda o comportamento político na internet, pode-se citar o agenciamento “contratado” de indivíduos ou equipes por partidos, grupos, empresas e movimentos que se expressa através da constituição de perfis falsos nas redes sociais, que divulgam as ideias, campanhas, candidatos e produtos promovidos por seus financiadores.

Nesses sentidos, a “política na rede” não se destina a ocupar fisicamente o espaço público; descolam-se, nesse nível, a esfera pública e o espaço público, um amálgama, como vimos antes neste texto, bastante consolidado ao longo da história das sociedades complexas. Nesse amálgama, o papel dos meios de comunicação seria justamente este: ser o meio, não o motor ou o cenário da política.

Isso não significa, porém, separação total. Nem, ao contrário dos maus augúrios profetizados pelos apocalípticos digitais, o “fim do espaço público” e/ou da “esfera pública”. Mas é preciso pensar em novas configurações.

Nessa pista, é necessário também examinar algumas novidades nas próprias manifestações de rua. Em primeiro lugar, o caráter espetacular se expande, superenfatizado. São “selfies de manifestação” que inundam as redes sociais a cada novo ato público; são as fantasias, os cartazes feitos individualmente, os vídeos. Os indivíduos que aceitam ir às ruas não (apenas) seguem carros de som, palavras de ordem alheias ou faixas coletivas. Clamam por atenção “personalizada”. Também neste quadro de produção da manifestação “customizada”, fotos de amigos que se encontram nos atos também vão para a rede, e fortalecem as conexões entre as relações interpessoais e as manifestações políticas.

Selfie de manifestação
Selfie
de manifestação
(Fonte: http://farofafa.cartacapital.com.br/2015/03/16/15-de-marco-de-2015-dia-da-mentira)

A chamada “sociedade da informação” tem sido objeto de importantes investigações no mundo acadêmico e é caracterizada, por diversos autores, como a nova “ágora”, a ágora digital, onde a informação flui e está universalmente disponível. Mais recentemente, tentando pensar a conexão entre esfera e espaço públicos em tempos digitais, Castells (2013) indica a criação de um novo espaço público, um “espaço em rede, situado entre o digital e o urbano”, ou de um “espaço híbrido”, que se caracterizaria por uma comunicação autônoma entre os agentes sociais (p. 21). E sinaliza ainda a importância de situar o debate/disputa/conflito entre redes de poder e de contrapoder, sendo estes últimos responsáveis por agenciamentos e manifestações neste espaço híbrido. Sem dúvida, estas importantes observações precisam ser levadas em conta – tanto quanto seu contexto de produção, ou seja, o auge do movimento anticapitalista Indignados, na Espanha nativa do autor, e o viés entusiasta, estratégico e político que se reflete no próprio título de seu estudo – Redes de indignação e esperança.

Na Av. Rio Branco, Rio de Janeiro, faixa de manifestantes evidenciando a imbricação entre os espaços físico e digital.
Na Av. Rio Branco, Rio de Janeiro, faixa de manifestantes evidenciando a imbrica
ção entre os espaços físico e digital.

(Fonte: www.istoe.com.br)

Num pequeno texto de 2012, refletindo sobre a presença de mulheres nas manifestações de rua por todo o mundo a partir de 2011, Judith Butler acrescenta novos ingredientes ao debate, indicando a necessidade de se pensar os significados do “espaço público” e do político, não como algo já dado, mas antes como algo em construção e mais que isso, em disputa:

En los últimos meses, se han producido, una y otra vez, manifestaciones de masas en la calle, en la plaza, y aunque estas están, muy a menudo, motivadas por diferentes razones políticas, sucede algo que las hace parecerse; los cuerpos se juntan, se mueven y comunican, y reclaman un determinado espacio como espacio público. Ahora, sería más sencillo decir que estas manifestaciones o, de hecho, estos movimientos, se caracterizan por los cuerpos que se reúnen para hacer un reclamo en un espacio público, pero esa formulación supone que el espacio público está dado, que ya es y se reconoce como tal. Pasamos por alto un punto importante de las manifestaciones si no somos capaces de ver que el mismo carácter público del espacio está en disputa, e incluso que ese espacio es peleado cuando estas multitudes se reúnen (Butler, 2012, s/p.).

Um olhar mais distanciado no tempo, e pensando no contexto recente brasileiro das manifestações de 13 e de 15 de março – a favor e contra o governo atual do país – permite supor que tanto as redes de poder quanto as de contrapoder são menos uniformes e unívocas do que se poderia imaginar. Sim, o desenvolvimento dos meios de comunicação instituiu novas formas de ação, onde a interação se dissocia do ambiente físico, permitindo que os indivíduos dirijam suas ações para outros, dispersos no espaço e no tempo. O conjunto de atividades que acontece por intermédio da rede mundial de computadores, a internet aponta para novas formas de atividades econômicas, novos espaços sociais, novas solidariedades, mas também novas desigualdades e novos excluídos.

Retomando a questão inicial, pode-se dizer que o espaço público segue forte cenário de expressão – inclusive política – das cidades. Na mesma direção, portanto, é também possível afirmar que a conexão entre esfera pública e espaço público segue também constante e bastante presente no mundo inteiro. Entretanto, a esfera pública parece ter alcançado maior autonomia em relação ao seu desdobramento num espaço físico, através do uso dos meios digitais para sua manifestação. Outras formas de ação, e a ênfase em agentes individuais parecem caminhar também para o reconhecimento de alterações nesta esfera.

Quanto ao espaço público, este não parece ter sido tão afetado assim por essas transformações; suas mudanças parecem dizer mais respeito às formas de vigilância e segurança que perpassam cada vez mais o cotidiano das ruas – satélites, tecnologias de geolocalização como o GPS, câmeras, monitoramento por vídeo e outros meios, em tempo real – que, conectados ao aparato de segurança estatal, sinalizam o uso do digital como controle dos governos sobre o espaço a partir do uso disseminado de dispositivos de visibilidade (Bruno; Kanashiro; Firmino, 2010).

Muito mais que conclusões peremptórias, isto nos serve de estímulo para pensar em novas investigações. Citaremos apenas cinco questões que nos parecem fulcrais como novas pistas de análise de nossas inquietações iniciais. Primeira: em que medida se pode falar de espaço público e de esfera pública com o mesmo significado de antes. Segunda: quais as formas de pensar e agir politicamente em tempos digitais? Terceira: como pensar sobre a constituição de agentes coletivos a partir deste cenário tão propenso ao agente individual? Quarta: qual o novo papel reservado ao Estado em relação ao uso do espaço público nesta nova configuração “vigilante”? E quinta: que impactos podemos assinalar a partir daí tanto para a ação política coletiva quanto para os espaços onde vivem e transitam os diversos segmentos sociais que compõem as sociedades complexas contemporâneas?

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* Patrícia Silveira de Farias é antropóloga e professora adjunta da Escola de Serviço Social/UFRJ.

** Margarida Mussa Tavares Gomes é arquiteta, professora do curso de Arquitetura e Urbanismo do IFF/Campos e doutoranda em Urbanismo no PROURB/UFRJ.

 Referências

ABRAHÃO, Sérgio L. Espaço público: do urbano ao político. São Paulo: Fapesp/Annablume, 2008.

BAUDRILLARD, Jean. Internet ruma para seu fim. In: Folha de S. Paulo. São Paulo, 19 de fevereiro de 1998. Caderno Especial, p. Especial – 12 2/8398.

BRUNO, Fernanda; KANASHIRO, Marta; FIRMINO, Rodrigo (orgs.). Vigilância e visibilidade. Espaço, tecnologia e identificação. Porto Alegre (RS): Sulina, 2010.

BUTLER, Judith. La aliança de los cuerpos e la politica de la calle. Disponível em: http://www.debatefeminista.com/articulos.php?id_articulo=1408&id_volumen=111. Acesso em mar. 2015.

CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. Vol. I. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

CASTELLS, Manuel. Redes de indignação e de esperança. Movimentos sociais na era da internet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2013.

ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva, 1987.

GIDDENS, Anthony. As consequências da Modernidade. 2ª ed. São Paulo: Unesp, 1991.

GOFFMAN, Erving. Comportamento em lugares públicos. Petrópolis: Vozes, 2010.

HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural na esfera pública. Investigações sobre uma categoria da sociedade burguesa. São Paulo: Unesp, 2014.

HIMANEN, Pekka. The hacker ethic and the spirit of the information age. New York: Random House, 2001.

LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999.

MORAES, Dênis de. O ativismo digital. Disponível em: <http://www.bocc.ubi.pt/pag/moraes-denis-ativismo-digital.html>. 2001.

PARK, Robert. A cidade: sugestões para a investigação do comportamento humano no meio urbano.  In: Velho, Otávio (org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1967, p. 29-72.

SORJ, B. Brasil@povo.com A luta contra a desigualdade na Sociedade da Informação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

VIRILIO, Paul. A bomba informática. São Paulo: Estação Liberdade. 1999.

Notas

[1] Segundo Lévy, se nosso cérebro faz infinitas conexões que se intensificam à medida que envelhecemos, graças ao computador é possível integrar essa “constelação de neurônios” com a de milhões de outras pessoas, permitindo a criação de uma superinteligência coletiva.

[2] Compartilhamos da distinção entre hacker e cracker proposta pelo filósofo Pekka Himanen (2001). De modo sintético, pode-se dizer que o termo hacker diz respeito aos que possuem habilidades técnicas e disposição para a busca do livre conhecimento, enquanto o cracker faz uso de seus conhecimentos de informática para cometer delitos.

entrevista
Tempo de leitura estimado: 16 minutos

Daniel Miller: "A Antropologia Digital é o melhor caminho para entender a sociedade moderna"

Pauta e edição: Patrícia Farias, Ilana Strozenberg e Monica Machado
Entrevista: Monica Machado
Tradução: Pérola F. Pedro
Revisão da tradução: Patrícia Farias

Das diferenças entre a selfie em Trinidad e na Inglaterra à importância da Antropologia contemporânea para pensar um mundo crescentemente mediado por tecnologias digitais, o antropólogo Daniel Miller, professor da Universidade College London (UCL), no Reino Unido, condensa suas ideias e explica seu trabalho nesta entrevista. Referência obrigatória para qualquer pesquisa ou pesquisador de cultura material e Antropologia do Consumo, Miller participa da ideia de que as sociedades podem ser mais bem compreendidas a partir da análise de seus aspectos materiais, suas materialidades. Mais recentemente, incluiu em suas preocupações e pesquisas nessa área os significados e práticas dos diversos grupos sociais sobre os meios de comunicação digitais, dedicando-se aos estudos em Antropologia Digital. O criador do conceito de polymedia coordena hoje um ambicioso projeto de pesquisa sobre as tecnologias digitais e seus significados culturais em vários países do mundo, de Trinidad e Singapura ao Brasil. Aliás, Miller tem interesse especial no Brasil, que já visitou em algumas ocasiões, a trabalho, e onde tem um público crescentemente estimulado por seus estudos. Já publicou 38 livros, sendo suas mais recentes publicações Tales from Facebook (2011), Digital Anthropology (editado com Heather Horst, 2012) e Webcam (em parceria com Jolynna Sinanan, 2013). No Brasil, contamos apenas, por enquanto, com dois de seus livros disponíveis em português: Teoria das compras (2002) e Trecos, troços e coisas (2012). Mas esse quadro deve mudar, e rápido. Em conversa com a pesquisadora Monica Machado, Miller reafirma seu interesse em estreitar os laços com colaboradores brasileiros. Promete também um ano de muito trabalho com o projeto What they post (O que eles postam) que inclui a confecção de filmes curtas, plataformas interativas, cursos e atividades online, tudo sobre os usos dos meios digitais em vários lugares do mundo.

Daniel Miller

 Daniel Miller (Foto: divulgação)

 O que levou você e Heather A. Horst a propor o conceito de Antropologia Digital como uma nova subdisciplina e quais são as principais características dessa perspectiva, comparada a outras abordagens teóricas sobre as tecnologias digitais no campo de ciências sociais?

Daniel Miller Há dois elementos nessa questão. O primeiro é o que difere Antropologia Digital de outros estudos do digital e, o segundo, o que difere a Antropologia Digital de outros estudos na Antropologia. Eu, pessoalmente, fico um tanto ou quanto chocado do quão nossos estudos são diferentes da vasta maioria de outros estudos sobre a cultura digital. Recentemente li uma coletânea editada por uma das grandes instituições que se dedicam a estudos sobre a internet no Reino Unido, uma instituição que realmente respeito e considero academicamente séria e importante. Porém achei difícil fazer quaisquer anotações naquele livro que pudessem me ser úteis. A razão é que o livro consistia de muitas afirmações sobre “a internet” ou “o Twitter”,  ou então questões sobre orçamentos ou dados quantitativos. Mas toda vez que lia algo, ficava pensando: mas isso se mantém igual tanto para chineses quanto para brasileiros? Essa “internet” é a mesma para mulheres e homens, pessoas mais velhas e mais novas? Basicamente, quase toda afirmação do livro era uma generalização que eu não podia imaginar que fosse verdadeira. Esses estudos tendem a emular as pesquisas feitas pelas ciências naturais, como, por exemplo, em estudos da internet que procuram observar quantos amigos uma pessoa tem que ter numa rede social para ser considerada muito popular pelos outros. E, então, eles extrapolam disso para uma declaração geral sobre a amizade no Facebook. Mas eu sei que esse experimento daria um resultado diferente para qualquer outra população. Então, quase todos os estudos recorrentes sobre o uso de tecnologias digitais falham em mostrar o que nós sabemos sobre o uso da internet.

Por outro lado, há também diferenças entre nossos estudos em relação aos estudos antropológicos tradicionais. Uma das mais importantes é ideológica. Na Antropologia, frequentemente encontramos pesquisas onde há a romantização do “outro”, passando a vê-lo, assim como a suas sociedades, como mais autênticas, como comunidades, enquanto que há a caracterização de sociedades como aquela em que vivo como uma perda. Então o mundo online é visto como virtual, e o amigo do Facebook  não é visto como um amigo de verdade. Para mim é muito importante que a Antropologia trate  todas as sociedades como iguais. Para mim, Londres é tão autêntica quanto a Amazônia, e seus relacionamentos sociais tão significativos quanto. Fazer coisas online é parte e parcela do dia a dia. Nós não consideramos uma ligação telefônica como “virtual” só porque acontece por telefone. Em segundo lugar, os estudos tradicionais são frequentemente fixados em uma população particular e local. Mas quando estudei, por exemplo, a relação entre mães e filhos filipinos, uma das unidades de análise foram as conexões digitais transnacionais entre eles.

Porém esses são os pontos negativos. A força de nosso livro Antropologia Digital é que ele não duela com essas diferenças e sim se concentra em pensar adiante sobre elas, em como podemos teorizar esses novos ambientes digitais. Propomos seis perspectivas teóricas em nossa introdução para esse volume. Por exemplo, o jeito que o digital abrange tanto o particularismo quanto a universalidade da vida moderna; o modo com que definimos o digital usando o reducionismo do código binário; e como podemos refutar esta ideia de separação entre esses dois polos, mantendo nosso holismo metodológico.

Seu campo de estudo está cada vez mais voltado para os ambientes digitais. Quais são as maiores contribuições da pesquisa antropológica para entender a significação cultural desse comportamento e seus impactos individuais e sociais?

Daniel Miller O sexto conceito de nossos quadros teóricos na introdução de Antropologia Digital ocupa-se da materialidade de ambientes digitais. Insistindo que o digital é material, e não imaterial, podemos ver continuidades com os estudos da cultura material, que eram o foco anterior de meu trabalho, e cujo resumo pode ser encontrado no livro recentemente traduzido e agora publicado no Brasil, Trecos, troços e coisas (Zahar, 2014). Dentro desses estudos de cultura material, exploramos as muitas formas pelas quais a Antropologia pode ser positivamente empregada para o estudo do nosso mundo contemporâneo, incluindo ideias teóricas como a objetificação, mas também contendo as qualidades de nossa tradição etnográfica, e equilibrando o trabalho teórico com o humanismo de relatos etnográficos, descritos de forma suficientemente clara para nos ajudar a ver como a tecnologia digital está integrada no dia a dia de pessoas comuns, com as quais nos relacionamos e temos empatia em nosso trabalho.

Agora voltemos aos três termos a que você se referiu em sua primeira pergunta e ao triângulo dentro do qual a Antropologia funciona: o relacionamento entre o individual e o social, e a contínua importância da norma cultural. Nossos estudos sugerem que as características tradicionais do trabalho antropológico mantêm sua importância no estudo do digital. Por exemplo, estudos sociológicos implicam que o uso da internet tem levado a uma abordagem da rede mais focada no ego, e, ao mesmo tempo, com forças de estado e superestado cada vez mais poderosas, que constituem a nova infraestrutura digital. Essas questões são encontradas na escrita de pessoas como Castells e Wellman. Mas, em nossos estudos, descobrimos que a comunicação digital frequentemente ainda tem base nas unidades dos estudos da Antropologia mais tradicional. Assim, em nosso estudo na Índia, mostramos que a casta é central na forma como a rede social é usada, enquanto nos estudos na Turquia ela é mais tribal e, em outros estudos, tem mais base na família. Todos esses estudos antropológicos ligam o individual ao social em vez de vê-los como duas categorias opostas na vida.

O mesmo ocorre com a questão do significado cultural dos comportamentos. As tradições antropológicas sugerem que essa vida cultural é considerada como normativa, querendo dizer que as pessoas julgam umas às outras o tempo inteiro, sobre se um comportamento é adequado ou inadequado socialmente. Levando as pessoas a prestarem atenção ao fato de que seu comportamento será julgado socialmente, mantemos nossas próprias especificidades culturais; assim, algo que pode ser totalmente aceitável para uma família brasileira pode ser inaceitável para uma família turca. Os novos meios digitais não fazem nada para atenuar essa ênfase na norma. Na verdade, em alguns aspectos acentua esse processo. Nesse sentido, algo que notamos é que, nas redes sociais, muito de nosso comportamento fica mais visível e registrável, e é mais fácil fazer comentários explícitos sobre isso. Então, antes de qualquer coisa, as pessoas estão mais atentas do que nunca a respeito de suas ações e se são aceitáveis ou não, podendo isso ser julgado pela família, casta e comunidade.

No momento, você está trabalhando com um grupo de pesquisadores em Antropologia Digital que está fazendo etnografias em países diferentes como Índia, China, Brasil, Turquia, Trinidad, Filipinas e Inglaterra. Você percebe diferenças expressivas no trabalho de campo de tais pesquisadores referindo-se ao uso das redes sociais e ao modo com que as pessoas se engajam nessas redes? E similaridades? Você pode dizer, nesse ponto de sua pesquisa, que há um jeitinho brasileiro de lidar com as redes sociais?

Daniel Miller O argumento central do livro Tales from Facebook (Contos do Facebook) foi realmente demonstrar que não há uma coisa chamada “o” Facebook, assim como não há uma coisa como “a” internet. O Facebook tornou-se diferente em cada lugar que foi usado. Nesse livro, eu, na maior parte, usei histórias para demonstrar uma teoria. Mas, atualmente, estou finalizando com Jolyanna Sinanan um novo livro chamado What they post (O que eles postam). Enquanto Tales from Facebook não possuía nenhuma ilustração visual, esse livro tem foco na apresentação direta da iconografia, do componente visual do Facebook, em geral fotos e memes. Então podemos comparar diretamente o que as pessoas de fato postam, de tópicos que variam de cachorros e gatos a religião e festas. Também fizemos contas sistemáticas sobre quantas fotos de diferentes tópicos são achados em uma amostra de 50 perfis de Facebook de cada site. Isso nos permite mostrar muito claramente que o Facebook é de fato extremamente diferente, em se tratando, por exemplo, de posts ingleses e posts trinidadianos. E essas diferenças chegam muito perto do que se poderia considerar uma etnografia tradicional. Assim, os posts em inglês se alinham ao meio termo discreto, e evitam os extremos tanto em assuntos sérios como religião e política quanto nos transgressores, como o sexual. Em contraste, o foco dos Trinidadianos é um pouco como o retrato de Jorge Amado em Dona Flor e seus dois maridos, com muitos posts relacionados à sexualidade e ao carnaval, e muitos que são relacionados à política e à religião, mas muito pouco no meio termo. Então, sim, pode-se dizer que há diversos “jeitinhos brasileiros”, que mostram que a Bahia é muito mais como Trinidad do que como os posts ingleses.

O conceito de polymedia é uma importante contribuição teórica para o estudo de comunicação e mídias sociais. Você poderia, por favor, explicar o significado desse conceito e em quais contextos pode ser aplicado?

Daniel Miller Muitos dos meus estudos anteriores eram apenas sobre um novo meio, como o Facebook e a webcam. Mas cada vez mais eu percebi que isso falhava em se envolver com o núcleo abrangente da mídia digital moderna, o que nos traz de volta a nossas tradições holistas e estruturais. O uso e o significado de qualquer mídia tende a ser definido pelos contrastes e complementaridades com outras mídias. Então o Twitter torna-se classificado como informacional e associado com homens, enquanto o Instagram torna-se dominado por questões de visual e estilo, mais associadas com mulheres. O Snapchat é transitório, em oposição ao uso de longo termo do Facebook.

A chave para se pensar isso são as mudanças nas sociedades mais influentes. Antes, a razão das pessoas usarem essa ou outra mídia poderia ser traduzida por questões tais como custo ou acesso. Mas com pacotes de internet e smartphone, o custo foi relegado à infraestrutura. Assim, a decisão de qual mídia usar, se uma mensagem do Facebook, uma chamada pela webcam, um e-mail ou uma chamada de voz agora representa uma razão pessoal, algo que deve ser pensado e decidido. Então a escolha de mídia tornou-se parte da interação social em si mesma. Por conseguinte, isso implica uma ressocialização da própria mídia, já que agora a escolha da mídia é vista como uma ação social e moral. Eu acho que isso é verdade em todo lugar onde o custo é relegado à infraestrutura. No presente, isso não é verdade para a classe trabalhadora do Brasil, mas é para a classe média.

Em Tales from Facebook, você argumenta que o desempenho dos habitantes de Trinidad na mídia social revela muitos dos aspectos do seu contexto social e cultural. Em que medida, em seu ponto de vista, o uso da tecnologia digital contribuiu para as tensões entre culturas global e local?

Daniel Miller Deixe-me responder isso com apenas um exemplo fundamental. Eu acho que, de todos os novos gêneros digitais, o que as pessoas mais consideram como sinal de globalização instantânea talvez seja a selfie. Porque a selfie parece, a princípio, ser um exemplo extremamente claro de homogeneização global rápida. Em pouco espaço de tempo seguindo a expansão do smartphone, a selfie transformou-se numa imagem instantaneamente reconhecida pelo mundo. Eu não vejo razão para contrariar isso, no nível de que um objeto genérico chamado selfie mostra como quase instantaneamente um novo gênero pode ser global. Mas a Antropologia deve também sempre notar que o mesmo fenômeno geralmente fala ao outro lado dessa equação.  Voltando ao contraste entre a Inglaterra e Trinidad. A selfie mostra-se extremamente diferente em ambos os contextos. Por exemplo, a maior parte das selfies em nosso site britânico é de grupos de pessoas, enquanto em Trinidad são individuais. Em nossa amostra sistemática, 557 das amostras de Trinidad são individuais, enquanto apenas 138 das amostras inglesas apresentam o mesmo formato. Em contrapartida, 474 das amostras inglesas são de várias pessoas juntas, enquanto o mesmo acontece apenas com 116 das amostras de Trinidad. Na verdade, gêneros inteiros de selfie, como as selfie-sem-maquiagem e selfie-falsa-lésbica, são importantes na Inglaterra, mas inexistentes em Trinidad. Então não é realmente uma questão de mais global ou mais local, mas, como observei acima, nosso ponto teórico sobre tecnologias digitais é de que elas simultaneamente ampliam a possibilidade não só da universalidade como da particularidade.

ucl

Página do grupo Global Social Media Impact Study no site da UCL

 Por fim, você poderia nos dizer algo sobre seus novos projetos de pesquisa?

Daniel Miller Temos planos bem ambiciosos para nossa pesquisa atual em Mídia Social. Graças ao financiamento do Conselho Europeu de Pesquisa, tivemos financiamento para oito etnografias simultâneas, enquanto a Pontificia Universidad Catolica de Chile adicionou uma nona. Todas as pesquisas durarão 15 meses. Percebemos que o tema “Rede social” é potencialmente de grande interesse popular e poderia desempenhar um papel importante também em popularizar a disciplina de Antropologia social. Já estamos coordenando um blog no  http://blogs.ucl.ac.uk/global-social-media/ que tem vários seguidores e até, num determinado caso, tornou-se parte das notícias internacionais (em uma matéria sobre como os jovens não estão usando mais o Facebook).

Então queremos tentar criar um novo exemplo de Antropologia popular. Vemos isso como um site de três camadas, ou níveis. A camada de baixo é constituída de onze livros que já estamos escrevendo e que mostra nossos achados de pesquisa. A camada do meio será um curso universitário online. Pretendemos que tudo isso tenha acesso aberto e online, com avaliação grátis para todos. A camada de cima será aquela dirigida a um público maior, incluindo mais de cem curta-metragens que já fizemos, e um resumo de muitas das percepções e achados de nossos estudos que esperamos apresentar de forma infográfica e em animação, se conseguirmos arrecadar dinheiro. Haverá também outras formas dirigidas ao púbico em geral e possivelmente interativas. A intenção é que todo o material dessa camada seja traduzido para todas as línguas de nosso projeto, incluindo português, para o público brasileiro. Na verdade, estamos procurando por pessoas interessadas em nos ajudar com essas traduções e visualizações. Esperamos que tudo esteja preparado para ser ativado em um novo site chamado “Why they post” (Por que eles postam) em janeiro de 2016.

Sua primeiríssima pergunta foi sobre o que faz a Antropologia Digital diferente. Mas meu ponto central é que ela não só é diferente como também importante. Que ela é um caminho melhor do que os outros para entender a sociedade moderna. E se esse é o caso, e se isso é uma demonstração da força e significância da Antropologia por si só, então nós queremos proclamar isso alto o suficiente pelo mundo inteiro, tanto para a audiência não acadêmica quando para a acadêmica. Sentimos que não há razão que impeça a Antropologia de ser vista como instrumento chave em nossa autoeducação. Isso é o que esperamos realizar com nosso site. Mas há muito trabalho que precisará ser feito ao longo do ano para poder corresponder a tais expectativas.

 

Entrevista
Tempo de leitura estimado: 10 minutos

Os 10 anos da revista Vibrant por seu editor, Peter Fry

Entrevistadora: Patrícia Silveira de Farias*

Em 2004, quando as tecnologias digitais apenas começavam a virar febre no Brasil, a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) fez uma aposta ousada: lançou uma revista exclusivamente virtual. Era um outro caminho; na época, as revistas científicas seguiam a trilha mais confortável de criar uma versão digital para periódicos que seguiam sendo impressos. A ideia da então diretoria da ABA era fazer o conhecimento circular mais rápida e amplamente. Por isso mesmo, os editores optaram também por uma revista “poliglota”: artigos em português, inglês e francês de e sobre o Brasil. Hoje, com recém-completados 10 anos, a Vibrant (Virtual Brazilian Anthropology) acaba de lançar na rede mais um número, tem a mais alta avaliação dos periódicos da área e segue divulgando ensaios e estudos com temática brasileira – mas seus organizadores querem mais. Um de seus idealizadores e atual editor, o antropólogo Peter Fry, professor emérito da UFRJ, afirma que quer expandi-la ainda mais. Em conversa, Fry, autor de vários livros sobre sexualidade, relações raciais e estudos africanos, conta um pouco da trajetória da Vibrant e de suas conexões com o mundo digital, desde a importância do financiamento estatal para os periódicos brasileiros até o desafio que o excesso de informações acessíveis na rede apresenta para a investigação e disseminação do saber científico: “Em última instância, a confiança em relação a essas informações vai depender de fatores sociais”.

Peter Fry

Selfie de Peter Fry

A Vibrant comemorou 10 anos em 2014. Como foi a construção dessa iniciativa? Por que a aposta numa revista totalmente virtual?

Peter Fry Na verdade quem começou tudo foi Gustavo Lins Ribeiro, então presidente da ABA, especialista nos meandros da globalização e militante na concatenação das diversas antropologias nacionais. Não me lembro quem criou o nome, mas a ideia principal era poder compartilhar com o mundo não falante de português as pesquisas e o estado da arte da Antropologia brasileira, através de uma revista poliglota. E que isso fosse possível de ser desenvolvido e mantido dentro de uma realidade de poucos recursos. Não haveria como manter uma revista que fosse muito cara! Enfim, conversamos sobre essa ideia, e chegamos à conclusão de que uma revista virtual facilitaria o acesso e ao mesmo tempo baratearia os custos.

A Vibrant depende de financiamento do CNPq e eventuais contribuições da ABA, mas também conta com a ajuda de muitos sócios da Associação, sobretudo aqueles que assumem o papel de editores dos dossiês.  Nos primeiros números da revista, que foram editados por Omar Ribeiro Thomaz, dependemos de artigos de colegas convidados. Em seguida, publicamos textos recebidos em fluxo contínuo. Mas mesmo assim recebemos menos submissões do que imaginávamos. Além disso, eram sobre assuntos muito díspares. A partir do número 3, então, publicamos, além de textos recebidos em fluxo contínuo, dossiês aprovados pelo Conselho Editorial da revista.

Sendo uma revista da ABA, ela tem que necessariamente abraçar a diversidade de perspectivas e campos de estudos inerentes à Antropologia. As pessoas em geral me falam que estão satisfeitas com a revista do jeito que ela é, mas….eu não. Nem tanto. Eu queria que ela circulasse ainda mais internacionalmente. Ela precisa se inserir em mais redes, precisamos ir ainda mais longe. Torná-la mais conhecida, mais lida.

As novas tecnologias lançaram desafios para a Antropologia, assim como para todos os campos e pessoas, grupos. Uma das formas de lidar com elas é realmente usá-las para ampliar o acesso à informação, claro. Mas, na verdade, há uma série de meios envolvidos nisso, desde a webcam às redes sociais. Pensando em todo esse universo, o antropólogo Daniel Miller propõe o conceito de polymedia, para indicar a forma como estamos imersos e usamos vários meios de comunicação, ao mesmo tempo. E como eles participam da nossa vida diária. Então, não se trataria de como usamos a rede social, a internet, a webcam, mas como isso tudo faz parte do cenário. Como você lida com isso, pessoal e profissionalmente?

Peter Fry As redes sociais… eu tive muito pé atrás. Por exemplo, entrei, participei, depois me retirei… daí me coloquei de novo. Particularmente não gosto; acho muita exposição, estranho muito.

Sim, exposição e privacidade são um duo que estão em questão nas redes sociais. Fico pensando bastante no que falava Goffman sobre o gerenciamento da própria imagem; ao mesmo tempo em que você pode manipular esse self, controlá-lo mais que em outras formas de interação no tal tempo real, por exemplo, ao telefone, editando conversas e mostrando só o que deseja, você também está exposto a muito mais gente, formas de pensar etc.

Peter Fry Mas, profissionalmente, tenho grande curiosidade; examinei uma tese, na área da sexualidade, sobre o universo virtual gay. Foi um trabalho de Gilbran Teixeira, chamado Não sou nem curto prazer e conflito no universo do homoerotismo virtual. Claro, é um exemplo entre vários outros. Mas é muito interessante observar como um meio como esse, dos chamados “sites de relacionamentos”, tem um impacto na sociabilidade dos grupos – ou não. É preciso estudar mais por aí. Porque estamos habituados a pesquisar do ponto de vista dos grupos, mas é possível também investigar mais essas outras formas de interação, se e como elas mudam essas sociabilidades. Temos ainda muito o que saber por aí.

Em relação à Vibrant, novamente, como você a analisa dentro desse novo contexto da aposta na virtualidade como forma de interação entre pares?

Peter Fry A Vibrant ainda é “careta” em termos do mundo digital. Ela tem links, por exemplo, mas não permite comentários, o que não a torna muito interativa, pelo menos não em tempo real. Mas, enfim, isso também é um limite que é dado pelos próprios órgãos financiadores brasileiros. Você não pode fazer uma revista com comentários, que permita “interferências” por parte de seus leitores. E sua avaliação?

Bom, na verdade, também, ela não tem esse formato. Não é uma revista de comentários, não é um blog. Mas podemos explorar outras possibilidades de virtualidade. Tivemos um número, por exemplo, em que a “capa” era um vídeo etnográfico – muito bonito, por sinal. Também publicamos material audiovisual. Todos esses materiais, bem como os textos, são avaliados por pareceristas – enfim, nesse sentido é uma revista bem tradicional.

E ela não está mais só na virtualidade. Temos outras revistas de Antropologia, seguindo esse mesmo caminho. Ainda bem, eu acho.

O que imagina para o futuro da Vibrant e da Antropologia, a partir dessa inserção crescente do virtual nas nossas vidas?

Peter Fry Quando cheguei aqui, nos anos 1970, as bibliotecas eram poucas e fracas; apenas as pessoas mais abastadas tinham acesso aos livros e periódicos recentes. A informação circulava muito, muito pouco. Isto é, havia uma concentração do conhecimento. E isso muda muito nesse novo contexto. Já mudou. Foi uma revolução democrática, acho.

O futuro da comunicação acadêmica é virtual. Já é, de fato, mesmo se as grandes revistas estrangeiras ainda cobrem caro para o acesso. A política brasileira de apoiar revistas de acesso livre e aberto (Creative Commons) é da maior importância nesse sentido, pois aqui não se paga nada para ler toda a produção acadêmica em revistas nacionais. Tanto é que os produtores de revistas em papel acumulam estoques imensos que atraem poeira e estantes cada vez mais abarrotadas, inclusive.

Agora, claro, você tem acesso rápido à informação, o que não quer dizer necessariamente à informação útil; você na verdade tem acesso a todo tipo de informação. É realmente uma tabula rasa. Como selecionar?

Muito antes da popularização da internet, em 1965, Ely Devons e Max Gluckman organizaram uma genial coletânea, Closed systems and open minds: the limits of naïvety in Social Anthropology, na qual vários autores debateram sobre como lidar com as informações a que se tem acesso, principalmente em relação aos seus campos de pesquisa. Qual o limite entre o que você pode verificar, fazer, conhecer, por si mesmo, pelo trabalho de campo, por exemplo. E o que você vai ter de incorporar dessas novas informações que chegam de todo lado, realmente.

A confiança em relação a esse volume de informações vai depender de uma série de fatores sociais, que conferem autoridade de uma forma não randômica. E, em última instância, escapará da impessoalidade da internet, e até dos sofisticados sistemas de avaliação quantitativos, recaindo sobre as recomendações interpessoais. Talvez seja por isso que todas as revistas fazem questão de recrutar as personalidades mais reconhecidas em seu campo para compor os seus conselhos. A Vibrant não é exceção.

Mas, no fundo, somos apenas peças num mercado acadêmico cada vez maior e mais disperso.  Sobreviveremos se conseguirmos criar o que os marqueteiros chamam de fidelidade! A Vibrant escolheu como “nicho” a Antropologia brasileira em inglês e francês, sobretudo, na vã esperança de atingir os professores, alunos e pesquisadores interessados no Brasil que se encontram espalhados por todo o mundo; assim, ela está também criando e fomentando a nossa própria razão de existir. Mas não é assim com todas as mercadorias?

A diferença agora é que há um sistema centralizado de aferição das revistas onde a qualidade é medida quantitativamente através da computação do número de acessos e downloads, a frequência de citações etc. Além disso, grupos de sábios classificam as revistas (o sistema Qualis) que vai determinar o peso atribuído às publicações na hora de avaliar os programas de pós-graduação. Atualmente, a Vibrant é muito bem avaliada, com Qualis A internacional, é uma das mais lidas nacional e internacionalmente, em se tratando dessa área de conhecimento. Mas isso me preocupa bastante, porque o sistema centralizado adotado tende a criar uma hierarquia conservadora e permanente. Você vai me perdoar mais uma referência a um trabalho pioneiro publicado bem antes da invenção da internet. É um exemplo muito claro do “efeito de São Mateus”, identificado, descrito e analisado por Robert King Merton tantos anos atrás (no artigo “The Matthew effect in science”, publicado na edição 159 da revista Science, em 1968). Em Mateus 13: 12, lemos que Jesus falou as seguintes palavras: “Porque àquele que tem, se dará, e terá em abundância; mas àquele que não tem, até aquilo que tem lhe será tirado”.

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*Patrícia Silveira de Farias é antropóloga e professora adjunta da Escola de Serviço Social da UFRJ.

Tempo de leitura estimado: 3 minutos

Apresentação | Octavio Aragão

Existe a cultura de massa, com todas as típicas frivolidades e subtextos de dominação social e ideológicos, porém expressivos e eventualmente donos de um léxico original, e existem os guetos dentro dessa cultura, becos especializados que sofrem críticas tanto do chamado mainstream cultural quanto de sua versão mais, digamos, popularesca. Esses são os párias, os desonrados, os humilhados e ofendidos.

É nessa vila – sim, onde residem os “vilões” – que se localizam as histórias em quadrinhos e a ficção científica, dois filhotes da literatura (alguns diriam subliteratura) de gênero que despontou com a revolução industrial. A primeira, ao menos como a conhecemos no ocidente, descende dos panfletos irreverentes e críticos da sociedade impressos pelo holandês Rodolphe Töpffer e das cruéis narrativas infantis ilustradas pelo germânico Wilhelm Busch. A segunda nasce dos escritos da inglesa Mary Shelley e do norte-americano Edgar Allan Poe, onde a percepção das maravilhas da modernidade e o poético andavam de mãos dadas, provavelmente tremendo de medo, com o grotesco e o arabesco, e influenciando posteriormente autores como Júlio Verne e H. G. Wells.

Ambos os subgêneros sobreviveram aos pudicos anos de 1950 do século 20, durante os quais sofreram perseguições e censuras nos Estados Unidos e no Brasil, sedimentando a base do repúdio que até hoje persegue essas variantes culturais, desabonando suas claras qualidades artísticas e educacionais. Assim, se cada uma dessas manifestações – ou, melhor dizendo, “expressões” – sofre seu quinhão de preconceito, que se reflete até em termos econômicos, muitas vezes dificultando a sobrevivência de seus entusiastas e especialistas, obrigados a diversificar suas atividades para reforçar a féria, não causaria surpresa que, quando irmanadas, o repúdio duplicasse, principalmente quando ousam angariar algum grau de respeitabilidade, seja no mercado seja na academia.

Não é de se estranhar que ainda hoje, mesmo quando analisadas por críticos especializados em uma ou outra encarnação, as HQ de FC (sempre é bom recordar que os aficionados e profissionais da área se referem a seus objetos de culto pelas iniciais ou apelidos e abreviaturas como “gibis” e “Sci-Fi”) sejam relegados ao mais baixo dos círculos infernais da subcultura. E se isso acontece com a produção internacional, imagine com a incipiente ficção científica literária ou, principalmente, em quadrinhos produzida no Brasil.

Eis porque a Revista Z Cultural vem com a intenção de reunir vozes de áreas distintas para analisar conceitualmente não apenas os produtos de todas as vertentes – sejam ficção científica, narrativas pulp ou histórias em quadrinhos –, como também seus meios de distribuição e construção comercial no Brasil e nos Estados Unidos.

Octavio Aragão
Organizador

Tempo de leitura estimado: 25 minutos

Visões do futuro do pretérito: a ficção científica nos quadrinhos brasileiros no século 20 | Octavio Aragão*

Desenhando o futuro com ironia

A primeira história em quadrinhos a se assumir como uma peça de ficção científica foi a tira diária Buck Rogers, iniciada em 7 de janeiro de 1929, com base na novela Armageddon – 2419, de Philip F. Nowlan, publicada um ano antes no número de agosto da revista Amazing Stories (Duin, 1998, p. 62). Nowlan teria sido convencido a escrever o roteiro para os desenhos de Dick Calkins, e as aventuras de Anthony Rogers (cujo nome foi alterado para “Buck”) foram distribuídas para diversos jornais norte-americanos por intermédio do National Newspaper Service Syndicate, que tornou o personagem conhecido mundialmente.

Mas isso não significa que antes desse início oficioso, elementos de ficção científica não estivessem presentes em narrativas gráficas desde o século XIX. O holandês Rodolphe Töpffer, por exemplo, em uma de suas séries de litografias cômicas, utilizou conceitos como voo por intermédio de artefatos mecânicos (anteriormente vistos em diversas obras de protoficção científica, como A viagem à lua, de Cirano de Bergerac). A série em questão é Voyages et aventures du Docteur Festus, de 1829 (Horay, 1975, p. 5). O cenário dessas aventuras, diferentemente das outras séries de Töpffer, são países imaginários como Gouvernais, os reinos de Vireloup e de Roundeterre, e a narrativa lança mão de elementos insólitos, como a descoberta de um planeta e as diversas tentativas frustradas de se chegar até o astro por intermédio de um telescópio voador, cujo design antecipa os foguetes interplanetários de hoje, com divisões em estágios e três tripulantes.

Töpffer, assim como o alemão Wilhelm Busch, criador do poema humorístico ilustrado que contava as peripécias fantásticas dos irmãos Max und Moritz, de 1859, sucesso comercial que chegou a ser traduzido no Brasil por poetas como Olavo Bilac e Guilherme de Almeida (Fonseca, 1999, p. 96), aparentemente exerceram alguma influência sobre artistas europeus que trabalhavam no Brasil na mesma época. Um deles, Henrique Fleuiss, editor da Semana Illustrada, chegou a ser acusado de plagiar a obra de Busch (Cagnin, 1996, p. 6). O mais interessante é que o acusador era aquele que seria considerado por pesquisadores como Athos Eichler Cardoso e Moacy Cirne como o pioneiro dos quadrinhos brasileiros, Angelo Agostini (Aragão, 2002, p. 89).

Agostini parece estar correto. As semelhanças entre os dois trabalhos é gritante, mas talvez possamos considerar Fleuiss não como um plagiário, mas como alguém inteirado com o imaginário europeu de sua época. Agostini, por sua vez, era, apesar de italiano, por demais identificado com o Brasil para se permitir influências conscientes de artistas europeus. Ainda assim, apesar de valorizar de maneira roussoniana a raiz tríplice do brasileiro – com ênfase na suposta perfeição das “raças” que comporiam o mosaico nacional: o caucasiano, o negro e o índio – também demonstra familiaridade com preceitos positivistas que atribuem à tecnologia e ao avanço científico-racionalista as bases para a construção de uma identidade brasileira (Agostini, 1883, p. 4 e 5).

A modernidade sociopolítica na corte

Angelo Agostini contestava a paixão de Pedro II pela ciência, estabelecendo uma relação direta entre os interesses do monarca e a decadência das instituições públicas. Não é raro vermos nas charges de Agostini o imperador retratado como um velho distraído, com a cabeça nas nuvens e os olhos num telescópio enquanto roubalheiras campeavam a seu lado, ou dormindo no trono, com o jornal O Paíz esquecido ao colo.

A modernidade republicana paga um tributo às suas raízes. No Império, bancara a avestruz, para não se envolver na luta contra a escravidão, que poderia lhe custar o apoio dos fazendeiros republicanos escravistas. Agora, comprometida até a medula dos ossos com o poder oligárquico, revela-se incapaz de incorporar os principais valores gerados pelas sociedades então consideradas modernas: a igualdade e a democracia (Lemos, 2001, p. 31).

Robert Scholes (1975, p. 5) recorda que a literatura se separaria em mimesis e poiesis, ou cognição e sublimação, sendo que o elemento identificador das partes seria a representação temporal. Se o tema refletir o tempo presente, uma construção do real perceptível pelos sentidos, será mimesis/cognição. Porém, se não estabelecer uma relação clara com o “hoje”, se buscar algum tipo de “escapismo” ela será poiesis/sublimação. A ficção científica, por lidar quase sempre com projeções do futuro, seria poiesis.

Já a charge política, por tratar de um momento específico situado no presente, seria mimesis. O Cândido, de Voltaire, e o Gulliver, de Swift, são sátiras voltadas a seus respectivos tempos e especificam seus alvos, logo não seriam escapistas. A ficção científica de Júlio Verne raras vezes assume um viés de crítica do tempo presente (uma exceção seria Vinte mil léguas submarinas), optando pela extrapolação pura, pelo foco no “e se”, com forte intenção de embasar esses exercícios com plausibilidade. Nas charges que apresentam elementos de ficção científica há pouco de científico além de um verniz superficial, pois a intenção é sempre o momento presente. Auerbach postula que a utilização do humor já seria um limite para a representação do realismo, uma “limitação da consciência histórica” (2007, p. 29), então, a sátira, a crítica de costumes, a importância social das charges seria reduzida a mera anedota.

Um chargista, para atingir objetivos e significados mais complexos – inseridos no conceito de disjunção humorística, segundo Violette Morin –, precisaria utilizar instrumentos conhecidos, signos mais simples.

“ (…) A charge ofende, atiça ou revoluciona não apenas por generalizar imagens, mas por utilizar tais estereótipos como ponte para um sentido mais amplo, emocionando o público e, em consequência, sensibilizando – para o bem ou para o mal – algumas instituições públicas” (Aragão, 2006, p. 59).

Max Yantok (1881[?]-1964) e as viagens de Kaximbown

Max Yantok começou a carreira como ilustrador em O Tico-Tico e desenvolveu alguns plots inspirados em temas desenvolvidos por escritores de ficção científica, tais como os de seu amigo Júlio Verne e H. G. Wells. De acordo com Lima, a série de Yantok, iniciada por volta de 1910 no Tico-Tico, chama-se As Aventuras de Kachimbown, Pipoca, Pistolão e Sábado em Fantasiópolis, na Pandegolândia, na G’astronomia, no Pólo Norte ou no fundo do mar. Durou quatro décadas e, apesar de claramente baseada no sucesso das Viagens extraordinárias de Verne, foi especialmente no episódio do Pólo Norte, que a influência dos autores citados tornou-se clara. A descrição do Eixo da Terra, máquina subterrânea responsável pela rotação do planeta, e mantida pela “Companhia Elétrica da Rotação Terrestre” (Figura 2), apesar da superficialidade nas descrições científicas e da diferença de veículos – história em quadrinhos e romance –, remete a algumas passagens de Verne. Reproduzimos o trecho de Yantok e, em seguida, um extrato de Vinte mil léguas submarinas.

Figura 1 - Kachimbown e o Eixo da Terra. Yantok, M. 1912 - 1963, p. 1.263.
Figura 1 – Kachimbown e o Eixo da Terra. Yantok, M. 1912 – 1963, p. 1.263.

“De repente Kaximbown chegou à beira de um abismo, e ficou cheio de surpresa. Viu um enorme eixo movido a eletricidade, com tantos maquinismos e geografia, apesar disso, ele logo disse que se tratava do Eixo da Terra, que ele julgava fosse imaginário” (Yantok apud Lima, 1963, p. 1.261).

Acompanhei o Capitão Nemo pelos bailéus e cheguei ao centro da embarcação, onde havia uma espécie de poço aberto entre dois tapamentos impermeáveis. Uma escada de ferro, engatada nas paredes, levava à extremidade superior. (…) Essa sala das máquinas, muito bem iluminada, não media menos de vinte metros de comprimento e era naturalmente dividida em duas partes: na primeira estavam os elementos que produziam a eletricidade; na segunda o mecanismo que transmitia o movimento à hélice (Verne, 1869, p. 112 e 114).

Arriscamos que, além de Verne e Wells, pelo tom irônico e crítico à sociedade da época, a influência de Jonathan Swift no texto de Yantok parece-nos evidente. Longe de buscar a acuidade científica, Yantok estruturava suas aventuras sobre a mais desabrida fantasia, sempre com um pequeno enfoque satírico e contemporâneo, mas, como visava o público infantil, as críticas não eram tão ferinas. As viagens interplanetárias de Kaximbown em G’astronomia revelavam não as propriedades reais dos astros, mas mostravam Marte em forma de tomate, Saturno e a lua como queijos ou Vênus como uma bolacha, e as HQs sobre a vida dos micróbios eram crônicas da alta sociedade, com microorganismos frequentando saraus e “desvendando segredos de alcova de bactérias e protozoários”, publicadas na revista Dom Quixote. Apesar disso, o autor introduzia informações sobre astronomia, zoologia, física e náutica. Assim, o forte da ficção científica de Yantok são seus desenhos de engrenagens e mecanismos, que remetem às ilustrações de George Roux para as primeiras edições de Julio Verne. Outro exemplo de casamento entre mimesis, na construção satírica das narrativas, e poiesis, no escapismo infanto-juvenil.

Outro humorista que lançou mão da iconografia tecnológica para criticar o ambiente sociopolítico da década de 1930 foi Alexandre Ribeiro Marcondes Machado, o Juó Bananére. Satirista de grande sucesso desde 1911, Bananére foi considerado um precursor do Modernismo no Brasil (Bananére, 2001, p. 22). Em 1933, no Diário de Abax’o Piques, Bananére apropriou-se de um imaginário visual próximo da ficção científica e propôs trens acoplados a zeppelins e sistemas de embarque automatizados, com desenhos minuciosos que antecipavam os infográficos de hoje, como alternativas para fugir do pedágio cobrado pela Light (Saliba, 2002, p. 244). Quadrinhos e charges do início do século 20 passavam mais próximo da sátira que da narrativa de ficção científica, mas isso não foi empecilho para exercícios de antecipação científica, sempre visando à crítica social. Por conta dessa preferência e valorização crítica de uma narrativa focada no “hoje”, o florescer de uma ficção científica com texto e arte bem trabalhados teve de esperar até a década de 1960, quando surgiram as HQs de Flávio Colin, Nico Rosso, Mozart Couto e Shimamoto, que inseriam elementos de ficção científica em argumentos de horror ou produziam séries parecidas com aquelas publicadas pela revista francesa Metal Hurlant. Paralelas, de Couto, é um exemplo: foi influenciada pelos experimentos de quadrinistas franceses como Moebius, Bilal e Druillet. Antes, nos anos 1930 e 40, houve projetos pontuais voltados à aventura e com vago sabor de ficção científica nas páginas do Suplemento Juvenil, como As aventuras de Roberto Sorocaba, de Monteiro Filho, e O enigma das pedras vermelhas, de Fernando Dias da Silva, que também usavam trabalhos estrangeiros como base, no caso os americanos Milton Canniff e Alex Raymond (Cirne, 1990, p. 37), mas não sedimentaram a ficção científica nos quadrinhos brasileiros. Hoje, porém, trabalhos de Edgar Franco, Patati, Allan Alex, Manoel Magalhães e, com destaque, Luiz Gê e Laerte Coutinho parecem apontar para uma sedimentação do gênero no Brasil, com quadrinhos que se assumem como obras de ficção científica sem apelar para a sátira, clichês do cinema ou dos comics norte-americanos.

Figura 2 - Uma antecipação bem-humorada do que viria a ser uma ponte aérea Rio-São Paulo no início do século 20, por autor anônimo.
Figura 2 – Uma antecipação bem-humorada do que viria a ser uma ponte aérea Rio-São Paulo no início do século 20, por autor anônimo.

O território insustentável de Luiz Gê (1953-) e Laerte Coutinho (1951-)

Luiz Geraldo Ferreira Martins e Laerte Coutinho, mais conhecidos como Luiz Gê e Laerte, são dois expoentes de uma geração de quadrinistas que despontaram nas décadas de 1970 e 80, nas páginas de revistas underground como Balão, Circo e Chiclete com Banana, cujo repertório inclui o imaginário da ficção científica cinematográfica dentre vários elementos de cultura pop e erudita, literatura e música.

Duas obras merecem destaque: A insustentável leveza do ser, de Laerte, publicada no terceiro número da revista Circo, em 1987, e Perdidos no espaço, de Luiz Gê, parte do álbum Território de Bravos, de 1993. A primeira, uma história em seis páginas, se apropria do tema de um dos autores mais referendados da chamada New Wave of Science Fiction, Philip K. Dick, e narra a história de um rapaz que descobre que nada em seu mundo é real, nem o próprio mundo. Numa sucessão de reviravoltas amarradas por uma narrativa segura e traço forte, cartunesco, Laerte despe as camadas da vida de Renato, o protagonista, revelando os pais que são atores travestidos, a irmã garota de programa, a epiderme sintética sobre pele branca 1998, Truman Show, de Peter Weir, Renato descobre a natureza da realidade.

Cirne aponta essa história de Laerte como “uma estória que já nasceu antológica em sua crueza contra os valores da classe mérdia branquicela” (sic) (1990, p. 82). Ou seja, no caso de A insustentável leveza do ser, os elementos de ficção científica são indispensáveis para a compreensão e a força da narrativa, emprestando maturidade à trama.

Perdidos no Espaço relata as desventuras da tripulação de um veículo minúsculo em forma de artrópode que explora os cômodos de um apartamento como se esse fosse um território alienígena. Assim como o título da história de Laerte faz referência ao romance de Milan Kundera, Luiz Gê cita o bem-sucedido seriado de Irwin Allen, produzido de 1965 a 1968, mas a estrutura narrativa traça paralelos a outros seriados de grande popularidade, Land of Giants (1968-1970) e Star Trek (1966-1969). Aqui é o contraste entre as imagens expressionistas em preto, branco e retícula aplicada e o diálogo melodramático que desperta a estranheza, o sense of wonder desta peça de ficção científica hard. É interessante notar que os aspectos hard, ou seja, de acuidade científica, não estão no texto, mas nos desenhos de Gê, que constroem e embasam uma realidade crível, porém fantástica, muitas vezes recriando os ângulos de câmera em grande angular do seriado Land of Giants, e, em menor grau, da série em quadrinhos Little Nemo in Slumberland, de Winsor McCay. O diálogo pode ser interpretado como uma versão histérica de algumas passagens dos roteiros de Star Trek, no qual a tripulação tenta conter um tenente em pânico enquanto o comandante lida com as pressões do trabalho e as dificuldades do ambiente hostil. O fato de não vermos os tripulantes ou o rosto do homem que habita o apartamento cria um distanciamento que reitera a impressão de solidão e estranheza alienígena. Sem os desenhos, os diálogos seriam uma coleção de clichês. Sem os diálogos, os desenhos não passariam de um exercício técnico.

Ao tornar hostil um ambiente residencial contemporâneo por intermédio da alteração das proporções dos cenários e dos pontos de vista do leitor, Gê recria a sensação de horror de obras de Richard Matheson – The incredible Shrinking Man (1956) –, H. G. Wells – Food of the gods (1904) – e até do autor brasileiro Monteiro Lobato – A chave do tamanho (1942), mas, diferentemente desses autores, a opção por um desenho com arte final limpa, distante dos trabalhos dos ilustradores que trabalharam com Wells, Lobato e Matheson, como Alvin Correa, André LeBlanc e Steve Niles, traz uma originalidade que distancia Perdidos no espaço do pesadelo gótico geralmente associado a tais narrativas. Gê faz uma crítica da sociedade onde vive, inserindo de maneira diferenciada a nave microscópica no contexto icônico que Ginway chama de “The Icon of the Spaceship”: “Since the ship reflects the society from which it originates, its crew is often a mock family, or a reflection of domesticity and the home and, as I view it, a microcosm of the traditional Brazilian male-female relations” (Ginway, 2004, p. 70).

A nave em Perdidos no Espaço, diferente dos modelos de correção norte-americanos que apareciam nas séries televisivas nas quais Gê busca referência, refletiria a condição de uma família disfuncional, com o comandante/pai em crise de autoridade e o tenente/mãe tentando um motim. Dessa maneira, tanto a história de Luiz Gê quanto a de Laerte poderiam ser encaradas como análises críticas das instituições familiares, percepções diferenciadas da realidade e sátiras sociais construídas com o auxílio de uma linguagem de ficção científica. Pode-se dizer que, se retirássemos os elementos de ficção científica de seus enredos, comprometeríamos seu entendimento e fruição.

O território que esses artistas cartografam em seus quadrinhos é tão brasileiro em essência quanto aquele que Angelo Agostini e Max Yantok retratavam, mas com uma percepção globalizada que eleva a produção a um patamar quase poético, resultando em ficção científica de alta qualidade. Para eles, a ficção científica é mais um meio de contar histórias sobre uma realidade burguesa, que ganha expressividade e força poética pois, como sugere Jameson (2004, p. 288), representaria o sentido de construção de história da classe média, uma busca pelo passado e por vários futuros. Os quadrinhos de Luiz Gê, Laerte e outros, porém, ocupariam em termos ideológicos um espaço intermediário entre a cultura de massa e a das minorias, e talvez por isso seja insustentável comercialmente, partindo do pressuposto que não se admite completamente imerso em um ou em outro, sofrendo preconceitos de ambos. Hoje, finalmente, talvez sejam mimesis e poiesis.

Considerações finais: o futuro é sempre

A junção de duas formas de expressão vítimas de preconceito como a ficção científica e as histórias em quadrinhos é, no mínimo, um desabafo que pode ser interpretado como a vontade de afirmar “sei que não gostam do que falo, mas grito mesmo assim”. São raros os quadrinistas que, no Brasil, podem dizer com orgulho que sobrevivem de seus trabalhos, mas ao menos existem premiações nacionais, como o HQ Mix e o Prêmio Angelo Agostini. Infelizmente, a produção local de ficção científica sequer é reconhecida pelo público, resumindo-se a simples tempero em obras que não se comprometem com o gênero. Se isso pode ser um entrave para a profissionalização dos autores dedicados à ficção científica, também dá uma liberdade experimental que não seria possível caso o mercado estivesse sedimentado.

Mas não é apenas nas livrarias que os quadrinhos de ficção científica têm prosperado. A internet tem se mostrado um terreno fértil para as mais diversas manifestações e, de acordo com o pesquisador Scott McCloud, essa pode se tornar a maior vertente das HQs, provocando uma revolução nos hábitos de consumo e fruição: “When I talk about digital delivery, I’m referring to comics that travel as pure information from producer to reader” (McCloud, 2000, p. 163). Nesses casos, forma e função atingem patamares inimagináveis, com custo baixo, atingindo um público maior. Há vários exemplos e podemos começar com a iniciativa hard de Gian Danton e Jean Okada, Exploradores do Desconhecido, em http://exploradoresdodesconhecido.wordpress.com, onde a intenção é fazer divulgação científica por intermédio da ficção científica. O traço de Okada remonta à estética das décadas de 1950 e 60, criando um efeito semelhante ao que Jameson chama de “pós-nostalgia” (2004, p. 293). Outro grande desdobramento é a parceria entre empresas de viés tecnológico com iniciativas de quadrinhos, como ocorre com a Oi, especializada em telefonia digital, no site http://quadrinhos.oi.com.br/hqs-online.html. Das cinco séries publicadas, três são a respeito de super-heróis com base na ficção científica e o fato de uma empresa estar por trás dos projetos é uma garantia de remuneração para os autores envolvidos. Outro expoente é Edgar Franco, autor que compõe pequenas histórias de ficção científica psicodélicas e art nouveau, também na linha de franceses como Duillet e Caza, em http://www.ritualart.net/ritual4b.htm.

Nos últimos dois anos, acompanhando a expansão do mercado nas livrarias e o fortalecimento de novas editoras especializadas, como Zarabatana, Aeroplano, Nemo, Barba Negra e diversas outras, surgiu um número maior de álbuns em quadrinhos dedicados à ficção científica. Destacaremos três dos lançamentos mais recentes, a saber, Astronauta Magnetar, de Danilo Beyruth, pela Panini Comics, em 2012, O Coronel, da dupla Valladão e Magalhães, lançado pela Nemo em 2013, e Tune 8, série independente de Rafael Albuquerque, inicialmente publicado on-line no site www.tune-8.com e depois em fascículos, pelo próprio autor  devido às suas particularidades e características diferenciadas dentro do que vinha sendo produzido no Brasil até então.

A escolha desses três exemplos é motivada pelas transformações que as obras representam na maneira como se passou a produzir e consumir HQs no Brasil e, em consequência, como a ficção científica, pegando carona no bom momento comercial, tornou-se uma possibilidade narrativa mais acessível a um público maior e envolvido com as novas formas de divulgação e distribuição tornadas possíveis pelo advento e popularização da Internet.

Astronauta Magnetar, uma ficção científica hard tradicional, com forte influência dos textos de Arthur C. Clarke e que busca adequar a narrativa das HQs a uma leitura diferenciada do tempo vivido pelo protagonista, é na verdade um projeto potencialmente arriscado que acabou se revelando um sucesso editorial do mais famoso quadrinista brasileiro, Maurício de Sousa.

Em 7 de dezembro de 2011, um mês depois de seu lançamento, a Panini Comics divulgou que a primeira tiragem da versão em capa dura do álbum esgotou e ganharia reimpressão. A versão em capa dura, para livrarias, era mais cara (R$ 29,90), mas havia outra versão, mais acessível (R$ 19,90) em capa cartonada. Ainda assim, a edição em capa dura esgotou mais rápido. A Panini e a Maurício de Sousa Produções não divulgaram os números da tiragem inicial ou da reimpressão, mas o feito é digno de nota. Os motivos para tal sucesso derivam de uma série de decisões e projetos editoriais que, elencados em sequência, chamaram a atenção do público, criando uma grande expectativa em torno da primeira graphic novel de uma série que visava recriar os populares personagens infantis de Maurício de Sousa em cenários e situações diferentes.

A escolha do artista Danilo Beyruth, recentemente laureado pelo álbum Bando de Dois, para ilustrar a história do Astronauta perdido no espaço revelou-se acertada. Lançando mão de recursos diagramáticos e páginas com experimentos radicais, Beyruth emprestou maturidade e relevo psicológico a um personagem secundário, que nunca foi título principal de nenhuma revista. Leitor assumido de escritores da Golden Age e da New Wave da ficção científica norte americana, como Isaac Asimov, Arthur Clarke, Philip K. Dick e Frank Herbert, o ilustrador – que também é o roteirista do álbum – recheia as 74 páginas com imagens típicas desses autores, tais como estrelas que se apagam (possível referência a Os nove bilhões de nomes de Deus, conto de Clarke), o uniforme/escafandro do Astronauta (que remete a 2001, filme de Kubrick baseado em conto de Clarke), o protagonista solitário, paranóico no espaço (citação a diversos contos de Philip K. Dick, onde a realidade se confunde com a loucura e a paranoia toma conta de espaçonautas solitários) e a transcendência mística através da memória e da alucinação (marca de Duna, obra seminal de Herbert).

Como se pode perceber, trata-se, ao menos no que diz respeito aos detalhes da trama, de um roteiro mais complexo do que os tradicionalmente desenvolvidos para qualquer história da Maurício de Sousa Produções, cheio de termos e conceitos cientificistas, além de um certo didatismo quando elementos de astronomia, como o próprio Magnetar do título, vêm à tona. Tradicionalmente considerado um gênero “difícil” e de alcance limitado, o álbum foi distribuído em bancas de jornal, a um preço acessível, apostando na visibilidade e na exposição maciça. O público respondeu positivamente e a HQ tornou-se um raro exemplo de sucesso de comercial e de crítica, provando que, ao contrário do que se acreditava, em condições ideais é possível vender ficção científica no Brasil.

O caso de O Coronel é um pouco diferente, mas entrelaçado em diversos pontos com Magnetar. Originalmente concebido como uma HQ de cinco páginas para a 1ª Bienal de Quadrinhos do Rio de Janeiro, de 1992, a história do soldado colonizador de outro planeta dominado pela consciência da arma que carrega foi adequada para constar da antologia MSP50, um projeto comemorativo anterior da Maurício de Sousa Produções, que, no ano do cinquentenário do quadrinista-empresário, oferecia ao público cinquenta HQs desenvolvidas por um igual número de artistas reunidas em um álbum.  Nessa segunda encarnação da história o astronauta genérico torna-se O Astronauta de Maurício de Sousa, ligeiramente alterado graficamente para fazer uma citação gráfica ao Tintin, personagem do belga Hergé. O cerne do conto gráfico, porém, que se manteve intacto na transposição, foi ampliado e ganhou contornos de fábula, tornando-se uma parábola sobre as relações entre pais e filhos.

É interessante perceber que, das três HQs selecionadas, duas tenham relação direta com o mesmo personagem, o que talvez represente uma identificação com tópicos realçados por Ginway e tratados neste artigo, mais especificamente a nave espacial e o mundo devastado.

Parece-nos então que, diante dessa nova vertente, os quadrinhos de ficção científica no Brasil tendem a uma maior visibilidade e a se estabelecerem como uma vertente expressiva. Se por um lado podem escorregar em eventuais reinvenções da roda ao ignorar o material produzido anteriormente, por outro trilham caminhos tecnológicos e econômicos jamais imaginados por seus antecessores, o que pode resultar em novas relações, novos temas e, principalmente, novos mundos.


*Octavio Aragão é doutor e mestre em Artes Visuais pela EBA-UFRJ, onde também se graduou em Comunicação Visual. Pós-graduado pelo PACC/UFRJ, é professor adjunto na ECO-UFRJ onde ministra as cadeiras de Jornalismo Gráfico 1 e 2 desde 2009, além de ser Coordenador de Intercâmbio. É autor dos livros A mão que cria (2006), Reis de todos os mundos possíveis (2013) e coautor de Imaginário brasileiro e zonas periféricas (2006).

Referências

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Tempo de leitura estimado: 27 minutos

El Nestornauta: a HQ El Eternauta e o imaginário nacionalista na Argentina kirchnerista | Amaury Fernandes*

Montoneras, Peronismo, Montoneros, Kirchnerismo

(…) se os signos não enganam, todo o aparato filosófico começa a ser uma casca vazia de vida
(Simmel, 2008, p. 219).

O peronismo não é compreensível para alguém que não seja peronista. A frase anterior pode parecer um absurdo do ponto de vista da ciência política, mas sob a ótica peronista é a mais acabada das verdades. No entanto, por menos que creiam os peronistas, como todo movimento político o peronismo é compreensível e passível de análise. Neste ensaio é explorado um dos aspectos mais marcantes desse movimento: a relação entre o peronismo e a cultura de massas. O objeto de estudo é a apropriação do personagem El Eternauta pelo kirchnerismo1 na criação da figura de El Nestornauta. São exploradas também as mudanças na representação do herói Juan Salvo nas duas HQs de El Eternauta, que propiciam essa apropriação.

O peronismo nasce marcado por um aspecto típico da cultura política argentina: o personalismo. Na longa guerra civil que ocorre após a libertação do domínio Espanhol os diferentes caudilhos disputam o poder em uma luta na qual há largo emprego da mais popular formação militar argentina: la montonera.

O individualismo constituía sua essência, o cavalo sua arma exclusiva, o pampa imenso seu teatro. (…) Massas imensas de ginetes que vagam pelo deserto, oferecendo combate às forças disciplinadas das cidades (…), presentes sempre, intangíveis por sua falta de coesão, débeis no combate, porém fortes e invencíveis em uma longa campanha, na qual, ao fim, a força organizada, o exército, sucumbe dizimado pelos encontros parciais, as surpresas, a fadiga, a extenuação. A montonera, tal como apareceu nos primeiros dias da república sob as ordens de Artigas, já apresentou esse caráter de ferocidade brutal e esse espírito terrorista (Sarmiento, 2010, p. 59).

A montonera, tropa de cavaleiros hábeis na guerra e incivilizados nas maneiras, marca a formação de tropas militares das primeiras disputas na Argentina. Lideradas por nomes como Artigas, López, Ibarra, Facundo e Rosas, essas massas de ginetes determinam a forma de disputa pelo poder que se instaura no começo da nação, a disputa do poder pela força e o culto ao líder que engendra o personalismo platino.

Fundamentado na liderança, na força política e nas formulações ideológicas de Juan Domingo Perón, e extremamente vinculado em seu imaginário à figura de Eva Perón, o peronismo nasce com as marcas tradicionais da política argentina: um forte personalismo e a constante tentativa de imposição de seus princípios. Sua doutrina é o justicialismo e, segundo os escritos de Perón (2007), representa uma terceira posição do espectro político, distante tanto do capitalismo como do comunismo. Do ponto de vista da tradicional tipificação política entre direita e esquerda o peronismo pode ser catalogado como um projeto político de centro, com movimentos pendulares ao longo da sua história, tendendo ora à direita, ora à esquerda, em função dos fatos históricos com os quais se confronta e dos apoios que encontra na sociedade argentina.

Perón é o primeiro político argentino a efetivamente compreender o papel que a comunicação de massa exerce nas sociedades modernas. Investe pesadamente na construção de um imaginário que vincule o peronismo, e sua inicial proximidade com a doutrina social-cristã, com aspectos como valorização da família, justiça social, distribuição de renda, melhora das condições de trabalho e do operariado e construção de um país rico economicamente e de uma sociedade sem conflitos de classes.

A tendência ao movimento pendular na política faz com que o peronismo seja complexo em seus aspectos ideológicos, e que seu percurso histórico como movimento político seja marcado por oscilações quase incompreensíveis para quem o estuda a partir de uma visão mais ortodoxa e com pouco conhecimento da história argentina.

O peronismo é dividido em períodos de acordo com a situação política do país. Surgido dos eventos de 17 de outubro de 19452, o chamado peronismo clássico compreende os dois primeiros mandatos presidenciais de Perón e se encerra com a sua deposição em 1955. Nesse período a progressiva perda de apoio dos oficiais militares, do empresariado e das antigas lideranças políticas leva o peronismo a uma aproximação das classes populares e do operariado. Os discursos em tom inflamado de Eva Perón contra as oligarquias e os “vendepátrias”, seu acercamento com a população mais carente, somados à perda de apoio de Perón entre as elites, levam o governo peronista a um movimento pendular à esquerda, com ações de cunho mais populistas. Desse quadro resulta um processo de crise, agravada pelos aspectos da economia mundial após 1950, que deixa de favorecer ao tipo de pauta de exportação da Argentina e dificulta o ingresso de recursos no país.

Em 1955 ocorre um golpe de Estado, há a proscrição legal do justicialismo e o peronismo passa por um período de mais de 18 anos de ilegalidade. Essa fase se encerra com o retorno de Perón em 1973 e sua terceira eleição para a presidência da Argentina, o que configura um segundo período de exercício do poder para o general. A aproximação progressiva com os seguimentos mais conservadores do peronismo leva a uma ruptura no movimento e a criação de um conflito com a chamada esquerda peronista, com a qual se alinha Oesterheld. A morte de Perón em 1974 leva ao poder sua esposa María Estela Martínez de Perón e o agravamento da crise política iniciada ainda com Perón vivo e os confrontos entre grupos armados de extrema direita e extrema esquerda levam a Argentina a um golpe de Estado e a instauração de novo período de ditadura militar.

É entre meados dos anos 1960 até a luta armada de enfrentamento com a ditadura militar liderada pelo general Jorge Videla que a organização Montoneros3 atua. Inicialmente fundada na ideologia social-cristã, aos poucos se converte em um grupo marxista que prega o socialismo nacional, teoria política própria da chamada esquerda peronista que mescla aspectos do socialismo com o justicialismo e as características específicas do processo sócio-político argentino. Com o afastamento de Perón de sua “juventude maravilhosa”4 o grupo segue se autoidentificando como peronista, mas passa ao confronto armado, intensificando as contradições ideológicas internas e se aproximando cada vez mais do socialismo utópico, que acredita na luta armada como único caminho para a resolução da luta de classes.

Devido ao forte personalismo da política argentina, no peronismo as correntes internas são identificadas através do nome de seus principais expoentes. Se, em seu começo o peronismo é profundamente identificado com as figuras de Perón e Evita, na década de 1970 essas mesmas figuras identificam dois ramos internos, com a imagem de Perón mais colada à fração conservadora e Evita identificada como o grande símbolo da denominada esquerda peronista, que se autoidentifica como evitista.

Nos anos 1990 o peronismo ressurge vinculado à figura de Carlos Menem e o menemismo faz com que o peronismo seja vinculado às políticas neoliberais que grassam no cenário político mundial da época. O começo do século XXI na Argentina é marcado por uma profunda crise econômica, política e social, resultante do fracasso das políticas econômicas do menemismo e da inabilidade político-administrativa do seu sucessor, Fernando de la Rúa. Em um breve intervalo a Argentina tem cinco presidentes diferentes, terminando o processo na assunção do poder por Eduardo Duhalde, um peronista que consegue estabilizar a política e a economia do país.

Nas eleições de 2003 o peronismo apresenta várias candidaturas e um candidato que parecia improvável em um primeiro momento se torna presidente da Argentina: Néstor Kirchner ganha o primeiro turno das eleições com 22% dos votos e, em função das pesquisas de opinião apontarem sua vitória com ampla margem no segundo turno, a desistência de Carlos Menem do pleito leva Kirchner à vitória definitiva.

O governo kirchnerista pode ser analisado como um prosseguimento da tradição personalista da política argentina. Constrói sua representação política ligada ao pensamento da juventude peronista dos anos 1970. O discurso oficial e toda a prática comunicacional do governo argentino de Néstor Kirchner e, posteriormente, de sua esposa Cristina Fernández de Kirchner é amparada na visualidade do peronismo clássico e da juventude peronista setentista5. É dentro da construção desse imaginário político e através das formas de representação identitária na sociedade de massas que surge a possibilidade da sobreposição entre a figura do presidente e a do herói da história em quadrinhos.

El viejo, sus historietas y su amigo

Héctor Germán Oesterheld nasce em Buenos Aires no ano de 1919. Apesar de ter formação profissional em geologia é a escrita que o atrai, publica contos infantis e histórias em quadrinhos desde o começo dos anos 1950. Já com histórias em parceiras com Paul Campani, Solano López e Hugo Pratt, em 1957 Oesterheld funda a editora Frontera e passa a publicar seus trabalhos nas revistas Hora Cero e Frontera. É através das páginas de Hora Cero que é publicada a primeira história de El Eternauta, entre 1957 e 1959, exatamente no momento de maior intensidade da repressão ao peronismo pela ditadura liderada pelo general Pedro Eugenio Aramburu.

Em fins dos anos 1960, Oesterheld se compromete politicamente ainda mais com os movimentos da chamada esquerda peronista. Escreve, junto com Alberto e Enrique Breccia, a biografia de Ernesto Guevara, um roteiro para filmobiografia de Eva Perón, faz os roteiros da história em quadrinhos La guerra de los Antartes, publicada no jornal Noticias, e a série Latinoamerican y el imperialismo, esta publicada nas páginas do semanário montonero El Descamisado.

A década de 1970 reserva para Oesterheld um roteiro nada amistoso. Na ilegalidade desde meados da década, o roteirista se isola em um refúgio no rio Tigre. Escreve o roteiro de El Eternauta II (ou El Eternauta segunda parte) entre 1976 e meados de 1977. Em função das atividades políticas da família, os órgãos de repressão e grupos paramilitares promovem o assassinato ou a desaparição de três de suas filhas entre junho e novembro de 1976. Além disso, como duas delas estavam grávidas, há o desaparecimento de dois de seus netos. Oesterheld é igualmente sequestrado e ilegalmente detido em abril de 1977. Há registros de suas passagens pelos centros ilegais de detenção do Campo de Mayo, “El Vesubio” e “El Sheraton”. Dados obtidos pela Conadep (Comissão Nacional de Desaparição de Pessoas) asseguram que o escritor é visto vivo em janeiro de 1978, após essa data não há registros relativos ao escritor e seus restos mortais seguem desaparecidos. A revista Skorpio publica as tiras da história entre dezembro de 1976 e abril de 1978.

O coautor de El Eternauta, Francisco Solano López nasce em Buenos Aires em 1928 e começa a desenhar profissionalmente no começo dos anos 1950. Desenha para a editora Frontera Rolo el marciano adoptivo, Amapola negra e Ernie Pike, entre outros. Em 1957 e em 1976 é o desenhista responsável por dar forma visual ao roteiro de Oesterheld para El Eternauta. Seu filho Gabriel é ilegalmente detido pelos órgãos de repressão em meados de 1977. Em função de suas relações pessoais, Francisco Solano López consegue sua libertação e a família segue para o exílio na Espanha, onde o desenhista finaliza as artes da segunda história.

El Eternauta e o peronismo clássico

O imaginário do peronismo é perpassado por referências contraditórias. Primeiro movimento político que sabe como lidar com a comunicação em uma sociedade de massas, o peronismo constrói todo um discurso para difundir suas ideias. Perón e Evita elaboram formas de argumentação para validar o imaginário constituído a partir de uma interpretação da realidade histórica e política da Argentina: o justicialismo desenvolvido por Perón.

Nessa construção de imaginário se desdobra uma identidade nacional forte, calcada no discurso de uma sociedade sem disputas entre suas classes, e completamente com base na intermediação do Estado para resolução de quaisquer conflitos, sempre em nome do bem comum e da vocação pacífica do povo argentino (Perón, 2007). A produção da comunicação do Estado é centralizada e fortemente organizada no sentido de influir na compreensão da realidade pelo povo argentino de acordo com a ideologia justicialista.

A necessidade de estabelecer uma doutrina única, gerada desde o Estado e que fixaria os objetivos da nação toda, se converteria durante o governo de Perón em um dos componentes cruciais do discurso peronista. O Estado deveria inculcar essa doutrina ao ponto de convertê-la em uma espécie de “marco mental coletivo” através do qual a realidade deveria ser interpretada. A doutrina devia unificar as leituras da realidade e, ao mesmo tempo, fixar claramente os limites do dissenso (Plotkin, 1994, p. 45).

Os papéis de gênero igualmente estão claramente definidos. Aos homens cabe prover o lar e às mulheres os cuidados com a casa e os filhos. Qualquer complementação de renda que as mulheres possam obter deve ser fruto de trabalhos que não a afastem fisicamente do lar. “E cada dia o mundo necessita em realidade de mais lares e, para isso, mais mulheres dispostas a cumprir bem seu destino e sua missão” (Perón, 2010, p. 137).

No campo visual o discurso desenvolvido é curiosamente vinculado ao imaginário socialista e a do New Deal, apesar de erroneamente se vincular o peronismo com os movimentos fascistas em função dos anos de formação de Perón na Itália de Mussolini.

Enquanto a propaganda nazista e fascista apelava às construções ideais míticas com o fim de legitimar a nova base das grandes tradições nacionais, a gráfica soviética e a do New Deal, assim como a do peronismo na década seguinte, glorificavam o presente superador do passado de atraso tecnológico e desigualdade social, mediante um clichê que é comum aos três casos. Representados conjuntamente e sem distinções hierárquicas, o operário fabril e o camponês referiam simultaneamente às categorias de “trabalhador” e “Nação” (Gené, 2005, p. 96).

O enfrentamento com o imperialismo, o desenvolvimento de uma indústria de capital argentino e a independência econômica da nação são as metas propugnadas, a família é a base de tudo, e os descamisados de Evita são convertidos em um exército a serviço dos propósitos políticos do justicialismo e do bem da Argentina, e de Perón.

Com a morte de Evita, em 1952, o regime sofre um profundo baque. Perde não só sua primeira dama, mas aquela que era a figura de proa e o motor da política assistencialista do Estado. Em 1955, muito em função das contradições internas, mas também em função da mudança do quadro econômico externo, Perón é derrubado do poder por um golpe de Estado. A violência da oposição anti-peronista chega ao ponto da promulgação de leis de desperonização da Argentina. Uma verdadeira fúria iconoclasta dos golpistas promove a destruição maciça de imagens e signos peronistas. A resistência dos peronistas passa ao campo do sutil, e é nesse quadro que a primeira historia de El Eternauta se enquadra.

Juan Salvo é constituído como uma referência ao homem peronista típico, chefe de família, trabalhador e com um pensamento voltado às ações empreendedoras que levariam a Argentina a se consolidar como uma sociedade justa, livre e independente. Ele é um profissional que constrói sua pequena “fábrica de transformadores”, o que permite que se conceda “aquele tipo de prazeres simples”, e este é seu horizonte.

Figura 1 – El Eternauta (Oesterheld, Lopéz, 2008, p. 90).
Figura 1 El Eternauta (Oesterheld, Lopéz, 2008, p. 90).

Na primeira história, o heroísmo é de certa forma coletivizado. Se cabe a Juan Salvo um protagonismo outros personagens (como Favalli ou Franco) assumem atitudes similares. Ao final, quando se vê só, após a queda de seus amigos, é à proteção da família que Juan se volta, o mesmo que ele busca em desespero no começo da história. Ao final do relato retorna aos braços de Elena e de Marta e é apagado de sua memória tudo o que viveu.

Nesse quadro a narrativa de cunho peronista se dilui em uma alegoria humanista, típica do próprio movimento, e o personagem assume uma postura coletivista, de um homem que, apesar de viver uma incrível aventura, retorna à sua função social de chefe de família e se esquece de sua participação direta na defesa da sociedade espelhando um anonimato que dissolve a individualidade em benefício do grupo social.

Figura 2 – El Eternauta (Oesterheld, Lopéz, 2008, p. 349).
Figura 2 – El Eternauta (Oesterheld, Lopéz, 2008, p. 349).

El Eternauta II e a juventude peronista

Em El Eternauta II o quadro narrativo se altera. A história é escrita com Oesterheld vivendo na clandestinidade e a visão de mundo do autor perpassa todo o relato. O personagem assume um protagonismo que fundamenta a narrativa; a família já não é o foco central, mas sim a salvação do “povo das covas”, uma alegoria relativa ao povo argentino em si; a postura de Juan Salvo não é de quem compõe um grupo, mas de quem lidera um grupo e está disposto a tudo para vencer os invasores, inclusive ao autossacrifício.

Figura 3 – El Eternauta II (Oesterheld, Lopéz, 2007, p. 170).
Figura 3 – El Eternauta II (Oesterheld, Lopéz, 2007, p. 170).

Essa transformação do personagem pode ser lida como uma alegoria sobre a situação da militância da Juventude Peronista. A mesma que para Perón passa de uma “juventude maravilhosa” a um grupo de “imberbes e estúpidos”6, a que se lança em uma luta feroz contra os grupos paramilitares que promoverão assassinatos e desaparecimentos durante mais de uma década. São grupos que propugnam o socialismo nacional, como as FAR (Forças Armadas Revolucionárias) e Montoneros, que após a decepção com Perón (e especialmente após a sua morte) assumem a luta armada como caminho para a construção de outra sociedade. É à ideologia desses grupos que Oesterheld e sua família se vinculam.

Figura 4 – El Eternauta (Oesterheld, Lopéz, 2007, p. 157).
Figura 4 – El Eternauta (Oesterheld, Lopéz, 2007, p. 157).

Mais que em qualquer sequência são os três quadros destacados acima de El Eternauta II que expõem essas mudanças. Enquanto na primeira história Juan Salvo é movido pela solidariedade aos seus companheiros e é representado como mais um no grupo, aqui seu protagonismo e sua liderança se tornam evidentes. Enquanto no quadro mais ao alto sua figura se impõe em meio ao grupo pela postura, pela centralidade de sua imagem no quadro e pelo tratamento do claro-escuro que a destacam, nos dois quadros seguintes o diálogo estabelece o tipo de relação e de prioridades que a luta contra a dominação dos invasores determina em seu caráter. O sacrifício pedido ao primeiro grupo do comando para possibilitar a infiltração do segundo é visto como uma obrigação necessária pelo salvamento do “povo das covas”. Essa passagem expressa de forma cabal o tipo de pensamento que movia os jovens montoneros que lutavam pela “libertação do povo argentino”. Os paralelos são inevitáveis, ainda que esse tipo de interpretação dependa do conhecimento das condições sociais, políticas e culturais da Argentina do período.

Nessa segunda narrativa Juan Salvo se transmuta de um homem peronista clássico em um líder montonero. O chefe de família dá lugar ao homem capaz de abandonar os seus para partir em uma missão que permita “libertar o povo”, mesmo que isso implique sua morte; o seu empreendedorismo abandona o egoísmo e passa a servir os interesses coletivos e da resistência; seus planos passam a ser os que lhe permitirão a consecução de objetivos políticos e militares, não mais almeja “aquele tipo de prazeres simples” resultante da vida familiar em um bairro de classe média em Buenos Aires.

Em resumo: em El Eternauta II há uma permuta no caráter de Juan Salvo, a personagem passa da representação do ethos do peronista típico do período clássico do movimento, do peronista ortodoxo e conservador, ao ethos do militante da juventude peronista dos anos 1970.

El Nestornauta

Nestor Kirchner é um jovem estudante na Universidade de La Plata nesse período. Como muitos, participa de grupos militantes e se envolve com a política. Seu grupo de amigos e companheiros de política nessa época é composto fundamentalmente por pares da geração setentista. É nesse imaginário que seus discursos vão beber e é no ethos dessa militância que o kirchnerismo se apoia para elaborar o seu próprio imaginário.

As características de coragem, capacidade de liderança, autossacrifício em favor da sociedade e de fidelidade a causas maiores que o personagem El Eternauta assume na segunda narrativa são oportunamente bem-vindas para a representação de um político cujo discurso se articula muito ao redor das expressões e representações que esse universo discursivo pode vincular à sua imagem.

Figura 5 – Imagens de El Eternauta, no desenho de Solano López, e El Nestornauta, em estêncil (fonte: http://en.wikipedia.org/ e http://www.taringa.net/).
Figura 5 – Imagens de El Eternauta, no desenho de Solano López, e El Nestornauta, em estêncil (fonte: http://en.wikipedia.org/ e http://www.taringa.net/).

É nesse quadro que o estêncil de El Nestornauta surge. Interessante perceber que a imagem selecionada para a criação do desenho é originária da primeira história, na qual o personagem ainda mantém características mais coletivistas e uma postura menos heroica com relação ao enfrentamento dos invasores. Uma vez que o lapso de tempo entre a publicação das duas narrativas é de quase 20 anos, as imagens da primeira narrativa são as que mais profundamente se consolidam como parte do imaginário peronista da Argentina, e com muita amplitude. A segunda narrativa, apesar de não mais apresentar a imagem com a roupa isolante que permite sua circulação em meio à nevasca radioativa que tudo mata, não substitui a imagem tradicional de Juan Salvo que é utilizada na criação de El Nestornauta.

Alguns autores afirmam que há uma predominância do ethos militante setentista na formação do imaginário kirchnerista, o que efetivamente permite a construção de um paralelo entre o discurso de Néstor Kirchner e a figura de Juan Salvo na segunda história, uma vez que no período de sua juventude, quando se forma como quadro da militância da juventude peronista “(…) a prática política implicava uma dimensão de sacrifício, audácia, voluntarismo e alto compromisso pessoal e político, compromisso que se figurava como um mandato, um legado ou uma missão herdado de lutas históricas precedentes” (Montero, 2012, p. 131, grifos do original).

No entanto, alguns aspectos denunciam o quanto o ethos kirchnerista mescla as heranças peronistas. O uso de uma imagem que se origina da primeira história é um primeiro fato que aproxima o personagem criado do peronismo clássico, assim como a supressão do rifle. Essas características acentuam a vinculação com uma dada versão do peronismo como força política que vai bem além da herança setentista.

El Eternauta é parte de um corpus de imagens que vinculam o peronismo setentista ao peronismo clássico, centrado na doutrina justicialista e com uma reinterpretação relativa dos seus preceitos básicos. A complexidade e as contradições do peronismo plasmam a construção do imaginário do kirchnerismo, que não nega suas vinculações, por mais que as dissimule em determinados momentos através da valorização da memória geracional na qual se inscrevem tanto Néstor Kirchner quanto Cristina Fernández de Kirchner. Esse movimento engendra a seleção de imagens que viabiliza a formação de um imaginário com múltiplos vínculos com diferentes fases do peronismo, o que viabiliza as diferentes leituras necessárias para a identificação por diferentes frações do peronismo. Daí a utilização de uma imagem de um Juan Salvo clássico e não da sua versão montonera.

Figura 6 – Cartaz da festa de 25 de maio em Buenos Aires no qual se vê a associação explícita entre as imagens de alguns dos personagens centrais do peronismo para o kirchnerismo: Perón, Cámpora, Néstor e Cristina (fonte: https://www.facebook.com/7Diciembre2012).
Figura 6 – Cartaz da festa de 25 de maio em Buenos Aires no qual se vê a associação explícita entre as imagens de alguns dos personagens centrais do peronismo para o kirchnerismo: Perón, Cámpora, Néstor e Cristina (fonte: https://www.facebook.com/7Diciembre2012).

Considerações finais
Dentro da realidade política do peronismo, a mescla de quadrinhos e poder é uma combinação absolutamente compreensível. Primeiro movimento político argentino a se confrontar seriamente com as necessidades do processo da comunicação em uma sociedade de massas, a adoção da história em quadrinhos como forma de expressão do pensamento político se torna um caminho natural para seus simpatizantes e partidários.

Figura 7 – El Eternauta (Oesterheld, Lopéz, 2007, p. 208).
Figura 7 – El Eternauta (Oesterheld, Lopéz, 2007, p. 208).

Para as gerações de argentinos nascidos após 1945 as HQs de El Eternauta constroem um discurso positivo sobre o peronismo e antagônico aos seus perseguidores, uma vez que nas duas épocas em que são publicadas o movimento está sob repressão de governos autoritários. O personagem Juan Salvo passa por um processo de ressignificação que o adapta às diferentes realidades sócio-históricas com as quais o movimento se confronta. A criação de uma figura como a de El Nestornauta é mais uma ressignificação e em seu bojo vincula o peronismo clássico, o peronismo de esquerda setentista e o kirchnerismo, os associando a ideias positivas da doutrina justicialista como nacionalismo, humanismo, justiça social e idealismo.

Nesse contexto, os quadrinhos finais da segunda história, já plenos de significação uma vez que a ação se passa em um suposto dezembro de 1976, ressignificam o peronismo e o inserem em um todo discursivo que reforça seu confronto e a luta contra os regimes autoritários que provocaram tantas decepções e dores ao povo argentino. Assim como Germán, Nestor se alia de forma definitiva a Juan Salvo na luta contra a dominação alienígena.

Voltando ao pensamento de Simmel, se El Nestornauta não nos enganasse e vinculasse o imaginário kirchnerista com uma visão totalizante do peronismo, não exerceria sua função sígnica plenamente, pois deixaria de ser uma parte axial da elaboração desse discurso complexo e não nos brindaria com uma expressão visual plena de vida.


*Amaury Fernandes é diretor da Escola de Comunicação da UFRJ, professor do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da EBA-UFRJ, pós-doutor em Economia-Política da Comunicação pela Universidad Nacional de Quilmes, doutor em Ciências Sociais pelo PPCIS-UERJ, mestre em História da Arte pelo PPGAV-UFRJ, designer pela EBA-UFRJ. Autor do livro Fundamentos de produção gráfica para quem não é produtor gráfico e de diversos artigos sobre artes gráficas, imagem, design e comunicação.

Referências

AMATO, Fernando; BAZÁN, Christian B. Setentistas: de La Plata a la Casa Rosada. Buenos Aires: Sudamericana, 2008.
BONASSO, Miguel. Diario de un clandestino. 2ª ed. Buenos Aires: Planeta, 2011.
FEINMANN, José Pablo. El flaco: diálogos irreverentes con Néstor Kirchner. Buenos Aires: Planeta, 2001.
GALASSO, Norberto. De Perón a Kirchner: apuntes sobre la historia del peronismo. Buenos Aires: Punto de Encontro, 2011.
GENÉ, Marcela. Un mundo feliz: imágenes de los trabajadores em el primer peronismo, 1946-1955. Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômica, 2005.
MONTERO, Ana Soledad. ¡Y al final un día volvimos! Los usos de la memoria en el discurso kirchnerista (2003-2007). Buenos Aires: Prometeo, 2012.
OESTERHELD, Hector G.; LÓPEZ, Francisco Solano. El eternauta: edicción especial. Buenos Aires: Doedytores, 2008.
________. El eternauta II: 1976. Buenos Aires: Doedytores, 2007.
PERÓN, Eva. La razón de mi vida. Buenos Aires: Bureau, 2010.
PERÓN, Juan Domingo. La comunidad organizada. Buenos Aires: Quadrata, 2007.
PLOTKIN, Mariano. Mañana es San Perón: propaganda, rituales políticos y educación em el regime peronista (1946-1955). Buenos Aires: Ariel, 1994.
POLLASTRI, Sergio. Las violetas del paraíso: una historia montonera. Buenos Aires: El cielo por asalto, 2004.
ROMERO, José Luis. Breve historia de la Argentina. Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômica, 2012.
SARLO, Beatriz. La audacia y el cálculo: Kirchner 2003-2010. Buenos Aires: Sudamericana, 2001.
SARMIENTO, Domingo F. Facundo. Buenos Aires: Terramar, 2010.
SIMMEL, Georg. De la esencia de la cultura. Buenos Aires: Prometeo, 2008.

Notas

1 Kirchnerismo é a designação que agrupa os seguidores políticos de Nestor Kirchner e Cristina Fernández de Kirchner na Argentina contemporânea. Sobre o assunto ler Sarlo (2011) e Feinmann (2011).

2 Através de sua participação no golpe de Estado de 1943, Perón ascende ao cargo de Secretário de trabalho e Previdência. No exercício dessa função consegue angariar apoios políticos de militares, empresários e trabalhadores e ascende à vice-presidência. Esse aumento de poder gera receio em outras frações do exército que conseguem seu aprisionamento no começo de outubro de 1945. Na noite de 17 de outubro de 1945 centenas de milhares de manifestantes ocupam a tradicional Plaza de Mayo, em Buenos Aires e exigem sua libertação. Desde então o 17 de outubro é considerado a data natal do peronismo e esse dia é conhecido como “Dia da lealdade” (Romero, 2012). Sobre a história do peronismo, ler Galasso (2011).

3 Sobre o grupo Montoneros ler Pollastri (2004) e Bonasso (2011).

4 Em 1969 o grupo Montoneros sequestra o general Aramburu (líder do golpe de Estado de 1955) e o executa por ter ordenado o fuzilamento de peronistas que resistiram ao golpe. Perón, desde o exílio, qualifica esse agrupamento de “juventude maravilhosa” e os reconhece como “formações especiais do movimento peronista” (Pollastri, 2004, p. 16).

5 Sobre o setentismo ler Amato e Bazán (2008).

6 Na festa do 1º de maio de 1973 houve um confronto entre Perón e os grupos de jovens que se alinhavam sob as bandeiras da Juventude Peronista e dos Montoneros no tradicional ato na Plaza de Mayo. Enquanto Perón defendia as lideranças sindicais, mais vinculadas ao peronismo ortodoxo e ao conservadorismo, os jovens cobram com seus cânticos o reconhecimento de sua militância que havia contribuído para o retorno de Perón do exílio. Ao final Perón qualifica esses jovens de “imberbes e estúpidos” e os grupos de jovens se retiram da praça em meio ao ato entoando cânticos de protesto.

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A revolução da independência: considerações sobre o Catarse e quadrinhos independentes como opção para o mercado editorial | Victor Almeida*

Nos últimos anos, o mercado editorial vem passando por um processo de inquietação devido à inclusão do livro digital nas livrarias. Essa mudança levou a uma série de debates, eventos, artigos e preocupações sobre como essa nova e significativa fase poderia afetar o futuro do livro, seja pela diversificação de plataformas de publicação, seja pelo papel do editor em meio a tantos novos casos de autopublicação. Será o fim do livro de papel em longo prazo, agora que o mercado digital começou? O que farão as pequenas livrarias, agora que a compra de um livro ocorre instantaneamente, com o apertar de um botão? E principalmente: como isso afetará o nosso país?

O Brasil, até a data deste artigo, encontra-se em processo de adaptação, de reposicionamento, e os livros digitais (ou e-books), embora já sejam uma realidade, consequentemente ainda não apresentam grandes resultados em vendas. Carlo Carrenho, fundador do site Publishnews e especialista em mercado editorial, a partir das previsões da DLD (Distribuidora de Livros Digitais) estabelece que, embora esteja em uma curva ascendente de crescimento (ver Figura 1), o mercado digital em 2013 correspondeu a apenas 2,63% do total de vendas (Carrenho, 2013).

Figura 1 - Venda de e-books no Brasil (2012-2013). Fonte: <http://www.tiposdigitais.com/2013/01/o-tamanho-do-mercado-de-ebooks-no-brasil.html>.
Figura 1 – Venda de e-books no Brasil (2012-2013).
Fonte: http://www.tiposdigitais.com/2013/01/o-tamanho-do-mercado-de-ebooks-no-brasil.html.

Um dos motivos básicos para tal dado é a continuidade da pouca prática de leitura em território nacional. Embora o consumo de livros tenha aumentado nas classes C, D e E, avalia-se que a média de leitura brasileira seja de apenas quatro livros por habitante ao ano. Se cogitarmos a aceitação dos e-books, a situação é ainda mais crítica: 45% dos entrevistados nunca ouviram falar de uma versão digital para os livros (Instituto Pró-Livro, 2012).

Logo, a transição continua concentrada nas mãos de poucos. O que pode ser contraditório, já que a principal mudança nesse processo não é a do fim do papel e o início da tela de e-ink com alta resolução. A principal mudança nessa transição, como bem aponta o editor, administrador e teórico Júlio Silveira, está no acesso, na facilidade de publicação, na facilidade do produto chegar à mão do leitor sem intermediários. Como resultado, vemos cada vez mais casos internacionais de autores reconhecidos com projetos de self-publishing e a Amazon defendendo abertamente o fim das editoras na Feira do Livro de Londres ao apresentar o Kindle Direct Publishing, seu serviço de publicação independente, iniciando uma “revolução para novos autores” e uma reação furiosa dos editores (Silveira, 2013).

No caso dos quadrinhos, um exemplo positivo dessa lógica está em uma HQ nacional com trilha sonora, criada por autores desconhecidos (até então) pelo grande público. O que poderia parecer um projeto financeiramente inviável para algumas editoras, tornou-se realidade no fim de 2011, quando a HQ Achados e perdidos do roteirista Eduardo Damasceno, do ilustrador Luís Felipe Garrocho e do músico Bruno Ito passou a ser, com a ajuda de 571 apoiadores, um dos primeiros quadrinhos publicados de forma bem-sucedida por uma plataforma de crowdfunding, ou melhor, de financiamento coletivo.1

O projeto, planejado desde 2007, acabou se tornando um material impresso de 212 páginas de quadrinhos e extras, acompanhado por um CD encartado. Para os leitores/ouvintes, fica a opção de ler a obra sem ouvir o CD, ouvir o CD separadamente ou unir as duas mídias para uma experiência completa. Para a impressão do álbum e gravação dos CDs seriam necessários 25 mil reais como custo de produção. O trio arrecadou mais de 30 mil reais e se tornou um exemplo para novos artistas publicarem pelo mesmo caminho. Em 2012, a HQ passou a ser publicada pela editora Miguilim.

Ao ser questionado sobre o motivo pelo qual publicaram por essa forma de financiamento, pouco explorada na época, Damasceno alegou que

essa forma de financiamento (…) está muito de acordo com o que a gente acredita em relação à produção de entretenimento. A ideia de as pessoas que querem ver o livro pronto bancarem a produção dele é sensacional. Não vejo tanto como renovação, ou algo do tipo porque ainda acho tanto as editoras quanto os editais formas interessantes, consolidadas e bem estruturadas de se viabilizar projetos. Mas pra gente, nesse momento, o crowndfunding se encaixou perfeitamente no que estávamos querendo e na forma como produzimos. Espero sim que com o tempo e à medida que mais projetos forem acontecendo assim se torne mais uma plataforma de publicação. Não tenho nenhum tipo de ranço com o sistema de publicações por editoras ou coisa do tipo. Nós somos dois, e ambos extremamente exigentes com o nosso trabalho, com o de cada um e com o do outro. Tentamos fazer o melhor que podemos sendo nossos próprios editores (grifos meus). 2

Em sua resposta, o roteirista citou dois pontos relevantes, que serão abordados neste artigo: a) O que necessariamente é o crowdfunding/financiamento coletivo e qual a sua vantagem na publicação de quadrinhos? e b) Qual é o papel do leitor de quadrinhos nessa plataforma de publicação?

O mercado independente de quadrinhos e o crowdfunding

Uma das maiores surpresas do mercado editorial de quadrinhos no Brasil nos últimos anos foi a quantidade de títulos lançados de maneira independente. Não apenas a quantidade, mas a qualidade, comprovada pelos prêmios recebidos pelos artistas.

Embora já haja categorias específicas para publicações desse tipo,3 o Troféu HQ Mix, uma das mais tradicionais premiações dos quadrinhos brasileiros, deu a Vitor Cafaggi,4 roteirista e quadrinista independente, o prêmio de “Novo Talento – roteirista” em 2012. No mesmo ano, Birds, um trabalho independente e sem nenhum balão de texto, deu a Gustavo Duarte o prêmio de “Publicação de Aventura/Terror/Ficção”.5 Achados e perdidos recebeu uma homenagem especial.

Esse número de indicações só aumenta se avaliarmos a lista de indicados ao HQ Mix 2013, divulgada em abril deste ano.6 E com uma interessante surpresa: muitos dos títulos nascidos por projetos de crowdfunding e artistas que ou optaram ou estão optando por publicar dessa forma. Mas o que é crowdfunding? De forma bem simples, o termo é usado para designar as iniciativas de financiamento colaborativas em que:

Os diversos projetos como, por exemplo, (…) a produção de um CD de uma banda ou a publicação de um livro, são hospedados em um site voltado para captação de doações coletivas em prol da efetivação do trabalho apresentado (Cocate & Pernisa Júnior, 2012, p. 135-136).

Dessa forma, o autor estabelece a quantidade necessária para possibilitar a realização do seu projeto ou negócio, espalha a sua ideia, e depois recompensa os que o apoiaram financeiramente. Essas recompensas, por sua vez, dependem do valor investido no projeto. No caso do Achados e perdidos, por exemplo, as recompensas variaram desde o nome do colaborador na página do livro, caso investisse R$10; um pacote com livro, CD, pôster, postal, bóton, camiseta, adesivo, caderno, esboços originais autografados, caso investisse R$100 e até uma música original do Bruno Ito, caso investisse mais de R$1.000.

Um estudo divulgado pela consultoria Massolution mostrou que só em 2012 esse tipo de financiamento movimentou US$2,7 bilhões no mundo. E, para 2013, a previsão era de US$5,1 bilhões (Mello Dias, 2013).

No quesito livros, o primeiro grande caso de sucesso referente a financiamento coletivo foi a plataforma britânica Unbound, criada por John Mitchinson, um dos diretores da cadeia de livrarias Waterstone (Silveira, 2012). Nela, interessados em publicar apresentam a sinopse do livro. Os leitores/internautas que apoiarem a história “compram” a ideia. Essa “compra” consiste em valores de 10 a 250 libras. Além de ser uma ótima ferramenta de feedback, já que os leitores podem opinar ou sugerir os temas para os próximos livros, todos os colaboradores têm seus nomes publicados no final de cada obra e recebem participação nos lucros, caso o mesmo seja publicado. Quando a quantia necessária não é atingida, os colaboradores/investidores são reembolsados ou recebem a opção de investir em outro projeto.

E para os quadrinhos? O teórico e quadrinista Scott McCloud afirma em seu livro Reinventando os quadrinhos que “temos de perguntar o que os quadrinhos podem fazer num ambiente digital e quais dessas opções se mostrarão valiosas a longo prazo”. (McCloud, 2005, p. 207). Para o mercado independente, ou seja, para os autores que apostam em publicar suas obras sem a presença de um editor, a solução pode estar no Comixology ou no Catarse.

Para artistas que preferem publicar apenas digitalmente, ou seja, sem um formato físico de capa, miolo e tinta, o Comixology é uma boa opção. Inicialmente, o site trabalhava apenas como plataforma de distribuição, busca e organização de títulos digitais das principais editoras norte-americanas, tendo atualizações semanais. Mas a partir de março de 2013, ficou disponível o portal ComiXology Submit, para que criadores de HQs possam submeter suas histórias gratuitamente. Após a inscrição e submissão do material, os quadrinhos são avaliados e, caso sejam aprovados, são exibidos no portal principal, onde podem ser comprados pelos leitores em versões para iPad, iPhone, Android, Kindle Fire, Windows 8 e Internet. O lucro com as vendas é dividido entre o autor e o ComiXology, mas o artista mantém integralmente os seus direitos sobre a sua criação.7

Lançado em janeiro de 2011, o Catarse, por sua vez, é a primeira plataforma brasileira de crowdfunding. Inspirado no Kickstarter8 e criado em 2008, tem o seu perfil mais voltado ao empreendedorismo cultural e artístico. Utilizando a estratégia de apresentar o projeto, buscar colaboradores e recompensá-los, como explicado anteriormente, o autor tem até sessenta dias (prazo máximo) para captar o dinheiro necessário para cobrir as despesas de produção. O valor financiado pelos apoiadores é repassado ao idealizador do projeto, e este paga ao Catarse 13% da quantia recebida, sendo que este valor inclui tanto a comissão do Catarse como a taxa do meio de pagamento, que processa as transações. Sendo assim, se o projeto não atingir o objetivo e não arrecadar a quantia estipulada, o valor pago pelo apoiador é devolvido.

Desde a sua criação até meados de 2013, o Catarse já havia levantado R$7,3 milhões, financiando assim 520 projetos. Embora as áreas de música e cinema liderem em número, a categoria mais bem-sucedida é a de quadrinhos: 75% dos projetos atingem a meta (Mello Dias, 2013) alguns ultrapassam em 100% o valor dessa meta pretendida (ver projetos em negrito na Tabela 1).

Na prática, a plataforma acaba superando em número de lançamentos nacionais (de artistas diferentes) as editoras especializadas no gênero. Por exemplo, nos anos de 2012 e 2013 a Quadrinhos na Cia., selo de quadrinhos da editora Cia. das Letras, publicou dez obras nacionais, de autores como Angeli, Luiz Gê e Lourenço Mutarelli (Tabela 2). No mesmo período, o Catarse possibilitou a produção e publicação de 60 projetos.

Título Autor(es) Período de finalização do projeto Quantidade levantada Porcentagem conquistada
O beijo adolescente 3 Rafael Coutinho 29/12/2013 R$ 41.366 105%
Mistiras – volume 1 Ary Santa Cruz Netto 02/12/2013 R$ 6.765 106%
Mês Mês Zines 30/11/2013 R$ 15.101 116%
Portais Octavio Cariello 30/11/2013 R$ 30.795 123%
Golden age – a era de ouro dos quadrinhos Marcelo e Alice Feldmann 29/11/2013 R$ 38.923 112%
Objetos inanimados João Bandeira 24/11/2013 R$ 9.815 119%
Visualizando Citações Milena Azevedo 19/11/2013 R$ 8.065 124%
Ana e o Sapo: quadrinhos de um quadro só Ana Lu Medeiros 19/11/2013 R$ 8.580 143%
A Vida com Logan para Ler no Sofá Flavio Soares 18/11/2013 R$ 16.990 113%
Fazendo o Homem Acreditar Felipe Morcelli 17/11/2013 R$ 14.880 148%
Zine XXX Vários 14/11/2013 R$ 20.649 187%
Passaporte Jão 09/11/2013 R$ 8.145 116%
Conexão Nanquim Impressa! Caique Felipe Suikin 31/10/2013 R$ 8.276 118%
Peixe Peludo 2 Rafael Moralez 29/10/2013 R$ 7.470 114%
Lost Kids: Buscando Samarkand Felipe Cagno 27/10/2013 R$ 45.464 151%
Ozman Nêmesis André Freitas 27/10/2013 R$ 6.210 103%
Ghilan Mariá Raposa Branca 27/10/2013 R$ 5.290 176%
Coletânea Tarja Preta Volume I Matias Maximiliano 26/10/2013 R$ 14.031 112%
São Paulo dos Mortos Daniel Esteves 23/10/2013 R$ 16.250 146%
Quad! Diego Sanches 13/10/2013 R$ 25.905 172%
Revolta! André Caliman 08/10/2013 R$17.540 116%
Oigo edições 02 e 03 Diego José 05/10/2013 R$ 2.915 107%
Nem morto – Apocalipse Leonardo Finocchi 03/10/2013 R$ 8.161 136%
Terapia – vol. 1 Portal Petisco 01/10/2013 R$ 40.730 135%
Por dentro do Máscara de Ferro Bernardo Aurélio 30/09/2013 R$ 2.815 140%
Maki Lobo limão 23/09/2013 R$ 15.407 154%
Perpetuum Mobile Diego Sanchez 16/09/2013 R$ 9.574 478%
Cara, eu sou legal! Marília Bruno 07/09/2013 R$ 5.465 182%
Mercenary Crusade Alex D’Ates 25/08/2013 R$ 5.605 101%
Coprólitos – Antologia Marcatti 20/08/2013 R$ 15.557 185%
Ícones dos quadrinhos Ivan Costa 20/08/2013 R$ 61.665 181%
Ciranda da Solidão – EntreQuadros Mário Oliveira 08/08/2013 R$ 9.942 111%
Votu – O Demônio da Amazônia Mario Cavalcanti 30/07/2013 R$ 5.056 115%
Guias do SEXO ilustrados Lasiva 25/07/2013 R$ 15.469 130%
Cuecas por cima das calças Rafael Koff 07/07/2013 R$26.113 522%
Apagão – vol. 1 – cidade sem lei/luz Raphael Fernades 05/07/2013 R$ 21.347 190%
Egum André Luiz Alonso de Assis 14/06/2013 R$28.157 117%
A maldição de Boa Fortuna André Só 24/05/2013 R$24.010 112%
Gnut Paulo Crumbim 20/04/2013 R$25.836 143%
O monstro Coala 05/04/2013 R$43.643 201%
Libre! Librecoletivo 29/03/2013 R$14.931 212%
Abaité: bandeirantes Richard Dantas Guarani-Kayowá 21/03/2013 R$5.499 122%
Shogum dos mortos – vol. 1 – Crepúsculo dos samurais Daniel Wernëck 16/03/2013 R$30.976 333%
Combo rangers Fabio Yabu 19/02/2013 R$67.540 169%
Freddy and Jason have fun Rafael Koff 08/02/2013 R$6.200 206%
Livro comemorativo 10 anos de tira Vida de leiturista Karlo Campos 04/02/2013 R$6.070 101%
Mascate – Motioncomic Yves Santaella Briquet 26/01/2013 R$13.265 110%
Tools challenge volume 1 Max Andrade 18/01/2013 R$6.305 126%
Samba 3 (SAMBA) 09/12/2012 R$17.655 117%
Ryotiras Omnibus Ricardo Tokumoto 27/09/2012 R$33.059 220%
Álbum de coletânea do Petisco Cadu Simões 21/09/2012 R$16.535 110%
Tirinhas do Zodíaco (2ª edição) Rafael Koff 11/09/2012 R$8.745 174%
Happy Slap! Maxx Figueiredo 31/08/2012 R$8.960 100%
Salomão Ventura – Caçador de lendas #3 Giorgio Galli Neto 30/08/2012 R$2.246 124%
Last RPG Fantasy – Livro jogo Lobo Limão 26/08/2012 R$16.852 129%
O beijo adolescente – Segunda temporada Rafael Coutinho 19/08/2012 R$36.735 114%
Revista Café Espacial nº 11 Café Espacial 13/08/2012 R$5.621 112%
Zinecórnio nº3 Mayara Pascotto 21/07/2012 R$300 142%

Tabela 1 – Produções financiadas nos anos de 2012 e 2013.
Fonte: http://catarse.me/pt/explore#quadrinhos.

Título Autor(es) Ano de publicação
Campo em branco Emilio Fraia e DW Ribatski 2013
O lixo da história Angeli 2013
V.I.S.H.N.U. Eric Acher, Ronaldo Bressane e Fábio Cobiaco 2012
Guadalupe Odyr e Angélica Freitas 2012
A máquina de Goldberg Vanessa Barbara e Fido Nesti 2012
Monstros! Gustavo Duarte 2012
Toda Rê Bordosa Angeli 2012
Diomedes – A trilogia do acidente Lourenço Mutarelli 2012
Deus, essa gostosa Rafael Campos Rocha 2012
Avenida Paulista Luiz Gê 2012

Tabela 2 – Lançamentos nacionais da Quadrinhos na Cia.
Fonte: http://www.companhiadasletras.com.br/busca.php?b_categoria=77&b_filtro=livro.

A relação de sucesso dessas publicações pelo Catarse leva a conclusão de que o modelo crowdfunding funciona melhor, sem dúvida, nos casos em que a pessoa que incentiva o faz porque gosta e se identifica com os projetos. E o seu público-alvo bem específico talvez seja a explicação para os quadrinhos serem, até agora, uma das áreas do mercado editorial que melhor teve aceitação nesse novo modelo.

Se a “preocupante” revolução digital está sendo bem-sucedida com os quadrinhos, a diferença pode estar na presença de seus fãs. No seu carinho pelo trabalho dos autores e por sua cada vez maior participação no mercado.

O papel do fã no crowdfunding

Um bom exemplo da relação dos fãs com plataformas de financiamento é o projeto brasileiro Queremos. A ideia nasceu da vontade de trazer ao Brasil a banda sueca Mike Snow em setembro de 2010. Conquistada a meta, dois meses depois, uma nova proposta foi proposta: trazer a banda escocesa Belle & Sebastian, há nove anos ausente de nosso país. Para tanto, seria necessário captar o valor de 56 mil reais.

Um site foi criado e o plano mais uma vez foi bem-sucedido ao convencer 280 pessoas a pagar R$200 por ingresso reembolsável. Com o custo do show pago, os organizadores iniciaram a venda do restante dos ingressos por R$100. Ao atingir certo número de ingressos vendidos, as 280 pessoas que financiaram o projeto tiveram retorno integral do investimento. Os shows e o projeto continuam até hoje com imenso sucesso.9

Este é apenas um exemplo de uma mudança recorrente na posição do consumidor na sociedade. A globalização modificou drasticamente o consumo e a produção de sentidos, ao mesmo tempo que, finalmente, possibilitou o fim da relação unilateral entre os produtores de conhecimento e seus receptores, que deixam de viver em uma sociedade de consumo taylorista/fordista, em que o papel do consumidor é de simples aquisição do produto, passando para a era do chamado “capitalismo cognitivo”:

No contexto do capitalismo cognitivo, o consumo não é mais destrutivo e sim produtivo, de forma que a articulação das novas tecnologias, a ‘convergência multimídia’, faz com que os usuários/consumidores transformem-se em usuários/produtores, rompendo a tradicional separação entre trabalho e meios de produção – o antigo controle sobre as tecnologias de produção e comunicação que centralizava e emissão de conteúdos em poucos grupos monopolistas – e entre mundo do trabalho e mundo da vida privada. Os novos parâmetros de produção no capitalismo cognitivo estabelecem-se justamente na interação entre produtores e usuários que formam, através do uso e apropriação das ferramentas informacionais (os softwares), redes coletivas de interação produtiva (denominadas netwares) (Gabbay, 2003, p. 3).

Na equação de sucesso dos quadrinhos independentes pelo Catarse, acrescenta-se a esse novo posicionamento o conceito de LoveMark. Em Cultura da convergência, Henry Jenkins o define como as marcas que conquistam o amor e o respeito do consumidor por meio de um novo discurso em marketing e pesquisa que “enfatiza o envolvimento emocional dos consumidores” (Jenkins, 2008, p. 333).

Leitores são fiéis a autores. Leitores de quadrinhos são fiéis a autores, ilustradores, universos e, em alguns casos, ao formato pelo qual tais histórias são transmitidas. Embora não tenha o poder de criar um best-seller, considerando que é um nicho de mercado, são um público-alvo fiel. E convidá-los a participar da construção desse universo é uma forma de fidelizá-los ainda mais.

Dessa forma, em meio à terra da Internet, lugar de Photoshops, blogs, vlogs, fotologs e youtubes, onde nascem cada vez mais homenagens e histórias alternativas por meio de fanfics (contos), fanarts (ilustrações), vídeos remixados etc., os fãs, em seu posicionamento de também produtores, acabam incentivando e difundindo a indústria. Eles conseguem assimilar as convergências midiáticas, as sucessivas atualizações e determinações tecnológicas e desenvolver esses universos ricos. São consumidores e propagadores. De acordo com Jenkins, eles são “os grandes defensores da marca (…) aqueles que sugerem melhorias e espalham novidades sobre a marca nos meios em que podem publicar. O consumidor mais valioso pode ser o mais passional” (Jenkins, 2008, p. 47).

Assim, por meio dessa cultura participativa, o fã tem a oportunidade de tomar parte mais ativamente, evoluindo do consumidor passivo para uma parte integrante do negócio e, nesta nova etapa de financiamento coletivo, de parte integrante do negócio para responsável pela produção.

Um bom e recente caso que combina a cultura da participação e o LoveMark nos quadrinhos é a série Combo Rangers. Idealizada em 1998 por Fábio Yabu, hoje mais conhecido como o criador da série Princesas do mar, a série de webcomics feitas em Flash era uma paródia dos seriados super sentai10, como Flashman, Changeman etc. Neste caso, cinco crianças eram escolhidas por um herói aposentado, Poderoso Combo, para receber poderes e defender a Terra de ameaças alienígenas.

A divertida série infantojuvenil resultou em três temporadas11 e duas versões impressas, uma pela editora JBC, em 2000, e uma pela Panini Comics, em 2004, ano em que foi aposentada pelo autor. Mesmo com as críticas e pedidos dos leitores, Yabu decidiu não dar continuidade ao universo dos Combo Rangers nos últimos dez anos e começou a se dedicar a outra série, voltada mais para o universo infantil feminino: Princesas do mar. As princesas do mundo de Salácia renderam ao autor oito livros e uma série animada exibida no canal Discovery Kids. Nesse meio-tempo, Yabu escreveu alguns livros, como Raimundo, cidadão do mundo e Apolinário, o homem-dicionário (Panda Books) e A última princesa (Galera Record). Sob o pseudônimo de Abu Fobiya, lançou ainda pela editora Nerdbooks Branca dos Mortos e os sete zumbis (posteriormente reeditada pela Editora Globo, em 2013)e a HQ Independência ou mortos.

Os meus quadrinhos são feitos para pessoas de várias idades e gostos. Aos 17 anos, eu já tinha leitores fiéis por conta dos Combo Rangers. Fui amadurecendo e comecei a fazer trabalhos diferentes. E o que acho mais interessante é que, hoje, falo com várias gerações, às vezes na mesma casa. Tenho vários leitores fãs do Combo Rangers que têm filhos fãs das Princesas do Mar (Gama, 2013).

O carinho dos fãs de seu primeiro trabalho o levou a lançar, em dezembro de 2012, uma campanha de financiamento coletivo no site Catarse para criação de dois álbuns dos Combo Rangers12 com distribuição pela editora JBC. De acordo com o autor, o momento era apropriado porque “com as redes sociais e o advento do crowdfunding, autores e fãs podem trabalhar juntos para realizar projetos que antes eram impossíveis”.

Os fãs retribuíram o apelo: em menos de duas semanas foram arrecadados os R$40 mil suficientes para tocar o projeto, que recebeu o investimento de R$67.940.

Considerações finais

O caso Combo Rangers tem um diferencial interessante: a inclusão de uma editora. Embora o custo de produção seja dos leitores por meio do financiamento coletivo, a distribuição e impressão serão feitas pela editora JBC. Esse caso entre uma plataforma interessante para publicações independentes e o trabalho tradicional de uma editora, porém, não é isolado. Em setembro de 2012, o escritor e ilustrador Loureço Mutarelli se aliou à editora independente Pop e colocaram no Catarse o projeto bem-sucedido Os sketchbooks de Lourenço Mutarelli, uma coleção de cadernos de esboços do autor. Em maio de 2013 o roteirista Raphael Fernandes se aliou à editora Draco, onde trabalha como editor de quadrinhos, para viabilizar Apagão vol. 1 — Cidade sem lei/luz, obra em quadrinhos que também já alcançou sua meta para publicação.

Embora essas propostas nasçam de editoras pequenas, é interessante notar que existam iniciativas que fogem do tradicional processo cujo fim é tão somente a livraria. Ao mesmo tempo que tornam condizente a abertura para publicações de nicho, já que optam por um canal que vai ao encontro dessa lógica, inicia-se uma compreensão de que o crowdfunding vai muito além do papel de financiador. “O que se obtém ao fim de uma campanha é visibilidade. Antes mesmo de o livro ser lançado, o público já ouviu falar (bem) dele” (Silveira, 2012).

Ainda que o futuro do status quo do mundo editorial ainda seja incerto, é benéfico que o mercado preste atenção a essas “revoluções digitais” e (por que não?) agregue parte dessa lógica à sua rotina editorial. Seja por iniciativas e flertes com o financiamento coletivo seja pelo interesse pelos artistas que se destacam em projetos nascidos desse meio. Não foi, portanto, tão surpreendente que três das equipes criativas dos novos projetos de adaptação dos personagens de Maurício de Sousa para graphic novels, anunciados durante o Festival Internacional de Quadrinhos de 2013, fossem de coletivos independentes: Eduardo Damasceno e Luís Felipe Garrocho, da webcomic Quadrinhos Rasos e do grupo Pandemônio, assinarão a história do Bidu. O casal Paulo Crumbim e Cristina Eiko, da Quadrinhos A2 e também do grupo Pandemônio, serão os responsáveis pelo Penadinho. E a Turma da Mata será repensada pelo trio Greg Tocchini, Artur Fujita e Davi Calil, do coletivo de artistas Dead Hamster.

O diferente, às vezes, surge para ser compreendido, não combatido. Lançamentos exclusivos para o digital ou projetos que dão a chance para os leitores investirem e financiarem um livro esquecido de catálogo, por exemplo, podem garantir uma nova vida para esses títulos. Serão best-sellers? Não, mas quando somados… eis a cauda longa (Anderson, 2006).13

O futuro dos livros e dos quadrinhos ainda está sendo decidido. Os autores podem negligenciar as livrarias físicas e as casas editoriais ou novas relações de negócios podem surgir, em que as grandes, médias e pequenas editoras terão que reavaliar seus valores, cada uma à sua maneira, e os papéis do editor e do autor poderão ser repensados. Pensando no melhor para o leitor, obviamente.


* Victor Almeida é pós-graduando em Literatura Infantojuvenil pela Universidade Federal Fluminense (UFF), especialista em Publishing Management pela Fundação Getulio Vargas (FGV) e graduado em Comunicação Social com habilitação em Produção Editorial pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Editor-assistente de literatura estrangeira na editora Arqueiro, do grupo Sextante.

Referências

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COCATE, F. M.; PERNISA JÚNIOR, C. Crowdfunding: estudo sobre o fenômeno virtual. Líbero: revista acadêmica / Programa de Pós-graduação, Faculdade Cásper Líbero. – v. 15, n. 29 (junho 2012). – São Paulo: Faculdade Cásper Líbero, 2012.

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GAMA, C. Fabio Yabu e a nova realidade das HQs no Brasil. Guia da Semana. Disponível em http://www.guiadasemana.com.br/celebridades/noticia/fabio-yabu-e-a-nova-realidade-das-HQs-no-brasil. Acesso em 20 maio 2013.

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SILVEIRA, J. A Amazon é ré, e o mercado não anda pra frente. Publishnews. Disponível em http://www.publishnews.com.br/telas/colunas/detalhes.aspx?id=72832. Acesso em 18 mar. 2013.

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Notas

1 Dados retirados da página do projeto, acessível em http://catarse.me/pt/238-achados-e-perdidos.

2 Trecho retirado da entrevista concedida por Eduardo Damasceno e Luís Felipe Garrocho ao Garagem Hermética Quadrinhos. Acessível em http://gHQ.com.br/entrevista-eduardo-damasceno-e-luis-felipe-garrocho/

3 Publicação independente de autor, publicação independente de grupo e publicação independente edição única.

4 Esse destaque ao trabalho de Cafaggi resultou no convite do estúdio Maurício de Sousa para ilustrar e roteirizar uma graphic novel da Turma da Mônica com sua irmã, Lu Cafaggi. O novo trabalho, intitulado Laços, foi lançado no mês de maio de 2013. Durante o Festival Internacional de Quadrinhos de 2013, o editor do projeto, Sidney Gusman, anunciou a produção de uma continuação da obra para 2015.

5 Gustavo já havia conquistado o Troféu HQ Mix de desenhista revelação em 2010. Em 2011, recebeu o Prêmio Angelo Agostini como melhor cartunista brasileiro e outro HQ Mix como melhor caricaturista nacional. Suas obras Có! e Táxi também deram a ele prêmios na categoria “Publicação independente edição única” em 2010 e 2011, respectivamente. Em 2012, Birds também foi escolhida como melhor “Publicação independente de autor”. Gustavo participou também do projeto MSP, ilustrando e roteirizando uma graphic novel do Chico Bento. Em 2014, a editora Dark Horse Comics publicou nos Estados Unidos a coletânea Monsters and other stories, contendo as histórias Có!, Monstros! e Birds.

6 Lista acessível em http://oglobo.globo.com/blogs/gibizada/posts/2013/04/11/os-indicados-ao-HQmix-2013-493037.asp.

7 Dados retirados do site, acessível em http://www.comixology.com/submit.

8 Página do projeto, acessível em http://www.kickstarter.com/.

9 Página do projeto, acessível em http://www.queremos.com.br/.

10 Super sentai é uma franquia japonesa para televisão. A premissa básica é a de um grupo de geralmente cinco heróis que ganham poderes especiais, usam roupas de cores variadas e possuem um robô gigante para combater ameaças alienígenas ou vindas da própria Terra.

11 Combo Rangers (1998-1999), Combo Rangers Zero (1999-2000) e Combo Rangers Revolution (2000-2001).

12 Página do projeto acessível em catarse.me/pt/comborangers.

13 O termo “cauda longa” descreve a teoria do físico e escritor Chris Anderson em que produtos de baixa demanda ou com um baixo volume de vendas podem coletivamente alcançar uma fatia do mercado que rivaliza ou excede os poucos mais vendidos, se a loja ou canal de distribuição for grande o bastante. Por exemplo, uma porção significativa das vendas da Amazon é proveniente de livros obscuros que não estão disponíveis em lojas físicas.

Tempo de leitura estimado: 22 minutos

Perpetuação e fatalismo em Um contrato com Deus de Will Eisner: palavra, imagem e narrativa | Rogério Câmara*

Um contrato com Deus é uma trilogia formada por Um contrato com Deus e outras histórias de cortiço (1978), A força da vida (1988) e Avenida Dropsie: a vizinhança (1995), que se passa na Avenida Dropsie, uma vizinhança ficcionalizada por Will Eisner, localizada ao sul do Bronx, em Nova Iorque. Com Um contrato com Deus, Eisner inaugura a produção do que ficou conhecido como graphic novels. Muito já se discutiu sobre a origem da expressão, se fora ou não criada por Eisner, quando o próprio veio a identificar o uso anterior do termo. A originalidade de Eisner, no entanto, reside em propor uma espécie de obra literária popular tendo os quadrinhos como meio. Eisner repensa o uso do espaço, o formato, a relação entre o texto e a imagem e toda a estrutura narrativa. No período em que desenvolveu o primeiro volume da trilogia, Eisner começa a ensinar na School of Visual Arts, o que o levou a sistematizar os seus métodos, dando origem à publicação dos manuais Quadrinhos e arte sequencial (1985) e Narrativas gráficas (1996) e postumamente Expressive Anatomy (2008). A partir da trilogia e de suas reflexões teóricas analisa-se, neste artigo, a concepção e produção das graphics novels, problematizando-se as analogias que o quadrinista estabelece entre a linguagem verbal e a narrativa gráfica da ação. É significativo o fato de Eisner concluir sua trilogia com Avenida Dropsie: a vizinhança, um relato histórico protagonizado pelas relações de vizinhança, enquanto os dois primeiros têm como foco alguns moradores residentes na avenida. Avenida Dropsie é um épico que trata dos períodos de vida das vizinhanças, as quais, segundo Eisner, “nascem, evoluem, amadurecem e morrem” (2004). O foco não é o declínio dos prédios, pois “as vidas dos habitantes são a força interna que gera a decadência. As pessoas, não os prédios, são o coração da matéria” (idem). Eisner se expressa em personagens preocupados com os desafios da vida cotidiana e suas relações nem sempre amistosas.

Dropsie seria o sobrenome de uma família de fazendeiros holandeses, os primeiros a ocuparem o local ainda no século XIX. A chegada de ingleses marca a primeira tragédia. Hendrik Dropsie, ao lado da filha, da mulher e de Dirk, o irmão bêbado, observa com admiração e complacência o crescente domínio estrangeiro. Revoltado, Dirk resolve atear fogo no cultivo daqueles que por ele são considerados usurpadores e acaba atingindo a sobrinha que tentava impedi-lo. Hendrik, ao ver com desgosto a perda da filha, mata o irmão a tiros e os enterra no jardim. Duas décadas depois, Hendrik Dropsie, em situação de pleno abandono, acidentalmente ateia fogo na própria casa. Nesse momento, a avenida já era dominada por casas de luxo, sonho de consumo de qualquer boa família inglesa. A nova configuração é perturbada pela compra do terreno dos Dropsie por novos ricos irlandeses. E, nesse relato histórico da avenida, sucedem-se diversas transformações urbanas, acompanhadas de conflitos étnicos, sobretudo entre ingleses, irlandeses, judeus, negros e latinos. Pessoas que, segundo Eisner, em sua maioria não arredavam o pé dali, pois vieram de lugares bem mais hostis (Eisner, 2007, p. 9). As relações de vizinhança descritas por Eisner são violentas, apaixonadas, solitárias, desequilibradas e, sobretudo, humanas. Todos procuram uma forma de sobreviver.

No conto “Um contrato com Deus”, Eisner coloca em questão as possibilidades de aliança com Deus, seu valor e o sentido do infortúnio. O personagem Frimme Hersh tem todas as suas crenças destruídas após a morte de sua filha adotiva. Fato que não era para ele admissível, pois Hersh havia cunhado em pedra um contrato com Deus, no qual se comprometia a se dedicar ao bem, o que, supostamente, o livraria de todos os reveses. Com o infortúnio rompe seu contrato e, se apossando dos títulos de uma sinagoga que lhes foram zelosamente confiados pelos rabinos, adquire um prédio na Avenida Dropsie e se torna um empresário e proprietário implacável. Os proprietários são sempre os inimigos comuns dos moradores da avenida, já anunciara Eisner na introdução ao conto. Mais tarde, já rico e poderoso, devolve com juros o dinheiro extraído da sinagoga e solicita aos rabinos, em troca de uma doação, um novo contrato com Deus. Este, agora, seria validado por sábios conhecedores da palavra santa. Os rabinos relativizam a demanda para não confrontarem a lei de Deus. De posse do “genuíno” contrato, Hersh chora na expectativa de uma nova vida — se casar e ter uma filha. Logo a seguir, num rompante, Hersh desafia Deus a violar um contrato com testemunhos e cai fulminado por um enfarte. Anos mais tarde, Eisner, que havia perdido sua única filha para a leucemia com a idade de dezesseis anos, assumiria a natureza autobiográfica de sua história. Para Eisner, escrever a história seria uma forma de exorcizar sua “raiva contra uma divindade que eu acreditava que havia violado a minha fé” (apud: Schumacher, 2013, p. 232).

Em A força da vida, o personagem Jacob se vê desempregado após sua “tarefa sagrada” de construir uma sala de estudo numa sinagoga. Caído em um beco e completamente desiludido, se questiona sobre os desígnios de Deus: “se o homem criou deus…então a razão pra viver está apenas na cabeça do homem. Por outro lado se… Deus criou o homem.. então, a razão da existência ainda é só um palpite… no frigir dos ovos… quem realmente conhece a vontade de Deus?” (Eisner, 2007, p. 24). Em sua angústia, Jacob deduz que o ponto em comum entre a sua vida e a de uma barata é simplesmente manter-se vivo. A coletânea detalha a coragem, a alegria e a tragédia do cotidiano da cidade na fluência do estilo gráfico de Eisner, que faz uso evocativo da textura e da atmosfera.

Eisner inicia sua carreira nos anos 1930, quando os quadrinhos rompem com a fronteira das charges e das tirinhas de jornais e passam a ser veiculados também em revistas e em livros. Em sua origem os livros de histórias em quadrinhos pouco tinham de literários mas conquistavam espaço junto aos jovens e já se via a necessidade do desenvolvimento de uma linguagem específica. Eisner, preocupado com o alcance do meio e sua colocação no mercado, teve participação ativa em todos os campos do processo de produção. Ele veio a atuar como empresário, editor, sindicalista e, sobretudo, como autor e desenhista de histórias em quadrinhos. Com o lançamento do primeiro volume da trilogia Um contrato com Deus e outras histórias de cortiço, em 1978, Eisner se aventura a pensar um produto que obtivesse atenção do adulto e dimensão literária. 

Realiza um álbum com configuração distinta de uma revista em quadrinhos, adotando o formato brochura e ilustração de capa que se distanciasse da literatura infantil. Schumacher relata o diálogo de Eisner com um livreiro e a dificuldade deste em encontrar o setor adequado para o livro em sua livraria, em função da pouca familiaridade com a graphic novel naquele momento. A publicação passa pela seção de destaque com certo sucesso. Com a chegada dos novos lançamentos, é deslocado para a seção de livros religiosos. Após protestos de um cliente, passa à seção de humor e, enfrentando novas insatisfações, termina numa caixa alojada no sótão (Schumacher, 2013, 241).

Propondo estabelecer linguagem apropriada ao novo gênero literário, Eisner relata suas exigências:

Ao contar essas histórias, tentei me ater à regra do realismo, que requer que a caricatura ou o exagero aceitem os limites da factualidade (…) Para atingir essa dimensão, tive que deixar de lado dois limitadores básicos que constantemente inibem a criação nesse meio — o espaço e o formato. Cada história foi, portanto, escrita sem preocupação com o espaço que iria ocupar, e seu formato surgiu da própria narrativa. Aos quadrinhos normais associados à arte sequencial (HQ) foi dada a liberdade de tomar suas próprias dimensões. Por exemplo, em muitos casos uma página inteira é usada para um único quadro. O texto e os balões estão interligados à arte. Eu os considero como fios de um mesmo tecido e faço uso deles enquanto linguagem. Caso eu tenha atingido meu propósito, não haverá interrupções no fluxo da narrativa, porque figura e texto serão tão interdependentes a ponto de serem inseparáveis (apud Schumacher, 2013, p. 234).

Estas definições são o fundamento da escritura gráfica de Eisner. O uso recorrente da monocromia em suas graphic novels favorecem a relação estreita entre o universo do verbal e da imagem, mantendo-os sob os mesmos atributos gráficos. Em Um contrato com Deus e outras histórias de cortiço o autor chegou a cogitar o uso de cores, mas terminou por optar pelo uso da cor sépia, conferindo não só uma maior dramaticidade às histórias, como também uma visualidade estrutural que integra, em princípios comuns, o universo do verbal e da imagem. A linguagem gráfica é definida pela linha, elemento próprio da escritura, que serve tanto ao desenho da letra, como aos personagens e aos cenários. Estabelece-se, assim, uma coerência formal e visual entre os elementos, reforçando-se um princípio de síntese em que os planos cromáticos nem sempre favorecem. A escritura se dá na contraposição do negro do traço e do branco do papel.

Eisner inicia suas reflexões teóricas sobre a estrutura narrativa dos quadrinhos, apropriando-se de uma gramática estabelecida na escrita alfabética:

A descrição da ação nesse quadro pode ser esquematizada como uma sentença. Os predicados do disparo e da briga pertencem a orações diferentes. O sujeito do “disparo” é o vilão, e Gerhard Shnobble é o objeto direto. Os vários modificadores incluem o advérbio “Bang, Bang” e os adjetivos da linguagem visual, tais como postura, o gesto e a careta (Eisner, 1999, p. 10) (Figura 1).

Figura 1 - Eisner, 2001, p. 9.
Figura 1 – Eisner, 2001, p. 9.

A relação estabelecida não é incomum. Com a vulgarização do uso do alfabeto a partir da imprensa, cresceu no mundo ocidental a confiança e a primazia das virtudes do alfabeto abordando-se a escritura somente sob o ângulo do fonetismo. O sistema alfabético foi tomado como fundamento universal para todo tipo de composição, estabelecendo-se uma espécie de relação hierárquica entre o alfabeto e a imagem.

No entanto, Eisner não se detém na questão da imagem, mas na da narrativa. Sua discussão aponta justamente para a necessidade da compreensão da atividade de leitura num sentido mais geral, sobretudo como forma de atividade de percepção. Ele procura nesse processo não somente a analogia entre a compreensão da palavra e da imagem, como também a organização destes elementos numa escritura articulada. Para Eisner, a escritura verbal deve ser lida como imagem inserida no universo gráfico. São signos óticos associados à linguagem oral. O universo sonoro, entretanto, não se apresenta como no cinema, ele depende das projeções feitas pelo leitor, a partir das modulações propostas pelo autor. Não é incomum aficcionados por determinada história em quadrinhos se decepcionarem com as vozes quando transpostas para um filme de animação. Esses leitores já haviam introjetado uma voz própria para os personagens. Sem dúvida, os signos sonoros e os signos óticos remetem a imagens diversas, mas estão relacionados pela dimensão tátil dos elementos da página.

Na abertura do conto “Um contrato com Deus”, não só o personagem Frimme Hersh e o cenário parecem se dissolver sob a chuva que cai “sem piedade”, como também a informação verbal pontua e reforça a dramaticidade da cena. Os quadros únicos das páginas estendem o tempo de caminhada do personagem e de sua profunda desilusão. A textura verbal é constituída da mesma matéria gráfica da imagem. O letreiramento é organizado em blocos, reforçando o clima e a inflexão sonora. Alguns blocos ganham as mesmas hachuras que dramatizam toda a cena. As terminações das letras n, m e h se estendem em movimento descendente como garras. O balão é usado, segundo Eisner, como “recurso extremo” para “captar e tornar visível um elemento etéreo: o som” (2001, p. 26). A disposição dos balões em relação à fala e à ação contribuiriam para a compreensão do tempo. O letreiramento e a configuração do balão servem para caracterizar o som e acrescentar significado à narrativa, assim como para dar dimensão ao personagem. O título do conto é iconizado como um texto gravado numa pedra, numa alusão, segundo o autor, à permanência e evocação aos dez mandamentos de Moisés. A mistura da “letra hebraica versus uma letra romana” teria o “intuito de forçar esse sentimento” (Eisner, 2001, p. 11) (Figura 2).

Figura 2 - Eisner, 1988, p. 15.
Figura 2 – Eisner, 1988, p. 15.

As letras do alfabeto e a imagem visual amalgamadas dão expressividade e sentido à narrativa. Os elementos que compõem a linguagem gráfica são contextuais, não têm um sentido absoluto. Implicam noções de possibilidade. Trata-se do exercício do olhar, indefinidamente subjetivo, antes de nomear. A leitura é operada entre os elementos, no que está em aberto, de acordo como estes são estruturados. O sistema de fenômenos visuais exige o pensamento plenamente mobilizado, trabalhando sucessivas interpretações, o reconhecimento das mais visíveis similitudes, do encadeamento das coisas, por suas atrações e afinidades. Eisner apresenta como referência os princípios ideográficos por deixarem espaço para a interpretação do leitor (2001, p. 15). A questão não se coloca somente na leitura, mas na perspectiva de envolvimento profundo daquele que o lê. Na classificação de McLuhan os quadrinhos são meios frios, o leitor deve construir e completar a informação. A construção ideográfica exige um esforço de leitura que ultrapassa as linhas visíveis ou a assimilação metódica das coisas. Em prol da intenção original, o desenho indica o movimento gerador. Investe-se de articulações poéticas, por confrontos entre diferenças e semelhanças. Surgem, dessa maneira, as metáforas, as alegorias oriundas do contato momentâneo entre as coisas e o movimento que se distancia da representação da coisa em si. Na exploração dessa escritura, introduzindo variações nos dados, ensaia-se a realidade de maneira virtual. 

Como estratégia, Eisner parte do “símbolo básico, derivado de uma atitude bem conhecida”, e este “é amplificado por palavras, roupas, plano de fundo e interação (com outra postura simbólica) para comunicar significados e emoção” (2001, p. 16) (Figura 3). Valendo-se dos princípios econômicos, o que é próprio de qualquer natureza de escritura, Eisner faz uso de códigos já assimilados pelo leitor, da representação da coisa em si mesma – a pictografia antes da ideografia. Um clichê, visto que se trata de uma imagem sensório-motora da coisa, do qual, introduzindo esquivas, propõe metáforas (Deleuze, 2005, p. 31). Aos modos de um calígrafo, a obra de Eisner prima pela plasticidade e pela relação espacial dos elementos. Os movimentos dos traços são imprecisos e equívocos, não proporcionam a legibilidade “transparente” das expressões. Os traços não são retilíneos, esquemáticos ou padronizados. O intento de seu desenho não é a conquista do valor construtivo ou o detalhe claro e bem delineado proporcionado pelo talhe da pena, ele está muito mais voltado às possibilidades de modulação de um pincel, em traços fluidos, turvos e embaçados. Desse modo, o caráter expressivo dos personagens e dos demais elementos ganham potencialidade de sentido e extensão.

Figura 3 - Eisner, 2001, p. 16.
Figura 3 – Eisner, 2001, p. 16.

A questão do tempo e do enquadramento é recorrente nos estudos teóricos de Eisner. Ele evidencia a influência da estrutura narrativa do cinema sobre os quadrinhos, guardadas as particularidades das tecnologias apropriadas aos mesmos. A emulação da estrutura narrativa de outras mídias deve considerar as especificidades de um meio impresso. No cinema, as cenas seguem uma a outra e precedem outra, dispostas ao longo de uma linha animada de um sentido, girando em torno de um eixo. Segundo Butor (1962), desagradável seria procurar um detalhe nesta sequência e verificar qualquer coisa. O espectador se veria obrigado a desenrolar esta linha com base num tempo que se julga aproximado do momento em que viu determinada cena. Butor sugere a vantagem primeira do livro impresso que é fazer durar os elementos ali dispostos — o que permite não somente reproduzir a narrativa uma centena de vezes, como deixar à disposição dos olhos o que se teria deixado escapar.

Sobre a forma de disposição das linhas decompostas umas sobre as outras a formar uma coluna, tais como se configura no livro tradicional, ele assinala que o ideal seria que este corte nas linhas corresponda a uma unidade já articulada metricamente, permitindo que cada linha da escrita, cada movimento contínuo do olho, corresponda a uma unidade de significação e de audição. Butor afirma que “numa coluna de prosa, a linha é cortada não importa onde, segundo um módulo de números de signos que é perfeitamente independente do texto ele mesmo” (p. 931).  O corte nas linhas seria, então, determinado aleatoriamente conforme a bitola da coluna, que pode variar de edição para edição. Essa unidade de significação estaria no discurso, de acordo com Butor, na estrofe ou parágrafo – “a estrofe é a página perfeita como o verso é a linha perfeita” (p. 932). Conclui:

O livro tal que nós o conhecemos hoje em dia, é portanto a disposição do fio do discurso no espaço em três dimensões segundo um duplo módulo: comprimento da linha, altura da página; disposição que tem a vantagem de dar ao leitor uma grande liberdade de deslocamento em relação ao desenrolar do texto, uma grande mobilidade, que é o que se aproxima mais de uma apresentação simultânea de todas as partes de uma obra (Butor, 1962, p. 932).

Butor explicita o livro como uma certa unidade e sua decupagem em outras unidades linguísticas. Uma totalidade de informações à mão do leitor recuperáveis a partir de determinadas operações. Pode-se avançar linearmente a leitura, retornar, saltar parágrafos e páginas, deixar o livro de lado e retomá-lo com facilidade.

O livro deve ser projetado de forma a criar dispositivos de localização das informações e de conexões entre elas. Explora-se potencialmente o caráter indicial do livro. A compreensão de sua estrutura permite o acesso a elementos diversos que se conectam a partir de ações espaço-temporais que integram a informação: o folhear, a localização da página e o movimento da vista na página. A entrada e a saída respondem à dinâmica de leitura e à sinestesia do pensamento. Assim como no cinema, os quadros definem os recortes que promovem o espaço que está inscrito no interior do enquadramento e aquele exterior ao enquadramento. A participação afetiva, porém, é distinta numa mídia e noutra. Para Eisner “o cinema pretende transmitir uma experiência real, enquanto os quadrinhos a narram” (2005, p. 75). A leitura dos filmes se dão no plano da tela, e objetivam o efeito janela de captura do espectador. A câmera, em sua expressividade, pode movimentar-se traduzindo uma infinidade de pontos de vista, o que é objetivamente permitido pela montagem, mantendo o fluxo contínuo de imagens. Os fotogramas se sucedem em tempo linear e congregam tanto a visualidade da superfície como a espacialidade do som (Flusser, 2007, p. 109). Nos quadrinhos o leitor domina o seu tempo de leitura, pode folhear, deter-se numa imagem ou retornar.

Para Eisner, os quadrinhos devem se apropriar dos clichês cinematográficos já introjetados pelos espectadores, mas seria improdutivo simular a câmera cinematográfica, já que eles propiciam um ritmo de leitura mais lento e dependem da informação intelectual derivada da experiência real do leitor. A montagem dos quadros e o seu uso como indicativo da duração do evento não estão atrelados a formatos e a tamanhos fixos como ocorre no cinema ou nos quadrinhos tradicionais, nos quais os quadros têm um único formato e seguem o movimento da esquerda para a direita e de cima para baixo. Na prática, não há uma norma absoluta. O autor parte do princípio que a unidade é a página e ali constrói uma cena relacionada à sequência de páginas e de outras cenas. A cena pode ser composta de um quadro que preenche toda página ou de uma sucessão de quadros, ditando-se o ritmo da narrativa. O leitor, num primeiro momento, apreende a página como um todo e a explora temporalmente, num movimento que não segue, necessariamente, o modo de se ler um texto verbal. A leitura é topográfica e exige do leitor compreender e combinar a sequência das palavras à narrativa das imagens. O recorte no quadro permite destacar determinado detalhe, num processo metonímico de se apresentar a parte pelo todo, num jogo entre o espaço contido e o fora do quadro, o que provoca o leitor a completar a imagem de acordo com a sua experiência. As molduras, ou os requadros, podem variar e são elementos de linguagem, traduzindo atmosferas de sonhos, de conflito, de ação e de infinitude. 

As vizinhanças da avenida Dropsie são fruto das experiências vividas por Eisner em Nova Iorque. Vizinhanças de molecagens, paixões, violências e crimes. Rostos e corpos carregados de infortúnio diante do irremediável. Um local pleno em vozes e de escuros labirintos que fazem dos cortiços as imagens do fundo do poço social, sem reverberação dos cânones reivindicatórios que apresentem uma alternativa.  Na avenida Dropsie, um jovem soldado idealista que retorna da guerra é coagido a mudar uma estação de local, o que acaba por transformar a avenida num grande cortiço. Uma jovem paralítica vive sonhos se dedicando ao jardim da última casa da avenida e termina por se casar com um ladrão mudo que, desavisado, se refugia no seu jardim. Décadas depois ela retorna como uma magnata capaz de comprar a região, já totalmente destruída, para fundar uma nova comunidade residencial de casas com jardins. Uma beata se mobiliza contra a presença de um prostíbulo e é jogada do terraço de um prédio. Um catador e vendedor de quinquilharias extrai, dos resíduos da cidade, a possibilidade de comprar um prédio. Uma menina seduz um porteiro solitário, envenena seu cachorro e rouba suas economias. O porteiro, se vendo acusado de maníaco sexual ao persegui-la, se mata com um tiro na cabeça. Uma enamorada grávida que aborta é estigmatizada como vagabunda e vê o seu destino selado. Eisner traduz em seus traços a crueza da vida. A marca de cada gesto é definitiva e não pode ser velada. Ao mesmo tempo não é possível colocar um ponto final na história de um lugar enquanto ali houver pessoas. Não existem lugares, existem pessoas. Eisner pensou os desígnios dos quadrinhos e construiu uma literatura completamente particular. Ele constituiu, com a criação da avenida Dropsie, um mundo imaginário inspirado em suas próprias observações sobre a cidade, nas quais se manifestam os desejos, os sonhos e os mitos do homem.


* Rogério Câmara é doutor e mestre em comunicação pela Escola de Comunicação – UFRJ, graduado em comunicação visual pela PUC-RJ e professor adjunto da Universidade de Brasília. Atua nos programas de pós-graduação em artes e em design, ambos da UnB. Realiza pesquisas sobre poesia visual com interesse nas relações entre escrita e cidade, é autor do livro Grafo-sintaxe concreta: o projeto noigandres e organizador dos sites Enciclopédia Visual e Poema Processo, entre outras publicações.

Referências

BUTOR, Michel. “Le livre comme objet”. Critique, Paris, n. 186, p. 929-946, nov. 1962.

DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 2005.

EISNER, Will. A força da vida. São Paulo: Devir, 2007.

______. Avenida Dropsie: a vizinhança. São Paulo: Devir, 2004.

______. Narrativas gráficas. São Paulo: Devir, 2005.

______. Quadrinhos e arte sequencial. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

______. Um contrato com Deus e outras histórias de cortiço. São Paulo: Brasiliense, 1988.

FLUSSER, Vilém. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. São Paulo: Cosacnaify, 2007.

MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. São Paulo: Cultrix, 2000.

SCHUMACHER, Michael. Will Eisner: um sonhador nos quadrinhos. São Paulo: Globo, 2013.

Tempo de leitura estimado: 18 minutos

Ficção científica literária e compra por impulso: como alavancar o livro em papel num mercado pós-moderno | Ivo Heinz e Octavio Aragão*

Essas capas abstratas parecem coisa de autor e editor que
têm vergonha de publicar ficção científica.
Jorge Luiz Calife

Neste artigo vamos nos ater à compra de livros nos pontos-de-venda, isto é, as livrarias e bancas que expõem este tipo de produto. Mesmo sabendo que nos tempos de e-commerce o avanço das ferramentas de procura e concorrência são muito grandes, normalmente o comprador/usuário que utiliza o meio virtual possui outras maneiras de buscar seu produto. Assim, o bordão “a distância entre você e seu concorrente é um clique do mouse” pauta este trabalho, no qual analisaremos os processos decisórios que levam o consumidor de livros a optar por esta ou aquela obra, mesmo numa compra por impulso, ou quando acaba não levando nenhum produto depois de passar os olhos pelas prateleiras de uma livraria.

Muito se comenta sobre a entrada de dispositivos de leitura eletrônica (Kindle, Kobo, aplicativos de smartphones), e da facilidade de ler através de arquivos eletrônicos, e-books, mas a velocidade em que os e-books ganham mercado está desacelerando: nos Estados Unidos, após um crescimento nas vendas de e-books da ordem de 252% em 2010, as vendas aumentaram 159% em 2011, 28% em 2012 e, segundo números da Association of American Publishers (AAP), somente 5% nos primeiros três meses de 2013 (Figura 1).

Figura 1 - Tabela indicativa do crescimento de vendas de e-books nos EUA, em 2013 / Fonte: AAP.
Figura 1 – Tabela indicativa do crescimento de vendas de e-books nos EUA, em 2013 / Fonte: AAP.

Nessa mesma linha de entendimento do comportamento do mercado, de acordo com pesquisa da Nielsen no Reino Unido, as vendas de e-books em detrimento dos livros digitais estão se estabilizando, com cerca de 10,3% da receita total e 21,7% do total de exemplares vendidos. Portanto, as vendas físicas de livros continuam a ser importantes para o mercado varejista livreiro, situação que deve perdurar ainda por algum tempo. Se, além disso, levarmos em consideração algumas premissas, os livros podem ser considerados commodities, porque são itens padronizados. Em qualquer livraria física ou virtual o consumidor vai encontrar o mesmo item, portanto o livro em si tem de possuir algum destaque que chame a atenção do consumidor e a livraria terá de se diferenciar no serviço.

Como estratégias para fornecimento de commodities são bastante limitadas e a rentabilidade desse tipo de negócio costuma ser baixa, recomenda-se sempre investigar a possibilidade de transformar um produto ou serviço indiferenciado em algo único, diferente dos demais, exclusivo, ao menos na cabeça de quem vai comprá-lo ou usá-lo (Costa, 2009, p. 170).

Varejo físico

Num fenômeno que já ocorreu no varejo em geral, a concentração de grandes redes no comércio e a diminuição das pequenas lojas começou a ser visto aqui no Brasil a partir da década de 90, graças ao aumento de renda da população e uma economia mais estável. O varejo no geral teve um grande impulso, e mesmo no varejo livreiro isto não foi exceção: grandes redes internacionais desembarcaram aqui e o mercado começou a se concentrar, uma rede comprando ou se associando à outra (como no caso da compra da Siciliano pela Saraiva) ou montando operações próprias como a Fnac etc.

Essa concentração do varejo em geral permite operações administrativas mais enxutas, minimizando parte do custo fixo, gerando maior capacidade de investimento em relação ao seu faturamento e, devido ao tamanho, negociando preços diferenciados com a indústria. Por outro lado, a indústria também se concentra e sente sua margem de lucro diminuindo pela concorrência e descontos praticados pelas grandes redes.

Estamos vendo este mesmo fenômeno no mercado livreiro, com o qual acaba tendo mais semelhanças do que diferenças, permitindo ao cliente andar por entre as prateleiras, a divisão e setorização do ambiente por áreas, usando classificações de estilos versus tipo de produto, a possibilidade de verificação da embalagem ou capa etc.

Na Economia, o ser humano é colocado como agente e paciente de processos de produção e troca. O homem tem necessidade e desejos finitos que se contrapõem às suas possibilidades finitas e limitadas de satisfazê-los. Não podemos adquirir tudo que desejamos, por isso, temos de escolher. Nessa situação, o consumidor busca a maximização do prazer, em um processo racional de solução de problemas (Gade apud Giglio, 1980, p.11).

Chegamos ao caso do consumidor dentro da livraria, num resumo muito simplista: ele já se dirige ao atendente perguntando sobre determinada obra ou onde encontra livros de um determinado autor. Nesses casos já existe um desejo preliminar do consumidor, seja por uma indicação anterior ou informação prévia, em buscar certa obra e parte da decisão já está tomada, o interesse já existe mesmo antes de adentrar a livraria. A estratégia, então, deve ser, além de possuir o livro almejado, tentar mostrar títulos semelhantes, obras do mesmo autor ou de tema parecido (não é por acaso que livros de autores que alcançaram sucesso recente nas livrarias, como George R. R. Martin e Susanna Clarke, são comparados em suas capas, por intermédio de blurbs publicitários a J. R. R. Tolkien, autor de fantasias épicas que ostentaram grandes vendas no passado). Se a livraria não possuir o título procurado, pode-se considerar como um caso de ruptura, que discutiremos mais adiante.

Compra por impulso

Um dos objetivos secundários deste artigo é discutir a compra por impulso, pois muitas vezes o consumidor em potencial está passando os olhos pela prateleira em um determinado assunto e acaba tendo sua atenção voltada a um título em especial. Giglio chega a falar do “Inconsciente do consumo”:

Na Psicologia Clínica, a teoria de Freud afirma que as pessoas não conhecem seus verdadeiros desejos, pois existe uma espécie de mecanismo de avaliação que determina quais deles poderão tornar-se conscientes e quais não (Giglio, 1980, p. 38).

Outra possibilidade é o consumidor vagar entre as gôndolas ou prateleiras, examinando lombadas ou livros dispostos nas mesas defronte os corredores. Eis uma oportunidade para a livraria conseguir uma compra por impulso. Como, porém, se pode definir uma compra por impulso?

Os relatos e explicações apontam para o conceito de um processo rápido e não planejado, guiado por estimulação momentânea. Profissionais do varejo aceitam o conceito de compra por impulso em oposição à compra racional (Gade apud Giglio, 1980, p. 216).

Podemos, assim, considerar uma compra impulsiva como uma aquisição não planejada? Ao contrário do que escrevemos no início deste texto, o consumidor que não entrou na loja sabendo qual livro queria, não inquiriu o atendente e não fez uma rápida coleta do seu livro na prateleira fez uma compra por impulso?

Talvez, mas temos de levar em conta que as grandes livrarias são, hoje, estabelecimentos de varejo de autoserviço; o consumidor pode, muito bem, dirigir-se a um determinado corredor ou prateleira que tenha os títulos de seu autor de preferência e/ou estilo, checar se havia o título que necessitava, pegar o livro e ir para o balcão pagar. Nesse exemplo, não foi uma compra por impulso, pois o consumidor já sabia de antemão o que queria, apenas não pediu auxílio. Ainda assim, o tempo que o consumidor gastou na procura pode ser útil para que perceba outro título de seu interesse, ou ainda uma nova obra de um autor já conhecido e acabe levando mais de um livro.

De qualquer forma, é importante que a compra por impulso seja facilitada ao consumidor, sendo um ponto a mais na estratégia da livraria para aumentar o faturamento:

Títulos dispostos por tema: uma atitude logística que ajuda bastante, pois o consumidor pode procurar um determinado autor e, na mesma prateleira, ver obras do mesmo gênero, ou ainda trabalhos semelhantes ao de outros autores que já tenha lido ou ouvido falar.

Separação por autores ou em ordem alfabética dentro do mesmo tema: se possível separar por autor ou título, isto facilita a procura quando há muitos autores ou diversos títulos dentro de um mesmo tema. Muito usado para os livros de autoajuda, mas também para os de fantasia, policiais e ficção científica. Nesse caso, a ficção científica sofre com o desconhecimento do lojista, que tende a classificar autores especializados em pseudociência, como Erich Von Danniquen, como ficção científica, criando confusão e potencial insatisfação do público alvo, geralmente especialista no que consome.

Cuidado ao alinhar os livros: algumas editoras usam a formatação de lombadas no padrão francês, outras no padrão americano; na primeira a lombada é legível, quando vista com o livro em pé, de baixo para cima; já a outra é ao contrário, com o livro em pé, a leitura se faz de cima para baixo. Isto pode complicar a visualização do consumidor, pois ele estará correndo os olhos pela prateleira da esquerda para a direita, por exemplo, e, se um livro se apresentar com a lombada diferente dos demais, não será lido nesta sequência. É bom lembrar que nem sempre o consumidor passa os olhos pela prateleira na sequência inversa.

Figura 2 - As diferenças de formatação de lombadas, segundo os padrões franceses e ingleses.
Figura 2 – As diferenças de formatação de lombadas, segundo os padrões franceses e ingleses.

Portanto, se o comprador já conhece a obra, boa parte do impulso pode (ou não) ser resolvido, pois uma boa referência ajuda a querer conhecer mais daquele autor. Se o consumidor não teve boa referência anterior, o efeito é o contrário, o que compromete uma potencial segunda (ou terceira) passada de olhos. Mas, quando chegamos ao ponto de o consumidor pegar o livro nas mãos, ou mesmo visualizá-lo nas pilhas das mesas, locais onde, à semelhança com o varejo, são negociados com as editoras, aí temos mais um ponto na tomada de decisão do consumidor: a capa.

A princípio, uma visão imediatista indicaria que uma capa com grafias de difícil interpretação pode atrapalhar o entendimento do consumidor, diminuindo seu interesse, e, consequentemente, as chances de vendas, o que nos jogaria automaticamente na coleção de clichês ilustrativos geralmente relacionados a cada gênero da literatura de cunho popular. No caso da ficção científica, torna-se difícil não imaginar, automaticamente, naves espaciais, robôs e cenários de planetas inóspitos. Uma capa que consiga trazer estes elementos, mesmo se o autor é completamente desconhecido do consumidor, o insere em um gênero e o auxilia a tomar sua decisão. Porém, diferente dos gêneros policial e romance açucarado, a ficção científica guarda características únicas que obrigam os designers gráficos a deixarem os clichês de lado, ousando em prol de uma combinação entre o conteúdo nem sempre simplório e signos gráficos evocativos de profundidade semelhante sem incorrer no risco de matar o maravilhamento típico da literatura. A questão é que uma iconografia clichê, apesar de indicar ao leitor desavisado a que gênero o livro pertence, também depõe contra uma eventual profundidade conceitual e de forma.

Porque a ficção científica é um gênero tão estranho, capaz de mesclar ideias abstratas com manifestações concretas, é quase sempre representada por material pictórico de alta qualidade, apesar de em muitos casos, o leitor ser convidado a conjurar em sua própria mente os detalhes das ilustrações em parceria com a imaginação do artista. Eis porque o lado pictórico da ficção científica tem atraído tanto a atenção do público quanto o conteúdo intelectual se tornou mais popular (Kyle, 1975, p. 10).

Um bom exemplo da dicotomia entre uma capa com clichês e um conteúdo denso, é a ilustração de capa da primeira edição de Neverness, de David Zindell, onde se vê um foguete sobrevoando uma paisagem futurista – no sentido retrô, ou seja, o futuro que era divisado nos anos de 1940 e 50, com arranha-céus fálicos e dourados. O romance, famoso por seu aprofundamento filosófico em questões sérias como incesto e complexos edipianos, ganha uma capa que vende uma aventura escapista, esquecível e igual a diversas outras, afastando um público mais refinado e atraindo outro tipo de consumidor, que busca tramas mais simples. O resultado potencial disso é que o público alvo pode não ser alcançado, enquanto que o consumidor atraído pode se sentir enganado pelo livro adquirido.

Figura 3 - Capa de Neverness, romance de David Zindell: elementos que apelam aos clichês do gênero.
Figura 3 – Capa de Neverness, romance de David Zindell: elementos que apelam aos clichês do gênero.

Caso inverso ocorre com algumas capas da coleção de ficção científica da editora brasileira Aleph, que exibem um esmerado projeto gráfico pensado não apenas para compor uma releitura do conteúdo do romance, mas também para criar um jogo mental com o leitor. Tais capas, apesar de obedecerem aos parâmetros ideais de um projeto de design, muitas vezes desagradam o consumidor, que não as identifica com o gênero. A capa do livro Encontro com Rama, de Arthur C. Clarke, por exemplo, que usou de um abstracionismo geométrico para emular a nave espacial que é o cerne da história, gerou reclamações por parte de alguns especialistas em ficção científica, mais notadamente o escritor Jorge Luiz Calife, autor de “2002”, conto que inspirou Clarke, autor de “2001”, a conceber a continuação “2010”. Em um blog que comentava o design da capa, Calife expôs sua opinião:

Alfredo Machado, fundador da editora Record, dizia que a embalagem de um livro devia ser tão bonita e sedutora quando a embalagem de um sabonete. Para atrair o interesse do leitor na livraria. Quem vai se interessar por um livro com um canudo de papel na capa? Isso é delírio de artista gráfico que não está nem ligando se o livro vai vender bem ou não. (…) Essas capas abstratas parecem coisa de autor e editor que tem vergonha de publicar ficção científica e quer esconder que o livro é de ficção científica (Calife).

Figura 4 - Capa de Encontro com Rama, romance de Arthur C. Clarke: design geométrico e polêmico.
Figura 4 – Capa de Encontro com Rama, romance de Arthur C. Clarke: design geométrico e polêmico.

Resumindo, para que haja uma compra por impulso, é necessário que vários fatores interajam, num equilíbrio por vezes precário e que varia de acordo com a expectativa em torno de cada peculiaridade relacionada aos gêneros, para que o consumidor tome o livro em suas mãos, leia a contracapa e até a lombada. Se isto não acontecer, se o consumidor não pegar o livro em mãos para analisar melhor, a chance de uma compra por impulso será bem menor.

Ruptura

Como se não houvesse problemas advindos de poucas redes distribuidoras, diversos títulos na mesma prateleira ainda correm o risco de sofrer o que se costuma chamar de ruptura. No varejo, conceitua-se ruptura como “uma situação onde há algum item regularmente comercializado por um ponto de venda, ocupando um espaço determinado nas gôndolas, e esse item, não está disponível na área de vendas ao consumidor no momento da compra” (Aguiar, 2010).

Como consumidor, é desgastante ir a qualquer estabelecimento de varejo e não encontrar o produto desejado. No caso dos livros e outros tipos de varejo, é um complicador a mais nos tempos de e-commerce, pois pode reforçar no consumidor a vontade de pesquisar em casa, onde pode encontrar o título pela internet, ou seja, retira-se mais uma venda do varejo de livros real em prol do varejo virtual. E, lembrando sempre, no varejo virtual a distância entre dois varejistas é apenas um clique de mouse.

Como cita Ballou:

A telentrega de fast food, os caixas automáticos dos bancos, a entrega via aérea/24 horas e o correio eletrônico na internet criaram entre nós, consumidores, a expectativa de produtos e serviços disponibilizados em prazos cada vez mais reduzidos. Paralelamente, sistemas de informação aperfeiçoados e processos flexíveis de produção levaram o mercado à padronização em massa. Em lugar de clientes obrigados a aceitar filosofia do tipo “tamanho único”, hoje são os fornecedores que se veem forçados a oferecer variedade cada vez maior de produtos para satisfazer necessidades e exigências crescentemente diferenciadas dos clientes (Ballou, 2006, p. 38).

Logicamente, o estoque que o livreiro tem em seu estabelecimento estará sujeito às incertezas que têm uma influência direta nas suas políticas.

Há dois tipos de incertezas que têm influência direta nas políticas de estoque. O primeiro diz respeito às incertezas da demanda, as quais dão origem a flutuações nas quantidades de vendas durante o ciclo de atividades. O segundo tipo abrange incertezas relacionadas com a duração do ciclo de atividades, as quais dão origem a variações no ciclo de ressuprimento de estoque (Bowerson & Closs, 2001, p. 242).

Considerações finais

O mercado, apesar de continuar crescendo e mostrar a tendência de que os livros físicos continuarão a ter boa vendagem, é cada vez mais competitivo, pelo aumento do e-commerce ou da própria concorrência entre as redes de livrarias. É fundamental que tanto quem produz livros quanto quem os vende entenda que as oportunidades de venda são eventos raros e que envolvem muitos dados aos quais não temos controle, pois dependem da preferência de um número grande e não uniformizado de decisões dos consumidores.

Conseguir atrair a atenção destes consumidores para livros de gênero, seja com capas que exaltem os clichês seja, ao contrário, com as que criam uma nova possibilidade interpretativa, boa apresentação, ordenamento por assunto e autor, planejamento do estoque etc. é um grande desafio, mas também pode ser a chance de aumentar o sucesso nas vendas, ou ao menos evitar o fracasso.


* Ivo Heinz é engenheiro de produção pela FEI e pós-graduado em Metodologia e Didática na mesma instituição. Professor de disciplinas de Logística no grupo Anhanguera (campus Brigadeiro), colaborador de material de apoio para Ensino à distância dos cursos de tecnologia em Logística. Trabalhou com a logística de livros e publicações e deu consultoria a editoras diversas em títulos de vários temas.

* Octavio Aragão é doutor e mestre em Artes Visuais pela EBA-UFRJ, onde também se graduou em Comunicação Visual. Pós-graduado pelo PACC/UFRJ, é professor adjunto na ECO-UFRJ onde ministra as cadeiras de Jornalismo Gráfico 1 e 2 desde 2009, além de ser Coordenador de Intercâmbio. Autor dos livros A mão que cria (2006), Reis de todos os mundos possíveis (2013) e coautor de Imaginário brasileiro e zonas periféricas (2006).

Referências

AGUIAR, F. et al. Gestão da ruptura no varejo de alimentos. XXX Encontro Nacional de Engenharia de Produção, São Carlos (SP), outubro de 2010. Disponível em http://www.abepro.org.br/biblioteca/enegep2010_TN_STO_113_741_15651.pdf

CALIFE. J. L. Comentário disponível em http://esooutroblogue.wordpress.com/2011/07/14/capas-de-encontro-com-rama-qual-a-melhor/. Acesso em 25 fev. 2014.

CÔNSOLI, M. A. et al. Estratégias de rede de empresas: o associativismo no pequeno varejo alimentar. VII SEMEAD – Gestão de Varejo. FEA-USP, São Paulo, 2004. Disponível em http://www.ead.fea.usp.br/semead/7semead/paginas/artigos%20recebidos/Varejo/VAR10__-_Estrat%E9gias_Peq_Varejo.PDF

COSTA, E. A. Estratégia e dinâmica competitiva. São Paulo: Saraiva, 2009.

BALLOU, R. H. Gerenciamento da cadeia de suprimentos / Logística empresarial. Porto Alegre: Bookman, 2006.

BOWERSOX, D. & CLOSS, D. Logística empresarial. São Paulo: Atlas, 2001.

GIGLIO, E. M. O comportamento do consumidor. São Paulo: EPU, 1980.

KYLE. D. A pictorial history of science fiction. London: Hamlyn, 1975.

Links consultados:

http://www.slideshare.net/IfBookThen/ibt-final-edit

http://www.bic.org.uk/files/pdfs/Understanding%20ebook%20migration_Andre%20Breedt.pdf

http://www.thebookseller.com/news/fiction-rules-2012-e-book-sales.html

http://publishingperspectives.com/2012/10/looking-at-us-e-book-statistics-and-trends/

Tempo de leitura estimado: 27 minutos

Mitografia sequencial: fabulação, pastiche e o universo de Wold Newton nos quadrinhos americanos das últimas cinco décadas | Sean Lee Levin*

O que é Wold Newton e quem o inventou

Em seus livros seminais, Tarzan alive e Doc Savage: his apocalyptic life, o recentemente falecido Philip José Farmer, considerado um mestre da ficção científica, pretendeu contar as histórias reais dos homens a respeito de quem os autores Edgar Rice Burroughs e Lester Dent, criadores de Tarzan e Doc Savage, escreveram em suas séries de aventuras muito populares nas primeiras décadas do século 20. Indo além do pastiche1, ele confeccionou uma vasta árvore genealógica, na qual não apenas o Rei das Selvas e o chamado “Homem de Bronze” eram aparentados, como também diversos dos grandes heróis e vilões da literatura popular, os chamados pulps, romances de aventuras e mistério2.

A hipótese de Farmer era que, em 1795, um grupo de pessoas estaria em carruagens, atravessando o vilarejo de Wold Newton, em Yorkshire, quando um meteoro atingiu a terra não muito longe dali (o evento da queda do meteoro em Wold Newton é real, mas todas as pessoas identificadas por Farmer eram ficcionais). De acordo com Farmer, a ionização e radiação decorrente da queda do meteoro teriam afetado os homens e as mulheres próximos ao impacto, muitos dos quais já possuidores de excepcionais características hereditárias. Algumas das mulheres estariam em estado adiantado de gravidez e suas proles resultariam em indivíduos extraordinários e essa nova geração, graças a casamentos entrecruzados, também produziria uma descendência fora do comum, possuidora de habilidades físicas e mentais muito acima do homem comum.

Além dos já mencionados Tarzan e Doc Savage, Farmer incluiu dúzias de heróis e vilões ficcionais àquilo que batizou de Wold Newton Family, incluindo Sherlock Holmes e seu arqui-inimigo, professor Moriarty; A.J. Raffles; Professor Challenger e seu amigo Lord John Roxton; Nero Wolfe; Bulldog Drummond e o vilão Carl Peterson; Dr. Fu Manchu e seu adversário Sir Denis Nayland Smith; o Sombra; o Aranha; G-8; o Vingador; Travis McGee; C. Auguste Dupin; Lord Peter Wimsey; Arsène Lupin; Ludwig Horace Holly; Monk Mayfair, um dos cinco auxiliares de Doc Savage; John Clay, aka Colonel Clay; Dr. Caber; e muitos mais.

O exercício de Farmer em “mitografia criativa” (usando um termo cunhado por ele próprio)3 inspirou outros autores, tais como Alan Moore e Kim Newman. Moore admitiu abertamente a influência dos preceitos de Farmer em sua série As aventuras da Liga Extraordinária4, produzida em parceria com o ilustrador Kevin O’Neill, que apresentava um grupo de personagens originários de um número incontável de obras ficcionais convivendo num mesmo universo.

Philip José Farmer foi uma influência seminal (sobre a Liga Extraordinária). Quer dizer, li seus Tarzan alive e Doc Savage: his apocalyptic life, que têm toda aquela árvore genealógica da família “Wold Newton” conectando todos os heróis de aventuras pulp. Apesar de termos ido um pouco mais longe que isso com a Liga, não sei se teríamos sequer pensado nisso se não fosse o exemplo primordial de Philip José Farmer (Moore, s/d).

Por diversas vezes Kim Newman declarou seu respeito por Farmer pelo fato de ter sido um antecessor para sua série literária Anno Dracula5, uma audaciosa história alternativa na qual o Conde Drácula triunfa sobre o grupo liderado pelo professor Van Helsing, contrai matrimônio com a rainha Vitória e revela ao grande público a existência de vampiros. Anno Dracula é cheio de participações especiais e referências a diversos personagens históricos e ficcionais.

Não faço questão de ser considerado o inventor desse estilo – Philip José Farmer fez isso nos anos 70, Howard Waldrop criou uma tonelada de histórias e consigo pensar em muitos, muitos outros precedentes, de Henry Fielding a Nicholas Meyer, chegando a uma temporada do seriado televisivo Doctor Who, nos anos 60 (Newman, s/d).

Um grupo inspirado pelos textos de Wold Newton foi o Wold Newton Meteoritic Society, que publicou cinco números de um fanzine chamado The Wold Atlas, responsável por expandir conceitos de Farmer. Durante o processo, o grupo também incluiu personagens que não constavam da “família Wold Newton”, mas que estariam associados por aproximação. Em 1997, um admirador de Farmer chamado Win Scott Eckert, a princípio desconhecendo a existência da Wold Newton Meteoritic Society, criou o primeiro website dedicado à família Wold Newton. Uma parte do site era dedicada à “cronologia do universo de Wold Newton”, onde um tipo de artifício parecido com o jogo conhecido por Six degrees of separation, que estabelece seis graus de separação entre todas as pessoas do mundo, foi usado para importar personagens de outros trabalhos ficcionais por intermédio de histórias que demonstrassem a possibilidade de sua convivência com personagens já considerados como membros da família Wold Newton. Um dos exemplos favoritos de Eckert é o romance de David McDaniel, The rainbow affair, baseado na série de TV O agente da U.N.C.L.E., muito popular nos anos 1960. Nesse livro, os agentes Napoleon Sole e Illya Kuryakin encontram versões disfarçadas ou não diretamente mencionadas de Sherlock Holmes, Sir Denis Nayland Smith e Fu Manchu, John Steed e Emma Peel, o Santo, Miss Marple, Padre Brown, Tommy Hambledon e inspetor Roger West. O Departamento Z, James Bond e Neddie Seagoon também são mencionados.

De acordo com a metodologia de Eckert, já que Holmes, Smith e Fu Manchu são estabelecidos como membros da família Wold Newton, os elementos de outros personagens envolvidos na trama necessariamente fazem parte do mesmo universo ficcional, que Eckert batizou como “The Wold Newton Universe”, ou WNU (Eckert, 2010, p. 2). Encontros subsequentes (ou, em inglês, crossovers) entre personagens “de fora” com os membros da família, automaticamente importava os novatos para dentro desse universo. Isso, porém, não significa que esses recém-chegados sejam também parte da família. Para usar um exemplo do próprio Farmer, em Doc Savage: his apocalyptic life é revelado que o herói teria desenvolvido as bombas de gás que foram usadas para capturar King Kong. Em seguida, Farmer escreveu o conto “After King Kong fell”, onde Doc Savage, seus cinco auxiliares, juntamente ao Sombra e sua parceira Margo Lane (nenhum diretamente nomeado para evitar processos), testemunham a queda fatal de Kong do topo do Empire State Building. Já que o gorila gigante não é humano ou sequer um descendente de europeus, parece extremamente improvável que os progenitores do símio tenham sido expostos à radiação do meteoro de Wold Newton.

Diversos sites dedicados ao Wold Newton Universe surgiram na esteira da página de Eckert, que, em 2010, transformou a Crossover Chronology em uma obra em dois volumes publicada pela Black Coat Press e intitulada Crossovers: a secret chronology of the world. Como muitos dos crossovers no livro envolvem personagens que não foram incluídos na árvore genealógica de Wold Newton por Farmer, Eckert batizou esse plano onde acontecem os encontros de Crossover Universe. Este artigo discorrerá sobre algumas das histórias em quadrinhos incluídas em Crossovers, assim como outras que se encaixam na continuidade e nos personagens estabelecidos por Farmer no universo de Wold Newton.

A mitografia em quadrinhos

Um número considerável de membros da família Wold Newton tem aparecido em crossovers de histórias em quadrinhos. Tarzan tem sido o protagonista de muitas histórias publicadas pela editora Dark Horse Comics. Le monstre apresenta Tarzan em conflito com o Fantasma da Ópera, mas também é inserido nos eventos ocorridos durante o primeiro romance de Burroughs. A mesma equipe criativa produziu The modern Prometheus, história na qual o Senhor da Selva enfrenta o monstro de Frankenstein. Já em Tooth and nail, que sucede o encontro com a criatura de Shelley, Tarzan duela com o Mr. Hyde, de Robert Louis Stevenson. Em Tarzan vs. the Moon Men, Lord Greystoke e seu filho Korak são transportados para o futuro retratado na trilogia Moon, também escrita por Edgar Rice Burroughs, criador de Tarzan. Deve-se notar que, já que os livros da série Moon descrevem uma versão alternativa do final do século 20, muito diferente daquela que vivenciamos em nossa realidade, alguns pesquisadores do universo de Wold Newton argumentam que aquela talvez deva ser considerada uma realidade alternativa6 e não o futuro direto de Tarzan e seu filho. A minissérie em quatro partes Batman/Tarzan: Claws of the Cat-Woman, da dupla Ron Marz and Igor Kordey, colocam Tarzan em parceria com o Cavaleiro das Trevas (deve-se perceber, porém, que Eckert e alguns outros pesquisadores são da opinião que crossovers entre personagens que não são superpoderosos e os super-heróis das tradicionais editoras DC e Marvel Comics não necessariamente atraem outros supers para o universo de Wold Newton, já que eles necessariamente eclipsariam os mais tradicionais personagens dos pulps e dos romances de aventura. Além disso, a noção de centenas de super-heróis pelo mundo violaria a premissa de que o WNU se parece com o mundo que vemos através de nossas janelas. Ainda assim os supers incluídos na cronologia geralmente assumem uma versão muito menos poderosa que suas contrapartes nos quadrinhos e operam por um tempo muito menor que aquele sugerido por suas histórias. Tarzan/Carson of Venus mostra o Homem Macaco unindo forças com outro herói criado por Burroughs, assim como acontece em Tarzan/John Carter: warlords of Mars. Talvez o eclético dos crossovers da Dark Horse envolvendo Tarzan tenha sido Tarzan vs. Predator at the Earth’s Core, que reuniu tanto os filmes da série Predador, quanto os romances de Burroughs sobre Pellucidar, uma terra selvagem no centro da Terra, que também já havia sido cruzada com Tarzan pelas mãos do próprio autor no romance Tarzan at the Earth’s Core. Fechando o ciclo com Tarzan, Tarzan in The land that time forgot inseriu o Lorde das Selvas no cenário das novelas de Burroughs sobre a ilha de Caspak, situada na Antártida e lar de diversas raças que derivam da pré-história.

Figura 1 - Doc Savage encontra o Sombra pela primeira vez, na revista The Shadow Strikes (1989-1992), da DC Comics.
Figura 1 – Doc Savage encontra o Sombra pela primeira vez, na revista The Shadow Strikes (1989-1992), da DC Comics.

Foi nos quadrinhos que Doc Savage encontrou por duas vezes seu parente woldnewtoniano, o Sombra. Em The conflagration man, uma história em quatro partes dentro dos títulos The Shadow strikes! e Doc Savage, publicados pela DC Comics, fica implícito que ambos aprenderam a arte marcial conhecida como baritsu com o criador do estilo. Baritsu, um tipo de boxe japonês, foi na verdade inventado pelo escritor Arthur Conan Doyle em uma aventura de Sherlock Holmes chamada The adventure of the empty house. Outra minissérie, dessa vez em dois episódios, The Shadow and Doc Savage, lançada pela Dark Horse, mostrava os heróis encontrando o mesmo Dr. Reinstein que mais tarde seria o responsável pela criação do “soro do super-soldado” que transformaria Steve Rogers no personagem conhecido como Capitão América. Além de si próprios, o Sombra e Doc Savage encontraram outros heróis dos quadrinhos e dos pulps em narrativas ilustradas. Nas histórias Who knows what evil—? e The night of the Shadow, Batman e o Sombra juntaram forças, e o Cavaleiro das Trevas revelou que o herói mais velho foi uma de suas grandes inspirações. Em The night of the Avenger, o Sombra trabalhou com o herói dos pulps criado por Paul Ernst, Richard Henry Benson, mais conhecido como o Vingador, também identificado por Farmer como membro da famíllia Wold Newton. Em Body and soul, um arco de histórias criado por Andy Helfer and Kyle Baker para a controversa série do Sombra da década de 1980, que adequava o personagem para a contemporaneidade, uma versão envelhecida de Benson aparecia e os encontros anteriores entre os personagens eram citados.

Quando a Marvel Comics tinha os direitos de publicação de Doc Savage, na década de 1970, produziram dois crossovers entre ele e os personagens de seu catálogo. Em The yesterday connection, o Homem-Aranha resolveu uma ameaça com a qual Doc havia lidado anteriormente, em 1930. Em Black Sun lives, Doc Savage e seus assistentes Monk Mayfair e Renny Renwick são lançados no futuro até os dias atuais, onde combatem um vilão ao lado do Tocha Humana e do Coisa, dois membros do Quarteto Fantástico (apesar de alguns estudiosos do universo de Wold Newton não incluírem equipes de super-heróis, o Quarteto Fantástico é, geralmente, considerado aceitável, e, com exceção do Coisa, todos têm laços de parentesco, o que vai de encontro ao foco de âmbito genealógico do universo ficcional. Eles também têm uma origem em comum, enquanto outros grupos como os Vingadores, a Liga da Justiça ou os X-Men possuem diversos membros que começaram suas carreiras sob circunstâncias diferenciadas).

The Rocketeer, de Dave Stevens, apresenta um anônimo Doc Savage como o inventor da mochila a jato usada pelo personagem principal, Cliff Secord. Na sequência, The Rocketeer: Cliff’s New York Adventure, o protagonista encontra um homem chamado Jonas, que é o Sombra disfarçado. Um crossover incluindo Doc Savage que não é geralmente aceito como parte da continuidade do universo Wold Newton Universe é a série de curta duração produzida pela DC, batizada como First Wave. Tais histórias, que mostravam Doc Savage coexistindo com o Vingador, Batman e o Spirit, criação de Will Eisner, e tendo como cenário um século 21 alternativo com ares da década de 1930. Como argumento para a rejeição da parte dos críticos, é o fato de muitos dos personagens terem sido desnecessariamente alterados, sendo o Vingador, em particular, o que mais sofreu mudanças radicais, transformando-se em um anti-herói matador de criminosos, em lugar de armar situações para que os bandidos fossem vítimas de seus próprios esquemas, como acontecia em suas aventuras originais, nas revistas pulp.

Figura 2 - Rocketter, personagem nostálgico de Dave Stevens, nas edições da Comico Comics (1988).
Figura 2 – Rocketter, personagem nostálgico de Dave Stevens, nas edições da Comico Comics (1988).

Além de uma série de romances e novelas, incluindo algumas de autoria de estudiosos de Wold Newton, tais como Eckert ou Matthew Baugh, a editora Moonstone publicou diversas revistas em quadrinhos com personagens já estabelecidos, assim como crossovers que introduziram outros ao WNU. Sherlock Holmes and the Clown Prince of London mostrou o maior de todos os detetives encontrando o Ladrão de Casaca criado por Maurice Leblanc, Arsène Lupin, outro membro da família, de acordo com Farmer (sempre cabe notar que Leblanc fez com que Lupin encontrasse Holmes em diversos romances anteriores, sendo que no primeiro deles Holmes foi rebatizado como “Herlock Sholmes” ou “Holmlock Shears”, nas traduções inglesas, por questões de direitos autorais). Sherlock Holmes & Kolchak the Night Stalker, uma minissérie em três números, apresentava Holmes e o investigador vivido por Darren McGavin no seriado televisivo homônimo dos amos 1970 investigando o mesmo evento em séculos diferentes. Tanto Blooded quanto a história em dois números Domino Lady/Sherlock Holmes mostravam Sherlock colaborando com a heroína mascarada dos pulps “picantes” escritos por Lars Anderson. O especial Kolchak: the night stalker and Dr. Moreau tinha Carl Kolchak encontrando o herdeiro do cientista louco de H.G. Wells e outra edição única, Honey West & Kolchak, mostrava Carl em parceria com a sexy detetive criada por G.G. Fickling. Já Honey West/Captain Action/That man Flint: Danger-A-Go-Go apresentava Honey cruzando o caminho dos agentes secretos Derek Flint (interpretado por James Coburn nos filmes O Homem chamado Flint e Flint contra o gênio do mal) e Miles “Captain Action” Drake (herói de uma série de brinquedos dos anos 1960).

A graphic novel Return of the originals: battle for L.A. era estrelada por Domino Lady unindo forças com diversos heróis dos pulps, tais como o Phantom Detective, de Robert Wallace, Black Cat, de G. Wayman Jones, G-8, piloto aventureiro criado por Robert J. Hogan e Secret Agent X, de Brant House. A edição especial The Spider and Domino Lady mostrava a heroína curvilínea enfrentando as forças do mal ao lado de outros personagens incluído na árvore genealógica de Wold Newton por Farmer. Phases of the moon, minissérie que se passava em diferentes décadas, encabeçada pelo Aranha, Domino Lady, Honey West, Kolchak, a rainha da selva Sheena e Buckaroo Banzai (do filme australianoThe adventures of Buckaroo Banzai across the 8th dimension). Domino Lady’s threesome mostrava a protagonista combatendo um alienígena ao lado de Golden Amazon, criação de John Russell Fearn, e The Veil, personagem criado por Hopkins e que teve sua primeira e única aparição, devido à morte do autor em 2012. Três dentre os quatro Return of the monsters especiais publicados pela editora Moonstone apresentaram crossovers. Domino Lady vs. Mummy fazia referência a Ravenwood, personagem de Frederick C. Davis’. The Phantom Detective vs. Frankenstein mostrava o combate do protagonista com o monstro de Mary Shelley. Na mesma história aparecia um descendente de Victor Frankenstein e são mencionados Domino Lady, Black Bat, o Aranha e I.V. Frost (um dublê de detetive e cientista criado por Donald Wandrei). Black Bat and Death Angel vs. Dracula, escrito por Mike Bullock, tinha Bat e o personagem de Bullock enfrentando o mais famoso vampiro da literatura7.

Nas décadas de 1970 e 1980, Marvel publica a série O mestre do Kung Fu, que apresentava Shang Chi, filho de Dr. Fu Manchu, outro dos membros da família Wold Newton. Diversos personagens dos romances de Sax Rohmer apareceram na série, com destaque para Sir Denis Nayland Smith, identificado por Farmer como sobrinho de Sherlock Holmes. Outro coadjuvante, Clive Reston, foi apresentado como filho de James Bond e sobrinho-neto de Holmes. Eckert optou por não considerar os crossovers entre Shang Chi e os super-heróis da Marvel se não fizessem referências diretas a Fu Manchu ou Smith. Isso incluiu os encontros de Shang Chi com o Homem-Aranha, Nick Fury e a Viúva Negra, além de sua aventura ao lado de Rom, Cavaleiro Espacial. Em um especial Shang Chi encontrou o Punho de Ferro e, na edição 19 de Master of Kung Fu, dividiu a cena com o Homem-Coisa, criação de Steve Gerber. A edição 19 também mostrou o encontro com o andarilho filósofo e praticante de rates marciais identificado como Kwai Chang Caine, herói da série televisiva Kung Fu. Os números 85 e 86 de O Mestre do Kung Fu mostraram Shang Chi e seus companheiros visitando uma casa noturna em Casablanca cujo dono se chamava Richard. Com certeza, Richard representava Rick Blaine, personagem do clássico filme dirigido por Michael Curtis, Casablanca, apesar da história não explicar a discrepância da aparência jovial do personagem.

Casos pontuais: a Liga Extraordinária e Vampirella

The League of Extraordinary Gentlemen, de Alan Moore e Kevin O’Neill, é um interessante exemplo de crossover em quadrinhos que apenas pode ser parcialmente inserido no WNU. Os diversos volumes de Liga Extraordinária acontecem em um mundo onde todos os personagens ficcionais já criados existem. Diversos personagens também incluídos por Farmer na família Wold Newton aparecem, entre eles Allan Quatermain, capitão Nemo, Mycroft Holmes e o Professor Moriarty, respectivamente irmão e nêmesis de Sherlock Holmes. Há ainda outro, Campion Bond, um provável antepassado vitoriano de James Bond. Apesar de os dois primeiros volumes de League se encaixarem de maneira cômoda nos parâmetros do WNU, os subsequentes se tornaram problemáticos e são quase sempre considerados como pertencentes a um universo alternativo. The black dossier acontece em um 1958 diferente do nosso, pouco depois dos acontecimentos narrados no romance 1984, de George Orwell, referidos no álbum como The big brother years, nos quais a Inglaterra possui um imenso, ativo espaço, o que não condiz com o conceito adotado por Eckert e outros, que o WNU, ao menos na superfície, é bem próximo de nosso mundo. Igualmente problemáticos são os personagens Jimmy e Hugo Drummond, que correspondem aos membros da família woldnewtoniana James Bond e Hugh “Bulldog” Drummond. Ambos são retratados em The black dossier de uma maneira bem pouco elogiável que amplifica alguns aspectos politicamente incorretos que apareciam de maneira mais discreta nos romances nos quais foram apresentados: Jimmy é um espancador de mulheres que não vê problemas em assassinar um homem inocente para favorecer a América num contrato de venda de armamento em lugar dos ingleses, o que tornaria os eventos narrados no romance O satânico Dr. No, de Ian Fleming, nada além de uma mentira inventada para encobrir suas atividades. Drummond é descrito como um racista raivoso que, ao final da história, é morto por Jimmy quando descobre os atos de traição do colega.

Century, cujos três capítulos acontecem nos anos 1910, 1969 e 2009, constrói um perfil do jovem mago Harry Potter que é incompatível com a obra de J.K. Rowling. O capítulo 1910 possui diversas referências ao 14 Duque de Gurney, do filme The Ruling Class; porém, o filme mostra o Duke se referindo a Mao Tse-Tung e Timothy Leary, o que sugere que a história se passa na contemporaneidade, além do fato do vestuário no filme parecer mais próximo daquele usado em 1972, ano de sua produção. Em 2009, Jimmy é retratado como um idoso decrépito, sofrendo de sífilis e cirrose hepática, tendo sido substituído por uma série consecutiva de agentes mais jovens, uma referência aos diversos atores que representaram Bond no cinema. Nada disso bate com o que os escritores John Gardner e Raymond Benson, responsáveis pela continuidade das histórias de Bond, retrataram em suas obras. A personagem M, que nos filmes é vivida por Judi Dench, revela-se como Emma Peel, uma agente secreta da série televisiva britânica The avengers, enquanto Raymond Benson, no romance Os fatos da morte, diz que o nome real da personagem é Barbara Mawdsley. Finalmente, os Estados Unidos e o Reino Unido são descritos, nas HQ, travando uma guerra com Qumar, um país ficcional do Oriente Médio, em lugar do Iraque.

A pequena graphic novel Nemo: Heart of ice descreve o personagem do menino inventor Tom Swift, de Victor Appleton (nome cuja grafia foi alterada por Moore para “Swyfte”), de uma maneira tão agressiva quanto o tratamento dado a Bond e Drummond. “Swyfte” é um racista que atira na perna de seu colega inventor Frank Reade apenas para diminuir a velocidade do ataque de um shoggoth, abandonando-o para morrer.

O caso de Vampirella, cujas aventuras têm aparecido em histórias das editoras Warren, Harris Comics e Dynamite Entertainment, é um desafio para qualquer estudioso de mitografia, pois as tentativas de organizar uma lógica interna sempre esbarrou em dificuldades organizacionais, fazendo dela um dos personagens mais confusos das HQ americanas, às vezes vilã, outras heroína, e até uma alienígena. A vampira encontrou-se diversas vezes com Drácula, o que, já que ela não é uma super-heroína, serviu para trazê-la para o WNU e, a partir daí, a vampira sexy serviu de ponte para que diversos personagens de editoras menores também entrassem na família Wold Newton. Em sua primeira passagem pela Warren, Vampi encontrou em mais de uma ocasião com Restin Dane, também conhecido como The Rook, cujo avô, o viajante do tempo de H. G. Wells, foi elencado por Farmer como membro da família ficcional (Farmer deu um nome ao personagem, não revelado no romance A máquina do tempo, de Wells, que seria Bruce Clarke Wildman, enquanto nos quadrinhos The Rook foi apresentado como Bruce Dane. Porém, apesar desses fatos, a genealogia de Adam Dane, pai de Bruce Dane, diverge da história da família de Bruce Clarke Wildman de acordo com Farmer. O pesquisador Dennis Hager resolveu o conflito de dados identificando o viajante do tempo como Adam Bruce Clarke Wildman, cuja conexão com a família Dane aconteceria por intermédio de sua esposa, Louise Dane). A história Vampirella and the Time Force mostra Vampi encontrando the Rook e um grupo de outros personagens da Warren, notadamente Dr. Richard Harris, da tira em quadrinhos “Pie.”

The thing in Denny Colt’s grave estabeleceu Vampi como existindo no mesmo universo que o Spirit, herói mascarado criado por Will Eisner. The headless Horseman of All-hallows eve levou Vampi e seu ajudante Pendragon a visitar a cidade de Sleepy Hollow, cenário da novela homônima de Washington Irving. Os crossovers continuaram depois que a personagem foi adquirida pela editora Harris, na década de 1990. Na minissérie de 1997, Catwoman/Vampirella: the furies, Vampi uniu forças com a ladra com um coração de ouro e tradicional inimiga/aliada de Batman (Eckert argumenta que o manto do morcego, sua tradição em combate ao crime e consequente mitologia seguiu com diversos sucessores depois da aposentadoria de Bruce Wayne, o Batman original dos anos 30. John Allen Small teorizou que a Mulher-Gato que encontrou Vampirella seria a filha de Batman com a Mulher-Gato mostrada em Claws of the Cat-Woman, o já mencionado crossover com Tarzan). Ao final da década de 1990 e durante a primeira década do século 21, foram publicados diversos crossovers de Vampirella com personagens da editora Top Cow Comics, como Magdalena, Witchblade e The Darkness. Em 2012, Dynamite Entertainment lançou uma minissérie chamada Dark Shadows/Vampirella, na qual Vampi conheceu os personagens do seriado televisivo de mesmo nome, num combate contra a vampira Elizabeth Bathory.

Além de Vampirella, a vigilante Painkiller, criada por Jimmy Palmiotti, também cruzou os caminhos de The Darkness, Ariel Darkchylde, Hellboy e do Justiceiro. Por sua vez, the Darkness encontrou Batman, os cinematográficos Aliens e Predadores, Lara Croft, Hulk, Wolverine (cuja contraparte woldnewtoniana jamais fez parte dos X-Men), Eva, Daughter of Dracula, Pitt, e Darkchylde. Hellboy, o demônio, conheceu Ghost, que também encontrou o Sombra. Hellboy já fez parceria com Batman e Starman em uma história que sugeria que os mitos de Cthulhu, de H.P. Lovecraft, tinham fundamento na realidade.

Apesar de existirem mais crossovers que se encaixariam no esquema do universo Wold Newton, este artigo visa prover um guia de encontros entre personagens que serviram para expandir o conceito cunhado originalmente por Farmer. O artifício do crossover tem sido usado na ficção por séculos e os quadrinhos utilizam essa ferramenta constantemente. Mesmo depois de quarenta e dois anos da publicação de Tarzan alive, ainda atestamos novas adições à família Wold Newton e o universo expandido não mostra sinais de exaustão. Este admirador e estudioso do conceito de Wold Newton não poderia estar mais feliz.


* Sean Lee Levin é um pesquisador norte-americano de cultura pop especializado na obra do escritor Phillip José Farmer, com ênfase nos trabalhos que envolvem a construção de uma narrativa pós-moderna relacionada ao universo ficcional de Wold Newton, criado pelo autor e desenvolvido por outros artistas. É também editor assistente do site de cultura pop She never slept (http://sheneverslept.com/newsandreviews/) e desenvolve um novo volume da série Crossovers: a secret chronology of the world, com base na obra de Win Scott Eckert.

Referências

CLUTE, J. & NICHOLLS, P. The encyclopedia of science fiction. New York: St. Martin’s Griffin, 1995.

ECKERT, W. S. Crossovers: a secret chronology of the world. Volumes 1-2. USA: Black Coat Press, 2010.

FARMER, P. J. Tarzan alive: a definitive biography of Lord Greystoke. USA: Bison Books, 2006.

______. Doc Savage: his apocalyptic life. USA: Meteor House, 2013.

______. “After King Kong fell”. In: ECKERT, W. S. & CAREY, C. P. Tales of the Wold Newton Universe. USA: Titan Books, 2013.

HAGER, D. “The great danes”. In: An expansion of Philip José Farmer’s Wold Newton Universe, aka The Wold Newton Universe. Disponível em http://pjfarmer.com/woldnewton/Articles8.htm#Danes

McDANIEL, D. The man from U.N.C.L.E. #13: the rainbow affair. USA: Ace Books, 1967.

SCHOLES. R. Structural fabulation – an essay on fiction of the future. USA: University of Notre Dame Press, 1975.

MOORE. A. Dark is the sun, by Philip José Farmer. Disponível em http://www.librarything.com/topic/116336.

NEWMAN. K. Casting a play. Entrevista disponível em http://intemblog.blogspot.com.br/2008/05/casting-play-interview-with-kim-newman.html

SMALL, J. A. “Kiss of the Vampire”. In: ECKERT, W. S. Myths for the Modern Age: Philip José Farmer’s Wold Newton Universe. USA: MonkeyBrain Books, 2005.

Notas

1 De acordo com Win Scott Eckert, os livros de Farmer inseridos na série Wold Newton seriam pastiches, a princípio e apesar de sua qualidade, por não contarem com a aprovação dos autores ou de seus representantes legais (Eckert, 2010, p. 3).

2 O conceito de mitografia, biografias de personagens fictícios como se fossem reais, é anterior a Farmer, sendo que as obras que influenciaram o autor americano, não apenas em Tarzan alive como também no conceito da “família” woldnewtoniana, foram as biografias Sherlock Holmes of Baker Street (1962) e Nero Wolfe of West 35th Street (1969), escritas por William Stuart Baring-Gould, que estabeleciam um parentesco entre os dois detetives.

3 A mitografia poderia ser considerada uma variação do conceito de “Fabulação Estrutural”, desenvolvido pelo teórico Robert Scholes, segundo o qual o grande trabalho do escritor é desafiar as interpretações “confortáveis” por parte do leitor por intermédio de uma estrutura narrativa convincente, apesar de fantástica. Assim, a mitografia, por criar um paradoxo crível (o relato biográfico de seres inexistentes) desafia o leitor e cria um novo senso de realidade com base em uma estrutura (logo, um elemento crível, mensurável) fabular (logo, uma fantasia, um devaneio) (Scholes, 1975, p. 46).

4 Disponível em http://www.librarything.com/topic/116336. Acesso em 20 fev. 2014.

5 Disponível em http://intemblog.blogspot.com.br/2008/05/casting-play-interview-with-kim-newman.html. Acesso em 20 fev. 2014.

6 Realidade paralela é um conceito oriundo da física, que postula a possibilidade de universos fractais derivados do nosso e nascidos de toda e qualquer opção, criando infinitas possibilidades de histórias. Logo, toda vez em que um indivíduo se vê diante de uma escolha, automaticamente dois ou mais universos surgem, um no qual a atitude foi tomada, outro onde nada foi feito, um terceiro onde se optou por uma ação conciliatória, um quarto onde a solução foi o conflito e assim infinitamente (Clute e Nicholls, 1995, p. 23).

7 Para conciliar as diversas versões de Drácula, Chuck Loridans propôs que o Rei dos Vampiros teria a capacidade de criar “clones de almas”, implantando suas memórias e alguns poderes em determinados seres humanos, que se tornariam vampiros comandados à distância pelo próprio Drácula, temporariamente afastado ou incapacitado. Disponível em http://www.pjfarmer.com/secret/contributors/Children-of-the-Night1.htm. Acesso em 21 fev. 2014.

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Novos mapas da pós-humanidade: a ideia de personalidades ciberneticamente compartilhadas em Emissaries from the dead e Embassytown | Fábio Fernandes*

Microfísica da pós-humanidade

O que define a pós-humanidade? Somos capazes de dizer que existe uma pós-humanidade no mesmo sentido de humanidade, isto é, uma espécie única, étnica e culturalmente diversa, mas sem diferenças genéticas entre seus membros?

Quinze anos depois da publicação do clássico How we became posthuman, de N. Katharine Hayles, estamos sendo confrontados com novas formas e sabores da pós-humanidade – não novas raças, pois o conceito de raça é obsoleto, mas certamente novos modos, novas maneiras de viver a condição pós-humana.

E, como parece ser o caso na maioria das vezes, a ficção científica é o meio escolhido para essa exibição pós-humana; é a ficção científica que nos mostra o caminho, oferecendo soluções para problemas que sequer sabíamos que tínhamos – ou, às vezes, na melhor tradição das fábulas, cautionary tales, histórias que nos pedem cautela (no caso da ficção científica, como é bastante comum, relacionadas ao mau uso da tecnologia – vide Frankenstein, por exemplo).

Como escrevemos antes em outro artigo, ser pós-humano é viver em um estado constante de mudança. Portanto, segundo uma visão canguilhemiana, do ponto-de-vista do “normal”, o pós-humano é sempre crítico: o pós-humano é sempre patológico.

Devemos nos lembrar, entretanto, que esse tipo de suposição está sujeito a mudanças – e o que é mais mutante que o futuro? Se estivermos dispostos a aceitar sem discussão a definição de pós-humanidade de Hayles (uma construção diferente que, em suas palavras, “pensa no corpo como a prótese original que todos nós aprendemos a manipular, de forma que estender ou substituir o corpo com outras próteses se torna uma continuação de um processo que começou antes de nascermos”), rapidamente nos vemos aprisionados por uma rede que já pode estar ficando pequena e restrita para o século 21, uma rede de conceitos que abrange em sua grande parte espaços virtuais, dando menos atenção a ciborgues, corpos com DNA alterado ou aprimoramentos de nanotecnologia, na qual a ficção científica recente tem nos levado a crer.

Steven Shaviro aborda essa questão indiretamente em seu ensaio The singularity is here, comparando a singularidade através das obras de Ray Kurzweil e Charles Stross. The singularity is near, de Kurzweil, e Accelerando, de Stross, tratam ambos da singularidade (Figura 1), embora o primeiro a considere garantida como algo que acontecerá com certeza até 2049 (!) e o segundo seja pura ficção científica. Ambos concordam que este evento será um momento interessante e empolgante para a espécie humana, e não seu momento mais difícil, ainda que Kurzweil seja bem mais otimista que Stross. Para ele, segundo Shaviro,

Após a Singularidade, Kurzweil nos assegura, saúde, riqueza e imortalidade – isso para não mencionar os mais incríveis games de computador e simulações – estarão disponíveis para todos de graça. Escassez será coisa do passado. Todas as barreiras e oposições binárias cairão: não haverá distinção, pós-Singularidade, entre humano e máquina ou entre realidade física e virtual (Bould, 2009).

Figura 1 – The singularity is here, de Ray Kurtzweill, e Accelerando, de Charles Stross.
Figura 1The singularity is here, de Ray Kurtzweill, e Accelerando, de Charles Stross.

Kurzweil partilha essa mesma visão de mundo otimista com Hans Moravec, que talvez seja ainda mais radical que seu colega e amigo. Moravec, em seu livro Mind children, propôs o download da consciência de corpos para computadores como a chave para a imortalidade.

Mas uma coisa que tanto Moravec quanto Kurzweil parecem ter ignorado em suas obras é o que chamarei aqui de possibilidade remix, isto é, a possibilidade de que você pode não só fazer o download de sua própria mente para um dispositivo, como também misturar sua mente com outra (ou outras) em uma espécie de caldeirão, onde você poderá preservar sua personalidade e ao mesmo tempo se misturar com outras, tornando-se, na verdade, uma espécie de terceira margem do rio, uma entidade inteiramente diversa, que não existia até então.

Essa possibilidade remix não é de minha invenção, mas é o que a ficção científica com o passar do tempo veio a chamar de mente-colmeia, em obras seminais como Last and first men, de Olaf Stapledon, The green brain, de Frank Herbert, ou The midwich cuckoos, de John Wyndham. Ao invés de uma terra de ninguém, este território está sendo mapeado já há um bom tempo, desde o mais famoso dos subgêneros da ficção científica, a space opera.

Essa “terra de muitos alguéns” vem sendo apresentada em uma ampla variedade de mentes grupais, seja no formato de diversas personalidades ocupando um único corpo, como o caso de Alia Atreides em Filhos de Duna, ou muitos corpos conectados para compor o que poderíamos considerar uma supramente (como no caso dos indivíduos que acabam se fundindo na obra clássica de Theodore Sturgeon, Além do humano).

No século 21, dois romances se destacam até o momento apresentando versões ligeiramente diferentes desse conceito de personalidades compartilhadas, acrescentando a ele a cibernética (e, portanto, um novo tipo de pós-humanidade, mais “incorporado” que a variedade mais virtualizada proposta por Hayles): Emissaries from the dead, de Adam-Troy Castro, e Embassytown, de China Miéville.

Como essas personagens vivem e progridem (ou não) nas histórias de Castro e Miéville? Qual é a natureza da relação entre ele e com outros seres humanos “normais” – mesmo se levando em conta que diversos desses ditos humanos normais seriam eles próprios considerados pós-humanos pelos padrões de hoje?

Dois humanos são um humano

Em Emissaries from the dead, somos apresentados a Andrea Cort, agente do Dip Corps (Diplomatic Corps, Corpo Diplomático em português) da humanidade, que, nesse futuro distante, é mais conhecida por uma forma abreviada de sua espécie, Hom. Sap.

Figura 2 – Emissaries from the dead, de Adam-Troy Castro.
Figura 2Emissaries from the dead, de Adam-Troy Castro.

A história acontece no mundo artificial de One One One, criado pela AIsource, que é a coisa mais alienígena que podemos ter, porque não só é uma inteligência artificial como também é um consórcio de diversas inteligências artificiais realmente alienígenas que decidiram se reunir sob sua própria agenda insondável, provavelmente milhões de anos antes que a humanidade sequer surgisse sobre a face da Terra. Então aqui somos apresentados não ao pós-humano, mas ao seu exato oposto (se tal coisa pode ser dita), uma entidade pós-alienígena.

Cort, que está nesse local para solucionar um assassinato, acaba sendo obrigada a ter de lidar com um casal de agentes de segurança cylinkados, Skye e Oscin Porrinyard. Conforme eles deixam bem claro para ela desde o começo, o fato de que são dois é um mero detalhe físico, mas irrelevante:

A mulher falou sozinha. “Nasci apenas Skye. Ele nasceu apenas Oscin.” Então os dois voltaram a falar juntos, naquela voz compartilhada que era musical, porém incômoda. “Fomos linkados aos quinze anos, e assumimos o sobrenome Porrinyard” (Castro, 2008).

Conforme eles continuam em sua explicação, uma parceria cylinkada indica que os parceiros abriram mão por complete de suas personas anteriores para criar uma terceira, que é a soma de suas partes.

Cort está intrigada, pois nunca havia visto um casal cylinkado antes. Personalidades cylinkadas são algo do qual se ouve falar e não são exatamente incomuns (“Havia, até onde eu sabia”, Cort diz a si mesma durante esse primeiro contato com os Porrinyards, “menos de três mil pares vivos”), mas também não são considerados a norma na sociedade Hom. Sap.:

Cylinking, uma operação ilegal na maioria dos mundos humanos, era um dos serviços mais desagradáveis que a AIsource Medical oferecia a outras raças sencientes. Em troca de uma percentagem de ganhos futuros, a AIsource podia conectar as personalidades de dois indivíduos separados, através de uma matriz de transmissão intangível. O processo substituía os dois indivíduos com uma gestalt maior que experimentava a vida como uma pessoa combinada. Em teoria, isso aumentava sua inteligência compartilhada diminuindo a necessidade de dedicar precioso espaço craniano com informação redundante que não precisava mais ser conhecida por ambos (Castro, 2008).

É importante dizer que Andrea Cort também não é considerada um ser humano normal, nem pelos padrões de outros humanos, nem mesmo pelos seus próprios. Após participar ativamente de um massacre em seu mundo natal ainda criança, matando tomada de fúria cega um membro de sua família, ela passou metade da vida internada em instituições até que o Dip Corps concluiu que ela poderia ser mais bem aproveitada como uma agente trabalhando para eles em regime vitalício de servidão.

Ela se considera um monstro sem sombra de dúvida, e, sendo uma espécie de detetive hardboiled à moda antiga (pensem em Sam Spade, de Dashiell Hammett, ou Philip Marlowe, de Raymond Chandler), ela é cínica mas não julga os outros – entretanto, mesmo eles levam um tempo para parar e entender uns aos outros, como na cena em que ela acabou de ter uma entrevista com a misteriosa AIsource e encontra apenas Oscin Porrinyard esperando por ela do lado de fora da sala de reuniões:

Murmurei: “Onde está sua outra metade?”
“Por quê, Conselheira? Ficaria mais à vontade com ela?”
“Não preciso estar à vontade. Só estou surpresa por ver vocês dois separados.”
O próximo sorriso dele veio completo com olhos fechados. “Meus componentes nunca estão separados, Conselheira, mas não precisamos necessariamente estar fisicamente próximos um ao outro para estarmos juntos” (Castro, 2008).

Essa explicação e várias outras ao longo da narrativa não só farão Andrea compreender mais esse ser pós-humano (e, por um breve momento no meio da narrativa, até mesmo se perguntar como seria ser um componente de uma personalidade cylinkada), como eles acabarão por se envolver romântica e sexualmente.

Até que ponto um monstro e uma personalidade cylinkada podem se relacionar? Um segundo romance de Andrea Cort lançado em 2009, The third claw of God, começou a se aprofundar mais nas questões de amor pós-humano e no desejo de ser outro, já que Andrea Cort ainda se pergunta se o procedimento de cylinking poderia ser a resposta para o que, acredita ela, é uma doença que a corrói por dentro. Ela seria o terceiro componente na personalidade cylinkada Porrinyard, o que daria origem a mais um ser. Na matemática da pós-humanidade, onde dois eram um, três continuarão sendo um. Se este um é mais que a soma de suas partes, cabe aos seus componentes responder.

Um humano é menos que humano

Em Embassytown, de China Miéville, o leitor vê o reverso da medalha.

Esse romance também apresenta duplas aprimoradas, mas no caso são gêmeos alterados geneticamente que também estão conectados ciberneticamente mas permanecem cada qual com sua própria identidade. Esses gêmeos são criados para serem Embaixadores no mundo dos Anfitriões, ou Ariekei, seres cuja linguagem é tão complexa que precisa ser falada por dois seres ao mesmo tempo, cada qual pronunciando uma palavra diferente em uma entonação diferente.

Figura 3 – Embassytown, de China Miéville.
Figura 3Embassytown, de China Miéville.

A protagonista, Avice Benner Cho, é uma Imersora – uma humana dotada de habilidades que lhe permitem viajar pelo espaço (os limites dessa habilidade nunca são explicados em detalhes, o que deixa o leitor concluir que pode ser uma característica genética – uma pós-humana em um futuro distante em que a humanidade sequer se lembra onde fica a Terra), mas que antes, em sua infância, executou uma símile para os Embaixadores.

Esse ato, difícil de descrever (e até mesmo de compreender segundo os hábitos e costumes do século 21) significa basicamente que um humano é recrutado para servir como uma função da linguagem para uma espécie alienígena cuja ideia de comunicação é tão diferente da nossa que precisa ter uma analogia física da função (um exemplo tosco seria ter um mapa do tamanho do território disposto sobre este para que uma pessoa que jamais tivesse visto um mapa em sua vida pudesse entender o conceito – o que não funcionaria de todo, embora pudesse ajudar). Após o ato ritual, no qual os Embaixadores não falaram com Avice na linguagem de seus Anfitriões mas a falaram, Avice veio a saber que sua símile foi “Havia uma garota humana que, sentindo dor, comeu o que lhe foi dado em um quarto velho construído para comer no qual há algum tempo já não se comia”.

Um ex-embaixador, Bren, dá a Avice uma certa orientação antes do ato, mas não pode fazer muito mais que isso, pois ele havia sido expulso não só das funções de embaixador como também de todo o convívio humano. Bren é um dividido, isto é, uma pessoa que um dia teve um gênero ciberneticamente conectado (ou um doppel, como o chamam), mas ele foi morto e Bren não pode sequer dizer mais seu nome completo (que era BrenDan – sendo Dan seu irmão gêmeo, obviamente) de modo correto.

Quando Bren finalmente conta sua história a Avice, anos mais tarde, ele lhe mostra uma caixa contendo os dois links que ele e seu doppel usavam. E explica porque ainda os conserva:

Se eu tivesse jogado o dele fora e guardado o meu, você acharia que eu estava me agarrando à minha identidade morta, ou lamentando a morte dele. Se eu jogasse ambos fora, você me veria agir em negação. Se eu guardasse o dele mas não o meu você diria que eu estava me recusando a deixá-lo partir. Não há nada que eu possa fazer que você não teria tentado. A culpa não é sua. Você não pode evitar, é o que nós fazemos. O que quer que eu faça, será uma história ou outra (Miéville, 2011).

Apesar da série de eventos que ainda se desdobrarão em Embassytown (em uma estranha mas talvez não surpreendente similaridade com Emissaries from the dead, Avice irá mais tarde ter um par de doppels, CalVin, como amantes), a citação acima pode nos servir por ora, especialmente a última frase de Bren: “O que quer que eu faça, será uma história ou outra”. Faria diferença qual história seria no fim? Se Bren tivesse morrido e Dan tivesse sido o sobrevivente, a história teria tomado um curso diferente? Talvez sim, pois eles tinham personalidades diferentes. Mas eles ainda compartilhavam uma vida mais intimamente do que qualquer tipo de casal casado poderia jamais ter imaginado. Por isso, Bren se sentia metade de um homem – e como tal era visto pela sociedade, tanto humana quanto Ariekei. O que quer que ele fizesse, não teria lugar para onde ir. Aqui, nesse cantinho matemático da pós-humanidade, onde dois eram um, um é apenas meio. E, se este um é ainda menos que a exata divisão da anterior soma de suas partes, talvez nem mesmo o componente que sobreviveu saiba a resposta.

Queremos saber a resposta?

Em ambos esses futuros, estar fora da norma culturalmente aceita não é visto como sendo algo saudável. O interessante é que os dois romances foram escritos por homens (um deles marxista, que chegou a tentar o caminho da política há algum tempo), e os dois apresentam personagens do sexo feminino, fortes e não-estereotipadas – não-estereotipadas a ponto de serem fora da curva, desequilibradas, no desvio (novamente, todos esses comentários precisam ser analisados em profundidade – quem pode dizer que elas são desequilibradas? O autor deste artigo, um homem branco ocidental que é, pelo menos em seu país natal, visto como parte do padrão de gênero e etnia dominante? Esta questão, infelizmente, não será respondida aqui – mas deveria [consulte Gayatri Spivak, Edward Said, Homi Bhabha em busca de respostas]).

Talvez o fato mais importante a se destacar seja o de que ainda existe uma norma a seguir no futuro. Isto é, existe uma maioria de seres humanos que, mesmo com uma grande quantidade de dispositivos implantados (no caso de Emissaries), ainda são morfologicamente reconhecíveis para o humano do começo do século 21 – nossa própria época, o que é apenas lógico, pois não temos meios de prever o futuro, e qualquer extrapolação só pode ser feita a partir do que existe aqui e agora, e o corpo do homo sapiens é o que temos como base sobre a qual construir qualquer coisa.

Se o pós-humano é visto como exótico em muitos casos, então dentro do pós-humano, com o tempo, foram surgindo diversos outros subgrupos que vieram a ser considerados inaceitáveis até mesmo pelos padrões pós-humanos – muito embora não exista em nenhum momento a dúvida do status humano em cada parte envolvida. Em Emissaries, a AIsource desempenha um papel que certamente não pode ser desprezado, pois eles parecem ser os criadores do procedimento de cylinking – assim como os Ariekei em Embassytown, o que provoca a pergunta: os monstrous são sempre uma maldição do Outro? Os aliens são o Outro; mas, ao executarem esses procedimentos “indizíveis”, para usarmos o adjetivo lovecraftiano, os humanos automaticamente se tornariam uma espécie diferente e anormal de pós-humanos, e portanto a espécie errada? Eles estão errados porque são tão diferentes, e mais em mente do que em corpo? A pós-humanidade, portanto, não cometeria os mesmos erros da humanidade, atribuindo valores às diferenças e segregando seus membros às categorias de seres normais e anormais?

Isso traz à memória o ensaio “Dos canibais”, de Michel de Montaigne, escrito em 1562, aproximadamente quinze anos apóso filósofo francês ter conhecido, em Rouen, um nativo da tribo dos Tupinambás que havia sido levado à França pelo explorador Villegagnon. Essa reflexão, que introduz uma nova visão multiculturalista na cultura europeia, e é em si mesma uma espécie de protoguia para a humanidade, no sentido de que Montaigne critica a visão que se tinha então, em sua sociedade, dos índios sul-americanos como sendo bárbaros, e volta sua lente de aumento para estudar seus compatriotas europeus:

Creio que não há nada de bárbaro ou de selvagem nessa nação, a julgar pelo que me foi referido; sucede, porém, que classificamos de barbárie o que é alheio aos nossos costumes; dir-se-ia que não temos da verdade e da razão outro ponto de referência que o exemplo e a ideia das opiniões e usos do país a que pertencemos. Neste, a religião é sempre perfeita, perfeito o governo, perfeito e irrepreensível o uso de todas as coisas. Aqueles povos são selvagens na medida em que chamamos selvagens aos frutos que a natureza germina e espontaneamente produz; na verdade, melhor deveríamos chamar selvagens aos que alteramos por nosso artifício e desviamos da ordem comum (Montaigne, 1993).

Lembrando Georges Canguilhem em O normal e o patológico, conforme mencionado em nosso artigo acima, “se ‘a norma para o corredor de longa distância não é a mesma para o de curta’, se ‘cada um de nós muda suas próprias normas de acordo com a idade e suas próprias normas anteriores’, logo as normas para o organismo pós-humano não podem ser as mesmas normas do organismo humano em razão de suas mudanças”.

Portanto, o diferente é apenas diferente, nem superior nem inferior – uma lição que Montaigne já havia inferido por observação e Canguilhem aprendido por estudo biológico e fisiológico. Só podemos torcer para que esses antigos pensadores, juntamente aos mais recentes “ficcionautas” apresentados neste artigo, possam se revelar verdadeiros cartógrafos, tanto para nos oferecer visões do que poderemos nos tornar no futuro quanto para desenvolver uma ética pós-humana atribuindo a cada indivíduo seus direitos de viver sob o status de normalidade – o que quer que esta palavra possa significar no futuro.


* Fábio Fernandes é doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP e professor dos cursos de graduação em Jogos Digitais e Tecnologia e Mídias Digitais daquela universidade, além da pós-graduação em Tecnologias da Inteligência e Design Digital (TIDD). Autor dos livros Interface com o vampiro (2000), A construção do imaginário cyber (2006), Wild mood swings (2008), Os dias da peste (2009) e No tempo das telas (2014). Membro do Steering Group de Visions of Humanity in Cyberculture, Cyberspace and Science Fiction, associado à University of Oxford, e membro do The Internet of Things Council (http://www.theinternetofthings.eu/). Formado pelo Clarion West Writers Workshop de Seattle em 2013.

Referências

BOULD, Mark & MIÉVILLE, China (eds.) Red planets: marxism and science fiction. London: Pluto Press, 2009.

CANGUILHEM, Georges. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.

CASTRO, Adam-Troy. Emissaries from the dead. New York: Harper-Collins, 2008.

COPELAND, Jordan J. (ed.) The projected and prophetic. Oxford: Inter-Disciplinary Press, 2010.

HAYLES, N. Katharine. How we became posthuman: virtual bodies in cybernetics, literature, and informatics. Chicago: The University of Chicago Press, 1999.

MIÉVILLE, China. Embassytown. New York: Del Rey Books, 2011.

MONTAIGNE, Michel de. The complete essays. (ed. and translated by M. A. Screech.) London: Penguin Classics, 1993.

Tempo de leitura estimado: 24 minutos

A conversão ao standing e o "Elastagel": análise de elementos da HQ Promethea, de Alan Moore e J. H. Williams III | Carlos Hollanda*

Foi sob um clima de expectativa e incertezas quanto ao futuro que foi elaborada a série Promethea, do muitas vezes premiado roteirista Alan Moore e de um dos mais talentosos artistas de quadrinhos da atualidade, Jim H. Williams III. Seu lançamento foi quase concomitante ao do filme Matrix (1999), dos irmãos Wachowski. Ambas as obras, cada qual à sua maneira, tratam em parte de suposições acerca da criação de “realidades” através de códigos escritos e visuais. Em Matrix, os códigos computadorizados representam pessoas, cidades, comportamentos, circunstâncias. Em Promethea, os códigos são as narrativas que se mantêm numa dimensão imaginária que é acessada de tempos em tempos por pessoas muito criativas que terminam por trazer ao mundo esses aspectos e o transformam de algum modo. Igualmente, os códigos imaginários referenciados pelos autores da série remetem a mitos em torno da criação do universo (mitos cosmogônicos) e de crenças que têm como matrizes temas oriundos do neoplatonismo, do gnosticismo e do hermetismo renascentista, apropriados por estudiosos de ocultismo do século XIX, que serão citados mais adiante. Moore e Williams enveredam por um sincretismo simbólico, sobretudo através de concepções esotéricas em torno da Alquimia, da Cabala, do Tarot e da Astrologia, cujos símbolos e correlações são representados visualmente na série com recursos estéticos capazes de comunicar com originalidade as analogias com os mundos intangíveis e surreais descritos na narrativa.

Moore é autor de outras séries de sucesso, algumas delas transformadas em obras cinematográficas como “V de Vingança”, “Liga Extraordinária” e “Watchmen”. Tal como em seus demais roteiros, ele impôs em Promethea um de seus principais diferenciais: um final previsto. A maioria das histórias em quadrinhos de personagens fixos e outras produções midiáticas como séries televisivas são mantidas indefinidamente. À medida que continuam dando lucro e estimulando a demanda dos consumidores destes gêneros, elas seguem sendo publicadas. O modus operandi de Moore difere substancialmente das demais produções do gênero, que recriam situações típicas e contextos repetitivos à exaustão.

Sua personagem tem como base visões pertencentes a organizações iniciáticas e entre suas inspirações encontram-se os já referidos arcanos do Tarot, que constituem grande parte da estrutura da HQ. Mais especificamente o deck de Tarot (“Tarot de Toth”) pintado por Frieda Harris (1877-1962), entre 1938 e 1945, sob a supervisão de Aleister Crowley (1875-1947), mago britânico que fundou e participou de organizações iniciáticas como a Golden Dawn e a Ordo Templi Orientis (O.T.O.). O roteiro privilegia o modelo de distribuição dos arcanos maiores daquele deck na Árvore da Vida segundo as premissas de seu supervisor, Crowley.

Um panorama geral

Para que haja um maior entendimento sobre o que aqui será tratado, eis um breve panorama da série e do perfil de sua protagonista: Sophie Bangs, jovem estudante de literatura, faz pesquisa sobre Promethea, uma figura literária que surge de tempos em tempos a partir de autores diferentes, em relatos, contos, quadrinhos antigos etc. Ela acessa a dimensão imaginária em que habita a personagem e passa a manifestá-la no mundo físico. Promethea é uma expressão dos deuses da comunicação e da escrita, o egípcio Toth e o grego Hermes. A personagem viaja por níveis diferentes de realidade, todos representando manifestações de uma ideia multifacetada de divindade, expressão ecumênica que admite modelos pagãos europeus, budismo, hinduísmo etc. e uma visão da condição humana sob a mística judaico-cristã, os arcanos do Tarot e símbolos astrológicos. Na HQ, ela alcança essa unidade divina e, ao final, promove o Apocalipse e a libertação da humanidade de maneira muito peculiar às crenças de Alan Moore. Além de tudo isso, promove a ideia de que a realidade pode ser criada também pela escrita/código e pela imaginação, como já visto na menção a Matrix. Tudo ocorre simultaneamente a situações mundanas, numa Nova Iorque imaginária de 1999 em que a tecnologia é muito mais avançada do que a realmente existente naquele fim do século. O nome Sophie Bangs contém propositalmente “sofia”, “conhecimento”, “saber”, em grego, radical de “Filosofia” (“amor ao saber”, etimologicamente falando) e Big Bang. A interpretação dificilmente seria diferente, já que na HQ, em sua supressão de sentido entre palavras, contextos e imagens, a temática oferece como foco central um esquema hermético da criação do universo, algo análogo e alusivo ao Big Bang proposto pela ciência (uma espécie de “momento zero” da Criação). “Sophia” é também parte do mito gnóstico de criação do universo e seria, em resumo, segundo essa doutrina, a geradora do mundo “ilusório” com o qual lidamos cotidianamente (o mundo da forma) devido à intenção de igualar-se ao “Deus Pai”, então a fonte de toda a existência (Rudolph, 1987, p. 53-88). Esta personagem mítica é análoga a uma das transformações pelas quais passa a protagonista numa parte adiantada da série e sua redenção equivale ao processo que levará à redenção da humanidade ao final da HQ.

Estes são pontos importantes na decodificação dos signos visuais e linguísticos da obra dos autores em questão para prosseguirmos com o foco no tema proposto no título: a crítica à “conversão ao standing”, nas palavras de Jean Baudrillard, em seu O sistema dos objetos. Na série, a edição número 11 (dezembro de 2000) é um tanto expressiva quanto ao processo que, entre outras particularidades, indica a publicidade como elemento de consumo, mais do que apenas os objetos que anuncia. Igualmente, apresenta de maneira sutil e em imagens o modo como o elemento coercitivo do imaginário suscitado pela propaganda leva a uma espécie de imposição do consumo. Visto isso, analisemos adiante o modo como os autores representam a supracitada coercitividade em torno dos “produtos do momento”.

“Patricinha” em busca de identidade

As necessidades humanas seriam, como vimos, deslocadas e respondidas, aparentemente, pelo consumo de mercadorias que prometem mais do que o produto pode oferecer. É o que Baudrillard vai chamar de separação entre produto (historicamente produzido) e bem de consumo, um objeto que se apresenta com uma “personalidade” própria que, no momento da compra, classifica seus consumidores, numa inversão de dominação, onde os objetos nomeiam homens, “um sistema de objetos”. Os produtos vão estabelecer hierarquias sociais, então, de forma que podemos pensar o consumo, num primeiro momento, como um modelo de concorrência, pela qual buscamos o “mais avançado”, o “último tipo” – “fetiche imperativo da valorização social (ZILIOTO, 2003, p. 29-30).

A passagem acima guarda profunda relação com boa parte das representações da edição número 11, sobretudo com a segunda figura mais importante em toda a série: Stacia Vanderveer. Ela é a amiga mais próxima de Sophie Bangs e uma espécie de seu oposto complementar. É a figura de consumo e alienação, a adaptação extrema a uma sociedade guiada pelos símbolos de status, pelo domínio das marcas e do “último modelo”. Enquanto Sophie se preocupa com sua interiorização e com questões transcendentes, Stacia mantém-se no nível imanente, vinculada às coisas do mundo. Entretanto, esse mundo no qual Stacia se encontra tão à vontade, independente de ser paupável, é na verdade construído por um intenso processo de simbolização. Todavia, trata-se de uma simbolização que distancia o indivíduo de qualquer reflexão acerca das condições em que vive. Não há “realidade” nesse mundo, exceto a realidade dos símbolos e de sua manipulação em torno do consumo, da inserção no sistema.

Stacia, neste caso, assume o posto de protagonista, especialmente quando o tema ora tratado representa um sistema de consumo da linguagem publicitária e a emergência do desejo, dirigido por esta última à assimilação das normas do grupo.

Stacia vive em busca de identidade e seus objetos de consumo, cada qual vinculado retoricamente a temporalidades diferentes (vestido anos 60, cabelo cor-de-rosa, enfeites punk dos anos 70) representam a desreferencialização pós-moderna (ver figuras 1 e 4). Seus excessos consumistas equivalem a nenhum referencial identitário específico, correspondem, no âmbito coletivo, ao que Stuart Hall diz a seguir:

A identidade plenamente identificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente (Hall, 2002, p.7-22).

Stacia é o protótipo da adesão ao imperativo e os indicativos publicitários e da profusão de identidades, algo constatável pela convivência de diversas “temporalidades” e elementos estéticos contrastantes em suas vestimentas e comportamento.

Vimos acima alguns jogos de palavras com o nome de Sophie Bangs, bastante contextualizados às ideias inerentes à série. Podemos fazer algo semelhante com Stacia. Uma breve análise de seu nome já introduz o que será verificado, logo em seguida, nas imagens da cidade e da inserção da personagem no meio urbano, além do uso de um produto que, no contexto da HQ, está plenamente na moda e que mais adiante será analisado. “Stacia” pode provir de “stack”, em inglês, que significa “pilha”, “monte”, ou coloquialmente “grande quantidade”, “abundância”, ao que se pode acrescentar “exagero”, dadas as características a serem detalhadas. Seu sobrenome, “Van der Veer”, numa primeira observação, mostra parentesco com holandeses (“van”). Entretanto, o final “veer”, em inglês significa “mudança”, “mudar de direção”, “guinada”, “giro”. Stacia mantém-se em constante e profusa mutação, a propósito. Seus cabelos, de rosa passam ao verde e de um tipo de penteado a outro em questão de capítulos ou algumas páginas. Suas vestimentas cada vez mais exóticas a cada aparição, mesclam casacos de pele de onça com motivos plásticos (ver Figura 5). Van der Veer, em holandês vem de “da passagem”, e é traduzido por “ferry”, no inglês: “passagem”, “balsa”, “barco de passagem”, “travessia”. Podemos acrescentar “transição”. Nos dicionários holandeses Veer também pode significar “pena”, “pluma”, “penacho”, “plumagem”, “enfeite”. Dá origem ao verbo “emplumar-se”. De fato, Stacia é “toda emplumada”, alguém que na gíria brasileira poderia receber a alcunha de “perua”. Os resultados das combinações seriam semelhantes a “muito efêmera” e “exageradamente enfeitada”. É como Stacia sempre se encontra, ao usar tudo aquilo que se adéqua à sua suposta individualidade. Entre esses usos está o do produto que simboliza o maior dos fetiches de valorização social e dos avanços tecnológicos cujo consumo é menos uma necessidade do que uma identidade outorgada temporariamente: o Elastagel.

O Elastagel: “último modelo” e signo de personalidades amorfas

Quais as relações entre Stacia e o Elastagel? Para compreendermos, antes é preciso analisar o modo como este último é representado. Produto fictício, um dos referenciais sígnicos dos avanços científicos da realidade alternativa daquelas personagens, o Elastagel funciona simultaneamente como reiteração visual de algumas das propriedades “mercuriais” da HQ e como substituto para diversos outros materiais. Ele ocupa o lugar de plásticos, borrachas, tecidos, vidros e é programado em conformidade com as necessidades e/ou desejos de cada consumidor. É reaproveitável e sua estrutura é construída em bases nanotecnológicas. Disso decorre sua plasticidade e possibilidade de programação tal qual um software. Como vestimenta, amolda-se ao corpo, permite o ajuste a cada usuário pelo tamanho e pela especificidade da forma. É indeformável: se rasgado ou danificado, sua “nanoprogramação” imediatamente se prontifica a reparar o dano, tornando a vestimenta nova em folha. O Elastagel seria, afinal, a suprema personalização num sistema de objetos, nos termos de Baudrillard:

(…) em uma era de consumo ou que assim se pretende, é a sociedade global que se adapta ao indivíduo. Não somente vai ao encontro de suas necessidades, como toma bastante cuidado em se adaptar não a esta ou àquela necessidade sua, mas ao indivíduo próprio pessoalmente (Baudrillard, 2002, p. 178).

A questão é tratada, como se pode ver, numa obra ficcional e certamente não se possui, até o momento, algum material com tamanha versatilidade e praticidade. Entretanto, a suposta personalização ideal daquele produto é o mote para uma crítica à conversão ao standing. No roteiro, não há a menor necessidade de substituição dos materiais existentes. Entretanto, as medidas publicitárias estimuladoras do consumo contribuem fortemente para o uso desse último modelo, desse material mais “moderno”, mais “condizente com o estilo da época”. A publicidade com sua função gratificante, infantilizante, satisfaz as instâncias imaginárias, enquanto o progresso técnico e o produto visam satisfazer as necessidades materiais. No entanto, que necessidades seriam essas? A publicidade constrói e responde a outras construções, cria necessidades que não as fisiológicas ou as de sobrevivência, mas sim as de convivência e de conformidade ao imperativo coletivo, a autoinserção na massa, ainda que através do discurso da diferenciação e da formação identitária. Baudrillard a esse respeito cita textos publicitários como “materiais novos para afirmar o estilo de nossa época. (…) Depois da idade da pedra e da madeira, vivemos, em matéria de mobiliário, a idade do aço” (Baudrillard, 2002, p.178). Se a publicidade fosse realizada na HQ, o final do texto seria substituído por “a idade do Elastagel”. O sentido é basicamente o mesmo.

Uma obra de ficção, como qualquer outra que expressa o imaginário da época de sua produção, comporta os anseios, preocupações, temores e expectativas que fazem parte das práticas e representações sociais vigentes, assim como seus tabus e exclusões. Não é aleatório o uso dessa figura retórica e também visual, nem tampouco se encontraria ali apenas com a finalidade de ocupar espaço na narrativa e entreter seus leitores. Mais do que isso, constitui um discurso de quem vive um momento em que as produções industriais e a publicidade atingem um nível de sedução das populações em prol de um consumo muito além das necessidades físicas. É a discussão acerca do que é realmente necessário, a indicação literária de uma dependência do desejo e do seu avassalador estímulo via meios de comunicação. Vai-se além, ainda, das necessidades de integração social, tal como em décadas anteriores. O sistema de obsolescência planejada recria e impõe uma outra necessidade de integração, com mecanismos de inserção do indivíduo não num grupo que se identifica pela classe ou por um paradigma ideológico, mas sim pelo ingresso numa poderosa corrente de desejo e descarte, de autogratificação e insatisfação ininterruptos. Saciam-se vontades, não necessidades (Campbell, 2006, p. 49). Na edição 11, essas representações fazem eco ao que diz Denise Macedo Ziliotto:

(…) se consumimos signos e não objetos, o consumo é uma prática idealista total que faz com que não haja fim para o consumo, que ele não seja saciável. Dinamizado por um projeto sempre frustrado e subentendido no objeto, o consumo se fundaria, então, numa ausência irreprimível (Ziliotto, 2003, p. 33).

É esta a questão. Mesmo inexistente, pelo menos por enquanto, o fabuloso material da moda na HQ, que teria suas virtudes, a propósito, é a imagem retórica de mais um contributo à obsolescência de numerosos materiais. Objetos que tornar-se-iam sucata em favor da satisfação provisória dos desejos, e não exatamente das necessidades, até que fosse produzida uma nova substância cujas propriedades e diferenciais substituíssem as do Elastagel. Não seria, portanto, o material em si ou aquilo no que ele se transforma, mas o símbolo que ele carrega e seus aspectos inovadores, o diferencial, o fator que os demais não possuem e que pode possibilitar o exprimir de uma identidade.

Num ponto mais adiantado do capítulo, todos os artefatos feitos de Elastagel sofrem um “defeito” e ganham vida nos corpos de seus usuários, nas ruas, em todos os objetos e estruturas, que então somam milhões de toneladas, unindo-se em algo comparável a um oceano de massa amorfa esverdeada (ver Figuras 2 e 3). Ao tornar-se amorfo e monstruoso, o que passa a ser representado é o caos subjacente àquela aparente ordem. Naquele ponto, eis a deixa para a entrada em cena da heroína.

A “Pseunami”, título dado ao capítulo ora estudado, uma mescla de “pseudo” (falso) e “tsunami” (onda gigante), se por um lado inscreve-se nos temores coletivos do final do século XX de catástrofes naturais, por outro representa a ilusão veiculada pela publicidade, que é consumida como uma segunda coisa, além do próprio produto. Tsunami, devido à gigantesca produção de objetos de consumo cuja necessidade é duvidosa, mas que inserem o consumidor individual num sistema universal, o standing. Seria essa conversão ao standing, que ao mesmo tempo propõe a suprema individualização/personalização, mas condiciona à aquiescência dos códigos de valores coletivos submetidos às normas do consumo do capitalismo industrial. A função da publicidade seria, segundo Baudrillard, converter-nos a tais valores. Quanto ao standing e aos códigos supracitados, o autor acrescenta:

Este código é totalitário, ninguém lhe escapa: escapar a ele em caráter privado não significa que deixamos de participar a cada dia de sua elaboração no plano coletivo. Não crer nele é ainda crer que os outros nele creiam o bastante para entrar, mesmo ironicamente, no jogo. Mesmo as condutas refratárias a tal código são consideradas em função de uma sociedade que a ele se conforma (Baudrillard, 2002, p. 203-203).

Como crítica, a representação de uma Pseunami formada pela liquefação de um “último modelo”, como uma massa homogênea que submerge no caos todas as identidades (homogeneidade por trás da particularidade), elimina as possibilidades de identificação e traz à tona a matriz cultural do temor diluviano ou do julgamento. Ali, porém, o dilúvio é o da perda de referenciais. Seria preciso uma super-heroína para tornar a fazer sentido e exaltar o que seria subjacente ao consumo.

Figura 1 - Páginas 5 e 6 da edição número 11, de dezembro de 2000.
Figura 1 – Páginas 5 e 6 da edição número 11, de dezembro de 2000.
Figura 2 - Página 9 da edição número 11, de dezembro de 2000.
Figura 2 – Página 9 da edição número 11, de dezembro de 2000.
Figura 3 - Páginas 7 e 8 da edição número 11, de dezembro de 2000.
Figura 3 – Páginas 7 e 8 da edição número 11, de dezembro de 2000.
Figura 4 - Páginas 5 e 6 da edição número 1, de agosto de 1999.
Figura 4 – Páginas 5 e 6 da edição número 1, de agosto de 1999.

Conforme indicado inicialmente, a Figura 4, logo acima, apresenta a personagem Stacia Vanderveer, amiga de Sophie Bangs logo na primeira edição da série. Desde o início, a propósito, nota-se a representação do grande apelo ao consumo ao longo da cidade através dos outdoors e luminosos. Aqui, finalmente, encontramos as relações entre os significados do nome e da visualidade de Stacia e a conversão ao standing na forma do uso generalizado do Elastagel. Excesso de mudanças, usos de objetos em profusão, a identificação com o último modelo, individualismo, desreferencialização identitária e assim sucessivamente, tornam Stacia, da edição 1 a 11, o protótipo do consumidor pós-moderno e o Elastagel seu mais perfeito indicador de personalidade.

No primeiro dos quadros acima, em primeiro plano, lendo uma revista, está ela, exótica e superficial, cujo visual, não custa reiterar, é marcado pelo consumismo e hibridismo, além do sincretismo/inclusivismo. Nela convivem um comportado cabelo armado ao estilo dos anos 50-60, com uma flor como enfeite conferindo um toque infantil ao visual que mescla sensualidade, adolescência e agressividade. Stacia usa uma gargantilha com rebites ao estilo Heavy Metal, um maroto vestido curto quadriculado, com as pernas à mostra e uma jaqueta de couro à moda “bad boy”. Seus óculos, cujo desenho remete ao visual “gatinha”, são acompanhados de duas excêntricas lâmpadas para ler em locais escuros sua estranha revista do “Gorila Chorão”. A seu lado, a nada extravagante Sophie, acentuando, por contraste, o exotismo da amiga. A imagem pede uma breve análise como a que se segue, visando estabelecer os nexos entre ela e as questões aqui associadas à pós-modernidade e à crítica ao consumo e conversão ao standing.

A cena é composta por duas sequências, uma de ambiente externo outra no interior do táxi flutuante, futurista, mas cujo design da carroceria é o de um carro que lembra os anos 1970, inclusive com seu parachoques metálico, pouco comum no final do século XX, em que a indústria automobilística passara a produzir mais frequentemente essa peça em material plástico. A diagramação e a sequencialização transmitem a ideia de simultaneidade entre os dois ambientes. O recurso situa o leitor no contexto em que vivem as personagens ao mesmo tempo em que oferece uma dimensão do plano psicológico das mesmas, apresentando-as em alguns de seus maneirismos ao leitor. Sophie, com suas características icônicas sugerindo simplicidade, pouco afins com o ambiente externo e com Stacia, se destaca mais pela diferenciação que pelo “olhar da câmera” do artista. Este mantém a vista em contre-plongée, isto é, de baixo para cima, gerando a impressão de superioridade, enormidade, alongamento. Isso ocorre tanto na representação do trânsito e dos grandes prédios quanto na comparação entre Stacia e Sophie. A primeira aparece “dignificada”, perfeitamente identificada com a totalidade do ambiente. Note-se que as falas do primeiro quadro confirmam a ideia de que o consumo e a superficialidade seriam mais atraentes para os habitantes daquele mundo do que a busca por sentido que motiva Sophie. Numa tradução livre, ali se lê: “Promethea, o mesmo nome de poemas do século XVIII, tiras de jornal, revistas pulps e em quadrinhos. Isto é que é interessante! ‘Gorila Chorão’ não faz sentido!”, diz Sophie. “Não há sentido, esta é a genialidade do ‘Gorila Chorão’”, retruca Stacia, vista de baixo para cima. Esta é a fala da personagem, a princípio, inconsciente das “artimanhas” dos autores, que situam o Gorila Chorão numerosas vezes, nesta e noutras edições, em outdoors e publicações. Sutil e estrategicamente, colocam-no em cenas nas quais suas falas criam um clima de ironia sobre o que dizem e vivem os demais personagens naqueles momentos. Na cena em questão, por exemplo, o Gorila da revista de Stacia diz: “choke – Modern life makes me feel so alone! (“suspiro”, a vida moderna me faz sentir tão sozinho!), uma dica a respeito do excesso de individualismo das sociedades pós-modernas representadas ali por Stacia, que parece perfeitamente adaptada, mas que requer as compensações dos objetos a preencherem seu “vazio identitário”.

Ainda em relação aos códigos visuais, há plongée, vista de cima para baixo, achatando as personagens, apenas no quadro intermediário do detalhe da conversa e no terceiro quadro, à direita, em que Sophie se encontra de costas. A forma de Stacia, no entanto, permanece bem maior que a de Sophie, que nesse quadro, devido ao plongée, acentua sua pequenez. É interessante notar que a pequena e humilde Sophie tornar-se-á, algumas páginas depois, uma semideusa de quase dois metros de altura, com poderes incalculáveis. A proposta de Moore, afinal, também abarca a ideia de que a imaginação suplanta todo tipo de limitação e é a verdadeira ponte de ligação entre a potencialidade e a realidade, o mecanismo, por excelência, que possibilita o conhecimento ou o “fazer sentido”. Os objetos de consumo representados na obra da mesma forma fazem parte desse universo do sentido, quando, por intermédio das construções midiáticas e da propaganda, suprem as “necessidades”, ou melhor, representam identidades e satisfazem “vontades”. No entanto o fazem sem saciar necessidades propriamente ditas. De fato aquela sequência revela a seguinte relação salientada por Baudrillard:

Os que negam o poder de condicionamento da publicidade (dos mass media em geral) não apreenderam a lógica particular de sua eficácia. Não mais se trata de uma lógica do enunciado e da prova, mas sim de uma lógica da fábula e da adesão. Não acreditamos nela e todavia a mantemos. No fundo a demonstração do produto não persuade ninguém: serve para racionalizar a compra que de qualquer maneira precede ou ultrapassa os motivos racionais. Todavia, sem “crer” neste produto, creio na publicidade que quer me fazer crer nele (Baudrillard, 2002, p. 175-176).

Assim, Stacia, na verdade, não “acredita”, naquilo que consome, mas sim naquilo que o produto representa enquanto construção publicitária.

A visão em contre-plongée também enfatiza os “discos voadores” da cena, na verdade veículos policiais daquela Nova Iorque alternativa, que direcionam seus fachos de luz para uma minúscula figura humana no alto de uma construção. É como se o sujeito no espaço urbano fosse aniquilado pelas marcas, pela monumentalidade das edificações. A imagem ainda sugere que aquela figura humana está sob suspeita de um controle absoluto dos poderes vigentes ou submetida aos imperativos da visibilidade e do desejo: não se escapa do sistema, não se fica na penumbra impunemente.


*Carlos Hollanda é doutor em Artes Visuais pela EBA/UFRJ com tese ganhadora do Troféu HQMIX e mestre em História Comparada (IFCS/UFRJ). Coordenador e professor da pós-graduação em História da Arte da UCAM Ipanema, professor de Semiótica no IED-RIO e editor da revista “História, imagem e narrativas”.

Referências

BARBOSA, Lívia & CAMPBELL, Colin. Cultura, consumo e identidade. Rio de Janeiro: FGV 2006.

BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. São Paulo: Perspectiva, 2002.

DOUGLAS, Mary. O mundo dos bens – para uma antropologia do consumo. Rio de Janeiro: UFRJ, 2004.

GODWIN, David. Cabalistic encyclopedia. Saint Paul: Llewellyn Publications, 1997.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.

MOORE, Alan, WILLIAMS III, J.H. Promethea # 11: Promethea under attack. USA: America’s Best Comics, 2000.

MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX – o espírito do tempo – 1 – Neurose. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1981.

RUDOLPH, Kurt. Gnosis, the nature & history of gnosticism. New York: Harper-Collins 1987, p. 53-88.

ZILIOTO, Denise Macedo. O consumidor: objeto da cultura. Petrópolis: Vozes, 2003.

Fanpage sobre o selo America’s Best Comics: disponível em http://www.leguy.de/comics/abc/. Acesso em 3 ago. 2009.

Artigo acerca do documentário sobre Alan Moore, do diretor Dez Vylenz: disponível em http://www.omelete.com.br/cine/100002225/_i_The_mindscape_of_Alan_Moore__i_.aspx. Acesso em 4 ago. 2009.

Referência do sobrenome Van der Veer em holandês: disponível em http://www.veerhuis.org/genealogy/VanDerVeer.html. Acesso em 14 ago. 2009.

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Apresentação | André Telles do Rosário

Diversos saraus habitam as grandes cidades brasileiras, onde a poesia é servida quente, trocada no calor das relações humanas presenciais. A poesia falada e corporalmente compartilhada nunca foi tão popular, no Brasil. Nunca o foi tanto quanto ao número de pessoas envolvidas em eventos espalhados por todo o país; quanto à origem delas, oriundas das classes populares, em sua maior parte. E popular também porque algo que se destaca nestas cenas é a centralidade cultural das periferias, onde a maioria destes recitais se encontra.

É possível perceber que a poesia compartilhada e, especialmente, a produzida nos ambientes destes eventos, tem uma relação muito especial com o suporte em que é trocada – o corpo – e com o local onde se dá essa troca – o território. São eventos cuja própria existência, muitas vezes, é um manifesto cultural, de intervenção e apropriação urbana. E eventos onde o ato de falar é performativo em sua própria condição de recriador do mundo.

Esta edição da Revista Z Cultural vem observar a confluência de dois temas muito comuns na produção e no pensamento cultural contemporâneos, Corpo e Território, em suas relações com a poesia corporalmente compartilhada hoje.

De um lado, os estudos de performance, e das dinâmicas de oralidade e letramento, aplicados à poesia usufruída coletivamente. A busca de entendimentos mais profundos sobre as estruturas, e estratégias, destes recitais. Como a corporalidade da poesia se manifesta diferentemente em cada lugar, e quais as constantes que se podem retirar de observações distintas entre si.

Por outro lado, os estudos de geografia cultural, as identidades envolvidas no uso dos territórios. A realização dos saraus como um gesto ousado de autonomia e independência cultural de alguns específicos lugares dentro de específicas cidades. Pontos de aglutinação de pessoas e troca de conhecimentos. Centros coletivos de produção de discursos políticos identitários, tanto dentro das comunidades quanto para fora delas – reflexão e projeção.

Para buscar renovadas leituras críticas sobre tais corpoeticidades – onde a poesia vira habitação; e a cidade, linguagem – a Revista Z Cultural propõe a presente reflexão sobre Corporalidade e Territorialidade na Poesia Falada contemporânea.

André Telles do Rosário (Organizador)

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A poesia marginal no cinema pernambucano: poética do deslocamento | Camilo Soares*

[…] eu vi os expoentes da minha geração consumindo / muito álcool, na Rua do Hospício em busca da loucura, / chapando insistentemente no Beco da Fome para / recitar na Sete de Setembro contra o auto-otarismo e o autoritarismo em voga, / andando pelas ruas da Boa Vista feito zumbis / bêbados, ansiando fumar um nos miseráveis / apartamentos / sem água e sem luz, flutuando sobre os tetos da / cidade […] (Jordão, 2013, p.13).

A poesia marginal do Recife há cerca de três décadas requalificou a cidade e seus becos como fundamento poético de uma geração. A vivência da cidade dentro do fazer poético fez a presença do corpo no ambiente urbano e o deslocamento incessante no fluxo contínuo da cidade elementos indissociáveis ao ato de criar e à construção de uma linguagem peculiar. Não por acaso, outras manifestações artísticas locais, sobretudo o cinema – arte de corpos e movimentos –, incorporaram tal poesia em algumas de suas produções recentes, voltando a câmera para as vísceras da urbe e para os poetas urbanos em seus descaminhos de criação, frustração, drogas, bebedeiras. Não se propõe aqui mapear tais interstícios, mas tentar buscar formalmente e conceitualmente marcas do legado dessa geração de poetas sobre o cinema pernambucano atual, sobretudo em sua relação com a cidade.

Poetas marginais, alternativos, urbanos ou escritores independentes são nomes para um mesmo grupo de poetas da Região Metropolitana de Recife, uma geração que desde os anos 80 apresenta suas poesias em recitais pela cidade, em fanzines ou em livretos autoproduzidos. Mais do que isso, é uma geração de poetas que desceu do Parnaso da literatura culta e pisou na rua, qual Baudelaire em sua Paris do século XIX, tirando da cidade não apenas sua inspiração, mas fazendo da travessia de becos, bares e ruas a essência de sua poética. Erickson Luna, Jorge Lopes, Miró da Muribeca, Valmir Jordão, Lara, Zizo, Ivan Maia, Samuca, Fred Caminha, Chico Espinhara, Ivan Marinho, França, entre tantos outros, fizeram do contexto urbano o ambiente propício a suas palavras e imagens gestuais. O estar-no-mundo virou, simplesmente, estar-na-cidade; o corpo, em sua vivência e memória, tornou-se a base dessa poética, fundindo-se não apenas com os vocábulos do urbano, mas tornando corpo e cidade quase indissociáveis em seus versos.

Figura 1: O poeta Erickson Luna (foto: Camilo Soares, do livro Poesia, mesa de bar e goles decadentes, 2012)
Figura 1: O poeta Erickson Luna (foto: Camilo Soares, do livro Poesia, mesa de bar e goles decadentes, 2012)

Canto de Amor e Lama I

Choveu
e há lama em Santo Amaro
nas ruas
nas casas
vós contornais
eu não
a mim a lama não suja
em mim há lama não suja
eu sou a lama das chuvas
que caem em Santo Amaro
Vosso scotch
pode me sujar por dentro
cachaça não
vosso perfume
pode me sujar por fora
suor nunca
porque sou suor
a cachaça e a lama
das chuvas que caem
em Santo Amaro das Salinas
(Luna, 2004, p. 43)

Poética do concreto, mas não escrava da matéria, tais versos foram, aos poucos, subvertendo a objetividade da cidade por uma subjetividade do olhar, reconstruindo a urbe através de pilares instáveis de sua arquitetura afetiva, onde as coisas finalmente se transfiguram em imagens. Na poética urbana, o indivíduo trabalha seu estar-na-cidade de maneira a restituir para si a capacidade de interpretar e usar o ambiente urbano de forma diferente das prescrições implícitas no projeto de quem o determinou ou, como diz Argan, de reagir ativamente a esse ambiente. A cidade vira, para ele, um sistema de informação, com possibilidade de flexão e elasticidade de um sistema linguístico. A estética da cidade assume um lugar cabal nessa possibilidade de comunicação, e os poetas, em suas perambulações de bar em bar, fizeram-se pioneiros na arte de sentir e captar essa transição:

Incontestavelmente, a cidade é feita de coisas, mas essas coisas nós as vemos, oferecem-se como imagens à nossa percepção, e uma coisa é viver na dimensão estreita, imutável, opressiva, cheia de arestas, das coisas. É uma passagem que a cidade moderna deve realizar, a passagem da concretização, da dureza das coisas, à mobilidade e mutabilidade das imagens (Argan, 2005, p. 219-220).

Não por acaso, Kevin Lynch já falava dessa construção de cidade a partir de mecanismos perceptivos e cognitivos. Para ele, a paisagem urbana está inerentemente ligada ao bem-estar do homem, por sua qualidade visual de legibilidade, imaginabilidade (capacidade de provocar forte impressão sobre o observador) e, finalmente, identidade (Lynch, 1997, p. 37). A poesia marginal recifense mantinha naturalmente todas essas relações com a cidade: textos rápidos, coloquiais, diretos e quase violentos, somados à presença do poeta em recitais, seu corpo interagindo com as luzes da cidade, tornando-se parte dos becos e bares da metrópole. Tal imanência fez do poeta um cronista urbano ou uma espécie de fotógrafo que revela em palavras o pitoresco e o banal cotidiano, no foco de sua objetiva.

Avenida Caxangá

Lá vem o sol de novo
A chatear meus dias
Me jogando a pensar
Conjecturas
Pra onde vou
O que fazer
Falar o que
O que falar?
agora chove,
Sombrinha e guarda-chuvas
Enfeitam calçadas
E o riso na cara
Do cara da funerária
Anunciando mortes e lucros.
(Miró apud Soares, 2012, p. 26)

Figura 2: O poeta Miró da Muribeca (foto: Camilo Soares, do livro <em>Poesia, mesa de bar e goles decadentes</em>, 2012)
Figura 2: O poeta Miró da Muribeca (foto: Camilo Soares, do livro Poesia, mesa de bar e goles decadentes, 2012)

Assim, o grande elo entre tantos poetas não pode ser associado apenas à linguagem escrita, mas a sua presença física na cidade. Primeiro, uma presença na captação da crônica urbana, do observador em constante deslocamento; segundo, na expressão dessa poética com gestos e vozes dentro de um espaço urbano. Para abordar tal característica da poesia de Miró, mas também aplicável a outros poetas do grupo, André Telles do Rosário cunhou o termo Corpoeticidade ao juntar corpo, poética e cidade num só conceito, formando três dialéticas: poesia e corpo, corpo e cidade, cidade e poesia.

No primeiro, A poesia no corpo, traços de performaticidade […], a forma com que o corpo modula as manifestações do poema. No segundo, O corpo na cidade, um olhar sobre a subjetividade deste indivíduo urbano, quais as fronteiras para a movência e para o usufruto da urbe: a cor, a classe e a intimidade deste habitante que é o ponto-de-vista das imagens de suas invenções. E no terceiro, A cidade na poesia, como as representações geográficas tradicionais (principalmente da cidade, mas também da região e da nação) são desconstruídas e reinventadas em poemas seus (Rosário, 2007, p. 84).

A cidade não é, portanto, apenas fonte inspiradora, ela entra num jogo de transformar e ser transformada constantemente por toda sua gama de códigos e linguagens, tanto de forma simbólica quanto física. Devemos, como aponta Rosário, observar além do significado meramente linguístico ao apreciar esses poemas, ou seja, perceber a ação do corpo na construção da mensagem, desde a voz e o gestual, até a indumentária, o local e a ocasião. Tudo isso ajuda a compor, junto a prédios, postes e muros, a imagem da cidade para esses poetas e para os que os leem ou os veem declamar. Tais gestos, roupas e sons influenciam até mesmo na formatação da versão impressa dos poemas em livretos, geralmente leves, finos, estreitos, fáceis de carregar.

No cinema desse gênero[1], pode-se observar facilmente tal corpoeticidade. Os filmes de Wilson Freire com Miró (Miró, Preto, Pobre, Poeta e Periférico, 2008, e Breve Ensaio sobre a Bestialidade Humana, 2010) parecem ser tratados cinematográficos sobre a corpoeticidade, pois corpo, poética e cidade estão intrinsecamente arraigados em cada cena, conduzindo a estética e narrativa do filme, destruindo-se e reconstruindo-se mutualmente. Já no filme de Antônio Carrilho, Poeta Urbano (2012), mais clássico em sua concepção, o poeta perambula para vender seus fanzines de poesia pelos bares da cidade. Urbano é seu nome, pois é completamente parte da cidade que tanto o maltrata (a ele e à sua arte). Carrilho filmou em 35mm para dar uma certa nobreza a uma arte desprestigiada, o que talvez tenha limitado sua experimentação, perdendo um pouco da agilidade inerente a tal poesia.

Documentário Miró, Preto, Pobre, Poeta e Periférico (Wilson Freire, 2008)

Linguagem e contexto urbano

Como à poesia que faz referência, em tais filmes pernambucanos, a imagem da cidade tampouco é construída apenas numa relação de plano de fundo; poética, cinema e cidade intervêm uma nas outras como grafias que formam uma linguagem em comum. Para Argan­­ –­ que tece a analogia entre o linguista e o urbanista tendo em vista a similitude do processo de formação, agregação e estruturação do espaço urbano com a formação, agregação e formação da linguagem – a proximidade da apreensão da cidade como leitura subjetiva com a compreensão de associações linguísticas (como na poesia e, por que não, no cinema?) é incontestável:

A configuração humana, enfim, não seria mais do que o equivalente visual da língua, e não tenho nenhuma dificuldade em admitir que os fatos arquitetônicos estão para o sistema urbano assim como a palavra está para a linguagem (Argan, 2005, p. 237).

Tais interações linguísticas desenham relações bastante complexas, pois além do discurso, associam-se na memória, na afetividade do interlocutor. Ele usa a classificação saussuriana de relações linguísticas, dividindo essas em sintagmáticas (lógicas e presenciais) e associativas (subjetivas e virtuais). Para Saussure, o espaço também é percebido dessa maneira, dando o exemplo de uma coluna de um edifício: de um lado temos sua função com a arquitrava que sustenta (sintagmática), de outro lado a coluna é de ordem dórica, evocando a comparação com outras ordens (jônica, coríntia, etc.), que são elementos não presentes no espaço (associativo) (Saussure apud Argan, 2005, p. 239).

Para Argan, as duas esferas são importantes no campo puramente linguístico e no campo urbanístico, e cita Saussure.

Uma língua que funcionasse apenas por relações associativas não permitiria fazer um discurso coerente; uma língua que funcionasse apenas só por relações sintagmáticas seria lógica, mas de uma extrema pobreza. Assim no contexto urbano que fosse apenas o conjunto das imagens urbanas de cada indivíduo seria um caos; um contexto urbano que fosse apenas o mecanismo de uma função não teria profundidade histórica, seria indiferenciado, não comunicaria nada que não possa ser comunicado por fórmulas (Saussure apud Argan, 2005, p. 239).

Através da corpoeticidade, a poesia urbana talvez seja o maior exemplo dessa interação entre contexto urbano e linguístico (sobretudo o associativo, de onde a poesia tira sua força, subvertendo mas não apagando por completo a relação sintagmática). Aqui juntaremos uma terceira expressão ligada ao corpo, o estar-no-mundo (ou na cidade, especificamente) de forma imanente, com seus gestos e deslocamentos, pois tal poética urbana só se complementa, segundo Rosário, quando o corpo interage com a cidade e com a poesia.

Nas releituras da urbe, interpreta, simbolicamente, tanto a estrutura social, quanto as representações culturais do lugar. Novas e velhas conformações se misturam, na cartografia de Recife e do Mundo – mapas de uso deste espaço geográfico ligados a classe, etnia, gênero, identidades. Pontos onde o indivíduo socialmente envolvido (o “anônimo”) encontra voz, remonta discursos e cria imagens da sua cidade, tomando para si seu espaço no Mundo, através da expressão de uma relação afetiva (ou menos) com o lugar que habita (Rosário, 2007).

Nessa criação da cartografia da cidade a partir de representações culturais do lugar, entramos aqui em uma dinâmica orgânica entre artista, espaço e percepção (não só do artista como também de quem contempla a obra). Em sua Poética do Espaço, Gaston Bachelard contrapõe o estar-no-mundo poeticamente, o que chama de fenomenologia da imaginação, com a visão objetiva (sintagmática) do espaço, o que tanto na literatura quanto no cinema é diferença fundamental na articulação e formação de novos discursos sobre a cidade, sobre o mundo, a partir de imagens.

O espaço captado pela imaginação não pode permanecer espaço indiferente à revelia da medida e da reflexão do geômetra. Ele é vivido. E ele é vivido não apenas na sua positividade, mas com toda a particularidade da imaginação (Bachelard, 2007, p. 17).

Não há dúvidas que a cidade é vivida visceralmente pela poesia marginal do Recife, longe de uma visão mítica e saudosa (Bandeira) ou ontológica e sociológica (Cabral).[2] Mas a agregação do espaço como imagem vivida é um diferencial do cinema pernambucano recente, no cenário nacional e mesmo internacional; não é por acaso que tal poesia se faz presente nessas telas, por homenagem ou por confluência.

Cláudio Assis (com seu roteirista Hilton Lacerda), por exemplo, escolhe fechar sua trilogia mergulhando na poética marginal do Recife com o filme Febre do Rato (2011). Fazendo uma homenagem a essa geração através do poeta Zizo, o incansável divulgador de poesia com seu fanzine Caos de quem emprestou o nome de seu protagonista. Assis e Lacerda transcorrem não apenas as ruas da cidade, como também seus rios e pontes, anunciando verdades inaceitáveis à hipocrisia reinante pelos atos de terrorismo poético do personagem. A dureza da cidade é vivida e reconstruída pela poética de Zizo. Recife vira fluxo de sons, descaminhos e palavras.

Figura 3: O poeta Zizo (foto: Camilo Soares, do livro <em>Poesia, mesa de bar e goles decadentes</em>, 2012)
Figura 3: O poeta Zizo (foto: Camilo Soares, do livro Poesia, mesa de bar e goles decadentes, 2012)

O mesmo poeta Zizo foi co-diretor e co-roteirista do curta metragem Sue – Turbulenta aberração, de Camilo Soares. Baseado na personagem Sue de seus fanzines, jovem mulher, poeta, libertária e libertina, que perambula pela urbe na busca de suas várias identidades. Não apenas Sue é o anagrama de Eus, como esses se misturam aos sons e imagens da cidade, palco perfeito para tal poética, suas dores, suas dúvidas…

Figura 4: Frame do filme <em>Sue</em> <em>-</em> <em>Turbulenta aberração</em> (Camilo Soares e Zizo, 2013)
Figura 4: Frame do filme Sue Turbulenta aberração (Camilo Soares e Zizo, 2013)

Trailer de Sue – Turbulenta aberração:

Assim sendo, é uma poesia de fluxo, mais do que de flanerie, pois é uma literatura que só sobrevive no deslocamento, no gesto e na voz misturada a sons, cheiros e demais estímulos da cidade, seja pela venda cotidiana dos fanzines, de mesa em mesa de bares, seja pelos recitais organizados ou espontâneos em diversos espaços, sobretudo no centro da cidade. Não há muito dessa contemplação e desaceleração do flaneur. Cidade, poetas e poesia passam como movimentos, construindo-se na fluência caótica de seus vários elementos. Tal leitura do espaço, como diz Bachelard, é construída da própria brevidade da imagem: “A fenomenologia da imaginação deve assumir a tarefa de captar o ser efêmero” (Argan, 2005, p.197).

O cinema, arte fenomenológica por excelência, não poderia ficar apático dessa incessante construção do Recife em tempo e espaço. Nos filmes que retratam tal universo também se faz sentir esse deslocamento, esse fluxo, essa corpoeticidade. Nos dois filmes já citados de Wilson Freire sobre Miró, o primeiro um documentário, o segundo um experimental, o poeta está sempre em deslocamento pelo Recife e periferia. A poesia é presente não apenas em palavras, mas também no movimento do corpo do poeta e na vibração da urbe diante do espectador privilegiado que é a câmera, que percebe ao mesmo tempo em que provoca tal interação, sem ser artificial, pois esse interstício já está intrínseco na sua poética.

Igualmente no filme Poeta Urbano, de Antonio Carrilho, seu personagem transcorre a cidade no árduo trabalho de vender seus livretos, em cenas exageradamente ficcionais, até culminar num êxtase de declamações em Olinda, que escapa do controle do cineasta e encontra finalmente a força libertária dessa poesia, quando o filme entra no interstício, comum ao estilo do diretor, entre ficção e documentário. A íntegra desse encontro virou outro filme: Recital de poesia nos Quatro Cantos de Olinda no dia de São Jorge (2012).

A marginalidade de estar fora de sistemas editoriais, hoje faz pouco ou nenhum sentido devido à internet. No entanto, a cultura do fanzine ainda é forte, pois são poetas cuja divulgação é sobretudo feita por si mesmos, em recitais e na venda de seus livretos em bares. Caso interessante é o filme Poemainflamado (2013), de Mariano Pikman, sobre o poeta França. Desbravador de becos de Recife e Olinda, o poeta, com sua veia política, entoava um frevo (na verdade, um clarim, tão comum ao Carnaval local) depois dos versos em off sobre um passeio da câmera por favelas da cidade:

Olinda está muito mal
Em decúbito ventral
Desde o primeiro Carnaval
Tendo sido incendiada
Por legiões de urbanos
Tal qual era colonial
E a dos greco-romanos
(França, 2011, p. 137).

Ora, que outro registro além do cinema seria tão capaz de expressar a ironia desse poema de canto, ritmo, corpo, sangue e história. Esse cinema se difere, portanto, de odes a urbes que marcaram a história do cinema, como O Homem com a Câmera (1929) de Dziga Vertov e a Berlim: Sinfonia de uma metrópole (1927) de Walter Ruttmann. No cinema pernambucano atual não calha mais a visão de cidade sinônimo do progresso. Há mais um canto desesperançado das consequências sociais e urbanísticas de sinais de dito progresso, até então tão pouco coletivo; temos aqui um claro olhar crítico e ácido, como no poema de França, do colonialismo que ainda parece reinar sobre a construção e planejamento da cidade. E os sons e movimentos do cinema caem como luvas para interpretar tal espessura sem cair em simplificações.

A cidade não é uma máquina perfeita futurista, nem está condenada à fuga dos românticos; a cidade é um lugar a ser ocupado, físico e afetivamente. Nisso a poesia marginal foi pioneira, na reocupação da cidade como fundamento de sua estética (escrita, gestual). A poesia urbana é política, além de suas palavras, é política em seu corpo, em seu corpus, abrindo a perspectiva de que a cidade atual carece de presença, de vivência, para não se tornar apenas vias de escoamento de bens de consumo e mão de obra, entre áreas de especulação imobiliária. A presença (vivência) na cidade é a primeira etapa da cidadania urbana, em busca da qualidade dos espaços, de zonas de convivência. O artista toma de assalto a cidade, para preencher o vazio e o frio da existência puramente funcional destinada à urbe. Uma poesia de presença, mas não presença parada, de presença no fluxo, movimento entre ruas, becos e esquinas da cidade (não seria essa a bandeira de movimentos de ocupação ao redor do mundo?). Seria também a gasolina do cinema pernambucano, voltando suas lentes para a cidade, na construção de um olhar crítico ao desenvolvimentismo de shopping centers e arranha-céus pouco preocupado com história, identidade, convívio.

Figura 5: #OcupeEstelita (28/04/2013, Recife), movimento contra projeto imobiliário que prevê a construção de treze torres na região central da cidade
Figura 5: #OcupeEstelita (28/04/2013, Recife), movimento contra projeto imobiliário que prevê a construção de treze torres na região central da cidade

Nesse universo, o cinema aparece como ferramenta ideal para expressar tal poética feita de palavra, voz, corpo e movimento na cidade. Sem dúvida, o maior legado da poesia marginal para novas expressões não é o fanzine, pois a internet supriu essa necessidade de livro, editoras e livrarias, mas a presença do contexto urbano na alma desse fazer poético. Tal contexto apresenta hoje um indiscutível teor político, de ocupação da cidade física e imaginária, não apenas realizado pelo cinema, mas pelas mais diversas artes que hoje sentem a necessidade de sair de espaços institucionais para ganharem as ruas, seja em intervenções urbanas, recitais, espetáculos de danças e teatro de rua. O cinema, com seu olho mecânico, registrador e parabólico, observador e instigador, talvez seja o parceiro ideal para captar tal movimento.


* Camilo Soares é mestre em Estética: cinema e audiovisual pela Paris 1 Panthéon-Sorbonne e professor de Cinematografia da UFPE.

Referências

ARGAN, Giulio Carlo. Histoaria da Arte como História da cidade. 5° ed., São Paulo: Martins Fontes, 2005.

BACHELARD, Gaston. La poétique de l’espace. Paris: Quadrige, 2007.

FRANÇA. Poeminflamado. Recife: Fundarpe, 2011.

JORDÃO, Valmir. Aos pariceiros dos anos 80 (um uivo recifense). Poemas diversos. Recife: Escalafobética, 2013.

LUNA, Erickson. Do moço e do bêbado. Recife: edição do autor, 2004.

LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

ROSÁRIO, André Telles do. O poeta Miró e sua literatura performática. Dissertação (Mestrado em Letras). Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2007.

______. Corpoeticidade: algumas relações entre corpo, poesia e cidade na literatura performática do poeta Miró. Disponível em: http://interpoetica.com/site/index.php?option=com_content&view=article&id=889&catid=0

SOARES, Camilo. Poesia mesa de bar e goles decadentes: descaminhos de três poetas marginais do Recife. Recife: Nectar, 2012.

Notas

[1] Ouso afirmar que o cinema sobre poesia marginal é um gênero pernambucano, pois o tema, como veremos, é bastante corrente, ao contrário de outras poéticas mais acadêmicas.

[2] Talvez apenas Carlos Pena Filho tenha lançado sementes para esse tipo de vivência com o Recife.

Tempo de leitura estimado: 19 minutos

Nomadismo Corpoético | Ivan Maia*

O fluxo de criações corpoéticas que experimentei nos últimos 24 anos se instaurou a partir do contato com práticas artísticas, políticas e terapêuticas vivenciadas desde o início de 1989, quando fui cursar uma disciplina básica do doutorado em Matemática no IMPA (Instituto de Matemática Pura e Aplicada) no Rio de Janeiro. Eu fazia mestrado em Matemática na UFPE em Recife, depois de ter deixado o curso de Engenharia Aeronáutica no ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica) e estudava geometria diferencial. Durante o curso, entrei num devir cinéfilo que me levou a assistir três filmes por dia no antigo Cineclube Estação Botafogo, no Rio de Janeiro. Uma aventura existencial iniciou seu processo uterino no cinema, o que me conduziu a uma viagem de carro de Recife a Porto Alegre, junto com a namorada, a partir da qual comecei a sentir um impulso existencial voltado para a experimentação de práticas artísticas, terapêuticas e políticas, que me levou a deixar o estudo de matemática e lançar-me em leituras e estudos filosóficos, literários, artísticos e de ciências humanas, assim como práticas experimentais corporais ligadas a esses saberes.

O primeiro contato com poetas recitadores foi com o movimento organizado por Juareiz Correya, poeta de pernambucano de Palmares, das caminhadas poéticas pelo centro de Recife, com recital itinerante nas paradas em alguns pontos cruciais do Recife. Em Olinda ocorria uma serenata itinerante nas sextas-feiras com música de violões, violinos, bandolins que costumava ter um poeta recitando no ponto final. Miró foi o primeiro poeta performático que vi apresentar-se interpretando poemas seus e de outros poetas, numa performance que me marcou a sensibilidade artística quando eu só escrevia e publicava oportunamente, sem recitar ou interpretá-lo de modo performático. Ele surgiu por trás das pessoas aglomeradas no pátio do Centro de Artes e Comunicação da UFPE interpretando a letra da canção Família, do grupo de rock Titãs, com ar de deboche vestindo um blazer cinza e com grandes dread locks no cabelo rastafári. Foi aplaudido entusiasmadamente pelo público que ali reverenciava um ícone da irreverência contracultural pernambucana.

Em 1991, experimentei minha primeira performance poética. Depois de ter assistido aos poetas Bernardo Costa e Ivan Marinho, além de Miró, juntei-me a alguns amigos de uma comunidade de Somaterapia com quem convivi, e lemos poemas meus, em meio a movimentos sensuais, cobertos por um lençol e à luz de velas.

Em 1992, entrei no Curso Básico à Formação do Ator da Fundação Joaquim Nabuco, em Recife, com duração de um ano, ao final do qual participei da encenação de uma peça do dramaturgo Felipe Botelho chamada Janos Adler, premiada em concurso nacional de dramaturgia. A formação de ator me deu condição para elaborar ainda mais as performances poéticas e assim formei, em 1992, o grupo corpoema e passamos a realizar tais performances nos eventos do bar Antropófago, no Espaço de Cultura Libertária (E.C.L.).

No Espaço de Cultura Libertária, atuávamos também como garçons e na administração autogestionária do espaço, que tinha também a Livraria e Locadora de Livros Outras Palavras, a qual nos abastecia com uma abundância de livros de poesia. Ao mesmo tempo, alternando com a participação no Sopa Caraíba, evento semanal do bar Antropófago, começamos o movimento itinerante Poesia na Praça, de recitais poéticos nas praças de Recife, Olinda e Jaboatão, nas tardes de domingo.

Figuras 1 e 2: Os poetas Miró (à esquerda) e França
Figuras 1 e 2: Os poetas Miró (à esquerda) e França

O corpoema, com formação variável, contava quase sempre com a participação minha, da atriz Cláudia Harmes, do poeta e músico Carlos Cardoso e dos poetas Miró, Valmir Jordão, Lara, entre outros poetas, atores e músicos que eventualmente se juntavam ao grupo. Foram dois anos intensos, de preparação semanal de performances, apresentadas no Antropófago, e alegres festas da poesia nas praças. Aos domingos, costumávamos fazer grandes almoços coletivos, cada um trazendo um prato de casa que juntávamos no E.C.L. Após o almoço, pintávamos os rostos, preparávamos as roupas mais estranhas, obtidas colocando as peças fora do lugar convencional, e íamos para a praça escolhida e anunciada no domingo anterior, onde nos espalhávamos para convidar o público para aproximar-se do local. Nele, nos reuníamos novamente de mãos dadas gritando três vezes: “Poesia na praça!”. Aconteceu de tudo com todo tipo de gente que se juntava ao animado grupo mambembe que ocupava poeticamente as praças nesses anos 92-93. O processo de singularização subjetiva desencadeado com essas experiências influenciou significativamente a geração de poetas que, posteriormente, ganhou maior visibilidade na cena literária pernambucana com a publicação da coletânea Marginal Recife em cinco volumes, que reuniu poetas que há mais tempo faziam movimentos poéticos em Recife e Olinda, como Jorge Lopes e Erickson Luna, aos quais foram agregados alguns novos como Eunápio Mário e Du Nascimento.

Alguns chegaram a fazer performances em outros estados, como em São Paulo, onde nos apresentamos em 1992 durante a realização do encontro Outros 500, que fez um contraponto libertário às comemorações dos 500 anos da invasão de nosso continente pelos europeus. Em 1993, participamos do I Encontro Anarco-Cultural de João Pessoa, no qual fizemos performances poéticas que foram recebidas com grande entusiasmo pelo público de anarco-punks, anarco-sindicalistas, anarco-pacifistas, anarco-ecologistas das cidades de Natal, Campina Grande e Recife que se juntou aos paraibanos da capital no espaço cultural Coletivo Arte e Luta, no centro da cidade. Além das performances em outros locais, como a orla de Tambaú e dentro de ônibus urbano.

Outro momento marcante, ainda nesse ano, foi a apresentação feita com crianças e adolescentes ligados ao grupo Ruas e Praças, que realizava trabalho social com crianças em situação de risco. Os jovens, que já não estavam mais vivendo nas ruas do Recife, participaram de uma oficina de teatro que oferecemos durante um mês no E.C.L. E ao final nos apresentamos no centro do Recife, encerrando a Passeata contra a Fome e a Miséria, liderada por Betinho, e na Assembleia Legislativa de Pernambuco, para os deputados estaduais e os movimentos sociais, que ocuparam as arquibancadas durante as comemorações do 1º de Maio. Foi impressionante como os meninos se expressaram com altivez no plenário da Assembleia diante dos parlamentares, interpretando uma colagem de poemas de grandes autores, como Drummond, e textos elaborados na oficina pelos próprios participantes, alguns dos quais membros do Daruê Malungo, grupo de percussão que, junto com Chico Science e Nação Zumbi (CSNZ), agitou a cena cultural pernambucana. O Daruê Malungo apresentou-se no E.C.L. poucos dias antes de participarmos, interpretando nossos poemas, de um grande show com várias bandas, entre as quais Mundo Livre S.A. e Chico Science e Nação Zumbi.

Figura 3: <em>Performance</em> do poeta Lara
Figura 3: Performance do poeta Lara
Figura 4: Ivan Maia declama poemas de seu livro <em>Azulírico</em> na Bienal do Livro de Salvador
Figura 4: Ivan Maia declama poemas de seu livro Azulírico na Bienal do Livro de Salvador

Em 1994, o Antropófago deixou de funcionar após dispersão do grupo que o mantinha de forma autogestiva, mas antes fizemos ainda várias apresentações em escolas públicas, universidades, manifestações sindicais e de movimentos sociais, bares e espaços culturais de vários tipos em Recife e Olinda, as quais passavam pelos efervescentes tempos de surgimento do movimento Mangue Beat, que, com sua musicalidade marcada pelos ritmos da terra e danças populares, bem como sua poética da marginalidade, deu novo acento à corpoeticidade da poesia marginal, independente, alternativa, pernambucana.

De 1995 a 1997 experimentei junto com minha companheira na época uma aventura existencial de criar novo modo de vida na mata atlântica da Paraíba, próximo à praia de Tambaba. Preparamos condições para o parto domiciliar de meu filho e nos dedicamos à agricultura ecológica produzindo um sistema agroflorestal. A poesia passou para as artes plásticas e produzimos camisas pintadas com versos de poemas ou poemas curtos, que procuravam dar à roupa uma corpoeticidade que agora era experimentada enquanto estética da existência. Em 1997, um plantador chegou à região onde vivíamos e começou um desmatamento que se consumou com grande incêndio, o qual devastou boa parte da mata próxima ao sítio onde morávamos. Isso transformou a tal ponto a região que desistimos do projeto existencial que iniciávamos. Assim, voltamos pra Recife e retomamos a participação nos movimentos poéticos, como os saraus organizados por Eduardo Monga (Du Nascimento), que ocorriam na UFRPE, a universidade rural, dos quais participei até o ano de 2000, quando me mudei pro Rio de Janeiro decidindo fazer mestrado em filosofia.

Esse período foi marcado ainda por uma viagem de seis meses, em 1998, por vários locais dos estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Goiás, Bahia e Distrito Federal, na qual experimentei me manter economicamente com a venda de publicações de poesia em folhetos, livretos e camisetas pintadas, que eram oferecidas em espaços culturais a partir de performances poéticas que buscavam sensibilizar o público para o valor dessa linguagem. Essa aventura existencial em busca de viver de poesia em belos lugares, como Visconde de Mauá, Sana, Lumiar, Seropédica, Paraty, Trindade, São Tomé das Letras, Ibitipoca, Caraívas, Arraial da Ajuda, Chapada Diamantina, Chapada dos Veadeiros, Chapada dos Guimarães, Pirenópolis, Alto Paraíso, foi uma das experiências mais desafiadoras e singularizantes de minha vida. Ela me levou a reformular a proposta da Oficina Corpoema, que ofereci em Recife em 1999 e que passei a ministrar a partir de 2000 no Rio de Janeiro, no IFCS/UFRJ, enquanto cursava a graduação em filosofia e em 2001, na UERJ/Maracanã, durante a especialização em filosofia contemporânea.

As práticas de poetização do corpo e incorporação da poesia experimentadas na Oficina Corpoema foram também enriquecidas com a prática da improvisação em dança que eu realizava desde 1989 e que, no Rio, passou a outro estágio quando comecei a praticar o Contato-improvisação no Studio Corposeguro, em Botafogo. A expressividade corporal dialógica dessa prática potencializou a expressão corpoética das performances coletivas que realizamos no CEP 20.000 no Teatro Sérgio Porto a partir de então. Tais espaços (Sergio Porto, Corposeguro, UFRJ e UERJ) foram extrapolados, e participamos de eventos na UNIRIO da Urca, no Castelinho do Flamengo, no Parque das Ruínas, no Santa Poesia na Rua Hermenegildo, nas festas do bloco Céu na Terra no Largo das Neves em Santa Tereza, na Fundição Progresso e no canteiro de obras de revitalização do Circo Voador na Lapa, no Teatro SESC em Copacabana, no Posto 9 de Ipanema, entre outros espaços culturais nos quais ocorriam recitais, jams sessions, festas, shows musicais e vários tipos de eventos.

Depois de concluir as componentes curriculares do mestrado em filosofia, passei três meses em Recife, quando comecei a escrita da dissertação de mestrado. Por pouco tempo, interrompi a escrita da dissertação ao assumir o cargo de professor de filosofia na Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, em Salvador, onde ensinei por cinco anos. A poesia, então, foi retomada como experiência em salas de aula. Oficinas de contato-improvisação e recitais poéticos para estudantes ou professores ocorreram em meio a estudos, pesquisas e experimentações pedagógicas, como a componente optativa do currículo do curso de Psicologia, em que fizemos um estudo em torno dos Édipos e anti-Édipos de Sófocles, de Freud e de Deleuze e Guattari, e preparamos uma dramatização da tragédia grega.

Figura 5: <em>Performance</em> de Ivan e Lilian
Figura 5: Performance de Ivan e Lilian
Figura 6: Ivan Maia em recital na Praia dos Livros, Salvador
Figura 6: Ivan Maia em recital na Praia dos Livros, Salvador

Instituída curricularmente no ambiente acadêmico, a experiência corpoética encontrava dificuldades para ser vivida com considerável liberdade. No ensino médio, ainda mais, pelo caráter disciplinador da educação privada da classe média. Ensinei em dois colégios em Salvador e cheguei a criar uma Sociedade dos Filósofos Vivos, onde líamos poemas filosóficos como provocação dos estudos. A retomada de uma experiência corpoética mais rica se deu só com o estágio na UFBA como professor substituto do Bacharelado Interdisciplinar em Artes da UFBA. Na componente curricular Ação Artística, experimentamos com treze estudantes a radicalização da proposta corpoética. E foi então realizado um ritual antropofágico de devoração dos corpoemas, em que foi erguido, junto à Biblioteca Central, uma instalação em forma de um grande “T”, como totem do tesão, o prazer da estética da existência corpoética que foi celebrado no ritual antropofágico de “transformação do tabu em totem”. A dança dos corpoemas, que interpretavam poemas corporais com os corpos pintados ao redor do fogo, foi a performance heterotópica resultante da componente curricular.

Figura 7: Aula de Ação Artística, curso de Artes da UFBA
Figura 7: Aula de Ação Artística, curso de Artes da UFBA
Figura 8: Ritual antropofágico, curso de Artes da UFBA
Figura 8: Ritual antropofágico, curso de Artes da UFBA

Essa experimentação corpoética foi vivida ao mesmo tempo nos encontros de contato-improvisação no Teatro XVIII no Pelourinho, e nos encontros poéticos na Praia dos Livros, no Porto da Barra, em Salvador, onde reunimos muitos poetas baianos e de outros lugares em eventos e festas multimidiáticas.

Figura 9: Ivan Maia na Fliporto 2011
Figura 9: Ivan Maia na Fliporto 2011

Ao concluir o doutorado com a tese intitulada Autopoiesis do corpoema: a vida como obra de arte, fiz concurso e comecei a ensinar numa universidade federal no Ceará, onde estou há um ano e meio como professor adjunto do Bacharelado em Humanidades e Coordenador de Arte e Cultura da UNILAB. A experimentação corpoética agora segue com o projeto de extensão chamado Curso de Teatro CORPOEMA. O devir poema do corpo acontece agora como teatralidade performática que os estudantes da universidade e de outras faculdades, junto com professores e estudantes de escolas da região do Maciço do Baturité, experimentam em aulas e apresentações.

Figura 10: Aula do curso de teatro Corpoema
Figura 10: Aula do curso de teatro Corpoema

A tese faz do corpoema um conceito básico para conceber uma estética da existência corpoética, na qual o corpo é pensado a partir da perspectiva de Friedrich Nietzsche e outros pensadores influenciados pelo filósofo alemão, principalmente Oswald de Andrade, Martin Heidegger, Michel Foucault, Gilles Deleuze, Felix Guatari e Dante Galeffi. Assim, as noções, respectivamente, de antropofagia (no sentido de Oswald), acontecimento apropriativo e poesia (segundo Heidegger), estética da existência (Foucault), singularização subjetiva (Deleuze e Guatari) e vita poemática (Galeffi), foram utilizadas para elaborar o conceito de corpoema em seis campos da experiência humana, visando projetar um modo de vida corpoético centrado na expressão poético-performática de natureza artística e estendendo sua estética para o âmbito da existência de modo mais abrangente.

Figura 11: <em>Performance</em> antropofágica na UECE
Figura 11: Performance antropofágica na UECE
Figura 12: <em>Performance</em> antropofágica na UECE
Figura 12: Performance antropofágica na UECE

O primeiro campo abordado na tese refere-se ao campo de experimentação do espaço e discute as possibilidades de constituição de espaços existenciais configurados esteticamente para ambientar a expressão artística. Algumas experiências artísticas como as que foram realizadas na ecovila Terrauna, município de Liberdade, ou no Vale do Gamarra, município de Baependi, ambos em Minas Gerais, onde uma comunidade de artistas cria coletivamente um evento e um modo de vida. No primeiro caso, de forma tão sustentável que permanece há dez anos, com residências artísticas mensais. No segundo caso, de forma mais improvisada, durante uma semana de julho de 1998, num espaço singularmente configurado para a expressão artística e convivência sustentável. As performances ganharam nesses lugares uma inaudita força telúrica de intensificação expressiva.

O segundo campo de experimentação abordado é o da experiência corporal dos impulsos criadores que visam fazer do corpo uma obra de arte, âmbito essencial da estética corpoética. Aqui se propõe a poesia mais completa de um corpoeta que entoa seus versos em meio à dança de um corpo pintado com as cores do desejo de fazer da vida uma obra de arte. Compartilhei com o poeta França, de Olinda, um tal momento performático corpoético ao som de tambores ao redor da fogueira na noite de lua cheia de julho de 1997, num evento com mais de 200 pessoas de vários lugares do Brasil que ficou como referência estética para outras experimentações e criações como a que ocorreu em 2003, entre outras no CEP 20.000 no Teatro Sérgio Porto no Rio de Janeiro, com o grupo de percussão OPA! de Santa Tereza.

O terceiro campo refere-se à experiência política das relações de poder nas quais a estética da existência corpoética se volta para as possibilidades de criar práticas de liberdade para uma experiência artística coletiva mais autônoma, particularmente quanto à expressão poética em sua performance corporal coletiva. Uma prática de liberdade coletiva mantida de forma autogestionária durante dois anos foi o evento Sopa Caraíba que se constituiu em espaço de experimentação performática para uma grande parte dos poetas pernambucanos que se situavam à margem dos meios literários mais prestigiados, compondo uma outra cena, alternativa, com produção independente, no Bar Antropófago, em Recife, que clandestinamente criou um conceito de “bar de boca em boca” para sua condição de existência. Ele se manteve por menos tempo e em condições mais modestas que as do consagrado CEP 20.000.

O quarto campo da experiência humana em que se configura a formulação da estética da existência corpoética é o da experimentação dos afetos, no qual é elaborada uma compreensão da experiência afetiva voltada para a valorização ética dos afetos, paixões, desejos, impulsos que aumentam a potência vital, individual e coletiva, do corpoema. As muitas parcerias constituídas para realização de performances poéticas surgem como experiências singulares de agenciamento de uma afetividade vitalizante. Particularmente os afetos compartilhados com parceiros de criação com os quais a amizade se desenvolve, especialmente aquelas pessoas com quem se desenvolve uma ligação mais íntima por afinidade ou amor, quando a intensidade do vínculo potencializa a vitalidade das criações. Isso se manifesta hoje nas performances poéticas que faço com minha amada atriz e dançarina, a médica Lílian Carvalho, com quem me apresentei em diversos espaços culturais desde a rua aos mais esteticamente constituídos como a Praia dos Livros, no Porto da Barra, em Salvador.

O quinto campo de experimentação existencial aborda a expressão, sobretudo por meio de linguagens poéticas, nas quais o corpo é poetizado e esteticamente mobilizado para servir à expressão corpoética. A linguagem corpoética é expressão de uma poesia visceral, sutil e dramática, comovente e intuitiva, libertária e vitalizante como a que se mostrou nascendo dos corpos nas experimentações do grupo Corpoema no Espaço de Cultura Libertária, da Oficina Corpoema na UFRJ e na UERJ, na apresentação final do curso na componente Ação Artística do Bacharelado Interdisciplinar em Artes da UFBA e no Curso de Teatro Corpoema, projeto de extensão universitária da UNILAB, em Redenção, Ceará. Nelas, o corpo sangra palavras vivas de intensa expressão poética.

O sexto campo de experimentação corpoética é o da compreensão da existência, no sentido de interpretar os acontecimentos e elaborar uma possibilidade harmônica de lidar com o vir-a-ser da vida, com uma espécie de sabedoria intuitiva que permita a cada corpoema tornar-se capaz de dar sentido a sua existência.

Uma tal cartografia da corpoeticidade, além de descrever os espaços diferenciados que se abriram para as performances mais singulares, pode ainda trazer à tona a heterogeneidade estética das mesmas na perspectiva de uma elaboração da cartografia de performances corpoéticas em meio a espaços-tempos constituídos como heterotopias.


 

* Ivan Maia de Mello é poeta, letrista, ator, dançarino, diretor de teatro e professor de Filosofia da UNILAB (Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira). Doutor em Filosofia da Educação pela UFBA com a tese Autopoiesis do corpoema: a vida como obra de arte e mestre em Filosofia pela UERJ. Publicou ensaios filosóficos e poemas, sendo Azulírico sua mais recente publicação (2009). Nascido em Recife, mora atualmente em Fortaleza.

 

Referências

DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. Tradução de Peter Pal Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 1997.

FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

______. Microfísica do poder. 8ª ed. Tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1989.

GUATTARI, Felix. Caosmose. Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Claudia Leão. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.

MELLO, Ivan Maia de. A autocriação de Zaratustra, como caminho crítico de criação do pensamento de Nietzsche. 2005.Dissertação de Mestrado em Filosofia – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2005.

______. Autopoiesis do corpoema: a vida como obra de arte. Tese de Doutorado em Educação. Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2012.

NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. 12ª ed.Tradução de Mário da Silva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

Tempo de leitura estimado: 18 minutos

Rimas das ruas | Rôssi Alves Gonçalves*

Rua é o lugar de onde eu vim / e é de lá que eu conheço vários igual a mim….
(MC Allan Selva)

As ruas do Rio de Janeiro abrigam diariamente encontros que têm na rima a protagonista de um espetáculo que denomino de “feliz encontro de parnasianos e modernistas”. Esse encontro, a princípio conhecido como Rodas de Rima, atualmente denomina-se Rodas Culturais e faz parte do Circuito Carioca de Ritmo e Poesia. Rodas Culturais são reuniões de jovens artistas (cantores, MCs, grafiteiros, pichadores, fotógrafos, praticantes de malabares e outras artes) com o objetivo de ocupar o espaço público com arte e ativismo.

O Circuito Carioca de Ritmo e Poesia, conhecido como CCRP, é um projeto que consiste numa grande reunião de jovens, unidos pela ideia de ocupar lugares públicos e levar diretamente arte e cultura às pessoas de forma horizontal e interativa. Rodas Culturais acontecem semanalmente em diversos bairros do Rio de Janeiro, com a participação de poetas, músicos, grafiteiros, artistas plásticos, formando uma grande rede cultural, que interliga bairros distintos da cidade, como Bangu, São Cristóvão, Lapa, Vila Isabel, Botafogo, Méier, Jacarepaguá, Barra. O CCRP une pessoas de classes sociais e culturais diferentes, aproveitando-se de praças e ruas, proporcionando união e consumo sem a necessidade de gastos elevados (a entrada e participação são gratuitas e os produtos vendidos são comercializados quase ao valor de custo).

O mais interessante nesse movimento artístico público é o fazer poético que se realiza como um enorme sarau, em que o artista pode improvisar, declamar um texto originalmente composto para ser cantado, cantar, sozinho ou em dupla, com acompanhamento de instrumentos ou de beatbox. Mas há um investimento no movimento como uma teia cultural que receba, cada vez mais, contribuições de todas as expressões culturais, transformando essa poesia da rua em um movimento plural e que tem seus desdobramentos no rep e em outras sonoridades e formas artísticas. Ou seja, a rima foi o movimento iniciador. E através dela, formou-se um espaço cultural plural e fundamental para a cidade.

Figura 1: Roda Cultural de Botafogo
Figura 1: Roda Cultural de Botafogo

Este estudo considera a produção poética das Rodas Culturais e Batalhas de Rima como uma nova expressão poética – urbana e carioca. Para tal, ampara-se em dois críticos literários: Paul Zumthor e Antonio Candido.

Rodas Culturais e Batalhas de Rima – a realização de uma literatura urbana carioca

Rima é assim / um trabalho instável / além de ser convincente / também tem que ser impecável (Nissin).

Zumthor, em seus estudos de poesia oral, performance e recepção, reconhece como realização poética o produto dos transmissores orais que, mesmo sem o recurso da escrita – pressuposto, para alguns críticos, para que possa haver literatura–, devem ser inseridos na categoria de poetas. Verificando as distinções entre as duas formas literárias, a escrita e a oral – especificidades apontadas com esmero em seus estudos –, o teórico é assertivo na legitimação da poesia oral:

A noção de literariedade se aplica à poesia oral? O termo é indiferente: eu defendo a ideia de que existe um discurso marcado, socialmente reconhecível como tal, de modo imediato. A despeito de uma certa tendência atual, descarto o critério de qualidade, devido à sua grande imprecisão. É poesia, é Literatura, o que é público – leitores ou ouvintes – recebe como tal, percebendo uma intenção não exclusivamente pragmática: o poema, com efeito (ou de forma geral, o texto literário), é sentido como a maior manifestação particular, em um dado tempo e em dado lugar, de um amplo discurso constituindo globalmente um tropo dos discursos usuais proferidos no meio do grupo social (Zumthor, 2010, p. 39).

Ilustrando com maestria esse tipo de poesia está a produção das rimas das ruas do Rio de Janeiro, cuja forma mais comum de composição é o Freestyle em suas variações o improviso “desinteressado” e o apresentado nos duelos das Batalhas de Rima. Esse contexto de elaboração poética produz significativa diferença no resultado da rima (não se intenta aqui fazer um julgamento de valor!), sobretudo por ter finalidades distintas.

O freestyle “desinteressado” é a rima de improviso criada em situação de descontração, cujo objetivo é construir uma poesia da qual emane emoção e mensagem. Há normalmente uma narrativa, pois parte-se, comumente, de um tema “proposto” pelo primeiro a rimar (a exceção dá-se quando o rimador faz seu freestyle sozinho, podendo “passear” por vários temas) e, numa socialização e respeito à roda de rimadores, mantém-se o tema, desenvolvendo-o.

Essa rima é bastante devedora dos estímulos externos. Na ausência de um tema específico (ou mesmo sob a tutela desse), o rimador,  liberto para criar, pode construir sua poesia em torno de fatos do cotidiano, temas abstratos, situações em curso…

A rima criada por um MC em momento de batalha, embora se deseje emocionante e portadora de mensagem, nem sempre resulta nisso, dada a grande pressão que envolve o candidato, no momento da realização – curtíssimo tempo para elaboração da rima, tensão por participar de um duelo, expectativa da plateia, entre outros fatores. Esse tipo de rima, invariavelmente faz grande investimento no humor, mas sofre uma quebra; ou seja, é raro haver uma mensagem desenvolvida; os versos surgem soltos, muitas vezes descontextualizados. Entretanto, é essa rima que mais se eterniza, pelos vídeos, pelas repetições por parte do público, pelos posts nas redes sociais.

A poesia apresentada pelo movimento das Rodas Culturais e Batalhas de Rima tem a sua construção no momento de apresentação. Embora muitos MCs declarem haver sempre algumas estruturas – versos, palavras, combinações – pré-concebidas, ela é, no mais das vezes, criada, em sua totalidade, em tempo real, atravessada por estímulos externos, mas, sobretudo, produzida a partir do “sentimento”. Questionados sobre os recursos de composição, inúmeros MCs revelam que é fundamental ter “sentimento”. Apesar de conhecimento ser citado como um dos elementos essenciais, há uma tendência a atribuir à sensibilidade, ao dom, uma primazia sobre as demais técnicas propiciadoras da rima.

Os poetas de rua falam de sentimento como o poder da criação: a inspiração superior, uma espécie de contato com o divino, o que parece sugerir que criar rimas independe, de certa forma, da elaboração intelectual do MC. É comum o MC não recordar/compreender o que disse no improviso e buscar, depois, o entendimento daquela rima, o porquê do verso ter saído àquela forma – perfeita ou irregular. Buddy Poke, MC bastante conhecido e respeitado nas batalhas de rima nacionais, explica sua produção:

Produzir as rimas é algo muito diferente, algo muito mágico, muito fácil pra quem sabe e muito complicado pra quem está de fora. Dizem que pra saber rimar é preciso ler muitos livros, ler o dicionário, ter estudos em excesso etc. Eu digo que não é verdade: nunca gostei de ler livros e nunca fui muito chegado a dicionário. Rimas são mágicas, é necessário criatividade, principalmente em batalhas. A agilidade de pensar, a forma de expressar as rimas e o jeito de praticar não têm explicação; simplesmente fluem.
(Poke, 2013).

Tomando-se o que muitos autores da literatura escrita revelam sobre o processo de composição, causa certo estranhamento que um poeta saliente não haver esforço no “preparo” para a concepção, mas, sim, inspiração. Por essa inspiração constituir-se de elementos tão distintos da poesia escrita, por ela se inscrever dentro de outra lógica de produção, é comum que soe estranha aos teóricos e consumidores da poesia escrita e aos não iniciados na poesia oral. Essa é uma poética que requer, forçosamente, certa intimidade com o movimento das ruas e suficiente distância dos critérios de avaliação da Literatura escrita para melhor ser percebida.

Entretanto, dentro dessa “mágica”, desse algo “inexplicável”, existe a referência: as ruas constituem fundamental escola para essa produção. Acompanhar o movimento das rodas culturais e batalhas, ouvir rep e outros ritmos, atentar para o vocabulário dos MCs, retomar fragmentos memoráveis são alguns recursos que possibilitam rimas mais elaboradas, mais emocionantes. Ou seja, o “sentimento”, tão enaltecido por MCs, é formado por tradição, afetos, releituras. A produção da rima traz consigo outras rimas, outras temporalidades e espaços, construções fixadas na memória do MC. Não se pode falar de uma rima “pura”; a poesia das ruas é reinvenção.

E a recepção, pelo público, desse trabalho como poesia, pode ser mais bem compreendida considerando-se a performance como o meio agenciador da literariedade, já que o ato envolve locutor e ouvinte, numa combinação de dependência para a “realização” poética. Ou seja, há um poeta que só ganha existência, bem como sua arte, na medida em que o público o completa, porque assim o deseja. Atua o ouvinte como um coautor.

A componente fundamental da “recepção” é assim a ação do ouvinte, recriando, de acordo com seu próprio uso e suas próprias configurações interiores, o universo significante que lhe é transmitido (…) Poderíamos, sem paradoxo, distinguir assim, na pessoa do ouvinte, dois papéis: o de receptor e o de autor (Zumthor, 2010, p. 258).

Nas Rodas Culturais e Batalhas de Rima, a participação do público não se limita à assistência passiva. Através de gritos, como wow, braços levantados em homenagem ao artista, acompanhamento do canto – formando quase uma segunda voz –, sinais com os braços indicando que acabou a disputa, “fazendo barulho”, batendo palmas no ritmo da batida, entre outras intervenções que cedem material para as rimas (é comum o MC utilizar-se de elementos da vestimenta, de trejeitos da plateia), o público assina a sua participação na obra.

De outra forma, ainda que raro, algumas apresentações ocorrem praticamente sem sensibilizar o ouvinte que, mesmo incitado pelo locutor e/ou apresentador, pode silenciar. Ou seja, é preciso haver uma “pré-disposição” por parte da plateia para a realização da poesia. E essa “pré-disposição” deriva de uma certa simpatia pelo locutor, de um apreço por determinada rima, do percurso artístico do rimador, do território de origem do MC, da idade do poeta…

Assim, a vitória, no caso dos duelos de MCs, nem sempre cabe à melhor rima; ou seja, o conceito de melhor rima extrapola a perfeita coincidência de sons, a seleção vocabular, a organização sintática, a métrica etc. A melhor rima pode ser aquela que é proferida pelo mais querido, o recordista de vitórias, o “apadrinhado” por um MC “com moral” na cena, por outros recursos estilísticos que não constam no manual da poesia tradicional. Carregando essa “bagagem poética”, o MC pode se converter, repentinamente, em um dos mais representativos nomes do rep carioca.

Rua – o lugar da rima

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O teórico Paul Zumthor fala em uma “falsa reiterabilidade”, a respeito da poesia oral: “A obra transmitida na performance, desenrolada no espaço, escapa, de certa maneira, ao tempo. Enquanto oral, não é jamais reiterável: a função de nossa mídia é de suprir essa incapacidade” (Zumthor, 2010, p. 275). Mas nem mesmo a mais moderna forma de tecnologia é capaz de reproduzir, minimamente que seja, a grandeza da apresentação da poesia oral, seja ela nas Rodas Culturais ou nas Batalhas de Rima.

O verso emitido em parceria com a euforia do público, a expectativa do ouvinte, o momento de tensão (caso das batalhas) ou a descontração de um 4×4 (cada rimador apresenta quatro versos e, assim, a rima vai rodando) ganha uma dimensão e um valor que, deslocados daquele contexto da rua não são mensuráveis. Um verso transcrito ou mesmo “revivido” pelo vídeo não carrega a poeticidade/ironia/graça que possui no instante da sua recitação:

Cleo:
Essa é a realidade / Eu posso ser solteira / mas ter um relacionamento de verdade / sem falsidade, sem pilantragem, sem trairagem.
Henrique:
Sem trairagem, não pode traição / porque o encontro de duas almas não é à toa não / é amor pela flor / o amor de todo compositor.

Por mais “completa” que seja a “reconstrução” do momento, caso dos inúmeros vídeos das rimas, essa arte poética oral não se deixa capturar pelas lentes e papéis. A imagem, a letra reproduzida, em sua quase totalidade, não contêm o poder de encantamento do instante de verbalização da poesia, ali, na rua. Altera-se o suporte e a rima se “perde”.

Experimentei esta situação quando iniciei a transcrição dos versos para ilustrar minha pesquisa. Não compreendia o motivo de aquela rima selecionada – e essa seleção envolvia a qualidade, beleza, repercussão –, no papel, parecer-me tão comum, vulgar. Vivi um estranhamento às avessas. Não aquele de que nos fala o protetor do cânone, Bloom – “um tipo de originalidade que ou não pode ser assimilada ou nos assimila de tal modo que deixamos de vê-la como estranha” (Bloom, 1995, p. 12). Mas uma surpresa desagradável e não “misteriosa”.

Fria, desritmada, fácil, previsível – assim a rima se nos apresenta fora das ruas, das festas em que é criada. Não supõe o ouvinte (leitor) distante as aflições, agressões, o ar debochado, descolado, os risos, as delícias, os beats surpreendentes, enfim, os tantos sentimentos que rimador e plateia experimentam ao vivo e que irrompem na poesia. Solta no papel ou (menos) no vídeo, a rima parece pouco comover ou absorver o ouvinte. Talvez ela só exista na rua. Este, sim, o único palco onde a produção poética, por mais vulgar que seja, seduz o ouvinte: “Sabe por que tu não rima nada? / O cara trocou a batida e tu não trocou a porra da levada” (Allan Benevenutto). Wow!! É festa na plateia!!

Ainda que a transcrição esforce-se por trazer à luz toda a performance – e aí se incluem luz, espaço, música, olhares, trejeitos, sons externos, risos, pausas, malemolência –, tal tarefa é complexa e dificilmente cumprirá, minimamente que seja, os efeitos da sua realização no palco. E destituída da performance, a poesia fica, então, incompleta, desalinhada.

As inúmeras tentativas que as redes sociais criam, reproduzindo as rimas, a fim de eternizar os encontros ou mesmo formar públicos para estes eventos são, frequentemente, um meio de aquela plateia que lá esteve presente verbalizar os sentimentos vividos na ocasião da produção da rima.  Não são, comumente, a forma eficaz de formar públicos. Só a presença aos eventos e a coparticipação dividem, com o rimador, a grandeza do teor poético da rima.

Quando parnasianos e modernistas se encontram

As Rodas Culturais cariocas recebem, em média, um público de 300 pessoas, por noite; número que se eleva, consideravelmente, quando há nomes famosos da cena rep alternativa participando. Como não há palco – as apresentações de todas as atividades acontecem em meio ao público, sem nivelamento (no máximo, o uso do microfone concede ao portador uma aura diferenciada, artística) –, os lugares do poeta e do público se confundem, amalgamam-se, desconstruindo uma certa hierarquia entre o criador e o seu ouvinte.

Isso radicaliza a questão discutida por Zumthor sobre a coautoria do público, porque o mesmo, por ora, pode utilizar-se do mic, atravessar o “palco”, protagonizar a cena, tão ou mais intensamente que o próprio artista ali se apresentando. Ou pode, ainda, numa cena bastante comum na arte de rua, ocupar o palco, a convite do artista ou espontaneamente.

Figura 2: Público da Batalha do Real, Lapa
Figura 2: Público da Batalha do Real, Lapa

Como as Rodas Culturais ocorrem diariamente e possuem um público diversificado e fiel, e ainda incentivam uma enorme poética, através de freestyle, rodas de rima e batalhas de rima, este trabalho aponta esse movimento como uma criativa manifestação literária carioca urbana. Ou seja, uma tendência dentro das inúmeras possibilidades do fazer literário atuais que se destaca pela  irreverência e atenção aos movimentos da sociedade: “Indignação ao ver esta sociedade / que é zero de compaixão / que é zero de humildade / onde se vê pouco respeito / e tá cheio de covarde / que tem muito preconceito / pra tão pouca igualdade” ( MC CT).

Antonio Candido, em “A literatura na evolução de uma comunidade”, diz que: “Se não existe literatura paulista, gaúcha ou pernambucana, há sem dúvida uma literatura brasileira manifestando-se de modo diferente nos Estados.” (Candido, 2006, p.147). E as Rodas Culturais cariocas são, há alguns anos, o lugar especial de produção de uma literatura carioca e urbana.

Segundo Candido (2006), para haver literatura, é necessário uma congregação; grupo formal com afinidades; um estilo; um sistema de valores que delineie a produção; ressonância e herança. As Rodas Culturais cariocas, à exceção desse último aspecto – obviamente não se pode falar em herança no sentido proposto por Candido, dado o recente surgimento do circuito que, nesse formato de Roda Cultural, existe há cerca de três anos – apresentam os demais elementos formadores de uma expressão literária.

Essas rodas e batalhas realizam-se semanalmente e têm, em cada edição, a realização da poesia, em tempo real ou a promoção de uma rima elaborada anteriormente. E a rima comparece ligada à preocupação social – com a ocupação do espaço público de forma democrática, o acesso à arte por todos, a participação indistinta dos artistas, a exposição de livros, a solidariedade, a campanha de arrecadação de alimentos e roupas, entre tantos outros projetos defendidos pela arte de rua. E esse é um aspecto singular que não se pode desconsiderar na proposta deste movimento como expressão literária urbana carioca. Ocorre, portanto, um antes impensável encontro de parnasianos e modernistas, nas ruas do Rio de Janeiro.

Figura 3: Feira de livros da Roda Cultural do Engenho do Mato
Figura 3: Feira de livros da Roda Cultural do Engenho do Mato

A primeira década do século XXI foi especialmente prolífica para a Literatura de periferia, em São Paulo – hoje, com reconhecimento e lugar na história da Literatura Brasileira. Da cena literária de periferia no Rio, na mesma época, não se tem notícia, tendo despertado, ano passado, com a FLUPP – a Festa Literária das Periferias. No entanto, pode-se afirmar que esse silêncio não existia na literatura urbana carioca que, no início da década passada, já gritava seus versos pelas ruas. O registro, podemos encontrar no youtube, nas redes sociais, na memória afetiva dos jovens que ocupam as praças com atitude, sons, cores e rimas: “MC que é MC rima em qualquer tema / qualquer esquema, qualquer esquina vira cena de cinema / se destaca pelo que pensa, reconhece a recompensa / alcança as grandes mídias sem assessoria de imprensa” (Nissin).


* Rôssi Alves Gonçalves é professora do Programa de Pós-Graduação em Cultura e Territorialidades e do Curso de Produção Cultural – UFF. Pós-Doutoranda no PACC/UFRJ, onde desenvolve a pesquisa: “Poesia e ocupação do espaço público – um estudo do Circuito Carioca de Ritmo e Poesia”, com bolsa da FAPERJ.

Referências

BLOOM, Harold. O cânone ocidental. Trad. Marco Santarrita. Rio de Janeiro: Objetiva, 1995.

CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2006.

______. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006.

CANCLINI, Néstor G. Culturas híbridas. Trad. Ana Regina Lessa e Heloísa Pezza Cintrão. São Paulo: Edusp, 1998.

______. Consumidores e cidadãos – conflitos multiculturais da globalização. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997.

HABERMAS, Junger. Mudança estrutural de esfera pública. Trad. Flavio Kothe. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984.

POKE, Buddy. Depoimento dado à autora por facebook, em 11/08/2013.

RODA CULTURAL DA AMÁLGAMA. Freestyle 4X4. Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=buX8psATmLE. Acesso em 10 mar. 2014.

SANTOS, Milton.  Por uma outra globalização. Rio de Janeiro: Record, 2000.

ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a literatura medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

______. Performance, recepção e leitura. São Paulo: Cosac & Naify, 2007.

______. Introdução à poesia oral. Trad. Jerusa Pires Ferreira; Maria Lucia Diniz Pochat; Maria Ines de Almeida. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

Tempo de leitura estimado: 20 minutos

Saraus de poesía: una geografía afectiva de la periferia de la ciudad de San Pablo | Lucía Tennina*

La Ciudad de San Pablo es la mayor ciudad de Brasil. Está dividida en 31 subprefecturas, una división territorial administrativa oficial que establece un “centro” que funciona como punto de referencia para los índices de riqueza, alfabetización, educación, violencia y nivel de vida, que suelen tener porcentajes más ideales que las regiones que están a una mayor distancia de ahí. La enormidad de la ciudad y las dificultades en relación con la movilidad marcan aún más la diferencia entre esa región y los barrios aledaños. De todos modos, la “periferia” de la Ciudad de San Pablo no se amedrenta ante las distancias inmensas geográficas y porcentuales ni ante la deficiencia de un transporte público que suma la limitación horaria de circulación a un diagrama monocéntrico, de pocos recorridas transversales entre barrios periféricos. La “periferia” de San Pablo viene conformando desde el año 2001 un nuevo mapa que toma como puntos de referencia espacios literarios llamados saraus de poesia, desde donde se articula un autodenominado Movimiento de Literatura Marginal que se manifiesta también con cursos, publicaciones, conferencias y mesas debate. Se trata, para definirlos en pocas palabras, de reuniones en bares de diferentes barrios de las regiones suburbanas de San Pablo donde se declaman o leen textos propios o ajenos frente a un micrófono durante dos horas. Hay más de veinte saraus y el número sigue creciendo año a año. Estos espacios poéticos conforman un circuito y una red de frecuentadores que, sin detenerse en las dificultades de movilidad ni las controversias climáticas de la “terra da garoa” (como se conoce dicha ciudad debido a las constantes lluvias), andan de barrio en barrio siguiendo el cronograma de saraus da periferia que completan la agenda de la semana casi todos los días[1]. Esta nueva cartografía no solamente está trazada por los frecuentadores, sino también por los libros que los saraus van lanzando en forma de compilaciones o de autores individuales. Tanto unos como otros circulan por la “periferia” de San Pablo teniendo como referencias los saraus. Con en esa nueva manipulación del espacio van resignificándose, además del mapa, los estigmas que hacen a los relatos del terror que alimentan la retórica de la seguridad de los medios de comunicación.

Una constante en el paisaje de los barrios alejados del centro son los bares, espacios intermedios entre el trabajo y la casa, donde suelen ocurrir los actos que se vuelven estadísticas asociadas a la “periferia”: el alcoholismo y los asesinatos. Lugares, también, en los que se ejerce la dominación desde las prácticas mínimas, o, en otras palabras, donde se articula la microfísica del poder al mantener la estructura machista (generalmente son hombres los que van a beber a los bares) y de resignación ante la rutina y las dificultades diarias, canalizadas con el alcohol. En los bares de la “periferia”, que pueden entenderse como un dispositivo de dominación, es donde se empezaron a organizar los saraus. “El único espacio público que el Estado nos dio fue el bar. De pronto los bares se llenaron también de mujeres, niños y poetas. Se imaginaron que íbamos a terminar bebiendo cachaça y transformamos los bares en centros culturales, así que se jodieron, ya no tienen forma de controlarnos, porque lo que no falta son bares en la periferia”, dice Sérgio Váz, el organizador del Sarau da Cooperifa, el más reconocido entre los saraus da periferia por ser el primero de dichos encuentros poéticos en bares que en el 2001 impuso el nombre de tradición letrada sarau[2] y muchas de las fórmulas que hoy en día todos repiten – como el silencio durante las declamaciones y los fuertes aplausos al final de cada una de ellas, independientemente del “gusto” personal[3].

En este mundo de la literatura periférica, la periferia no funciona como una porción de tierra, no es una extensión. Tampoco se entiende desde los criterios dominantes de una estructura de posiciones dada entre “centro” y “periferia”, que localiza a esta última como clase desplazada. La periferia desde ese universo está vinculada a un valor afectivo sostenido a partir de la idea de una experiencia compartida ligada por la solidaridad, el sacrificio y la fuerza. Y es en el sarau donde se ponen en práctica y se exhiben los elementos que hacen a tales valores. Así, ser de la periferia se vuelve también un capital de naturaleza simbólica que reúne saberes vinculados a dichas vivencias compartidas en ese espacio, es decir deja de ser definido desde la negatividad (la periferia no es, no tiene, no hay, etc.) y adquiere una definición positiva (la periferia es, tiene, hay, etc).

Texto y cuerpo

La mayor parte de los textos que se escuchan en los saraus tienen como temática la realidad de las periferias, que se incluye en una operación de estetización y gana otro significado, diferente al de los relatos oficiales y mediáticos.

Dice, por ejemplo, el poema “Periferia é um exército” de Zinho Trindade:

Então avante / Somos todos um / Sem general ou comandante / Já nascemos em trincheiras / E sempre prontos para a guerra / Somos quase todo o planeta terra // Uma grande família / Uma grande nação / Derrubando o opressor / Sem fé e religião / Na contramão do sistema / Que quer copiar / A lei agora é favela / E você e não vem imitar// Coloca na rádio / Filme, novela, televisão / A armadilha já tá pronta / Ninguém segura o povão // Já recebi instrução, coquetel tá na mão / Até colhi o grão, cumprindo a missão // Se não fosse por nóis / Ninguém comia / Se não fosse por nóis / Ceis não sorria // Aproveita enquanto é tempo / Que a periferia tá a milhão / Agora a burguesia quer ser gueto / E tá no padrão // Quer ser favela então vou te ensinar / Primeira coisa é ser por no seu lugar / Segundo passo é saber respeitar / Mas o terceiro eu não vou te contar / Pois de nada vai adiantar.
(Trindade, 2010, p. 70)

En este poema de Zinho Trindade se puede percibir la consideración del ser de la favela como un bien preciado, como un capital que no puede ser aprendido ni imitado por quien no forma parte de un nosotros marcado por una experiencia común. Es esa voz plural, articulada aquí desde un yo lírico que representa al conjunto, la única que se presenta como legítima para hablar sobre ese espacio. Frente a la espectacularización de la pobreza en los medios de comunicación, la voz autorizada del yo plural del poeta periférico.

Ahora bien, la resignificación de la noción de periferia que se escucha en los textos declamados en los saraus no solo se centra en el espacio “favela” en términos generales, sino que también considera los elementos y detalles que la componen. Uno de los focos centrales de resignificación son los borrachos y el espacio mismo del bar, alrededor de los cuales se construyen relatos que los estetizan, desligándolos del estigma de las estadísticas de muerte y alcoholismo. En este sentido, vale citar el poema “Sarau”, de Hûguera.

Entre sons de copos e goles de cervejas, O Poeta fecha a conta do poema arrastado, que trouxera preparado de casa:
…regozijai-vos amantes da lua,
regozijai-vos nessa hora que se completa
pois, amanhá, a morte é certa!
Parecendo muito ofendido com o que acabara de ouvir, O Bêbado, que já estava com um dos pés para fora do bar, torna a entrar e grita, para que todos ali o ouvissem:
– Pois, eu acho a morte erradísima!
E vai embora, deixando as palmas ecoando pelo bar.
(Hûguera)

Figura 1: Poema de Huguêra
Figura 1: Poema de Huguêra

El “Bêbado” no aparece aquí como un intruso que interrumpe el fluir del ritual poético, sino que está efectivamente incorporado en el espacio sarau y el elemento que lo hace formar parte es el aplauso de los que estaban escuchando. Las mayúsculas que el escritor eligió para nombrar tanto al poeta como al borracho evidencian la posición de “personajes” de este sarau que ambos sujetos alcanzan por igual, es decir, colocan en un mismo nivel de importancia a los dos sujetos. Ahora bien, las itálicas elegidas para las palabras del “Poeta” y la ausencia de ellas en las del “Bêbado” parecen colocarlos en un diferente horizonte de realidad: mientras que el primero de ellos presenta su palabra estilizada y cargada de un aura ficcional, el segundo parece imponerse de forma cruda y real, viene a funcionar como la figura del doble que impacta en el equilibrio del poeta. El “Bêbado” adquiere un valor en tanto contraste real de lo que dice el poeta, y en esa valoración, se vuelve un bien periférico relevante. El cuerpo enfermo del alcohólico en el espacio del sarau se vuelve un cuerpo culturalizado y por esto mismo pasa a formar parte del mismo. Como señala Michel Yakini, poeta y organizador del sarau “Elo da corrente”:

Como é que a gente pode fazer para integrar um cara que ele tá alcoolizado, mas ele tem necessidade de falar e ele quer ir lá no microfone porque ele percebeu que aquilo é um espaço que é ‘a fala’. E, é um cara que ele está truncado, o corpo dele está, ele passou dificuldade no trabalho. Ele tá mal com a família e ele tá indo no bar pra poder simplesmente descarregar aquilo. Quando ele vê um microfone, ele toma coragem. Então, é um exercício (…) porque a gente a gente faz arte, mas faz uma arte que tem intenções, intenções de re-encantar as pessoas. De re-encantar a nós mesmos. Intenção com que as pessoas se reconheçam como uma cultura valorosa. Reconheçam que tem cultura dentro do seu espaço porque as pessoas ainda trabalham, no senso comum, que não existe cultura aonde se tem um meio popular. Que a cultura é o lance acadêmico, intelectual? Não! Cultura é onde se tem vida, onde tem vida tem cultura, então a gente tem um meio cultural também e reconhece as diversidades dentro dela também. É periferia (…) Essa periferia toda aí. Tá ali trocando. E há uma coisa que a gente acredita que é: quanto mais isso aflorar, quanto mais a diversidade aflorar, vai ser mais tenso. Não vai ser mais ameno. Não vai ser mais harmônico. (…) O dinamismo, ele vai trazer conflitos. Isso é importante (Yakini, 2010).

La culturalización de los borrachos, de acuerdo con lo que se puede leer en las palabras de Yakini, no significa que se los vuelva un objeto cultual ni que se los se consideran como un personaje decorativo, sino que forman parte de la dinámica de los saraus a partir de la tensión que acarrea su presencia, es desde el conflicto que pasan a formar parte del mismo. De hecho, es así como se plantea su presencia en el poema de Hûguera anteriormente citado.

La voz y la letra

Como podemos notar a partir del poema “Sarau”, de Hûguera, la poesía marginal periférica que se escucha en los sarau adquiere una forma específica en el papel. En este sentido, cabe considerar que los saraus no son solamente espacios de declamación, sino que impactan también en la escritura. Existe de hecho una conciencia sobre la diferencia de estos dos discursos. En otras palabras, la declamación no funciona en los sarau da periferia como una forma de expresión instintiva y única, sino que es una opción que se piensa como un capital simbólico con valor propio, diferente del valor de la escritura, que también se practica.

No es solamente la voz el único modo de expresión en los espacios del sarau, sino que se establecen negociaciones y vínculos – medidos y controlados – con la tradición letrada[4]. De todos modos, el eje desde el cual se estructura la poesía periférica en los saraus son las declamaciones. “O sarau é o coração creativo do movimento”, dice Allan da Rosa, dando a entender que ahí se gestan y se mantienen vivos los textos. La declamación pasa a ser, así, una elección para la expresión estética y política que implica un trabajo específico y especializado, diferente al de la escritura.

Figura 2: Cartaz na porta do Bar do Binho e Biblioteca do Sarau
Figura 2: Cartaz na porta do Bar do Binho e Biblioteca do Sarau

La declamación se encuentra cargada de una altísima valoración y resulta ser una de las mejores armas para conseguir comenzar a vencer las dificultades y una de las principales armas es el acceso a la escritura a partir de las declamaciones y la participación en los saraus. El estereotipo del letrado que considera al estudio como la palanca privilegiada para conquistar el ascenso social ya no se encuentra en los libros sino en el establecimiento de otro tipo de valor con la palabra. Muchos de los frecuentadores de esos espacios da periferia pasaron, efectivamente,  de la declamación a la publicación de libros. A su vez, algunos de los saraus en los últimos tiempos comenzaron a funcionar también como grupos que organizan cursos y seminarios en las bibliotecas del barrio o en espacios improvisados para la ocasión. Y es común escuchar a muchos poetas de los saraus señalar a dichos espacios como su “academia”, el espacio que les permitió tener acceso a la lectura – a la cultura escrita – y muchas veces hasta los impulsó a continuar sus estudios. “A Cooperifa é minha Academia Brasileira de Letras”, dice Rodrigo Ciríaco, organizador hoy en día del Sarau dos Mesquiteiros y autor del libro lanzado en el 2007 bajo las Edições Toró[5], titulado Te pego lá fora. Este tipo de afirmaciones evidencian que los saraus no se proponen como espacios que quieren situarse fuera del proyecto moderno y proponer alternativas radicales, sino que pretenden proponen representaciones y prácticas menos jerárquicas y materialmente más justas y en este sentido es que se piensan en su conjunto como un Movimiento.

Movimiento social y literario

Figura 3: Poeta declamando no Sarau da Brasa (Bar do Carlita)
Figura 3: Poeta declamando no Sarau da Brasa (Bar do Carlita)

Varios son los saraus de la periferia y cada uno de ellos tiene sus propios nombres y se piensan y entienden como singularidades. Sin embargo, hay una acción en común, hay un proyecto. Los saraus funcionan como una de las prácticas más importantes del Movimiento de Literatura Marginal, en tanto, a partir de la frecuencia y de la estructura variadamente repetida, afianzan los lazos y el sentido de pertenencia. El Movimiento de Literatura Marginal se articula, así, como un “movimiento social” que al tiempo que afianza su identidad y define a su enemigo, apunta a cambios en relación con el modo de vida de una identidad desvalorizada socialmente.

Es importante señalar, por otro lado, que el campo de acción de estos espacios no se centra únicamente en preocupaciones sociales. El mundo en el que este grupo de escritores se autoagencia es el de la “literatura”, por lo que hay una intención de posicionamiento en dicho campo. El espacio literario también se propone como arena de disputa en relación con este Movimiento. Señala al respecto Vagner, uno de los organizadores del Sarau Poesia na Brasa:

“Não todos os escritores. Acho que depende do lugar de onde você está falando. Agora, assim, eu acho que ao mesmo tempo, assim, a gente vê a coisa toda como um movimento. Quando a gente fala de Sarau da Brasa, Elo da Corrente, Cooperifa, Binho, Sarau da Ademar e outros aí, a gente enxerga essa coisa como um movimento…que no fundo, no fundo, quase todos tem o mesmo discurso, assim,  de…no sentido de usar a palavra como instrumento de transformação. Então, eu enxergo essa coisa como um movimento social e um movimento literário no sentido que o estilo de escrever é muito parecido, também, né? Aí, o pessoal fala assim: “Porra! Mas literatura é tudo literatura!” mas eu falo: “Porra! Mas também teve várias correntes dentro da literatura brasileira!”. Então eu acho que a gente também é uma corrente dentro da literatura brasileira, que se permite falar gírias, variação linguística várias, né? Então eu acho que é um movimento sim… e aí, por exemplo assim, por exemplo, no contexto de Carolina Maria de Jesus… estava ela escrevendo, né? Não tinha um ‘grupão’ junto com ela, na mesma linha. E eu acho que, hoje em dia, a gente consegue ter um grupo que escreve, não igual, mas tem semelhanças na escrita, e, nesse sentido, acho que é um movimento tanto social e um movimento literário, também. Por que não?” (Vagner, 2010).

Figura 4: Poeta declamando no Sarau da Brasa
Figura 4: Poeta declamando no Sarau da Brasa

La afirmación de Vagner permite ampliar la noción de “movimiento”: no se trata solamente de un Movimiento Social, sino que se autodefine, asimismo, como un Movimiento Literario. Hay una intención de reconocer su lugar en la literatura brasileña a partir del trabajo con una lengua propia y una genealogía particular, que refuerza y legitima esa literatura en el tiempo. Ese “¿por que no?” que cierra la afirmación de Vagner, en el que resuena la canción “Alegria alegria” de Caetano Veloso, evidencia, la arbitrariedad de los límites del campo literario: ¿cuál es la frontera que establece qué es literatura y qué no?

De lo que se trata en el Movimiento Literario y el Movimiento Social, en definitiva, es de modificar el mapa, ese mapa de la periferia en tanto lugar apartado y el mapa del campo literario brasileño como cerrado a la trayectoria letrada. En palabras de Marcelino Freire (escritor ya consagrado con el premio Jabuti[6] y “aliado” al Movimiento): “El artista, el gran artista, el artista inquieto, ese que quiere modificar alguna cosa, interfiere en la geografía de las cosas” (Alves, 2010).


* Lucía Tennina é doutoranda em Letras, mestre em Antropologia Social e professora de Literatura Brasileira e Portuguesa na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires, Buenos Aires, Argentina. Pesquisadora Associada ao Programa Avançado em Cultura Contemporânea da UFRJ. E-mail: luciatennina@gmail.com

Referências

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BOURDIEU, Pierre. “Sociología de la percepción estética”. In:______. El sentido social del gusto. Buenos Aires: Siglo XXI, 2010.

______. Razones prácticas. Barcelona: Anagrama, 1997.

CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: Edusp, 2008.

CHARTIER, Roger. Las revoluciones de la cultura escrita: diálogos e intervenciones. Barcelona: Gedisa,  2000.

DE CERTEAU. La debilidad de creer. Buenos Aires: Katz, 2006.

GOFFMAN, Erving. Estigma: la identidad deteriorada. Buenos Aires: Amorrortu, 2010.

HAPKE, Ingrid. “Entrevista com Erica Peçanha do Nascimento”. In: Bastos, Dau (et al.). Fórum de Literatura Brasileira Contemporânea. Rio de Janeiro: Torre, 2011, p. 218-226.

HÛGUERA (Hugo Pinzan Dias de Souza). “Sarau”. Disponível em: http://correspondenciapoetica.blogspot.com.ar/

MAUSS, Marcel. Noção de técnica do corpo. In: ______. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

NASCIMENTO, Erica Peçanha do. Vozes marginais na literatura. Rio de Janeiro: Aeroplano/Tramas Urbanas, 2009.

PENNA, João Camillo. “Criminalización y culturalización de la pobreza”. In: Revista Confines. Buenos Aires, número 23, abril de 2009, p. 169-179.

RAMA, Ángel. La ciudad letrada. Santiago de Chile: Tajamar, 2004.

SCHERER-WARREN, Ilse. “Das ações às redes de movimentos sociais”. Resultados del Proyecto AMFES “As múltiplas faces da exclusão”, Núcleo de Investigación en Movimentos Sociales de la Universidad Federal de Santa Catarina, sep/2004-ago/2005, p. 100-130.

TENNINA, Lucía. ¡Cuidado con los poetas! Una etnografía sobre el mundo de la literatura marginal de la ciudad de San Pablo. Tesis de Maestría en Antropologia Social, Instituto de Desarrollo Económico y Social e Instituto de Altos Estudios Sociales, Universidad Nacional General San Martín, Buenos Aires, 2010.

______. Saraus das periferias de São Paulo: poesia entre tragos, silêncios e aplausos. In: ______. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, nº 42 – Brasília, jul/dez 2013.

TRINDADE, Zinho. Tarja Preta. São Paulo: Coletivo Maloqueirista, 2010.

VAGNER. En entrevista con Lucía Tennina, octubre, 2010.

YAKINI, Michel. En entrevista con Lucía Tennina, noviembre, 2010.

Notas

[1] Los lunes, por ejemplo, está intermitentemente el “Sarau do Binho” (en Campo Limpo, Zona Sur), los martes el “Sarau Suburbano Convicto” (en Bixiga, Centro), los miércoles el “Sarau da Cooperifa” (en Pirapoirinha, Zona Sur), los jueves el “Sarau Elo da Corrente” (en Pirituba, Zona Este), los sábados el  “Sarau Poesia na Brasa” (en Brasilândia, Zona Norte), los domingos el “Sarau do Ademar” (Ademar, Zona Sudeste) –esta enumeración peca de la falta de muchos nombres de saraus, pretende tan solo ejemplificar la existencia de saraus todos los días de la semana.

[2] Existían antes del 2001 encuentros vinculados a la literatura. “Noites da vela”, por ejemplo, era un encuentro para declamar poesías en el bar de Binho, donde hoy se realiza todos los lunes el Sarau do Binho, comandado por Binho Padial. Si bien la declamación era el centro, este tipo de encuentro aún no sostenía el orden ritualizado que a partir de Cooperifa se impuso, con un día y un horario fijos. Dichos encuentros previos tampoco se relacionaban al nombre “sarau”.

[3] Cfr. Tennina, 2013.

[4] Un ejemplo de la vinculación con la tradición letrada es la presencia de las bibliotecas en los saraus: todos los bares donde se realizan “saraus” hay una biblioteca de seis  a diez estantes llenos de libros.

[5] Edições Toró es una colectivo ideado por Allan da Rosa y Mateus Subverso, nacido en 2005 “en el patio trasero de una casilla del Municipio de Taboão da Serra”, según cuentan los mismos editores. La propuesta de la editorial es afirmar y publicar una literatura que se articula más allá de la palabra escrita, por lo que publican libros de poetas que suelen declamar en saraus da periferia de San Pablo o de escritores vinculados al RAP. Cada una de las publicaciones, a través de una caligrafía específica para cada libro, de dibujos y diseños, de tapas conceptuales, de uso de colores en algunos casos, pretende evocar el cuerpo, la voz, la boca, la mirada que hace a esa literatura. Hasta el momento Edições Toró lanzó veinte libros. La Editorial desde hace cuatro años abrió, asimismo, un espacio de arte-educación, que se ocupa de organizar cursos y seminarios vinculados a la cuestión afro-brasileña.

[6] Junto con el premio Machado de Assis, el premio Jabuti es uno de los prêmios literarios más importantes de Brasil.