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Rumo a 2022: apontamentos sobre alguma poesia, brasileira, contemporânea | Alexandre Faria*

Falação

Contra o artista serviçal escravo da vaidade (…) A arte que liberta não pode vir da mão que escraviza (Vaz, 2011, p. 51).

É à fala que nos referimos, por ela nos pautamos ao criar métodos de aproximação da poesia que vem falando, nos últimos 10 anos, das periferias urbanas brasileira (a preposição, aqui, é ambígua e demarca simultaneamente assunto e origem). Conceber poesia a partir da longa tradição ocidental e escrita e apor ao termo o gentílico brasileira são estratégias de pensamento que desconsideram que a sociedade desse país se organiza a partir de complexas raízes da escravidão, do racismo e do analfabetismo. Caetano Veloso, numa famosa canção alardeava: “deixem os portugais morrerem à míngua / minha pátria é minha língua / Fala Mangueira”. Mais à frente, na mesma canção (“Língua”, do disco Velô, de 1986), concluirá: “A língua é minha pátria e eu não tenho pátria, tenho mátria e quero frátria”.

Caetano Veloso fala de uma mesma frátria órfã (Khel, 2003), que vai se afirmando no canto-falado de manos e minas. Um desses manos, Dugueto Shabazz (ou Ridson Dugueto), diferentemente do “latim em pó” do baiano, falará de um “latim afrofavelizado” (Ferréz, 2005, p. 83). As afirmações de identidades culturais contemporâneas, especialmente as de minorias étnica, social e economicamente discriminadas, tensionam as afirmações de uma identidade nacional monolítica, ainda que pautada pela diversidade. Menos que a unidade macunaímica, o que a fala de Dugueto Shabazz demarca é a diferença. A vontade de ser diferente. É como se, glosando a canção de Veloso, o poeta da favela perguntasse como pode Mangueira falar, se o lema é tão pessoal, luso pessoano e nacionalista – minha pátria é minha língua? E concluísse: “mas minha língua não é essa, a do colonizador. Cansei de ser mulato sabido!”

Lembrar o mulato sabido, de Oswald de Andrade, é mais do que oportuno numa época em que as ações afirmativas e/ou reparadoras parecem propiciar a democratização do ensino superior. Evoé jovens cotistas! Mas cuidado com o mulato sabido. E é o próprio poeta modernista quem indica que essa sapiência mulata talvez fosse (falo como se ela já tivesse acabado) herança do próprio colonizador: “Mulatos são os próprios portugueses, desde logo atingidos no seu surto descobridor pelas vitaminas da mestiçagem (…) E só quando, levado pelo absolutismo, deu de ser paradoxalmente um povo racista, eliminando de seu corpo civil o judeu, perdia a substância hegemônica que o fazia liderar três continentes” (Andrade, 1991, p. 186). Esse fragmento está num discurso, feito em Piracicaba, em 1945, intitulado “A lição da Inconfidência”. Vale a pena conferir mais um pouco:

A lição do terror que ela [a Inconfidência] encerra, a lição do atraso de um século que estagnou a ascensão de nosso povo. Qualquer estouvamento idealista, qualquer sofreguidão sectária, qualquer provocação, por bem intencionada que seja, pode bulir com o sarcófago recente da ditadura e acordar seus gênios protetores. Não nos esqueçamos da vocação absolutista que persegue nosso destino. Ela pode, de novo, nos jogar nas catacumbas políticas, onde tantos mártires do nosso progresso social deixaram seus dias heróicos ou perderam suas vidas necessárias (Andrade, 1991, p. 190).

Desnecessário é dizer que era outra a ditadura a que Oswald se referia. Em se tratando de atestar traços do conservadorismo da sociedade, através do estudo da recente poesia brasileira, evitando os exemplos típicos da violência do Estado contra as classes subalternas, ou a referência ao sucesso de filmes como Tropa de elite ou Cidade de Deus, nada melhor que relembrar o episódio da demissão do poeta e professor (nova profissão que os subalternos vão assumindo face aos processos de democratização do ensino superior citados acima) de português Oswaldo Martins em função do conteúdo de seus poemas. Recorro a artigo de Luiz Costa Lima, publicado na Folha de São Paulo, quando do ocorrido:

Um professor de português que tem a má sorte de ser também um poeta e ensina(va) em um colégio secundário particular da zona sul, por ter publicado, no seu blog, um conjunto de poemas eróticos, é sumária e discretamente demitido.

A medida foi tomada pela instituição ante a reclamação de pais de alunos, que acharam que escrever poemas eróticos não é tarefa para um professor de seus filhos. Não chamo nem sequer a atenção para o fato de que tal colégio foi fundado com uma plataforma liberal, que, ao ir crescendo, etc. etc.

Pergunto-me, sim: que defesa tem um poeta que, para sobreviver, precisa dar aulas de português, caso sinta a necessidade de escrever poemas eróticos? Não adianta atentar para a cegueira desses pais ou para a covardia hipócrita de tal direção. A questão concreta é como pode alguém, no caso o poeta-professor, defender-se ante uma decisão arbitrária que interfere em sua sobrevivência material?

Não acentuo nem sequer a discrepância entre os princípios de uma sociedade que se diz liberal, recém-saída de uma ditadura, e uma medida assim absurda. Acentuo, sim, que o marginal ao noticiário midiático revela o aspecto autoritário que, como sombra perversa, permanece entranhado na sociedade brasileira (Lima, 2008).

Parece evidente que Oswald de Andrade e Luiz Costa Lima referem-se à mesma vocação da sociedade brasileira para o autoritarismo. Vocação de um Estado que se institui de cima para baixo, da elite para o povo, da escrita para a fala. A literatura das favelas, por mais que se faça circular em livros, difunde-se em saraus cada vez mais frequentes e frequentados nas periferias brasileiras, mantém também íntima relação com a oralidade do Rap. Nesse sentido, é uma forma de resistência e, ao mesmo tempo, de transformação. Resiste, afirmando seu lugar de diferença e transforma, reivindicando a urgente revisão dos valores e dos lugares pelos quais a literatura circula na cidade contemporânea. Num título de uma coletânea de contos, Ferréz (escritor também recentemente vitimado pela intolerância dos que estão ao lado da lei e do capital) lembra que Ninguém é inocente em São Paulo. Esse título, e o conteúdo dos contos do volume parecem afirmar que aquele famoso bestializado, objeto de estudo de José Murilo de Carvalho, tende à extinção.

Figura 1: O poeta e professor de português Oswaldo Martins (foto: Vanderlea Santiago)
Figura 1: O poeta e professor de português Oswaldo Martins (foto: Vanderlea Santiago)

As reflexões que desenvolveremos neste ensaio tentam articular as questões aqui alinhavadas e propor uma compreensão de certa poesia contemporânea produzida nas e sobre as favelas, construída a partir da e sobre a experiência de ter-se nascido e criado nas periferias urbanas do país, e que reflete fortemente a consciência que o termo neosenzala representa bem. Tentamos não cair na primeira armadilha que é discutir infrutiferamente a aplicabilidade do termo marginal a essa produção, embora reconheçamos que os próprios autores o defendam e desejem atuar a partir de uma noção de movimento, cuja validade ou pertinência ainda tem que ser investigada. A análise também não pretenderá aprofundar a compreensão de algum autor ou obra específicos, mas tentará instrumentalizar a abordagem visando à compreensão do objeto não apenas na dinâmica sociocultural, mas nos deslocamentos éticos e estéticos que os textos promovem no próprio sentido de Literatura. Para isso elegemos alguns poemas de Sérgio Vaz, publicados em seu livro Colecionador de pedras (2007). Em outras palavras, recusamos que a abordagem de qualquer corpus recortado desse local de enunciação seja compreendida com eufemismos como discurso, expressão, práticas etc. Ou seja, ou a academia acolhe essa produção como Literatura e Poesia ou continuará a catequese dos mulatos sabidos.

Para cumprir esse objetivo, desmembramos a reflexão em três movimentos, o primeiro, que pensa esse lugar de enunciação face à tradição modernista brasileira; o segundo que se propõe a pensar a poesia das periferias em função de distintas instâncias de recepção contemporâneas; finalmente, num terceiro momento, num poema intitulado “Antiode aos inocentes do Leblon”, pretendemos deslocar a reflexão para a ordem do sensível e provocar os limites do local de enunciação do próprio discurso acadêmico. Em função da primeira articulação, elegemos Oswald de Andrade, como marca dessa tradição. É nesse sentido que Sérgio Vaz, por exemplo, propõe uma antropofagia periférica, ou uma tropicália periférica, em oposição a um cânone mais estável como o dos poetas Bandeira, Drummond, Cabral ou Gullar. E em função da segunda articulação, selecionamos o episódio da demissão do poeta Oswaldo Martins. O mesmo poderia ser feito com o processo sofrido por Ferréz[1], ou com a análise de recente proibição por governos de estado e secretarias de educação de romances de Tezza, ou do próprio Ferréz. Mas preferimos ficar no campo da poesia. E este é motivo que nos levou ao terceiro e último movimento.

A Literatura da periferia e a tradição modernista brasileira – um deslocamento de vozes

Iniciemos de maneira doméstica, através da constatação de alguns impasses vividos na experiência do ensino em faculdades de Letras, relacionados à disparidade entre o repertório literário que o aluno traz nos primeiros períodos da faculdade e as referências teóricas a que é submetido, especialmente nas aulas de Teoria da Literatura. Nesse sentido, é inegável a interface entre esse objeto de pesquisa e o ensino de literatura e a formação de leitores. O que foi dito reflete o processo de democratização do ensino superior no Brasil que paulatinamente vem sendo realizado quer por fatalidade (para lembrar “O poeta come amendoim”, de Mário de Andrade), quer por ações efetivas dos movimentos de inclusão social e racial no Brasil, as quais se reverteram em respostas do poder público e das universidades, como a criação das cotas, ou os suspeitos PROUNI e REUNI. Recuperando um levantamento não estatístico dos anos 90 (Santos, 2001), verifica-se que o aluno que ingressa no curso de Letras é majoritariamente:

Mulher, entre 18 e 21 anos, moradora do subúrbio (ou Baixada Fluminense), pai pequeno comerciante ou profissional liberal e mãe “do lar”. Num universo de 76 pessoas (…) só uma coisa foi invariável: moradores da Zona Norte. Que hábitos de cultura tem esse aluno? Lê Paulo Coelho, vê vídeo filmes da moda, acompanha novela das oito, passeia em shoppings, assiste a shows de massa, pouco vai ao cinema, não vai ao teatro, não vai a exposições, não vai a concertos, não lê jornal, não freqüenta livrarias, não tem biblioteca em casa, não viaja ao exterior (Disneylândia não vale). Enfim, não tem “hábitos de cultura” (Santos, 2001, p. 53-54).

Essa percepção indica a necessidade de se compreender o imaginário social das periferias urbanas brasileiras, no âmbito da pesquisa acadêmica e através dos discursos literários e culturais, o que permitiria a revascularização de currículos que, a cada ano, acentuam a dissimetria entre o conhecimento produzido na pesquisa e o cotidiano do aluno. Tal aspecto não é novo nas faculdades de Letras (lembro-me bem da inacessibilidade do estruturalismo dos anos 80), mas para rearticular dois famosos títulos da crítica, pode-se dizer que do estruturalismo dos pobres ao cosmopolitismo do pobre muita coisa mudou.

O primeiro dos dois termos evidentemente refere-se ao raivoso artigo de José Guilherme Merquior, publicado originalmente no Jornal do Brasil de 27 de janeiro de 1974, que reagia à crítica de vocação estruturalista e semiológica, pois percebia naquilo séria ameaça a posições consolidadas e a concepções beletristas de literatura e do literário. A posição radical e até agressiva de Merquior já foi posta no seu devido lugar por Eneida Maria de Souza, num artigo em que relembra a primeira geração de jovens mestres informados pela desconstrução derridiana e demais teorias pós-estruturalistas:

Dentre os defensores da cátedra, merece destaque a participação de José Guilherme Merquior, pela sua inquietação frente às novas terminologias e às esquizofrenias teóricas dos jovens mestres. Repetia, nessa ocasião, o mesmo gesto que o fez atacar, em 1974, a moda estruturalista em artigo (…) cujo teor elitista já se anunciava desde o título (Souza, 2002, p. 12).

O fato é que, mais de 20 anos depois do IV Encontro Nacional de Professores de Literatura, evento mencionado no fragmento acima, o perfil do aluno de Letras, conforme traçado por Joel Rufino dos Santos, mudou bastante. Acresce que o verdadeiro programa de massificação do ensino superior (não aquele que Merquior temia) ainda estava por vir e veio nas mãos da iniciativa privada e ainda hoje tenta se impor através de projetos públicos como o PROUNI ou o REUNI (daí a suspeita mencionada acima). Era de se esperar, portanto, que esse contexto das faculdades de Letras constitua campo propício para o advento e a disseminação dos Estudos Culturais. Se compararmos a realidade nacional de um alunado, fundamentalmente formado pela comunicação de massa, com o que Maria Elisa Cevasco localiza no surgimento dos Estudos Culturais na Inglaterra dos anos 50, no ambiente da alfabetização de adultos, pode-se compreender melhor a situação:

Reação à cultura da minoria que, além de conservadora, trata-se de uma posição pouco realista, em um momento em que se luta para abrir acesso à educação, em escolas do Estado, e às artes, por meio do provimento de educação secundária para todos e da criação de instituições como o arts council, destinado a propagar as artes de forma mais democrática (Cevasco, 2003, p. 49).

Guardadas as proporções relativas a lugar e época, especialmente quanto ao fato de que os Estudos Culturais, nessa origem, mantinham íntima relação com a renovação do pensamento marxista pela Nova Esquerda, e hoje se vinculam mais aos movimentos multiculturais, não se pode perder de vista a semelhança entre as realidades sociais que obrigaram os estudiosos de literatura a expandirem seu olhar ao universo cultural mais amplo.

É nesse contexto que se chega ao segundo termo. “O cosmopolitismo do pobre” é um texto de Silviano Santiago (publicado originalmente no segundo número da revista Mergens/margenes, em 2002 e posteriormente no livro homônimo), especialmente atento à crítica cultural e às mudanças de paradigmas do próprio multiculturalismo em face da economia de mercado globalizada:

Ao perder a condição utópica de nação – imaginada apenas pela sua elite intelectual, política e empresarial, repitamos – o estado nacional passa a exigir uma reconfiguração cosmopolita, que contemple tanto os seus novos moradores quanto os seus velhos habitantes marginalizados pelo processo histórico (Santiago, 2004, p. 60).

A criação literária compreende-se no âmbito nacional (por enquanto, mas não devem estar longe as traduções), como uma experiência cosmopolita dos jovens atores sociais de nossas periferias urbanas. Em certo sentido, pode indicar a superação do impasse do intelectual brasileiro identificado criticamente por João Luiz Lafetá, a partir da leitura da poesia de Ferreira Gullar:

No “Poema sujo”, Gullar operou nos limites da consciência do artista (intelectual) brasileiro contemporâneo, preocupado com os problemas sociais do seu país. Esses limites foram delineados nos anos 1930 e 1940, até o fim da ditadura estado-novista, e muito trabalhados pelo Cabral dos anos 1950, pelos cepecistas dos anos 1960, pelo próprio Gullar desse e de outros poemas, por tantos escritores. Não foram rompidos, porém. Talvez porque, atravessada embora pela miséria social, a nossa “consciência possível” esbarre no círculo de ferro de nossa classe, e o “outro” – representado obliquamente, através de suas refrações no sujeito poético – não ganhe nas obras a autonomia e a força capazes de colocá-lo no centro do processo. Seu deslocamento marca a limitação da literatura política possível no nosso tempo (Lafetá, 2004, p. 239-240).[2]

A literatura das periferias representa uma tomada de posição ou uma assunção da voz por parte desse “outro” que se fazia representar pelo intelectual. Não se trata de uma passagem repentina. Noutro artigo importante sobre a questão, Silviano Santiago já anotava que Grande sertão: veredas

permite assinalar que o lugar ocupado no discurso anterior pelo narrador-intelectual, agora se encontra preenchido por alguém que obedece e desobedece ao mando do senhor, o jagunço Riobaldo. (…) Com isso, passa o intelectual citadino e dono da cultura ocidental, a ser apenas ouvinte e escrevente, habitando o espaço textual – não com o seu enorme e inflado eu – mas com o seu silêncio. O intelectual é o escrivão das “ideias instruídas”, que só pode pontuar o texto de Riobaldo, como diz a psicanálise e o próprio narrador: “Conforme foi. Eu conto; o senhor me ponha ponto” (Santiago, 1982, p. 34-35).

Talvez Riobaldo represente a inauguração do que se consolidará mais para o final dos anos 1960 e ao longo da década de 1970 do que se pode chamar performativo, em atuações como a de Plínio Marcos, ou Oiticica, ou mesmo na ficção de Rubem Fonseca. Porém, a literatura advinda das favelas brasileiras desloca-se ainda mais em relação a essa questão, pois, em geral, substitui o performativo pelo biográfico. O realismo não se apresenta como uma opção estética apenas, mas como procedimento documental que garante a legitimidade do discurso. Isso acaba por relativizar a própria condição marginal do discurso, pois sua condição garante nichos importantes do mercado editorial, bem como da pesquisa antropológica ou cultural.

A hipótese que pretendemos experimentar é a de que a poesia das favelas produz o deslocamento na subjetividade que compunha o discurso social na literatura brasileira. Longe de desenvolvê-la e afirmá-la como tese, pretendemos elencar pequena amostragem de fragmentos que poderiam corroborar a hipótese.

No poema “Descobrimento”, de Mário de Andrade, o poeta descobre-se “comovido” diante de um livro “palerma”, ao lembrar que lá no Norte:

Um homem pálido magro de cabelo escorrendo nos olhos,
Depois de fazer uma pele com a borracha do dia,
Faz pouco se deitou, está dormindo.
Esse homem é brasileiro que nem eu
(Andrade, 1993, p. 203).

A despeito da identidade que se produz, é nítido que o adjetivo “palerma” revela o desconforto do intelectual, do brasileiro que, pela cultura livresca, distancia-se do seu povo. O que está fora de cogitação para o poeta de “Descobrimento” é que esse brasileiro, que faz uma pele com a borracha do dia, pode ser também poeta e não apenas objeto ou tema da poesia:

A minha poesia,
apesar de pouca e rala,
cabe na tua boca
dentro da tua fala.

Apesar de leve e rouca,
chora em silêncio
mas nunca se cala.

E apesar da língua sem roupa,
não engole papel,
cospe bala!
(Vaz, 2007, p. 51).

A “língua sem roupa” contrapõe-se à pele endurecida do trabalhador, circula na fala e “não engole papel” de livros palermas. Revida, ataca, faz-se arma ao reconhecer a culpa e o desconforto dos que respondem pela tradição letrada – a roupa da língua. Ideologicamente, pode-se dizer que esse era um dos traços do projeto modernista, “a língua certa do povo”, no dizer de Bandeira. Mas e quando essa ideologia estética sofre também o deslocamento social e recoloca a origem do discurso? – eis uma das questões que a poesia das favelas põe e que deve ser enfrentada.

O mea culpa absoluto do poeta modernista estará presente, no entanto, em certas posições assumidas pelo eu-lírico drummondiano, reconhecidamente desconfortável frente à vida dos desfavorecidos. “Favelário nacional” é um dos títulos em que o tema melhor se evidencia. O poeta interpela a favela para reconhecer:

Tenho medo. Medo de ti, sem te conhecer,
medo só de te sentir, encravada
favela, erisipela, mal-do-monte
na coxa flava do Rio de Janeiro.

Medo: não de tua lâmina nem de teu revólver
Nem de tua manha nem de teu olhar.
Medo de que sintas como sou culpado
e culpados somos de pouca ou nenhuma irmandade.

Custa ser irmão,
custa abandonar nossos privilégios
e traçar a planta
da justa igualdade.

Somos desiguais
e queremos ser
sempre desiguais.
E queremos ser
bonzinhos benévolos
comedidamente
sociologicamente
mui bem comportados
(Andrade, 1984, p. 106).

Enquanto isso, na favela:

Quatro jovens
morreram na chacina
do fim da rua.
Conforme a notícia,
dois deles tinham passagem.
Os outros dois
foram assim mesmo…
clandestinamente
(Vaz, 2007, p. 62).

O horror, o horror de Drummond, que se revela como medo do estranho, não pode pressupor o mínimo de familiaridade. Se o faz, flagra-se no pecado da impostura e da hipocrisia, daí a culpa cristã da fraternidade perdida. O estranho e o medo, para quem está fora da favela, ganha uma notação cotidiana e familiar em Sérgio Vaz. A referência espacial – “no fim da rua” –tão familiar do poeta, distancia o leitor, que, imbuído de uma noção relativa de justiça, estranha a transformação semântica no sentido de “clandestinamente”. Clandestinos seriam os trabalhadores, os justos, os que não têm passagem pela polícia. Menos do que esconder traficantes, a favela serve para abrigar trabalhadores explorados.

Figura 2: O poeta Sérgio Vaz (foto: Marcelo Min)
Figura 2: O poeta Sérgio Vaz (foto: Marcelo Min)

Numa linha que poderia passar por um João Cabral de Melo Neto, reconhecendo que assume a fala em nome do outro, em um poema como “Graciliano Ramos” –“Falo somente por quem falo”[3] –, ou pelo conflito de um Gullar (já mencionado acima por Lafetá), em poemas como “O açúcar”, em que o sujeito expressa as contradições entre o branco açúcar que adoça sua manhã de Ipanema e o sofrimento, “em lugares distantes onde não há escola nem hospital, de homens que não sabem ler e morrem de fome aos 27 anos” e:

Plantaram e colheram a cana
Que viraria açúcar.
Em usinas escuras, homens de vida amarga
E dura
Produziram este açúcar
Branco e puro
Com que adoço meu café esta manhã
Em Ipanema
(Gullar, 2008, p. 152).

Evidencia-se que, o desconforto do intelectual brasileiro não é necessariamente com a favela e o crime, mas com sua impotência frente à exploração do trabalho, à alienação do homem. Por outro lado, ao assumir para si o discurso poético, uma das mais fortes máquinas de desalienação, o poeta da periferia o faz sem crise, herdeiro legal tanto dos modernistas de 1920 quanto dos marginais de 1970:

Não faço poesia,
jogo futebol de várzea
no papel
(Vaz, 2007, p. 116).

Mas o que demarca a apropriação daquela tradição poética é um lugar específico, daí a importância de interfaces conceituais entre espaço e cultura, um lugar que é metaforicamente demarcado como o campo de várzea, em oposição ao campo gramado. A mesma analogia há entre a poesia da fala e a que agora é colocada no papel. Se a ação modernista de incorporação da fala ao poema era de destituição da tradição beletrista, a ação da periferia é de instituição, de afirmação de um lugar até então restrito às elites ou aos mulatos sabidos.

Tal apropriação resulta, finalmente, num deslocamento que encontra uma boa síntese no prefácio-manifesto da coletânea Literatura marginal, em que Ferréz afirma “não somos o retrato, pelo contrário, mudamos o foco e tiramos nós mesmos a nossa foto” (Ferréz, 2005, p. 9). Essa tomada de posição recoloca a questão diante de outra discussão – um dos pontos-chave da compreensão da cultura contemporânea – a do intelectual. Em que medida jovens oriundos das periferias urbanas brasileiras, rappers, escritores marginais, estariam interferindo na atividade intelectual, que tradicionalmente representou-se pelo deslocamento do sujeito do discurso da elite para as bases e que agora ganha sentido inverso. No entanto, tal leitura deve atentar para o fato de que o intelectual não se caracteriza necessariamente e apenas pela tomada da palavra, conforme alerta Pierre Rosanvallon:

Que os intelectuais fossem os vigilantes, que alertassem, que interviessem no fórum era fundamental nas sociedades dos séculos XVIII e XIX, quando o fórum era muito pequeno, quando a liberdade de imprensa era reduzida. Voltaire tomar a palavra era decisivo. Quando o sufrágio universal não se realizava, que um escritor de renome falasse em nome dos esquecidos, dos sem voz era decisivo; (hoje) existem muitos grupos que tomam a palavra. Não há déficit de tomada de palavra em nossa sociedade. Existe, sim, déficit de compreensão. Ora, a vida intelectual concebe-se sempre como se ela fosse definida pela função de resistência, de tomada de palavra, de alerta. Mas ela se esquece de que seu verdadeiro trabalho é o trabalho da análise, de compreensão da realidade (Rosanvallon apud Novaes, 2006, p. 11).

Menos do que defender pontos de vista e ideologias, a literatura periférica assume uma postura bélica, quer ocupar espaços. Não quer só tomar a palavra, mas interferir no que Rosanvallon chama déficit de compreensão, que no caso da literatura brasileira, encontra-se nos restritos círculos em que a poesia é lida, feita e pensada, quando fecham-se os espaços para o que esse mesmo círculo define como poético.

Instâncias legitimadoras – demiurgos e amigos do rei

Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei.
(Manuel Bandeira)

Certa poesia que circula contemporaneamente no Brasil lembra uma menina chorona de que falava Mário Faustino: não encontra leitores e circula somente entre pares, outros poetas, muitos dos quais talvez pouco leiam poesia, o que causa a estranha impressão de que a poesia contemporânea brasileira encontra mais poetas que leitores. Se continuássemos a leitura com base na reflexão de Mário Faustino, diríamos que é uma poesia pouco perigosa:

O poeta contemporâneo tem que ser perigoso como Dante foi perigoso: uma força respeitável frente às demais forças sociais. Do contrário, no entontecedor movimento rumo-Norte a que assistimos em nossos dias, a poesia seria qualquer coisa de marginal, menina chorona ou risonha, abandonada à beira de uma autoestrada de tráfego intenso. O poema precisa funcionar como qualquer outra coisa. E para que possa fazê-lo, para que a poesia possa voltar a ser – como sem dúvida já o foi e potencialmente ainda o é – o mais eficaz, o mais perene e o mais exato dos meios de comunicação, é necessário, em suma, que o poema viva em função do tempo, do espaço e do homem – contra ou a favor, nunca indiferente (Faustino, 1977, p. 37-38).

Menos que professores, educadores, contadores de história, acredito que a Literatura e a Poesia sejam os principais formadores de leitores. Mas se a poesia é indiferente, como comover, deleitar, ensinar? Não há professor que dê jeito, com a poesia dos amigos do rei. A demanda de formação de leitores, por outro lado, não é apenas das escolas dos subúrbios, favelas, quebradas e bolsões de miséria do Brasil, mas ocorre também dentro das faculdades de Letras. A herança formal-estruturalista ainda faz vítimas. Há estudantes que visitam toda a crítica e as teorias literárias e passam longe dos textos. A esse respeito vale conferir a reflexão de Todorov sobre a literatura em perigo (Todorov, 2009).

Se uma esfera da recepção literária, genérica, não especializada, é capaz de levar, em pleno século XXI, a ficção e a poesia aos tribunais e às salas dos diretores de escola, de produzir equívocos vergonhosos como o caso de Oswaldo Martins e de Ferréz, isso é sinal de que a formação de leitores não vai bem há muitos anos. É sintoma de que as faculdades de Letras do país têm fracassado em uma de suas principais tarefas. Estamos e estaremos longe de erradicar o analfabetismo no Brasil, enquanto poemas como o que se segue forem lidos como propostas de nudismo em sala de aula.

lições oswaldianas
as professoras dariam nuas as de história
por sua vez alunas e alunos também nus
assimilariam o que a história nos roubou

a celebração do corpo e do espírito assim
recolocados permitiriam a nossos jovens
a experiência dos ferozes tupinambá
(Martins, 2008, p. 34).

Isso é mais que analfabetismo, pois conheço muito analfabeto que não é burro. O poema citado compõe uma série intitulada “Arte da deseducação”. Eis aí uma boa alternativa para uma educação que evidencia fracassos. Estaria nessa deseducação o saber quem somos, reconhecer nossas tradições, nossas indecisões, nossas ambiguidades. Aprender, de uma vez por todas, a transitar entre. A floresta e a escola. A favela e o asfalto. A 7Letras e a Toró.

Para nos lermos e nos entendermos nessa tradição, pode-se desejar também que a deseducação seja uma deseducação pela pedra. Não aquela do meio do caminho, nem a outra ulcerando a boca do sertanejo, no meio do feijão. Agora a de um colecionador, que ensina que:

As pedras não falam,
Mas quebram vidraças
(Vaz, 2007, p. 13-15).

Quem tem telhado de vidro que se proteja. Muito em breve, em 2022, se as forças ocultas permitirem, sem falar das efemérides, estará com quase 40 anos nossa experiência democrática.

Antiode para os inocentes do Leblon

Figura 3: A Penha da Gávea: fotomontagem de Alexandre Faria, sobre a poesia de Rogério Batalha
Figura 3: A Penha da Gávea: fotomontagem de Alexandre Faria, sobre a poesia de Rogério Batalha
Figura 4: A Penha da Gávea: fotomontagem de Alexandre Faria, sobre a poesia de Rogério Batalha
Figura 4: A Penha da Gávea: fotomontagem de Alexandre Faria, sobre a poesia de Rogério Batalha

“a vida que eu queria livraria o Leblon”
(Rogério Batalha)

eles nem imaginam na praia lotada:
o lugar ao sol que a sorte lhes reservou
acaba de ser limpo por um rabecão

ah! os definitivamente inocentes
– estão em casulos e em seu córtex
matrix injeta uma vida como ela é
roteirizada por maneco com trilha de tom e chico, marina e antonio
pois que vivam essa vidinha da província
frequentem suas livrarias
(que todas as travessas já se mudaram para avenidas)
discutam nos cafés a entrevista do caetano
leiam seus policiais impunes
chamem o fonseca de zé rubem
refestelem-se da feijoada light, do café descafeinado, da coca descocainada e da caipirinha de lima da pérsia com adoçante
(estévia, é claro)
como quem extirpa um câncer
chamem a polícia para calar o bêbado chato (alcoolista incômodo)
demitam por justa-causa a empregadinha atrevida (doméstica impertinente)
fujam do crime como quem planta pistas
distraiam seus medos como quem conta os corpos chacinados na “comunidade” do pedreiro
e busquem no google (escondido das crianças) os poemas “pornográficos” do professor demitido da escola parque

venerem seus malucos célebres

           gentileza
           gera
           gente
                      lesa

não percam o programa do lobão
recitem os gracejos do chacal
mas não confundam bon vivant com marginal
(e atenção – é pra outro lado que a Heloísa Buarque está olhando agora, não cheguem atrasados, hein!)

e continuem a cantar
com bethânia, martinho e com o gullar,
inocentes definitivos,
no navio negreiro que entra ao largo
tem mó galera socando o pilão do poema

(poema originalmente publicado na oficina de antiode do TextoTerritório – www.textoterritorio.pro.br/antiode)

Figura 5: <em>A Penha da Gávea</em>: fotomontagem de Alexandre Faria, sobre a poesia de Rogério Batalha
Figura 5: A Penha da Gávea: fotomontagem de Alexandre Faria, sobre a poesia de Rogério Batalha

* Alexandre Faria é professor de Literatura Brasileira na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e pesquisador do CNPq.

Referências

ANDRADE, Carlos Drummond de. O corpo. Rio de Janeiro: Record, 1984.

ANDRADE, Mário. Poesias completas. Belo Horizonte: Vila Rica, 1993.

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Notas

[1] Processo por suposta apologia da violência, em função de um conto publicado na Folha de S. Paulo, de 08/10/2007, por ocasião de uma polêmica em torno de um assalto sofrido pelo apresentador Luciano Huck.

[2] Apesar de parecer limitada à obra de Gullar, esta leitura pode ser reafirmada em várias peças da poesia brasileira. Valeria a pena destacar duas: “Graciliano Ramos”, de Cabral, espécie de fórmula programática que encontra ecos tanto na obra do romancista homenageado pelo poema quanto na do próprio poeta; e “Favelário nacional”, de Drummond, poema em que se explicitam exemplarmente os limites da consciência do artista, de que fala Lafetá.

[3] Sobre a leitura desse poema no presente contexto, conferirem dissertação de mestrado de Carolina Barreto, que orientamos no PPG-Estudos Literários da UFJF.

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Luttes symboliques et praxis poétique dans le sarau APAfunk | Melenn Kerhoas*

Cet article, loin de dresser une analyse définitive du sarau APAfunk qui est une manifestation culturelle relativement “jeune”, propose quelques éléments de réflexion autour des luttes et ré-appropriations symboliques qui y ont lieu autour de concepts comme le corps, la ville, l’histoire et l’identité à travers une pratique poétique propre au sarau APAfunk: une praxis poétique au sens où la parole est indissociable de son inscription à un contexte sur lequel est projeté un désir collectif de transformation qui se poursuit à travers la pratique.

Vida longa não somente ao sarau APAfunk
mas a todo sarau periférico, todo sarau divergente,
todo sarau que é de se posicionar,
que de certa forma nos inspiram
(Mano Teko, sarau APAfunk, 1er anniversaire, 12/12/2013)

Figure 1: Le graffeur KD01, “Favela, Sarau Apafunk, Résistance culturelle”
Figure 1: Le graffeur KD01, “Favela, Sarau Apafunk, Résistance culturelle”

A cultura é como o sol,
ela entra sem pedir licença
(MC Leonardo, entretien, 04/12/2013)

Trajectoire du Sarau APAfunk
Funk et diaspora[1]

Style de musique né dans les années 1980 dans les périphéries de Rio de Janeiro (Apafunk, 2010, p. 4), le Funk dérive du miami bass[2] et est ré-approprié par les cultures noires de Rio de Janeiro (Lopes & Facina, 2010, p. 2) avant d’avoir le succès qu’il a connu (Vianna, 1990, p. 244) et gagné la classe moyenne de Rio de Janeiro[3]. La géographie des périphéries de Rio et du Brésil a été modifiée de manière substantielle avec une migration interne de près de 43 millions de personnes entre 1960 et 1980 d’origine rurale, en particulier du nord-est (Brito, 2006, p. 223). Une véritable diaspora (Ab’Sáber, 1999, p. 44) qui a une importance fondamentale dans la construction des métropoles, des périphéries et, dès lors, dans la naissance de la culture funk qui, à son tour, a un rôle déterminant dans la formation de la culture populaire carioca (Vianna, 1990, p. 244)[4]. Le funk serait fruit d’une double-diaspora: une diaspora forcée, base du processus d’esclavage et de colonisation du Brésil, et économique des personnes du nord-est dans la deuxième moitié du XXème siècle:

A favela se fez com cultura nordestina e com cultura africana.
Por isso é que o moleque do Funk canta em cima de tambor
dançando como na cultura nordestina com melodia
de samba e diz que é Funk.
Porque o Funk é a mistura de tudo isso.
(MC Leonardo, entretien, 04/12/2013)

Criminalisation et naissance de l’association APAfunk

Figure 2: Mano Teko, funk-poète et coordinateur du Sarau APAfunk
Figure 2: Mano Teko, funk-poète et coordinateur du Sarau APAfunk

Alexandre Ferreira Barcellos, “MC Mano Teko”, actuel président de l’association, dit que “le funk souffre”[5]. C’est dans un contexte de contrôle militaire, social et culturel accru de la périphérie avec l’implantation des Unités de Polices Pacificatrices (UPPs) en décembre 2008, actuellement installées dans 36 favelas[6] et présentées comme une évolution sociale à travers la  récupération  du territoire mais portant un coup de grâce à la réalisation des baile funk à travers la résolution 013[7], qu’est créée l’Association des Professionnels et Amis du Funk (Apafunk), en décembre 2008. Elle s’inscrit dans la perspective de défendre les droits des artistes, de lutter contre les préjugés ainsi que pour la culture funk[8] contre un processus de criminalisation qui a lieu depuis les années 1990 (Lopes, 2010, p. 36-37) et qui, à travers une résolution inconstitutionnelle, continue de rendre presque impossible l’organisation des baile funk (Batista, 2013, p. 91). Elle a obtenu, entre autres, la reconnaissance du mouvement funk comme culture de Rio de Janeiro à travers la loi 5543/2009[9]. APAfunk rassemble des MCs s’identifiant au Funk de raiz, groupe particulier dans le milieu du funk performant des raps engagés (p. 86-87), divergeant de la tendance esthétique imposée par le marché du funk à travers deux grands producteurs, Furacão 2000 et Big Mix. Elle a fêté en décembre 2013 ses 5 ans d’existence ainsi que la première année du sarau APAfunk.

Figure 3: (de droite à gauche) Andrew César: organisation, production et poète du Sarau APAfunk; MCs Junior: funk-poète, Association Apafunk, Kauan Dolin (DJ) & MC Leonardo: funk-poète, Association Apafunk
Figure 3: (de droite à gauche) Andrew César: organisation, production et poète du Sarau APAfunk; MCs Junior: funk-poète, Association Apafunk, Kauan Dolin (DJ) & MC Leonardo: funk-poète, Association Apafunk

Sarau APAfunk

Figure 4: Diego Conceição, poète et DJ du Sarau APAfunk
Figure 4: Diego Conceição, poète et DJ du Sarau APAfunk

Coordonné par Mano Teko, ancien membre de la dupla MCs Teco e Buzunga qui a commencé sa trajectoire artistique en 1994[10], ainsi que trois autres personnes, entre lesquelles Diego Conceição, du Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM) et disc-jockey de la manifestation, le sarau est organisé dans la rue Alcindo Guanabara, devant l’Occupation Manoel Congo, numéro 20, tous les deuxièmes jeudi du mois. C’est une oeuvre collective puisqu’elle dépasse le cadre d’une mise en oeuvre qui serait restreinte aux organisateurs officiels. “Espace de positionnement à travers la poésie”, il est pensé, par son coordinateur, comme un format, un “espace supplémentaire de lutte”[11] dans l’action d’APAfunk. Espace de la praxis poétique, il se caractérise par l’occupation de l’espace urbain, ce qui a une importance fondamentale dans l’esthétique de cette manifestation. Il se présente comme inspiré du Sarau Bem Black, sarau “divergent”, du poète Nelson Maca organisé depuis 2009 à Salvador de Bahia, dans lequel la thématique centrale est la question raciale[12]. Le projet du sarau est né suite à une rencontre, au festival Poesia Favela en octobre 2010 à l’UERJ: Nelson Maca[13] par son traitement de la négritude et sa dimension performatique a retenu l’attention des MCs Pingo do Rap et Mano Teko de l’Association APAfunk.

Figure 5: (de droite à gauche) Nelson Maca, poète et coordinateur du Sarau Bem Black; Mano Teko, funk-poète et coordinateur du Sarau APAfunk
Figure 5: (de droite à gauche) Nelson Maca, poète et coordinateur du Sarau Bem Black; Mano Teko, funk-poète et coordinateur du Sarau APAfunk

Ce poète s’identifie à la littérature noire de Cuti, Semog, Conceição Evaristo et à la ligne ethnique du Sarau Elo da Corrente de São Paulo[14] qui est la “production, le développement et la diffusion de la culture de la périphérie, du nord-est, et noire”[15]. Il est intéressant d’observer aussi la construction rhizomatique des saraus, au sens où la Cooperifa a inspiré le Sarau Bem Black, inspirant la création du sarau APAfunk qui à son tour a stimulé, entre autres, la création du Sarau V à Nova Iguaçu[16].

La collaboration avec le MNLM est fondamentale dans l’organisation du Sarau APAfunk puisque l’Occupation Manoel Congo est l’entité qui héberge la structure nécessaire (microphone, enceintes, ordinateur) à la réalisation physique de l’événement et facilite son organisation dans la rue car se réalisant en face. La croisée des chemins entre APAfunk et le MNLM, né dans les années 1990, à travers l’Occupation Manoel Congo existante depuis 2007 (Silva, 2010, p. 149), ainsi que la proximité politique de certains participants avec le PSOL[17], rend transversales et multiples les luttes politiques et thèmes des performances. Ainsi sont abordés des thèmes comme la race, la réforme urbaine, le genre, les expulsions (remoções), la criminalisation du funk et des mouvements sociaux ou encore le contrôle policier de la périphérie. De plus, l’esthétique de la manifestation est hybride au sens où les MCs performent des funk à cappella sur le modèle de la roda de Funk, innovation esthétique et pratique collective du funk dénuée d’auteur individuel, qui est le format de l’action de l’APAfunk permettant la création d’un espace de dialogue et débat dans les lieux où ils sont intervenus[18]; ceci s’alliant à la performance de hip-hop, chant, samba et à des performances poétiques plus “traditionnelles”.

Corporalité
Une performance poétique collective

Performance collective, ce sarau est une rencontre des voix et des subjectivités s’exprimant à travers le corps comme immanence du monde, manière de l’habiter[19] (Levinas, 2000, p. 146), rapport premier au monde (Ricoeur, 1996, p. 178), transformant dès lors le lieu en l’espace au sens où l’espace est un lieu pratiqué (Certeau, 1990, p. 173), c’est à dire sémiotisé à travers la pratique poétique (Féral apud Zumthor, 2000, p. 41). C’est le carrefour (encruzilhada) dans laquelle se rencontrent différentes manières de vivre l’espace, de représenter symboliquement à travers la poésie, de respirer le monde. C’est le troisième lieu de la culture noire au sens de Rosa en tant qu’un “entre-lieu” dans lequel il y a à la fois jeu et lutte: “en luttant contre un lieu et en créant un lieu propre, en jouant depuis ce lieu avec lequel on lutte et où l’on lutte”[20] (Rosa, 2013, p. 33-35). Jeux de la voix poétique et des corps, il se métamorphose en espace par la transformation du texte en oeuvre en tant que matérialisation poético-performatique du texte (Zumthor, 2005, p. 142), et où se réalise l’oeuvre poétique au sens où elle est “fruit de la conjonction d’une donnée textuelle et d’une action socio-corporelle, l’une et l’autre formalisées par rapport à une esthétique”[21] (p. 144-145). Le corps permet alors la cohésion de l’oeuvre, la composition du sens modifiant, par la même occasion, le statut sémiotique du texte (p. 148).

Figure 6: Mano Teko, funk-poète et coordinateur du Sarau APAfunk
Figure 6: Mano Teko, funk-poète et coordinateur du Sarau APAfunk

Téléscopage des matérialisations des subjectivités à travers leur propre corporéité, c’est l’espace d’écriture d’une histoire collective des corps-poèmes à travers l’interaction et l’échange. Le lieu prend vie, l’espace s’organise à travers un cercle (roda) qui se forme, s’ouvre, se resserre au fil des différentes performances. Cette configuration spatiale s’inscrit dans les modalités d’organisation de l’art afro-brésilien en tant que matérialisation, dans l’organisation sociale, d’une “manière d’interpréter le monde” (cosmovisão) africaine[22] qui se retrouve dans la samba, le jongo, le funk et le maracatu. Le sarau APAfunk est l’espace de la poésie organique (Zumthor, 2000, p. 43) parce que dite, partagée et interagi de plusieurs manières par le public en tant que co-auteur  (Alves, 2013, p. 92) (Zumthor, 2000, p. 30, p. 47): applaudissements, reprises, exclamations, rires, frissons, larmes. La poésie est ainsi partagée par un ensemble de corps et se vit à travers le corps comme une instance sensible de médiation entre le soi et l’inscription physique à un contexte.

Luttes-image013

Un des recours esthétiques propres au sarau APAfunk, différent de la majorité des saraus de littérature-marginale, et lui attribuant en partie sa configuration et caractéristiques propres, est la rue[23]. Il est important d’avoir à l’esprit que l’espace métaphorique opéré par le sarau a lieu dans une localisation précise: le centre-ville[24]. Espace transitif par excellence où s’entrecroisent les trajectoires mais où il y a généralement peu d’occasions de rencontres permettant de le re-signifier à travers une création collective et corporelle de sens poétique, le sarau permet alors de transfigurer cet espace transitif en espace de création collective et de lutte pour le sens poétique, revendiquant un droit à la représentation et à la signification (Enne & Gomes, 2013, p. 45). C’est aussi l’espace de la transgression symbolique des frontières sociales au sens où, au moins pour le temps de la parole, l’horizontalité existante dans le sarau permet à la périphérie aussi bien qu’à la classe moyenne, d’avoir le droit de faire don corporellement de sa poétique (Zumthor, 2005, p. 148). Il est important de garder à l’esprit, cependant, que cette horizontalité et cette mixité sociale ne se traduisent pas nécessairement par une absence de débat ou une fusion homogène des groupes sociaux à l’intérieur de l’espace.

Funk et corporalités

Étant donné la mixité sociale de l’espace performatique, qu’un corps est aussi un texte social et que chaque subjectivité est singulière, il y a plusieurs manières de faire poésie, plusieurs possibilités d’agencement du style et de l’usage (Certeau, 1990, p. 151), le style étant “une structure linguistique qui manifeste sur le plan symbolique (…) la manière d’être au monde fondamentale d’un homme” (Greimas apud Certeau, p. 151) et l’usage, le “phénomène social  par lequel se manifeste un système de communication en fait” (p. 151).

Le funk est une des manières de faire centrale dans le sarau. Langage particulier, véhicule de communication[25], il a un savoir-faire, une poéticité et un pouvoir-rassembler, comme l’ont peu de cultures populaires aujourd’hui. Selon Mano Teko[26], il permet l’amorce du processus d’identification du travailleur commun qui ne se sent pas représenté et au nom duquel les discours syndicaux prétendent parler. Ce processus se réaliserait par une identification sociale et aussi par une reconnaissance du rythme qui fait rentrer le corps en mouvement[27]. Le sarau est alors une invitation inédite à se poétiser corporellement.

Figure 8: Alexandre Lucena, Mano Teko (centre), funk-poète coordinateur du Sarau Apafunk, et MC Pingo do Rap, funk-poète, Association Apafunk
Figure 8: Alexandre Lucena, Mano Teko (centre), funk-poète coordinateur du Sarau Apafunk, et MC Pingo do Rap, funk-poète, Association Apafunk

Les MCs d’Apafunk ont une manière de faire (Certeau, 1990, p. 151) propre par rapport à la tendance artistique du marché du funk ainsi qu’une corporalité particulière à l’intérieur du sarau. Ils ont une utilisation généralement différente de l’espace par rapport aux poètes “traditionnels” puisque ils s’y inscrivent de manière particulière en marchant à l’intérieur du cercle (roda). Selon Certeau (1990), il y a une manière différente de sémiotiser l’espace, un “façonnage d’espace”, c’est à dire une mise en abîme de l’espace, puisque marcher revient à un acte de langage, créant une triple situation d’énonciation à travers : 1- l’appropriation du système topographique, 2- la réalisation spatiale du lieu, et 3- impliquant des relations entre différentes positions, ce qui correspond, selon lui, à une figure de style (Certeau, 1990, p. 147-151). C’est aussi un apport d’information quant à l’action socio-corporelle de Zumthor permettant de transformer le texte en oeuvre (2005, p. 142).

Corporalités noires et lutte identitaire

Par rapport à l’idée d’espace de lutte, la poésie en tant que manifestation artistique présuppose l’existence d’un système organisé de l’expression d’une communauté dépendant d’un ordre social qu’elle a le pouvoir de critiquer (Zumthor, 2000, p. 46-47). Bien que cette critique sociale soit commune aux autres saraus périphériques, elle s’articule dans le sarau APAfunk notamment autour de la question de l’identité. Le rap Apologia de Mano Teko, qui constitue une unité sémiotique à l’intérieur de la manifestation, car ayant pour fonction généralement de clore le sarau, fait référence aux représentations hégémoniques qui exercent un réductionnisme identitaire autour de concepts comme la périphérie ou la race:

Vieram falar que na visão deles funk não é cultura
(…)
Agravante maior é a camisa errada que pintaram dela[28]
(…)
O caô não está só aí, é aí que eu fico bolado
Pra eles está na origem: negro, pobre e favelado
(Mano Teko, Nelson Maca, Apologia[29])

A lieu, ainsi, une lutte pour l’identité à enjeux réels, puisque le poète devient sujet du processus de représentation et s’inscrit dans un rapport de force inégal contre des représentations à effets réels, tels que la violence policière dans les périphéries (Wacquant, 2008, p. 3) et la létalité de l’adolescent afro-brésilien (Ramos, 2009, p. 5). Nous entendons la lutte identitaire ici comme plurielle et en mouvement au sens où elle n’est jamais fixe ni unifiée (Woodward, 2006, p. 15), ni achevée, toujours en réécriture (Gilroy, 2001, p. 16), ceci également car elle s’inscrit dans la représentation qui fonctionne comme un système de signification arbitraire et indéterminé (Tadeu da Silva, 2006, p. 91).

Un positionnement discursif

Il y a, dans ce sarau, récurrence dans les actes de langage des organisateurs de l’idée d’un “positionnement à travers la pratique”. Nous aborderons à présent deux types de positionnement: le positionnement discursif des poètes et le positionnement symbolique de la manifestation par son inscription à un espace.

Le corps noir en tant que rapport premier au monde (Ricoeur, 1996, p. 178) est alors le premier niveau de manifestation de la violence du racisme structurel présent dans la société brésilienne (Paixão, s/d, p. 26), d’où la nécessaire corrélation entre lutte identitaire et lutte contre le racisme. En tant que signifiant, depuis le colonialisme jusqu’au néolibéralisme, il est prisonnier des discours “qui (ont) enfermé les sujets dans des régimes dominants de représentation” (Hall, 2003, p. 220), et “imposé au noir une déviation existentielle” (Fanon, 1971, p. 11) le rendant victime du signifiant hégémonique jusque dans sa propre corporalité. Nous prenons le risque de dire que ces régimes dominants de représentation persistent jusqu’à aujourd’hui dans une société sur laquelle plane le spectre du racisme colonial (p. 69), où le sujet subalterne existe parce qu’il y a une construction discursive par le sujet dominant (p. 69) (Césaire,1955, p. 2020). Stuart Hall entend le racisme comme un construit culturel la race étant un signifiant fluctuant inscrit dans le cadre de systèmes de discriminations orientant les pratiques sociales et réussissant à faire illusion en présentant la différence raciale comme objective (Hall, s/d). Le corps noir serait ainsi approprié par ce système de signification. En tant que signifiant, le racisme est doué d’une plasticité qui fait qu’il peut être déconstruit puisque le sens d’un signifiant n’est jamais fixe, ceci à travers une manipulation des schèmes et images mentales (Bourdieu, 1982, p. 36) présentes dans l’imaginaire social de certains groupes sociaux à propos du corps noir. Les effets des pratiques racialisantes sont mises en évidence à travers la construction d’un parallélisme entre la violence du présent et la violence esclavagiste, qui à travers l’acte de langage pose un rapport de pouvoir symbolique dans lequel s’actualise un rapport de force (Bourdieu, 1982, p. 94) maîtres/esclaves et société discriminatoire, criminalisante/favelado, tel que dans les vers d’Helber Ladislau (2013), poète participant au sarau Cooperifa, qui est venu présenter son recueil Poesias negreiras:

O sangue do morro escorrendo na calçada
O mesmo sangue que escorria na senzala
E são os mesmos vampiros sugando e dando risada
O mesmo sistema que caçou Zumbi caçou Lampião
(Helber Ladislau, 12/12/2013, sarau APAfunk)

Figure 9: Helber Ladislau, poète, sarau Cooperifa
Figure 9: Helber Ladislau, poète, sarau Cooperifa

Dans la poétique d’Elaine Freitas, qui renvoie lors de sa performance à la figure du “senhor” dans le fait divers Porque o senhor atirou em mim?[30], il y a une référence à l’esclavage ainsi qu’une non-acceptation de ce signifiant hégémonique du corps noir le rendant victime de la force policière_et d’une censure de l’expression culturelle, construisant narrativement un contre-récit qui, de la même manière, implique un rapport de force à travers son édification symbolique:

O senhor quer calar os nossos tambores
(…)
E ameaça incendiar toda negrada aquilombada
Mas veja que a cor não aceita
ser mero objeto das malvadezas do senhor
(…)
As mãos erguem revoltas e refazem a África na diáspora
(…)
a maioria é da nossa dor, é da nossa cor
e faz crescer o mundo a enegrecer

Que cela-soit à travers l’approche culturaliste à travers l’idée de diaspora comme construction de liens culturels transnationaux au sens d’un atlantique noir (Gilroy, 2001), comme moyen de lutter contre le racisme ou à partir de la lutte contre le racisme dans une perspective de lutte des classes[31], les deux positions, à travers leur pluralité, resémantisent les signifiants du corps noir à l’oeuvre dans les discours hégémoniques. C’est dans les interstices de ce type d’actes de langage (Austin, 1962) que se trame une lutte pour la signifiance du corps noir et pour un droit à la subjectivité à travers l’expression et les pratiques culturelles: “Contre la criminalisation des espaces noirs de culture” était inscrit sur l’image annonçant le sarau de septembre et est une idée récurrente dans la manifestation. C’est à travers ce type d’actes de langage que nous pouvons comprendre le corps-poétique dans le sarau APAfunk comme un corps-événement (Hissa, 2013, p. 62).

Symbolique de l’espace

Prenant par à l’organisation du sarau hébergeant 42 familles principalement d’origine périphérique et modeste, l’Occupation Manoel Congo et le MNLM sont victorieux dans la mesure où cette occupation a été régularisée par le pouvoir public (Silva, 2010, p. 149-150). Le Roi Manoel Congo est devenu un symbole de la résistance noire contre la captivité de l’État de Rio de Janeiro en organisant une rébellion de 300 esclaves en 1839 et fondant le Quilombo de Santa Catarina (Paty dos Alferes – Baixada Fluminense) contre l’oligarchie du café et de la canne a sucre. La révolte a été réprimée par l’un des héros de l’historiographie brésilienne “oficielle”, Duque de Caxias[32]. L’histoire comme processus est un récit qu’une société à un moment donné se raconte sur elle même (Hall, 1997, p. 49). Ce choix d’élever ce personnage au rang de héros national, et constituant un choix narratif, est réalisé à une période précise par un groupe social disposant des moyens d’écrire ce récit. L’histoire est ainsi un moyen pour un individu, entendons par là un groupe social, de se situer (Aron, 1981, p. 355). La condition inhérente à la production de la réalité historique, elle est humaine, la rend relative au point de vue qui est adopté lors de sa production (p. 365). Pour les organisateurs le sarau représente un espace permettant ce type de critique à l’  histoire “officielle”[33].

Ce choix de l’occupation de l’espace urbain en face de ce bâtiment ré-approprié par  un mouvement social né dans les années 1990 revendiquant un droit à la ville (Silva, 2010, p. 152) à travers les articles 182 et 183 de la constitution de 1988 stipulant la fonction sociale du logement, à travers la pression politique pour l’inclusion de la réforme urbaine à l’agenda politique, représente, en outre, un positionnement symbolique face à l’historiographie hégémonique dans un Brésil qui a reçu la plus grande diaspora forcée d’Africains (Anjos, 2011, p. 3) et où l’application de la loi 10.639 sur l’intégration de l’histoire et culture afro-brésiliennes et africaines, 10 ans après son implémentation, n’est pas encore satisfaisante[34]. Ce choix toponymique opère un changement paradigmatique et représente une ré-approriation physique ainsi qu’une re-signification symbolique de la ville car crée une zone de visibilité autour de ce contre-récit (Hall, 2003, p. 342). Cela pose, en outre, la question du modèle de construction nationale à travers les conditions d’écriture de l’histoire et la formation d’héros nationaux permettant la création d’une identité, et ainsi d’une cohésion, nationale (Thiesse, 2000, p. 17-18). Il y aurait, ainsi, une réécriture localisée et métaphorique de l’histoire, celle du centre et de la périphérie, à l’image d’un des vers du Funk Consciente de MC Calazans : “Nos becos e vielas eu fiz história”[35].

Corps dans la ville

Eles “escapam do totalitarismo da racionalidade” (Santos, 2008, p. 325), como, também, “escapam aos rigores das normas rígidas” (p. 232), criando novos territórios urbanos. Ao se desvencilharem das normas de controle, eles grafam, no terreno, caminhos de resistência à reprodução da cidade luminosa, criando usos não previstos, gerando movimento e novos sentidos; eles recolocam o encontro, a seiva do urbano, em cena. (…) Na contramão da mediação do capital, são produzidos territórios existenciais e subjetivos alternativos, na potência da vida, mesmo no mínimo do corpo.
(Hissa, 2013, p. 59)

Figure 10: Mano Teko
Figure 10: Mano Teko

Le corps et la ville se trouvent dans une relation de nécessaire corrélation dans la mesure où la manière dont est produite la ville détermine les modalités des relations sociales entre les hommes qui la produisent (Lefebvre, 2006, p. 46-47).  L’Occupation Manoel Congo s’inscrit dans une lutte contre une dynamique historiographique dans laquelle l’expansion et la construction territoriale priment historiquement sur les populations, se constituant comme un élément constitutif de l’identité brésilienne à travers l’histoire (Morães, 2005, p. 94-96) c’est-à-dire contre la manifestation d’une idéologie géographique, discours qui véhicule une vision de l’espace et du territoire directement normative en ce qui concerne l’espace (p. 44-45).

Cette idéologie géographique, à la manière d’une constante historique, s’exprime à travers divers plans urbanistiques telles que Pereira Passos (Lima, 2013, p. 30), Agache et Doxiadis qui, à travers la construction urbaine, permettent de rendre invisibles les quartiers populaires (p. 36) à la manière du plan stratégique de 1994 dans la perspective du projet de construction du Porto Maravilha (p. 38). Que cela soit pour donner à Rio de Janeiro des airs de capitale européenne au début du XXème siècle (p. 30) ou pour lui donner une valeur compétitive sur le marché mondiale des villes à être vendues (Bienenstein, 2011 apud Magalhães, 2013, p. 103), la ville de Rio de Janeiro est emprunte de cette “idéologie géographique” qui s’exprime notamment à travers la spéculation dans le centre-ville de manière corrélative à l’entrée en vigueur du plan Porto Maravilha (Lima, 2013, p. 102), ce qui constitue un facteur d’adversité s’opposant directement à l’idiosyncrasie du MNLM.

La planification urbanistique de la ville ayant des effets sur les pratiques et relations sociales (Souza, 2011 apud Lima, 2013, p. 17), l’action du MNLM est antagoniste et rendue visible à travers le sarau APAfunk. Elle propose un autre type de relations sociales en hébergeant en son sein des familles périphériques et fragilisées par le système économique en vigueur et dont le modèle d’organisation économique est la coopérative. Le plan Porto Maravilha et ses corrollaires détruisant directement ou indirectement l’habitat populaire dans le centre, le système de valeurs mobilisé dans le sarau est totalement inverse, opposant, dès lors, d’autres conceptions de la ville. Cette opposition, à la manière de la lutte identitaire, s’inscrit dans un rapport de force inégal en ce sens que ce sont des luttes poético-politiques contre le pouvoir spéculatif et les expulsions (remoções). Cela permet de comprendre conséquemment l’esthétique visuelle de cette manifestation, traduisant son degré d’engagement politique, tel qu’il est possible de lire dans les affiches participant à la création visuelle de l’espace du sarau:  “Arrêtez les expulsions. La fonction sociale n’est pas de servir le Capital”, “Reforme urbaine tout de suite” ou encore “Qui change la ville ? Nous”. À travers la vision urbaine du MNLM dans le sarau APAfunk, c’est un nouveau sujet qui est proposé et produit, proposant un autre type de relations sociales à travers l’intervention du processus urbain visant à rendre habitable la ville selon une certaine idiosyncrasie.

Figure 11: Ludi Um, musicien et poète participant au Sarau APAfunk
Figure 11: Ludi Um, musicien et poète participant au Sarau APAfunk

De plus, il est possible de comprendre le droit à la ville dans le projet politique du MNLM dans un sens plus large, comme droit à la vie urbaine, aux lieux de rencontres et d’échange ainsi qu’à la réalisation de la société urbaine au sens du “règne de l’usage (de l’échange et de la rencontre séparé de la valeur d’échange” (Lefebvre, 2006, p. 143). À l’intérieur de ces droits se trouverait le droit à l’imagination en tant qu’appropriation du temps et de l’espace (p. 113) à travers l’art comme moyen d’appropriation de la ville:

A arte restitui o sentido da obra; ela oferece múltiplas figuras de tempo e de espaços apropriados: não impostos, não aceitos por uma resignação passiva, mas metamorfoseados em obra. A música mostra a apropriação do tempo, a pintura e a escultura, a apropriação do espaço (Lefebvre, 2006, p. 115).

La “performance poétique collective corporellement partagée” (Rosário, 2013) dans le cadre du sarau APAfunk peut remplacer les différents arts dans cette citation au sens où la performance s’approprie simultanément du temps, du lieu, de la finalité de transmission, de l’action du locuteur et de la réponse du public (Zumthor, 2000, p. 30-31). Nous entendons alors la praxis poétique du sarau APAfunk comme la revendication d’un droit à la corpoeticidade (Rosário, 2007, p. 84) c’est à dire le droit à occuper corporellement un espace urbain tout en le transfigurant symboliquement, le droit à habiter et à rendre habitable la ville, comme un processus d’appropriation spatiale et re-signification poétique grâce à la projection d’une poéticité permettant, en dernier lieu, la réécriture du texte urbain (Hissa, 2013, p. 58) si l’on considère que la ville est un livre car fonctionnant comme système sémiologique (Lefebvre, 2006, p. 48) ou plutôt la réécriture du texte urbain à travers la performance poétique collectivement et corporellement partagée. En effet, la performance collective qu’est le sarau APAfunk forme un complexe inter-sémiotique (Rosário, 2007, p. 23) dans laquelle corps, poésie et ville prennent sens par leur corrélation. Nous entendons aussi que cette réécriture s’opère à travers une lutte (micro)politique (Rosário, 2007, p. 102), ayant lieu dans un contexte localisé.

Figure 12: MC Papa, le funk-poète le plus jeune du Sarau Apafunk
Figure 12: MC Papa, le funk-poète le plus jeune du Sarau Apafunk

Nous entendons cette poétique collective du sarau comme la création d’un territoire existentiel (Hissa, 2013, p. 59) et symbolique dans lequel est refusé l’assujettissement des subjectivités à un réductionnisme du discours hégémonique en ce qui concerne la race et la périphérie ou encore à l’acceptation d’un modèle de développement urbain opérateur de dichotomies à partir d’une idéologie géographique excluant certains groupes sociaux. C’est ainsi qu’il est possible de comprendre le concept de – nouveaux lieux, pensé par les poètes de la littérature marginale – périphérique. Ce sont également ces lieux qui sont construits à travers la  praxis poétique du sarau APAfunk bien que dans un autre type d’espace social.

A afirmação territorial e identitária da periferia permite que os moradores desse tipo de espaço social, na posição de artistas e ativistas, agenciem novos lugares para si, para além das relações habituais com a vitimização, pobreza e violência (Nascimento, 2006, p. 214).

Il est possible de considérer le sarau APAfunk comme un espace de l’hybride au sens où il affirme un modèle différent pour la résistance en le plaçant dans des pratiques contre-discursives subversives implicites dans l’ambivalence coloniale et minant la base sur laquelle les discours impérialistes et colonialistes fondent leur prétention de supériorité (Ashcroft, 1998, p. 121). Bien que ne pouvant qu’esquisser, dans les limites de cet article, quelques commentaires destinés à nourrir une future réflexion, nous émettons l’hypothèse suivante: dans le sarau APAfunk, les pratiques contre-discursives s’articuleraient autour de la question de la race, de la périphérie rendue invisible et criminalisée dans les discours hégémoniques, ainsi que du modèle de relations sociales à l’oeuvre dans la ville. Enfin, le sarau Apafunk est comme le soleil. Il est entré sans demander la permission et brille, de puis un an maintenant, en transfigurant les lieux “déjà signifiés en territoires de l’identité et de l’appartenance” (Enne & Gomes, 2013, p. 50) permettant, par rapport aux discours hégémoniques et grâce à la manifestation de la subjectivité, une fuite symbolique du sujet.


* Melenn Kerhoas est diplômé en Langues Etrangères Appliquées – Master Relations Interculturelles et Coopération Internationale (Université Charles de Gaulle – Lille III) et étudiant en Master Erasmus Mundus MITRA – Médiation Interculturelle (Université Charles de Gaulle – Lille III; Université Babes-Bolyai, Cluj-Napoca, Roumanie; Universidade Federal do Rio de Janeiro).

Melenn Kerhoas é mestre em Línguas Estrangeiras Aplicadas no curso de Relações Interculturais e Cooperação Internacional pela Universidade Charles de Gaulle – Lille III (França) e mestrando em Mediação Intercultural no Erasmus Mundus MITRA (Universidade Charles de Gaulle – Lille III; Universidade Babes-Bolyai, Cluj-Napoca, Romênia; Universidade Federal do Rio de Janeiro).

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Notas

[1]   Pour plus d’informations en ce qui concerne le Funk, nous invitons à consulter Vianna (1987) (1990), Lopes (2010), Herschmann (2005), Apafunk (2010).

[2]    Le miami bass est une variante du hip-hop, dont le rythme diffère et où est utilisée une boîte à rythme  (Lopes, 2011, p. 33).

[3]    “Tantos os jovens de classe média como os favelados consomem o funk, mesmo estando em classes sociais diferentes e representando papéis completamente diferentes dentro dessa lógica de produção-consumo” (Enne & Gomes, 2013, p. 53).

[4]    L’article de Vianna (1990) a été écrit pendant l’ “âge d’or” du Funk et n’est pas représentatif du nombre de baile funk qui ont lieu actuellement à Rio de Janeiro. Il donne cependant une idée de l’importance de cette manifestation culturelle dans la compréhension du funk comme culture populaire.

[5]    Sarau APAfunk, 12/12/2013.

[6]   Unidade de Polícia Pacificadora. Disponible sur http://www.upprj.com/. Consulté le 18/01/2014.

[7]    O Globo, 17/10/2013, s/a: Bailes funk retornam a comunidades com UPP mesmo sem novas regras Secretaria de Segurança vai fazer nova regulamentação até fim do ano. Presidente da APAFunk defende que bailes aconteçam em clubes: “Em 23 de janeiro de 2007 foi publicada a resolução 013 pela Secretaria Estadual de Segurança (Seseg), dando aos comandantes das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) o direito de aprovar ou não um evento cultural dentro das comunidades — o que, na prática, impediu os bailes”. Disponible sur http://m.g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2013/10/bailes-funk-retornam-comunidades-com-upp-mesmo-sem-novas-regras.html. Consulté le 18/10/2013.

[8] APAFunk – Associação dos Profissionais e Amigos do Funk. Disponible sur http://www.apafunk.org.br/a_apafunk.html. Consulté le 18/01/2014.

[9]   Le funk est, de plus, reconnu comme manifestation culturelle brésilienne dans le projet de loi 4124/2008 qui  reconnaît le funk comme manifestation culturelle brésilienne (Enne & Gomes, 2013, p. 55) qui est actuellement encore débattu au sein des commissions.

[10]  Funk de Raiz, s/a: Histórias dos Mcs Teco e Buzunga. Disponible sur http://funkderaiz.com/teco-e-buzunga/ Consulté le 26/01/2014.

[11] NPC, Núcleo Piratininga, 19/01/2013: Mano Teko (Associação dos Amigos e Profissionais do Funk). Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=gnhYCzk8E-A. Consulté le 26/01/2014.

[12] Maca, Nelson, 13/09/2013: Resistência em movimento, círculo de conversa, Ocupação Manoel Congo, Rio de Janeiro. Disponible surhttp://www.youtube.com/watch?v=CrasBvNpNvQ. Consulté le 03/02/2014.

[13]  Entretiens de Nelson Maca et Mano Teko accordés à l’auteur les 23/11/2013 et 05/12/2013.

[14]  Entretien accordé à l’auteur le 23/11/2013.

[15]  Blog do Sarau Elo da Corrente. Disponible sur http://elo-da-corrente.blogspot.com.br/p/quem-somos.html. Consulté le 23/01/2014.

[16]  Pour plus d’informations, consulter https://www.facebook.com/VSarau?fref=ts

[17]  Marcelo Freixo (Deputado Estadual, PSOL) a eu un rôle très important dans la promulgation de la loi  5543/2009, pour plus d’informations consulter Lopes (2010, p. 60).

[18]  Apafunk Associação (Facebook), posté le 21/01/2014: Roda de Funk, Fundamento 2008. Disponible sur https://www.facebook.com/ApafunkRJ. Consulté le 26/01/2014.

[19] “Le corps, la position, le fait de se tenir dessins de la relation première avec moi-même, de ma coïncidence avec moi ne ressemblent nullement à la représentation idéaliste. Je suis moi-même, je suis ici, chez moi, habitation, immanence au monde. Ma sensibilité est ici” (Levinas, 2000, p. 146).

[20]  Traduction propre

[21]  Traduction propre

[22]  “Um terreiro, uma casa-matriz de uma comunidade jongueira ou de maracatu, um cazuá de capoeira angola, transmitem bens simbólicos de um patrimônio familiar que regenera a linhagem e que trança e dá sol a relações de descendência que ultrapassam a ascendência biológica” (Rosa, 2013, p. 36); “Oliveira (2003) detalha elementos característicos de uma cosmovisão africana, que ultrapassam diferenças geográficas e que podem ser generalizados como constantes na filosofia vivida pelas tantas etnias e povos do continente-mãe (…) Oliveira destaca alguns princípios como (…) a Família, que pode ser extensa e transcender laços sanguíneos, como base de organização social” (p. 39-40).

[23]  L’espace de la rue comme recours et stratégie politique, impliquant une esthétique de son utilisation, est récurrente dans l’action d’APAfunk en dehors de l’espace du sarau. Est née aussi parallèlement au sarau un bloco apafunk qui va donner une visibilité pendant le carnaval pendant lequel “l’occupation de l’espace des rues est fondamental” (Enne & Gomes, 2013, p. 57).

[24]  A la différence de la majorité des saraus de la littérature périphérique-marginale qui ont lieu dans les périphéries et on un impact direct sur les communautés respectives des organisateurs.

[25]  AtomoMultimidia, 20/09/2012: MC Calazans e o funk em tempos de “paz” – Periferia em movimento. Disponible sur http://www.youtube.com/watch?v=3MdVVtM9U-4. Consulté le 26/01/2013.

[26]  Entretien accordé à l’auteur, 05/12/2013.

[27]  Lancement du livre Criminalização do tamborzão: olhares sobre o funk, intervention d’Adriana Facina, le 26/11/2013 au Circo Voador, Lapa, Rio de Janeiro.

[28]  Sous-entendu “de la favela”.

[29]  Mano Teko & Banda Feitura: Apologia (ao vivo) by Mano Teko on Soundcloud. Disponible sur https://soundcloud.com/manoteko/mano-teko-apologia-ao-vivo. Consulté le 26/01/2014.

[30]  Disponible sur http://negrobelchior.cartacapital.com.br/2013/10/28/por-que-o-senhor-atirou-em-mim/

Consulté le 24/01/2013.

[31] Diego Conceição, sarau APAfunk, 14/11/2013: “Estamos mais do que no momento de discutir realmente o racismo nesse país, certo? Entender o racismo sem compreender na individualidade e entender como um processo de construção do sistema capitalista branco”.

[32]  Instituto de Pesquisa e Análises Históricas da Baixada Fluminense, s/d, s/a, 24/10/2009: A saga de Manoel Congo. Disponible sur http://www.geledes.org.br/areas-de-atuacao/questao-racial/quilombos-e-quilombolas/2719-a-saga-de-manoel-congo. Consulté le 26/01/2013.

[33]  Entretiens de Mano Teko et Diego Conceição: 05/12/2013, 06/12/2013.

[34]  1. Carta Capital, SPeriferia, Semayat Oliveria, 17/10/2013: Lei que obriga ensino da história afro-brasileira faz 10 anos. Disponible sur http://www.cartacapital.com.br/blogs/speriferia/dez-anos-da-lei-que-obriga-o-ensino-da-historia-e-cultura-afro-e-afro-brasileira-nas-escolas-e-tema-do-evento-afrobrasilidade-cultura-e-educacao-na-urbanidade-7681.html. Consulté le 18/01/2014.

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[35]  Festfunkconsciente, 06/04/2013: Funk Consciente – MC Calazans.Disponible sur http://www.youtube.com/watch?v=iWtKuOhG8vo. Consulté le 26/01/2014.

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Corpoeticidades dos saraus de poesia: o movimento Eu, Poeta Errante, de França de Olinda | André Telles do Rosário*

A voz e a interação humana voltaram ao coração da comunicação poética. Durante o último século, além de todas as vanguardas, escolas e teorias que ampliaram enormemente as maneiras de se produzir, divulgar e fruir os poemas (tanto no impresso, quanto nas mídias sonoras ou audiovisuais e na internet), aconteceu também a popularização da cultura de encontros para se compartilhar poesia falada, principalmente a partir dos anos 1970 e 80.

Para muitos, o primeiro marco perceptível desta tendência surgiu com a subversão da cultura da leitura de poemas, feita por Allen Ginsberg e os poetas da San Francisco Renaissance, na Six Gallery, em 1955, ao dar àquela noite de leitura um aspecto de happening (ainda antes de Kaprow criar o conceito), principalmente devido à dionisíaca primeira declamação de “Howl”. Nas décadas seguintes, ao encontro da cultura de leitura de livros com o happening e as vivências das artes visuais, foram somadas as performances dos shows de rock e a cultura jovem, e a busca por meios culturais de resistência política e existencial. Estas, entre outras referências, repercutiram no surgimento dos recitais de poesia no Brasil, e da Slam Poetry nos Estados Unidos, entre tantos outros formatos, em várias partes do mundo.

Poesia oral urbana. Ligada a movimentos internacionais e a tradições locais, com diversas formas de materialização. Praticadas nesses eventos, foram se adaptando mais e mais à forma de comunicação através da voz, do corpo e da interação pessoal. Já são décadas de renascimento – com estilos pessoais e de época, de formas e estruturas características, ao longo do tempo. Nesse período, o que se percebe é a consolidação de uma fruição estética que é menos “literária”: mais próxima do jogo e do ritual, da terapia coletiva e da manifestação política, que da leitura solitária.

Sua abundância descentrou o paradigma literário dos estudos de poesia para outro, mais preocupado com o papel do corpo na comunicação artística verbal. Nossa hipótese, neste ensaio, é que a atual poesia corporalmente compartilhada pode ser compreendida de maneira mais apropriada ao ultrapassar a “bidimensionalidade” da maior parte dos estudos literários. Para tanto, acreditamos ser necessário um olhar através das relações entre três elementos centrais nestas manifestações culturais orais urbanas: o Corpo, a Cidade e a Poética.

Este artigo é uma tentativa de observar um sarau de poesia dentro deste ponto de vista “tridimensional”. Assim, vamos passar os olhos sobre o movimento Eu, Poeta Errante, em Pernambuco, liderado pelo Poeta França (Valdemilton Alfredo de França). Mas, antes de partir para a poesia propriamente dita, é necessário explicar o que vem a ser Corpoeticidade.

Figura 1: O poeta França de Olinda (Foto: Fundarpe - divulgação)
Figura 1: O poeta França de Olinda (Foto: Fundarpe – divulgação)

Três elementos e três dialéticas

O neologismo Corpoeticidade é a junção de três elementos importantes na expressão poética performativa contemporânea: Corpo, Poética e Cidade. Três substantivos que se desdobram em três dialéticas: a Poesia no Corpo; o Corpo na Cidade; e a Cidade na Poesia. Estas três dialéticas foram utilizadas para orientar a observação da obra do poeta Miró da Muribeca (João Flávio Cordeiro, recitador e criador famoso da poesia “marginal” de Recife), na dissertação Corpoeticidade – Poeta Miró e sua literatura performática (UFPE, PGLetras, 2007).

Na primeira das perspectivas, a Poesia no Corpo, foram procurados traços de performatividade na sua poesia, ou seja, a forma com que o corpo modula as manifestações do poema. Como sua arte é um híbrido de expressões orais e gráficas, para retratar melhor sua materialização, a dialética poesia e corpo foi dividida em três subconjuntos de comentários.

O primeiro apanhou aspectos visíveis e audíveis de suas performances, de como o corpo se apresenta, desde a voz e o gestual, até a indumentária, o local e a ocasião. O segundo buscou elementos de oralidade dentro da língua utilizada em seus poemas, atrás de alguns padrões e recursos lexicais mais frequentes nos seus textos. E o terceiro leu o planejamento gráfico de suas publicações, em busca da influência da performatividade no meio impresso. Partindo, assim, do foco exclusivo no corpo e no contexto, passando pelas marcas da performatividade no seu discurso, até chegar à intersemiose de seus livretos.

Com a segunda das dialéticas, o Corpo na Cidade, buscou-se retratar a subjetividade que habita seus poemas. Quais as fronteiras para a movência e para o usufruto da urbe por esse protagonista descrito em sua poesia: a cor, a classe e a intimidade do habitante que é o ponto de vista das imagens de suas invenções.

Com limitações mais visíveis e sensíveis para quem está na base da pirâmide social, o cotidiano das grandes cidades brasileiras é repleto de fronteiras e poucos espaços comuns. Para provar os incômodos disparates que sente na pele, o poeta recorta fragmentos da cidade e os cola no poema, deixando ver sua posição dentro dessa sociedade – e transgredindo essas fronteiras através da expressão artística.

E na terceira, a Cidade na Poesia, foi observado o sentimento geográfico que viaja com os versos. Como as representações culturais geográficas locais tradicionais (principalmente da cidade, mas também da região e da nação) são construídas e reinventadas em poemas seus. Como e quais modelos de pernambucanidade e brasilidade são revelados, celebrados e combatidos através da poesia.

Todo indivíduo traz na sua fala signos de pertença a seu lugar (e a sua posição dentro da sociedade desse lugar). O poeta, tecelão de tumultos, cruza estas fronteiras dentro de sua obra, e os moldes com que tece suas bombas de efeito moral revela, também, seu posicionamento político perante questões do ambiente social em que está mergulhado, reinterpretando as representações culturais do lugar.

Corpoeticidades

O caminho para a compreensão de eventos de poesia falada através deste arcabouço teórico passa por adaptá-lo da leitura da obra de apenas um poeta, para a análise de um evento de poesia. Primeiro, é importante entender que a soma das corpoeticidades dos poetas presentes no evento é parte da corpoeticidade do evento. Mas não só, porque o evento em si tem sua corpoeticidade: sua relação e história com práticas corporais e de interação pessoal; com maneiras de entender e trocar criativamente a poesia; e com o lugar onde acontece, dentro da cidade e de culturas mais amplas, nacionais e internacionais. Para analisar a corpoeticidade do evento, o primeiro ponto é compreender que falamos de algo no plural. Poetas e audiência reunidos – Corpos, Poéticas e Cidades.

As poesias nos corpos

Qualquer evento de poesia falada é uma grande compilação de poemas composta por vozes e corpos diferentes num mesmo lugar, durante algumas horas. As performances se juntam umas às outras: a poesia acontece através das pessoas. É assim um jogo, um ritual, uma terapia coletiva, um manifesto. Em vez de livro e leitor sozinhos a dois – vozes e olhares de três ou mais participantes: falas intercaladas, trocadas, conversadas, mais o contexto, o local e o acaso.

A estrutura que ordena o encontro é o esteio por onde os poemas em performances vão se suceder, mantendo o elo de unidade do evento. Observar como se dá a interação pessoal é o primeiro ponto desta dialética. Organizações diferentes geram recitais diferentes entre si. Como o fato do evento ser uma lista ou uma roda de poesia, ou de ter um Mestre de Cerimônias mais ou menos centralizador ou permissivo. A temática e a cultura do recital geram normas implícitas que têm efeito sobre o conteúdo e a forma da poesia trocada nestes ambientes.

Além de atentar à sua estrutura, é importante observar os diferentes estilos de performances pessoais dos principais atores de cada evento. Ainda, entre a análise da corpoeticidade do recital e aquela de cada um dos poetas que se apresentam, observar o diálogo que acontece no nível da performance entre os criadores que recitam.

O segundo ponto é observar a linguagem usada nos poemas dos eventos de poesia falada. Quem são os principais poetas a se apresentarem nele, quais os recursos que suas poesias utilizam. É perceptível um uso da linguagem que é mais oral, mais concreto e coloquial. O evento de poesia falada tende a prestigiar um estilo mais oral de literatura. Neste ponto, é interessante observar o papel do livro em cada um deles, em geral, quanto maior a base na leitura pública de livros, mais distante da oralidade.

Por fim, o terceiro e último ponto desta primeira dialética a ser adaptado do estudo sobre Miró da Muribeca é aquele que observa a performaticidade impressa. Mais uma vez, a soma dos trabalhos dos poetas que frequentam os recitais é parte da corpoeticidade, junto com a divulgação da poesia e do evento em outras mídias. Mas não só, os criadores de um recital muitas vezes formam coletivos de ação artística, e é recorrente para alguns a publicação de coletâneas com os autores, além da produção de zines com parcerias dentro de cada evento. E há ainda a publicação em textos e vídeos na internet.

Os corpos nas cidades

Os criadores que se apresentam em um sarau têm histórias pessoais, percursos pela cidade. Os corpoetas são por necessidade andarilhos, de evento em evento, sem o artista sua poesia não atinge seu público (já que mesmo para vender seus livros, é necessário que o autor os leve, muitas vezes). E o lugar onde mora marca este criador (aberta ou veladamente), desde sua linguagem do lugar, passando pelo ponto de vista, pelo repertório de experiências cotidianas comuns, até a própria descrição da cidade nos poemas. O sarau acaba sendo uma encruzilhada, um ponto de encontro de várias trajetórias, um lugar que se torna um espaço de força.

Histórias que circulam e se fundem e se confundem e fundam. Encruzilhadas de histórias pessoais e identidades de variados tipos. Partes da cidade que se encontram, se aliam, se estranham, se ressignificam. Corpoetas são embaixadores de sua cidade e de suas “quebradas”, de suas histórias, e de outras coisas também: ideias, ideais e muito mais. O caldo todo se anuncia em seus versos, a cidade se apresenta ao “eu-lírico” no poema. Eles carregam, quando falam, seu lugar na guerra, que disputam com a palavra, na sociedade em que moram. Deste ponto de vista, o recital de poesia é também uma manifestação política através da cultura, feita através desta união de vozes, ouvidos e olhares.

Mas além da soma dos percursos dos poetas, o recital tem um “discurso” que diz quem o faz, para quem é feito, quem são essas pessoas, o que é importante para elas – qual cidade é privilegiada em sua atenção e afeto. Assim, o sarau de poesia acaba por interferir de volta na cidade, na linguagem da cidade, na história da cidade – através das pessoas concretas que nela vivem e convivem.

As cidades nas poesias

Para o universo da poesia falada contemporânea, o lugar não é apenas pano de fundo, mas parte fundamental da obra. É em acordo com os detalhes de cada espaço que se organizam os eventos. Além das contingências locais que influenciam a troca de poesia e seus estilos, os movimentos de poesia falada reivindicam o espaço urbano para outros usos – ligados ao prazer do jogo, ao senso comunitário do ritual, ao debate e à luta social.

O lugar de onde se diz algo faz toda a diferença. O ponto onde os pés do corpoeta tocam o chão é um signo a partir do qual os discursos podem ser compreendidos. Revela a classe, a história, a etnia, a cultura local – e para quem, com quem e contra quem se diz. Colocar-se deste lugar é performar o manifesto que dá origem ao sarau de poesia.

Mais do que a compreensão das identidades geográficas e culturais de cada poeta que se apresenta a partir daquele lugar, e da soma das percepções de todos os poetas que compõem o evento, o sarau de poesia como um todo também se manifesta identitariamente, como uma obra. Tanto em cada evento, como na soma dos eventos ao longo do tempo.

Assim, o recital de poesia expressa suas ideologias geográficas e culturais tanto na temática e no discurso-manifesto que o funda, quanto no pensamento de cada participante – poetas, ouvintes-poetas e ouvintes. Mas, para além do texto, a performance de se tomar um lugar para falar poesia e interagir é por si só uma expressão, uma intervenção urbana, para usar a linguagem das artes (e dos movimentos sociais).

A partir do próximo parágrafo, passaremos a vista em um evento de poesia corporalmente compartilhada, utilizando os pontos de partida até agora expostos para sua descrição e leitura. As observações que seguem surgiram através de visitas ao Eu, Poeta Errante, principalmente no último ano de existência do sarau. Este exercício não pretende ser exaustivo ou minucioso, mas uma abordagem que consiga descrever o encontro de poesia de uma maneira mais pertinente e agradável.

Eu, Poeta Errante

Figura 2: França recita no <em>Eu, Poeta Errante</em>, no Festival de Inverno de Garanhuns (2007) (foto: Fundarpe - divulgação)
Figura 2: França recita no Eu, Poeta Errante, no Festival de Inverno de Garanhuns (2007) (foto: Fundarpe – divulgação)

Valdemilton Alfredo de França foi um dos expoentes da poesia corporalmente apresentada da Grande Recife. Dentre as muitas atividades, lançou dois livros: A cor da exclusão, de 1998, e Cafuné, de 2003 (além de Poeminflamado, compilação de toda sua obra, lançada postumamente em 2012).E liderou, por sete anos, o movimento Eu, Poeta Errante, recital aberto e itinerante que acontecia todas as quintas-feiras, de agosto de 2000 até setembro de 2007, pouco antes de seu falecimento.

Em 2000, França começou o primeiro da série, em Olinda. Foram mais de trezentos recitais em dezenas de locais diferentes em Pernambuco e em outros pontos pelo Brasil. O poeta, que já militava pela poesia corporalmente transmitida e socialmente brincada, passou a ter seu compromisso de fé, todas as quintas-feiras, à meia-noite, de encontrar-se com pessoas para recitar e ouvir poemas. Abrangendo desde encontros onde havia apenas ele e poucos participantes, até récitas-festas com dezenas de pessoas.

Poesias nos corpos

Toda semana, alguém diferente hospedava o evento, abrindo sua casa ou bar ou instituição para receber os boêmios. Geralmente em Olinda, mas houve edições na Grande Recife e ainda em Garanhuns, Porto de Galinhas e outras cidades. Com a mudança de lugar toda semana, a conformação do evento sempre tinha uma novidade de encontro para encontro. O que permanecia em todos, era o modelo de roda de poesia, falada sem microfone, trocada no mesmo nível do solo, em formato que tendia para um círculo, com a atenção da maioria voltada para dentro, onde o poeta se apresentava.

Tradicionalmente, uma mesa com muitas frutas e uma garrafa de cachaça à disposição dos convidados. À meia-noite, o dono do lugar abria o sarau com um poema. E então outras pessoas da roda de poesia apresentavam suas performances poéticas. Não havia lista, e o senso do momento que fazia o poeta entrar na roda. França costumava insistir para a pertinência do poema, sua resposta ao que acabou de ser recitado, de forma a construir um diálogo e estimular a brincadeira e o envolvimento de todos. Como uma capoeira, era preciso estar atento, olhando no olho, respondendo criativamente ao seu camará. Além do respeito a todos que declamam seu poema, independentemente do tempo de prática.

Os recitais eram abertos, gratuitos e não competitivos. França era um excelente anfitrião, sempre conseguia deixar todos à vontade. A ponto de pessoas que nunca haviam recitado arriscarem sua voz para fora do peito. Muitos poetas se “formaram” com França. Pelo modo de participação aberta do movimento, a experiência da performance poética neste contexto se aproxima da experimance, que é a obra de arte focada na experiência no receptor, através da intervenção do artista (Gomes, 2007, p. 5). Numa roda de poesia, o espectador pode experimentar a performance de dentro, e França incentivava os presentes a saírem de sua postura defensiva e passiva para outra mais lúdica e ativa.

Subvertendo algumas relações sociais previstas pelo “mercado literário” para a situação de comunicação poética, França reposicionou o foco da cultura na interação da experiência pessoal e coletiva, ao invés da leitura solitária ou solene das livrarias. Fazendo da poesia um estilo de vida: libertário, boêmio, existencialista, contracultural. O Eu, Poeta Errante foi sua obra mais marcante, neste sentido, uma intervenção urbana semanal, happening de poesia trocada.

Figura 3: França interage com público no <em>Eu, Poeta Errante,</em> em Garanhuns (2007). No canto direito da foto, o poeta Miró. (foto: Fundarpe - divulgação)
Figura 3: França interage com público no Eu, Poeta Errante, em Garanhuns (2007). No canto direito da foto, o poeta Miró. (foto: Fundarpe – divulgação)

Cada sarau de poesia tem seu principal organizador, ou grupo de responsáveis. Mas geralmente é uma pessoa (poeta e/ou professor) que coordena o evento. A poesia do evento acaba tendendo a se aproximar daquela do “dono” do recital. Além dessa figura, existe a do apresentador do evento. Muitas vezes é o próprio dono que faz o papel de mestre de cerimônias, mas nem sempre. França era os dois, no caso do movimento que estamos observando. O fato de o sarau ser em formato de roda (com os poetas em círculo e as recitações vindo sem ordem previamente estabelecida) faz o mestre de cerimônias virar mais um mediador entre os poetas, do que um apresentador.

A conformação entre plateia e poetas no formato de roda estimula a participação, a experimance. Neste sentido, há um elemento de jogo na roda, de fluidez, que não se apresenta no outro formato mais usual para recitais, o de lista (que podem ser fechadas antes do evento, ou que resulta das decisões do apresentador do sarau). O formato de lista acontece muitas vezes com a utilização de microfone, outro elemento que altera a performance poética. Como foi feito para multidões, para ser ouvido longe, é um instrumento de poder, que influencia a postura do poeta, afastando-o de quem está próximo, e o aproximando de quem está longe.

É curioso perceber que o microfone acaba tendo uma função de poder próxima da do livro. Ler um livro é um ato de poder, que afasta quem lê de quem está ouvindo. A fala olho no olho da corpoesia memorizada e apresentada busca a aproximação. O livro traz o argumento indiscutível, a conversa de um caminho só, o diálogo abortado ou adiado até que outro texto seja escrito e lido.

No caso do Eu, Poeta Errante, França estimulava a performance sem a leitura (e sem microfone também). Por conta da própria história do uso da cultura impressa contra as matrizes africanas e indígenas, o corpo é colocado como meio privilegiado de contato. O livro é importante, mas não pode ser central, num evento que bole com a poesia e com o corpo dessa forma, essa a mensagem por trás da estratégia.

Até agora falamos da primeira subdivisão desta dialética, a performatividade entre os corpos. Partindo para a performatividade na língua, a poesia apresentada no movimento era muito voltada para a pesquisa com a oralidade, bem-humorada e combatente, principalmente aquela de matriz afro-brasileira. Além de França, muitos poetas de Pernambuco passaram pelo Eu, Poeta Errante, criadores de uma poesia mais das ruas, e vinda das periferias – a poesia marginal de Pernambuco (que, diferentemente da carioca, tem poetas vindos dos subúrbios também – acaba sendo a confluência das duas definições para “marginal”, hoje correntes, a “do Chacal”, e a “do Sérgio Vaz”).

Quanto à terceira subdivisão, a performatividade nos meios de divulgação impressos, às vezes havia venda e troca de livretos alternativos nos eventos. França mesmo vendia livretos seus e as agendas da vida, que fazia com sua editora, a Mão-de-Veludo edições artesanais (junto com a artista visual Sil Beraldo) – mas nada ostensivo. Ao contrário de Miró, que via nos seus livretos e CDs, e DVDs a principal fonte de renda, França vivia em um ambiente mais próximo da economia solidária, morando em Olinda, no Amaro Branco. Portanto, a troca de livros entre os autores era igualmente comum, neste meio de impressos de baixo custo de edição (livretos, zines, cartões, camisetas). Quanto à divulgação dos locais dos eventos a cada semana, França confiava no “Correio Nagô”, como ele definia: a informação passada boca a boca em Olinda ou pelos ambientes boêmios e artísticos de Recife.

Corpos nas cidades

Compreender um sarau a partir das imagens que nele aparecem da cidade que o abriga é jogar uma luz sobre a construção, manutenção e reinvenção das identidades deste lugar, na poesia. Através de narrativas e crônicas, a poesia que faz a descrição da cidade e de seu usufruto (ou sofrimento) é recorrente entre os autores que o frequentavam. Podemos dizer que havia principalmente muitos autores da chamada poesia marginal recifense (mencionada acima) – junto com uma infinidade de outras pessoas, tão importantes quanto, que faziam poesia sem veleidades maiores. Geralmente, a poesia do coordenador do evento é uma tradução, parcial mas significativa, da “média” da poesia praticada naquele evento. A poesia de França é um modelo, nesse sentido.

A oralidade dessa poesia faz dela mais concreta – com citações expressas a partes da cidade, e eventos recentes de sua história. França, por exemplo, tem poemas comentando mudanças urbanas de Recife e Olinda, como quando cercaram de grades o campus da UFPE (“Desengradem as cidades”), ou dizendo da situação de Olinda, todo o ano, após a quarta de cinzas (“Olinda vai mal”). Miró da Muribeca, frequentador do recital também, tem um poema que reflete bem esta materialidade referencial da cidade:

Sem chance

Tem horas que você olha em volta da
janela de um ônibus,
Os outdoors te olhando,
As mulheres sem juízo nas calçadas de
restos de feira.
Mastigando pimentão podre
Um vermelho rasgando o céu da cidade de
Recife, um pouco antes das seis da tarde.
Lotadas loterias e padarias.
Deus foi perfeito em não deixar nenhuma
chance pro homem.
Seja no Restauração ou no Santa Joana.
(Miró, 2006, p. 21)

O verso final só faz sentido para quem conhece Recife. São dois hospitais, um de cada lado da mesma rua. O Hospital da Restauração é o maior dos públicos, e precário. O Santa Joana está entre os mais caros de Recife e tem até heliponto. A referência concreta à cidade e ao seu cotidiano é uma marca desta corporalidade. Dessa forma, os poetas usam a cidade como um repertório comum – tanto geográfico, quanto cultural e social.

Além da sociocrítica desse protagonista descrito nos poemas dos autores que o frequentavam, o movimento mesmo se deslocava pela cidade. O Eu, Poeta Errante, desde seu nome,era itinerante, trazendo outra noção de territorialidade. A movimentação do sarau diz muito – realizado em casas e bares de Olinda, mas não restritivamente – pelo contrário, com abertura a visitas em outros lugares. Era uma encruzilhada ambulante, esticando a compreensão que comentamos anteriormente. Ressacralizando o chão de cada lugar, com poesia e cultura. Assim, tinha funções pedagógicas, terapêuticas, recreativas e políticas.

Nesse sentido, por fim, é ainda interessante observar que um sarau geralmente não existe sozinho. Existem outros lugares onde os criadores se encontram. Dessa forma, em função dos percursos dos poetas e do encontro em lugares diferentes dos mesmos criadores, se constrói um repertório específico dos grupos. Onde, por outro lado, o recital se destaca por alguma especificidade relacionada à cidade e à cultura do lugar, assim como o próprio criador. O olhar deste que recita, mais sua experiência e seu estilo, também são relacionados a como a cidade é descrita, usufruída e enfrentada.

Cidades nas poesias

A movimentação semanal do Eu, Poeta Errante era um manifesto ambulante de uso da cidade: direito de existir transitando, circulando. Em vez da rigidez da defesa de um mesmo território, a valorização do movimento e da troca – para que todos os lugares sejam de todos. Como muitos dos outros saraus, o trauma da exclusão social, étnica, econômica é um dos motores da apropriação da cidade. E é necessário fazer a informação circular, com qualidade, entre as pessoas, e mantê-las em contato. Assim, o evento funciona também como terapia coletiva e manifesto político, com desdobramentos no local e na cultura do local. Além de servir de “revitalização” para os participantes – servindo de lugar de socialização e articulação.

Quando observamos os moldes em que o movimento criado por França se configurou, é possível enxergar traços da ascendência africana. Leda Maria Martins descreve a maneira como algumas culturas afro-descendentes compreendem a arte:

Pela performance, o negro apropria-se espacialmente de territórios geográficos simbólicos, semantizando a cartografia brasileira com os significantes estéticos, religiosos, expressivos, filosóficos e cognitivos africanos. […] Na enunciação performática, em sua moldura cênica, o narrado transmuta-se no dramatizado e o tema do deslocamento mascara-se em várias faces: a travessia da África às Américas, a substituição da morte (escravidão, silêncio, imobilidade) pela vida (liberdade, resistência, voz e movimento) (Martins, 2000, p. 77-78).

“Liberdade, resistência, voz e movimento”. Gerando e difundindo experiências e discursos que se contrapõem à exploração do espaço urbano em favor dos interesses das classes dominantes (que são, estatisticamente, etnias dominantes). Intervenções urbanas de baixo impacto e alta capacidade de troca existencial, todas as semanas.

Sua posição contra o meramente comercial, sua cosmovisão dos processos poéticos e literários, refletiram na expressão completa do evento. Poesia tridimensional, inflamada de revolta e força. Com sede de desmontar o maquinário perverso que sustenta cada privilégio. Concordando com Muniz Sodré, partindo da materialidade da história real, porque:

O euroculturalismo e a educação escolar voltam as costas a tal realidade [a da maioria] instalada na paisagem circundante, não por falta de tematização do problema, mas pelas próprias concepções que lhes servem de fundamento e pelos lugares discriminatórios que ocupam no modo de organização social. […] É forçoso, pois, levar em conta que se exasperam progressivamente as diferenças de modo de existência entre as zonas de habitat no interior da metrópole. A homogeneização operada pelos meios de comunicação e por outros equipamentos urbanos desconhece os focos catastróficos da pobreza ou de sua obscena contigüidade com as zonas abastadas. A fricção social entre incluídos e excluídos (a novíssima face da luta de classes) assume foros violentos, variando de intensidade segundo a diversidade dos territórios (Cabral, 1996, p. 88-89).

Colocar o dedo nas feridas para apontar essas contradições foi um dos papéis que França procurou exercer, através de sua poesia. Ajudando no trabalho de desconstrução da ideologia que mascara, confunde e mantém cada específica exploração. Fazendo o que podia para acelerar o processo de que seu poema, que encerra esse percurso, fala:

Aumenta aos poucos
O grupo que está à porta
As mãos antes vigorosas
No trabalho ou na prece
Agora se fecham em punhos
Feito flor que recrudesce
ao botão
Murmurejam pragas
 Entre as orações
  E assim retiram
   um a um
Os tijolos do edifício
(França, 1998, s/n).

Conclusão

É necessário ampliar a interpretação “literária” do fenômeno da poesia performativa. Estes poetas falam a partir de um lugar específico que importa na compreensão do discurso. E transformam a sua cidade em linguagem, adicionando relevância maior ao contexto local da comunicação poética, a ponto de se pedir traduções aqui e ali para quem não é do lugar (como com o poema de Miró, “Sem chance”). Por fim, fazem da fala uma morada e um veículo, por onde convivem e sustentam os movimentos sociais e culturais de que fazem parte. A poesia falada nesses eventos têm sutilezas que a observação crítica grafocêntrica tem muita dificuldade em compreender.

Essa juntada de observações é uma renovada tentativa de aproximação ao tema, buscando partir de uma perspectiva mais sensível ao que essa poesia possui de mais especial e específico. Surgiu da impressão de que mesmo os estudos literários que aceitam a performatividade da poesia e sua corporalidade ainda partem de pressupostos característicos da cultura tipográfica.

Mesmo Zumthor, quando fala de performance, pensa a partir da relação um a um, ou seja, um emissor e um receptor. Esse modelo um a um é o modelo do livro. Quando observamos a descrição que deu à performance, em Introdução à poesia oral, fica clara tal conformação:

A performance é a ação complexa pela qual uma mensagem poética é simultaneamente, aqui e agora, transmitida e percebida. Locutor, destinatário, circunstâncias (quer o texto, por outra via, com a ajuda de meios linguísticos, as represente ou não) se encontram concretamente confrontados, indiscutíveis (Zumthor, 2010 p. 31).

Um recital de poesia nunca acontece em dupla, mas em três ou bem mais participantes. E escutar e assistir ao poema apresentado junto com outras pessoas, faz a mensagem ter outras conotações. A troca de poesia falada entre pessoas pode ter muitos formatos, mas em todos eles o lugar em que acontece o evento e a maneira como os participantes se organizam e interagem são de fundamental importância. Tão importantes que fundam poéticas próprias desses encontros. Poéticas que demandam novas abordagens da crítica, para que sejam mais bem compreendidas.


* André Telles do Rosário é pesquisador de Programa Avançado de Cultura Contemporânea, onde realiza estudos sobre o impacto dos novos meios eletrônicos na performance poética contemporânea, sob a supervisão de Heloísa Buarque de Hollanda, com financiamento do CNPq.

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Tempo de leitura estimado: 33 minutos

“Nada indicaria que eu fosse ter alguma ligação com cultura”: entrevista com Alessandro Buzo

Entrevistadores: Alexandre Graça Faria*, Érica Peçanha do Nascimento**, Fernanda Pires Alvarenga Fernandes***, Ricardo Ibrhaim Matos Domingos**** e Waldilene Silva Miranda*****.
Introdução: Fernanda Pires Alvarenga Fernandes***

Figura 1: Alessandro Buzo (foto: Marilda Borges)
Figura 1: Alessandro Buzo (foto: Marilda Borges)

Escritor, ativista social, colunista, repórter e cineasta, o polivalente Alessandro Buzo recebeu um grupo de pesquisadores de literatura[1] em sua livraria Suburbano Convicto, no bairro do Bixiga, em São Paulo. Era outubro de 2011 e a Cooperifa celebrava uma década de existência, o que motivou o grupo a sair da Universidade Federal de Juiz de Fora e ir conhecer presencialmente alguns dos autores que haviam despontado na cena da Literatura Periférica, como Buzo. Daquele encontro, surgiu esta entrevista, da qual participou a anfitriã dos mineiros na capital paulista, Érica Peçanha.

Buzo lançou seu primeiro livro em 2000 com o nome O trem: baseado em fatos reais. Cinco anos depois, acrescentou mais dados à história e publicou O trem: contestando a versão oficial. Na entrevista, ele conta como a literatura entrou em sua vida e avalia a formação do cenário em torno da Literatura Marginal. Nosso entrevistado também é autor de Suburbano convicto: o cotidiano do Itaim Paulista e Guerreira, entre outros livros, dirigiu o filme Profissão MC, de 2006, organiza a coletânea literária Pelas periferias do Brasil e escreve para jornais e revistas. Na TV, Buzo fez parte do programa Manos e minas da TV Cultura, onde apresentava o quadro “Buzão” e, desde outubro de 2011, apresenta o quadro “SP Cultura”, às sextas-feiras, no telejornal SPTV 1ª edição, da Rede Globo.

Como se deu o seu envolvimento com a literatura?

Alessandro Buzo – Foi, podemos dizer, por acaso. Por acaso eu escrever. Eu ler foi por conta da minha mãe, porque mesmo tendo pouco recurso financeiro – era dona de casa até meu pai ir embora e, com dois filhos pequenos, eu com 12 anos, meu irmão com 8 ou 9 – ela teve que se virar. Depois eu comecei a trabalhar muito cedo aqui no Centro de São Paulo, porque meu pai deixou a gente na mão financeiramente. Então minha mãe passou a ser empregada doméstica e depois funcionária pública, trabalhando em hospital, em creche. E a gente morava no Itaim Paulista, morei a vida inteira lá. São 38 km aqui do Centro, no último bairro da Zona Leste de São Paulo, que já é gigante. E nada indicaria que eu fosse ter alguma ligação com cultura, diretamente como é hoje. Nada levava a isso, mas a literatura chegou. Minha mãe comprava revista da Turma da Mônica e me dava; pro meu irmão, uns livros. Tinha O menino maluquinho, entre outros. Então eu conhecia os livros. Aí veio outra fase, a da adolescência. Mesmo nunca tendo feito nada de errado, no sentido de cometer um delito, um crime, eu nunca roubei, nunca vendi droga, mas usei muita droga. E não comecei, como diz a lenda, com a maconha, para depois usar outras drogas mais pesadas. Eu já comecei direto na cocaína, e fui usuário por alguns anos. Por alguns anos eu fui um usuário controlado e, depois, comecei a usar droga todo dia. Mesmo trabalhando. E parei por conta própria, por vontade própria. Parei porque a responsabilidade de um casamento e a vontade que eu tinha de viver uma vida tranquila dentro desse casamento falou mais alto. Casei em 1998 e lancei meu primeiro livro em 2000, e, em seguida, o que fortaleceu isso foi o hip hop e a literatura que surgiu. Eu já estava há dois, três anos sem usar drogas, então…, fez com que percebesse que eu realmente não ia usar drogas nunca mais, foi o meu envolvimento com a cultura.

Figura 2: Alessandro Buzo concede entrevista a um grupo de pesquisadores de literatura na livraria
Figura 2: Alessandro Buzo concede entrevista a um grupo de pesquisadores de literatura na livraria Suburbano Convicto (foto: Marilda Borges)

E nesse período das drogas você parou de ler?

Alessandro Buzo – Eu voltei a ler [ainda] usuário de drogas. Trabalhava num escritório na Praça da Sé e no meio de um monte de senhorinha de idade já. Eu era o doidão lá no meio. Logo no horário do almoço, chegava um cara que ia numa sala, que era de um amigo meu, e a gente ia lá e já no meio-dia a gente começava a vida louca, e eu voltava para o escritório e ficava lá no meio de duas senhoras, parecendo um doido. E um dia, nesse escritório, entrou uma mulher do Círculo do Livro. Quem é mais velho conhece. Eram uns livros de capa dura, que você encomendava, pagava, naquela época com boleto bancário, e o livro chegava pelo correio. E aí ela chegou no escritório, explicou, mas ninguém comprou nenhum livro. Falou que ia deixar o catálogo, caso alguém mudasse de ideia e ia saindo quando eu vi um livro que me identifiquei, assim, pelo título, que eu desconhecia. Na época nunca tinha ouvido falar. É o Eu, Christiane F, 13 anos, drogada, prostituída... Achei o título interessante e encomendei o livro. Falei: “Volta aqui, eu quero encomendar um livro”. Achei o livro muito louco. Depois descobri que tinha um filme, acabei assistindo ao filme também. Tenho o livro guardado até hoje, tanto que esse que é um dos livros que eu tenho de cabeceira. E aí eu falei: “Caramba, o livro pode ser muito louco, pode falar de uma história doideira”. Mesmo a história sendo na Alemanha, em Berlim, e a droga sendo heroína, era parecida com a minha história doida. Só mudava o país e a droga, mas era uma história muito louca. E eu vi que um livro poderia servir para falar de qualquer coisa. E continuei comprando livro no Círculo do Livro. Comecei a ver que a gente poderia falar de tudo. Mas a escrita veio um pouco depois. Casei e comecei a frequentar um sebo que tem até hoje no Itaim Paulista. Já era de um amigo meu e um outro, mais chegado, virou sócio. O meu amigo pegava e dizia: “Poxa, esse livro aqui é muito louco”. Eu falava: “Poxa, legal”. Olhava na primeira página, onde ele escrevia o preço a lápis, e falava: “Poxa, cara, mas eu não tenho dinheiro agora”. E ele falava: “Não. Pega emprestado, depois você me devolve”. E comecei a ler um monte de livro nesse “pega emprestado, depois você me devolve”.

E como você começou a escrever?

Alessandro Buzo – Um dia esse cara chegou e falou assim: “Vou fazer um fanzine. Sabe o que é um fanzine?”. Aí eu falei: “Não.” E ele: “Pô, é uma revistinha de Xerox. A gente coloca uns textos, umas paradas, tira Xerox e distribui pra galera aqui na livraria. Quer escrever um texto?”. Falei: “Pô, mas eu não escrevo, cara.” E ele: “Como não escreve? Você lê pra caramba, escreve um texto, fala aqui do bairro, fala alguma coisa”. Aí fiz um texto qualquer, uma cronicazinha e tal. Não sei se foi junto ou um pouquinho depois, eu comecei a mandar umas cartas para um jornal de esportes, porque eu era muito fanático por futebol. Hoje eu ainda gosto, mas o fanatismo era maior naquela época. Era a Gazeta Esportiva, depois veio o Lance! E o jornal parou, hoje é um site só. Comecei a mandar carta para “Voz da Arquibancada”, que era uma coluna de leitores. E puxava a brasa pra minha sardinha. Falava do meu time, era assunto supérfluo. Aí puxava sardinha, tirava um barato de outra torcida e tal. E as cartas começaram a ser publicadas, lembro que saiu uma grandona. E aí eu estava no trem, (eu pegava trem para ir trabalhar, que é o jeito mais rápido de transcorrer 38km) e chegou um cara pra mim: “Pô, eu acho da hora aqueles negócios que você escreve na Gazeta Esportiva”. Cara, eu pensei que só eu lia a Gazeta Esportiva no Itaim Paulista. Não sabia que outras pessoas liam. Nunca via as pessoas com jornal no trem. Eu sempre estava com jornal. Tenho hábito de ler jornal até hoje. Se eu ficar 24 horas na internet, leio jornal. Esse meu amigo lia também o jornal e sabia que Alessandro Buzo era eu. Acho que eu assinava Alessandro Buzo de Souza, que é meu nome completo. Ele falou que tinha ficado muito interessado e eu respondi: “Poxa, legal, as pessoas lerem”. E comecei a escrever no fanzine, e essas cartas eram publicadas, e um jornal do bairro falou: “Meu, o Jonilson me mostrou os baratos que você escreve lá na Gazeta Esportiva, por que você não faz uma coluna de futebol de várzea no jornal?”. Era um jornal de bairro, que circulava de graça. E aí comecei a fazer matérias com os times antigos do Itaim Paulista, que tinham mais de 20 anos; hoje eles têm mais de 30. Comecei a fazer matéria com esses times e saía meia página. E fui indo. As pessoas começaram a comentar das coisas que eu escrevia. Um dia, eu estava muito incomodado com o trem, que estava muito ruim e a gente estava sofrendo feito um diabo. E aí resolvi escrever um texto denunciando a situação, porque sempre saía na mídia quando alguém depredava o trem, quando quebravam, queimavam. Uma vez incendiaram vários trens e saiu na mídia que “Vândalos destroem os trens”. Nunca saiu em nenhuma dessas matérias o que aconteceu antes, o tanto de porrada que o povo tomou antes de se rebelar e fazer isso. Não que eu ache certo queimar o trem, mas no dia em que queimaram os trens, a gente estava tentando desde 17h30 pegar o trem para ir embora e eram 22h e a gente estava no escuro, entre uma estação e outra. Foi nessa hora que queimaram os trens. Virou um caos. Eu lembrava de protestos que não tinham resolvido e resolvi escrever um texto. Pensei: “Pô, quem sabe a imprensa não vê o meu texto e publica e, sei lá, alguém, alguma autoridade vê o meu texto”. Fiz um texto chamado “Ferrovia nua e crua” e digitei no meu trabalho. Não tinha computador naquela época. Digitei e distribuí no próprio trem. Para cerca de 50 pessoas. E ninguém comentou nada no dia em que eu distribuí. Foi todo mundo embora, as pessoas guardaram o texto, outras até jogaram fora. No dia seguinte, quem não se lembrava do texto era eu, porque já tinha passado mais um dia de trabalho e tal. Uma pessoa chegou pra mim e falou: “Cara, eu me senti representado pelo que você escreveu naquele texto”. Achei legal o cara falar, mas quando eu cheguei mais próximo, vi que se reunia a maior galerona que ficava esperando juntar mais gente para poder ir todo mundo junto, e todos estavam elogiando o texto. Fiquei muito satisfeito com a repercussão. Achei que as pessoas compreenderam. Camelôs – tinha muito camelô naquele tempo – vieram me abraçar: “Poxa, nunca ninguém falou nada a nosso favor”. Os dias continuaram normais, de trabalho, eu indo e voltando de trem, e as pessoas começaram a dizer: “Por que você não escreve um livro do trem?”. E foi assim que eu virei escritor. Escrevi o livro do trem, não tinha a mínima ideia de como publicar. Nessa época não existia sarau, não existia nenhuma referência. O Ferréz era uma referência distante. Porque eu estava no Itaim e ele no Capão. Do Itaim para o Capão são mais de 50km. Mas aí eu acabei conhecendo o Ferréz, depois que o meu livro já tinha saído. Lancei independente. Se eu for contar a dificuldade que foi para lançar o livro, teria que ter muito mais tempo. Mas, assim, foi a maior luta. Descobri que só dava pra lançar independente, que ninguém lançava livro nenhum de ninguém. Fiquei frustrado, pois não ia ter dinheiro nunca para lançar 500 livros, que era o mínimo para os outros lançarem. Não ia ter essa grana nunca porque eu ganhava mal, estava endividado e enrolado. E aí eu acabei tendo o apoio de uma empresa em que eu trabalhava: dei 1/3 de entrada e fiz o livro. Como eu não tinha experiência de lançar livro, fiz na véspera do Natal, mas foi uma galera. E depois que vendi para os parentes, os amigos e os vizinhos, sobrou uns 400 e tantos lá em casa. E, fazer o que com esses livros, né, mano? Aprender sozinho a ir nos lugares. E aí eu comecei a ir nos shows de Rap, para divulgar, em todo lugar que pintava para ir. Os saraus ainda não existiam. A Cooperifa tem dez anos, estava surgindo. Os outros também não existiam. Não tinha nenhuma cena literária que tem hoje. Hoje o cara lança um livro, chega aqui e diz: “Buzo, tem como fazer meu lançamento?” Pô, tem! O cara já arruma livraria no Centro pra fazer um lançamento. Naquele tempo era surreal imaginar uma livraria com esse monte de livro da periferia. Então, nos últimos dez anos, surgiu um exército de pessoas escrevendo.

Figura 3: Alessandro Buzo em sua livraria Suburbano Convicto (foto: Marilda Borges)
Figura 3: Alessandro Buzo em sua livraria Suburbano Convicto (foto: Marilda Borges)

Os novos escritores estão conseguindo tirar os escritos da gaveta?

Alessandro Buzo – Todo dia surge um cara novo. Até ontem eu nunca tinha ouvido falar do Fábio Mandingo. Agora ele veio lançar o livro dele aqui. O livro é um barato, um tesão de ler, Salvador Negro Rancor. É muita luta, sabe? Não é a Bahia da Ivete Sangalo. É a Bahia de verdade. Então, quer dizer, está surgindo gente de todos os lados. Por muito tempo foi apenas São Paulo. Todo mundo que lançava era de São Paulo. E eu ia nos outros estados – já fui em dez estados fazer debates, palestras ou fazer matéria para a revista Rap Brasil, que eu era repórter – e em todo lugar que eu ia, alguém falava: “Olha, eu também escrevo, eu tenho uns textos, eu tenho uns contos, umas poesias”. Poxa, por que ninguém publica, né, cara? Um dia eu fui numa reunião na Ação Educativa que era para anunciar que eles iam apoiar alguns livros. Sugeri fazer uma coletânea com autores de vários estados. E surgiu Pelas periferias do Brasil, com autores de sete estados na sua 1ª edição. A Ação Educativa continuou apoiando o custo da gráfica na 2ª edição e, depois, arrumou outro patrocinador, que acabou ficando com a gente, que é o Centro Cultural da Espanha. E o livro é anual, não repete autores de um ano para o outro. Tem algumas coletâneas literárias que eu gosto muito, mas que repetem muito os autores. Prefiro não citar nomes, mas não acho muito legal. Desde o começo a gente decidiu que não podia repetir os autores. Em cinco volumes saíram 80 autores, né? É muita gente. Todos são escritores? Não. Tem gente que publicou o único texto que escreveu, ou um que estava na gaveta. Mas o cara teve o prazer de publicar alguma coisa. A gente não espera que todos saiam da coletânea e virem escritores, mas, cada vez mais pessoas que estão na coletânea acabam lançando seu primeiro livro. E assim, a cena é legal? A cena tem prestígio? Ter ficado desse tamanho, ter trazido vocês a São Paulo para ir na mostra é muito louco. Porque, vamos supor que só tivesse eu, o Ferréz, o Sérgio Vaz e o Sacolinha, quatro pessoas, nós iríamos ser considerados ETs. “Olha, surgiram uns ETs”. Mas não. Tem um monte de gente escrevendo, porque esse negócio que o povo não gosta de livro, que o povo não gosta de ler… Distribui livro de graça para ver se o povo não quer? O povo quer, cara, só que assim, a gente vê aqui aquela prateleira ali, média de R$ 15, R$ 20, R$ 25 a maioria dos livros. Tem até de R$ 30. Cara! Você vai na livraria Cultura e o livro mais barato custa R$ 40, tá ligado? Você cata qualquer livro lá e é 45, 50 paus. As editoras falam para o povo: “Não leia! Deixa para ler quem tem dinheiro para ler!”. Então o povão não lê, mano, porque os caras não têm 40 conto pra comprar um livro. Meu! A gente está publicando alguns livros pelo selo da Suburbano [Convicto], por enquanto são livros meus, o Buzo 10, o infantil, Pelas periferias… A gente quer vender o livro o mais barato que a gente conseguir, mano, que se dane se um dia a gente incomodar qualquer pessoa com isso, entendeu? O negócio é as pessoas lerem, cara! Sabe!? Quando vai fazer um evento, a gente já leva o Pelas periferias e meto a R$ 10, então, quer dizer, você tirou o fator caro, ficou possível ler, e o cara vai ler se quiser. Aí já é um problema dele, também ninguém vai pegar ninguém pela mão para sair lendo.

Tirar da gaveta tem sido um passo relativamente mais acessível, mas conquistar o público leitor parece ser mais complicado. Além de baratear o livro, como você se aproxima do seu público? Que estratégias estão envolvidas na criação de um espaço como a Suburbano Convicto?

Alessandro Buzo – A livraria surgiu há quatro anos, ela era bem pequenininha, uma garaginha de uma casa lá no Itaim Paulista. Um dia eu estava passando e tinha uma placa de aluga-se, era caminho da minha casa, e eu bati palma e perguntei para a mulher quanto era o aluguel. Ela falou que era R$ 150. Achei muito barato. Daí ela falou: “Olha, tem a água que é ligada como comércio que é mais R$ 50. Mesmo se você usar a água muito pouco vem R$ 50”. Eu tinha uns livros meus amontoados lá em casa, doido para expor eles ali. E tinha outras coisas, por exemplo: aqui a gente vende roupa, eu era patrocinado por uma marca, ainda sou, e tinha muita roupa dela nova, que nunca tinha usado. Daí falei: “Pô, podia montar uma lojinha, coloco algumas roupas”. Porque eram umas roupas da moda, da conduta que o pessoal do hip hop gostava de usar. E pensei: “Ponho umas roupas que eu tenho novas, ponho à venda, ponho os livros que tenho meus. Vou montar uma livrariazinha ali e tal e aí vai ser nosso escritório”. O motivo de querer ter o meu escritório é porque eu morava numa casa de dois cômodos, que era muito apertada. Meu filho cresceu e eu não podia mais morar nessa casa, não estava dando mais. Estava dando muita entrevista e com muita reportagem na televisão. Eles queriam ir no Itaim Paulista, porque eu era um escritor da periferia. Ficava incomodado quando eles iam na minha casa e ela virava o centro da matéria, e não o meu trabalho. Começavam a falar do córrego que estava passando atrás. O cara começava a falar do grafite que tinha na parede da cozinha, que era a sala, a cozinha, o escritório, era tudo. E, assim, eu estava achando chato levar as pessoas na minha casa. Aí montei a loja para ser meu escritório. Quando alguém quisesse me entrevistar, ia na livraria. E a livraria ficou dando prejuízo por três anos. Eu já estava começando a trabalhar na TV Cultura e tirava um pouco do que ganhava para bancar o prejuízo de R$ 300 a R$ 400 por mês. Achava que ela um dia ia decolar, só que essa decolagem nunca veio, porque ia muita gente lá, só que as pessoas não compravam, meu! As pessoas não tinham dinheiro no bolso sobrando. Era mais as pessoas do hip hop. Tinha gente que frequentava a livraria, mas nunca comprou nada e eu vou falar o que pro cara? “Ah, não vem aqui?”. Sabe, não dá. O cara era mó gente boa, batíamos altos papos. Ele ia no bar comprar cerveja para nós, mas não comprava um livro. Fazer o quê? É lógico que vendia alguma coisa, mas não o suficiente para pagar o aluguel e as outras despesas. Antes de falir eu montei a loja dois, aí minha mulher falou: “Meu! Uma loja não está dando, vai montar duas e uma perto da outra?”. Eu disse: “Não, mas é outro público”, porque tinha um cabeleireiro e eu pensei que o pessoal que frequentava o lugar geralmente tinha uma graninha a mais. Fiz a inauguração, que acabou virando um churrasco. O cara tinha mais uma sala mais para o fundo e, nas primeiras duas semanas de trampo, de repente ele fechou tudo. Mas um dia a gente começou a tomar uma cervejinha, eu fui lá no fundo e descobri que o cara tinha montado um bagulho de maquininha de caça-níquel. Falei: “Puta cara! Como é que você botou o caça-níquel aqui sem me falar? Tá maluco, meu? Vem aqui uma porra de uma polícia, estoura isso aqui, vem com o Datena. Os cara vão me fritar, mano, perco meu emprego lá na TV Cultura envolvido com essa merda aqui que eu nem sabia que você montou”. Aí cheguei na minha mulher e falei: “Ó mano! Vou fechar a loja lá”. Olha que tinha duas semanas. Eu tinha gastado pra fazer a festa de inauguração, pra fazer um grafite gigante na parede e o primeiro aluguel, uns R$ 700. Aí eu cheguei na minha mulher e falei: “Mano, vamos fechar, porque se o bagulho cai, nós cai junto e não temos grana pra repor”. Ela falou: “Sabe de uma coisa? Vamos fechar as duas”. Eu trabalhava aqui em cima [no prédio da livraria no Bixiga], no terceiro andar, que é a produtora que fazia o meu quadro na TV Cultura, a DGT Filmes. Quando saí do meu último emprego, comecei a fazer um frila aqui, de 14h a 19h. Eles me davam uma merreca por semana, pagavam minha condução e eu vinha mais cedo para o trampo. Só precisava estar aqui às duas horas, mas vinha mais cedo para o Centro, fazia outras coisas e depois vinha para cá. E quando eu ia fechar as duas lojas do Itaim, surgiu uma sala aqui no primeiro andar. A sala era menor que essa, e falei: “Pô, mano, daria uma livraria”. E tinha uns carinha aqui nesta sala que não estavam conseguindo pagar o aluguel. Eles ficaram de dar a resposta se desciam. Se ficassem aqui, eu iria alugar a sala de baixo, e era a resposta que estava esperando, porque aqui em cima era caro demais. Os caras resolveram descer, e a única sala que ficou vazia foi esta. Aí o Toni falou: “Buzo, já que você quer montar a parada, monta na grande mesmo! A gente faz um valor menor do que o normal, e aí depois se você estiver estabilizado a gente aumenta um pouco”. Combinei um valor com ele que era alto para mim, mas: vamos tentar? Vamos tentar! Foi no carnaval de 2010. E como que eu vou trazer as pessoas aqui para a livraria se ela não é na porta da rua? Sabe? É difícil, poxa. Enxergar eles não vão. O que eu comecei a fazer? Comecei a fazer evento aqui. O evento é por quê? A livraria sempre teve isso, né? Lá no Itaim Paulista a gente fazia o Encontro com o autor: a Érica [Peçanha], o Ferréz, o Sacolinha, todo mundo já foi lá como convidado. E aí eu comecei a fazer o Encontro com o autor aqui, que depois virou Sarau Suburbano, porque no final a gente sempre declamava as poesias. E aí o pessoal falou: “Mas por que você não faz um sarau?” Eu não queria fazer, porque eu ia em outro sarau e já estava contemplado. Ir nos outros saraus já estava de bom tamanho pra mim. Ter um sarau, eu imaginava como um trabalho a mais, mas acabei fazendo o Sarau Suburbano. Esses eventos, lançamentos de livros, CDs, outros saraus e debates que a gente faz é que trazem as pessoas pela primeira vez. Elas muitas vezes conhecem a livraria por causa do Sarau Suburbano e depois voltam pelo conteúdo da loja. Nesse ritmo, a gente graças a Deus tem conseguido se manter. Aqui continua sendo meu escritório, então durante a semana o movimento é menor, aparece uma pessoa ou outra. Tem o pessoal do prédio que frequenta por causa da bombonière para tomar um refrigerante, comer um chocolate, e fica um movimento mais tranquilo do que nos dias de evento. Em dias de evento lota! O cara chega aqui e fala: “Puta! O Buzo estourou, está vendendo horrores!”. Mas pô, é nos dias que tem evento. No dia a dia as pessoas vêm esporadicamente. Tem gente que vem aqui e compra um livro, tem gente que vem aqui e compra uma camiseta e tem gente que vem aqui e faz compra grande. A Ação Educativa compra livros em quantidade para os educadores, para usar na Fundação Casa. Hoje a livraria está empatando. Começou a empatar. Se eu dependesse da livraria para sobreviver, já teria falido lá no Itaim Paulista, né? Mas aqui no Centro eu já teria falido também. É muito triste saber que dificilmente outra livraria com esse perfil vai sobreviver. É antes de tudo uma guerrilha para manter isso aqui. E aí virou uma questão de honra, a gente não fecha isso aqui nem se… pode esquecer. A gente vai ficar aqui.

Figura 4: Livraria Suburbano Convicto (foto: Marilda Borges)
Figura 4: Livraria Suburbano Convicto (foto: Marilda Borges)

Você não falou em movimento da Literatura Marginal. Do jeito que você conta a história, que vai surgindo um aqui e outro ali, não é exatamente um movimento, mas vem um de cada lado e compõe uma cena literária da periferia, que é a grande novidade.

Alessandro Buzo – Não era o que os outros esperavam.

Isso diferencia uma geração que passa a se identificar com a literatura, a querer se tornar escritor? Para seus pais ou avós era muito mais inacessível?

Alessandro Buzo – Primeiro fator é: há dez anos começaram a surgir os livros pioneiros, que foram realmente de pessoas que, como eu, bateram em porta, derrubaram porta para fazer seus primeiros livros. E, depois, começaram a surgir outros. Eu acho que sempre… não diria sempre, mas há muito tempo tem pessoas que escrevem. Essas pessoas só tinham os seus textos engavetados. As pessoas escreviam e não mostravam para ninguém. Então, por que nos últimos dez anos mudou? Porque começou a surgir a internet. A internet começou a ficar viável, então o cara começou a escrever no blog, o cara começou a publicar no site, os textos começaram a circular. Já existia uma cena que circulava, antes da internet. Tinham os fanzines. Eu fazia fanzine, Sacolinha fazia fanzine, a Elizandra [Souza] do livro Punga fazia fanzine, o Dimenor (que é autor do Pelas periferias do Brasil vol. 5) fazia fanzine, um monte de gente fazia fanzine. O Oliveira, de Guaratinguetá, que está no Volume 5, fazia fanzine. Ele veio aqui comprar 30 livros fora a cota que recebeu para o lançamento hoje lá em Guará. Existe uma cena, porque as pessoas viram que, primeiro, começaram a surgir os saraus e as pessoas poderiam falar, então pô: “As pessoas já vão saber o que eu escrevo”. Quando eles viram que as pessoas começaram a publicar, eles falaram: “Porra, é possível publicar?! E antes de ser possível publicar eu já posso publicar na internet, eu já posso fazer meus contos circularem”. Então um foi virando referência para o outro: “Pô, mano, o cara fez daquele jeito”. “O cara lançou com o dinheiro do próprio bolso”. “O outro fez um projeto para o Vaz e lançou vários livros”. “O outro é o Allan da Rosa, lançou vários livros”. Começaram a surgir os “Allan da Rosa” da vida, começaram a surgir os “Ferréz” da vida, que começaram a reproduzir, até eu, começando da periferia. Então, eu acho que antes da nossa geração já tinha um monte de gente que escrevia, acho que desde os anos 60/70 já tinha muita gente que escrevia. Era uma minoria? Era uma minoria! Hoje tem mais gente? Hoje tem mais gente porque existe toda essa cena, pô! O cara tem onde mostrar, o cara existe! Por exemplo, Manda busca, um livro do Luan [Luando], do Sarau do Binho; a história dele de vida e a trajetória dele… ele era mais um cara comum de periferia: um cara negro, pobre, com defeito na mão. Pô, cara! Tudo isso, sabe? Mas a sociedade recrimina tudo, preconceito racial e mais o preconceito dele ser deficiente. Era para ele ser um cara comum da periferia, só que a literatura trouxe outras coisas para ele. Ver o Luan declamando é a coisa mais linda do mundo, ele declama com a alma. E o Luan é uma peça de uma engrenagem. Essa engrenagem tem vários saraus, e tem o Sarau do Binho. O Luan é frequentador do Binho, mas vai a vários outros. Ou seja, os caras circulam, vira uma rede, sabe? Hoje você vê o cara! Você pode ver o Luan na Brasilândia, você pode ver o Luan aqui no Bixiga, você pode ver ele na casa dele, que é o Sarau do Binho. Daí, depois de tanto mostrar a cara e mostrar talento – tem várias pessoas que admiram ele, pois ele lançou o seu livro –, é meio que passar para um patamar seguinte, entendeu? Porque pô, poeta bom declamando em sarau tem um monte. O cara vai ser poeta de sarau, sabe? É maravilhoso! Ter sarau e ir lá declamar. Só que ao lançar um livro, ele passa a ser dos autores publicados. E por que o Luan virou escritor? Do mesmo jeito que eu. Pegando o trem lotado, ganhando pouco, usando droga. Não era para ter virado escritor. A gente é meio que defeito de fabricação, entendeu? Mas por que a gente começou a escrever? A maioria dos escritores periféricos? A gente usou um texto para fazer protesto, cara, porque tomava porrada de todo o lado.

Essa literatura me faz lembrar do caso do Ferréz, que foi processado por aquele conto que escreveu na Folha de São Paulo, sobre o assalto sofrido pelo Luciano Huck. Essa literatura pode ser fora da lei também. Ela pode interferir?

Alessandro Buzo – Ah sim! Pode ser fora da lei, pode ser marginal. Os nomes são muito contraditórios dentro dessa cena. É porque tem gente que não gosta do nome literatura marginal, o Sacolinha não gosta, o Sérgio Vaz não gosta e não usa. Outros chamam de literatura periférica, né? Outros chamam de divergente e tal, eu não me incomodo com nenhum dos nomes. Para mim, é marginal porque é marginal mesmo, porque a gente está à margem da sociedade; é periférico porque é periférico mesmo e divergente, qualquer outro nome que surgiu, nenhum deles me incomoda. Todos cabem na nossa literatura.

Literatura brasileira te incomoda?

Alessandro Buzo – Não, literatura brasileira é maravilhoso! Eu acho que o que a gente faz é só literatura. Pode chamar do que quiser, eu gosto de literatura marginal e uso, não tenho nenhum problema com isso.

Há influência do hip hop na sua produção literária?

Alessandro Buzo – Ah, tem total! Antes de começar a escrever, eu comecei a ouvir rap. E aí comecei a ouvir letra de rap e tal. Pô, os caras falavam as coisas que eu queria falar, sabe? As músicas! Tem um texto que chama “Facção Central, Papa, Bush…”. O Papa não era o Bento XVI… era o Bento XVI, né? Sei lá se era o Bento XVI ou era outra pessoa. O Papa veio noBrasil. O Bush, que era presidente dos Estados Unidos, veio no Brasil, muito próximo. E eu estava ouvindo um rap lá na livraria Suburbano de Itaim. Tava um frio! Imagina um dia frio. E eu ouvindo Facção Central e lendo, no jornal, a visita do Bush, o protesto que teve e tal. E comecei a lembrar, a música falava assim: “Hoje Deus anda de blindado, cercado e protegido por dez anjos armados”, queria dizer que Deus tinha que hoje andar com segurança. Aí eu pensei, poxa, se Deus precisa andar de segurança… e comecei a lembrar do Papa que andou no meio do povo num carro blindado e apareceu no mosteiro de São Bento, com uma tela blindada na frente dele. Se o Papa é o que mais se aproxima de Deus – pelo menos para quem acredita nisso –, então o Papa tem que andar blindado, né? Então era uma verdade o que eu estava ouvindo na música. Pensei, mano, mas o Bush, que era o diabo; Papa é Deus, Bush é o diabo. O Bush também tem que andar armado com segurança. Então falei assim: “Poxa, pelo menos no tratamento, aqui em São Paulo, Deus e o diabo têm o mesmo peso. Os dois têm que andar armados”. Daí saiu o texto que chamava “Facção Central, Papa, Bush…”. E comecei a usar várias vezes música de rap para influenciar um texto. E o livro dotremtambém teve uma influência da música do RZO, O trem. Coloquei a música no meu primeiro livro, sem pedir autorização para o grupo. Aí eu saí numa matéria na revista Rap Brasil, que depois virei repórter. Hoje conheço todo mundo, todos os grupos, e acho que me fiz conhecer por eles também. O livro Hip hop dentro do movimento só pode existir porque eu conheço essa gente. Entrevistei 70 pessoas do Brasil inteiro, entre artistas e militantes. Tem gente do Acre, da Bahia, do Rio de Janeiro, de São Paulo. É um livro de entrevistas e eu costuro por assuntos.

Como a relação com outros escritores altera a sua escrita?

Alessandro Buzo – Ah! Eu leio muito, né, cara? Li quarenta livros este ano. Então é lógico que, quanto mais você lê, mais te influencia. Alguns te influenciam mais diretamente e outros indiretamente.

Estou falando mais do movimento mesmo. Do Sérgio Vaz, do Ferréz. Se vocês realmente conversam sobre o tipo de escrita?

Alessandro Buzo – A gente tem um respeito mútuo, sabe? Uma admiração cada um pelo outro. Eu sou muito amigo de todos eles assim. Me dou bem com todo mundo. Sou um cara muito fácil de se relacionar e tal. Cada um tem sua particularidade. Sérgio Vaz fica mais lá no quilombo dele, sabe? Ele nunca frequentou aqui, por exemplo. A gente tem um distanciamento que às vezes é porque estou fazendo um milhão de coisas e ele está fazendo um milhão de coisas também. A gente está bem afastado por causa disso. Agora, com outros a gente acaba ficando mais próximo porque tem feito, ultimamente, juntos. O Ferréz veio aqui na livraria, fez leitura do livro dele que ainda nem foi publicado. O Sacolinha, uma vez ou outra. A gente se fala se precisar, se tiver alguma coisa para somar para o outro e tal, a gente se fala. A falta de proximidade… pô, eu passo um tempão sem ver o Sacolinha e sou super amigo dele. Mas, pô! O Sacolinha está lá em Suzano, sabe? Então, ele está fazendo o corre dele lá, o Sérgio Vaz está fazendo o dele, eu estou fazendo o meu, o Ferréz está fazendo o dele, o Allan da Rosa, que era muito presente no sarau, sumiu, foi resolver outras coisas. Mas a gente sabe o que o outro está fazendo pela internet. Existe o respeito mútuo e uma admiração mútua entre todos nós. Briga não tem, briga declarada com ninguém. Assim, o movimento é de conciliação e não de separação. Uma coisa que faz que o outro não acha legal, sabe? Isso é coisa da vida mesmo. Então, se falta um pouco de proximidade é porque também a gente está fazendo coisa demais. Eu mal dou conta da minha agenda. Ah, meu! A Mostra da Cooperifa vai ter um monte de coisa, mas eu não sei em que dia eu vou poder ir. Porque se eu olhar minha agenda, amanhã estou de folga, porque caiu uma gravação no dia e pode ser que tenha outra, mas, se eu folgar amanhã… faz mais de três semanas que eu não tiro um dia de folga, porque eu gravei para a TV nos últimos fins de semana. Eu mal consigo cumprir minha agenda que é coisa pra caramba, cara. Então pô, se amanhã eu conseguir ficar de folga, se não confirmar a gravação, eu poderia ir em algum lugar, mas não vou, porque eu preciso descansar, sabe? Então, assim, hoje está bacana? É legal? Está, mas é cansativo. Então, se existe algum distanciamento é porque todo mundo está trabalhando muito. É o momento de trabalhar mesmo.

Figura 5: Grupo de pesquisadores em literatura com o entrevistado Alessandro Buzo (foto: Marilda Borges)
Figura 5: Grupo de pesquisadores em literatura com o entrevistado Alessandro Buzo (foto: Marilda Borges)

* Alexandre Graça Faria é professor de Literatura Brasileira na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e pesquisador do CNPq.

** Érica Peçanha é doutora em Antropologia Social e pós-doutoranda em Educação pela USP. Autora de Vozes marginais na literatura e diversos artigos sobre produção cultural da periferia paulistana.

*** Fernanda Pires Alvarenga Fernandes é doutoranda em Estudos Literários na UFJF e autora do livro Ponto de partida, um país em cena: identidade e cultura contemporânea no teatro musical.

**** Ricardo Ibrhaim Matos Domingos é doutorando em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e Mestre em Estudos Literários pela UFJF.

***** Waldilene Silva Miranda é doutoranda em Estudos Literários pela UFJF. É autora do artigo Intelectuais “da periferia”: uma análise das performances de Ferréz e desenvolve estudos relacionados à cultura brasileira contemporânea.

Nota

[1] Colaboraram na transcrição: Bruna Garcia, Márjori Mendes e Monique Ivelise.

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Apresentação | André Villas-Boas

Esta edição da Z Cultural é dedicada ao design visual – expressão mais abrangente do que design gráfico por alcançar também projetos de design que vão além da veiculação via impressão, como as mídias digitais e audiovisuais. O critério para a seleção dos textos foi o de abarcar alguns dos mais frequentes campos de estudo da jovem produção acadêmica na área – jovem porque, embora a graduação em design já tenha alcançado os 50 anos, sua produção acadêmica só tomou fôlego em meados dos anos 1990.

Assim, estão aqui presentes estudos e narrativas que focalizam a tipografia, o design gráfico, o design digital e a teoria do design. Sendo o campo assumidamente interdisciplinar, estão presentes nos artigos categorias e metodologias originárias de outras áreas, como a sociologia, a filosofia, a literatura, a pedagogia, a ergonomia, a informática. E, para não deixar de lado interfaces que sempre rodeiam a nós, designers, três dos oito artigos se debruçam sobre objetos de estudo que pertencem a outros campos de atividade: o ensino, a editoração e a ilustração.

André Villas-Boas (Organizador)

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O design como “máquina de guerra”: reconfigurando a téchne e a ars | Alexandre Schiavoni*

O design neste artigo será entendido como “máquina de guerra”, no sentido de atividade projetual que possui uma dimensão estratégico-política. Essas ideias fortes estiveram presentes nas categorias de téchné e ars utilizadas da Antiguidade ao Medievo. Este texto é também uma reflexão que defende a hipótese de que na ideia contemporânea de design atuam três registros distintos: se, em um primeiro momento, ele é a atualização dos conceitos de téchne e ars; em outro, o design não é redutível e nem tampouco sinônimo das noções modernas de arte, técnica, tecnologia e ciência, ainda que estas estejam contidas no próprio conceito de design; em um terceiro, o design se apresenta como campo profissional aberto e móvel para onde convergem distintos saberes, ou seja, design é devir.

A relação do design com a arte, a técnica e a tecnologia tem sido bastante problematizada[1]. Certamente não são discussões menores, uma vez que há um consenso sobre a importância que esses elementos têm no fazer projetual. Contudo, há que se chamar a atenção para o fato de que há outros campos de produção de saber que também realizam interfaces complexas, difíceis e/ou interessantes com o design.

Pelo fato de se encontrar no entroncamento para onde convergem diversos saberes, o design se apresenta como um campo interdisciplinar por excelência (Villas-Boas, 2009). Esta é, sem dúvida, sua marca fundadora. Contudo, essa fluidez pode apresentar-se como problemática quando se percebe que há uma miríade inumerável de profissionais que reivindicam parentesco, ou mais que isso, filiação direta mesmo, com o fazer do design.

Não se pretende aqui definir o design – que na maior parte das vezes, habita uma região nebulosa –, mas procurar tornar mais clara uma configuração histórica que ele tem assumido na produção de conhecimento na contemporaneidade. Essa configuração, se não delimita o design, ao menos aponta para alguns lugares que ele pode estar ocupando no quadro da produção de saberes.

Muito da curiosa configuração do design contemporâneo remete à noção de téchne utilizada pelos gregos antigos. O fato de que só muito recentemente tenha se forjado um conceito – design – que, em alguma medida, procurou dar conta da multiplicidade do fazer projetual (Burdek, 2010, p.13-16), corrobora com este retorno aos gregos que aqui se propõe.

Quando téchne não é técnica nem arte

Da Antiguidade Clássica à Renascença não se fazia distinção entre arte, técnica, tecnologia; entre ciências aplicadas e ciências puras ou entre belas-artes e artes aplicadas. Na Antiguidade, os gregos utilizavam a expressão téchne para se referir àquilo que identificamos hoje como saberes autônomos, tais quais arte, arquitetura, engenharia, design, publicidade, propaganda etc. A expressão grega posteriormente seria traduzida para o latim como ars e utilizada até fins da Idade Média. Numa apreensão rápida poderia haver a tentação de traduzir téchne  por técnica e ars por arte, mas isto seria um equívoco. (Contudo, frequentemente estes dois conceitos, que originalmente possuem o mesmo significado, assim o são traduzidos). Melhor seria respeitar o valor semântico das duas expressões, que apontam para um mesmo significado. Falar de téchne ou de ars, é falar da mesma coisa, é, também, reportar a conceitos de difícil tradução. Talvez, por esta dificuldade, já se pode vislumbrar uma certa empatia entre estes conceitos e o design.

O primeiro autor a utilizar a expressão téchne foi o historiador Heródoto, definindo-a como “saber fazer de forma eficaz”. Já para Platão a téchne estaria ligada “à realização material e concreta de algo” (Dias, s/d). Há em ambas as definições a dimensão da realização de uma atividade, ou seja, a téchne é ação que extrapola o plano da contemplação e da meditação (Dinucci, 2008). Não que ela não se dedique à contemplação e à meditação, mas, efetivamente, objetiva a realização de um fim prático, que pode ser material ou intangível. Pode-se, desse modo, se pensar na téchne como uma atividade também ligada à política no sentido de estratégia. No mundo grego a participação do cidadão na pólis exigia a construção de um discurso e, consequentemente, de toda uma tecnologia voltada para o pensar e o agir. A filosofia se constituirá nesta grande “máquina tecnológica” que auxiliará a condução do homem livre na politeia. A téchne partilha, desse modo, o fazer prático com a filosofia, mesmo estando esta mais afeita ao pensar, ao especular, que também é uma atividade, mas de outra natureza porque não visa a um fim material.

A téchne, por estar sujeita a regras sistemáticas de observação, de execução e de repetição, está ligada a um tipo específico de pensamento (episteme) e é capaz de produzir discurso sobre o fazer (logos). Assim, ela se apresenta porque uma das suas condições de existência e de afirmação está na possibilidade de transmissão desse saber, ou seja, o technites, aquele que exerce e ensina o seu ofício, não o faz com base apenas na sua experiência particular, mas sim calcado na extrapolação dos casos individuais visando certa universalidade. O profissional das technai é um observador atento do seu mundo e do seu tempo. Observa e age sobre a natureza quando transforma a matéria em produto; interfere na esfera humana quando coloca em circulação aquilo que produziu.

Desse modo, a téchne, concebida como ação humana, se opõe, por um lado, à ordem e aos movimentos da natureza e, por outro, ao caos.  Distancia-se, ainda, do mundo divino, pois as technai desse plano produzem coisas belas, justas e verdadeiras. Sendo ação humana que transforma a matéria da natureza – evidentemente, o faz de forma eficaz, pressupondo uma episteme e um logos – a téchne está firmemente ligada à poiésis, à produção.

No livro X da República, Platão (1997) elabora uma hierarquia para a poiésis (produção) e estabelece sua correspondência com a teoria. Na relação desta com o mundo das ideias, o filósofo identifica três níveis de teorizações: o “saber dos artistas”, a episteme e a téchne (Santaella, 2000). Como o resultado da atividade do artista não está relacionado com a realidade do mundo das ideias, ele se dedica à geração tão somente daquilo que Platão denomina de simulacro. O artista, na sua prática, procura imitar, mimetizar a natureza percebida como realidade verdadeira; estabelece com ela uma relação direta simulando aquilo que os olhos captam. Ora, sendo a realidade uma sombra do mundo verdadeiro, que para Platão é o mundo das ideias, o artista produz, por assim dizer, a cópia da cópia. É um gesto nefasto, na visão platônica, uma vez que o artista, com sua obra, reforça o engano da própria realidade e distancia ainda mais os indivíduos da verdade.

Por conta dessa deficiência, a ação do artista é excluída do âmbito das téchne: na sua poiésis (na produção da obra) o “saber dos artistas” não exige uma téchne que justifique este nome. Por outro lado, o conhecimento produzido pela episteme é um saber demiúrgico, porque possibilita pensar o “ser” tal como é por natureza. O demiurgo, ao criar as coisas, o fez acrescentando-lhe suas essências, tornando-as efetivamente verdadeiras. Esta verdade essencial habita o plano das ideias e é este plano ideal que a episteme investiga. Já o conhecimento elaborado pela téchne é diferente daquele da episteme, pois só se aproxima do divino, é um saber de ordem humana. A téchne busca vislumbrar o “ser” na sua integralidade, mesmo não o conseguindo tal como o fazem os deuses, mas se distancia do “saber dos artistas” porque interfere e lida com a natureza, procurando não mimetizá-la, mas transformar a matéria dela extraída. Ainda assim, a poiésis das technai é limitada internamente por um saber-fazer que não lhe permite atingir plenamente o mundo das ideias. Nisto, a episteme lhe supera.

Vê-se, então, que na hierarquia platônica a poiésis demiúrgica, por ser divina, é aquela que cria as essências do mundo verdadeiro, a esfera das ideias. A poiésis epistêmica, por se constituir num grande esforço do pensamento, se aproxima da produção demiúrgica. E a poiesis da téchne, afastada da demiúrgica e atuando no plano humano, transformando a matéria da natureza em algo útil, belo e verdadeiro, somente pode ser assim denominada, se possuir uma episteme que lhe seja correlata.

Platão identifica, ainda, três formas que a téchne pode assumir: a utilitária, a militar e a do governo dos homens. Evidentemente que já se está no Período Clássico e as transformações pelas quais passa o conceito de téchne estão a refletir as mudanças ocorridas no plano social e político de Atenas. Algumas modalidades de poiésis, que pertenciam no mundo pré-socrático ao campo da téchne como, por exemplo, a agricultura e o artesanato – sistematicamente foram banidas desse espaço. Ao mesmo tempo se observa nesta operação a emergência de um processo classificatório e hierarquizador dos campos do saber. Contudo, sobrevive no registro do pensamento racional platônico, senão como resquício, ao menos como impossibilidade de exclusão, algo daqueles fazeres outrora pertinentes ao mundo das technai (apud Barbosa, 2003).

É, contudo, Aristóteles quem vai fixar um sentido amplo para téchne e que durante séculos marcará o pensamento ocidental. Segundo Aristóteles, (…) a experiência quase se parece com a ciência e a arte. Na realidade, porém, a ciência e a arte vêm aos homens por intermédio da experiência, porque a experiência (…) criou a arte, e a inexperiência, o acaso. E a arte aparece quando, de um complexo de noções experimentadas, se exprime um único juízo dos casos semelhantes (Barbosa, 2003, p. 55).

No trecho citado, téchne foi traduzida por arte, como comumente tem sido feito, e episteme por ciência. Contudo, traduzir téchne por arte também se mostra insuficiente para dar conta da complexidade do conceito. Em todos os casos, téchne e episteme são superiores à experiência, ainda que dela não prescindam.

Caso seja correto identificar a produção plástica, escultórica, arquitetônica e dos objetos de uso cotidiano do mundo antigo como realização da téchne, também o será quando identificarmos as artimanhas de Ulisses narradas por Homero na Odisseia. Este era apresentado como um mestre da téchne porque possuía grande poder de convencimento sobre os homens. Também era mestre na arte de safar-se das dificuldades que lhe impunham os deuses. Medeia, ela também uma mestra da téchne, a utiliza para se vingar de Jasão, seu marido traidor, ao orquestrar uma terrível vingança: matar a futura esposa de Jasão e, lhe infringindo dor maior, assassinar os próprios filhos que com ele teve. Tem-se aí o caso de um domínio de saber ligado à magia e, para os gregos, isto também é possuir téchne.[2]

A téchne fazia parte do mundo das realizações materiais, tanto quanto do espaço da política ou da filosofia. Era um saber-fazer de um modo especial, pois requeria uma série de habilidades estudadas e aprendidas. Aquele que domina determinada téchne, o faz ultrapassando o conhecimento adquirido apenas pela experiência, porque o “faz bem” e porque estudou e a aprendeu.[3] Não se restringe apenas ao ato de produzir (poiésis), mas é saber fazer coisas a partir de reflexão e planejamento. É mais do que possuir a simples habilidade de fazer, pois demanda atividade intelectual e, consequentemente, produção de um determinado saber. Neste sentido, a téchne supera a empiria, ou seja, apenas saber-fazer através de um aprendizado puramente técnico, desprovido de pensamento. Vê-se, então, em todos os casos, desde Platão a Aristóteles, a profunda semelhança com o ofício do designer. Ele não é e nem se apresenta com um “prático” que apenas domina certas técnicas ou certas tecnologias na elaboração do seu projeto. Há sempre uma grande carga reflexiva naquilo que resulta como produto final da atividade projetual.

Aristóteles, no terceiro capítulo do livro VI da Ética a Nicômaco, afirma:

Toda téchne versa sobre a produção, sobre o emprego de técnicas e sobre o teorizar como se pode produzir ou se produz algo do que é suscetível tanto de ser como de não ser, e cujo princípio está naquele que o produz e não no produzido (Aristóteles, 2001, p. 4).

A passagem é rica. Aristóteles enfatiza o caráter teorizante da téchne para além da aplicação pura e simples de técnicas, estas podendo ser acessadas pela experiência. Chama a atenção para o fato de que o locus de força no uso das téchne não está no produto, mas no sujeito que o produz e no fim a que se destina. É ele, o technites, que tem o poder de agir sobre a matéria (seja ela concreta ou intangível) transformando-a. Para usar uma linguagem própria do nosso tempo, pode-se dizer que na passagem acima, Aristóteles se refere à téchne como produtora de um saber que se utiliza de método (como se pode produzir ou como se produziu algo) e teoria (do que é suscetível tanto ser como de não ser) para realizar seu fim. Por isso, afirma mais adiante, ela é superior à experiência, mas dela não prescinde.

Ao estabelecer regras, a téchne se apresenta como uma atividade vinculada à experiência e, por oposição, contrasta com o acaso, com o espontâneo e com o natural. Liga-se, desse modo, ao artificial; àquilo que é produzido e feito a partir do estabelecimento de certas regras. Contudo, a téchne prepondera sobre a experiência porque se utiliza de recursos que em muito a extrapolam. A experiência por si só não seria suficiente para a realização plena da téchne. Aquilo que atualmente denominamos de arte estava impregnada pela téchne para os gregos. Do mesmo modo a arquitetura, a engenharia ou mesmo a confecção de um móvel ou uma peça de vestuário.

Toda téchne pressupõe a produção de saber, mas difere da episteme porque esta última vincula-se exclusivamente à produção de conhecimento em estado puro. Em todo caso, ambas se referem ao conhecimento do universal. Tanto téchne como episteme, porque podem e são aprendidas através dos estudos, e são acessadas a partir de um logos (discurso), diferem da experiência e, por isso, lhe são superiores. Era estranha a sufixação de téchne com o conceito de logos – tal como se fez na Modernidade com a criação do conceito de tecnologia – uma vez que para a realização do primeiro se pressupõe obrigatoriamente o uso do segundo (Brandão, 2010).

Em síntese, o conceito de téchne, como nos alerta Vargas (1994), ultrapassa em muito a noção moderna que se tem de arte e técnica:

As “techné” gregas eram, em princípio, constituídas por conjuntos de conhecimentos e habilidades profissionais transmissíveis de geração a geração. São desse tipo de saber a medicina e a arquitetura gregas. Também são “techné” a mecânica, entendida essa como a técnica de fabricar e operar máquina de uso pacifico ou guerreiro, e os ofícios que hoje chamamos de “belas artes”. Ao lado dessas havia também, uma “techné” exata como, por exemplo, a utilização das matemáticas na agrimensura e no comércio. Mas, não se deve entender “techné” sempre como um saber operativo – manual. Com efeito, o conceito de “techné” é mais extenso (Vargas, 1994, p.18).

Quando ars não é arte nem técnica

Posteriormente, o conceito grego de téchne será traduzido para o latim por ars e será utilizado até o século XVIII. Na Idade Média, ganha variados usos significando, em linhas gerais, a arte de bem fazer algo, isto é, o conceito de ars continua com a mesma acepção e atributos da téchne. Desde a ars amandi dos romanos, passando pela ars mechanica dos construtores de catedrais, chegando à ars moriendi dos monges medievais, o saber-fazer vinculado à produção de conhecimento, de estudo, de observação a um conjunto de regras, continua sendo a tônica da concepção. Ainda que na contemporaneidade seja comumente traduzida por arte, não se estava a falar aí sobre a arte no sentido estrito de uma produção plástica e sim de uma prática humana pensada, estudada e conhecida.

Contudo, a ars mechanica, que não era mais do que uma das muitas modalidades que a ars incorporava, a partir da Renascença foi aos poucos assumindo as características daquilo que hoje denominamos técnica (Dias, s/d). Este deslocamento se consolida no século XVII por ocasião da elaboração da Enciclopédia, quando Diderot e D’Alembert

propuseram-se então a organizar o Dictionaire raisoné des sciences, des arts et des métiers, abarcando todo o conhecimento científico, artístico e técnico a partir do empirismo técnico, pois acreditavam que a única maneira de conhecer seria por sensações no manuseio das coisas; mas, não abandonaram o racionalismo, principalmente quando expresso através das matemáticas. Todos os conceitos derivavam de fatos, mas esses deveriam ser ordenados preferivelmente pela matemática para serem compreendidos (Vargas, 1996, p. 257).

A matematização do conhecimento sobre a natureza e sobre todas as coisas, que seria levada a efeito pelos enciclopedistas, é uma antiga aspiração do pensamento moderno, remontando a Galileu Galilei e Descartes. O desenvolvimento da reflexão sobre a cinemática e a mecânica iria engendrar, por fim, a ideia de que a natureza e todo o cosmos funcionavam de fato como uma grande máquina regida por uma racionalidade que poderia ser descoberta. O próprio corpo humano passa a ser extensivo dessa noção mecânica. Visto, percebido e estudado como conjunto de engrenagens e sistemas que se relacionam entre si, o corpo é entendido como uma máquina perfeita. A noção de saúde e doença evidentemente compartilha a lógica desta mesma metáfora: saúde, corpo-máquina funcionando dentro da normalidade; doença, máquina enguiçada. Para além do que sugere a metáfora maquínica, há novos conceitos formulados que cumprem com importante papel no plano do pensamento e da produção material a categoria do normal e do patológico (Canguilhem, 2002). Não é de surpreender, então, o importante papel que o conceito de ars mechanica vai desempenhar a partir de então.

Como se apontou acima, esse modo de pensar e organizar os saberes era desde a Antiguidade completamente estranho e novo. A novidade e estranheza não residiam no fato de classificar ou hierarquizar o conhecimento, mas sim no moto que regia este feito. Durante a Idade Média foram elaborados diversos esquemas classificatórios do conhecimento tendo como referência as Sete Artes Liberais.[4] Nestas organizações por vezes havia um espaço que era ocupado pela ars mechanica que, como regra geral, até o século XII, figurava fora do grupo das ars que se dedicavam à produção de saber.[5]

Havia projetos categorizadores na Idade Média conforme nos relata Meirinhos (2009), contudo, a natureza destas classificações em muito difere da dos enciclopedistas do século XVIII. Não há a crença no poder absoluto da razão e da ciência neste longo arco temporal que vai da Antiguidade ao Medievo. Ainda nesta última Era, o conceito de ciência é herança da scientia aristotélica e é visto como conhecimento demonstrativo, ou seja, “o conhecimento da causa de um objeto e do por que o objeto não ser diferente do que ele é” (Costa, 2009, p.132).

Está-se perseguindo, ainda que sumariamente, a constituição do conceito de técnica. Viu-se que deriva da ars mechanica medieval incorporada e valorizada pelo pensamento da Ilustração. Quando, na Era Moderna, a técnica encontrou a ciência viu-se o nascimento daquilo que atualmente é denominado de tecnologia. Responsável por fornecer suporte, status e poder à ciência, a tecnologia é, na contemporaneidade, uma técnica que emprega conhecimentos científicos. Corrige o equívoco, demoniza a falha e busca alcançar o grau zero de erro na geração e aplicação do conhecimento. Em outras palavras, afasta e elimina o patológico ao criar a norma. Esta é a utopia da técnica e da tecnologia partilhada pela ciência e pela razão, especialmente por aquela identificada por alguns pensadores como razão-prática.[6] É nesse contexto das divisões e das especializações do conhecimento que tem origem o design.

A emergência do design na Era das “divisões”

Desde seu nascimento, o design traz consigo a marca da inconformidade, da crítica e da atenção ao tempo presente. Já é bem sabido que os historiadores localizaram seu registro de nascimento no contexto da revolução industrial (Heskett, 1998; Cardoso, 2008 e Moraes, 1999). Desse modo, é um saber que nasce no campo da modernidade e por isso contém todas as problemáticas que ela trouxe consigo. Emerge o design moderno como uma crítica ao fazer das máquinas, ao produto em série, percebido como de mau gosto e desumanizado. Alargando um pouco mais o campo de visão, a crítica vai além: não somente o produto, mas também o produtor sofre dos mesmos efeitos desumanizadores do contexto industrial. No século XIX, William Morris, John Ruskin, os pré-rafaelitas e a Escola de Artes e Ofícios apontavam nesta direção e denunciavam o equívoco do exílio imposto ao “belo” pela produção racionalizada. O resgate da estética na produção da cultura material se dá, na proposta desses autores, pela reintrodução do artesanato no fazer do designer. O fazer artesanal será o responsável pelo ingresso clandestino da arte na elaboração dos objetos de uso. Abre-se novamente aí, a discussão sobre as relações entre arte e artesanato.

O gesto introdutor do valor estético, ainda que remetendo ao artesanato, aliado às transformações tecnológicas ocorridas naquele tempo é, por assim dizer, uma tática de guerra desses primeiros designers. Camuflado pelo discurso do retorno ao artesanato, não estão os designers do século XIX propondo reacionariamente uma volta ao passado? Talvez este aspecto não fique suficientemente claro em textos clássicos da história do design, que insistem em sublinhar este tipo de crítica aos proto-designers como Ruskin e Morris e à Escola de Artes e Ofícios. Primeiro porque, justamente, estes precursores do design moderno se opõem vigorosamente aos estilos historicistas; depois, porque ao se referirem ao artesanato, não o concebem apenas como técnica construtiva, tal qual é concebido na modernidade.

O historicismo, que vigorou no século XIX se caracterizou justamente por um retorno acrítico ao passado. O revivalismo do neogótico, do neobarroco, do neorrococó e todos os ecletismos, com seus excessos ornamentais no desenvolvimento de produtos, deixam em evidência a falta de uma linguagem apropriada à Era da Industrialização (Cardoso, 2008). O historicismo ou o ecletismo do século XIX são, por assim dizer, um hiato, uma perplexa pausa no campo da cultura material que se sente atrapalhada, ou até mesmo ultrapassada, pelas transformações ocorridas no mundo da técnica e da tecnologia. É, de certa maneira, este o diagnóstico que fazem os precursores do design: não há um estilo ou mesmo uma forma de produção adequada aos novos tempos. A resposta mais acabada a este questionamento é dada pelo movimento de Artes e Ofícios. Em alguma medida ele preconiza a retomada da experiência do artesanato medieval.

Ao se reportar ao artesanato medieval, buscam lá o antigo significado de ars, não o da ars mechanica, que foi traduzida por técnica, mas o conceito geral de ars, entendido como projeto desenvolvido por diferentes saberes que dialogam entre si. Poder-se-ia ir além, sem o risco de forçar o argumento ou os limites do razoável: a referência à ars medieval, lida stricto sensu pelos “pais fundadores” do design como artesanato, aponta para a necessidade da construção de um campo de saberes; um campo interdisciplinar, tal como ocorria na Idade Média.

Sabe-se que a construção de uma catedral e de todos os seus equipamentos não era obra exclusiva de um arquiteto ou de um engenheiro. Nela estavam conjugados os esforços de escultores, pintores, construtores, pedreiros, marceneiros, vitralistas, ferreiros etc. A catedral medieval é resultado de um projeto coletivo para onde convergiam variados saberes, não sendo possível, também por isso, a assinatura da obra. Não seria digno e nem ético, somente o “arquiteto” (e é sempre bom lembrar que a categoria arquiteto não existia na Era Medieval) ou qualquer outro profissional se apropriar da autoria da obra. Os mestres da forma e dos materiais que organizavam o projeto eram todos possuidores de excelência naquilo que faziam, eram mestres da ars. Não somente dominavam as técnicas de fazeres próximos ao seu, mas também as tecnologias disponíveis a serem aplicadas no projeto. Evidentemente, eram também mestres do diálogo, haja vista a necessidade do trabalho “interdisciplinar”. Era a essas noções que se reportavam os precursores do design quando reivindicavam o retorno ao artesanato medieval.

Seria incoerente e contraditório que após tantas críticas ao revivalismo, o movimento de Artes e Ofícios propusesse um simples retorno ao passado. Observando a produção material do movimento percebe-se o quanto ela está longe de ser uma cópia do modelo medieval, mas, também, o quanto a experiência do medievo lhe foi importante no sentido de acertar o passo com as necessidades impostas pela industrialização. Emerge aí a ideia do projeto como caminho possível para a construção dos objetos numa cultura industrializada.

Outro dado importante para que se questione a ideia de reacionarismo desses primeiros designers, é que, além de propor uma retomada do conceito de ars, eles apontam para os limites da técnica e da tecnologia denunciando seu primado racionalista limitante, corroborando a tese de que estão atentos ao tempo presente. A técnica e a tecnologia, com sua obsessão pelo acerto, pela exatidão, excluíram do saber, a arte e, junto com ela, boa parte do pensamento. São esses atentos designers que, observando a separação, resgatam lá do mundo antigo, as possibilidades de releitura de conceitos e práticas outrora compartilhadas que foram fragmentadas. No mundo moderno, arte, artesanato, engenharia, arquitetura e aquilo que hoje entendemos por design, foram separadas como campos distintos.

O fato é que esta separação não é nova e nem tampouco iniciou no contexto do século XIX. O status de arte maior adquirida pelas artes plásticas em relação à produção artesanal, data da época da Renascença. Ao longo do tempo essa divisão assumiria uma configuração que identifica campos de atuação distintos que foram denominados de belas-artes e artes aplicadas (Dondis, 1997, p. 7-12).

Essa separação identificada e denunciada na aurora do design moderno é, sem sombra de dúvida, uma operação insistentemente realizada no capitalismo: a instauração da lógica das divisões. Alguns autores identificam esse gesto operativo como uma estratégia de exercício de poder, de controle, de subordinação e dominação (Foucault, 1979; 1995 e Machado, 1990) ou de constituição de campo (Bourdieu, 2004). Para se concretizar os efeitos positivos e/ou negativos de disciplinamento e controle, as divisões se mostram eficazes e eficientes. Conforme afirma Perelló:

El desmembramiento de los conceptos naturales para su análisis particular e individualizado que comenzó en el Renacimiento y se extendió a lo largo de toda la época moderna (…) La profundización en el desmembramiento de los conceptos y aprehensión de la naturaleza reforzó también entre filósofos y naturalistas la conciencia de que, a la postre, el problema final del descubrimiento y la investigación de la naturaleza era su análisis, es decir, la adopción de un método analítico, para el cual se hacía cada vez más imprescindible esa fragmentación de sus partes constitutivas (Perelló, 2002, p. 13).

Esquadrinhamento, enquadramento, separação, delimitação e fixação de campo, construção e sujeição de identidades, fazem parte da lógica operativa das tecnologias de controle e poder.[7]

No nascimento do design, no século XIX, o sistema das divisões estava em pleno funcionamento. Arte, arquitetura, ciência, técnica e tecnologia são separadas na modernidade como saberes distintos e independentes. A ciência, particularmente a ciência aplicada, assume grande centralidade no fazer e no pensamento ocidental, gozando de prestígio antes desconhecido. O desenvolvimento e a aplicação de técnicas e tecnologias específicas, funda a notoriedade e garante a autoridade da ciência. De quebra, técnica e tecnologia quando se conjugam, fornecem o suporte que sustenta a falácia da neutralidade do saber científico. Compreende-se, então, porque todo o conhecimento produzido busca afirmar-se como científico: porque, via de regra, é a partir da relação estabelecida com a ciência, que se pode gozar de um status maior ou menor, possibilitando o reposicionamento de determinado saber numa escala hierárquica. Aliando o saber produzido a procedimentos técnicos rigorosos e avançadas tecnologias, constitui-se um campo fortemente blindado à crítica.

Arte, ciência e filosofia, a partir da Era Moderna, ocupam lugares distintos no espaço da produção de saberes. As divisões são realizadas não apenas no espaço de fora, nos grandes conjuntos ou fontes produtoras de saber, mas também internamente, dentro dos próprios campos já constituídos, levando sempre o mais longe possível a especialização do conhecimento. Claro está que o eixo dessas particularizações e parcelamentos se fez, na maior parte dos casos, buscando estabelecer e fortalecer o vínculo com a ciência e, por este motivo, pode ser lido como estratégias de aquisição de status e poder particulares (Foucault, 1979; 2003).

Para ficarmos num exemplo conhecido, ocorre uma separação clássica entre belas-artes – associadas a uma arte maior, a arte propriamente dita – e artes aplicadas – vinculadas à produção de objetos do cotidiano, à decoração pura e simples, também denominada de artes decorativas.

Desse modo, sugere-se neste breve artigo que o design, na maior parte do seu desenvolvimento, se constituiu como campo de produção de conhecimento que se posiciona criticamente à proposta das divisões. Nascido nesse contexto, o design ao longo da sua história tem se debatido com esta problemática. Ora obtendo mais sucesso, ora fraquejando, ora fracassando, a busca por um caminho alternativo está no DNA da profissão. Fala-se atualmente no esgotamento do projeto funcionalista. Certamente o fato do design guardar relação de maior ou menor intimidade com a arte, de se relacionar com o mercado sucumbindo ou não a ele e de manter a postura transgressora, adesista ou ingênua no fazer profissional, são índices que auxiliam a compreender a extensão do reproche dirigido ao funcionalismo (Villas-Boas, 1998).

Considerações finais

O exame dos conceitos de téchne e ars, neste artigo, visava problematizar algumas questões concernentes ao design. Do mesmo modo que traduzi-los por técnica e arte, respectivamente, se mostrou equívoco – dada a complexidade dos seus significados – tomar ou entender o design por desenho industrial, arte, técnica ou tecnologia, é igualmente redutor e limitado. Há equivalência semântica entre aquelas categorias antigas e o design contemporâneo. A polissemia destes conceitos – téchne, ars  e design, caso se lhes entenda como continentes daquilo que é denominado por arte, técnica e tecnologia – permite aproximá-los. Ainda que o design enquanto campo de produção de saber, tenha emergido no contexto da modernidade marcado pela lógica das divisões, subsiste na sua matriz a dificuldade dessa lógica se firmar plenamente, haja vista o espaço fluido e transversal em que se desenvolve a atividade projetual. Por um lado, a geografia pantanosa e permeável do design aquece positivamente a frieza do racionalismo normalizador e normatizador exigido pela técnica e pela tecnologia, quando acentua o valor do pensamento criativo e do desassossego na produção da cultura material. Por outro lado, ao se constituir como paisagem ampla, se abre à possibilidade de cooptação por outros campos e propicia também a ocorrência de ricos diálogos.

As dificuldades pelas quais se passou para firmar o sentido daqueles conceitos do passado – téchne e ars – ressurgem na atualidade com o design. Argumenta-se neste texto que essas dificuldades se instalam justamente porque esses conceitos se apresentam como devir, ou seja, como campo aberto, como espaço agônico, lugar onde se desenrolam combates. São lugares de luta e de resistência às imprecações das tecnologias de poder e de controle. Nesse sentido, conforme sugere Deleuze, por evidenciar e por exibir insistentemente sua dimensão política, o design é máquina de guerra.

* Alexandre Schiavoni é mestre em História pela UFRGS e professor dos cursos de Design e de Arquitetura e Urbanismo na Universidade Feevale (Novo Hamburgo/RS).


Referências

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Notas

[1] Veja-se, por exemplo, Moraes (1999); Campos (2003; 2009); Somma Júnior (2009); Arantes; Antonio (2003); Barbosa (2003); Melo (2003) e Dondis (1997).

[2] Maria Regina Candido (2002, p. 28) esclarece no seu trabalho a relação entre magia e téchne no mundo antigo a partir do exame de plaquetas de chumbo – katádesmos – utilizadas para se fazer imprecações contra inimigos. Veja-se, também, o excelente estudo de doutoramento de Dulcileide Virginio Nascimento (2007).

[3] Sobre a ideia de téchne em Aristóteles, consulte-se as excelentes reflexões de Garcia (2011).

[4] As Sete Artes Liberais era o modo como se organizava o pensamento e a produção de conhecimento desde a Antiguidade Clássica até o Medievo. Eram compostas pelo ensinamento do Trivium (Gramática, Retórica e Dialética) e pelo Quadrivium (Aritmética, Geometria, Música e Astronomia) (Costa, 2009, p.134).

[5] A ars mechanica foi olhada com desconfiança até mesmo quando foi incorporada na classificação elaborada por Hugo de São Vitor, que a qualificava como adúltera, explicando que “(…) o verbo grego mèchanaomai (fazer máquinas) foi traduzido em latim para moechari (ser adúltero), para opor as artes mecânicas às artes liberais” (Costa, 2009, p.135).

[6] Pensa-se particularmente nas reflexões desenvolvidas por Habermas (1987a; 1987b e 1987c) e Rouanet (1998).

[7] Para as estratégias elaboradas e praticadas pelas tecnologias do saber-poder, consulte-se Deleuze (1992; 1997) e Foucault (1979; 2003).

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Revista on-line, processos criativos 2die4 | Anna Lúcia dos Santos Vieira e Silva e Vanessa Rodrigues*

Processos e métodos

O que avaliamos não é um tipo de obra, mas um tipo de processo,
uma maneira de relacionar-se; em outras palavras,
o dinamismo ou a dialética interna de uma situação cultural
na qual a obra que estudamos (se ela é de fato o que pensamos ser)
se insere naturalmente, liga-se a um contexto, funciona (Argan, 1993, p. 22).

Em propostas que envolvem criação em seu fundamento, o processo que rege e implica conceber, projetar e realizar algo não é linear. Muitos fatores interferem no percurso processual, que apresenta um ir e vir de estímulos e respostas imprevisíveis que carregam em si a condição intrínseca de possibilidades de transformação. A revista on-line 2die4 não foge dessa lógica, que é aqui analisada em diferentes níveis de processos criativos. Em primeiro lugar, tratamos do nascimento da revista e as peculiaridades de sua linguagem. Em seguida, examinamos o processo de produção coletiva, figurado em cada edição como um único produto. O terceiro nível de análise diz respeito à repercussão que projeta a revista e a transforma a cada edição, com um foco na décima quarta edição, a mais recente.

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Estamos conscientes de que não temos acesso direto ao fenômeno mental que os registros de um processo criativo materializam, mas esses podem ser considerados a forma física através da qual esse fenômeno se manifesta, “são vestígios vistos como testemunho material de uma criação em processo” (Salles, 1998, p. 17). Observar esse fenômeno por um fundamento semiótico permite compreender uma produção sígnica em diversas linguagens vistas em continuidade: ora observando as conexões entre a criação e a realização da revista, ora como um instrumento de avaliação do produto, que é multimídia.

Lúcia Santaella (1996) apresenta três níveis de mensagens das mídias, de acordo com o esquema de Charles Morris. O nível sintático, representado na relação entre os signos, aqui corresponde ao processo de geração da revista, seu nascimento, que pressupõe a coexistência de várias linguagens e sistemas de signos que interagem entre si.

O nível semântico, a relação do signo com seu significado, no caso de uma produção coletiva, implica na observação de cada obra, original e traduzida no processo de edição, mas também no conjunto das obras inter-relacionadas em uma única edição. Afinal, cada edição possui sua característica e significado particular, como o conjunto de peças que forma um mosaico.

A relação do signo com o usuário é analisada pelos efeitos que cada edição repercute, que é o terceiro nível de mensagem, o pragmático. Ainda que esses efeitos sejam imponderáveis em sua abrangência de aferição e julgamento, fazem com que a edição seguinte seja, de certa forma, uma somatória de experiências acumuladas e um novo desafio. Nada é estático no processo, até mesmo quando chegamos à obra, que de algum ponto de vista pode ser tomada como um fim.

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Do quintal (sem categoria) para o mundo (imponderável)

Em janeiro de 2003, dois amigos que se conheceram na faculdade – design e fotografia – começam a se encontrar no quintal dos fundos da casa de um deles. O andar de cima, sobre um depósito “quase loft”, foi o espaço que localizaram, longe dos ruídos urbanos, para confabular e elaborar o que viria a ser um trabalho sem precedentes. Vanessa e Amarilio Junior são os editores da revista on-line www.2die4.com.br, nada mais que isso os identifica. Uma das justificativas é que a proposta da revista é de um trabalho coletivo, ainda que o processo de edição singularize o conjunto de trabalhos dos colaboradores em um único produto, a revista.

Do quintal e on-line, pediram para amigos e conhecidos que enviassem trabalhos de produção pessoal para que fossem publicados on-line, e deixaram claro que haveria modificações dos originais, no mínimo por adequação de linguagem, mas, mais do que esse fator, por um gozo de brincar com a obra alheia, em um processo de recriação e recreação.

Um trecho enviado por e-mail em maio de 2003 a uma das futuras colaboradoras demonstra:

(…) estou te escrevendo pq estou participando do desenvolvimento de uma screen magazine brasileira e gostaria de ter seu trabalho incluso no nosso 1o exemplar, vc pode escolher o q quiser, fotos, as aquarelas que te sustentam (eu adoraria) ou algum texto (curto!) vc q sabe (…) a quantidade fica a seu critério, vc deve ter feito sua visita a tiger magazine e entendido melhor como elas vão ficar, pode ter de 3 (acho que é o mínimo pra expor decentemente…) a X páginas se achar necessário, algumas pessoas vão contribuir periodicamente, se vc quiser ser uma delas (!)… estou enviando uma página vazia pra vc poder visualizar a proporção, pode ser (claro!) pq o meio nos permite (e nos exige!) q a gente desenvolva algumas interferências, como zoom de detalhes (qdo passa o mouse), som, animação, transparências etc, se vc quiser dar ideias ou até não quiser interferências avise, ah! diz o título, se tiver, e seu nome ou pseudônimo e e-mail pra contato, ufa!

Nesse momento ainda existe uma parcela de decisão dos colaboradores mais ativa, a revista não está formatada e o processo está aberto. De certa forma, os editores já demonstram saber o que querem: trabalhos artísticos para uma screen magazine. Entenda-se que a referência inicial é a Tiger e que o critério de “artístico” diz respeito exclusivo à eleição dos colaboradores por parte dos editores, como afirma Vanessa: “Buscamos desenhos escondidos de pessoas próximas que faziam suas obras para elas mesmas”.

Entre os colaboradores fixos há a ideia e a possibilidade de uma linguagem idiossincrática, conferida pela aproximação estética obtida na produção dos mesmos autores em diferentes edições. “A revista é nossa” é dito pelos editores para os colaboradores fixos. O trabalho é coletivo.

Um outro aspecto de decisão inicial é que a revista seria brasileira. A presença do “.br”, entre outros possíveis endereços sem a referência nacional, foi uma escolha enfática e consciente, ainda que o “.com” seja incoerente com a proposta absolutamente não comercial da revista. Mesmo com a atenção em relação à sua brasilidade, houve o cuidado de não desenvolver um estereótipo de Brasil, de modo que não há exclusividade para colaboradores brasileiros, e qualquer pessoa, de qualquer lugar, pode mandar trabalhos, mesmo que os selecionados sejam poucos. Os artistas e obras têm muitas nacionalidades. Não existem traduções para a quase totalidade das obras que utilizam a linguagem verbal, no entanto, como o domínio do artista é universal, a língua de suporte da revista é o inglês.

Em junho de 2003 foi lançada a primeira edição, com dezesseis trabalhos e nove colaboradores. Em três dias já havia mais de mil visitações de diversos países.

Revista on-line, matéria e luz em jogo

Somos fixados na imagem não porque tenhamos perdido a fé na realidade, mas porque as imagens têm agora enorme impacto sobre a realidade, a tal ponto que a antiga oposição imagem-realidade realmente não opera mais (Johnson, 2001, p. 28).

A principal diferença entre uma revista on-line e uma impressa é o meio, o canal. Como Marshall McLuhan (1974) enfatizou, a mensagem não se restringe ao conteúdo, mas está vinculada intrinsecamente ao meio no qual é transmitida.

Em uma plataforma on-line, a publicação parte dos paradigmas desenvolvidos, e já sedimentados, dos primeiros anos de uso da internet, da globalização, da interação e da interatividade. O usuário não possui um objeto-revista em mãos (mesmo que atualmente leve consigo um tablet) que pode livremente folhear, com um conteúdo exclusivamente imagético verbal. On-line, a capacidade de agregar diferentes linguagens possibilita a integração entre elas em um único trabalho, com a somatória das linguagens verbal, visual e sonora em um sistema sígnico híbrido. Cada mídia, devido à sua natureza, apresenta potenciais e limites que lhe são próprios. Esses não são nunca idênticos de uma mídia à outra, de modo que, na rede das mídias, cada uma terá funções diferenciais (Santaella, 1996).

Na 2die4, o usuário, além de um visitante do ciberespaço, é um potencial investigador. O andamento da revista não se restringe ao “clica aqui” frenético para a próxima página. Ele desliza, sinaliza, corre, fica parado. Cada trabalho sugere algum tipo de surpresa a ser revelada pela passagem do mouse na tela ou, outro exemplo, por um tempo específico de exposição da imagem, que a transforma, entre outras possibilidades de interação. O áudio não explica, comunica. O usuário apressado, acostumado com a informação imediata, certamente não apreende a totalidade de experiências que a revista oferece.

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Outro aspecto específico do formato da revista é a maneira de segui-la. Não existem atalhos óbvios além do next-back (próximo-anterior), que também pode ser reinterpretado, já que um trabalho localizado no meio, para ser revisto, necessita da sequência anterior ou posterior a ele. Não há um hiperlink do índice para a obra, crédito ou capa, como atalho direto. Não existe menu, existem caminhos sequenciais, como vemos em um trecho de e-mail, em resposta a um comentário de uma colaboradora, logo depois da primeira edição da revista.

(…) a ideia de mover-se por links na revista ainda está em pauta! … de um lado tem o fato de q não dá pra vc ir direto pra um certo ponto pq ela é digital mesmo (já q na revista impressa eu abro direto no índice e leio as colunas depois os editoriais e nem vejo o resto se eu não quiser) e isso é muito útil, por ex. gosto do fato dos “usuários” passearem pelos desenhos, ilustrações, fotos etc. para então lerem o seu texto… e outras tantas coisas neste sentido; e tem o outro lado q vc citou muito bem de q embaça na hora de rever, e é muuuuito chato… enfim, logo encontraremos um “meio termo do bem”…

As páginas, visualmente, remetem ao livro impresso, mas não funcionam como tal, e sim como moldura do espaço. Não há som nem simulação de página que vira. No espaço, velocidade, tempo e número de páginas variam de acordo com as intenções e sensações de cada obra e da unidade da edição. Nossa época realmente é a da tela. Aliás, é curioso que a mesma palavra se aplique a uma superfície que detém a luz (no cinema) e a uma interface sobre a qual se inscrevem informações (Bourriaud, 2009, p. 92).

Os aspectos materiais e virtuais da revista também se especificam quando examinamos o processo de formulação de uma edição, como veremos a seguir.

We could be begging but we’re robbing

Nos meios de transporte público de São Paulo, não raro, algum cidadão entra e chama a atenção dos demais com um discurso de mendicância ensaiado, no qual, em algum momento e por algum motivo, tornou-se padrão a frase: “a gente podia tá roubando, mas a gente tá pedindo…”.

Nos editoriais da revista, uma inversão apropriada e divertida denota o fundamento do processo criativo que se repete em todas as edições: “nós poderíamos estar pedindo, mas nós estamos roubando”.

A operação tradutora como trânsito criativo de linguagens nada tem a ver com a fidelidade, pois ela cria sua própria verdade e uma relação fortemente tramada entre seus diversos momentos, ou seja, entre presente-passado-futuro, lugar-tempo onde se processa o movimento de transformação de estruturas e eventos (Plaza, 1987, p. 1).

Sim, os editores na verdade não editam; eles se apropriam das obras dos colaboradores em um processo de transcriação. Julio Plaza (1987) compara os três tipos de tradução: a icônica, a indicial e a simbólica. A tradução icônica tende a aumentar a taxa de informação estética. Ocorre que as qualidades formais do resultado farão lembrar as daquele objeto traduzido, despertando sensações análogas, o que produzirá significados sob a forma de qualidades e de aparências entre ela própria e seu original. Será uma transcriação (Plaza, 1987, p. 93).

Os trabalhos originais são oferecidos pelos colaboradores aos editores. Estes traduzem as obras “roubadas” para a plataforma on-line, em um processo duplo de adaptação de linguagem para o suporte – especialmente porque nem todos os trabalhos são digitais – e de apropriação do próprio conteúdo, através de transformações, recriações, combinações e outras ações, não previamente acessíveis nem aos autores da obra original. Isso implica surpresa e expectativa dos próprios colaboradores pelo vir a ser de seus trabalhos.

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Tal processo de apropriação das obras permite que técnicas se explicitem em sua materialidade, uma vez que a tecnologia pode ampliar o suporte material em uma escala invisível a olhos nus. O que entendemos como suporte digital tem o potencial de enfatizar a materialidade da obra ou do modo de produção. A técnica não é mera ferramenta, é fio condutor. Não há separação entre técnica e linguagem. As expressões das técnicas analógicas ou digitais são exploradas ao máximo. O grão da fotografia, o algodão do tecido, o rastro do pincel, velhos amigos dos artistas estão aqui, para todos, em alta resolução.

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Esta combinação de tratamento e técnica se dá também com segundas intenções. Na edição número 6, ainda em tempos de acesso discado, a capa tem a animação de um aquário – peixes ilustrados a partir de fontes – e o usuário desfruta da sensação enquanto baixa os arquivos, sem perceber. A ideia não foi intencional, e só foi percebida quando a reclamação “demora pra carregar”, já esperada, não aconteceu. Nas últimas edições, esse assunto deixou de ser abordado. Bem-vinda, banda larga.

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Na mais recente edição, de número 14, boa parte dos colaboradores fixos enviou seus trabalhos com grande antecedência. Já era sabido pelos editores que, por conta da edição 13 ter levado mais tempo de maturação, muita coisa estava acumulada. Essa edição foi um marco da necessidade de constância do círculo criativo, a troca, que não pode, não deve cessar. Na publicação, o processo de trabalho é tão importante, ou mais, que seu próprio resultado; a participação intensa de todos os envolvidos é alicerce, sustentação.

Dezessete trabalhos de dezesseis colaboradores são selecionados. Ingleses, poloneses, japoneses, italianos, brasileiros de diversos cantos. Individuais, em dupla, em trio. Acrílico, óleo sobre tela, fotografia, textos, ilustrações digitais, caneta sobre camiseta, lomografia (fotografia com as características peculiares de exposição de luz das máquinas russas Lomo), nanquim sobre papel, intervenções no espaço, colagem, técnica mista, silk sobre vegetal e a tipografia das aberturas foram o conjunto técnico da edição. O despertar, as sombras, os quartos, o pedido de ajuda, o jogo das possibilidades, o que restou daquela viagem, a quebra do padrão, o tempo, o pequeno médio grande, a mesma língua, a armadura, a crucificação encarnada, o café, os pontos, de ônibus e de prostituição, são os títulos, os temas, os desabafos da edição.

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O texto de Raphael Gancz foi ilustrado, pós-leitura, em acrílico sobre tela por Andrea Lourenço, e as ilustrações, por sua vez, foram recortadas e animadas; o texto de Maria Ribeiro somado às ilustrações prontas em caneta sobre tecido de Bruno Vespucci foram fracionadas e sequenciadas; as fotografias de Felipe Bertarelli não foram cortadas e ganharam cores de contraponto; as fotografias de Piotr foram editadas, cortadas, legendadas, sequenciadas; as lomografias de Celia Ichinoseki foram animadas e ganharam cor de fundo; a ilustração em nanquim de Juliana Scernea foi recortada, animada, fracionada; as fotografias de celular de Marcy Tagawa foram selecionadas, editadas, numeradas, colorizadas; as ilustrações 3D de Liv Schlaeger foram selecionadas, coradas, animadas e sonorizadas por cortes de Hunter de Björk; a tela em óleo de Lilu foi recortada, montada, sequenciada; as colagens de Rogério Maciel foram editadas, fracionadas e sequenciadas; as fotografias de recortes colados em paredes de Eduardo Verderrame foram editadas, fracionadas, sequenciadas e condensadas em uma imagem final; as ilustrações em caneta sobre camiseta de Bruno Vespucci foram selecionadas, penduradas em cabides, que por sua vez foram pendurados em um ponto de rede na parede, fotografadas, recortadas, animadas e descolorizadas; as fotografias de Ding Musa foram selecionadas, cortadas, sequenciadas, sobrepostas e animadas; as ilustrações digitais de Vanessa foram editadas, animadas e sonorizadas por cortes de Depeche Mode;  a técnica mista de Ernesto Boccara foi desfragmentada, editada, sobreposta e animada; o silk de tipografia sobre papel vegetal de Amanda Oliveira e Vanessa Rodrigues foi recortado e sequenciado.

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As aberturas da edição foram feitas em tipografia pela editora Vanessa Rodrigues e a colaboradora Amanda Oliveira, na oficina da FAU-USP, sob orientação de professores da instituição. As placas com os títulos foram fotografadas, tratadas e editadas.

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Mas nem todas as obras originais são transformadas na edição, ainda que o propósito de mostrar uma produção como reprodução ilustrativa da obra não exista, como nas revistas de arte convencionais. Existem trabalhos que vão para a rede quase como chegaram.

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A unidade | todas as edições

O critério dos editores foi, e ainda é, o de que a produção dos colaboradores seja a mais autêntica possível. Eles conseguem isso ao eleger pessoas que produzem para si mesmas – não para o mundo nem para o mercado da arte nem mesmo para a própria revista.

Além dos editores, participam de todas as edições colaboradores fixos, que variam de cinco a oito. Eles são a estrutura das edições; caracterizam-se por uma manifestação de obras espontâneas e uma produção regida por um impulso pessoal, sem maiores intenções ulteriores. Caminhar pelas edições é também caminhar pela produção desses colaboradores que, assim como a publicação, possuem diversas formas de se expressar, por princípio e por prazer.

A cada edição, novos colaboradores, de diversas nacionalidades, formam e deformam a publicação. Boa parte expõe publicamente pela primeira vez por meio da revista, ou pelo menos pela primeira vez neste formato/plataforma.

As discussões e fluxo de criação gerados pelos colaboradores fixos e flutuantes é fundamental para a manutenção da linguagem e dos critérios de valores estéticos da 2die4. Os trabalhos chegam aos poucos, via troca de e-mails, indicações, acidentes. A preferência é para algo já feito, a que não se deu muita atenção. Aparecem nas conversas, no fundo das gavetas, no supetão. O processo é uma das características mais importantes da 2die4: o mito do artista que não permite que sua obra seja tocada dá lugar ao coletivo, ao transformar, ao compartilhar.

São expostos aspectos de forma, conteúdo, edição, criação, conceitos de autoria e coedição e alguns detalhes do processo aos novos colaboradores. Cada um responde e questiona, limita-se ou invade à sua maneira, mas sempre consciente de que a decisão final e imprevisível será dos editores.

Alguns elementos de linguagem que se repetem ou variam dentro de uma mesma gramática em todas as edições sedimentam uma identidade formal da revista: a imagem das aberturas de cada trabalho, o logo, a imagem da capa.

A imagem das aberturas, produzidas pelos editores e/ou colaboradores em técnicas analógicas ou digitais como bordado, fotografia, aquarela, pirografia, tipografia e pixel, é um ponto fundamental de amarração e identidade das 2die4. Além de conferir unidade, estes itens abrem e intercalam cada conteúdo com imagens sintéticas, poucos elementos, centradas na tipografia e no título de cada trabalho. Formam também um conjunto à parte, numa dimensão paralela de técnicas analógicas e digitais de expressão artística, emolduradas, redimensionadas pela revista. Muitas delas têm grande distância de tempo entre concepção e realização.

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A imagem da capa é sempre a última a ser escolhida, a partir de uma visão do todo. Essa imagem conversa com o logo, que aparece sobre ela. Abrir e fechar a edição é a metáfora dessa imagem. Como se vê na capa da edição 13, o logotipo da publicação foi concebido para funcionar como signo, o título vira símbolo, desenho, imagem. Sobre a capa em transparência, aplicado em uma cor diferente a cada edição, o logotipo representa, simultaneamente, o todo e a parte.

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As edições não têm quantidade de trabalhos definida. As obras chegam, são montadas, fluem algumas ideias entre os editores e colaboradores e, aos poucos, uma nova edição se forma intuitivamente.

Vista e revista, de edição a edição

A primeira edição foi ao ar em junho de 2003, com trabalhos experimentais, tanto em processo como em técnica, sendo a maior parte produzida pelos editores e colaboradores já envolvidos com o processo de criação da publicação. Na primeira, o único trabalho verbal, o texto “Autoria”, indica como esse tema será tratado nas edições seguintes.

Logo depois da segunda edição, Lee Carter, editor do conteúdo da revista Hint Mag – precursora em arte, moda e design na web, com mais de um milhão de cliques mensais – apresenta a 2die4 para o mundo e, em menos de uma semana, a revista brasileira recebe quase dez mil visitas, vindas de mais de sessenta países.

Em seguida, mais precisamente na quarta edição, Ninette Murk, editora e fundadora do projeto de artes visuais on-line Beauty Without Irony (BWI), sediado em Antuérpia, na Bélgica, partilha ideias e ideais com a 2die4. Trocam-se e-mails, trabalhos, inspirações.

Na quinta, a 2die4 surpreende os próprios colaboradores fixos, lançando uma “não-edição” de carnaval, sem trabalhos, apenas com uma imagem e som. Com data prevista para fevereiro, ficou nítido para os editores que os colaboradores brasileiros estavam em “ritmo de carnaval” e que, organicamente, não aconteceria o esperado. Foi então colocada no ar uma ilustração de porta-bandeira e mestre-sala, com a canção “Carnaval desengano” de Chico Buarque, versão instrumental, por Milton Trio Banana, e os dizeres “It’s Carnival”. A edição, desde a publicação e até hoje, é curiosamente a mais visitada.

Entre a quinta e a sexta edição, a fundação Bec Zmiana (em www.bec.art.pl) começa a trocar trabalhos com a 2die4. Instituição criada para o desenvolvimento e o avanço da arte contemporânea na Polônia, seu site foi eleito por três anos seguidos – 2003/2004/2005 – como o melhor de arte independente da Europa. Em uma publicação, comenta: “Você conhece o Brasil do futebol, do carnaval, e da arte contemporânea? A resposta vale 100 pontos e ela se chama 2die4” (Bogna Swiatkowska, Notes Bec Zmiana).

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A 2die4 segue sendo um periódico, mas sem período definido. Apenas as primeiras edições seguiram uma lógica bimestral. As edições 6 e 7 ainda mantiveram o período bimestral, com a particularidade da comemoração de um ano. São realizadas oficinas a partir de trabalhos publicados ou mesmo inéditos. Foram nessas oficinas que surgiram as aberturas da sétima edição e a caixa de cartões comemorativos de um ano.

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Na oitava edição, a 2die4 foi convidada para participar de um evento internacional de revistas de tendências em Barcelona, o CMYK. Setenta e duas revistas foram convidadas, uma única participante brasileira.

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Dois anos depois da primeira edição, a 2die4 participa de uma mesa redonda no Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona, durante o 1º Encontro Internacional de Revistas de Tendências, para discutir a publicação on-line, com a particularidade de ser a única sem fins lucrativos. Também em 2005, 2die4 é umas das publicações brasileiras selecionadas para ser exposta no Festival Internacional de Linguagem Eletrônica 2006 (File), que ocorreu no Centro Cultural do Sesi, junto à sede da Fiesp, na Avenida Paulista.

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Com a passagem do tempo e os intervalos cada vez maiores entre as edições, a décima terceira 2die4 aparece depois de dois anos, apresentando-se com o dobro do tamanho na tela mas com a possibilidade de ser carregada no mesmo tempo das anteriores, graças à banda larga. O ciclo de produção volta com a mesma irregularidade, porque poucos meses depois a edição 14 está no ar, com tipos móveis e gigas de boa vontade.

*Anna Lúcia dos Santos Vieira e Silva é doutora em Espacio Público y Regeneración Urbana pela Universidade de Barcelona e professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Ceará (UFC). Vanessa Rodrigues é especialista em Design e Humanidade pela USP e diretora da ADG Brasil desde 2009. É também coordenadora de Estratégia e Branding da Tátil Design de Ideias.


Referências

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BOURRIAUD, Nicolas. Estética relacional. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

JOHNSON, Steven. Cultura da interface: como o computador transforma nossa maneira de criar e comunicar. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

DIEGO, Jesús. Graffiti. La palabra y la imagen. Un estudio de la expresión en las culturas urbanas en el fin del siglo XX. Barcelona: Amelia Romero, 2000.

LÉVY, Pierre. O que é o virtual. São Paulo: Editora 34, 1996.

MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. São Paulo: Cultrix, 1974.

PLAZA, Julio. Tradução intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 1987.

SALLES, Cecília A. Gesto inacabado: processo de criação artística. São Paulo, FAPESP / Annablume, 1998.

SALLES, Cecília A. Crítica genética, uma introdução. São Paulo: Educ, 1992.

SANTAELLA, Lúcia. Cultura das mídias. São Paulo: Experimento, 1996.

Tempo de leitura estimado: 23 minutos

Um estudo sobre temas de História da Arte nos meios digitais | Beatriz Lagoa*

A necessidade de atualizar e reestruturar o conteúdo da disciplina História da Arte, ministrada para alunos de graduação da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) que lidam com projetos de direção de arte, redação, rádio, fotografia e cinema, foi o que motivou a conjugação de alguns temas dessa complexa disciplina aos meios digitais, que disponibilizam textos, gráficos, fotos, sons, vídeos e filmes na rede, todos passíveis de reprodução infinita e disponíveis para diversos aplicativos.

Paralelamente a essa necessidade, a reflexão sobre a construção de narrativas e recepção no ambiente digital, permeada por palestras, congressos e pelo confronto com os projetos dos colegas pesquisadores do Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC), resultou na minha pesquisa de pós-doutoramento desenvolvida no mesmo Programa, junto à UFRJ. Assim, pude aliar os estudos acadêmicos e de ensino voltados para a História da Arte à prática como designer gráfica, considerando o impacto das tecnologias digitais no mundo contemporâneo.

A possibilidade de transformação didática da disciplina – que até recentemente esteve restrita às imagens projetadas das obras, ou aos possíveis vídeos sobre os artistas, ou ainda aos textos de autores indicados em livros, todos em diferentes suportes – hoje ocorre na medida em que todas essas informações são acessíveis na rede a partir de toques na tela (Flusser, 2008). E há que considerar também a capacidade infinita de memória e representação do meio, que autoriza, não só o armazenamento de informações de toda ordem em imagens maleáveis, como também a comunicação constante em tempo real. Ambiente próprio para tratar das narrativas da arte que interrogam sobre os limites da linguagem verbal, oral ou escrita, incumbindo-se de identificar, interpretar e refletir sobre obras, cujo maior impacto diz respeito aos aspectos visuais de apreensão.

Site e construção

A pesquisa resultou na elaboração de um site de apoio à disciplina em sala de aula (www.beatrizlagoa.com.br), aliando a linguagem fragmentada e dinâmica do meio computacional, próxima da simultaneidade dos processamentos que ocorrem no nosso cérebro, a uma temática que envolve o processo histórico igualmente fragmentado e dinâmico, reinterpretado de modo a recuperar uma coerência que não deve ser fixada em um único ponto de vista.

Figura 1: Página principal do <i>site</i> História da Arte e Comunicação (www.beatrizlagoa.com.br)
Figura 1: Página principal do site História da Arte e Comunicação (www.beatrizlagoa.com.br)

Quanto à elaboração técnica do site, ressalto os cuidados com a preservação da clareza, da objetividade e da fluência, características da transmissão oral, facilitadas na rede pelos vários recursos de navegação. Foram consultados dados sobre usabilidade, visando minimizar a notória perda de objetividade inerente aos excessos de informação no meio computacional.

Dentre os dados, cito os parâmetros de interface que abrangem desde o número de toques nos enlaces para a informação desejada até a divisão em blocos de textos, com títulos e subtítulos que auxiliam a navegação quando mantidos constantemente. A importância da qualidade e do peso das imagens tanto remetem à navegação quanto à possibilidade de serem ampliadas e vasculhadas com atenção. Além disso, tipologia, tamanho de letra, posicionamento de menus, linhas divisórias, molduras, textos em coluna, cabeçalhos e rodapés foram planejados de acordo com a compatibilidade de equipamentos e demais adequações temáticas do projeto. A solução para a inclusão no texto de citações, notas e demais interferências, que reeditam a não linearidade dos impressos foi alcançada por meio de guias de leitura ou por superposições de informações nas páginas principais.

Quanto à escolha da linguagem gráfica do site, a opção pela neutralidade e simplicidade projeta principalmente a relevância das obras de arte, já que são elas que definem a problemática de uma época, através dos instrumentos que as tornam visíveis para o espectador. Textos sucintos, abordando cada tema, com links para outros textos, vídeos, filmes e possíveis locais de exposição, oferecem no site caminhos alternativos para um agenciamento dos estudos dos alunos, viabilizando pesquisas em vários níveis. Foram selecionadas imagens das obras de artistas diretamente referidas aos temas em cada página, visando à associação e demais remissões interpretativas de modo imediato.

Em relação aos temas do curso que compõem o conteúdo do site, a primeira dificuldade foi direcionar os estudos de História da Arte, ou seja, apontar caminhos em meio a assuntos tão abrangentes. Por exemplo, dentre as muitas maneiras de proceder a essa narrativa histórica reflito sobre a tradição europeia, que enfatiza a abordagem evolutiva a partir de autores e estilos, favorecendo deste modo a arte ocidental em detrimento de outras culturas. Mesmo sabendo que algumas das referências de espaço e tempo são necessárias à coerência do projeto, traço um conceito de história que ultrapassa o historicismo, podendo abranger um pensamento cultural mais amplo, que privilegia as obras e as ideias que as constituíram.

Segundo Walter Benjamin, nas suas teses sobre o conceito de história, que balizam a construção do projeto:

O historicismo se contenta em estabelecer um nexo causal entre vários momentos da história. Mas nenhum fato, meramente por ser causa, é por isso um fato histórico. Ele se transforma em fato histórico postumamente, graças a acontecimentos que podem estar dele separados por milênios. O historiador consciente disso renuncia a desfiar entre os dedos os acontecimentos, como as contas de um rosário. Ele capta a configuração em que sua própria época entrou em contato com uma época anterior, perfeitamente determinada. Com isso ele funda um conceito de presente como um “agora” no qual se infiltraram estilhaços do messiânico (Benjamin, 1986, p. 232).

De acordo com o autor, a temporalidade crítica remete a conceitos históricos interpretados de acordo com um olhar abrangente que conecta fragmentos, garantindo nova inteligibilidade para as obras. Assim, é permitido à crítica se deslocar das regras estipuladas de uma disciplina para as características das obras propriamente ditas, admitindo diversos modos de encadeamento.

A atualidade do pensamento de Benjamin remete ainda à outra questão. Em um dos seus textos mais famosos, sobre a perda da aura da obra de arte (Benjamin, 1983), o autor percebe a importância das obras irem até o espectador, contraponto positivo à perda da experiência da obra atrelada ao local de exposição. Prerrogativa que cria disponibilidades de comunicação com o público que seria impraticável em tempos anteriores aos da reprodução técnica, expandindo-se ainda mais nos dias de hoje com os meios digitais. Diga-se de passagem, uma das grandes vantagens do acesso à rede digital está na facilidade com que adentramos no cenário que sonhamos visitar, os quais nos transportam para um mundo que antes pertenceria apenas ao espaço da imaginação, como bem menciona Janet Murray (2003).

Abordagens

A minuciosa escolha das imagens no site privilegia as obras que concentram problemas da História da Arte sem se restringirem a uma classificação periódica ou a uma tipologia específica. Por sua vez, os recortes das imagens, muitas vezes desviantes, apontam as relações das obras com o discurso de vários autores ao longo da história. O fundo escuro do site acentua as aberturas para uma possível observação mais detalhada dos componentes físicos visíveis nas imagens das obras, permitindo a observação prolongada e ampliada em zoom do todo que se abre quando o recorte é clicado. São percebidas, neste processo, as camadas de pigmento, as transparências e a espessura da tinta e dos traços nas imagens de boa qualidade. Sem esquecer que as imagens tanto podem ser visualizadas em diferentes aplicativos quanto impressas em papel ou em outro suporte qualquer, o que altera a sua materialidade.

As imagens funcionam como elementos heterogêneos que ativam a memória, pretendendo estimular os espaços de reflexão que ganham sentido nas possibilidades de associação e abstração, atributos humanos que implicam ir além das imagens apresentadas. Com indicações paralelas de fala e texto que visam elucidar as inúmeras questões que as permeiam, podem ser apontados aspectos formais, simbólicos, iconológicos, sociológicos, psicológicos ou históricos, remetendo às indicações no próprio site ou fora dele.

Para mencionar algumas associações das obras e recortes do projeto do site com textos teóricos que proponho em sala de aula, resgato de modo livre a escultura Poseidon, de Artemísio (460 a.C.), apontando na relação com a estética de Hegel o tema da harmonia entre o deus e a forma que o encarna (Hegel, 1985). Mesmo na harmonia do período clássico, Hegel aponta uma falha referente à finitude da forma como encarnação do divino, falha essa que impede a representação da passagem do tempo na ausência das rugas, dentes e olhos das estátuas gregas que não carregam o sentido da ação humana, e muito menos refletem a expressividade só alcançada nas representações da fé cristã, séculos após a criação das estátuas citadas. Como contraponto à aparente frieza fisionômica das esculturas gregas remeto ao hábito dos retratos funerários, pintados pelos mesmos gregos e romanos com a técnica da encáustica sobre madeira, parecendo captar a personalidade nos olhos expressivos que, paradoxalmente, pretendem fixar a presença do espírito na representação do corpo ausente do retratado.

Figura 2: Artemísio,<i> Poseidon </i>(460 a.C.).<i> </i>Detalhe.
Figura 2: Artemísio, Poseidon (460 a.C.). Detalhe.

Outro exemplo da didática aliada ao site remete à imagem do afresco do Êxtase de São Francisco (1297-1330), elaborado por Giotto, tratando da possível interpretação da presença simbólica das nuvens nas obras de arte, em texto de Hubert Damisch (1972). No caso, esse elemento funciona tanto para organizar o espaço da representação emergente em Giotto quanto para apontar o aspecto transcendente da figura do santo destacado no quadro, graças ao recurso pictórico da nuvem que o circunda. Na verdade, Damisch desdobra, em um livro de mais de trezentas páginas, a importância dinâmica, imaginária e indicial das nuvens em várias obras renascentistas. E até mesmo em algumas paisagens holandesas que, para o autor, significam um retorno à natureza, denotando um possível afastamento das questões transcendentais presentes nas obras renascentistas. Tudo isso sem esquecer, no mesmo texto de Damisch, a importância das nuvens nas pinturas chinesas monocromáticas, que oscilam entre o cheio e o vazio em planos sobrepostos que negam o sistema perspectivado da arte ocidental.

Figura 3: Giotto. <i>Êxtase de São Francisco </i>(1297-1330). Detalhe.
Figura 3: Giotto. Êxtase de São Francisco (1297-1330). Detalhe.

Dentre os barrocos, em Las Meninas (1656), de Diego Velázquez, obra analisada em texto homônimo por Michel Foucault (1968), aponto o jogo entre o visível e o invisível que inclui e exclui o espectador no quadro, em sucessivas permutações. Além das imagens dos reis refletidas no espelho, a figura do homem que entra em cena, iluminado pela abertura da porta pintada, faz a passagem entre o mundo interno e o externo na tela de Velázquez. De modo aparentemente alheio às imagens do espelho, o visitante parece fitar o espectador que, por sua vez, está posicionado no mesmo lugar onde estaria o casal real, refletido no espelho do fundo do quadro.

Figura 4: Velázquez. <i>Las Meninas</i> (1656). Detalhe.
Figura 4: Velázquez. Las Meninas (1656). Detalhe.

Ainda quanto às associações, tratando da modernidade de Manet, cito Georges Bataille (1955), que remete ao confronto com os modos vigentes de representação especialmente perceptíveis na composição pictórica sem claro-escuro nem relevo no quadro Picnic na relva (1862), recusado no salão oficial parisiense. À esquerda do quadro, algumas das questões abordadas pelos impressionistas se configuram na cesta de picnic de Manet: as pinceladas, as cores puras e o jogo das complementares. À parte a estranheza da mulher despida em meio aos dois homens vestidos na tela, é a figura etérea no fundo do quadro que chama a atenção, parecendo não pertencer ao mundo representado. Interessante perceber, na tela, as cenas que flutuam em planos, do modo como ocorrem nas já mencionadas paisagens chinesas, contrapondo-se ao sentido representacional da arte ocidental.

Figura 5: Manet. Pic nic na relva (1862). Detalhe.
Figura 5: Manet. Pic nic na relva (1862). Detalhe.

Enfim, os exemplos de obras e as questões sobre a arte que elas apresentam são infindáveis, podendo ser abordados de muitas maneiras. Algumas curiosidades, como as encontradas no quadro Paisagem com caída de Ícaro (1558), de Peter Bruegel, remetem à importância relevante do título do quadro, que dirige o olhar para o detalhe sutil que provavelmente não seria percebido no canto direito inferior da paisagem sem a informação verbal de Bruegel. E ainda, no quadro Tomé o incrédulo (1602-03), de Michelangelo Caravaggio, o dedo na chaga de Cristo chega a doer na carne de quem observa a cena, de um realismo impressionante, visando conjugar a informação do quadro ao impacto causado no espectador/participador.

Tanto as referências que incluem as obras e as legendas quanto os textos contendo as muitas interpretações e comentários críticos em livros e revistas especializadas, teses ou dissertações, todos podem ser apontados em links, ocupando um lugar infinito na rede. A intenção é de que tudo o que esteja citado no site também esteja relacionado em item separado, no menu, no alto à direita. Aí estão: as legendas das imagens, o glossário sobre as técnicas artísticas, as referências metodológicas e bibliográficas para as possíveis interpretações das obras, os endereços dos museus e galerias, além da citação de alguns filmes produzidos sobre artistas e vídeos de interesse no youtube.

Antes do menu explore, a indicação de acesso à página principal, no alto à direita, remete ao resumo do conteúdo do site. Ainda nas indicações da parte superior, a opção para contatos permite comentários dos participadores, incentivando a troca de informações. Na parte inferior do site constam: a ementa do curso com temas e bibliografia, o currículo resumido da professora do curso com links para artigos on-line e demais referências pessoais e, finalmente, o mapa do site, que indica todos os assuntos tratados no projeto de modo esquemático.

No topo, em movimento constante, alguns detalhes das obras remetem às técnicas utilizadas pelos artistas, por vezes anônimos, tornando suas ideias perceptíveis para o espectador. São elas: as pinturas rupestres de Chauvet, os vitrais das catedrais góticas, as incisões das gravuras de Dürer, o impacto da tinta a óleo de Turner nas telas, as manchas matéricas de Pollock, as colagens dadaístas que privilegiam o acaso, as assemblages de Rauschenberg, e as pinturas que reproduzem o processo reticulado nas telas de Lichtenstein.

Temas do curso

Inicio os temas do curso com a análise dos povos ditos “primitivos”, considerados menos importantes pela cultura europeia durante séculos, graças ao desconhecimento preconceituoso da existência milenar e da alta sofisticação artística das culturas alheias ao território europeu. Como optei por incluir obras não ocidentais que geralmente independem de alterações técnicas, de especificações autorais ou progressões lineares, proponho critérios mais maleáveis de abordagem que não se afastam da história das culturas e das ideias. De acordo com esses critérios, as próprias definições de mundo ocidental e não ocidental podem ser problematizadas logo no início da exposição dos temas do curso.

Na primeira chave desse item, cito as pinturas e esculturas pré-históricas, cujas características serão retomadas mais adiante neste texto. Em uma segunda chave, relaciono outras culturas, fazendo referência aos povos africanos, cuja produção tribal data de até 5 mil anos. Neste caso, os documentos históricos, que são textuais, não dão conta da produção artística, carente de maior aproximação com o material antropológico que examina os rituais, entre gravações e demais registros das práticas utilizadas nesse contexto. Alguns dos rituais, disponibilizados em vídeos na rede, podem estar conectados aos textos do site do curso. Longe dos critérios estéticos que balizam o conceito de arte ocidental, incluindo o conceito de gênio e de obra-prima, relacionados hierarquicamente aos meios que valorizam a pintura e a escultura, faz-se necessário, como no caso dos povos africanos, o dimensionamento da relação da arte com a funcionalidade dos objetos e máscaras, apreciados equivocadamente nos museus do Ocidente de acordo com aspectos formais.

Na terceira chave, menciono dois povos do extremo-oriente, chineses e japoneses, e sua produção de 5 mil anos. Com especial destaque refiro-me à escrita caligráfica, impregnada de aspectos éticos e filosóficos que não se dissociam da técnica, dos materiais e do gesto do artista. Próxima da pintura sobre papel ou seda, a caligrafia chinesa e a japonesa consideram a economia dos meios e a simplificação do traço como a mais pura expressão da espiritualidade. É também importante ressaltar, nessas culturas, que uma boa quantidade de imagens, objetos e porcelanas relativas à vida social e religiosa, convive em termos de importância com pinturas, esculturas e projetos de arquitetura, contrariando os critérios ocidentais mais tradicionais que valorizam as “artes maiores” em detrimento das “artes menores”.

Muitos dos parâmetros estéticos que definem a cultura de modo hierárquico foram discutidos e teorizados no Ocidente pelos artistas modernos no início do século XX, justamente a partir da compreensão da importância de outras visões de mundo na experiência artística europeia. A assimilação do valor estético das culturas negra e extremo-oriental pelo pensamento artístico moderno foi denominada “primitivismo”, denotando ainda o preconceito presente nas derivações da palavra primitivo. No caso dos artistas expressionistas do Blaue Reiter (1911-12), o tema se amplia para as crianças, para os loucos, e para todos aqueles que se afastam de um pensamento predominantemente lógico que interpreta a realidade em que vivemos.

O confronto com os textos de historiadores e críticos disponibilizados no ambiente digital, tais como Wilhelm Worringer (1909), Carl Einstein (1915) e Daniel-Henry Kahnweiler (1911), acompanhando de perto as produções de Picasso, Braque e demais artistas modernos, fundamenta os propósitos que anuncia, neste olhar em formação, as confluências culturais que desejo apontar. Vídeos de Picasso desenhando com um traço e animais sobre uma superfície de vidro filmada pelo avesso evidenciam a assimilação do valor estético de outras culturas em algumas das muitas obras que produziu.

Ainda nas primeiras décadas do século XX, é importante mencionar a experiência do cineasta Sergei Eisenstein, que a exemplo do historiador Arnheim (1984) crê enfaticamente no aspecto sensorial das imagens. Nos seus filmes, Eisenstein explora cuidadosamente o modo como o espectador pode ser afetado em termos psicológicos pelas imagens, através do processo de montagem. Trechos dos filmes de Eisenstein podem também estar conectados ao site, com a intenção de elucidar questões conceituais por meio de exemplos visíveis.

Em relação aos “povos primitivos”, retomo aqui o primeiro assunto da chave, relativo às pinturas e esculturas realizadas na era paleolítica. Ressalto a enorme importância das pinturas rupestres, graças ao registro de uma das primeiras narrativas que permite remontar à origem do ser humano e à sua estreita relação com os animais. Dessas imagens originais, misto de dependência, terror e admiração, brotam não só os mitos, como também a arte que remete aos aspectos fundamentais do sentido da vida: sobrevivência, reprodução e morte.

Em destaque, as relativamente recentes descobertas das pinturas de Chauvet (1994), no sul da França, datando de cerca de 32 mil anos. Sobre os registros das cavernas de Chauvet, escondidas durante milênios, o cineasta Werner Herzog produziu um filme em 3-D (2010), que mostra as formas irregulares das cavernas, acentuadas pelas luzes e sombras dos animais com volume e em movimento, curiosamente obedecendo a uma lógica muito próxima àquela dos fotogramas de animação. O filme de Herzog, que remete ao impacto da presença das pinturas e dos sons no reconhecimento de nós mesmos na memória dessas imagens, insere no processo de montagem depoimentos de cientistas e estudiosos, mostrando como pensamento, ciência e arte se relacionam. Entrevistas do diretor sobre a filmagem, e depoimentos sobre o filme propriamente dito, podem ser encontrados na rede e apontados em links no site.

Figura 6: Caverna de Chauvet (32.000 AC). Detalhe
Figura 6: Caverna de Chauvet (32.000 AC). Detalhe

Outro registro das pinturas paleolíticas que merece referência é o das cavernas de Lascaux, em Dordogne (França), produzidas há cerca de 18 mil anos. Em destaque, o uso de cores e materiais nas representações de animais que atestam a percepção da perspectiva e do trompe l’oeil. Como em Chauvet, o aproveitamento das superfícies das paredes acentua os relevos, enquanto que a superposição de animais indica o movimento. A simplificação da forma e a presença do desenho fortemente marcado pelo traço de contorno confirmam a destreza e, provavelmente, a criação compartilhada das pinturas nas paredes, nas quais as incisões com símbolos abstratos em traços, grades, flechas ou pontos poderiam remeter a uma possível forma rudimentar de escrita.

Em relação às interpretações sobre as pinturas de Lascaux, implicações místicas sugerem as projeções mentais dos xamãs, provavelmente envolvidos em alguma espécie de culto. Ritos do gênero podem ser encontrados em outras culturas, tais como a dos aborígenes neozelandeses, ou a dos antigos povos indígenas da América do Norte, também resgatados em algumas imagens e vídeos no ambiente digital.

A indicação de um filme que consta no site da Fundação Bradshaw[1], reconstituindo uma possível visita ao interior das cavernas de Lascaux, impressiona pelo aspecto visceral das imagens que exploram os limites entre o mundo representado e o mundo que sabemos existir de fato na região de Dordogne. Como menciona Roland Barthes (1984), em um texto sobre as imagens perfeitamente adequado ao caso, além do aspecto nostálgico que as imagens contêm, elas nos confrontam com o presente já testemunhado por alguém que um dia já esteve lá.

No filme sobre a visita a Lascaux, as passagens sucessivas pelas imagens do filme que representam as pinturas nos fazem mergulhar no labirinto sinuoso, percebendo texturas, cores, movimentos e sons nas imagens que se alternam, sempre que desejamos. Os comandos aplicados ao vídeo, que permitem a aproximação e a angulação das imagens, também possibilitam a visualização de textos elucidativos nas passagens, através de cliques em etiquetas que vão aparecendo ao longo do trajeto. Nesse processo, imagem e texto se complementam no aprofundamento do exame das pinturas. É interessante pontuar que desde 2008 as visitas às cavernas de Lascaux estão praticamente proibidas, o que torna esse passeio virtual ainda mais estimulante e surpreendente, uma vez que constitui um dos únicos modos de investigarmos hoje, com tanta precisão, a importância dos registros que são considerados patrimônio da humanidade.

Paralelamente aos temas do curso que se desdobram, proponho debates sobre as investigações da imagem, de acordo com o pensamento de William J. T. Mitchell (1987), Gilles Deleuze (1990) e Hans Belting (1990). Curioso perceber como em Lev Manovich as investigações sobre o tema se expandem, a propósito de uma estética relacionada ao processo criativo das imagens digitais (Manovich, 2002). Ao ultrapassar o aspecto tecnológico das imagens, Manovich aposta no paradigma com base no uso das ferramentas que modificam e criam uma nova visualidade, na qual convivem objetos representativos (tridimensionais), abstratos (bidimensionais) e imaginários, acarretando uma mudança cognitiva e afetiva nas pessoas que interagem com o meio digital.

Quanto ao aspecto lúdico que envolve o processo de cortar, colar, inserir e copiar, segundo Manovich, é possível aproximar artistas e designers que utilizam os mesmos recursos técnicos, reforçando as mudanças cognitivas das operações inerentes a este espaço, a mobilidade e o fácil ingresso em um ambiente múltiplo e participativo.

*Beatriz Lagoa é professora da ECO/UFRJ, designer gráfica (PUC-RJ), mestre em História da Arte (EBA-UFRJ) e doutora em História Social da Cultura (PUC-RJ), com pós-doutorado em Cultura e Tecnologia (PACC-UFRJ).


Referências

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BARTHES, Roland. A câmara clara: um estudo sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1984.

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Nota

[1] Essa fundação promove a descoberta, a documentação e a preservação das primeiras manifestações artísticas realizadas pelo homem em vários lugares do planeta.

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Laboratório de Tipografia do Agreste: sua pertinência e implicações no contexto da tipografia brasileira | Buggy e Lia Alcântara*

O Laboratório de Tipografia do Agreste (LTA) é um espaço concebido para conjugar atividades de ensino e pesquisa tipográficas no Centro Acadêmico do Agreste (CAA) – o campus da Universidade Federal de Pernambuco, em Caruaru, no interior do estado. Por meio da mobilização de professores e alunos de design envolvidos no processo de interiorização do ensino proposto pelo governo federal, esse laboratório tem trazido para a região discussões sobre desenho de tipos, emprego de fontes e famílias tipográficas, impressão com tipos móveis, produção e encadernação de livros, caligrafia e história da escrita.

Para compreender melhor essa iniciativa e suas implicações no contexto local do ensino superior de design é preciso trazer à luz alguns aspectos que nortearam a sua constituição e outros que dirigem o seu atual funcionamento.

Figura 1: Espaço físico e equipamentos gráficos do LTA. Foto: Buggy.
Figura 1: Espaço físico e equipamentos gráficos do LTA. Foto: Buggy.

Sobre a criação do LTA

Ao atentar para as atividades cotidianas normais com as quais as pessoas ocupam suas vidas hoje, logo se torna evidente que a tipografia é inevitável, quase onipresente (Jury, 2007). Seus níveis de compreensão são parte essencial da cultura do Ocidente e estão intrinsecamente associados ao saber, à literatura e à enorme quantidade de informações alfanuméricas que cercam todos diariamente, ou seja, a história e a civilização (Fontana, 1996).

O surgimento da imprensa é um proeminente marco na trajetória que culmina nesse panorama. A fundição dos tipos móveis e a invenção de todo aparato necessário a seu uso repercutiu de tal maneira na formação do entendimento comum sobre o que é design gráfico que, mesmo hoje, numerosos cursos de design dos mais diversos níveis de aprofundamento não prescindem de disciplinas inteiramente dedicadas à história, ao uso e/ou ao desenho tipográfico em suas grades curriculares.

No âmbito local, a preocupação com a tipografia é percebida de forma peculiar, conectada a esse momento histórico. Três das seis instituições de ensino superior pernambucanas que formam designers gráficos – UFPE, IFPE e AESO – vão além da manutenção de disciplinas e conservam gráficas tipográficas para fins didáticos em seus campi há pelo menos sete anos. Contudo, as duas estruturas mantidas pela UFPE (o espólio de Aloísio Magalhães e a tipografia da Editora Universitária) concentram-se no Campus de Recife, que abriga apenas um dos seus dois cursos de design. Com isso, até 2011, ano de inauguração da tipografia do LTA, o curso instalado no CAA (o campus localizado em Caruaru) permaneceu desprivilegiado, à conta dos cento e vinte quilômetros que separam essas cidades.

Agreste e Sertão são o berço da literatura de cordel, expressão cultural impulsionada pela impressão tipográfica. A esse respeito, Carvalho (2001) destaca a vitalidade dos folhetos populares no Nordeste brasileiro, atrelada ao processo de interiorização das máquinas tipográficas – que se tornavam obsoletas para os grandes centros por volta de 1926. Mais enfático, Lopes afirma: “A literatura de cordel, obviamente, só surgiria após o aparecimento das pequenas tipografias avulsas, espalhadas por várias cidades interioranas” (Lopes, 1994, p. 12).

O movimento de interiorização do ensino superior público realizado em Pernambuco na metade da última década trouxe em 2006 o design para o ambiente acadêmico agrestino. Somente em 2009, com a fundação do LTA, foi proposto aos alunos que experimentavam essa formação uma aproximação direta ao universo tipográfico. A realização de oficinas e exposições estimulou a inserção de disciplinas eletivas na grade do curso da UFPE, em Caruaru.

Dois anos mais tarde, foi possível promover o encontro desse público com a mais legítima expressão gráfica produzida pelo povo nordestino. A inauguração da gráfica tipográfica do LTA tratou, entre outros fatores, de favorecer o estudo de aspectos visuais da identidade de um grupo através da análise e interpretação da linguagem plástica da poesia narrativa popular e impressa disseminada pelo sistema de impressão com tipos móveis.

Essa perspectiva foi alimentada pela convicção de que o processo estruturado de formação profissional pode ser enriquecido pelo estímulo à interação dinâmica e potencial do indivíduo e do grupo trabalhado, bem como do respeito e valorização de diferenças, visando o cultivo de um horizonte mais amplo de produção, no qual haja liberdade para experimentar e errar.

Se por um lado tal proposição fundamentou-se no empirismo, enaltecendo a diversidade, a criatividade e a colaboração, por outro, apoiou-se em teorias que defendem o fato de o ensino do design poder ser percebido como uma instância essencial para a própria existência e renovação do campo.

De acordo com esse ideário, é nos processos de aprendizado que o designer em formação adquire consciência discursiva, capacidade de refletir, pensamento crítico e, consequentemente, capacidade de inovar. E inovação em design não é tanto uma questão de tecnologia ou estética (Longinotti in Ordoñez, 2010, p. 6-7). É uma condição fundamental que estrutura os pilares de sua epistemologia, conforme atenta Bonsiepe: “O design está relacionado à inovação. O ato projetual introduz algo novo no mundo” (1997, p.15).

O pensamento de Lozano (2009) corrobora a importância do ensino do design ressaltando o valor da confluência entre a teoria e a prática nesse processo. Segundo o autor, para formar designers críticos que trabalhem de forma ativa no mercado, interagindo com seus pares, questionando seu trabalho e propondo novos limites, é preciso aproximar essas duas perspectivas. Aproximar-se da prática é ir além do subjetivo e complexo campo teórico da educação, que tem como base de seus princípios uma lógica de construção linear. A prática permite compreender o funcionamento do que se aprende tornando tangível o conhecimento. Com isso, o trabalho de aprender implica entender o teórico com sua aplicação no mundo da prática. Lozano (2009, p. 10) ainda discorre sobre a importância dos aprendizes. Para ele, o ímpeto inovador de um estudante, fresco por excelência, pode outorgar diferentes pontos de solução em relação ao elaborado por um profissional de destaque numa dada matéria.

Aspirando tornar isso possível, o instrumento de manobra escolhido pelo LTA foi a criatividade. Porque o papel do pensamento criativo é de fundamental importância, tendo em vista que a criatividade constitui-se no elemento-chave para que organizações inseridas em cenários marcados por transformações, riscos e incertezas possam propor soluções imediatas e originais diante de problemas novos (Obregon e Vanzin, 2010). E no que tange ao cenário, diga-se de passagem, essa escolha não poderia ser mais adequada.

Figura 2: Principal acesso ao Campus Acadêmico do Agreste (CAA) usado até 2012. Foto: Buggy.
Figura 2: Principal acesso ao Campus Acadêmico do Agreste (CAA) usado até 2012. Foto: Buggy.

O LTA incorpora a ideia de integrar diversas dimensões do pensar tipográfico, ele revê e atualiza a proposta da Escola de Ulm que, segundo Cardoso (2012), incitava seus alunos a refletir sobre o fazer e se aprofundarem em estudos correlatos. O sistema letterpress – tipográfico – é usado como um instrumento de ensino na medida em que se “mostra como um inestimável método de raciocínio visual” (OTSP, 2007), permitindo aos alunos aplicarem os princípios fundamentais da tipografia e, consequentemente, da comunicação visual, unidos às novas tecnologias e, ao fim, obterem um resultado de inquestionável originalidade.

À conta do que foi exposto até o momento, o LTA fez sua aposta no trabalho conjunto de professores e alunos implicados num processo de aprendizagem que sintonizou prática e teoria para colher material mais rico do que o obtido por um trabalho individual que explorasse em separado e/ou dicotomicamente essas duas searas. A experiência de ensino realizada sob a luz dessa confluência para formar profissionais proativos foi abraçada pelo LTA no intuito de valorizar o perfil do designer em processo de formação, conforme proposto por Lozano (2009), integrando-o ao convívio docente em ações de pesquisa e extensão. Por conseguinte, também se pretendeu eliminar o receio do erro apontado por Crisp (2004) e estimular a habilidade de questionar pressupostos, quebrar fronteiras, ultrapassar limites, reconhecer padrões, enxergar em novos ângulos, fazer novas conexões, assumir riscos e aproveitar oportunidades casuais.

Ao fazê-lo, não se deixou de considerar que o medo de transgredir involuntariamente algumas leis tidas como imutáveis no universo da tipografia poderia intimidar a ousadia dos estudantes no desenvolvimento de suas atribuições. Todavia, a convivência com designers mais experientes pôde respaldar ações nas quais essas leis assumiram um caráter mais relativo, já que temas como esses podem tratar de gostos e práticas tradicionalmente aplicadas que podem ser transgredidas ocasionalmente (Crisp, 2004). Mais do que isso, muitas vezes tais práticas devem ser transgredidas – se não para obtenção de uma resposta objetiva e prática, para privilegiar o experimento tão somente como instrumento de aprendizado.

Figura 3: Alunos trabalhando no LTA. Foto: Buggy.
Figura 3: Alunos trabalhando no LTA. Foto: Buggy.

Criado inicialmente como um projeto de extensão, o LTA esteve nos dois primeiros anos dedicado à preservação e à divulgação de tecnologias, geração de novas formas e fontes e apoio a pesquisas vinculadas ao universo tipográfico. Além disso, firmava-se como um espaço experimental com função de atender e estimular demandas relacionadas ao uso e à produção da tipografia em ambientes reais e virtuais, mobilizando docentes, discentes e profissionais da iniciativa privada.

Esse período também foi marcado pela organização do acervo pessoal do professor Leonardo Costa (Buggy) de tipos de metal, madeira e linóleo, além dos primeiros reparos nas prensas tipográficas. Primeiramente atrelado às demonstrações práticas do que era ministrado em disciplinas teóricas, o LTA transformou-se rapidamente em um laboratório de criação e experimentação, onde é possível conjugar aspectos da macro e microtipografia, computadores e prensas e as mais diversas técnicas e materiais de impressão.

Figura 4: Espaço físico e equipamentos gráficos do LTA. Foto: Buggy.
Figura 4: Espaço físico e equipamentos gráficos do LTA. Foto: Buggy.

A estrutura e o funcionamento do LTA

A oficina tipográfica instalada no LTA divide espaço com livros, computadores, scanners e impressoras a laser. Uma convivência harmônica que demanda mais espaço a cada dia que passa, dado o crescimento acelerado do interesse de alunos e professores em participar das atividades.

Figura 5: Detalhe de computador usado no LTA. Foto: Buggy.
Figura 5: Detalhe de computador usado no LTA. Foto: Buggy.
Figura 6: Detalhe de prelo usado no LTA. Foto: Buggy.
Figura 6: Detalhe de prelo usado no LTA. Foto: Buggy.

Esse processo de aquisição se dá graças à relação de comodato estabelecida entre a UFPE e o professor Leonardo Costa (Buggy). Grande parte do acervo pessoal desse pesquisador, formado por compras e doações, encontra-se atualmente nas instalações do Campus do Agreste, emprestado para fins educacionais. Quatro prensas, dois prelos e diversas galés, cavaletes e caixas de tipos possibilitam aos alunos experimentar e produzir artefatos gráficos que envolvem toda a logística e prática do antigo ofício tipográfico.

O espaço reduzido e a diversidade de horários disponíveis dos envolvidos distribui a equipe do Laboratório (atualmente são seis professores e vinte e quatro alunos) em três turnos diários de, em média, quatro horas cada. Cada membro deve cumprir vinte horas semanais, podendo encaixar-se em até dois turnos diários para tanto.

O LTA mobiliza seus participantes em seis grupos de trabalho, compostos por colaboradores, subgerentes e gerentes. Alunos mais experientes ocupam preferencialmente as gerências e subgerências, sempre orientados por professores. Cada grupo dedica-se a uma área de atuação específica de trabalho. A saber:

1 Projetos editoriais. O grupo desenvolve projetos gráficos para publicações que tratam de temas de interesse do LTA e que são de autoria de colaboradores e/ou ex-colaboradores. Ele explora linguagens não convencionais, tanto verbais quanto visuais, para sugerir a integração de diversas tecnologias de impressão na produção de pequenas tiragens de livros, jornais e revistas. Além disso, o grupo gerencia a avaliação dos livros a serem indexados pelo blog Bibliografia Tipográfica (em <http://tiposdoacaso.com.br/bibliografiatipografica/>) e formata os respectivos posts.

2 Impressão e produção gráfica. Esse grupo trata da catalogação e utilização do acervo tipográfico, bem como de sua organização e limpeza. Indica as demandas de restauro ou a necessidade de máquinas, ferramentas, móveis e peças, além de produzir livros, jornais, revistas, cartazes, cartões, panfletos e demais impressos integrando as tecnologias atuais a algumas em desuso comercial.

3 Design de produtos e restauro. Responsável pela restauração e produção de máquinas, ferramentas, móveis e peças tipográficas, além de estabelecer as políticas de uso do Laboratório e de seu aparato analógico e digital. Também propõe e desenvolve produtos a partir do acervo do LTA.

4 Mídias digitais. Desenvolve, edita e atualiza interfaces e conteúdos para sites, multimídias, filmes, animações, créditos e cartelas relacionados às diversas áreas de atuação do Laboratório.

5 Design de tipos. Desenha, gera e edita fontes digitais para atender às demandas do LTA e de outras entidades.

6 Comunicação e gestão. Planeja e executa ações, peças promocionais e eventos on-line ou off-line. Gerencia os prazos dos projetos conduzidos pelos demais grupos.

Figura 7: Sequencia de imagens da Equipe do LTA produzindo, com técnica mista, cartazes para oficina de impressão tipográfica. Fotos: Buggy.
Figura 7: Sequencia de imagens da Equipe do LTA produzindo, com técnica mista, cartazes para oficina de impressão tipográfica. Fotos: Buggy. Figura 7: Sequencia de imagens da Equipe do LTA produzindo, com técnica mista, cartazes para oficina de impressão tipográfica. Fotos: Buggy.

Cada um desses grupos se ocupa de um tema vital ao bom funcionamento dos projetos do laboratório. Nesse contexto, os professores atuam como agentes motivadores dos grupos e como consultores técnicos e organizacionais dos seus coordenadores. A proposição dos projetos a serem desenvolvidos é de responsabilidade de todos os integrantes do LTA, não cabendo nesse ponto distinção entre docentes e discentes.

Assim, os alunos são estimulados a vivenciar perfis diferentes do executor de projetos. Eles passam a propor e/ou gerenciar esses projetos assumindo papéis no universo do design que fogem do habitual posto de diretor de arte. Ao se colocarem em posição diversa daquela para a qual prioritariamente o sistema de ensino o prepara, esses alunos passam a questionar seu perfil, a empregar novas óticas para solução de problemas e a discutir a própria relevância de tais problemas. Com isso, sentem-se mais à vontade para considerar múltiplas ferramentas no seu dia a dia e abrem-se ao experimento, permitindo-se atuar de forma eficiente numa produção coletiva.

Figura 8: Gráfico da dinâmica produtiva aluno/professor no LTA.
Figura 8: Gráfico da dinâmica produtiva aluno/professor no LTA.

O professor propõe, orienta, motiva, reconhece e também interage em projetos, sem contudo se sobrepor à gerência da coordenação de cada grupo – o que constitui um grande desafio ao docente e pressupõe, em certos momentos, uma retração de sua natureza. O aluno, por sua vez, interage, se compromete, reflete, planeja e propõe projetos. Cabe destacar que o entendimento do termo “projeto”, aqui, pode compreender desde uma peça gráfica até uma pesquisa, passando por exposições, oficinas, palestras, ações promocionais, sites, fontes digitais etc.

Para tanto, a verve crítica da equipe é continuamente inflamada por meio de debates internos, treinamentos e leitura. A leitura é uma atribuição permanente de todos os que integram o LTA. E para assegurar essa constante foi criado o citado blog Bibliografia Tipográfica, um canal no qual discentes comentam diversos aspectos de obras ligadas ao universo da tipografia. Nele, o conteúdo, a produção gráfica e o projeto gráfico de livros e periódicos são avaliados pelos seus leitores mais ávidos.

O LTA e o cenário brasileiro da tipografia

Segundo Buggy, Valadares e Vieira (2012), a produção gráfica de Pernambuco é de grande relevância para o Brasil. Impressos e litografias, ainda da fase colonial, atestam a efervescência ideológica e o protagonismo gráfico do Estado. Do mesmo modo, a produção de xilogravuras promoveu a literatura de cordel, firmando-se como um traço da identidade cultural da região. Algumas décadas antes, o sucesso da tecnologia de composição manual, verificado nas oficinas de impressão no interior do Nordeste, já apontava para essa popularização do fazer tipográfico.

O significado e o valor dessa produção são objetos de estudo de pesquisa acadêmica, como os de Edna Lúcia Cunha Lima (1999) sobre a litografia comercial em Pernambuco, que revelam os primórdios de uma relação do mercado de tabaco com a representação visual de costumes da sociedade da época. Da mesma forma, a tese sobre o grupo O Gráfico Amador, de Guilherme Cunha Lima (1997), discorre sobre a experiência da tipografia por um grupo do Recife, em meados dos anos 1950, trazendo esclarecimentos sobre a relação de uma classe intelectual com a produção gráfica. Aliás, esse grupo advogava contundentemente a favor da prática, chamando carinhosamente de “mãos sujas” aqueles que se propunham a trabalhar nos processos de impressão, e de “mãos limpas” aqueles que se dedicavam apenas ao estudo da teoria. Isso com claro favorecimento aos que se propunham à práxis gráfica. Esses são exemplos de trabalhos sobre a história do design pernambucano que respaldam uma tradição que precisa continuar ativa. Na intenção de contribuir para maiores esclarecimentos nesse campo, o LTA se propôs a compreender questões tipográficas e suas relações com identidades culturais da região.

Figura 9: Experimento tipográfico dos alunos do LTA. Foto: Paula Valadares.
Figura 9: Experimento tipográfico dos alunos do LTA. Foto: Paula Valadares.

A tipografia em discussão

A preservação da tipografia, tanto como processo gráfico, quanto como documento relacionado ao entendimento das características da identidade gráfica brasileira, está hoje em sintonia com pesquisas de outras instituições acadêmicas (PUC/RJ, ESDI, Senac/SP) que têm desenvolvido trabalhos com foco no imaginário e na Memória Gráfica Brasileira (MGB). Isso porque os artefatos informacionais, produto da cultura material, são reflexos de tempos e lugares e, dessa forma, retratam características e costumes da sociedade, tornando-se documentos de atestado histórico. Imagem e letra, conforme atestava Ferreira (1994), são expressões gráficas que representam o universo simbólico da cultura e isso é campo de entendimento do design. O resgate e a criação de uma memória gráfica dimensionada para destacar a importância da cultura material e visual ajudam a compor a identidade brasileira.

O conhecimento sobre a tipografia no Brasil está em constante entendimento e transformação. A tecnologia digital alterou a natureza dessa importante área de conhecimento para o design ao torná-la uma prática mais acessível (Jury, 2007).  Como muitas outras áreas do saber, a tipografia, nas últimas décadas, parece atravessar um momento de revisão de valores e redefinição de territórios, conforme atesta Farias (2001). O LTA possibilitou aos alunos e professores experimentar questões do universo tipográfico, mostrando-se em sintonia com essa nova redefinição de valores e territórios. Ainda nesse cenário de interesses, por meio de suas ações, o LTA tem tentado equalizar o diálogo com outras instituições de ensino superior que já exploram temas correlatos, além de aproximar-se do panorama tipográfico nacional e da cultura local.

Pernambuco esteve inserido no roteiro das primeiras discussões sobre tipografia no Brasil, com participação em eventos internacionais (como o Tipos Latinos 2004 e 2008), nacionais (como a Bienal Brasileira de Design Gráfico e o DNA Tipográfico) e locais (como o tyPE: Tipografia em Recife, de 2004 e o TudoTemTipo: Encontro Tipográfico de Salvador, em 2007).

Por volta dos anos 1990, Tony de Marco e Cláudio Rocha produziam e distribuíam suas primeiras fontes, inspirando iniciativas coletivas como a Subvertaipe, no Rio de Janeiro, e a Tipos do aCASO, em Recife. O trabalho desse último grupo era caracterizado por fontes experimentais, ora de caráter desconstrutivista, geométrico, modular ora com traços regionais e vernaculares. Esteves (2010) inclui o grupo pernambucano Tipos do aCASO entre os pioneiros em produção de fontes no Brasil.

Essa mesma tônica experimentalista permeava os diversos coletivos de tipografia que se formavam pelo Brasil, como o Tipopótamo Fontes, de José Lessa e Cláudio Reston (ou Elesbão e Haroldinho), o Fontes Carambola, de Fábio Lopez e outros estudantes cariocas, inspirados pelo Professor Rodolfo Capeto, o Tipos Maléficos de Crystian Cruz, Beto Shibata e Marcus Colete e o Gemada Tipográfica, fundado por Rafael Dietzsch.

Alguns desses grupos se desfizeram, outros permaneceram, mas os que perseveraram amadureceram bastante suas relações com a tipografia. Nos anos 2000, a Tipos do aCASO converte-se em uma unidade de negócios dentro de um escritório de design, chegando a responder por 60% de seu faturamento e realizando projetos como o Manguebats e o Armoribats. Rodolfo Capeto produz a família tipográfica Houaiss para os dicionários Houaiss. Eduardo Omine projeta a família Beret, enquanto Fabio Haag faz a família Foco. Esses são apenas alguns exemplos e refletem alto nível de qualidade e complexidade em projetos tipográficos, que só vêm aumentando – o que se pode observar nas produções mais recentes de Fernando Mello, Eduilson Coan, Marconi Lima, entre outros (Esteves, 2010).

Dois dos participantes da Tipos do aCASO fazem parte do atual grupo de professores do LTA – Marcos Buccini e Leonardo Costa (Buggy) –, endossando os aspectos experimentais e empreendedores do Laboratório. Somam-se a eles professores envolvidos em projetos sobre história do design, semiótica, sinalização e caligrafia, que entendem a tipografia como elemento sine qua non para o design desenvolvido pelos alunos do Campus do Agreste. A multidisciplinaridade encontra terreno fértil no LTA, movida pela impetuosidade e pelo desejo de inovação de seus membros discentes. Apesar do grande volume de equipamentos e fontes ligadas a letterpress, o LTA abraça a tipografia como um todo e contempla projetos de fontes digitais, projetos editoriais em que a tipografia figura como elemento diferencial, além de técnicas de impressão mistas.

O LTA soma-se ao recente universo de estabelecimentos tipográficos brasileiros geridos ou influenciados por designers preocupados em preservar a linguagem visual resultante do sistema de composição e impressão com tipos móveis. Exemplos são o Tipô Tipografia (em Goiânia), o Laboratório de Impressos (Olinda), a Tipografia do CAC/UFPE e a Editora Universitária da UFPE (Recife), a Tipografia do Matias, a Tipografia do Zé e o Núcleo de Estudos da Cultura do Impresso (Belo Horizonte), a Oficina Tipográfica São Paulo / OTSP, a Letterpress Brasil, a Gráfica Fidalga, a Folita Press, a Pergam Press, a QStampa, a Currupiola, o Estúdio Carimbo, o Phatt Design e a Tipografia do Centro Universitário Senac, todos em São Paulo.

O Laboratório mantém contato constante com vários desses estabelecimentos, destacando-se o relacionamento estabelecido entre o LTA e a OTSP, que prevê a transferência de tecnologia e o desenvolvimento de projetos em parceria, como o já iniciado livro Conversas com o tipógrafo J. Borges. Esse projeto promove a troca de conhecimentos entre os designers, não só nos aspectos técnicos, mas também culturais e sociais, favorecendo a imersão em universos criativos por vezes distantes, como São Paulo e Caruaru.

Considerações finais

Após quatro anos de LTA, podemos observar que a proposição da tipografia como perspectiva para o estudo do design no CAA implicou no surgimento de seis novas disciplinas na graduação, nove acordos de cooperação técnica, uma série de livros e numerosos cursos de extensão/palestras com designers brasileiros e estrangeiros.

Figura 10: oficina <i>Latters as Forms II</i> organizada pelo LTA e ministrada pela professora Catherine Dixon. Foto: Buggy
Figura 10: oficina Latters as Forms II organizada pelo LTA e ministrada pela professora Catherine Dixon. Foto: Buggy
Figura 11: Palestra <i>Letras que flutuam</i>, organizada pelo LTA e ministrada pela professora Fernanda Martins. Foto: Buggy.
Figura 11: Palestra Letras que flutuam, organizada pelo LTA e ministrada pela professora Fernanda Martins. Foto: Buggy.

É certo que ainda há muito por fazer, sobretudo no que diz respeito à sustentabilidade a longo prazo dessa iniciativa, visto que os produtos resultantes de tal meio começam a proliferar apenas agora. A repercussão positiva do trabalho do LTA nas redes sociais e na formação dos discentes do CAA apresenta-se como uma estimulante oportunidade de expandir nossa rede de relacionamentos e fomentar um fluxo dinâmico de saberes, vivenciando algo novo, que ainda será projetado, e cujo delineamento nos é simpático em absoluto, pois é certo que aponta para a construção de um fazer coletivo de maior alcance.

À conta disso, a equipe do LTA aposta que a médio prazo sua disposição para geração de produtos/serviços culturais e tecnológicos encontre condições para se desenvolver. Em poucos anos, o Laboratório pretende extravasar seus limites e integrar um ambiente criativo capaz de prover possibilidades reais para propor e viabilizar ações que conjuguem arte e ciência implicando ganho social e econômico. Um ambiente inovador atento às formas de interação que determinam a distribuição de sua população, à seu patrimônio material e imaterial e ao sustento de sua produção.

Valorizando ideias e talentos locais no mesmo passo que se articulando com outras organizações semelhantes, o LTA pretende seguir estimulando um intercâmbio de saberes capaz de ampliar suas fronteiras.

Figura 12: Parte da equipe LTA decorando os espaços do Laboratório. Foto: Buggy.
Figura 12: Parte da equipe LTA decorando os espaços do Laboratório. Foto: Buggy.

*Buggy é mestre em design pela UFPE, professor do curso de Design da UFPE, em Caruaru e da Pós-graduação em Design Estratégico da Unifacs, em Salvador. Fundou a primeira digital type foundry nordestina, a Tipos do aCASO, e os cursos de design gráfico e design de produto da AESO. É coordenador do Laboratório de Tipografia do Agreste e vice-presidente da Comissão Editorial da Serifa Fina. Como músico, participou ativamente do Manguebeat tocando baixo no DMP & os Fulanos; como designer, conquistou prêmios nacionais e internacionais e como autor escreveu três livros – um deles, O MECOTipo, referência no ensino brasileiro de design de tipos. Lia Alcântara é mestre em Design pela UFPE e doutoranda em Design na mesma instituição. Atua no magistério superior desde 2006, tendo assumido o cargo de coordenadora do curso de Design Gráfico na AESO em 2011 e de Design de Produto em 2013. É gerente de produtos da Tipos do aCASO e da Nina Bookbinding e presidente do Conselho Editorial da Serifa Fina.


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Padrões cromáticos do design gráfico vernacular | Fernanda de Abreu Cardoso*

Neste artigo apresentamos uma análise dos padrões de uso das cores em peças de design gráfico vernacular, também denominado design gráfico popular. O termo “design gráfico vernacular” refere-se a um campo de produção de bens simbólicos relacionado à produção de material gráfico por indivíduos pertencentes a espaços sociais economicamente desfavorecidos. Trata-se de um campo informal, que se define por exclusão do campo do design institucionalizado, formal e erudito, representando, portanto, o design não oficial.

As diferenças sociais e econômicas entre os grupos sociais produzem diferentes “estilos” de vida, padrões de avaliação e formas de representações visuais. É nesse sentido que a linguagem visual do design gráfico vernacular se distingue da linguagem do campo oficial do design em diversos aspectos. E por considerarmos que a linguagem visual desse tipo de produção é fruto de condições sociais específicas, mesmo se tratando de um campo informal de produção de peças gráficas, é possível identificar alguns padrões de representação bastante característicos desse tipo de produção.

Identificamos o uso das cores nessas peças como um dos aspectos mais distintivos dessa linguagem. As escolhas que resultam nos padrões cromáticos das peças gráficas populares não são movidas pelas regras de representação da norma culta sendo, portanto, bastante distintas da produção do campo institucionalizado do design. Neste texto, apresentamos padrões cromáticos do design gráfico vernacular examinando as possíveis motivações para as escolhas referentes ao uso das cores. Analisamos a aplicação das cores nas peças gráficas observando quais utilizações ocorrem com maior frequência, acabando por se tornar características da linguagem visual do design gráfico vernacular.

Este artigo tem como base os resultados de uma pesquisa de doutorado sobre o universo simbólico do design gráfico vernacular, realizada pela autora. Nessa tese, o enfoque foi dado ao modo como as estruturas sociais operam a criação da dimensão imaginária ou do universo simbólico, que vem a ser o chão das representações sociais. Dessa forma, a produção de bens simbólicos seria reflexo de seu habitus[1], e a linguagem comum utilizada pelos designers populares representa, em última análise, esquemas de percepção, de pensamento e de ação particulares de seu grupo.

Com base no fato de que a linguagem visual característica das peças de design gráfico popular, sejam elas artesanais ou impressas, é reflexo de condições de existência semelhantes entre seus produtores, suas construções formais podem ser vistas como representações de valores sociais. Parte daquela pesquisa resultou em uma análise dos aspectos formais da linguagem do design gráfico vernacular, sendo examinados os padrões mais comuns nesse tipo de representação e caracterizadores dessa linguagem. Consideramos o modo como são utilizadas as cores um elemento básico e fundamental para caracterizar e identificar o estilo de representação visual dessa produção. Por isso, selecionamos o aspecto da linguagem visual do design popular para desenvolver o presente texto.

Na amostra dos objetos analisados incluem-se tanto o design popular artesanal quanto o material gráfico impresso, logo, para este artigo, selecionamos um conjunto de letreiros confeccionados artesanalmente e embalagens de diversos tipos de produtos. Optamos por objetos produzidos de formas bastante distintas para demonstrar que, nesse caso, a linguagem visual das peças é a mesma, independente de ser uma peça artesanal ou impressa industrialmente. Cabe destacar que, na grande maioria das vezes, em ambos os casos, a forma de produção se dá com recursos reduzidos.

A linguagem visual popular

Fruto de um contexto social, cultural e histórico específicos, podemos dizer que uma produção visual tende a se assemelhar em grupos com habitus semelhantes. Para cada campo são criados códigos próprios, de modo formal ou tácito, que se instauram, são reconhecidos e aplicados por seus pares. Se as representações visuais são reflexo de condições sociais específicas, mesmo que não existam regras preestabelecidas, podemos supor que existe uma tendência a uma uniformidade nas representações populares. Mesmo sem regras enunciadas ou formalizadas, verificamos a existência de padrões visuais, já que podemos observar a constância de alguns elementos gráficos, algo em comum que constitui uma linguagem visual do design popular. Como não existe a consciência de campo nem uma escola, tampouco normas a serem seguidas, mas apenas o fato de indivíduos dividirem condições semelhantes de existência e tenderem a se expressar de forma similar, esses padrões não são enunciados ou transmitidos pela academia, como ocorre no campo formal. Mesmo que não haja um padrão institucionalizado de representação, de alguma forma existem semelhanças muito claras entre diferentes produtores.

Bourdieu (2002) aponta que as práticas de agentes da mesma classe possuem afinidade estilística, pois são produtos de transferências de um mesmo esquema de ações. Essa sistematização nos produtos poderia ser explicada pela sistematização de uma estrutura, como a configuração de um campo de produção de bens simbólicos. Ainda conforme o autor, um estilo poderia ser definido como um modo de representação que expressa um modo de percepção próprio de um período, de uma classe ou fração de classe, de um grupo de artistas ou de um artista. Seria, portanto, uma categoria de expressão visual modelada pelo ambiente cultural. Os estilos são criados espontaneamente e se caracterizam por reproduzirem aspectos comuns da forma visual, pois estabelecem tradições e simbolismos próprios, além de combinarem técnicas visuais específicas, que são empregadas por produtores e agentes de um campo, como o do design gráfico vernacular.

Podemos, portanto, identificar convenções, regras e princípios básicos que são seguidos para se reproduzir determinado estilo, mesmo que esse estilo seja criado espontaneamente. Desse modo, podemos considerar a existência de um estilo próprio do design gráfico vernacular como resultado do uso de uma linguagem comum entre os produtores desse campo. É possível identificar formalmente tanto esse estilo popular, bastante característico e marcante, quanto sua reprodução em outros meios que não o seu de origem.

De um modo geral, é possível observar uma forma de representação mais direta e imediata das classes populares, especialmente pelo uso de imagens que fazem referência explícita ao produto ou serviço anunciado: o naturalismo das ilustrações e o uso das cores, que devem chamar atenção do observador. Verificamos que a informação deve ser transmitida de forma muito clara, para que não haja dúvidas em relação ao seu entendimento.

O uso das cores

Os processos de percepção da cor variam também de acordo com o grupo social, uma vez que a percepção seria resultado do processo biológico da visão associado ao entendimento, aos processos cognitivos do cérebro e às demais formas de conhecimento. Assim, a percepção da cor não seria uma ação unicamente física, resultado de um processo físico e químico de visão da cor; ela não seria uma simples reação a estímulos luminosos, que provocam uma série de reações bioquímicas, seguida da transmissão desses estímulos ao cérebro, responsável por processar a informação visual com uma determinada cor. Na realidade, o aspecto cultural seria fundamental nesse processo de percepção ou entendimento da cor.

A forma de perceber e interpretar a cor depende de uma série de fatores, conforme apresenta Frank Manhke (1996) em seu modelo de etapas do processo de construção da percepção das cores. O autor apresenta a cultura, a influência da moda e de tendências, a relação pessoal, os simbolismos e as associações, sem esquecer das reações biológicas aos estímulos da cor, como etapas importantes desse processo. Com isso, podemos entender a construção do gosto ou aceitação de uma determinada cor como um processo em que a cultura, o habitus e o grupo social ao qual pertence um indivíduo influenciam na percepção de tal cor, bem como no seu entendimento e na sua relação com a mesma. Cada grupo social pode atribuir valores, associações, significados às cores ou às suas combinações.

Para Pastoureau (2002), a cor não seria apenas um fenômeno natural, tampouco matéria para estudos biológicos do olho humano ou de suas relações com o cérebro humano. Logo, decorre daí sua emulação apenas com a neurociência ou com a psicologia, tratando-se de uma construção cultural complexa, cuja análise não pode ser generalizada. Na análise de uma cor deve ser levado em consideração o que faz parte do universo simbólico de uma sociedade: o léxico e as denominações, as técnicas, os códigos de vestimenta, o lugar dessa cor na vida cotidiana e na cultura material, enfim, tudo que possa afetá-la.

De acordo com o historiador francês, a cor é definida como um fato de sociedade, isto é, uma verdadeira forma de representação social. É a sociedade quem “faz” a cor, atribuindo-lhe definição e sentido. O meio social constrói seus códigos e valores, organiza suas práticas e determina suas apostas, uma vez que “os problemas da cor são sempre problemas sociais, pois o ser humano não vive só, mas em sociedade” (Pastoureau, 2002, p. 8). Os simbolismos atribuídos às cores variam, dessa forma, em função do valor que lhes é atribuído em cada grupo social. As cores não possuem, portanto, valor em si, mas valores que podem variar de acordo com o contexto geográfico[2], histórico e social. O que pode ser considerado como uma combinação de cores adequada no contexto de produção do campo do design popular pode ser inaceitável para os padrões do campo oficial. A partir disso, nos deteremos na análise de alguns aspectos característicos do design gráfico vernacular em relação ao uso das cores.

Podemos verificar que, de uma maneira geral, existe uma tendência nas representações gráficas populares a utilizar cores fortes, muito saturadas e combinações com bastante contraste. Talvez sejam recursos que permitam uma maior visibilidade da peça gráfica, o que identificamos com o modo característico das representações populares, ou “gosto da necessidade”. Se a função é informar, chamar a atenção para um produto ou local, as cores devem ser chamativas. Em relação aos letreiros pintados à mão e às embalagens, essa seria uma de suas características mais marcantes.

Figura 1: Embalagem de grampos <i>Ki-grampo</i> e embalagem de incenso <i>Quebra olho gordo.</i>
Figura 1: Embalagem de grampos Ki-grampo e embalagem de incenso Quebra olho gordo.

Em grande parte dos letreiros, as cores são vivas e aplicadas em áreas chapadas, não sendo comum o uso de sombras e degradês, exceto em ilustrações que tentam se aproximar de uma representação mais realista. A preferência por cores chapadas poderia ser vista como uma limitação técnica, uma vez que é mais simples pintar dessa forma do que usando degradês, por exemplo. Em relação à cor de base dos letreiros pintados em lona, que geralmente é a do próprio material do suporte, sem pintura, também existe uma preferência por cores mais vivas. Já no caso de letreiros pintados diretamente sobre paredes e muros, costuma-se manter a cor original do fundo.

Figura 2: Letreiros artesanais.
Figura 2: Letreiros artesanais.

A saturação de uma cor, ou cromaticidade, pode ser definida como a vivacidade ou pureza da cor. Portanto, as cores puras seriam consideradas saturadas e as cores misturadas com preto, branco ou cinza, menos saturadas. As cores consideradas “pastéis” seriam cores pouco saturadas. De um modo geral, não é comum o uso dessas cores, assim como daquelas muito claras em peças de design gráfico popular, exceto em algumas filipetas em que são usados papéis coloridos como suporte para impressão.

Em uma pesquisa que buscava examinar as diferenças em relação ao uso das cores em jornais voltados para diferentes públicos (Guimarães, 2000, p. 111), foi observado que os valores cromáticos variavam de acordo com a faixa sociocultural. Em jornais mais populares, foi observado um contraste maior entre as cores, combinações entre complementares e a predominância de cores primárias e secundárias chapadas em 100% (sem atenuações ou degradês), ao passo que nos jornais voltados para as classes A e B, as combinações de cores eram mais sóbrias, com menos contraste e com uso de degradês suaves em boxes e pequenas áreas de fundo.

Em outro estudo, a designer Deborah Sharpe (1974, p. 136-137) também aponta que os grupos socioeconomicos desprivilegiados expressam uma preferência por cores fortes e saturadas e considera tal fato como resultado direto da monotonia (sic) existente em seu entorno. A autora cita o caso de uma cadeia de loja de departamentos que construiu duas filiais utilizando como cores principais o preto e o branco em bairros com perfis bastante distintos. No bairro sofisticado, de classe alta, a loja foi um grande sucesso, mas no bairro proletário, com muitas fábricas e habitado por trabalhadores, foi um fracasso. Além das diferenças sociais e psicológicas entre os dois grupos, a autora atribui o fracasso da filial também ao fato de as cores se misturarem à fuligem, à sujeira e ao tédio generalizado da paisagem local.

Podemos associar o gosto por cores fortes e saturadas a uma preferência característica das camadas populares. A preferência por cores vivas pode ser observada também em outras áreas da prática popular, como, por exemplo, em pinturas naïfs, nos desfiles carnavalescos e na decoração, situações em que podemos identificar padrões de uso de cores bastante distintos daqueles utilizados por grupos economicamente privilegiados.

Além da preferência por cores fortes e muito saturadas, é possível identificar no campo de produção do design gráfico vernacular outros padrões no uso das cores, característicos desse tipo de produção. Muitas vezes esses modelos se estabelecem a partir de uma relação entre cor/tipo de produto ou podem ser determinados pelas limitações dos recursos de produção disponíveis. Em alguns casos, esses modelos podem surgir sem um motivo aparente mas, pelo uso constante e pela reprodução por parte dos criadores instauram-se e se tornam característicos desse tipo de linguagem. Tal análise, porém, não é o escopo deste trabalho, pois não pretendemos identificar o porquê do uso das cores, mas sim verificar quais são seus usos mais frequentes.

Em relação aos letreiros pintados à mão, foi observada a predominância do uso de três cores principais: amarelo, azul e vermelho. Essas cores podem surgir combinadas em tríade, em dupla ou como a cor principal da composição. Pensando em termos de sensações provocadas pelas cores, estas são sempre bem alegres e vibrantes. Não é comum nesses objetos o uso de cores pouco luminosas para grandes áreas, como preto, marrom, azul marinho e cinza escuro, que são mais usadas para a pintura de texto.

Figura 3: Letreiros artesanais.
Figura 3: Letreiros artesanais.

Cabe notar que o vermelho, o azul e o amarelo seriam as três cores primárias para teóricos da cor, como Johannes Itten (2004), que as considerava as cores básicas para a pintura. Por meio da mistura dessas cores, em diferentes proporções e combinações, seria possível produzir quase todas as tonalidades. A combinação dessas três cores também pode ser classificada como uma harmonia de tonalidade, por serem cores muito saturadas ou também como uma harmonia em tríade, uma das combinações de cores mais marcantes, de acordo com Itten.

Conforme pretendemos demonstrar, a identificação de um sistema de cores que apresenta tais combinações como principais carrega um significado simbólico, típico dos letreiros pintados à mão. Essa estrutura de três cores é reproduzida em diversas peças, de diferentes artistas e em diferentes tipos de negócios. As combinações das cores primárias de Itten também são bastante usadas em embalagens e impressos populares. Observamos ainda que essas três cores aparecem com frequência combinadas também aos pares.

Questionamo-nos por que nesses objetos o número de cores é reduzido, uma vez que não existem regras formalizadas para a aplicação de cores nem, aparentemente, restrições em relação ao uso de outras cores. Com a mistura dessas três cores de base seria possível criar várias outras, mas isso raras vezes ocorre. Talvez a solução adotada pelos letristas seja a mais simples, ou seja, usar as cores prontas seguindo padrões de combinações que já funcionam. Consideramos que, nesse campo, tais padrões correspondem aos valores simbólicos que se estabelecem a partir de tradições criadas em relação às suas aplicações.

Em letreiros que não tenham essas cores como principais, o número de cores é reduzido. Exceção a esse padrão é observada em desenhos mais realistas, especialmente de figuras humanas, onde são usados sombreados e cores variadas.

Além do uso predominante das cores primárias nos letreiros pintados à mão, identificamos outras tradições relacionadas ao uso das cores em peças gráficas populares. A cor amarela, por exemplo, é uma das mais utilizadas nessas peças. Usado como fundo, puro ou combinado a outras cores, o amarelo surge em diversas aplicações. Trata-se de uma cor de grande visibilidade e talvez por isso seja frequentemente aplicada nas peças populares, seguindo a estética funcional dessas representações.

Figura 4: Embalagens de pipoca de canjica.
Figura 4: Embalagens de pipoca de canjica.

Algumas cores podem ainda se tornar ícones de determinados produtos, como o rosa das embalagens de pipoca de canjica[3], que é utilizado por várias marcas desse produto. A cor de rosa, que é simbolicamente associada ao sabor doce, apresenta-se sempre em um mesmo tom e com grande saturação em diversas embalagens. Essa cor permite uma rápida identificação do produto, tanto por sua visibilidade quanto pela sua já consagrada associação ao mesmo. Outros elementos permitem relacionar esse produto à classe popular: o uso de outras cores fortes (além do rosa) e as imagens ilustrativas que mantêm uma identificação imediata com o nome da marca. Nesse exemplo foi criada uma tradição no uso dessa cor, que se tornou tão forte que passou a identificar o produto e seu público consumidor. Dessa forma, podemos dizer que tal cor tem um forte significado simbólico para o grupo consumidor.

Outro exemplo seria a embalagem do biscoito Globo, cujo esquema de cores auxilia a identificação dos sabores do produto: sobre o fundo branco do papel, o desenho é estampado em amarelo e vermelho para a versão doce, e em amarelo e verde para a versão salgada. Podemos dizer, então, que as combinações de cores das tradicionais embalagens são facilmente reconhecidas por seu público consumidor, sendo inclusive reproduzidas por uma marca concorrente. O biscoito Extra, que utiliza uma embalagem bastante parecida, segue um esquema de cores semelhante, sendo que em sua versão salgada o verde é substituído pelo azul. Apesar da mudança de uma das cores, o resultado final é bastante parecido. Nesse caso, a última marca se aproveitou do simbolismo das cores já consagrado pela marca mais famosa.

Figura 5: Embalagens de biscoito <i>Globo</i> e biscoito <i>Extra.</i>
Figura 5: Embalagens de biscoito Globo e biscoito Extra.

A combinação de vermelho e amarelo presentes em embalagens de estalinhos pode ser considerada também um exemplo de padrão de utilização de cores. As cores quentes que fazem referência à “explosão” provocada pelo produto foram observadas como principais em todas as marcas encontradas. Cabe observar que as embalagens são bastante semelhantes: crianças brincando com os estalinhos e os nomes das marcas dentro de balões estrelados.

Figura 6: Embalagens de estalinhos <i>Du-mano</i> e <i>Guri.</i>
Figura 6: Embalagens de estalinhos Du-mano e Guri.

Muitas vezes, o uso de cores que identificamos como característico ou típico do design popular é resultado da forma como as peças são produzidas. No caso das peças impressas, podemos dizer que, na maior parte das vezes, são utilizados métodos de impressão econômicos ou recursos que os tornam menos dispendiosos, como o uso de poucas cores. Com isso são criados alguns padrões, como os que identificamos a seguir.

Em embalagens padronizadas de papel para pipocas, churros e produtos de padarias podemos perceber o recurso de imprimir um mesmo desenho em cores variadas, o que indica o aproveitamento da chapa de impressão. Esses exemplos representam uma forma econômica de obter resultados distintos a partir de um mesmo original. Nas embalagens do “pipocão amor”, o mesmo grafismo pode vir impresso nas cores verde, vermelho ou azul. Essas embalagens, que não são produzidas para marcas ou fornecedores específicos e podem ser compradas pelos comerciantes em lojas especializadas, vêm sendo produzidas há muito tempo e em grandes quantidades. Supomos que o processo de impressão utilizado seja a flexografia, cuja matriz é dispendiosa, mas possui grande durabilidade, podendo ser usada por muitos anos. A impressão em cores distintas seria, portanto, uma forma de atualizar essas embalagens, modificando a aparência final de forma econômica.

Figura 7: Embalagens de pipoca impressas a partir da mesma matriz.
Figura 7: Embalagens de pipoca impressas a partir da mesma matriz.

Na grande maioria das embalagens, também observamos o uso de poucas cores, mas que seguem o padrão popular de cores com bastante contraste, como vemos na embalagem de henê Pelúcia impressa com uma única cor. Nesses casos, há o aproveitamento do branco da cor de fundo, ou a transparência que deixa a cor do produto à mostra, como na embalagem do henê, o que visualmente proporciona a sensação de uma segunda cor, mas que não é fisicamente impressa.

Figura 8: Embalagem de henê <i>Pelúcia</i> impressa em uma cor.
Figura 8: Embalagem de henê Pelúcia impressa em uma cor.

Muitas embalagens utilizam ainda duas cores de impressão, mas provocam a sensação de uma terceira cor ao deixar transparecer o branco do fundo. Observamos esse recurso nas embalagens do defumador Quebra mandinga, do perfume da Pomba Gira (Figura 9) e na do incenso Quebra olho gordo (Figura 1), impressas com duas cores. Se, por questões econômicas, muitas vezes nos impressos populares a quantidade de cores de impressão é restrita, a opção por cores muito vivas ou saturadas seria uma forma de criar contrastes que chamem a atenção do consumidor. Algumas combinações poderiam parecer estranhas se usadas pelo campo oficial, como as tonalidades de rosa e azul do incenso Quebra olho gordo, ou o amarelo com preto e branco do defumador Quebra mandinga. Cabe destacar, ainda, que encontramos poucas embalagens impressas em quatro cores.

Figura 9: Embalagem de defumador <i>Quebra mandinga</i> e perfume da <i>Pomba Gira</i> impressas em duas cores.
Figura 9: Embalagem de defumador Quebra mandinga e perfume da Pomba Gira impressas em duas cores.

Observamos por meio dos exemplos apresentados os padrões cromáticos característicos da linguagem do design gráfico vernacular. Destacamos que alguns recursos, como o uso de poucas cores por restrições de ordem econômica, não são exclusivos desse tipo de produção, apesar de bastante comuns nela, e muitas vezes determinam o resultado final da peça. Vimos que é bastante comum o uso da combinação das cores amarelo, vermelho e azul, sendo que essas cores também são as que surgem com mais frequência de forma isolada, especialmente o amarelo. Verificamos ainda que é corriqueira a associação entre determinadas cores e tipos de produtos, sendo certo que algumas cores, ou combinação delas, podem se tornar icônicas para uma categoria de produto. Por último, podemos afirmar que o padrão cromático mais distintivo entre os apresentados parece ser a preferência por cores muito fortes e saturadas, a fim de destacar a informação. Tais padrões parecem ser aplicados de forma espontânea pelos designers populares e, certamente, são um elemento distintivo desse tipo de linguagem visual.

* Fernanda de Abreu Cardoso é doutora em design e professora do curso de Comunicação Visual Design da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (EBA/UFRJ).


Referências

BOURDIEU, Pierre. Distinction –  A social critique of the judgment of taste. Cambridge: Harvard University Press, 2002.

BOURDIEU, Pierre. “O mercado de bens simbólicos”. In: A economia das trocas simbólicas. Organização Sérgio Miceli. São Paulo: Editora Perspectiva, 1974, p.99-181.

CARDOSO, Fernanda de Abreu. Design gráfico vernacular: a arte dos letristas. Dissertação (mestrado em Design). Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/ RJ), 2003.

CARDOSO, Fernanda de Abreu. O universo simbólico do design gráfico vernacular. Tese (doutorado em Design). Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/ RJ), 2010.

GUIMARÃES, Luciano. A cor como informação – a construção biofísica, linguística e cultural da simbologia das cores. São Paulo: Annablume, 2000, p. 111.

ITTEN, Johannes. The art of color: the subjective experience and objective rationale of color. New York: John Wiley & Sons, 2004.

MAHNKE, Frank H. Color, environment and human response. New York: Van Nostrand Reinhold, 1996.

PASTOUREAU, Michel. Bleu – histoire d’une couleur. Paris: Éditions du Seuil, 2002.

SHARPE, Deborah T. The psychology of color and design. Chicago: Nelson-Hall Company, 1974, p. 136-137.

Notas

[1] Pierre Bourdieu relaciona as estruturas dos espaços sociais aos estilos de vida, construindo um modelo de relações que associa as condições econômicas e sociais de um grupo a um universo simbólico próprio, ainda que suas fronteiras sejam difíceis de identificar. Seu conceito de habitus se refere a condições de vida e existência que geram determinadas opções por parte dos pertencentes a um grupo.

[2] Quando pensamos que o meio geográfico pode ser determinante no uso das cores, referimo-nos ao fato de que um grupo social vivendo isoladamente constrói seus padrões e definições para as cores que emprega e não que o meio geográfico em si possa influir na escolha de uma cor. Ainda que possamos dizer que o sol dos trópicos tenha encantado muitos pintores de paisagens mais setentrionais, essa é uma questão não muito clara e fora do escopo deste trabalho.

[3] A pipoca doce, produto tipicamente popular, de preço baixo, é facilmente encontrada à venda em barraquinhas nas ruas ou por vendedores ambulantes.

Tempo de leitura estimado: 35 minutos

Design de interação para aplicativos jornalísticos em tablets: um olhar interdisciplinar | Luiz Agner*

Em uma década, o computador se transformou, de uma tecnologia culturalmente invisível, em um mecanismo fundamental da nossa cultura. Desse modo, a nossa sociedade adicionou uma nova e fundamental dimensão à cultura: o software. Em particular, o software cultural que nos permite acessar, produzir e compartilhar conteúdos. As interfaces (ícones, gestos, folders, sons, animações, cliques e toques) são também softwares culturais intermediando interações entre pessoas e mídias e entre pessoas e pessoas (Manovich, 2010).

Nesse contexto, percebe-se que as interfaces atuais habilitam práticas de leitura mediadas por dispositivos portáteis como os e-book readers, smartphones ou tablets – inseridos e absorvidos rapidamente pelo mercado editorial. São exemplos dessas novas práticas a leitura conectada e a leitura compartilhada. Cabe-nos o desafio de investigar se, e de que forma, essas recentes tecnologias de produção e consumo da informação influenciam a efetividade, a eficiência e a satisfação (leia-se usabilidade) do leitor durante a interação com as novas interfaces, na construção dos significados da leitura (Agner, 2011).

Já existe grande variedade de dispositivos que trabalham no nicho dos e-book readers, a partir de uma diversidade de plataformas, sistemas operacionais ou fabricantes, sendo os mais conhecidos deles o Kindle (da Amazon) e o Ipad (da Apple). Além disso, os chamados tablets podem ser definidos como computadores móveis em formato de tabuletas com telas sensíveis ao toque, interação por gestos e conexão sem fio à internet.

As recentes inovações tecnológicas introduzidas no mercado e a popularização dos tablets em diversos países permite-nos supor que podem estar surgindo novas práticas que pontuam os processos de leitura. Segundo Chartier (2001), as transformações na leitura têm sido notadas em três pontos: primeiro, o leitor agora pode escrever no texto, submetendo-o às suas próprias decisões e introduzindo a sua própria escrita; segundo, pode escrever na biblioteca; e, terceiro, surge a disponibilidade universal do acesso do leitor ao patrimônio textual, anulando a ideia de haver um “lugar” específico para a leitura. Isso fica claro em algumas livrarias virtuais, como a Google e-Book Store, onde o leitor agora pode armazenar sua biblioteca de livros na nuvem, recuperando-os em qualquer lugar na página onde interrompeu a leitura, e fazendo o seu transporte entre diversos dispositivos – do laptop para smartphone, ou do e-reader para o tablet.

Atualmente, a tendência é que as editoras tradicionais percam seu espaço para empresas oriundas do mundo da tecnologia, como a Apple, a Amazon e a Google. O mercado editorial vem sendo sacudido com o fechamento de grandes redes de livrarias como a Borders, a segunda maior dos EUA, e a transformação paulatina de outras, como a Barnes & Nobles, em companhias de software, concentradas na produção de aplicativos para livros digitais (Brigatto, 2011).  Diante das mudanças que se avizinham, a indústria de mídia se reposicionou e o jornalismo procura se reinventar para acompanhar a revolução: é exemplo o jornal The Daily, exclusivamente voltado para o formato Ipad (Figura 1).

Figura 1: Jornal digital <i>The Daily</i>, exclusivo para formato <i>Ipad</i> (2011).
Figura 1: Jornal digital The Daily, exclusivo para formato Ipad (2011).

Transformações na linguagem jornalística

Em um casamento aparentemente perfeito com a informação jornalística, o tablet restitui aos leitores o modelo de interação direta que o mouse lhes havia subtraído: o uso das mãos. Ao empregar os dedos e os gestos para interagir e manipular diretamente a informação – folheando páginas de revistas ou jornais, ativando imagens, links, botões e vídeos – os usuários reencontram a naturalidade de uma interação com base nos gestos. Com maior conforto e comodidade, possivelmente recostado a uma poltrona ou sofá, o leitor é convidado a passar mais tempo interagindo com a interface: verifica-se que, num site de notícias, ele empregará a sua atenção em média dez minutos; ao ler um jornal impresso, cerca de 30 minutos; e num tablet como o Ipad ou um dispositivo Android, até 40 minutos.

Observa-se também que a integridade gráfica da hierarquização visual da informação – uma importante característica do jornalismo impresso – retornou ao primeiro plano nos tablets, retomando um papel proeminente na arquitetura de informação, o que nos remete à força da comunicação visual das revistas impressas. “O “pulo do gato” dos tablets é a experiência de leitura agradável, que traz as vantagens da internet numa interface gráfica bonita e prazerosa, que une o mundo impresso e o digital” – explicou Adriana Barsotti (2012), editora do vespertino O Globo A Mais.

Entretanto, há consistentes críticas quanto aos aplicativos noticiosos para Ipad. Segundo Primo (2011), os periódicos brasileiros não conseguem atingir todas as potencialidades dos novos dispositivos: buscam a simples conversão de páginas impressas para o Ipad, o que causa um retrocesso há tempos superado pelo webdesign.

Na visão de Telio Navega, diagramador de O Globo A Mais, uma parte do problema dos aplicativos noticiosos atuais poderia ser creditada à incompreensão dos jornalistas quanto a mudanças que ocorrem nos hábitos dos leitores mais jovens. Para Navega (2012): “Os leitores de notícias estão na internet, não compram nem assinam mais jornais. Esta é a grande dificuldade dos jornais atuais: as pessoas que trabalham nos jornais são pessoas mais velhas, que estão longe deste público, e não conseguem entender o que acontece.”

“Os aplicativos jornalísticos em tablets já são um fracasso”, afirma Lund (2013), na esteira do fim da experiência comercial do The Daily, descontinuado após 30 milhões de dólares em prejuízos anuais. Segundo o autor, as revistas no formato tablet são completamente invisíveis aos fluxos de informação que governam a internet: quando a publicação jornalística é organizada desta forma, seus artigos não podem ser indexados pelos mecanismos de busca. Mesmo se fossem, clicar no link do Google levaria o internauta a uma loja virtual, não à publicação em si. O resultado é o mesmo na mídia social, onde não se pode tuitar ou colocar links diretos para o artigo, reduzindo dramaticamente a sua audiência. Semelhante restrição também pode ser apontada no uso de aplicativos de curadoria como Flipboard e Zite. Tudo isso contribuiria para elevar a dificuldade de compartilhamento do jornalismo para tablets e a uma consequente diminuição da sua relevância em comparação a outros meios.

Crítico dos esforços das empresas jornalísticas, o designer londrino Chris Stevens – autor do livro Designing for the Ipad (2011) – observou que os atuais aplicativos jornalísticos para tablets estão mimetizando os pesadíssimos CD-Roms de outrora – o que os torna menos úteis e práticos do que a própria web, esta com tecnologias abertas como HTML5 e CSS, muito mais eficientes e igualmente capazes de reproduzir os sofisticados layouts gráficos característicos dos tablets. Tal equívoco, segundo o autor, resultará na definitiva sentença de morte desses periódicos.

Dialogando com visões distintas da interação

Esta pesquisa pretendeu estabelecer um diálogo com diferentes visões teóricas que abordaram a interação entre pessoas e computadores. Por isso, visamos agregar pontos de vista provenientes dos estudos da Cibercultura, da Semiótica, da História das Práticas de Leitura, do Design de Interação e da Arquitetura da Informação para a compreensão da aplicabilidade das interfaces gestuais de publicações jornalísticas digitais.

Na perspectiva da Cibercultura, Primo (2007) lembra que, como o termo “interatividade” nasceu originalmente no seio da indústria de tecnologia, não é surpresa que tenha um forte teor tecnicista. O autor propõe duas grandes categorias para a discussão da interação mediada por computador: a interação reativa e a interação mútua. Nessa perspectiva, a interação reativa representaria um conjunto de formas e tipos de interação em que há predeterminações que condicionam as trocas durante a interação. Ou seja, ela percorre trilhas previsíveis: há relações potenciais de estímulo-resposta impostas por, pelo menos, um dos envolvidos na interação. Nesse caso, se as regras forem ultrapassadas, o sistema interativo é bruscamente interrompido.

Na interação mútua, por outro lado, os interagentes reúnem-se em torno de contínuas problematizações, ou seja, as soluções inventadas são momentâneas e a própria relação entre os interagentes vai se redefinindo por meio de um processo de negociação que ocorre ao mesmo tempo em que acontecem os eventos interativos. Cabe ressaltar que as duas categorias de interação não existem de modo excludente: por exemplo, numa rede social como o Facebook, ao mesmo tempo em que se conversa com outras pessoas, também se interage com a interface, por meio de mouse e teclado, constituindo uma interação ao mesmo tempo reativa e mútua. A mesma interpretação é válida no caso de um leitor que interage com uma publicação jornalística em um tablet, com possibilidade da leitura conectada e discussão via fórum ou chat com demais leitores simultâneos: as duas formas de interação estão presentes.

No âmbito da Ciência da Computação, as abordagens mais conhecidas da interação surgiram a partir da indústria de computadores, nas últimas décadas do século XX, e são conhecidas sob a denominação genérica de Interação Humano-Computador (IHC). De acordo com Carroll (2011), esta representa uma área de pesquisa e de prática que emergiu nos anos 1980. Inicialmente uma especialização da Ciência da Computação, a IHC se expandiu durante três décadas, atraindo profissionais de outras disciplinas e incorporando diferentes conceitos e abordagens teórico-metodológicas, provenientes de diversos campos. A IHC atualmente apresenta um dos melhores exemplos de como epistemologias e paradigmas diferentes podem conviver e conversar de modo conciliado e integrado.

As vertentes predominantes e canônicas da IHC são de base cognitiva (Preece et al., 2002). Suas raízes provêm da psicologia cognitiva, da ciência cognitiva e da inteligência artificial – disciplinas que estudam a cognição (o processo pelo qual se pode adquirir conhecimento). Elas buscam a compreensão das restrições mentais dos usuários durante a sua interação com as interfaces. Além disso, existem também abordagens semióticas da Interação Humano-Computador – que têm como base teórica a Semiótica, a disciplina que estuda os signos, os sistemas semióticos e de comunicação. Essas partem do trabalho de semioticistas consagrados como Charles Peirce, Jakobson e Umberto Eco.

Ao visarmos compreender a aplicabilidade de um sistema, podemos trabalhar tanto com o conceito de usabilidade (proveniente das teorias de base cognitiva) quanto com o de comunicabilidade (um postulado da Engenharia Semiótica). A usabilidade se refere à qualidade da interação de sistemas com os usuários e engloba vários aspectos como a facilidade de aprendizado e de uso, a satisfação do usuário e a produtividade, entre outros. Já a comunicabilidade descreve a propriedade de um sistema para transmitir ao usuário, de modo adequado, as intenções e princípios de interação que guiaram o seu design. Assim, o objetivo da comunicabilidade é permitir que o usuário seja capaz de compreender as premissas, intenções e decisões tomadas pelo projetista durante o processo de design, pois quanto maior for o seu conhecimento e percepção da lógica embutida no sistema, maiores serão as suas chances de fazer uso criativo e produtivo da aplicação (de Souza et al., 1999).

Na visão da Engenharia Semiótica, a interface do sistema é vista como sendo uma mensagem enviada pelo designer ao usuário. O designer é o autor da mensagem transmitida ao usuário e a Interação Humano-Computador reflete um processo de metacomunicação. Assim, o design de interfaces envolve não apenas a concepção intelectual do modelo do sistema, mas também a comunicação deste modelo, de modo a revelar eficazmente para o usuário todo o espectro das possibilidades de uso da aplicação – estabelecendo, durante a interação, um processo de semiose consistente.

Por isso, o objeto de estudo da Engenharia Semiótica (de Souza, 2005) inclui os processos de comunicação designer-usuário que serão ou estão codificados computacionalmente na interface por meio de diferentes representações (signos). Trata-se de uma engenharia de signos: um processo racional de escolha de representações que serão computacionalmente codificadas e interpretadas (pela máquina) e a investigação e construção de estratégias de comunicação únicas. A Engenharia Semiótica contrapõe-se criticamente à Engenharia Cognitiva, esta proposta pelo psicólogo Donald Norman – que se preocupa em otimizar os processos de aprendizado e de cognição, e seus efeitos sobre o design e o uso de artefatos computacionais. A Engenharia Cognitiva é centrada nos usuários. A principal crítica a esta teoria pela Engenharia Semiótica centra-se na sua tendência preditiva e de identificação de princípios universalizantes para a explicação do comportamento humano e para a identificação de requisitos de design.

Outra visão contemplada nesta pesquisa, com a qual buscamos dialogar, é a da Arquitetura de Informação (AI). Trata-se de uma metadisciplina preocupada com o projeto, a implementação e a manutenção de espaços informacionais, como definiu o Journal of the American Society for Information Science and Technology (apud Morrogh, 2003). O foco da AI pretende ser o projeto de estruturas que fornecem aos usuários que buscam informação os recursos necessários para atingir os seus objetivos informacionais com sucesso.

Além disso, a pesquisa foi encontrar no trabalho de Cavallo e Roger Chartier (1998) os fundamentos para compreender como a revolução dos tablets se agrega às alterações das práticas de leitura. Os autores nos alertam que é preciso considerar que as formas produzem sentido e que um texto se reveste de uma significação e de um estatuto inédito quando mudam os suportes que o propõem à leitura. A história das práticas de leitura é, portanto, “uma história dos objetos escritos e das palavras leitoras”. Essa história considera o “mundo do texto” um mundo de objetos, de formas e de rituais, com convenções e disposições específicas que incitam à construção do sentido. Ou seja, não existe texto fora do suporte que permite a sua leitura: os autores não escrevem livros, escrevem textos que se tornam objetos escritos – manuscritos, gravados, impressos ou informatizados – manejados de diferentes formas por leitores de carne e osso. Desse modo, Cavallo e Chartier se colocam contra as representações do senso comum em que o texto existe em si mesmo, separado de sua materialidade.

O paradigma da interação gestual: novos desafios para o design

Os mencionados tablets são dispositivos portáteis, com telas sensíveis ao toque, que consistem em mecanismos de input do novo paradigma da interação por gestos. Segundo Saffer (2009), um gesto pode ser considerado como qualquer movimento físico detectado através de sensores por um sistema digital, que pode responder sem o auxílio de mecanismos tradicionais, como mouses ou canetas. Os gestos originam-se de qualquer movimento ou estado do corpo humano. Desse modo, um movimento de cabeça, um piscar de olhos ou um toque no chão com a ponta do sapato podem ser interpretados como gestos. O reconhecimento de gestos é um tópico específico da Ciência da Computação e da Tecnologia da Linguagem que objetiva decodificar a comunicação corporal humana a partir de algoritmos matemáticos.

O reconhecimento de gestos representa a forma de os computadores começarem a compreender a linguagem do corpo, indo além das interfaces tradicionais, limitadas ao uso do mouse, joystick ou teclados. Atualmente, os estudos dos gestos centram-se no reconhecimento do movimento das mãos e das expressões faciais.

Um momento do cinema conhecido por exemplificar a interação com computadores por meio de interfaces gestuais foi a clássica cena de Tom Cruise no filme Minority Report, de 2002:

Figura 2: Tom Cruise interage com o sistema por meio dos gestos em <i>Minority Report</i>.
Figura 2: Tom Cruise interage com o sistema por meio dos gestos em Minority Report.

Stevens (2011) lembra-nos que as “antigas” interfaces WIMP (windows, icons, mouse, pointer) tiveram sua origem nas décadas de 1960 e 70 nos laboratórios PARC da Xerox. Sistemas desse tipo utilizam o deslocamento do mouse em uma superfície horizontal plana para mover ou selecionar objetos correspondentes na tela. Nos últimos quarenta anos, temos interagido do modo concebido por Douglas Engelbart, Alan Kay, Tim Mott, Larry Tesler, e outros engenheiros e designers da época: através da metáfora do desktop. Mas esses métodos de manipulação indireta estão sendo rapidamente preteridos em função da manipulação direta (conceito seminal proposto por Ben Shneiderman em 1983) e, em poucos anos, os sistemas centrados no mouse provavelmente nos parecerão tão arcaicos como hoje são as interfaces de linha de comando ao estilo MS-DOS.

De acordo com Dan Saffer (2009), as interfaces gestuais podem ser classificadas em touchscreen ou de forma livre. As primeiras pressupõem que o usuário toque diretamente a tela do dispositivo; as de interfaces livres podem requerer controles, luvas especiais, ou ter simplesmente no corpo humano o dispositivo de input.

Saffer elenca as principais características requeridas de um bom design para interface gestual. São elas: (1) detectabilidade: refere-se à importância das affordances, conceito cunhado pelo psicólogo Gibson e popularizado por Don Norman; (2) confiabilidade: a interface deve parecer segura; (3) ser responsiva: fornecer uma resposta instantânea ao usuário (em até 100 milissegundos); (4) adequação: precisa ser adequada ao contexto (dependendo da cultura, há gestos que são ofensivos); (5) significância: ter significado específico para as necessidades do usuário; (6) inteligência: deve realizar eficientemente o trabalho que o ser humano não pode realizar tão bem; (7) sutileza: a capacidade de predizer as necessidades do usuário; (8) divertimento: gerar o engajamento do usuário por meio da diversão; (8) estética: deve ser prazerosa aos sentidos visual, auditivo e háptico (relativo ao tato); (9) ética: não solicitar gestos que façam as pessoas parecerem tolas em público ou que só possam ser executados por jovens e usuários saudáveis.

Apesar de todo o alvoroço mercadológico gerado em torno das possibilidades abertas pelos novos dispositivos, em coluna para a revista Interactions, Donald Norman, pesquisador da Interação Humano-Computador (IHC), apontou que a recente corrida dos engenheiros de software para desenvolver interfaces gestuais tem levado ao esquecimento dos princípios e dos padrões sedimentados do design de interação (Norman e Nielsen, 2010).

As interfaces gestuais têm ignorado princípios essenciais da interação, que são independentes de tecnologias específicas. São eles: a visibilidade (affordances percebidas); o feedback; a consistência (os padrões); as operações não destrutivas (reversibilidade ou undos); a detectabilidade (a qualidade das funções poderem ser descobertas através da exploração de menus); a escalabilidade (funcionar em todos os tamanhos de telas); e a confiabilidade (não aleatoriedade das operações).

Observações sistemáticas de uso

O projeto de pesquisa empregado neste trabalho incluiu duas técnicas de ênfase qualitativa: as entrevistas exploratórias e a técnica de observação de usuários STBI – Scenario and Tasks Based Interviews (Entrevistas Baseadas em Cenários e Tarefas). As entrevistas exploratórias já foram abordadas em outras comunicações científicas (Agner, 2012).

O método de observação centrado nos usuários, denominado STBI, é uma variante do teste de usabilidade no campo, que representou uma alternativa desenvolvida pelo autor em parceria com outros pesquisadores de Interação Humano-Computador.

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Figura 3: Páginas da edição do vespertino digital O Globo A Mais utilizada para ensaios de interação nas Entrevistas Baseadas em Cenários e Tarefas (07 de maio de 2012).

Um dos objetivos foi aplicar o método STBI para testar o aplicativo O Globo A Mais com uma amostra de jovens estudantes de Comunicação para a avaliação do design de suas interfaces gestuais. A amostra de participantes selecionada foi não probabilística e subordinada aos objetivos específicos da pesquisa. Dessa forma, buscamos radiografar o perfil de uma turma de alunos de uma faculdade particular do Rio de Janeiro, com o levantamento da sua experiência quanto ao uso de tablets para a leitura de conteúdos jornalísticos.

Dos que responderam ao questionário de seleção, 50 % são jovens entre 20 e 24 anos; a maioria (77%) ainda não costumava acessar publicações jornalísticas em tablets; e, apesar de serem estudantes de Comunicação Social, a grande maioria (72%) não conhecia o vespertino digital de O Globo, o principal diário do Rio de Janeiro e um dos maiores do Brasil.

Após a aplicação de questionários preliminares, foi selecionado um grupo de seis jovens entre aqueles que se dispuseram a participar na qualidade de usuários. Com relação ao quesito “experiência em leitura de publicações jornalísticas em tablets” foram escolhidos dois alunos que tinham “experiência alta” ou “moderadamente alta”, dois alunos com “alguma experiência” ou “experiência moderada” e mais dois alunos que não possuíam qualquer experiência prévia nesse tipo de leitura. O número de seis jovens escolhidos deveu-se à proximidade do número indicado pelo pesquisador de Interação Humano-Computador, Jakob Nielsen, para a aplicação de testes de usabilidade (Barnum et al, 2012). Nielsen sustenta a tese de que cinco seria um número suficiente de participantes, garantindo a identificação de cerca de 80% dos problemas de uma interface.

Desse modo, a pesquisa iniciou a sua segunda fase com o método de observações sistemáticas de uso STBI (que, como observado, é derivado dos conhecidos testes de usabilidade, amplamente utilizados pelas pesquisas de Interação Humano-Computador).

Figura 3: Páginas da edição do vespertino digital O Globo A Mais utilizada para ensaios de interação nas Entrevistas Baseadas em Cenários e Tarefas (07 de maio de 2012).   A edição do aplicativo O Globo A Mais utilizada para o experimento foi a do dia 7 de maio de 2012 (Figura 3). O experimento ocorreu em uma sala reservada, em sessões individuais, com cerca de uma hora de duração cada. Antes de dar início às sessões, o facilitador forneceu o tablet Ipad pré-carregado com uma edição que foi utilizada para a ambientação prévia do participante. Após a ambientação com a publicação, cada participante preencheu um questionário de pré-teste para identificação de mais detalhes de seu perfil de usuário e de sua experiência com a tecnologia de informação. Em seguida, cada estudante selecionado recebeu uma folha de papel contendo, por escrito, o cenário e oito tarefas a serem realizadas (Tabela 1). Durante as sessões de navegação n’O Globo A Mais – nas quais cada participante procurou realizar as tarefas propostas – empregou-se o protocolo think-aloud (pensamento em voz alta). Ao término das tarefas, o facilitador apresentou dois questionários de pós-teste, além de propor uma entrevista livre para compreensão das estratégias de navegação adotadas.

Cenário Você é um(a) estudante de Comunicação e está no campus da sua faculdade, aguardando durante o intervalo entre as aulas. Um amigo lhe emprestou um tablet e você aproveitou para consultar as notícias no vespertino digital O Globo A Mais.
Tarefas Use o O Globo A Mais para encontrar as seguintes informações:(1) Para um trabalho da faculdade, encontre dados de exportações da indústria automotiva relativos a abril, divulgados pela Associação Nacional de Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea).
(2) Você teve curiosidade de saber que livros foram escritos pelo sociólogo Alain Touraine.
(3) Você quis ver a foto do pênalti cobrado pelo craque francês Zidane sobre o goleiro italiano Buffon.
(4) Você se interessou em saber por quanto pode comprar uma garrafa do vinho Barbeito 3 anos, doce.
(5) Aponte qual é a participação dos gastos públicos no Produto Interno Bruto da França, segundo um economista brasileiro.
(6) Você se interessou em saber a idade do vocalista Joey Tempest, da banda Europe. E aproveitou para assistir ao vídeo The Final Cowntdown, um sucesso de 1986.
(7) Você quer ver a foto de ciclistas disputando a terceira etapa do Giro da Itália, vencida pelo australiano Matthew Goss.
(8) Usando o aplicativo, marque a matéria que mais te interessou para ler depois.

Tabela 1: Cenário e tarefas nas sessões de leitura do vespertino O Globo A Mais.

Resumo das descobertas

Apresentam-se aqui informações reunidas na fase de registro de observações empíricas de uso com o método de Entrevistas Baseadas em Cenários e Tarefas, a partir da revisão das 54 gravações em áudio e vídeo produzidas.

As conclusões refletem como os problemas de usabilidade encontrados foram classificados, segundo as categorias identificadas pelos pesquisadores Jakob Nielsen e Donald Norman para o estudo da interação com interfaces gestuais. A seguir, listam-se exemplos das dificuldades associadas a cada uma das categorias de problemas.

1 Visibilidade de affordances

– Leitores demonstraram dificuldade em perceber a existência de conteúdos adicionais.

– Não há diferenciação visual explícita entre os elementos sensíveis e não sensíveis ao toque (tap).

– Ícones solicitando o toque sobre outros elementos confundem o leitor e o fazem tocar no ícone (e não no elemento dotado de interatividade).

– Na área “Dicas a Mais”, o cabeçalho com destaques visuais para diversos assuntos leva o leitor a pensar que são links mas esta expectativa é frustrada (ou seja, o cabeçalho sinaliza erroneamente affordances para “Ler, Degustar, Assistir, Consumir, Dançar”).

2 Feedback

– Faltam indicações claras da localização do leitor dentro do aplicativo: o leitor não sabe em qual editoria está. Exemplo: a usuária do Teste 1 afirmou que ficou “perdida”. Falta uma barra fixa de localização no cabeçalho ou um caminho de navegação estruturada (breadcrumb) – tal como “capa > política” –, o que poderia resolver este problema.

– Na galeria de fotos, não há feedback sobre quantas fotos existem e quantas foram visualizadas.

3 Consistência: interna e externa

– Há dois conceitos de paginação divergentes dentro do conteúdo. O aplicativo adota o conceito de avançar horizontalmente para navegar entre matérias e, ao mesmo tempo, avançar verticalmente para se aprofundar dentro de uma matéria específica. O modelo duplo rompe com o sentido natural do mundo físico (Figura 4).

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Figura 4: Modelo de navegação rompe com o paradigma da publicação em papel. Passar para a próxima matéria é um gesto horizontal. Dentro de cada matéria, a paginação torna-se um movimento vertical.

– A capa não desempenha o papel de home page, o que contraria a expectativa do leitor imersivo e da Geração Y que cresceu navegando em websites. Tampouco há página de índice na publicação.

– Também relacionada às expectativas comuns de navegação do leitor imersivo e da Geração Y, a capa sugere que há links das chamadas para as respectivas matérias internas (como acontece na web), mas essa expectativa foi frustrada.

– O botão “Voltar” que fica no alto da tela faz o leitor fechar o aplicativo e voltar para a “Banca de Jornais”, quando ele pretende somente retornar para a capa. A “banca” é uma metáfora do mundo físico, mas não parece haver consistência com o modelo de navegação ao qual o leitor já está acostumado na web. O botão “Voltar” na World Wide Web retorna à última página visitada, mas não nesse aplicativo.

– O app não possui uma ferramenta de busca por palavras-chave, conforme o padrão de uso comum na web, embora seja intenção da equipe implementá-la futuramente.

– Faltam funções compatíveis com outras navegações do Ipad – como, por exemplo, a “pinça” com dois dedos para maximizar conteúdos, ou o duplo-tap para ampliar a visualização da tela. Em certos casos, esses recursos fazem falta, pois as letras tornam-se pequenas.

– Há problemas de duplicidade de scrolls (scrolls dentro de scrolls).

– Há formas divergentes de se sugerir a existência de mais conteúdos da mesma matéria. Símbolos graficamente diferentes indicam a mesma função.

– Há emprego inconsistente da linguagem verbal: termos ora em português e ora em inglês para descrever o funcionamento de ferramentas.

4 Reversibilidade de ações (operações não destrutivas)

– O botão “Voltar” gera um problema de navegação, pois interrompe o uso do aplicativo. Uma ação de navegação equivocada não permite reversibilidade à posição anterior (Figura 5).

Figura 5: O botão Voltar gera uma operação que interrompe o uso do aplicativo, causando desorientação ao leitor.
Figura 5: O botão Voltar gera uma operação que interrompe o uso do aplicativo, causando desorientação ao leitor.

5 Detectabilidade de funções

– A barra de navegação desaparece durante grande parte da navegação e não dispõe de rótulos textuais em seus ícones. Devido a isso, o leitor demonstrou ter dificuldades em encontrar a função “Adicionar aos Favoritos”, posicionada na barra de navegação.

6 Escalabilidade em telas diferentes

– Embora a publicação seja dirigida somente ao dispositivo da Apple, o que minimiza esta categoria de problemas, é difícil passar as fotos em modo horizontal, pois a área de swipe diminui; os leitores também se confundem com a passagem dos vídeos.

7 Confiabilidade nas operações

– Uma vez estando na galeria de fotos, o usuário precisará tocar em uma área específica para paginar horizontalmente, ao contrário das outras páginas do vespertino. Ou seja, a galeria parece ter uma resposta aleatória, o que gera insegurança nas operações (Figura 6).

Figura 6: A galeria de fotos pode gerar insegurança nas operações.
Figura 6: A galeria de fotos pode gerar insegurança nas operações.

Lições aprendidas

Nossos estudos e observações empíricas nos levaram a concluir que o conjunto de sete categorias de problemas de usabilidade descobertos por Donald Norman e Jakob Nielsen (2010) durante os seus testes com os tablets fez-se presente também na interação da nossa amostra de leitores com o vespertino digital O Globo A Mais. As categorias de problemas registrados incluíram: (1) visibilidade de affordances, (2) feedback, (3) consistência, (4) reversibilidade de ações, (5) detectabilidade de funções, (6) escalabilidade em telas diferentes, e (7) confiabilidade nas operações (Norman e Nielsen, 2010).

Isso nos fez concordar com os pesquisadores citados quando estes afirmam que os produtos interativos criados para os novos dispositivos estão sendo lançados com grande alvoroço no mercado, mas sem os devidos cuidados com requisitos e padrões sedimentados pelos estudos em Interação Humano-Computador e Design de Interação.

Os problemas observados estão relacionados à própria natureza da interação gestual, ao sistema operacional Apple IOS e ainda ao projeto gráfico do vespertino digital de O Globo. Os problemas causaram dificuldades de navegação ou contratempos aos leitores da Geração Y, que são parte importante do público que o jornal carioca pretende conquistar para aumentar o seu rol de assinantes digitais e garantir a sobrevivência do seu modelo de negócios em um mercado editorial que passa por grandes transformações no país e no mundo.

Há previsões de que os jornais impressos estariam extintos por volta de 2030 em quase todo o mundo. Nesse contexto, os estudos em IHC têm um papel importante, ao procurar fazer com que os novos produtos se adequem de modo mais efetivo às necessidades ergonômicas e ao modelo cognitivo do leitor imersivo.

Esta pesquisa objetivou também oferecer parâmetros para orientar o design visual, a editoração de conteúdos e a criação de interfaces, de forma a melhorar a qualidade da interação gestual com os conteúdos noticiosos em tablets – respeitando-se as possibilidades, limitações e requisitos cognitivos do leitor imersivo. Com base nos dados compilados e analisados, elaboramos a Tabela 2 com requisitos de projeto associados às categorias de problemas:

Categoria associada Requisitos de design Objetivos
Visibilidade de affordances Diferenciar visualmente as áreas sensíveis das não sensíveis ao toque.
Como inexiste o recurso de mouse-over, o código visual deve ser claro, com uso de cores, efeitos visuais e ícones para sinalização de affordances.
Uso cuidadoso dos sistemas de rotulação verbal associado ao icônico.
A aparência visual não deve se basear somente no paradigma da mídia impressa.
Garantir a comunicabilidade das áreas com interação.
Garantir o acesso do leitor aos conteúdos adicionais das matérias.
Feedback Sinalizar claramente cada seção do conteúdo com retrancas apropriadas, como na mídia impressa.
Inserir uma página de índice.
Utilizar numeração de páginas.
Utilizar numeração de fotos na galeria.
Empregar breadcrumb.
Garantir a localização do leitor dentro do conteúdo.
Sinalizar claramente a existência de mais conteúdos.
Apresentar a arquitetura de informação do aplicativo.
Consistência Identificar o modelo mental do público-alvo por meio de testes.
Testar soluções de navegação inovadoras que rompam com modelos consolidados.
Respeitar recursos amplamente utilizados na web como o botão Voltar e buscadores de palavras.
Evitar ícones com duplicidade de funções.
Empregar de modo consistente a linguagem verbal.
Dar à capa ou à página de índice a função de home page.
Respeitar padrões de interação propostos pelo sistema operacional.
Garantir navegação intuitiva dentro do conteúdo.
Evitar erros de navegação.
Evitar a desorientação do leitor.
Adaptar a publicação ao modelo mental do leitor imersivo.
Reversibilidade de ações Implementar uma forma simples de undo.
Implementar uma forma fácil de volta à página de índice ou capa
Garantir fluidez imersiva da leitura.
Evitar ações destrutivas.
Evitar que o leitor se perca dentro do conteúdo.
Detectabilidade de funções Inserir barra de navegação fixa, a exemplo dos websites.
Garantir a sua permanente visibilidade.
Utilizar sistema de rotulação verbal associado ao icônico.
Incentivar a navegação exploratória do leitor.
Tornar as funções do aplicativo permanentemente acessíveis e compreensíveis.
Escalabilidade de telas Realizar testes com leitores nas duas orientações de páginas, visando a visualização de vídeos e fotos em tela cheia. Garantir a performance do aplicativo nas duas orientações (horizontal e vertical).
Confiabilidade nas operações Garantir que o mesmo gesto dispare o mesmo comportamento do aplicativo.
Evitar respostas inusitadas para gestos simples como swipe e tap.
Evitar surpresas.
Aumentar a segurança e a confiança do leitor nas interações.
Melhorar a capacidade de aprendizado das interações.

Tabela 2: Requisitos de design para a produção de conteúdos jornalísticos em tablets.

Outra lição aprendida, e que merece ser destacada, foi a percepção da importância do papel emocional do design visual e da persuasão estética que podem influenciar de modo marcante o resultado de uma pesquisa de Interação Humano-Computador, assim como a disposição dos usuários em superar dificuldades com relação a interfaces e produtos. A maior parte dos questionários respondidos nesta pesquisa evidenciou uma atitude bastante positiva dos leitores com o produto. Os participantes avaliaram positivamente ou razoavelmente uma série de quesitos que lhes foram apresentados: a utilização dos menus, a compreensão dos ícones, a tarefa de virar as páginas com gestos, a visualização de vídeos, a leitura de textos em scroll, o acesso a mais conteúdos, além da avaliação geral de O Globo A Mais.

Esta discrepância entre os problemas encontrados durante os testes empíricos e as opiniões coletadas a partir de questionários é comum nos estudos de IHC. Apesar de todos os problemas de interação enfrentados pelos leitores (em navegações registradas em vídeo durante as observações sistemáticas) ficou claro que a beleza visual e gráfica do projeto, o glamour do jornal impresso emulado nas páginas do aplicativo, o frisson da inovação tecnológica associada ao surgimento dos tablets, assim como a força da marca O Globo foram fatores fundamentais para estimular uma avaliação positiva do vespertino por parte dos respondentes dos questionários. Conclui-se que um design visual elegante contribui decisivamente para engajar e envolver emocionalmente o usuário, inspirando-lhe a vontade de superar as dificuldades inerentes a uma nova forma de interação.

[*] Luiz Agner é doutor em Design pela PUC-Rio e pós-doutor em Estudos Culturais pelo PACC-UFRJ. Professor da Escola de Comunicação Social das Faculdades Reunidas Helio Alonso (Facha, Rio de Janeiro) e tecnologista do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). É autor do livro Ergodesign e arquitetura de informação – trabalhando com o usuário (Rio de Janeiro: Quartet, 2008). Blog: www.agner.com.br


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Nota

Esta pesquisa foi desenvolvida para apresentação ao Programa Avançado de Cultura Contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PACC-UFRJ).

O presente trabalho contou com a colaboração de alunos de graduação em Comunicação Social (Jornalismo/ Publicidade e Propaganda) das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha/RJ) e de alunos do curso de Especialização em Ergodesign de Interfaces, Usabilidade e Arquitetura de Informação, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).

Participaram desta pesquisa os estudantes: Adriana Silva, Andrei Eduardo de Souza Gomes, Alexandre Benitah de Figueiredo, Alice Saraiva de Oliveira, Bernardo Anderson Munro Tausz, Carla Matos Vitorino, Carlos Eduardo Ribeiro, Carlos Valentim Pereira Winter, Caroline de Oliveira Zambon, Denise Souza da Silveira, Fernando Bravo Figueroa, Gabrielle Calixto da Silva, Guilherme Zavam, Henrique de Oliveira Ferreira, João Gabriel Santos Pereira, Juliana de Alencastro Franchin, Leandro da Cunha Soares Monteiro, Letícia Freitas Melo, Leticia Teixeira Brack, Mara Rubia De Oliveira Sampaio, Marina Pontes Macacchero, Monique Tavares de Oliveira, Rachell de Oliveira Menezes de Santana, Raquel Alves Dias dos Santos, Ricardo Lins, Thainá Zanotti Giuberti, Tiago de Souza Mota, Victor Montalvão Andrade da Costa, Wallace de Freitas Andrade, Saulo Monteiro Chaves, Bruno Santiago Roedel, Vitor Amorim (PUC-Rio); e Luis Antonio de Medeiros e Gomes, Talita Alves Aquino, Renata Cunha Romero, Gabriel Rodrigues da Silva, Ana Cristina de Melo, Luanna Santana de Souza, Rodrigo Hang Coutinho (Facha/RJ).

Tempo de leitura estimado: 34 minutos

Capas de Vicente Di Grado na década de 1960 | Márcio Duarte e Mônica Moura*

O resgate da história e da memória do design gráfico brasileiro ainda possui algumas lacunas, pois muitos profissionais, seus projetos e obras não são lembrados ou ainda não foram estudados e registrados, deixando uma lacuna na história gráfico-visual de nosso país. Este artigo pretende contribuir nesse sentido, resgatando as capas de livros projetadas por Vicente Di Grado. Designer gráfico, artista plástico e docente, Di Grado (1922-2005) atuou como principal capista para a Editora Clube do Livro entre as décadas de 1950 e 1970, sendo seu maior período de produção a década de 1960, justamente o objeto deste estudo. Pelo conjunto de seu trabalho, recebeu o Prêmio Jabuti em 1963. Sua obra representa uma grande fonte de elementos e referências gráficas, além de ter marcado a linguagem editorial da Editora Clube do Livro.

Figura 1: Capas de Vicente Di Grado da década de 1960 para o Clube do Livro.Figura 1: Capas de Vicente Di Grado da década de 1960 para o Clube do Livro.Figura 1: Capas de Vicente Di Grado da década de 1960 para o Clube do Livro.

Figura 1: Capas de Vicente Di Grado da década de 1960 para o Clube do Livro.

A Editora Clube do Livro foi um caso singular no mercado editorial, mas sem provocar grandes mudanças. O mesmo podemos dizer de Di Grado, que, em seu estilo, trouxe contribuições quanto à utilização de técnicas artísticas e gráficas associadas aos princípios do design. Sua produção o estabelece como um importante designer no segmento editorial, com características muito produtivas, comprovadas pelo volume de capas desenvolvidas no período estudado (1960 a 1969). Esse período possui relevância histórica no design brasileiro, e especialmente no segmento de livros.

O mercado editorial brasileiro e o desenvolvimento das capas ilustradas dos livros

A produção de livros no Brasil é marcada pela vinda da família real, em 1808, para o Rio de Janeiro, então capital federal. A imprensa oficial é implantada para atender às publicações administrativas e pequenas tiragens de títulos da literatura lusitana e mundial. No início da década de 1820, na Europa, são lançadas as capas ilustradas de livros infantis, impressas em xilogravura. Já na década de 1860, observa-se o uso de fotografias e gravuras nas capas de livros, sendo que os avanços na impressão gráfica, especialmente a litografia, passam a ser incorporados para as imagens tanto nas capas quanto nos próprios miolos.

Essas mudanças no projeto editorial apontam o surgimento dos projetistas gráficos que passam a utilizar ilustrações e elementos vindos das artes visuais, com o uso recorrente de elementos orgânicos a partir das influências e referências da art nouveau. O resultado dessa demanda gerou um mercado propício para artistas gráficos e ilustradores, que passam a ser responsáveis não só pelas capas, mas por toda a publicação.

Hallewell (1985) e Cardoso (2005) apontam o surgimento do design das capas de livros no Brasil a partir de Monteiro Lobato e suas atividades na editora Monteiro Lobato & Cia. A edição do livro Urupês (1918) é apontada como o início do design de capas no Brasil, bem como é um ponto de partida para a reconfiguração dos projetos editoriais de livros de modo geral, incluindo maior atenção à qualidade tipográfica e à diagramação do miolo.

Figura 2: Capa de Urupês, de Monteiro Lobato, ilustrada por José Wasth Rodrigues (1918).
Figura 2: Capa de Urupês, de Monteiro Lobato, ilustrada por José Wasth Rodrigues (1918).

Nas décadas seguintes, há o desenvolvimento da produção editorial no Brasil e principalmente a evolução gráfica das capas. As atuações de Tomaz Santa Rosa nos anos 1930, nas editoras Livraria Schmidt Editora e Livraria José Olympio Editora, demonstram esse diferencial, apostando no acabamento cuidadoso de suas edições, além de iniciar uma cultura de projetar o livro como um todo, detalhando inclusive o miolo em um projeto editorial específico (Paixão, 1995).

O mercado editorial passou por grande mobilização ao iniciar a produção em larga escala de livros didáticos a partir da década de 1930, influenciando o surgimento de novas editoras. O número de casas editoriais em atividade no país cresceu 50% entre 1936 e 1944. Em 1950, o número de títulos publicados era quatro vezes maior do que na década de 1930.

Porém, Melo (2006) observa a pequena presença de fotografias nas capas desse período, mesmo com a técnica já amplamente difundida, o que traz à tona o caráter tradicionalista que o livro possuía. Nesse sentido, a ilustração marca uma transição ousada que insere de forma definitiva a linguagem gráfica nas capas dos livros, gerando uma coleção de obras que destacam internacionalmente o design editorial brasileiro.

A década de 1960 foi decisiva para a expansão do segmento editorial e três editoras merecem destaque: a José Olympio, a Civilização Brasileira e a Editora Clube do Livro. A Civilização Brasileira promoveu o crescimento significativo no número de leitores, determinante com o desenvolvimento dos projetos de capas, destacando-se a figura de Eugênio Hirsch, que alterou os padrões para a composição das mesmas. Por sua vez, a Editora Clube do Livro originou uma nova forma de atuação no mercado de livros.

Editora Clube do Livro

A Editora Clube do Livro, fundada em 1943, em São Paulo, pelo médico e escritor Mário Graciotti, publicou romances, contos e crônicas, recebendo muitas premiações, inclusive da Academia Brasileira de Letras. Tinha como proposta ampliar o número de leitores no país a partir de edições de baixo custo, porém de qualidade, em sistema de assinatura apoiada em uma logística de distribuição de títulos em domicílio. Atuou nesse modelo por mais de 40 anos, sempre com um título de literatura – nacional ou estrangeira –, distribuído mensalmente aos associados. Chegou a distribuir mais de 10 milhões de livros, com edições em patamares expressivos para o mercado brasileiro, como os 35 mil exemplares de Uma lágrima de mulher (1956), de Aluízio Azevedo.

Inicialmente pensada para tiragens em torno de 2 mil exemplares – o que já era algo grandioso, visto que as tiragens naquele momento se davam em torno de 500 a mil exemplares –, a primeira edição dessa editora teve uma tiragem inicial de 10 mil exemplares (O Guarani, de José de Alencar, em julho de 1943), resultado dos 9 mil associados inscritos. Em 1969, a Clube do Livro contava com um quadro de mais de 50 mil sócios, o que garantia manter o fluxo de publicações mensais com porte pago para envio. Na década de 1970, porém, foi sucessivamente transferida para a Editora Revista dos Tribunais e para a Editora Ática, que alterou sua denominação para Estação Liberdade/Clube do Livro, até o encerramento das atividades, em 1989.

Vicente Di Grado

Vicente Di Grado nasceu em 1922, formou-se em Artes Plásticas pela Escola de Belas Artes, instituição privada sediada em São Paulo. Atuou como artista gráfico no setor editorial e de publicidade e também como artista plástico. Sua obra compreende, além de pinturas e esculturas, ilustrações e, a partir da década de 1950, as capas para a Editora Clube do Livro – a partir de um convite de seu proprietário, Graciotti, que percebera a necessidade de livros mais atrativos para ampliar seu mercado.

Paralelamente à sua atividade como artista, ilustrador e designer, Di Grado retorna à Escola de Belas Artes como docente em 1966 e a partir de 1968 passa a integrar a administração escolar da instituição, no cargo de diretor-geral. Nos anos 1970, foi membro da Associação Paulista de Belas Artes, entidade mantenedora da Faculdade Belas Artes (atual Centro Universitário Belas Artes) e do muBA – Museu Belas Artes de São Paulo, pertencente à mesma instituição. Em 1988, foi o responsável pela supervisão editorial da edição brasileira do livro Arte e percepção visual, de Rudolf Arnheim. Faleceu em 14 de abril de 2005, aos 76 anos. Atualmente, uma das galerias do Centro Universitário Belas Artes leva seu nome. No fim de 2010, o muBA realizou uma exposição de seu trabalho para a Editora Clube do Livro.

Evolução gráfica das capas do Clube do Livro

A proposta de manter livros com qualidade baratos e acessíveis determinava que todas as características das edições seguissem definições bastante rígidas, de forma que os custos pudessem ser controlados. Inicialmente, o projeto editorial limitava-se a publicar apenas as obras de domínio público, isentas de custos com direitos autorais. Os volumes publicados sempre seguiram um mesmo padrão de impressão e construção formal: formato de 13 cm x 18 cm e capa impressa em duas cores (normalmente, os elementos tipográficos em preto e a ilustração em cor), na maioria das vezes em papel opaco sem revestimento (apenas na década de 1970, foram utilizadas mais cores e plastificação). A utilização de papéis isentos de impostos garantia também o baixo custo de produção.

As orelhas tinham larguras variadas – inclusive entre si, em uma mesma edição –, utilizadas para divulgação de outros títulos, com pequenas sinopses ou comentários, ou anúncios de ofertas especiais, inclusive de outras editoras, tendo sido retirados do projeto gráfico nos anos 1970. A lombada possuía uma estrela de cinco pontas na parte superior e, abaixo, nome do autor e título da obra, ficando a identificação da editora na base. A estrela e o título – tal como alguns elementos das orelhas – eram impressos com a cor da ilustração da primeira capa (ou com a predominante nela, nos poucos casos nos quais a produção incluiu mais de duas cores).

Figura 3: Capa e orelhas de títulos do Clube do Livro, de fevereiro de 1962, desenvolvida por Vicente Di Grado. É possível perceber o padrão visual da editora.
Figura 3: Capa e orelhas de títulos do Clube do Livro, de fevereiro de 1962, desenvolvida por Vicente Di Grado. É possível perceber o padrão visual da editora.

O projeto adotado pelo Clube do Livro manteve-se por quase toda a existência da editora, mas podemos observar que algumas mudanças marcaram fases de desenvolvimento, advindas de pequenas alterações no perfil editorial e por meio das melhorias tecnológicas. Assim, vê-se que, ao longo de pequenos ciclos, as capas foram ganhando importância. Nesse sentido, podemos identificar seis padrões projetuais, que correspondem a seis fases.

1 Capas essencialmente tipográficas (de 1943 a 1950)

Figura 4: Capa de O Guarani, de José de Alencar (1943).
Figura 4: Capa de O Guarani, de José de Alencar (1943).

Possuíam uma moldura como adorno e impressas em duas cores – normalmente uma para os adornos, que variava conforme a edição, e o preto para o texto. Este era composto em sua maioria por fontes sem serifas, embora em algumas capas se verifique uma combinação de serifa nos caracteres do título e sem serifa nos demais.

2 Capas majoritariamente ilustradas (a partir de 1950)

Marca o início da produção de Di Grado. Uma ilustração ganha destaque, ocupando grande parte da capa junto a tipografias desenhadas. O alinhamento centralizado das informações textuais é mantido; o título tem destaque sobre o nome do autor, em menor dimensão. Porém, a assinatura “Clube do Livro – São Paulo – Ano” passa a ser apresentada no rodapé da capa de maneira linear.

Figura 5: Capa de A teoria da distância, de Aristides Ávila (agosto de 1950).
Figura 5: Capa de A teoria da distância, de Aristides Ávila (agosto de 1950).

3 Inclusão de rodapé padronizado (segunda metade da década de 1950)

É iniciada uma padronização das informações textuais: o nome do autor na parte superior com uma fonte padrão, sem serifas e em caixa-alta e a mesma fonte e tamanho se repete na assinatura, localizados no rodapé, ambos centralizados – na maior parte das vezes em relação ao eixo vertical da capa. As ilustrações ganham a dimensão da capa e os títulos se apresentam desenhados. Impressão em uma cor mais o preto, o que auxilia a identificar os livros dessa editora.

Figura 6: Capa de Uma aventura de Natal, de Charles Dickens (outubro de 1956).
Figura 6: Capa de Uma aventura de Natal, de Charles Dickens (outubro de 1956).

4 Maior interação entre título e ilustração, com uso intensivo de caracteres desenhados (a partir dos anos 1960)

Nessa mudança gráfica nos padrões das capas, podemos perceber uma leve redução nas dimensões das ilustrações, que dialogam mais com os títulos. As cores são utilizadas para criar fundos, compondo inversões, tornando-os parte das ilustrações ou destacando as informações textuais.

Figura 7: Capa de O segredo, de Alfred de Musset (setembro de 1966).
Figura 7: Capa de O segredo, de Alfred de Musset (setembro de 1966).

5 Substituição do rodapé pela marca da editora (final dos anos 1960)

Em 1968, é iniciada a utilização de uma marca para identificar a editora, movendo as informações de data para a quarta capa. A padronização na estrutura visual em função dos avanços do processo de impressão offset é perceptível. A tipografia, de maneira geral no título e no nome do autor, é utilizada com peso constante em sua maior parte, sem redução de tamanho para o nome do autor. Podemos perceber também a utilização de cores fortes e traços simples.

Em julho de 1968, durante a comemoração dos 25 anos do Clube do Livro, se iniciou a utilização de um logotipo para a editora, no lugar da identificação textual habitual “CLUBE DO LIVRO – SÃO PAULO – BRASIL – ANO PUBLICAÇÃO” (Figura 8). Essa foi deslocada para a quarta capa, que passou a trazer também pequenas frases de apresentação da obra e o ícone do mapa do Brasil com o poema de Castro Alves.

Figura 8: Detalhes de capas, respectivamente, de <i>A insídia</i>, de Joan Tenzate (junho de 1968), e de <i>O enfermeiro</i>, de Machado de Assis (julho de 1968), mostrando a mudança de identificação da editora.
Figura 8: Detalhes de capas, respectivamente, de A insídia, de Joan Tenzate (junho de 1968), e de O enfermeiro, de Machado de Assis (julho de 1968), mostrando a mudança de identificação da editora.

6 Alteração completa do padrão: mudança de formato e uso de fotografias (1977)

Figura 9: Capa de <i>A semente</i>, de Marília Fairbanks Maciel (janeiro de 1977).
Figura 9: Capa de A semente, de Marília Fairbanks Maciel (janeiro de 1977).

Em 1977, o padrão gráfico é completamente alterado, o formato do livro foi ampliado, a diagramação interna sofreu mudanças estruturais e o layout das capas passou a usar tanto ilustrações quanto imagens fotográficas. As orelhas foram eliminadas. Provavelmente, a diminuição dos trabalhos de Di Grado na Editora e o fato de ela ter sido integrada ao Grupo Ática proporcionaram essas mudanças.

Metodologia adotada

O escopo teórico da pesquisa foi selecionado a partir da revisão da literatura, com o estabelecimento do quadro teórico para os estudos e análises. Em seguida, foi desenvolvida a pesquisa documental eletrônica, organizando imagens, títulos e datas, compreendendo toda a produção de Vicente Di Grado para a Editora Clube do Livro, entre 1950 e 1976, com um número aproximado de 250 títulos. Esses títulos foram divididos por semelhanças compositivas e também por décadas, quando observamos a diferenciação das capas da década de 1960, estabelecendo, desta forma, o objeto de pesquisa.

Posteriormente desenvolvemos a pesquisa de campo a fim de reunir as edições do período, para contato com as capas originais. Percorremos periodicamente sebos e livrarias, para acesso e coleta do material. Foram recolhidos exemplares de 114 dos 120 volumes pretendidos, e produzidos por Di Grado na década de 1960. Diante da impossibilidade de acesso às seis capas não localizadas, trabalhamos com as 114 encontradas, considerando este número significativo da produção no período estudado.

A análise dessas capas foi realizada considerando os elementos compositivos e expressivos que tinham como objetivo proporcionar aos leitores as primeiras impressões sobre o conteúdo do livro e corporificar as personagens e símbolos aos quais o título se refere a partir da ilustração e composição das capas. Elas atendem ao princípio de informar sucintamente o conteúdo a ser lido, retratando o foco da narrativa, caracterizando o trabalho de Di Grado a partir da rica variação de estilos.

Após a fase de coletas das informações visuais, um estudo analítico foi desenvolvido, estabelecendo um paralelo entre o trabalho de Di Grado e seu período de atuação, visando entender a linguagem característica de sua obra segundo os parâmetros desta pesquisa.

Referencial e fundamentos teóricos

O design de informação foi o enfoque adotado para a análise das capas, tendo como principais referenciais Pettersson (2002), Dürsteler (2000) e Bacelar (2003), além de Dondis (1997) e Löbach (2001) – com especial relevo, nesse último autor, a seu conceito de comunicação estética. Para a instrumentalização da análise gráfica, utilizou-se a “Tricrotomia dos signos”, de Charles William Morris (1970), e os procedimentos analíticos propostos por Villas-Boas (2009).

A partir desses preceitos, as 114 capas foram divididas em grupos menores, e separadas por aproximação dos elementos compositivos. Foram observados:

1 Os conceitos dimensionais de Morris:

a) Dimensão sintática: a descrição do conteúdo e da organização visual dos elementos de sua diagramação, de sua aparência estético-formal – ponto, linha, forma, direção, tom, cor, textura, proporção, dimensão e movimento – e de suas relações compositivas: da disposição das imagens, do título, e dos textos complementares;

b) Dimensão semântica: considerando seu caráter psicológico, expressivo, os simbolismos que remetem aos significados da imagem e sua composição com o título (quando existir);

c) Dimensão pragmática: a configuração geral da capa, seu suporte e qualidades gráficas de tamanho, formato, gramatura, textura, acabamento, cores, tipo de impressão etc. Além de demais características de funcionalidade em termos ergonômicos, de legibilidade, de textos e imagens.

2 A compreensão visual, descrita por Villas-Boas (2009) no processo de análise, partindo de:

a) Elementos técnico-formais: aquilo que o usuário não identifica objetivamente (ou tende a ignorar), mas que está por trás da organização dos elementos estéticos;

b) Elementos estético-formais: o que o leitor efetivamente vê no layout (imagens, letras, cores).

O processo de análise foi então instrumentalizado conforme o quadro a seguir:

Figura 10: Quadro demonstrativo da divisão de elementos de análise gráfica (Villas-Boas, 2009).
Figura 10: Quadro demonstrativo da divisão de elementos de análise gráfica (Villas-Boas, 2009).

É possível perceber as relações entre as duas diretrizes de análise, as quais definem o escopo para a interpretação do objeto de estudo. Por um lado, se verifica as relações signo e significado, enquanto por outro as relações estéticas e técnicas, perpassando pelos princípios do design. Por fim, a análise levou em conta o conjunto de fatores internos – análise descritiva – e externos – análise crítica –, compreendendo o universo ao qual as capas de Vicente Di Grado e da Editora Clube do Livro estavam inseridas.

Partindo do recorte estabelecido, ou seja, as capas publicadas pelo Clube do Livro durante os anos de 1960 a 1969, optou-se por segmentá-las, resultando na observação de cinco grandes aspectos projetuais fortemente expressados pelos projetos. Note-se que esses segmentos não são formados exclusivamente por determinadas capas e com a exclusão de outras: eles se superpõem, com alguns projetos podendo expressar mais de um desses aspectos.

Figura 11: Gráfico de distribuição das características existentes nas 114 capas da amostra.
Figura 11: Gráfico de distribuição das características existentes nas 114 capas da amostra.

Assim, as capas foram segmentadas da seguinte forma:
– Relação entre ilustração e título;
– Profundidade espacial;
– Divisões gráficas e planos visuais;
– Composições tipográficas destacadas;
– Estruturas diferenciadas.

Para que a análise fosse mais consistente e pudesse representar os pontos comuns entre as capas observadas, assim como o estilo pessoal marcante expresso pelo artista em sua obra, em cada grupo foram escolhidas uma ou duas capas, analisadas isoladamente.

As capas de livros criadas e projetadas por Vicente Di Grado na década de 1960

O principal tema utilizado por Di Grado é a figura humana, chegando a 67% das capas analisadas. Nesse conjunto, predomina um alinhamento centralizado, porém, construindo composições variadas. Em algumas, casais são ilustrados e as divisões geométricas os separam, demonstrando uma simetria na composição ou firmando um ponto de ação, como um beijo ou o olhar, com intensidade. Sempre é percebido o sentimento descrito – amor, angústia, dor –, criando uma atmosfera propícia para o desenrolar da narrativa visual, amparada por cores e detalhes que comandam o olhar do leitor. Em outras, as personagens são solitárias, os sentimentos são expressos de maneira direta, por suas expressões e gestos, muitas vezes reforçados pelas cores utilizadas.

A sintaxe formal das capas, nos aspectos da visualidade e textualidade, indica o trabalho de mapeamento e hierarquia das informações presentes e aplicadas, representando de maneira simples o nome do autor e a editora em segundo plano, deixando como elementos centrais a ilustração e o título. Isso torna a mensagem clara e objetiva, mas ao mesmo tempo expressiva e marcante.

A composição da maioria das capas privilegia o equilíbrio assimétrico com as ilustrações e o texto, criando dinamismo e profundidade entre figura e fundo. Os traços são diversos, como é característica do artista, mesclando técnicas de ilustração e pintura. O branco do papel com manchas coloridas constrói, algumas vezes, uma massa cromática maior, chegando a cobrir completamente a área projetual.

Algumas ilustrações ocupam grande parte da mancha, tornando o espaço do título menor, ou mesmo invadido pela imagem, conflitando em relevância, ora chamando a atenção para as características da ilustração, ora para o título da obra. O diálogo que ocorre entre os espaços em branco provocam reflexões entre a narrativa e os elementos constantes da composição, até mesmo sua sobreposição com o texto é um fator compositivo para interpretar as capas.

Algumas vezes o título está na própria ilustração, criando detalhes visuais pertinentes. A tipografia mantém traços retos em sua maioria, a leitura não sofre perdas e a capacidade de compreensão da mensagem não fica comprometida. As cores utilizadas são direcionadas para o ocre e o alaranjado.

O desequilíbrio criado pelas variações no alinhamento do título é reconstituído quando inserido no contexto da composição. A própria construção textual é pensada de maneira a refletir o clima a ser experienciado, ao se contemplar a capa, integrando a narrativa ao seu visual – linhas mais sóbrias e ordenadas das imagens melhor definidas ou conflitos com os textos desalinhados.

Era empregada uma paleta cromática básica – amarelo, azul, vermelho, laranja, verde, marrom – e pequenas variações pelo uso de retícula, por mistura ótica com o preto ou branco – ocre, azul-escuro, rosa, lilás, verde-claro, caramelo. Em algumas poucas vezes, se vê a impressão em mais de uma cor, mas ainda assim sem gradientes ou misturas. Em uma grande porção, podemos observar as capas em fundo branco com cores em áreas “pinceladas” ou em partes do título – letras ou palavras –, além de utilizar a ilustração colorida com o título em preto.

A tipografia característica é composta por letras desenhadas, a maioria sem serifas ou adornos, construída com linhas retas, em sua maioria fornecendo um estilo moderno com peso negritado (bold). As poucas capas que utilizam fontes serifadas também são desenhadas com suas extremidades exibindo pequenas saliências. Poucas vezes se observa a utilização de letras tipográficas, essas ficaram mais comuns na década de 1970.

É utilizada a variação de kerning e ajustes nas entrelinhas e linhas de base, construindo uma movimentação espacial dos caracteres, intensificando sua percepção e significância, mas sem perder a legibilidade e a acuidade das capas, pois se observam detalhes de sua composição, como planos de cenário e detalhes volumétricos nas ilustrações.

Feitas essas observações referentes ao conjunto, seguem-se as análises de cinco aspectos presentes nas capas de Di Grado e que correspondem aos cinco grupos principais nos quais foram divididas as 114 capas que compõem a pesquisa.

Relação entre ilustração e título

Quando a ilustração é expressiva, sua atração visual constrói um diferencial maior que a massa textual. Suas dimensões abrangem grande parte da mancha gráfica e acabam por constituir uma moldura para o título do livro. O fato de ela “cercar” ou mesmo envolver o título é uma construção formal que contribui para reforçar seu apelo, construindo uma tensão direcionada por parte do observador.

Vê-se nesse conjunto de capas a organização textual em função da expressão visual, sendo o título diagramado para estar contido na ilustração, chegando a sofrer variações em sua direção de leitura – vertical ou horizontal – para que possa ocupar somente o interior da imagem. Mudanças de alinhamento fazem com que as combinações de cores e elementos visuais possam ser contrastantes a ponto de causarem estranhamentos em sua leitura, como podemos observar no olho “de rubi” da capa de Os rubis (Figura 12).

Figura 12: <i>Os rubis</i>, de J. M. Forman (junho de 1964).
Figura 12: Os rubis, de J. M. Forman (junho de 1964).

A significância dos elementos é clara e possível de acuidade, provocando uma leitura única e direta da hierarquia de informação. Presa pelo contraste figura e fundo, mesmo quando utiliza uma cor chapada ao fundo, os traços são bem marcados, nem sempre definindo a figura por completo, mas com sua continuidade preservada facilitando a acuidade e a pregnância.

O título muitas vezes já é responsável por atrair a atenção do leitor, mas independentemente disso, algumas capas apresentam o título principal como um bloco, atraindo o olhar, convidando para a leitura. O texto sempre legível é ampliado para prender o olhar, em geral posicionado em uma área de visualização pertinente, seja por estar localizado em uma área de visualização importante, seja por criar um contraste marcante com a imagem. Pouco se percebe de variação no alinhamento da tipografia: essa já sofre uma distorção direta em suas quebras de linha, abruptas em alguns casos.

Figura 13: <i>A muralha da China</i>, de Franz Kafka (março de 1968).
Figura 13: A muralha da China, de Franz Kafka (março de 1968).

A ilustração, por vezes, se mostra no entorno do texto, reforçando a percepção de bloco em que a informação deve ser compreendida de maneira uniforme, conjunta. Texto e imagem se complementam e formam um equilíbrio compositivo capaz de manter a harmonia e a hierarquia das informações, mesmo com um contraste marcante. Fortalecem a divisão do layout de maneira a criar a atmosfera desejada para a obra, e sua narrativa visual proporciona essa união de elementos. Notadamente, as cores são os elementos que proporcionam esse contraste entre figura e fundo, gerando um ritmo visual capaz de nortear o olhar do leitor pelos blocos aparentes. A carga expressiva contida nas capas transfere para o leitor a sensação de participar diretamente da narrativa, oferecendo um convite para a leitura.

Profundidade espacial

Os planos de composição são comuns em imagens fotográficas, mas ao serem apresentados em ilustrações causam um efeito de profundidade, dimensão e contexto. São planos configurando ângulos de visão capazes de intensificar as percepções das capas, criando o ambiente transmissor das mensagens da narrativa.

Assim, Vicente Di Grado apresenta soluções eficientes na construção das ilustrações permeando o fundo com a imagem principal e o título, criando níveis de informações. A hierarquia visual é enriquecida com a perspectiva criada nos planos, pois a profundidade decorrente exerce um caráter de organização para os elementos compositivos.

Figura 14: <i>Os encontros</i>, de Zuzu Ferreira (junho de 1965).
Figura 14: Os encontros, de Zuzu Ferreira (junho de 1965).

Os títulos, normalmente em primeiro plano, ganham destaque com variações de tamanho e direção de leitura – vertical, horizontal ou composto com a imagem – e a ilustração constrói o ritmo das capas. Mesmo representações de passagens são observadas onde se colocam pontos de fuga e perspectivas, contribuindo para o entendimento da mensagem apresentada.

Divisões gráficas e planos visuais

Os elementos gráficos contidos nesse grupo de capas formam divisões visíveis de ordem. Tanto a hierarquia visual dos textos quanto a sequência de relevância imagem-texto são apresentadas de forma a construir uma composição diferenciada, solucionando as questões de acuidade visual da capa como um todo.

Figura 15: <i>A feiticeira</i>, de Massimo D’Azeglio (novembro de 1961).
Figura 15: A feiticeira, de Massimo D’Azeglio (novembro de 1961).

As percepções de dimensões gráficas, oriundas da Gestalt, estão presentes de maneira marcante e percebidas quanto à pregnância formal atribuída pelos elementos. Em sua maioria, existe uma harmonia compositiva, oferecendo um caminho de leitura capaz de satisfazer aos preceitos do design de informação. As divisões não se limitam às zonas de visualização, mas também são integrantes da escolha cromática que contribui para o equilíbrio da capa como um todo. As divisões promovidas pelas massas de texto e imagem formam uma malha construtiva coerente e contrastante com os espaços em branco da capa.

Figura 16: <i>A rainha sem nome</i>, de J. E. Harzenbuch (março de 1964).
Figura 16: A rainha sem nome, de J. E. Harzenbuch (março de 1964).

Percebe-se a divisão gráfica nas capas, e a geometrização dos espaços compositivos formam grids, que direcionam o olhar e a compreensão do leitor. O modo de organizar as informações são funções básicas para a página impressa, construindo uma hierarquia básica.

Composições tipográficas destacadas

As tipografias desenhadas por Di Grado representam o seu domínio das técnicas de ilustração e desenho, com traços simples, capazes de elaborar os títulos de maneira a carregá-los de expressão. Muitas vezes com modificações no alinhamento de base ou mesmo na variação de cores entre as palavras – ou letras –, representam a facilidade comunicativa e a constante preocupação em desenvolver layouts diferenciados para cada capa. Esse é, provavelmente, um dos maiores grupos de análise, considerando o dinamismo presente nos títulos e sua pouca variação – quase como um alfabeto pessoal, desenvolvido para a editora, tão comum no meio editorial jornalístico.

Fontes serifadas também fazem parte do repertório de Vicente Di Grado; uma proposta de tipografia com serifas é utilizada ocasionalmente nas capas, mantendo semelhanças visuais entre si. Com as hastes das letras possuindo uma pequena variação de espessura, são tipografias elegantes e que expressam certo estilo, visto que são aplicadas em títulos referentes ao universo feminino.

A construção visual ganha representatividade com a utilização dos títulos em grandes proporções, alterando ou reduzindo a relevância das ilustrações. A disposição dos títulos tomando toda a extensão gráfica da capa movimenta a leitura visual, criando um sentido próprio para o percurso dos olhos. As quebras – de sílabas ou palavras –, contribuem para esse caminho de leitura e compreensão, no qual as outras informações textuais são apenas informativas.

As imagens sofrem interferência direta, pois são praticamente comprimidas pelo título, além de fazerem parte intrínseca do próprio título enquanto elemento gráfico, interagindo, apoiando ou mesmo criando uma conotação de sensações pessoais. Vê-se no caso da capa de Adolescência (1964), de Máximo Gorki, na qual a ilustração representa todo um peso carregado pela vida, considerando que as palavras estão localizadas nas costas da personagem (Figura 17).

Figura 17: <i>Adolescência</i>, de Máximo Gorki (maio de 1964).
Figura 17: Adolescência, de Máximo Gorki (maio de 1964).
Figura 18: <i>O medalhão</i>, de Machado de Assis (julho de 1965).
Figura 18: O medalhão, de Machado de Assis (julho de 1965).

São interessantes as construções formais que a massa de texto adota em relação às pequenas ilustrações. A composição é trabalhada para que o texto sufoque a ilustração, causando ao leitor uma sensação de angústia ou incerteza. Os alinhamentos são centralizados quando não possuem diagonais bem marcadas, pesando o olhar sobre a ilustração, que, mesmo em proporções reduzidas, ganha sua importância no contexto.

Outra característica utilizada nos textos é a mudança da linha de base da tipografia, que por si só causa desequilíbrio ao olhar, mas quando apresentada em conjunto com as ilustrações faz com que ambas ofereçam uma composição visual e gráfica que devolve o equilíbrio ao layout. O ritmo criado pelas letras por meio da composição com as ilustrações organiza o pensar do leitor quando tenta obter significados sobre o que vê.

Alguns experimentos que utilizam a tipografia de maneira diferenciada também são percebidos no trabalho de Di Grado, principalmente quando há misturas de famílias tipográficas. Várias formas diferenciadas criam uma divertida mescla de elementos que fazem a informação textual – o título – ganhar espaço na composição. Outra característica é a ilustração centralizada e as cores que compõem um plano de fundo mesclado com o branco do papel.

Figura 19: <i>O espião</i>, de P. E. Oppenheim (junho de 1960).
Figura 19: O espião, de P. E. Oppenheim (junho de 1960).

Há outras variações de tipografias desenhadas por Di Grado, algumas com serifas, outras com serifa slab (grossas e quadradas). Elas provocam e atraem o olhar para pontos de atenção primordiais para o entendimento da mensagem narrativa do livro.

Estruturas diferenciadas

Características peculiares, assim são algumas das capas que podem ser classificadas como “únicas”. Percebe-se o estilo de Di Grado nos traços e delimitações espaciais, mas sem que se constituam unidades que as integram aos grupos anteriores.

As divisões geométricas fazem com que haja uma ordem nas composições, responsáveis pela hierarquia, guiando o leitor, com a atenção em pontos predeterminados, ordenando a relevância dos blocos textuais.

Figura 20: <i>O cordão dos milagres</i>, Mário Gracioti (1966).
Figura 20: O cordão dos milagres, Mário Gracioti (1966).

A construção do layout e dos grids compositivos dessas capas fogem da estrutura de traço, muitas vezes por meio de técnicas diferenciadas ou da utilização de materiais diversos, mas sempre vista com soluções estéticas interessantes.

Dessa forma, as imagens criadas por Vicente Di Grado para as capas do Clube do Livro se valem de critérios capazes de ordenar as informações textuais em elementos estéticos, compreendidos e percebidos como formas de comunicação, para que o leitor as interprete de maneira confortável, se valendo do repertório artístico das capas e ampliando seu leque de compreensão pessoal.

Considerações finais

O papel de importância da Editora Clube do Livro vai além de uma sistemática de ação no mercado editorial da época, contribuiu com a disseminação da literatura nacional e internacional, bem como se posiciona como um espaço para a geração de experimentos gráficos e pelo hibridismo de técnicas e estilos, especialmente na coleção e na obra desenvolvida por Vicente Di Grado para essa editora.

A concepção gráfica e visual das capas estudadas e aqui apresentadas nos revelam as diferentes fases da Editora Clube do Livro e reafirmam que o design gráfico acompanha as mudanças culturais, econômicas e tecnológicas.

As capas de livros desenvolvidas por Vicente Di Grado apontam combinações variadas, indicando várias possibilidades de agrupamentos, leituras e análises. Os elementos compositivos geram uma expressividade própria de Di Grado, proporcionando aos leitores as primeiras impressões sobre o conteúdo do livro e as personagens e símbolos aos quais o título se refere. Elas atendem ao princípio de informar sucintamente o conteúdo a ser lido, retratando o foco da narrativa, caracterizando seu trabalho como vigoroso, com uma variação de estilos.

Enquanto artista gráfico, suas capas eram sintéticas – apenas as informações de autor e editora permanecem com alterações na tipografia e posição –, mas é perceptível uma identificação desses volumes como coleção. A capa, em apenas duas cores – sempre o preto junto à outra cor –, serviu ao projeto como riqueza expressiva, além da variação da tipografia e ilustração, que se alteram em destaque, conforme a obra e o enredo da mesma.

Por meio dos traços intensos e da síntese de formas na construção das imagens, não deixa de detalhar aspectos necessários para sua compreensão, em que é perceptível o domínio das linguagens pictóricas, do desenho de imagens e de caracteres e da ilustração presentes na grande quantidade de suas produções, valendo-se de elementos capazes de comunicar de maneira subjetiva e também objetiva. Dessa forma, atende aos princípios da comunicação estética, do design da informação e das relações projetuais, ajudando a constituir o design editorial brasileiro.

* Márcio Duarte é mestre em design pela Faac-Unesp e docente no curso de Moda da Faip, em Marília/SP. Mônica Moura é professora doutora dos cursos de graduação e do Programa de Pós-Graduação em Design da Faac-Unesp, Campus de Bauru/SP, e professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Artes do IA/Unesp, Campus de São Paulo/SP.


Referências

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Tempo de leitura estimado: 30 minutos

O tempo nos livros-imagem de Roger Mello | Thales Estefani e André Villas-Boas*

Diferentemente da espacialidade, a expressão da temporalidade é um paradoxo quando se refere a livros-imagem, por isso exige uma variedade de recursos e técnicas próprios para que possa ser percebida nas histórias narradas. Este trabalho focaliza a expressão do tempo na narrativa visual a partir da análise dos livros-imagem – obras que não utilizam o discurso verbal em suas narrativas – de autoria do premiado ilustrador Roger Mello. Os seis livros-imagem aqui analisados, destinados ao público infantil, demonstram este repertório, que depende da participação ativa do leitor – de sua bagagem estética e de sua experiência de mundo – para que essas estratégias sejam eficazes.

Roger Mello nasceu em Brasília, em 1965, e formou-se em design na Escola Superior de Desenho Industrial (Esdi/Uerj). Já fez ilustrações para mais de cem títulos, sendo que 19 deles têm textos ou roteiros de sua autoria. Também se dedicou à animação, à produção de vinhetas para televisão e à dramaturgia. É considerado hors-concours pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ), tendo obtido cerca de 15 menções “Altamente Recomendável”. Recebeu oito Prêmios Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro (CBL) e foi indicado para o Prêmio Hans Christian Andersen (2010), considerado o mais importante da literatura infanto-juvenil. Foi ainda premiado pelo conjunto da obra pela Academia Brasileira de Letras e pela União Brasileira dos Escritores. Em 2002, recebeu o prêmio internacional de melhor livro de 2002 da Fondation Espace-Enfants, pela obra Meninos do mangue.

A amostra definida para este estudo partiu do minucioso trabalho empreendido por Mendes (2011) que, entre 89 títulos com trabalhos de Mello, identificou 22 com autoria total ou em parceria com autores ou editores – dos quais 18 (cerca de 82%) foram premiados. A autora do estudo dividiu esses 22 títulos em três categorias: livros com ilustração, livros ilustrados e livros-imagem, encontrando cinco títulos nessa última categoria. A eles, para esta pesquisa, somou-se um sexto, publicado após a conclusão daquele trabalho. Assim, tendo como referência as datas das edições tomadas para análise (e não os anos de lançamento das primeiras edições), foram analisados: A flor do lado de lá (2004, Global); O gato Viriato (2002, Ediouro); O próximo dinossauro (1999, FTD); Viriato e o leão (1996, Ediouro); A pipa (2011, Rovelle) e  Selvagem (2010, Global).

Figura 1: Livros-imagem de Roger Mello, organizados por ano de lançamento das primeiras edições.
Figura 1: Livros-imagem de Roger Mello, organizados por ano de lançamento das primeiras edições.

O livro-imagem

O que caracteriza os livros-imagem é que eles possuem uma narrativa construída unicamente por ilustrações – ainda que em geral tenham em sua concepção um roteiro verbal e, quando editados, possam apresentar formas verbais nas partes pré-textuais e pós-textuais (folha de rosto, sumário, dedicatória, colofão, etc.). São relativamente recentes no mercado brasileiro, embora o primeiro deles tenha sido publicado ainda em 1976 (Ida e volta, de Juarez Machado, lançado no ano anterior na Europa, em uma coedição germano-holandesa). Até 1995, haviam sido publicados apenas 113 títulos no país (Camargo, 1995) – total que subiu para 153 em 2001 (Ferraro, 2001). Em 1981, a Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil passou a premiar os melhores livros-imagem de cada ano. O reconhecimento de seu valor para a formação da criança também é demonstrado pela alocação de verba destinada exclusivamente para a aquisição desse tipo de publicação pelo Programa Nacional de Bibliotecas Escolares (PNBE).

Derivado do livro ilustrado e diferenciando-se dele por assumir a imagem como elemento estrutural da narrativa, ele tende a instigar incisivamente o raciocínio e a imaginação do leitor: cabe a ele enunciadamente interpretar, sem a linearidade potencial dos signos convencionais da escrita, o significado de cada ilustração e, principalmente, das lacunas entre elas. O sentido apreendido num texto verbal tende a ser mais controlável do que aquele apreendido por meio de uma imagem: ela, sozinha, incita a uma multiplicidade de leituras, com maior potencialidade de polissemia.

Ao ilustrador, muitas vezes, é oferecida a tarefa árdua de tentar traduzir detalhadamente uma narrativa textual em ilustrações. As pesquisas teóricas e a crítica contemporânea concordam que isso não leva aos melhores resultados. O ilustrador trabalha com a linguagem das formas, das cores, dos espaços, e com diferentes escolhas compositivas ele pode conduzir o olhar do leitor para aquilo que quer mostrar ou ocultar, para um dado sentimento, para a sugestão de um conceito. Porém, por mais admirável que seja o seu trabalho, ele precisa sempre levar em conta o espaço de atuação da imaginação do leitor, capaz de completar os sentidos da história. E, mais do que isso, criar outros sentidos.

Tal como nos projetos de design gráfico, nenhuma ilustração apresenta a releitura perfeita de um texto, nenhum leitor terá exatamente a leitura da imagem pretendida pelo ilustrador e nenhum ilustrador conseguirá prever todas as diferentes leituras possíveis de quem visualiza uma ilustração. A imagem será sempre lida de forma parcial, segmentada e particularizada – ou, como observa Rui de Oliveira, outro ilustrador consagrado, ela funciona como um “ardil para resgatarmos nossa experiência vivida e projetarmos e criarmos sua memória futura” (Oliveira, 2008, p.32).

Embora os livros ilustrados não sejam uma categoria estritamente infantil – e há mesmo livros-imagem destinados a outras faixas etárias –, a maior parte dessa produção visa às crianças. Nesse contexto, um trunfo dos livros-imagem com relação às várias categorias de livros ilustrados infantis reside justamente no fato de não possuírem texto: ele permite uma maior possibilidade da interação direta entre a criança e o livro, sem um contador, um intermediário. No entanto, a ilustradora e também premiadíssima Ciça Fittipaldi observa que o processo de criação de um livro-imagem que respeite o espaço do leitor não prescinde da linguagem verbal:

A narrativa visual, nesse caso, é trabalhada também a partir de uma ferramenta verbal, semelhante a um roteiro, que organiza as sequências de ideias imagéticas a partir de noções consensuais ou de bom senso, tornando possíveis suas várias leituras e compreensões. (…) Não há como apagar contradições advindas de leituras impregnadas pela cultura e vivência, pessoalidade, personalidade e imaginação de cada leitor (Fittipaldi, 2008, p. 117).

Quando o roteiro também é de autoria do ilustrador – como é o caso dos seis livros-imagem aqui analisados –, sua liberdade de composição é maior e, em geral, as formas de apresentação da narrativa são pensadas graficamente desde o início.

O paradoxo do tempo no livro-imagem

Uma narrativa se desenvolve no tempo. Uma imagem, em contrapartida, é um elemento que se desenvolve no espaço, explorando possibilidades de composições com pontos, traços, planos, cores. Manguel (2001) destaca alguns pontos que diferenciam a palavra escrita da imagem e potencializam essa premissa de desenvolvimento no tempo e no espaço.

Segundo o autor, as palavras de um texto fluem livremente por meio das páginas de um livro, mas esse texto nunca existe como um todo indefectível: é possível recordar um trecho de um livro, nunca um romance inteiro. A existência total de um texto está no fluxo de palavras que o encerra, da capa até a contracapa, no tempo reservado à sua leitura.

Já as imagens apresentam-se instantaneamente como um todo, limitado por seus enquadramentos. Com o passar do tempo, é possível aprofundar a percepção sobre a imagem, descobrindo novos detalhes, aplicando outros sentidos. Porém, não importa o tempo reservado para contemplar uma imagem ou as criações imaginárias que isso pode despertar: ela sempre existirá no espaço que ocupa (Manguel, 2001, p. 25).

Na grande maioria das formas de contar uma história, o tempo é um elemento presente e determinado – como na literatura, no teatro, na ópera, na dança. Contar histórias a partir da imagem, porém, é um exercício de sugestão que estimula o leitor a apreender a expressão do espaço e a sensação de tempo decorrido a partir de elementos gráficos, recursos estilísticos e técnicas nascidas dos estudos da percepção e associação.

Quando as imagens em sua espacialidade incorporam a dimensão temporal, seja pela representação de ações e eventos, seja pela articulação de vários quadros ou cenas, em sequências, expondo uma ordem de acontecimentos temporal, são imbuídas da fluência narrativa (Fittipaldi, in Oliveira, 2008, p. 109).

Como a leitura de um livro-imagem é um processo ativo e espontâneo do leitor, é exigido do ilustrador que ele mergulhe de forma crítica e analítica no roteiro do livro. É preciso tentar alcançar as várias leituras possíveis. Depois, investir na produção de imagens que representem não apenas as espaciais, mas também as expressões temporais dos contextos ficcionais pretendidos.

Em geral, o que caracteriza a expressão do tempo nas narrativas são a sucessividade e a linearidade – que comumente não encontramos na imagem fixa. Como observa Linden (2011, p. 102), “nada predispõe uma imagem fixa a expressar o tempo”. Nikolajeva e Scott são mais incisivas:

Há dois aspectos essenciais da narratividade que são impossíveis de expressar de modo conclusivo usando apenas signos visuais: a causalidade e a temporalidade, pois o sistema de signos visuais só pode indicar o tempo por inferência (Nikolajeva e Scott, 2011, p. 195).

O recurso para expressar o tempo numa ilustração é a representação de elementos que se desenvolvam nesse tempo. Isso pode ser feito, a exemplo, por meio da representação de ações e movimentos – elementos que estão naturalmente vinculados a um tempo de execução e assim sugerem duração por meio da projeção do sentido no leitor.

Ao olhar para as ilustrações de um livro-imagem, deve ser possível perceber a ocorrência de uma ação, a representação de uma situação que se desenvolve – aquilo que Ciça Fittipaldi chamou de “personagens em devir” (Fittipaldi, 2008, p. 103). Percebendo esse instante, é possível, para o leitor, imaginar um antes e um depois: a conclusão da ação e a duração no tempo são completadas pela criatividade e pela experiência do leitor.

A percepção desse antes e desse depois pode ocorrer numa mesma ilustração. Mas, além disso, há o recurso das imagens em sequência, típico dos quadrinhos mas também presente em outras mídias, como nos livros-imagem. E, finalmente, a exploração do efeito causado pela própria relação entre as páginas. Assim, temos três categorias de análise: a unidade da ilustração, as imagens sequenciais e as relações entre páginas.

O tempo na unidade da ilustração

Analisar a temporalidade na unidade da ilustração quer dizer analisar os elementos expressivos do tempo em cada ilustração separadamente, ocupando uma página ou página dupla.

Figura 2: Página única e página dupla.
Figura 2: Página única e página dupla.

Linden (2011) reconhece três formas de expressar o tempo na unidade da ilustração: por meio do instante movimento, do instante qualquer ou do instante capital.

O instante movimento é uma das formas mais recorrentes de representação do movimento na narrativa visual, pois está intimamente relacionado com a perspectiva mais comum quando se trata de foco narrativo: a perspectiva objetiva (que tem foco na ação, diferentemente da perspectiva introspectiva, cujo foco está nos sentimentos). Ele é o que se pode chamar de “essência” da ação: a representação na ilustração do momento mais característico de um movimento completo – como se um fotograma fosse pinçado de um rolo de filme de cinema.

Essa ilustração, porém, não deve ser como uma simples imagem congelada, mas sugerir um encadeamento, como se reduzisse o tempo de duração de uma ação a um breve momento fugaz (Figura 3) – cuja eficácia depende do conhecimento anterior do leitor (experiências), que completará a ação mentalmente com um antes e um depois. Por isso, conforme Linden, é preciso escolher momentos específicos para serem representados. Os mais eficientes são aqueles que precedem o ponto culminante da ação (Linden, 2011, p. 104).

Figura 3: Representação do instante movimento em <i>O gato Viriato</i>. O pulo do gato, no susto que ele leva, se dá num instante muito breve e é ao mesmo tempo a essência da ação retratada: o susto.
Figura 3: Representação do instante movimento em O gato Viriato. O pulo do gato, no susto que ele leva, se dá num instante muito breve e é ao mesmo tempo a essência da ação retratada: o susto.
Figura 4: Instante movimento em <i>A flor do lado de lá</i>. O salto da anta é retratado no ponto culminante, anterior ao clímax da ação, ou seja, quando ela está no alto, antes de atingir a água.
Figura 4: Instante movimento em A flor do lado de lá. O salto da anta é retratado no ponto culminante, anterior ao clímax da ação, ou seja, quando ela está no alto, antes de atingir a água.

O instante qualquer também traz a sensação de um instante pinçado num continuum temporal (Linden, 2011, p. 103). Porém, ele traz a ideia de um desenvolvimento temporal lento, propondo mais apresentar uma situação do que sintetizar um movimento. Na Figura 5, Roger Mello não sugere uma ação e sim o tempo de contemplação de uma situação. Essa progressão lenta do tempo é ainda maximizada pela carga emotiva da ilustração.

Figura 5: Tempo dilatado e forte carga de emoção em <i>A pipa</i>.
Figura 5: Tempo dilatado e forte carga de emoção em A pipa.

O instante capital, por sua vez, é obtido por meio da fusão, numa única ilustração, de fragmentos pertencentes a momentos diferentes de um mesmo movimento. É uma representação simultânea de várias etapas envolvidas numa mesma ação. O termo capital se refere a essencial: esse tipo de ilustração busca recompor todas as etapas essenciais da ação. Recorrente no fim do século XIX (Linden, 2011, p. 102), esse recurso é no mais das vezes associado a situações de humor e atualmente é de uso quase restrito ao cartum e aos quadrinhos de massa para o público infantil. É sintomático que não haja qualquer exemplo na amostra estudada.

Outro tipo de recurso é a posição dos personagens na página e a sua expressão corporal e facial, muitas vezes nos indicando uma direção para olhar.

Figura 6: Os olhares de todos os personagens representados direcionam-se para a bola, que descreve um movimento, em <i>O próximo dinossauro</i>.
Figura 6: Os olhares de todos os personagens representados direcionam-se para a bola, que descreve um movimento, em O próximo dinossauro.

As linhas de movimento, presentes nos livros-imagem e amplamente utilizadas nos quadrinhos, também permitem acentuar a velocidade ou delinear a trajetória de um movimento.

Figura 7: A bola arremessada pelo lagarto na cabeça do gato descreve sua trajetória com uma linha de movimento, em <i>O gato Viriato</i>.
Figura 7: A bola arremessada pelo lagarto na cabeça do gato descreve sua trajetória com uma linha de movimento, em O gato Viriato.

A observação do comportamento da fotografia quando a velocidade do obturador é inferior à velocidade do movimento, criando uma imagem que se estende como linhas em um borrão, propiciou maior desenvolvimento da técnica, que alcançou seu ápice nos quadrinhos orientais. A técnica de borrar algumas partes das ilustrações é uma alternativa às linhas de movimento e caracteriza-se igualmente por representar velocidade ou direção de uma ação (Figura 8, mas identificável também na Figura 6). Enquanto as linhas são elementos emprestados dos quadrinhos, os borrões são inspirados diretamente nas fotografias de movimento.

Figura 8: A bola agarrada pelo dinossauro descreve sua trajetória e sugere velocidade com um borrão na imagem, em <i>O próximo dinossauro</i>.
Figura 8: A bola agarrada pelo dinossauro descreve sua trajetória e sugere velocidade com um borrão na imagem, em O próximo dinossauro.

Para além das linhas de movimento e borrões, uma técnica bastante interessante é a replicação de um mesmo personagem, em posições distintas, numa mesma imagem. Essa técnica, denominada sucessão simultânea, também segue a tradição das pesquisas artísticas de representação do tempo por meio de uma única imagem empreendidas por Duchamp (Linden, 2011, p. 105), mas pode ter uma raiz bem mais antiga: Nikolajeva e Scott (2011, p. 196) a identificam em elementos presentes nas hagiografias medievais – pinturas em painéis que narravam as histórias dos santos. A inexistência da sucessão simultânea nos livros-imagem de Roger Mello também parece ter relação com o minimalismo dos elementos de suas ilustrações, centradas no que é essencial à narrativa.

Na leitura das ilustrações, seja qual for o tipo de instante retratado ou a técnica de representação do movimento empregada, a decodificação é comumente feita da esquerda para a direita, seguindo o padrão da leitura verbal da sociedade na qual se insere. Esse movimento narrativo convencional também sugere uma progressão espaço-temporal (Figura 9) e, quando é revertido, ou seja, quando apresenta um fluxo da direita para a esquerda, na maioria das vezes vincula-se a um retorno no tempo ou no espaço. Mas, assim como o leitor é livre para traçar caminhos diversos na observação da imagem, o ilustrador tem também a liberdade de romper com os esquemas convencionais, principalmente quando a intenção narrativa exigir: é o que faz Roger Mello em O próximo dinossauro.

Figura 9: Em <i>A pipa</i>, Roger Mello faz a narrativa avançar para o fim com muitas ilustrações em que o protagonista aparece deslocando-se para a direita.
Figura 9: Em A pipa, Roger Mello faz a narrativa avançar para o fim com muitas ilustrações em que o protagonista aparece deslocando-se para a direita.
Figura 10: Em <i>O próximo dinossauro</i>, Mello parece brincar com a ideia de retratar um passado remoto ilustrando todos os deslocamentos para a esquerda.
Figura 10: Em O próximo dinossauro, Mello parece brincar com a ideia de retratar um passado remoto ilustrando todos os deslocamentos para a esquerda.

A expressão do tempo na unidade da ilustração do livro-imagem ocorre ainda em função da duração temporal percebida na imagem – que nada mais é do que a relação entre o tempo “real” da história e o do discurso. Recorrendo à narratologia própria do discurso verbal, Nikolajeva e Scott explicam:

Ela pode ser mais ou menos idêntica, “isocrômica” [isochronical]; em narratologia esse padrão é chamado de cena. Se o tempo da história é mais longo que o tempo do discurso, estamos diante de um resumo. A forma extrema do resumo é uma elipse: o tempo do discurso é zero. [Mas] (…) o tempo do discurso pode ser mais longo que o tempo da história, como nos casos de descrições (…) [Então,] estamos lidando com uma pausa (Nikolajeva e Scott, 2011, p. 218; grifos nossos).

Quando essas categorias são aplicadas a uma narrativa visual, e não verbal, há particularidades. Nikolajeva e Scott relembram o fato de uma imagem fixa conseguir representar, na maioria das vezes, apenas instantes curtos e, nesse sentido, sugerem que seu tempo de história é mínimo, “enquanto seu tempo de discurso é indefinidamente longo” (Nikolajeva e Scott, 2011, p. 218). Isso porque uma imagem é objeto de um tempo indeterminado de observação, podendo ser apreciada minuciosamente até por horas. O seu discurso se dá na espacialidade, mas quanto mais detalhes houver na imagem (informação), mais longo tende a ser o tempo desse discurso (Figura 11). Nesse sentido, seria possível classificar a duração narrativa de uma imagem como uma pausa (Figura 12).

Figura 11: Mais detalhes na imagem, tempo mais longo do discurso.
Figura 11: Mais detalhes na imagem, tempo mais longo do discurso.
Figura 12: Exemplo arquetípico da narrativa visual como uma relação de <i>pausa</i> entre história e discurso. O conjunto de detalhes e expressões que a imagem apresenta ao leitor permite uma duração maior no discurso de um instante que, na história, é bem mais breve: dois cães correndo atrás de um gato. Do livro <i>Viriato e o leão</i>.
Figura 12: Exemplo arquetípico da narrativa visual como uma relação de pausa entre história e discurso. O conjunto de detalhes e expressões que a imagem apresenta ao leitor permite uma duração maior no discurso de um instante que, na história, é bem mais breve: dois cães correndo atrás de um gato. Do livro Viriato e o leão.

Contudo, existem outras formas de duração possíveis mesmo numa narrativa por imagens. Uma ilustração com sucessão simultânea, por exemplo, pode retratar um tempo de história maior do que um instante e, se o tempo do discurso corresponder ao da história, isso conjugará uma cena. Em outro caso, se o tempo retratado na sucessão simultânea for muito longo, como o passar de dias ou anos, o tempo de história irá superar o tempo do discurso, configurando um resumo. Mais à frente, veremos que a elipse, mais do que também presente, é intrínseca aos livros-imagem.

Esses padrões de duração, mesclados e conjugados na unidade de um livro, dão ritmo à leitura das imagens, acelerando e desacelerando quando se faz necessário para a narrativa.

O tempo nas imagens sequenciais

A sucessividade e a linearidade – dois elementos que comumente não encontramos na unidade da ilustração – podem ser alcançadas na representação da narrativa por meio de quadros sucessivos, podendo ser referidas por um mesmo termo: sequencialidade. O termo imagens sequenciais faz referência aos quadros com ilustrações que podem estar distribuídos na unidade da página ou da página dupla, sem quantidade estipulada (Figura 13).

Figura 13: Imagens sequenciais.
Figura 13: Imagens sequenciais.

Quando essa técnica é utilizada em demasia, a diferenciação entre um livro-imagem e uma história em quadrinhos pode apresentar-se um tanto confusa, porque é um recurso intrínseco à linguagem da segunda. As imagens sequenciais são articuladas plástica e semanticamente e cada quadro expressa uma parte da narrativa, que se realiza durante a sequência. Assim, a sucessão e o próprio fluxo de tempo de leitura entre uma imagem e outra transmitem o fluxo do tempo da narrativa, apesar de os quadros fragmentarem o tempo e o espaço.

Figura 14: O salto do pato, na tentativa de voo entre a primeira e a segunda ilustração desta página, é inferido na sarjeta, no espaço vazio que as separa. Não é possível ver o salto, mas presume-se que ele tenha ocorrido. O ilustrador, nesse caso, conta com o leitor como um cúmplice.
Figura 14: O salto do pato, na tentativa de voo entre a primeira e a segunda ilustração desta página, é inferido na sarjeta, no espaço vazio que as separa. Não é possível ver o salto, mas presume-se que ele tenha ocorrido. O ilustrador, nesse caso, conta com o leitor como um cúmplice.

Linden observa que a progressão do tempo surge a partir da ligação de uma imagem após a outra realizada pelo próprio leitor, que é quem insere a continuidade. A expressão do tempo está vinculada a uma ação que não é sugerida por elementos gráficos como linhas de movimento, mas na imaginação de cada leitor, baseada ainda em seus conhecimentos e experiências.

O lapso temporal não é representado graficamente pelo ilustrador, mas é o elemento essencial das imagens sequenciais: ele está na sarjeta – o termo utilizado em quadrinhos para identificar o espaço entre as imagens sequenciais. É nele que está “grande parte da magia e do mistério que existem na essência dos quadrinhos” (McCloud, 2004, p. 66). É no espaço em branco, área de respiro da mancha gráfica entre os quadros, que a imaginação do leitor pode agir para unir as imagens em uma relação inferida, criando a partir daí uma ideia para a narrativa: a sarjeta funciona como a elipse da narrativa visual. Esse recurso foi amplamente utilizado por Roger Mello em O gato Viriato, que, apesar de não possuir molduras delimitando os quadros, recorre a várias técnicas de composição e expressão plástica dos quadrinhos.

A estrutura de apresentação (diagramação) de uma narrativa visual pode seguir um padrão fixo, como nos livros-imagem que contam toda a história numa sequência de grandes ilustrações de página dupla, ou podem variar as formas das imagens apresentadas. Essa liberdade de apresentação abre espaço para uma utilização pontual dos quadros de imagens sequenciais, que podem representar desde a evolução de um personagem numa ação até o avançar do tempo por meio da representação de elementos como relógios e calendários, nascer e pôr do sol, mudanças de estações do ano etc. (Figura 15). Em Viriato e o leão, Mello mescla ilustrações de página dupla, uma só página e quadros sequenciais.

Figura 15: Passagem da noite para o nascer do sol em <i>Viriato e o leão</i>.
Figura 15: Passagem da noite para o nascer do sol em Viriato e o leão.

Há seis tipos de transições de quadros, conforme McCloud (2004, p. 70-72). Momento-a-momento é quando os quadros apresentam uma diferença muito pequena de instantes. Já as sequências com momentos distintos da ação (dois instantes movimentos, por exemplo) são chamadas de ação-para-ação (Figura 16). Quando os quadros apresentam elementos diferentes uns dos outros, mas a sequência permanece no mesmo contexto, temos progressão tema-a-tema. Já na ocorrência de quadros que levam a uma progressão de distância significativa no tempo ou no espaço, temos a sucessão cena-a-cena (Figura 17). A mudança de enquadramento da imagem de um quadro para o outro caracteriza a transição aspecto-para-aspecto (McCloud, 2004, p. 72). E, quando não há nenhuma sequência lógica entre os quadros, ocorre o que é denominado de non-sequitur.

Figura 17: <i>Cena-a-cena</i> em quadros de <i>O gato Viriato</i>.
Figura 17: Cena-a-cena em quadros de O gato Viriato.
Figura 16: <i>Ação-para-ação</i> em quadros de <i>Viriato e o leão</i>.
Figura 16: Ação-para-ação em quadros de Viriato e o leão.

Essas possibilidades de transição dos quadros, quando conjugadas num livro, vão determinar o ritmo narrativo, pois cada uma delas pretende representar o avançar da história com menor ou maior rapidez. Nos livros de Mello, as formas de sucessão de quadros encontradas são a ação-para-ação, que é a mais comum nas revistas em quadrinhos, e a cena-a-cena.

A expressão da ação e do deslocamento no espaço por meio de quadros tem ainda outras formas. Linden (2011, p. 108) mostra que é comum expressar as etapas de uma ação com a repetição de cenários ou pela ausência deles, a fim de enfatizar a temporalidade, e ainda expressar um deslocamento por meio da evolução da figura e do plano de fundo em conjunto, a fim de enfatizar a mudança no tempo-espaço. Porém, uma maneira não tão comum é a segmentação de um mesmo cenário num conjunto de vários quadros, que mantém suas sarjetas, com cada um dos quadros mostrando o personagem numa etapa da ação. A autora chama a atenção para o fato de que essa técnica auxilia na percepção da continuidade e faz a elipse entre as etapas da ação parecer mais tênue, resultando em uma “impressão de fluidez de movimento e temporalidade” (Linden, 2011, p. 109).

Ainda que a função básica da moldura seja delimitar uma imagem em relação à outra, a organização de uma sequência de imagens com variações de molduras – formas e tamanhos – também pode influenciar no ritmo de leitura de um livro-imagem. A transgressão da moldura também é capaz de expressar movimento. Em Viriato e o leão, Mello utiliza esse recurso por três vezes, sempre como representação de um movimento de entrada ou fuga dos quadros.

Figura 18: Nesta imagem, Viriato desce as escadas olhando para trás, convidando o leão a segui-lo para fora do quadro.
Figura 18: Nesta imagem, Viriato desce as escadas olhando para trás, convidando o leão a segui-lo para fora do quadro.

O tempo nas relações entre páginas

Analisar a temporalidade nas relações entre páginas significa compreender a relação entre as várias ilustrações, considerando a oposição entre elas nas páginas par e ímpar e também o próprio virar das páginas, numa análise do conjunto (Figura 19). As imagens associadas apresentam expressões plásticas e semânticas em conformidade, porém seus significados, ações e representações do tempo são mais distantes do que nas imagens sequenciais.

A continuidade narrativa no virar de páginas do livro-imagem envolve técnicas e recursos que, juntos, permitem que a fluidez temporal da história contada não se perca no simples manuseio de uma folha. É interessante notar que a relação entre as páginas duplas ilustradas com grandes imagens é muito semelhante à relação entre quadros de imagens sequenciais, sendo o lapso da virada da página o correspondente direto para a sarjeta entre os quadros – o virar das páginas, em si mesmo, é uma elipse.

Figura 19: Relações entre páginas.
Figura 19: Relações entre páginas.

Linden (2011, p. 78-79) utiliza o termo montagem para tratar da organização da sucessão de páginas duplas, tarefa que a autora associa ao encadeamento de planos na narrativa audiovisual, que origina o termo. A montagem não pressupõe uma continuidade absoluta de uma página dupla à outra para alcançar o encadeamento narrativo. Para que uma página dupla seja compreendida como sequência daquela que a precede e expresse a progressão do tempo na narrativa, basta que haja uma conformidade plástica, a repetição de personagens ou a manutenção de um tema.

Ela identifica duas formas distintas de montagem: uma delas é a vetorização, que ocorre quando a sucessão de páginas representa o encadeamento de ações ou movimentos (Figura 20); a outra é quando a sucessão de páginas apresenta uma reconfiguração total do espaço da página dupla (Figura 21). Portanto, existe uma distinção entre a montagem que apresenta instantes que se sucedem diretamente, como num movimento, e aquela que desenvolve uma sucessão a partir de imagens com maior variação visual, denotando avanços mais longos no espaço-tempo.

                               
Figura 20: Quarta e quinta páginas duplas de <i>O próximo dinossauro</i>. A montagem segue o encadeamento de uma ação.
Figura 20: Quarta e quinta páginas duplas de O próximo dinossauro. A montagem segue o encadeamento de uma ação.
                               
Figura 21: Segunda e terceira páginas duplas de <i>A pipa</i>. A sucessão de páginas apresenta uma reconfiguração total do espaço.
Figura 21: Segunda e terceira páginas duplas de A pipa.
A sucessão de páginas apresenta uma reconfiguração total do espaço.

Criar continuidade entre a frente e o verso de uma página virada é sempre mais difícil do que criar continuidade entre página par e ímpar na unidade da dupla. É comum que os ilustradores concentrem-se em indicar na página ímpar elementos que estimulem o encadeamento narrativo (Figura 22), pois ela tende a ser a primeira página visualizada pelo leitor durante o folhear de um livro. Dentre os vários recursos utilizados, está a representação parcial (cortada) de personagens ou elementos da página dupla seguinte (Figura 23).

Figura 22: Em <i>A flor do lado de lá</i>, a anta aparece na página ímpar em quase todas as duplas. É um elemento recorrente de continuidade da narrativa.
Figura 22: Em A flor do lado de lá, a anta aparece na página ímpar em quase todas as duplas. É um elemento recorrente de continuidade da narrativa.
Figura 23: Segunda e terceira páginas duplas de <i>O próximo dinossauro</i>. A presença de metade do tricerátopo na dupla anterior anuncia a tomada da bola do tiranossauro, representada logo em seguida.
                               
Figura 23: Segunda e terceira páginas duplas de O próximo dinossauro. A presença de metade do tricerátopo na dupla anterior anuncia a tomada da bola do tiranossauro, representada logo em seguida.

Outra técnica é a manutenção de elementos contínuos na sucessão de páginas duplas, como linhas, rios ou ruas. Também há as referências visuais a elementos no extracampo (ou seja, o espaço sugerido para além da moldura da ilustração ou, nas ilustrações sangradas, para fora da própria página) – como um personagem que aponta para algo que o leitor, consequentemente, não tem como ver. Esses e outros recursos, que criam um efeito de suspense, são o que Nikolajeva e Scott chamam de viradores de páginas: um detalhe visual “que encoraja o espectador a virar a página e descobrir o que acontece a seguir” (Nikolajeva e Scott, 2011, p. 211).

O direcionamento de um movimento da esquerda para a direita também pode ser considerado um virador de página. Conforme foi explicitado anteriormente, um personagem representado em um deslocamento que segue o mesmo direcionamento da leitura tem a ilusão do movimento mais facilmente percebida e a apreensão da progressão do tempo privilegiada. Ao virar as páginas, em uma sucessão de elipses temporais, o leitor tem a impressão de caminhar para um objetivo: o final do livro como ponto de chegada. Então, todo deslocamento de um personagem para a direita é favoravelmente interpretado como uma progressão (Linden, 2011, p. 115).

O encadeamento do livro-imagem em páginas duplas se presta a superar a segmentação tradicional do livro como mídia, em páginas únicas. Porém, nem sempre essa segmentação é indesejada: nas narrativas visuais que se desenvolvem por meio da unidade da página, as relações de temporalidade entre página par e ímpar estão ainda mais próximas das existentes entre quadros de imagens sequenciais (Figura 24).

Figura 24: Páginas 1 e 2 de Viriato e o leão.
Figura 24: Páginas 1 e 2 de Viriato e o leão.

A leitura das ilustrações de um livro-imagem é determinante para a expressão do tempo, não importa se a partir de elementos gráficos sugestivos em uma única imagem, ou do encadeamento de imagens sequenciais, ou dos efeitos da sucessão de páginas. A expressão da temporalidade ocorre de todas essas maneiras em conjunto, pois o livro-imagem, plural em suas formas de representação, tem por objetivo final apenas um: contar uma história. O tempo que tenta, por meio de vários recursos, inscrever-se na imagem fixa, é reforçado pelo tempo da apreensão da imagem. Quando o leitor visualiza a sucessão de imagens de um livro, seu processo de interpretação também requer um tempo, mesmo que breve. E é nesse tempo do leitor que o tempo da história ganha vida.

*André Villas-Boas é doutor em Comunicação e Cultura, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisador associado do Programa Avançado de Cultura Contemporânea (Pacc). É autor de Utopia e disciplina e Identidade e cultura, entre outros livros. Thales Estefani é graduado em Comunicação Social, ilustrador e autor da pesquisa original que deu origem a este artigo.


Referências

CAMARGO, Luís. Ilustração do livro infantil. Belo Horizonte: Ed. Lê, 1995.

FERRARO, Mara Rosângela. O livro de imagens e as múltiplas leituras que a criança faz do seu texto visual. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação, 2001. Disponível em: http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=vtls000232612. Acesso em 17 de fevereiro de 2013.

FITTIPALDI, Ciça. “O que é uma imagem narrativa?” In: OLIVEIRA, Ieda de (Org). O que é qualidade em ilustração no livro infantil e juvenil: com a palavra o ilustrador. São Paulo: DCL, 2008, p. 93-121.

LINDEN, Sophie Van der. Para ler o livro ilustrado. São Paulo: Cosac Naify, 2011.

MANGUEL, Alberto. Lendo imagens – uma história de amor e ódio. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

McCLOUD, Scott. Desvendando os quadrinhos. São Paulo: Makron Books, 2004.

MENDES, Claudia. Singular e plural: Roger Mello e o livro ilustrado. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais). Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2011.

NIKOLAJEVA, Maria; SCOTT, Carole. Livro ilustrado: palavras e imagens. São Paulo: Cosac Naify, 2011.

OLIVEIRA, Ieda de (Org). O que é qualidade em ilustração no livro infantil e juvenil: com a palavra o ilustrador. São Paulo: DCL, 2008.

OLIVEIRA, Rui de. Pelos Jardins Boboli: reflexões sobre a arte de ilustrar livros para crianças e jovens. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

Tempo de leitura estimado: 2 minutos

Toda arte é também outra arte

Toda arte contém, em sua composição, partículas de outra arte – seja resíduo, seja manancial. Quando não, ela, uma certa arte, é conjunção de outras, líquidos de coração miscível, água com água formando rios singulares. Rios que têm suas próprias águas molhadas com as da chuva (vindas de outros céus) e das grotas fluviais (vindas de subterrâneas nascentes). Pois a vocação de toda arte é a sua impureza, o seu escoamento pluridimensional. Toda arte contamina com sua mina oculta, um dia relevada até suas profundezas, outras tantas artes. Sua matriz é o remix. De si mesma ela tem somente a alma, o corpo nem sempre é só seu. A arte compartilha os trilhos com quem não é unicamente ela, mas nela também se palmilha. A arte é, sozinha, múltiplas alternativas. Autêntica ela tem apenas o seu ser, porque o seu existir é parte de outras teias. Ela é originalmente combinatória. Daí porque, igualmente, encantatória. Um canto é canto pela convergência de linhas, de vozes, de silêncios.

E eis que aqui, nesta edição da revista Z Cultural, a arte mostra mesmo o que é ela, além de ser outra, em artigos de importantes pesquisadores, nos quais a poesia se imbrica com as artes plásticas, a literatura com a filosofia, o cinema com a narrativa urbana e interativa, a prosa com a publicidade, a pintura com a poesia. Há também o que não é artigo, mas ficção, depoimento ou a escrita de uma fala. Porque o texto também é o que ultrapassa os gêneros, flui entre fala e escrita, entre academia e vivência, entre ensaio e ficção.

O leitor é também o fazedor de sentidos, o consumidor produz e ganha o status de prossumidor – e o resultado dessa geleia geral lembra a matéria da qual toda arte é feita: mesclas. Por mais rudes que sejam os seus ingredientes, o que sobra é delicadeza. Mistura fina.

Boa leitura!

Os organizadores desta edição
Beatriz Resende, João Anzanelo Carrascoza e Ieda Magri

Tempo de leitura estimado: 35 minutos

Criações espaciais em imagens performáticas | Aline Couri*

É possível pensar em obras de arte como criações espaciais a partir de basicamente dois sentidos principais. O mais imediato é aquele no qual o espaço criado ou proposto é experimentado no momento da presença do corpo de quem experimenta a obra. Outro, que pode ou não incluir este primeiro sentido, propõe criações espaciais em esferas mais amplas, que buscam modificar ou ativar alguns aspectos do ambiente coletivo de vida. Aqui observamos mais acentuadamente o parentesco com movimentos que contestavam a autonomia do campo da prática artística e sua independência quanto a outros aspectos da vida social, política e econômica.  Esses movimentos, ou grupos, eram contrários à separação entre arte e cotidiano; as formas pelas quais contestavam essa separação são múltiplas e um estudo sobre essas práticas e formalizações fogem ao escopo do presente texto. Entretanto, é importante apontar alguns desses movimentos: Arts & Crafts, Art Nouveau, Neoimpressionismo, Cubismo, Futurismo, Dada, Surrealismo, Construtivismo, Fluxus, Pop Art, Internacional Situacionista, Punk, Neoísmo, Arte Conceitual.

Dentro de um recorte centrado nas criações que envolvem interfaces interativas, essas criações espaciais vão desde um espaço imediato ao corpo do visitante-performador da imagem à proposição de outras formas de ação e criação no espaço existente.

Cabe, ainda, enfatizar que não entendemos por “arte interativa” apenas aquela realizada com recursos tecnológicos. Basta pensar em toda pesquisa e obras realizadas pelos artistas brasileiros Hélio Oiticica e Lygia Clark, dentre outros.

*

O presente texto faz parte de uma pesquisa mais ampla que tem por objeto certas obras de arte interativa que podem ser compreendidas como construções espaciais. Nela identificamos alguns recursos de criação de interfaces processuais que são utilizados na realização dessas obras. Tais recursos constituem, de modo geral, dois grande grupos nos quais alguns elementos podem apresentar características híbridas. Num extremo, encontramos obras formadas por loops de imagens fixadas (nos quais a repetição e exibição de algo já registrado constitui o espaço) (Couri, 2006) e do outro, um certo tipo de imagem processual que poderíamos chamar de “cinema sem filme”, por não possuírem um registro prévio a ser projetado.

Nos espaços criados por loops de imagens fixadas, geralmente a imagem projetada é simplificada de tal modo que sua projeção é superada (em importância em relação à obra) pela atenção solicitada ao ato de projetar. Mesmo que envolva a projeção de uma imagem já concluída, esta configura um espaço tridimensional, no qual a imagem projetada deixa de ser o foco principal de atenção. Podemos citar, como exemplos, Line Describing a Cone (1973, 16mm) e Long Film for Four Projectors (1974, 16mm) de Anthony Mccall, que criam um espaço tridimensional, aberto às interações e movimentos dos corpos dos participantes.[1]

Anthony Mccall, Line Describing a Cone (1973, 16mm) Fonte: http://www.tate.org.uk/art/artworks/mccall-line-describing-a-cone-t12031
Anthony Mccall, Line Describing a Cone (1973, 16mm) Fonte: http://www.tate.org.uk/art/artworks/mccall-line-describing-a-cone-t12031

Consideramos o cinema numa perspectiva expandida.[2] Os artistas que atuam nesta área questionam a forma hegemônica do cinema e seus dispositivos, seu modo de projetar. Agregam referências da performance e do happening, envolvendo os corpos dos observadores.[3] Questionam o espaço perspectivo e enquadrado, o formato narrativo, os elementos do cinema tradicional, a passividade dos espectadores. Essa perspectiva está relacionada ao processo de desocultamento do dispositivo do cinema e à produção de uma imagem processual, aberta, que envolve o espectador (Parente, 2008). Machado também considera o conceito de “cinema” de modo expandido. Para o autor:

muitas das experiências anteriores ou posteriores a isso que chamamos de cinema podem ser muito mais cinematográficas (no sentido etimológico do termo) do que a prática regular da arte que leva este nome. Ou seja, pode haver uma representação mais eloquente do movimento, da duração, do trabalho modelador do tempo e do sincronismo audiovisual nas formas pré e pós-cinematográficas do que nos exemplos “oficiais” da performance cinematográfica” (Machado, 2002, p. 9).

Tais autores fazem parte de um grupo de pesquisadores que tem se dedicado às formas não hegemônicas, desviantes, de cinema. Dentre eles, podemos destacar: G. Youngblood, J. C. Royoux, R. Bellour, D. Païni, P. Dubois, A. M. Duguet, J. P. Fargier, S. Lischi, P. Weibel, J. La Ferla, L. Canongia, K. Maciel, L. Flores e outros. Os estudos desenvolvidos nesta área apontam tanto os diferentes processos dessa transposição (segundo Dubois: cinema exposto, cinema decomposto/recomposto, cinema reconstituído, cinema materializado) quanto as diferenças existentes no sistema de valor, economia, visualização, temporalidade e plasticidade nessas transposições.[4]

Vale lembrar que mesmo que venhamos a tratar de muitas obras que utilizam o vídeo, ainda é válido nos referirmos a elas como sendo um certo tipo de cinema, seja “cinema expandido” ou “cinema sem filme”. Machado, assim como Dubois, vê necessidade de

afirmar o cinema como uma espécie de referência fundante para todo o audiovisual, sem a consideração da qual o discurso sobre as imagens e os sons contemporâneos afrouxa e perde a densidade que levou tanto tempo para sedimentar (Machado in Dubois, 2004, p. 12).

Além disso, “o imaginário cinematográfico está em toda parte, e nos impregna até em nossa maneira de falar ou de ser” (Dubois, 2004, p. 25).

Feitas essas ressalvas, nos resta definir nosso objeto, que, além de constituírem criações espaciais, não apresentam

imagem prévia (pré-gravada), nenhuma fita magnética com uma “obra” registrada, nenhum videocassete para “rodá-la”: há nelas apenas um circuito fechado, em que o espectador, ao deixar-se incorporar ao dispositivo, vê sua própria imagem desdobrar-se no espaço perceptivo (Machado in Dubois, 2004, p. 13).

Lembramos que as obras-objetos de nossa pesquisa podem apresentar também outros recursos tecnológicos além dos circuitos fechados (que basicamente envolvem câmeras e projetores): sensores, patchs, softwares, códigos digitais etc.

Este artigo trata, portanto, de uma vertente específica do que podemos entender como cinema expandido: certos desdobramentos do cinema nas artes plásticas nos quais a imagem visualizada e experimentada é processual. Uma imagem-processo que exibe seu próprio modo de constituição, incluindo os espectadores e seus corpos em sua produção. O fenômeno da projeção passa a ser desocultado; é quebrada a tradicional separação entre espectador e performance; são construídos espaços que aceitam e incentivam diversos pontos de vistas e o próprio movimento. As imagens processuais nos permitem avançar no estudo da performalidade da imagem, da participação do espectador na obra e do caráter de obra aberta e inacabada que se opõe ao objeto de arte como algo definido e concluído.

As videoinstalações que envolvem imagens processuais agem na contramão de uma arte unidirecional, que encontra no objeto sua culminância. Ao contrário, são identificadas com a efemeridade e a descontinuidade, remetem ao questionamento do ato de contemplar e do conceito de autoria. Exploram a experiência vivida, a ideia do trabalho in progress, as ações em tempo real, provocando e fomentando a fusão entre arte e vida, já proclamada pelos situacionistas.[5] Anne-Marie Duguet (2002), como Dubois, já notou a efemeridade do vídeo, que se configuraria mais como ação, acontecimento, gesto ou processo de comunicação, ou seja, como obra de relacionamento momentâneo, sem traços materiais. A obra é o próprio processo de experiência da obra.

Quando existe transmissão de imagens simultaneamente à sua captação, o trabalho de arte se confunde com seu processo de elaboração. A obra se torna aberta ao acaso, à participação, à imprevisibilidade. Se a fotografia e o cinema se relacionam com a representação do tempo passado, o vídeo tem a “capacidade de registrar, transmitir e reproduzir quase instantaneamente uma imagem em movimento” (Couchot, 1993, p. 37). Foi com o vídeo que tomamos contato com imagens em tempo real, situação acentuada pela transmissão via satélite e, mais tarde, pela transmissão via internet. É com o vídeo que viemos a conhecer a “telepresenca”.[6]

Hoje, muitos trabalhos de arte são produzidos e apresentados como processos. O vídeo apresenta-se como uma importante ferramenta nos processos “em tempo real”, relacionando-se à efemeridade, aos meios digitais interativos e às tecnologias de comunicação. Como mostra Mello (2007, p. 141), o vídeo

é não apenas uma tecnologia representacional – mas também uma linguagem que associa estratégias de simultaneidade do tempo presente – constituindo um modo de investigá-lo em seus mecanismos de expansão, tanto em seu caráter processual e em suas potencialidades temporais quanto em sua característica de estar entre os diversos dispositivos e ambientes. […] Um meio instável, impermanente, transitório, que introduz a ideia de fluxo midiático no universo da arte e é capaz de dialogar com a ampla gama de procedimentos criativos relacionados à cultura digital.

Imagem processual e imagem performática

Entendemos como imagem processual aquela que não é definida ou finalizada previamente à sua visualização: é o produto de um processo que pode envolver variáveis distintas. Já tratamos desse tipo de imagem em um estudo anterior (Couri, 2006). As imagens fractais e as imagens em circuito fechado (hoje atualizadas em versões digitais) são alguns exemplos.

A produção de imagens processuais concentra-se em sua configuração, que depende de sujeitos participantes do processo. Esse tipo de imagem coloca em questão as relações entre espectador, artista e obra. Sem participantes, não existe imagem. A imagem está desprovida de seu caráter de registro.[7]

Muito mais que arte como produção de objetos, lidamos com a arte como produção e proposição de experiência. A obra se dá no modo como faz o público compartilhar e viver a experiência oferecida. O processo de criação da imagem (e da obra) é tornado visível e aberto.

Ao ressaltar a experiência, esse tipo de imagem também coloca ênfase no movimento, no tato, no corpo, questionando a supremacia da visualidade e do olho como único canal de apreensão sensorial. Obras que envolvem imagens sem registro prévio compreendem atualizações e variações do recurso conhecido como circuito fechado, muito explorado nas décadas de 1960 e 1970 por artistas como Peter Campus, Dan Graham, Bruce Nauman, dentre outros. Desde então, muitos artistas utilizam esse processo. O artista atua na criação do processo que criará a imagem a ser visualizada, e não diretamente na criação dos aspectos formais inerentes à imagem.

Por incluir o espectador na produção da imagem visualizada, esta possui um grande potencial de criação espacial. Daí advém nosso interesse por esse tipo de imagem: por incluírem e ressaltarem a materialidade dos corpos, da presença, do tato[8], obras com imagens processuais remetem às discussões conceituais e filosóficas sobre o espaço. Nos interessam principalmente aquelas que chamam a atenção para a presença, o corpo, o observador, numa perspectiva próxima às ideias de Leibniz, Husserl, Heidegger, Merleau-Ponty, De Certeau, McLuhan; da geometria de Riemann e da teoria da relatividade de Einstein. Até mesmo Nietzsche chamou atenção para o corpo, que acabaria por ser considerado parte do próprio entendimento e concepção do espaço. Para ele, o mundo

não é algo desperdiçado, infinitamente extenso, mas sim estabelecido em um espaço definido como uma força definida, e não um espaço que pode estar “vazio” aqui ou ali. Uma força ubíqua, um jogo de forças e de ondas de forças, ao mesmo tempo um e muitos, aumentando aqui e ao mesmo tempo diminuindo lá (Nietzsche, 1968, p. 550).

Esta compreensão sobre o corpo e o espaço numa relação dinâmica acabou não sendo desenvolvida mais profundamente pelo filósofo e não teve repercussão comparável a outros conceitos por ele concebidos. Mas é interessante saber que Nietzsche faz parte dos autores que compreendem o espaço como algo essencialmente dinâmico e intrinsecamente relacionado ao corpo.

Câmera escura, origem das imagens processuais

Além das imagens em circuito fechado, é preciso citar a câmera escura, dispositivo que exerceu grande fascínio durante os séculos XVI e XVII. Crary (1992) a considera um dispositivo distinto e autônomo em relação à história da fotografia. Segundo o autor, a câmera escura e a câmera fotográfica pertencem a sistemas de representação e observação fundamentalmente distintas. A função principal da câmera escura não era produzir figuras. Crary (1992, p. 33) cita o verbete da Encyclopédie, que lista seus usos:

esclarece enormemente a natureza da visão; proporciona um divertido espetáculo, no qual são apresentadas imagens perfeitamente similares aos objetos; representa as cores e movimentos dos objetos melhor que qualquer outro tipo de representação.

Só tardiamente o verbete acrescenta que “através deste instrumento alguém que não sabe desenhar torna-se capaz de traçar um desenho com extrema precisão”. As imagens em movimento das câmeras escuras não podiam ser desvinculadas de seu processo de formação: resultam de procedimentos específicos que possibilitam a sua visualização.

Se a câmera escura se aproxima de nosso objeto por se tratar de uma imagem processual, por outro lado é um dispositivo no qual o observador não se sente inserido: aquilo que ele observa é um espaço exterior àquele contíguo à sua presença. “A câmera escura impede que o observador veja a sua posição como parte da representação” (Crary, 1992, p. 41). Crary  ainda acrescenta que a câmera escura “desconecta o ato de ver do corpo físico do observador, descorporifica a visão” (p. 39). Tem-se aí uma diferença fundamental entre a câmera escura e os espaços formados por interfaces interativas.

Imagem, corpo e espaço

a experiência do espaço é uma negociação na qual a co-criação toma lugar. Minha intenção é tentar isolar a negociação ou comprometimento, ou seja, olhar nem para a pessoa e nem para a rua, mas sim, ao invés disso, para o entre (Eliasson, 2009).

Parte-se do entendimento de espaço como lugar praticado (De Certeau, 1980), ou seja, de que existe espaço quando os sujeitos nele presentes estão realmente implicados em sua produção.

Nosso interesse por questões espaciais nos aproximaram do laboratório Life in Space, conduzido por Olafur Eliasson. Em uma palestra TED (2009) Eliasson coloca, dentre outras, as seguintes questões: como se configura a relação entre o nosso corpo e o espaço? Como sabemos que estar num espaço faz diferença? Eu faço diferença? Quais as implicações de minha presença e de meu corpo em determinado espaço?

Eliasson (2009, p. 3) afirma trabalhar para “aumentar o papel da arte como um participante na sociedade e afirmar que ela pode contribuir com reflexões de natureza espacial; ela pode ter impacto político, social e estético nas práticas não artísticas”. Veremos, mais tarde, como essa postura se aproxima dos situacionistas.

Fazer parte de um espaço implica fazer e exercer a diferença. As interfaces interativas colocam situações completamente diversas às colocadas por imagens fotográficas, pinturas, gravuras. O espaço, para ser espaço, precisa ser percorrido, vivido, percebido em suas dimensões. O espaço tende a ser entendido como algo que libera, abre terreno, dá lugar, abertura. Permite as distâncias, as vizinhanças, o próximo e o longínquo, as direções, fronteiras, as grandezas.

Para Heidegger, o espaço não é nem uma propriedade subjetiva da mente, nem existe previamente à existência de um sujeito no mundo (não existe espaço independentemente de sujeitos): “o espaço não é algo que encara o homem. Nem é um objeto externo ou uma experiência subjetiva. Não é que existam os homens, e além deles, o espaço”[9]: o próprio ser, se bem entendido ontologicamente, é espacial. Também Merleau-Ponty (2009) afirma a necessidade de reconhecer a espacialidade do corpo: “não existiria espaço, para mim, se eu não tivesse corpo” (2009, p. 119); “o corpo é o veículo do ser no mundo” (2009, p. 97).

Ou seja, enquanto a espacialidade é um dos aspectos principais do nosso encontro com as coisas do mundo, o espaço como tal não é algo que pode ser conhecido independentemente das coisas, mas somente por sua relação com elas. Obras de arte interativa com imagens processuais definem um campo enorme para experiências espaciais. Então uma questão se coloca: a questão tátil e espacial não estaria já colocada na imagem digital?

Mark Hansen vem desenvolvendo uma fenomenologia elaborada a partir da obra de W. Bejamin, H. Bergson e G. Deleuze, que enfatiza o papel do afeto, da propriocepção e das dimensões táteis da experiência na constituição do espaço. Questionando todo um conjunto de estudos que abordava a imagem digital numa perspectiva de virtualização do corpo, Hansen argumenta que no regime digital o corpo é um constituinte ativo da imagem: é a origem de ação num mundo de imagens. É através dele que selecionamos dentre as influências externas aquelas relevantes para nossos interesses. A vocação bergsoniana de Hansen diz que não existe informação (ou imagem) na falta de uma corporificação humana que lhe dá forma.

Para Hansen a convergência das mídias sob o digital aumenta a centralidade do corpo como um “editor” da informação: enquanto a mídia perde sua especificidade material, o corpo ganha o importante papel de processador seletivo na criação das imagens. Em contraste com um objeto estático, a imagem digital envolve o processamento da informação e a constante atualização da interpretação dessa informação através de uma imagem que pode parecer estática na tela, mas que no entanto é extremamente dinâmica, capaz de ser modificada a qualquer momento (Hansen, 2004, p. 23).

Esta característica da imagem digital pode aproximá-la, em certo sentido, ao espaço como o entendemos. Se o espaço deve ser entendido como um campo de forças estabelecido entre dadas dimensões (física, cultural, econômica, social, de interface, modos de interação e imagem) e atores atuantes, estes trazem a indeterminação de seus atos (diferentes modos de uso) na forma de inputs de ações que modificam o espaço em determinado momento, produzindo outras instâncias. Um espaço vivido sempre implicaria, portanto, um circuito de retroação.

A imagem-experiência em Peter Campus: dobras espaciais

Peter Campus se notabilizou principalmente por um conjunto de videoinstalações realizadas na primeira metade dos anos 1970, nas quais a participação do espectador é essencial para a formação da imagem. Tais obras envolvem circuitos fechados: Interface (1972), Mem (1974) e Dor (1975) são obras desse tipo. O trabalho de Campus convoca algumas das principais tendências da arte do pós-guerra: o minimalismo dos seus dispositivos, o caráter conceitual relacionado com a questão dos limites da representação imagética, o acento performático-processual, o papel do corpo e da presença do artista e/ou do observador.

Interface (1972) é talvez o trabalho mais conhecido de Campus, no qual o dispositivo torna-se o ponto nodal da articulação entre o meio empregado, o observador que o ativa e uma certa desconstrução de determinado regime de crenças e disposições da imagem enquanto representação.

A instalação é muito simples: numa sala há uma câmera, um projetor e um vidro. A câmera está no fundo da sala. Entre ela e o espectador, é colocado um vidro transparente que funciona como uma interface entre os dois espaços, separados por ele. Sobre o vidro, que mede 3 por 2,7 metros (proporção 4×3), é projetada a imagem em preto e branco captada pela câmera em tempo real: uma instalação em circuito fechado.

Ao entrar na sala e se posicionar no espaço captado pela câmera, o participante se vê projetado no vidro. Mas o vidro também o reflete, de forma que ele vê duas imagens: uma projetada (em preto e branco), e seu reflexo. As duas imagens sofrem variações de foco, tamanho, posição e iluminação em função do movimento do espectador no espaço. O espectador pode experimentar os campos limítrofes além dos quais as imagens desaparecem do vidro, se posicionar em um lugar onde as imagens se sobrepõem, fazê-las variar em seus movimentos de aproximação e afastamento, observar sua dissimetria – uma vez que a imagem refletida inverte os lados do objeto, ao contrário da projetada. Esta dissimetria é, na verdade, uma dobra, por meio da qual a interface, o vidro, se torna uma dimensão intermediária, topológica, invertendo as relações do que está do lado de cá ou de lá.

Interface dialoga com a tradição pictórica ao trazer para dentro da obra a figura do espectador. A obra não existe se não há espectador na sala, uma vez que o objeto da obra é a própria experiência do participante, que se vê vendo.

Antes mesmo da emergência das tecnologias digitais, a obra de Campus cria variações no regime estético, colocando em questão a ideia de que a obra de arte remete a uma realidade pré-existente, por meio do uso de uma imagem processual, que se cria durante a experiência sempre presente e singular de um espectador implicado.

Em Interface o que existe é a disposição espacial de vários elementos (projetor, câmera, ator) que variam em relação ao movimento do observador. Trata-se de uma obra aberta, “inacabada” e processual, cuja problemática principal remete à própria atividade perceptiva deslanchada pelo observador. Este tipo de instalação desconstrói a imagem como representação de algo já dado, na medida em que nos faz experimentar o próprio fundamento da percepção: “ver é ser visto” (Merleau-Ponty).

Interface nos é importante pelo caráter fundador de uma experiência espacial; mas é nas suas próximas obras em circuito fechado, Mem e Dor, que Campus parece ampliar a criação de espaços. Além de terem o caráter efêmero da imagem evidenciado, nelas a moldura retangular é distorcida, explodida. A imagem parece querer se livrar da moldura, da bidimensionalidade. Impossível não lembrar do percurso trilhado por Lygia Clark, no momento em que os Casulos se destacam da parede para se transformarem em Bichos.

Em Mem e Dor, Campus explora mais acentuadamente as relações entre o ponto de vista e o plano de projeção. Em Mem a câmera está localizada muito perto da parede e sua objetiva está orientada paralelamente a ela. A imagem é projetada obliquamente, criando uma forma trapezoidal e gerando diversas deformações no corpo projetado. Para entrar no restrito campo de visão da câmera, o visitante deve ficar tão perto da parede que ele não pode apreender globalmente sua imagem. Ao se afastar, numa tentativa de apreensão visual da imagem, a imagem se perde, desaparece. Duguet (2002) aponta que “o espectador se encontra de certa forma imobilizado dentro do virtual”. Ele é sujeito, objeto e plano de projeção da imagem.

Figura 2: Mem, Peter Campus, 1974 Fonte: http://digitalaesthetic.org.uk/participant/peter-campus/
Figura 2: Mem, Peter Campus, 1974 Fonte: http://digitalaesthetic.org.uk/participant/peter-campus/

Dor é organizada de tal modo que a imagem do visitante se forma exatamente no momento em que entra na sala. Este momento é a soleira da porta, um ponto situado num prolongamento da parede na qual a imagem está projetada. Assim, o visitante deve optar entre ser visto e não poder ver, ou tentar se ver, com o risco da imagem desaparecer. O lugar de observação da imagem é radicalmente dissociado do ponto de vista da câmera. Criar a imagem é estar impedido de vê-la, de contemplá-la totalmente. O ponto de criação da imagem se situa no mesmo plano de projeção dela mesma. O jogo acontece neste limite, nessa fronteira entre estar dentro ou fora da obra. O limite da sala, a porta, é exatamente o ponto ativador da imagem.

Dor remete às ideias de espaço como algo inerentemente coletivo: o espectador, sozinho, não consegue ver ou produzir imagem. Ele precisa de outros participantes. Pode funcionar como uma metáfora para a construção espacial: sozinhos, não construímos nada.

Figura 3: Dor, Peter Campus, 1975 Fonte: http://theantarchive.files.wordpress.com/2013/01/93-76_02_e02.jpg
Figura 3: Dor, Peter Campus, 1975 Fonte: http://theantarchive.files.wordpress.com/2013/01/93-76_02_e02.jpg

Os Sonacirema: um filme processual

Os Sonacirema (1978, 35mm) de André Parente é constituído de quadros pretos e brancos que se revezam. Não possui imagens figurativas, apenas pontas pretas e transparentes, além de transições em fade-in e fade-out. Nele, não foi usado câmera nem moviola. O filme usa a tela de cinema para fazer “refletir”, literalmente, os espectadores, verdadeiros objetos do filme.

O filme é baseado no texto The ritual body among Niacirema, do antropólogo  Horace Minner, publicado em 1956 na revista American Anthropologist. Descreve uma tribo que vive na América do Norte e desenvolveu uma série de obsessões em torno do corpo. As crenças e práticas mágicas dos Niacerema (anagrama de “americain”) apresentam aspectos tão inusitados que descrevê-los nos permite discutir os extremos a que pode chegar o comportamento humano[10]. Os Sonacirema é um documentário experimental sobre uma tribo que supostamente se estende do Oiapoque ao Chuí. O som do filme é constituído pela narração do texto que descreve essa tribo.

Em versão recente do filme, Parente criou o happening intitulado Cine-movido[11] que envolvia os espectadores. Simultaneamente à projeção do filme, uma câmera de vídeo capta as imagens dos espectadores na sala. Essa imagem é projetada sobre o filme. Quando a imagem é escura (quadros pretos) a imagem dos espectadores aparece. Aqui, surge um tipo de imagem-performática, que busca colocar como objeto os próprios sujeitos. O espaço tradicional de projeção da sala de cinema é rebatido, espelhado. Pouco a pouco, os espectadores se dão conta de que a imagem projetada é a sua própria imagem captada em tempo real.

Os Sonacirema cria um processo de frustação do espetáculo cinematográfico instituído, um desocultamento do dispositivo do cinema e do lugar do espectador. É criado um espaço especular, no qual o espectador se torna participante do filme. Quem vê se torna também aquilo que é visto.

Espaços digitais de ação encarnada

A obra de Myron Krueger chama nossa atenção pela importância dada ao corpo e ao espaço tridimensional. Para o artista, o desenvolvimento de simulações tridimensionais na forma de ambiente interativo nos coloca em contato com nossas capacidades perceptivas mais primitivas:

a interface humana está evoluindo para informações mais naturais. Espaço tridimensional é mais intuitivo do que o espaço bidimensional. Espaço tridimensional é aquilo para o que evoluímos para entender. É mais primitivo, não mais avançado (Krueger apud Hansen, 2006, p. 3).

O interesse de Krueger relaciona-se com as potencialidades enativas oferecidas pelas novas mídias, e não para suas capacidades de representação ou de simulação (Hansen, 2006, p. 26). Para ele, o “virtual” não compreende um espaço alternativo transcendente ao corpo, mas sim um novo domínio, aprimorado pelo computador, de extensão de nossa interface com o mundo.

Krueger procurou materializar sua convicção de que o foco da pesquisa em interface deve ser a natureza humana, não o computador. Construiu ambientes em bases digitais que privilegiam o corpo; neles, o computador é um veículo para explorar e expandir interações humanas encarnadas, onde a interface é pensada a colaborar nas relações interpessoais.

De 1970 a 1984 Krueger procurou ampliar as capacidades de interação entre pessoas e programas de computador. Numa época em que a maior parte das pesquisas em realidade virtual envolviam pesadas e desconfortáveis interfaces (como capacetes – Head Mounted Displays – e luvas), a pesquisa de Krueger se concentrou no próprio corpo como interface. Suas obras compreendem Metaplay (1970), Psychic Space (1971) e Videoplace (1974-1975).

Metaplay combinou tecnologia de circuito fechado com código digital para explorar as relações entre as ações do visitante e as reações do sistema. Cria-se um certo tipo de comunicação em tempo real entre seus participantes, que se deparam com projeções bidimensionais de seus corpos. Para similar a tecnologia interativa da qual não dispunha, o artista incluiu-se ao processo: ficava em um espaço distinto desenhando num tablet as respostas aos movimentos dos participantes. Por serem respostas do próprio artista, a obra ganhou em criatividade e indeterminação, incluindo um sentido de erro, de experiência, de brincadeira, que enriquece as respostas exatas dos computadores.

Já em Psychic Space o que está em jogo é a instauração da autonomia do ambiente, obtida através da incorporação de feedback. A origem da imprecisão passa dos desenhos para os movimentos dos corpos dos visitantes, captados por sensores. O visitante é colocado numa interação em tempo real com os dados gerados por seus movimentos.

O visitante é inicialmente convidado a se concentrar em um losango como símbolo de si mesmo. Logo a figura é cercada por um pequeno quadrado do qual o visitante busca se livrar. Em seguida o quadrado se torna um labirinto a ser explorado. Em contraste com os jogos de computador típicos, as possibilidades oferecidas em Psychic Space não são guiadas por objetivos previamente definidos e não culminam na realização de uma tarefa. O ambiente é concebido de forma a impedir o progresso do espectador em relação a qualquer objetivo que se tenha como meta. Por exemplo, o programa reconfigura o labirinto no momento em que o visitante se aproxima da saída, ou altera a direção do controle do losango pelo corpo, de horizontal para vertical.

O computador, nas obras de Krueger, funciona para perturbar a tendência natural do visitante de atingir certo objetivo. Trata-se de um feedback criativo, de adaptação à situações que mudam constantemente. O ambiente continuamente solicita que o visitante se adapte às características de cada novo espaço constituído.

Videoplace marca uma nova etapa na implementação da autonomia do ambiente interativo, que passa a envolver totalmente o visitante. Uma imagem do movimento do visitante, com o contorno de seu corpo, é capturada e processada pelo computador. O visitante pode, por exemplo, preencher o espaço com linhas de imagens coloridas de partes do corpo ou interagir com imagens capturadas, em diferentes tempos, de seus movimentos. Videoplace diferencia-se dos primeiros ambientes interativos de Krueger pela realização técnica e estética da sincronicidade completa entre ação e resposta. Aqui, a atividade do computador coincide absolutamente com o movimento do interator, se tornando (ou sendo experimentado como) uma parte indissociável de seu agenciamento. Cria-se um tipo de agenciamento expandido: devido à sincronicidade entre movimento e imagem, o sistema faz-se disponível como um instrumento a ser experimentado e utilizado. Krueger procurou fazer com que o ambiente “aprendesse com seus visitantes”, tornando o público, de certo modo, também programador do sistema. Ao invés de forçar o visitante a se adaptar ao computador e à sua linguagem, é o computador que é chamado a aprender com os gestos humanos.

Figura 4: Videoplace, Myron Krueger, 1974-75 Fonte:http://90.146.8.18/en/archives/picture_ausgabe_03_new.asp?iAreaID=12&showAreaID=41&iImageID=16451
Figura 4: Videoplace, Myron Krueger, 1974-75 Fonte:http://90.146.8.18/en/archives/picture_ausgabe_03_new.asp?iAreaID=12&showAreaID=41&iImageID=16451
Figura 5: Videoplace, Myron Krueger, 1974-75 Fonte:http://90.146.8.18/en/archives/picture_ausgabe_02_new.asp?iAreaID=12&showAreaID=41&page=2&pagesize=20&order=source
Figura 5: Videoplace, Myron Krueger, 1974-75 Fonte:http://90.146.8.18/en/archives/picture_ausgabe_02_new.asp?iAreaID=12&showAreaID=41&page=2&pagesize=20&order=source
Figura 6: Videoplace, Myron Krueger, 1974-75 Fonte: http://www.inventinginteractive.com/2010/03/22/myron-krueger/
Figura 6: Videoplace, Myron Krueger, 1974-75 Fonte: http://www.inventinginteractive.com/2010/03/22/myron-krueger/

O trabalho de Krueger cria espaços que misturam código com experiência humana: a atuação do corpo em movimento é claramente visível. Embora os códigos estejam subordinados aos movimentos, são também eles que acionam, expandem ou catalisam agenciamentos já encarnados.

Troca de pele: “todos juntos reunidos numa pessoa só”[12]

Nosso trabalho é dar às pessoas a possibilidade de não se identificarem com o meio ambiente e com as condutas-modelo (Kotányi; Vaneigem, 1961, p. 19).

É possível considerar que espaços criados pelas interfaces interativas podem ir além de uma construção física e material pontual. Ao sensibilizar indivíduos em relação aos espaços de vida talvez se possa trabalhar no sentido de lentamente contribuir, mesmo que pouco a pouco, na construção do espaço de vida futuro.

Cabeção, de Aline Couri, é uma obra de arte urbana interativa que coloca e fomenta a discussão sobre o espaço urbano. A interatividade foi implementada pelo live video somado à tecnologia de videomapping. A obra tirou partido do busto de Getúlio Vargas, localizado na Praça Luís de Camões (Glória, Rio de Janeiro) que não é bem quista pela população local. A escultura, em bronze, tem 2,5 metros de altura e fica numa base de 3 metros. A população local a conhece como “Cabeção”.

A instalação envolve uma câmera que capta imagens ao vivo dos rostos do público participante e um projetor que projeta essa imagem sobre o rosto do busto. Um computador, com software de videomapping, faz com que a imagem seja projetada exatamente sobre o rosto da escultura. Cabeção é uma obra que tem um sentido lúdico, de brincadeira, mas que pode gerar discussões e reflexões políticas. Durante o período no qual esteve montada muitas pessoas interagiram, riram e inventaram modos de interação com o dispositivo.

Figura 7: O busto de Getúlio Vargas, localizado na Praça Luís de Camões (Glória, Rio de Janeiro) Fonte: arquivo alinecouri
Figura 7: O busto de Getúlio Vargas, localizado na Praça Luís de Camões (Glória, Rio de Janeiro) Fonte: arquivo alinecouri
Figura 8: Cabeção, Aline Couri, 2012 Fonte: arquivo alinecouri
Figura 8: Cabeção, Aline Couri, 2012 Fonte: arquivo alinecouri
Figura 9: Cabeção, Aline Couri, 2012 Fonte: arquivo alinecouri
Figura 9: Cabeção, Aline Couri, 2012 Fonte: arquivo alinecouri

Nesta obra a construção espacial se dá em várias escalas. A menor delas parece ser a imediata do entorno, na qual é criado o dispositivo que convida e envolve os transeuntes, criando algo como uma “troca de pele” entre as pessoas e a estátua, que parece “criar vida” com cada uma das performances-espontâneas realizadas. Numa perspectiva mais ampla, procurou-se colaborar – ainda que em uma pequena atuação, quase que imaterial – para a construção de um outro espaço urbano de vida. Acreditamos que, de certo modo, atualizamos o desejo situacionista de atuar no sentido de um urbanismo unitário. Este conceito foi resumidamente definido como “emprego conjunto de artes e técnicas que concorrem para a construção integral de um ambiente em ligação dinâmica com experiências de comportamento” (IS n. 1, 1958, p. 13.).

O urbanismo unitário não é uma doutrina do urbanismo, mas sim uma crítica ao urbanismo (IS n. 3, 1959, p. 12). Idealiza a unificação do espaço construído com o corpo social e com o corpo individual, rejeitando a busca idealizada por formas fixas e soluções permanentes (bases do planejamento urbano tradicional). Para os situacionistas um genuíno progresso social não subordinaria o indivíduo, mas sim maximizaria sua liberdade e seu potencial. Buscavam criar, além do aspecto utilitário imediato, um ambiente funcional apaixonante, através da “crítica viva da manipulação das cidades e de seus habitantes” (IS n. 6, 1961, p. 17).

Os situacionistas buscavam restituir a criação e a reflexão crítica cotidianas em relação ao espaço, incorporar a arte na prática urbana. Entendiam a arte como ferramenta de transformação da realidade.

O urbanismo unitário foi um enorme exercício teórico sem realizações práticas. Mas está aí justamente sua potencialidade: ele pode ser entendido como um virtual, como uma meta. Tem-se os princípios, a intenção e, quem sabe, a estratégia; já a atualização dessas ideias, o “como fazer”, dependerá – e deve sempre depender – de cada situação particular, oportunidade, ocasião, meios disponíveis. O urbanismo unitário será sempre então um devir; cada ação será uma experiência: produto da questão, situação e do local específicos.

Cinemas sem filme, cidades sem projetos rígidos que se colocam como definitivos: é através da contestação, do pensar diferente, do se colocar constantemente em estado de perigo (como a etimologia da palavra “experimentar”[13]) que seguiremos fomentando pensamentos críticos e criativos.

* Aline Couri é pesquisadora de pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Comunicação ECO/UFRJ com bolsa Capes/Faperj. Arquiteta, mestre em Comunicação e Cultura, com doutorado em Urbanismo (Prourb/Fau/UFRJ).


Referências

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Os Sonaciremas (1979, 35mm, 12 minutos, Preto e Branco). Roteiro, produção, direção e montagem: André Parente.

PARENTE, A. Cinema de exposição: o dispositivo em contracampo. Revista Poiésis, n. 12, p. 51-63, nov. 2008.

Notas

[1] McCall substitui o espaço perspectivo do cinema convencional por um espaço projetivo. A parede não mais sustenta uma janela; ela ganha o papel de superfície opaca, de limite espacial. A experiência da projeção ganha um caráter físico e táctil, que envolve o corpo. A obra acontece no espaço entre os projetores e a parede; o espectador está dentro do filme. A imagem torna-se o campo no qual a experiência se dá.

[2] Muito se discute sobre a migração do cinema dos espaços de projeção tradicionais para outros espaços. Numa perspectiva geral podemos citar os filmes digitais, visualizados em computadores, telefones, palmtops, tablets. Dentro do campo das artes, nota-se que os espaços de exposição (museus, galerias, mostras) vêm recebendo um número crescente de obras nas quais a imagem em movimento – projetada ou exibida em telas e monitores – tem lugar de destaque.

[3] O observador, ao contrário do espectador, constrói em parte o que vê.

[4] Aquilo que o senso comum compreende como cinema é apenas uma de suas formas, aquela que se desenvolveu a partir de cerca de 1908 de modo a se estabelecer como modelo hegemônico dominante: o modelo narrativo-representativo-industrial (N.R.I.).

[5] Segundo as “definições” publicadas no primeiro número da revista Internationale Situationniste, situacionista é “o que se refere à teoria ou à atividade prática de uma construção de situações. Indivíduo que se dedica a construir situações. Membro da internacional situacionista” (IS n. 1, 1958, p. 13). As referências aos textos situacionistas serão feitas de acordo com sua localização original nas revistas (IS n.), estando todas elas reunidas em INTERNATIONALE SITUATIONNISTE(1997).

[6] A possibilidade de atuar e experimentar ações em lugares distintos daquele no qual estamos presentes com nossos corpos físicos. Ver, por exemplo, Teleporting an Unknown State, de Eduardo Kac.

[7] Seja em filme, memória digital, disco ou outra mídia.

[8] No sentido mcluhaniano.

[9] Bauen Wohnen Denken, conferência proferida em 1951.

[10] O texto fala sobre a cultura ocidental como se ela fosse uma cultura “primitiva”. É sobretudo a objetividade da descrição dos nossos gestos do dia-a-dia que produz a nossa cegueira quanto ao objeto do texto, como se, ao olhar o espetáculo desta “tribo de bárbaros”, não nos reconhecêssemos.

[11] Happening-instalação realizado na Escola de Audiovisual de Fortaleza em 2007.

[12] Uma pessoa só, Arnaldo Baptista.

[13] “Experimentar” vem de experire: se colocar em perigo. Experimentar é arriscar: sem risco, nada é alcançado além  do já conhecido.

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Três estudos sobre teatro e presença: Strip-tease, Ensaio.Hamlet, Formas breves | Inês Cardoso Martins Moreira*

Algumas das questões que atravessam a minha atual pesquisa, “Texto e presença: o personagem, o ator e a materialidade visual e sonora do texto teatral”, nortearão este artigo. A pesquisa se volta, simultaneamente, para questões cênicas suscitadas, por um lado, por textos que tendem a forçar os limites dos gêneros e modos discursivos, por dramaturgias que tendem a pôr certa concepção de drama em questão e, por outro lado, por encenações que desafiam os paradigmas que costumam orientar o trabalho do ator em cena e, em particular, sua relação com o texto dramático. Para discutir alguns destes pontos, vou desenvolver uma breve reflexão sob a forma de um triplo estudo de caso, tomando por base os exemplos de três espetáculos, encenados recentemente no Brasil, a saber: Strip-tease (2000), Ensaio.Hamlet (2004) e Formas breves (2009).

Uma das primeiras cenas do espetáculo Formas Breves de Bia Lessa e Maria Borba, em cartaz no Rio de Janeiro e em São Paulo em 2009, mostrava uma atriz sobre uma bicicleta cujas rodas eram presas ao chão por dois atores, que pareciam servir-lhe de pedestal. De frente para o público, a atriz guiava a bicicleta, por vezes pedalando em alta velocidade, e dizendo, também rapidamente, um texto. As rodas da bicicleta serviam de pernas para a atriz que pedalava sem, no entanto, sair do lugar. Ela se equilibrava sobre duas rodas, confiando o equilibro, todavia, à presteza dos dois atores que, por sua vez, aparentavam dar pouca ou nenhuma atenção à sua função de manter a atriz em equilíbrio fora do chão, segurando cada uma das rodas enquanto liam um livro ou fumavam um cigarro de maneira casual. Enquanto permanece pedalando, a atriz vai contando uma história. O relato (em primeira pessoa), recortado do livro Origem, de Thomas Bernhard, é, todo ele construído no pretérito, mas o tempo verbal se vê contrastado por sua presentificação em cena pela atriz-ciclista.[1]

O equilíbrio vacilante da atriz, cujos pés se mantêm fora do chão, faz lembrar a performance Duets on Ice (1974-75)[1] da artista norte-americana Laurie Anderson,  na qual ela se equilibra sobre patins de gelo, cujas lâminas estão presas em cubos de gelo. A performer vai tocando violino enquanto conta histórias e o gelo, que recobre as laminas dos patins, vai aos poucos derretendo. A performance termina quando o gelo derrete e a performer perde, então, o equilíbrio. Equilíbrio tenso que se assemelha ao da atriz sobre a bicicleta com as pernas suspensas. Nos dois casos, onde deveria haver movimento, não há. Nem a bicicleta se move no espaço, nem os patins de Anderson deslizam por uma pista de patinação. O movimento, que deveria estar nos pés suspensos pelas rodas ou pelas lâminas enfiadas no gelo, se desloca do corpo das duas performers para a voz, para a narração de histórias e para o contraste temporal entre o passado da narrativa e o presente da ação dramática. Movimento enfatizado pelo desequilíbrio provocado justamente pela imobilização (das lâminas e das rodas), agenciada pelo gelo ou pelas mãos dos atores displicentes, presentes na abertura do espetáculo de Bia Lessa e Maria Borba.

Cena do espetáculo Formas breves. Marcela Oliveira, Danilo Oliveira e Fernando Azambuja. http://www.myspace.com/bialessa/photos/13678843#a=0&i=13678843
Cena do espetáculo Formas breves. Marcela Oliveira, Danilo Oliveira e Fernando Azambuja. http://www.myspace.com/bialessa/photos/13678843#a=0&i=13678843

Nos dois exemplos, o de Laurie Anderson e o da atriz-ciclista, com a suspensão do corpo do performer, cujos pés se mantêm fora do chão, como se suspensos por espécies de máquinas, se atribui à imagem do corpo do ator certo descolamento da terra, certo caráter meio incorpóreo, desmaterializado, que chega a lembrar o das figuras de El Greco. Sempre a certa distância do solo. E marcados por certa insubstancialidade. Contrastada, porém, a forte presença. Distância e presença, de um lado, contraste entre pretérito narrativo e presente cênico, entre esforço e imobilidade, ficção e realidade, de outro – o que sugere a discussão sobre o estatuto do personagem, e sua figuração em cena, entre o imaterial e o fortemente corpóreo, como um lugar tenso, contrastivo, de entrada no espetáculo Formas breves.

Passando ao segundo exemplo, Strip-tease e teatro irregular, do poeta catalão Joan Brossa, chama a atenção o fato de, nas cenas de desnudamento do texto, o corpo ser quase que só matéria. A nudez, como questão central, já sublinha a matéria, a exposição de um corpo sem interior, despido de subjetividade psicológica. Gostaria de lembrar, a respeito, um dos primeiros números de strip-tease descritos pelo poeta, quando uma bailarina tira toda a roupa, os cílios postiços, a pinta do rosto, uma peruca, revelando outra peruca por debaixo daquela, até que tira finalmente a segunda peruca, revelando uma careca. Não se identifica nesse corpo nada de suspenso, de imaterial, de não substancial, nem algo capaz de se desfazer no ar, como os espíritos de A tempestade, ou como os personagens que “habitam” os corpos dos atores e que se desmancham ao término do espetáculo. Vislumbra-se, no texto de Brossa, ao contrário, um corpo que é bastante palpável, feito de carne e osso. E o que estaria dentro dele seria, ainda uma vez, matéria (numa das cenas, cai a face e revela-se uma caveira), sempre matéria e não alguma subjetividade ou revelação latente que se apresentaria ao término da cena.

Se há uma oposição nítida entre este exemplo do poeta e dramaturgo catalão e os exemplos citados anteriormente, há, porém, a possibilidade de uma aproximação entre os corpos suspensos criados por Bia Lessa e por Laurie Anderson e uma das cenas do espetáculo dirigido por Daniel Dantas com base nos textos de Joan Brossa.

No strip-tease Lua cheia, entra uma bailarina e se despe de quatro. Quando fica nua, entra um corcunda, bate palmas, desce uma corda, o corcunda amarra os pés da bailarina na corda, bate palmas novamente e a bailarina é suspensa até sumir no urdimento. Na encenação desse número, a luz esverdeada (na verdade uma projeção sobre o telão de fundo e o corpo da atriz) e a cenografia são trabalhados de modo a que o corpo suspenso no ar se confunda com o cenário. Se, por um lado, o corpo suspenso se assemelha a um corpo morto, reduzido à sua materialidade pura, como um pedaço de carne pendurado num açougue, por outro lado, o corpo, ao ser erguido do chão, ao perder o contato com o solo, parece de fato se fundir ao cenário, desaparecer contra o telão de fundo, como se não fosse matéria, como se pudesse, de fato, se desfazer no ar.

Uma tensão semelhante entre desmaterialização e presença física é possível observar numa outra cena do espetáculo Formas breves, em que um ator se despe inteiramente e permanece de pé sem dizer nenhuma palavra, sem executar nenhuma ação, apenas expondo o corpo nu enquanto matéria. Um longo texto é projetado no teto do teatro, nas paredes do teatro, nos corpos dos atores e no chão do palco. O corpo nu do ator se anula, então,  servindo de “tela” para a projeção do texto que não é dito por ele, mas exposto em seu corpo. Como no strip-tease brossiano referido acima, parecendo operar-se uma bidimensionalização desse corpo nu, neste caso servindo de suporte para a escrita.

Este texto que, se dito pelo ator, emprestaria ao corpo alguma possibilidade de fala, de externar possível interioridade, ao contrário, não sai dele, é um elemento que está fora do corpo, que se inscreve nele, mas não se fixa nele, que passa pelo corpo sem deixar qualquer marca ou rastro, e se espalha para além desse corpo, ocupando todo o espaço do teatro. Há aí uma separação entre texto e corpo, entre texto e voz, entre ator e personagem. Ator e personagem parecendo estar em planos diferentes, dissociados um do outro. E o espaço que se abre entre esses dois elementos é ocupado pelo texto projetado, cuja presença acaba por “ganhar” o centro e o foco da cena, atravessando o cenário, dançando pelas paredes do teatro, se movimentando, acariciando os corpos dos atores em cena.

Ainda pensando na tensão entre presença e ausência como forma de discussão do ator em sua relação com o personagem, passo agora brevemente ao espetáculo Ensaio.Hamlet, da Cia dos Atores, dirigido por Enrique Diaz. Nesse caso, essa tensão não se dá a partir da transformação dos corpos dos atores em tela ou em qualquer outro tipo de suporte para a palavra escrita, nem há suspensão de corpos – via gelo, bicicleta ou corda. Nesse espetáculo, o que chama atenção é o movimento de deslocamento dos personagens que vão sendo assumidos por corpos diversos. Quase todos os atores em algum momento fazem Hamlet; Ofélia também é representada por alguns dos participantes da peça. Mas não é só de um ator para outro que os personagens se deslocam. Também podem surgir como objetos. É o caso de Rosencrantz e Guildenstern que são apresentados como dois bonecos de plástico e que depois ressurgem, em carne e osso, na pele de dois atores vestidos exatamente como os bonecos. É o caso também de Ofélia que, a princípio, é apenas um vestido, sem nenhum corpo que o vista. Uma cena inteira é feita assim: uma Ofélia-vestido é manipulada por um ator que contracena com ela. Só ao final da cena, o ator veste o vestido e assume a personagem. No momento em que o vestido é “ocupado” pelo corpo de um ator, no entanto, a personagem ganha corpo e voz, mas logo sai de cena. Em seguida, uma atriz aparece e também não faz, inicialmente, a personagem. Enquanto se prepara para fazer Ofélia, ela reclama da personagem, diz que não gosta de adolescentes e que tem um problema com Ofélia. Só depois desse preâmbulo, a atriz vai aos poucos assumindo a personagem. Há como que uma espécie de recusa em dar corpo a esse personagem. Se nos Strip-teases de Brossa os corpos se despem das roupas, se livram delas e exibem a própria materialidade nua, no Hamlet da Cia dos Atores, aconteceria justo o oposto: um vestido é despido de qualquer corpo que dê forma à personagem Ofélia. É o vestido que se livra do corpo e não o corpo que se livra da roupa. Mas há, na ausência de uma Ofélia de carne e osso, nessa primeira aparição da personagem, no entanto, uma presença muda que se sobrepõe à presença dos atores em cena. O vestido “vazio”, sem qualquer tipo de enchimento que lhe dê forma, bidimensional, especialmente quando colocado no chão, parece querer sublinhar que é aquela roupa que se mostra capaz de presentificar a personagem clássica de Shakespeare com mais eficiência do que se houvesse dentro dela algum ator.

A encenação segue trabalhando com essa tensão entre vazios e cheios, presenças e ausências. Se Ofélia é apresentada como um vestido vazio, como uma personagem de vento, o monólogo “ser ou não ser”, de Hamlet, é construído em cena por três atores que enchem o espaço com as palavras de Shakespeare. Ao invés de fazer do monólogo um solo, a cena oferece um coro de vozes, o que já conferiria ao texto uma presença sonora significativa. As palavras que compõem o primeiro verso do texto são ditas mais de uma vez pelos atores, que, ao repetirem desordenadamente os vocábulos não-ser-ser-não ser-ser-não ser, e assim por diante, retiram as palavras da frase, descontextualizam momentaneamente cada uma, quebrando o período, fazendo com que o verso soe de forma imprevista e trazendo assim o verso, já tantas vezes descontextualizado, de volta para o contexto da peça e do personagem.

Em contraste então, numa mesma encenação, o vazio (de corpo e de voz) que ocupa o vestido-Ofélia e o cheio (de corpos e de vozes) que ocupam a cena do ser ou não ser de Hamlet. Em ambos os momentos há presença e há ausência. Há a presença da personagem clássica na ausência de corpo e voz na Ofélia-vestido e há ausência de um ator soberano da cena, enunciador do famoso solilóquio shakesperiano, para que haja uma presentificação do texto multiplicado em três vozes.

Nas três encenações aqui brevemente comentadas, foi possível observar a presença tanto material (na projeção do texto em Formas breves) quanto sonora (no coro de três vozes para o solilóquio de Hamlet) do texto na cena. E modos diversos de essa presença problematizar a relação entre ator e personagem. E permitir que se observem algumas possibilidades de configuração do corpo na cena contemporânea: os corpos sem matéria, efêmeros, “feitos de sonho”, como a Ofélia-vestido de Ensaio.Hamlet, os corpos-matéria, despidos de roupas e de interioridades, como o corpo pendurado do Strip-tease de Brossa ou o corpo nu de Formas breves, e os corpos suspensos, presos num lugar intermediário entre a presentificação cênica e a narração, como o da menina que se equilibra sobre as rodas da bicicleta em Formas breves.

*Inês Cardoso Martins Moreira é doutora em Artes Cênicas e professora adjunta do Departamento de Teoria do Teatro da Escola de Teatro da Unirio.


[1] A performance Duets on Ice foi reencenada por Laurie Anderson no Brasil, no CCBB de São Paulo em outubro de 2010 e no CCBB do Rio de Janeiro em março de 2011, por ocasião da abertura de sua exposição Eu em Tu / I in U.

Tempo de leitura estimado: 50 minutos

Dois textos: A memória sangra e Fruição em tempos de entretenimento

A memória sangra: literatura e propaganda na segunda guerra mundial

João Anzanello Carrascoza* e Christiane Santarelli**

…quando tento me lembrar de tudo que passei (…), as lembranças se fundem numa só imagem, como se tudo tivesse durado apenas um dia. Por mais que tente, não consigo desdobrá-las em partes e arrumá-las em ordem cronológica, como normalmente se faz quando se escreve um diário.
Wladislaw Szpilman

Prelúdio

Este artigo é o segundo “conto ilustrado” de uma trilogia sobre a evolução da publicidade com o advento do espírito moderno, o incremento das estratégias e táticas da propaganda durante a Segunda Grande Guerra e suas novas conformações no cenário midiático da pós-modernidade. Inspirado no romance de Umberto Eco, A misteriosa chama da rainha Loana, que reproduz imagens culturais como elementos narrativos (anúncios, cartazes, rótulos etc.), o presente texto adota a forma de relato ficcional. Por meio das anotações de uma judia, a narrativa traz o drama de sua família na Alemanha, a partir de 1938, sua emigração para o Brasil em 1942, e seu cotidiano até o fim da guerra em 1945. Na trama, os personagens tomam contato com as técnicas de propaganda usadas por Hitler e, em seguida, com a propaganda nacionalista de Getúlio Vargas e a publicidade impressa brasileira.[1]

O caderno de anotações

Lembro de ter visto a gravura num livro de mitologia. Prometeu está lá, acorrentado, e as aves de rapina bicam seu fígado eternamente. Agora ocupo o seu lugar nessa cena e vejo a águia ariana descer dos céus, a toda velocidade, e bicar com avidez a minha memória. Em seguida, ela alça vôo de novo e, quando chega às alturas, volta para me bicar impiedosamente outra vez. E outra. E mais outra. E cada investida sua é como o arrancar de um dente a sangue-frio: a memória sangra, sangra, sangra, e não há como estancar a hemorragia.

O que podemos fazer com as recordações? O que podemos aprender a cada tiro, a cada lembrança de dor disparada no pensamento? O pior de lembrar é que os momentos já passados, sobretudo os cruéis, não cessam de ser revividos.

Aquela noite foi da mais profunda escuridão. A primeira. Em que tudo se partiu. Em que o “j” vermelho passou a nos identificar em todos os documentos. A noite do pogrom, quando a perseguição começou de fato. Kristallnacht. Em hordas, eles atacaram as sinagogas, as nossas escolas, as nossas lojas. O armarinho de Berta e Alexander, nossos vizinhos, ficou totalmente destruído. Ruínas, ruínas, esse é o novo compasso do meu coração.

Não me esquecerei enquanto viver. Vi pela janela de casa a sinagoga queimando, as labaredas subindo, vorazes, e o povo assistindo, pacífico, como se fosse um espetáculo inocente. Meus olhos represam cada segundo dessa cena, enquanto a minha angústia vai desaguando sem parar, infiltrando-se em todos os cantos de meu ser para afogar qualquer átomo de resignação que porventura ainda reste. Meus olhos, como se fossem de vidro, vão me estilhaçando um pouco mais a cada manhã, quando, ao abri-los, vejo que o sol ilumina toda a cidade lá fora. Um novo dia. Mas só em sua pele é um dia bonito. As suas horas, negras, se acumulam, em grossas camadas, no fundo de mim.

Berta chora, chora, os olhos como duas brasas que parecem queimarão para sempre. Conta que viu judeus sendo presos pelos nazistas, dezenas deles. Dezenas. Viu policiais baterem num velho rabino até ele desmaiar. Um homem, ao seu lado, disse que não podiam tratar assim os mais velhos, fossem de que origem fossem. Então um policial gritou que ia mostrar como tratavam os judeus, para que ninguém ali se esquecesse, e espancaram o homem até a morte. Berta o conhecia. Havia estudado com ela, quando menino, no mesmo colégio judaico. Ela treme, soluça. Vejo o susto e o terror em seu rosto desfeito: como um espelho, seu rosto é o meu também.

Por todos os lados, destroços. Os vidros quebrados são cacos de um passado íntegro e honesto. São vidas despedaçadas. Somos gravetos partidos e macerados pelos agentes covardes do Terceiro Reich.

Fomos proibidos de ir aos parques, às pracas, às escolas, aos teatros. Não tenho mais onde passear com Jan. Ensino a ele, às ocultas, canções judaicas. Agarro-me à Torá. Agarro-me à esperança de que ainda há humanidade. Kurt diz que há filas imensas de judeus no consulado americano, buscando uma chance de escapar. Alguns estão conseguindo vistos de emigração para a Argentina, o Uruguai, a Venezuela. Todos, todos, pensamos em sair daqui. Da terra onde nasceram nossos avós e nossos pais. Da terra onde vivíamos livres e agora nos aprisionam, nos desintegram, nos humilham.

Os dias são tão sombrios quanto as noites. Nos jornais, nas revistas, nos cartazes de rua, nos selos, as mensagens nacionalistas e promotoras da “raça pura”. Hitler, seu armamento, seus soldados, seus discursos, o Deutsches Reich. As trevas reinam por todos os cantos. O inferno vai se tornando ubíquo.

Hoje é aniversário de Kurt. Não há o que comemorar, senão que estamos vivos. Mas por quanto tempo? E para quê? Os soldados do Führer estão em todas as ruas. A cidade está cheia de cartazes com propaganda nazista. A maioria deles nos maldizem, mas há os que também acusam os cristãos. Alguns trazem palavras de ordem do ministro Goebbels. Se uma mentira é repetida suficientemente, ela acaba por se converter em verdade. Sim, há um deus aqui: Adolph Hitler.

O frio aumenta à noite. Jan dorme no meio de nós. Não sei como consigo aquecê-lo. Neva dentro de mim.

O Rosh Hashanah se aproxima. O que podemos esperar do ano-novo, senão a paz e a decência dos velhos tempos? Os tempos em que podíamos ainda planejar a nossa vida e sonhar em envelhecer com dignidade…

As deportações começaram. Kurt teme que nos enviem em breve para algum campo de trabalhadores. Sugeriu que Jan vá para a Inglaterra no kindertransport. Muitas crianças judias estão indo para lá. É uma longa viagem de trem até a Holanda, Depois, em barcos, as crianças seguem para Londres. Os pais, desolados, tentam convencer os filhos que vão logo depois reencontrá-los. Mas sabem, como nós sabemos, que não haverá depois. Às vezes, no auge da aflição, hesito, o sim e o não me atormentando como agulhas de mil pontas. O kindertransport pode ser a única chance para Jan.

A guerra estourou com a invasão da Alemanha na Polônia. Não sabemos se vão nos dar alguma trégua, enquanto combatem fora do país, ou se vão semear ainda mais o terror.

Hoje aviões sobrevoaram Hamburgo várias vezes. Explodem o silêncio com seus motores, rasgam a nossa calma como uma folha de papel, acendem o pânico em cada um de nós. Cortam o céu cinzento de inverno e, somem, nervosos. Minutos depois, retornam, ainda mais barulhentos. Na última vez, lançaram uma chuva de folhetos sobre a cidade. Berta pegou um na rua. São mensagens do Führer, repetindo seus dizeres megalomaníacos, seus delírios expansionistas.

Nos murais, nos cartazes, nas faixas estendidas pela cidade, nos jornais, em meio às fileiras de bandeiras nazistas, proliferam as propagandas contra nós. Ou contra os cristãos. Contra todos os que não têm sangue ariano.

Hermann, irmão de Berta, conseguiu um emprego de carregador. Vigiado por homens da Geheime Staatspolizei, transporta para a casa dos burgueses arianos o que foi confiscado dos judeus. Móveis, roupas, cofres, mercadorias, tudo. Uma manhã, os soldados comentavam que a Alemanha atacara os Países Baixos. E, de repente, resolveram descarregar suas armas num casal de judeus que passava na rua conversando. Pra comemorar, disseram. Os corpos ficaram estendidos ali, na mesma posição, durante dois dias. Então obrigaram Hermann e outros carregadores a colocá-los num caminhão e os enterrar. A cada dia estamos mais pobres, doentes e amedrontados.

Mas existe alguma esperança. Uma revista americana, passada de mão em mão, chegou até nós. Kurt, que sabe um pouco de inglês, mostrou nela a imagem de uma águia: era uma propaganda que convocava o povo americano a se alistar no exército. Quase chorei, confusa, pensando na águia ariana. A águia que nos meus sonhos vem me bicar a memória, me arrancando lembranças dolorosas que, infelizmente, voltam a se regenerar.

Kurt mostrou-me outra propaganda na revista: a imagem trazia pequenos desenhos de bombas sendo lançadas por um avião. Pacotes de presente que os americanos mandam para Hitler, ele disse. E para nós, também, eu penso. Afinal, aqui estamos, sem direito a abrigos antiaéreos.

A humilhação é cada dia maior. Agora temos de levar presa à roupa, ou ao redor do braço, sempre visível, como uma nódoa, a estrela de davi, para que todos saibam que somos judeus.

Já os nazistas, orgulhosos, levam a suástia, como sua insígnia. A suástica é sua bandeira, seu cálice do Graal.

A estrela de davi é a nossa cruz, o nosso calvário cotidiano. Jan, que fez seis anos, já é obrigado a usar uma também. Nas ruas, espalharam cartazes com fotos de um adolescente, tendo Hitler ao fundo. A juventude serve o líder, diz o título. E, a seguir, a convocação: Todos os meninos de dez anos para as Juventudes Hitlerianas. Kurt diz que as fotografias, como imagens sagradas, ajudam a ampliar o fanatismo dos alemães pelo Führer.

Não nos tratam só como inferiores, julgam que somos seres perigosos. São obcecados pela ideia de que o nosso povo detém o poder em todo o mundo e pretendemos aniquilar a “raça” ariana, que tem neles a representação máxima. É justamente o contrário o que sucede. Estamos sendo perseguidos à luz do dia, sem nenhuma misericórdia.

Kurt conseguiu um exemplar do Der Sturmer, um jornal antissemita. Uma reportagem informava que havia mais de 16 mil pessoas na manifestação contra os judeus em Berlim. O editor, Julius Steicher, diz que somos uma ameaça. Na seção de cartas, nos xingam, dizem que nós somos a desgraça e a perdição da Alemanha. Morro a cada uma das linhas que leio. Os meus olhos me doem. Choro para dentro, como quem engole um pedaço de pano.

Os homens da Gestapo cruzam a cidade de um lado para o outro, o tempo inteiro. Reprimem, maltratam, espancam, torturam. As tropas das SA também vão e vêm, para proteger os membros do partido, as autoridades. Aprendemos a distinguir quem é quem. Uma moeda com duas faces iguais. Eles estão por toda a parte, como se nos vigiassem até a consciência. Nem temos mais os olhos baixos. Nossos olhos estão no fundo da terra, em meio à matéria de que são feitos os pesadelos. Ao despertar, não me lembro mais dos sonhos que tenho. Quando a realidade é um naufrágo cercado de perigos por todos os lados, os sonhos nos afundam em angústias iguais as da vigília. Não há uma linha divisória: o mal se derramou, apagando as fronteiras, como a moeda de faces iguais. De tanto ver o Führer nas fotos dos cartazes, nas faixas, nos murais, sonhei com ele. Minha vida é uma moeda de duas faces iguais. Duas faces dantescas.

Não há mais dignidade. Levas de judeus vivem feitos molambos, pedindo esmolas, roubando e pilhando como os soldados da Gestapo. Racionamos a comida. Por vezes, passamos o dia todo apenas com umas torradas. Deixamos os legumes para a sopa de Jan. Procuramos emprego nos classificados dos jornais, mas ninguém dá trabalho a judeus, senão para nos imolar ainda mais.

Hermann conseguiu emprego para Kurt numa marcenaria. Ele sai cedo de casa, ainda no escuro, e volta ao anoitecer, moído, as mãos feridas, as unhas sujas, às vezes cheias de lascas e estrepes, que depois eu tento extirpar com uma pinça. O pó da madeira lhe dá alergia. Levanta de madrugada se coçando e vai à janela mirar a cidade onde um dia podíamos andar de mãos dadas, caminhando, sem medo de ser ultrajados ou fuzilados de forma injustiçadas, a qualquer hora.

Deus não nos abandonou. Milagres estão ocorrendo. Kurt soube que a chefe do serviço de vistos do consulado do Brasil tem emitido vistos para judeus. Alguns conseguiram fugir para São Paulo e Rio de Janeiro. Não sei se lá existem índios, mas se houver, não serão tão selvagens quanto os nazistas. Kurt disse que amanhã vai procurá-la. Quem sabe ela não nos livre desse martírio…

Entramos no carro do consulado brasileiro. Não me atenho a esses detalhes, mas Kurt sussurrou, é um Opel Olympia. Nunca mais me esqueci desse seu comentário. Não sei por quê. No banco da frente, o motorista e, à direita, a chefe de serviços de vistos. Eu não sabia que anjos tinham rosto e nome. Aracy, ela se chamava. Pediu a Kurt que lhe desse as jóias e o dinheiro. Iria levá-los na bolsa, para que não fossem confiscados, se a Gestapo nos prendesse. Acompanhou-nos até o interior do navio para ter certeza de que estávamos a salvo e lá nos devolveu nossos pertences. Agradeci-lhe com um abraço forte. Ela disse que também tinha um filho. Acariciou os cabelos de Jan e sorriu. Há tanto tempo eu não via um sorriso. Na mais profunda escuridão é que se pode ver a luz de uma estrela.

Chegamos em São Paulo há dois meses. Chove o dia todo, uma garoa fina, o céu encortinado de cinza. Mas há sol no meu coração. Moramos no bairro do Bom Retiro. Aqui existe uma grande comunidade de judeus. Kurt arranjou emprego numa fábrica de roupas. A vida caminha, mas as lembranças continuam. Não há como parar o fluxo delas. Passaram-se apenas dois anos, desde que tudo começou, e parece a minha vida inteira. A dor não pode ser represada em palavras. A dor é uma mina, o tempo todo extraímos dela mais dor. Não sei ainda falar a língua nativa, mas vou aprender. Essa será a nossa pátria para sempre.

Sinto-me só, apesar do bairro ser totalmente de judeus, com exceção de algumas famílias italianas que vivem ao nosso redor. Tenho dificuldade em entender o português e mesmo para falar com os judeus. Eles vieram há muitos anos para cá, a maioria do Shtetl, dos povoados da Lituânia, da Espanha, da Bessarábia. Os pioneiros estão velhos, os filhos e netos não aprenderam o iídiche. Há também muitos polacos, mas poucos sabem falar alemão.

Levo Jan ao Jardim da Luz para brincar com outras crianças. Às vezes vamos até o rio Tietê. Sem garoa, a paisagem é bonita, o verde estala, faz um calor tropical. Os homens nadam, disputam corridas de barco a remo. Outro dia, um menino se aproximou de Jan e perguntou seu nome. Logo os dois se entenderam e saíram a correr no gramado, brincando, ruidosos. Jan. Que nome eu lhe daria hoje?

Apesar da paz, da posição neutra do Brasil na guerra, tenho medo do que possa nos acontecer. Vejo movimentações estranhas aqui. Há faixas, cartazes e murais nas ruas, anunciando um Brasil Novo. O país se arma. De que lado estará? Vi um cartaz que me lembra os de Hitler. A foto do presidente Getúlio Vargas rodeado de bandeiras brasileiras, aviões, tanques de guerra. Kurt diz que a mensagem é sobre a renovação das Forças Armadas nacionais. Quo vadis?

Uma recordação, boa, reluz agora nas trevas de minha memória, uma surpresa que Kurt nos proporcionou. Fomos no domingo, de trem, com outros judeus, a Santos, para ver o mar. O mar. O sal. O gosto das lágrimas. Dessa vez, lágrimas de encantamento, de gratidão. A felicidade me sofrendo. A Estação da Luz, tão imponente, o vaivém alegre das pessoas, o cartaz com o desenho de uma criança e uma mensagem que não entendi direito. Depois, a vista da serra, de um verde de doer, de tão bonito. E o mar. E Jan correndo pela praia. A vida nele, livre, acenando para o sol.

Queria trabalhar, vender tecido em alguma das lojas da rua José Paulino, ou em alguma tecelagem, para ajudar Kurt nas despesas da casa. Nos Estados Unidos, as mulheres estão indo para as fábricas, ocupando o espaço dos homens que vão para a guerra. É preciso aumentar a produção de armamentos. A guerra traz a miséria para uns, a riqueza para outros. Eu queria ter um emprego: quem sabe costurar, atender no balcão como antes. Talvez assim acalmasse um pouco a minha tormenta.

O Brasil enfim declarou guerra contra o Eixo, depois que navios brasileiros foram destruídos por submarinos alemães. Os racionamentos começaram, principalmente de petróleo e energia elétrica. O medo maior é dos bombardeios aéreos. Em minha mente, já dispara o alarme de novas ameaças. Estarei algum dia em paz?

Pedem que poupemos luz. O governo ordenou que se fizesse black-out na costa do país. Já não quero mais ir a Santos. Vivendo aqui, nos livramos da perseguição antissemita, mas a guerra veio atrás de nós, como uma maldição. As sombras não morrem nunca. Black-out, black-out. Sinto que as sombras existem para brilhar no mais fundo de mim.

O presidente faz grandes comícios pelo país afora, reunindo sempre enorme contingente de populares. O rádio traz notícias de suas realizações todos os dias. As inaugurações de pontes, estradas, escolas, enfim, de qualquer obra pública, são sempre eventos que juntam multidões. Fala-se de um novo Brasil o tempo todo, uma República nova. Um país novo. O nacionalismo é enfatizado nos pronunciamentos do presidente, no discurso de outras autoridades, nos jornais, nas rádios, nas faixas de rua. O receio de que se repita aqui o que vivemos em Hamburgo não me abandona. A águia sempre gera novos filhotes.

Todas as cartas que enviei, nos últimos seis meses, para Berta e Alexander, voltaram. A Cruz Vermelha diz que eles foram embarcados num dos trens com destino a Auschwitz.

Kurt soube pelo jornal que Aracy – a chefe de vistos do consulado brasileiro que nos ajudou a sair da Alemanha –, voltou ao Brasil, com o marido, o diplomata Guimarães Rosa. Gostaria de ter o seu endereço para enviar uma carta. Agradecer. Falar do meu Jan. Perguntar do menino dela.

Kurt trouxe uma revista chamada O Cruzeiro para eu ler. As notícias são otimistas. Afirmam que os Aliados estão prestes a ganhar a guerra. Mas e o que perdemos? O mundo que tínhamos, a nossa terra, os nossos amigos. O que ganhamos sem eles?

Um anúncio de Coca-Cola traz um pequeno mapa das Américas e os dizeres, Unidos hoje, unidos sempre.

Outro anúncio nos lembra que o rádio, a mais eficiente arma da guerra, é invisível. A vitória chegará por meio dele e resultará numa nova era em que os homens serão mais livres. Será?, eu me pergunto, observando Jan fazer a lição escolar, distraído, as pernas balançando.

Quando fizemos o passeio a Santos, ficamos amigos de uns polacos que vivem aqui perto, ao lado da Escola de Farmácia. Issac e Margot viveram no gueto de Varsóvia e conseguiram fugir de um dos trens de transporte de gado que levavam prisioneiros para os campos de Treblinka, onde seriam tratados como cobaias pelos nazistas.

Margot conta que não sabe como sobreviveu à epidemia de tifo, à carnificina dos soldados das SS, dos lituanos e ucranianos que, depois, vieram fazer a vigilância do muro entre o gueto e a zona ariana da cidade. Perdeu toda a família. Era enfermeira num berçário judaico, quando, um dia, agentes da Gestapo entraram em tropelia, pegaram os recém-nascidos e os jogaram numa carroça abarrotada de cadáveres. O grito das mães e o choro desesperado das crianças continuam ecoando nos meus ouvidos, Margot diz. E se cala. Issac era tipógrafo e sabia um pouco de alemão. Conseguira emprego num jornal que os nazistas editavam lá, fabricando falsas notícias sobre a guerra. Às vezes, ouvia disparos na rua e ia até a janela: eram judeus sendo fuzilados por nada.

Nas noites de sábado, vamos ouvir rádio na casa de Margot e Issac. Como se anestesiados pelas músicas e os programas, esquecemos nossa história. Rimos e cantamos os versos de uma  propaganda de um remédio para dor de cabeça, Melhoral, melhoral, é melhor e não faz mal. Então vêm as notícias da guerra. Morte, destruição, escombros. Escombros, destruição, mortes. Mas há também histórias de prisioneiros salvos por tropas aliadas. Histórias de fugas como a nossa. Histórias de vidas ressuscitadas.

Hoje é o Purim. Dia de comemorar a salvação do massacre de Assucro. E da nossa própria salvação. Se estivéssemos em Hamburgo, certamente teriam nos enviado para um campo de extermínio. Penso em Bertha, em Lore, em Fanny, amigas com quem estudei no colégio. Penso no rabino que mataram. Penso no mundo que começou a submergir na Kristallnacht.

Os jornais falam que os ingleses inventaram um equipamento, chamado radar, que localiza os aviões inimigos escondidos atrás das nuvens. Assim podem atacá-los de surpresa e eliminá-los. O americanos também o fabricam.

Não mais localizo o mal dentro de mim. Ele se misturou ao meu sangue. Não há radar que o encontre. Parece que nunca mais serei uma mulher inteira. Sou um vaso quebrado. Vejo Jan aprendendo português com facilidade, brincando com as outras crianças, e tento me reanimar.

Posso dizer que estamos bem. Mas a realidade vaza para os sonhos que não poderão jamais ser apenas sonhos. A memória sangra. As lembranças continuam fluindo, intermitentes, e me esvaziam de confiança. A felicidade em mim sempre terá uma gota de tristeza que, espero, não vá envenená-la. Jan vai crescendo saudável. É um menino alegre. Joga futebol com os góis. Seu pequeno passado de turbulências pode ser esquecido. O meu não.

Chegam notícias de que aviões aliados bombardeiam a Alemanha incessantemente. Emoções se mesclam no meu coração, como duas águas. A queda de Hitler. Mas ao mesmo tempo o nosso solo sagrado destruído. As cidades, os campos, as fábricas. Tudo pode ser reconstruído. Menos a minha alma.

Passei essa manhã pela rua Três Rios. Fiquei pensando. O passado, um rio. O presente, outro. E, para mim, ambos são águas misturadas.

Não há como limpar da água a sua impureza de ser um elemento vivo, que se recicla. A água não nasce. Ela é. Tudo que é vivo dói. O terceiro rio. O futuro. O que me promete? E se ele tiver uma terceira margem, como será a minha? Conseguirei me livrar de sua correnteza?

* João Anzanelo Carrascoza é doutor em Ciência da Comunicação pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, onde leciona no curso de Publicidade e Propaganda, e docente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo da Escola Superior de Propaganda e Marketing (SP).

** Christiane Santarelli é doutora em Ciência da Comunicação na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo.


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Nota
[1] Uma versão deste texto foi publicada no livro Tramas publicitárias – Narrativas ilustradas de momentos marcantes da publicidade (Ática, 2009), no qual os autores completam a trilogia constituída de histórias de três épocas distintas do capitalismo, que mostram uma perspectiva histórica do impacto da comunicação de massa na sociedade. Para cada história foram criados personagens, que incorporam valores da época e de sua cultura. A primeira tematiza o “nascimento” da sociedade de consumo. Ambientada na Paris da Belle-Époque, revela a capital da vanguarda europeia – auge da modernidade, ocupada com sua intensa vida cultural, problemas sociais e um capitalismo de produção –, que utilizava a arte publicitária para estimular o consumo de bebidas, remédios, alimentos e diversão. Ao longo de um dia em Paris, um turista estrangeiro, passeando pela cidade, como um flâneur, vê os cartazes de Murcha, Chéret e Lautrec que divulgavam os produtos e serviços da época. A terceira história, situada no período contemporâneo, está contaminada pelo espírito pós-moderno. O protagonista é um cidadão sem pátria, conhecedor das mais modernas tecnologias de comunicação e as usa para atingir seus objetivos publicitários. A narrativa faz uso da estética pós-moderna, do pastiche e da bricolagem de gêneros.


Fruição da arte em tempos de entretenimento

Ieda Magri*

Em 1970, sai a público, postumamente, a Teoria estética de Adorno. Nela o filósofo questiona o “direito de existência” da arte. Diante do desencantamento do mundo, após Auschwitz, e frente ao indomável crescimento tecnológico, Adorno expõe toda a negatividade que cerca o lugar da obra de arte no mundo moderno. A principal crítica de Adorno, ou a que causou – e causa até hoje – mais polêmicas, é a do prazer artístico. “Numa sociedade onde a arte já não tem nenhum lugar e que está  abalada em toda a reação contra ela, a arte cinde-se em propriedade cultural coisificada e entorpecida, e em obtenção de prazer que o cliente recupera e que, na maior parte dos casos, pouco tem a ver com o objeto” (Adorno, 1970, p. 27).

Para Adorno, “a experiência artística só é autônoma quando se desembaraça do gosto da fruição” (p. 20). Em sua crítica ao psicologismo e à doutrina Kantiana, chega à afirmação da necessidade de se extirpar qualquer vestígio de deleite e à consequente questão da finalidade da obra da arte. Dela deve ser afastado o caráter de práxis real.

Tornado irreconhecível, o deleite disfarça-se no desinteresse Kantiano. O que a consciência universal e uma estética condescendente concebem,  segundo o modelo do prazer real, sob o “prazer artístico” de nenhum modo existe provavelmente. O sujeito empírico não participa senão de um modo muito limitado e modificado na experiência  artística telle quelle; deveria reduzir-se à medida que a obra  adquire uma qualidade cada vez maior. Quem saboreia concretamente as obras de arte é um filistino; expressões como “festim para o ouvido” bastam para o convencer (p. 24).

Colocado o problema do prazer e a proposta de uma estética que o negue, o próprio Adorno lança, em seguida, a questão: “Mas, se se extirpasse todo o vestígio de prazer, levantar-se-ia então a questão embaraçosa de saber porque é que as obras de arte ali estão. Na realidade, quanto mais se compreendem as obras de arte, tanto menos se saboreiam”. Como contraponto, evoca o comportamento tradicional: o da admiração. Ao contrário do “prazer de ordem superior”, o sentimento de admiração faria com que o “contemplador desaparecesse na  coisa e não  se incorporasse a ela.  Para Adorno, só quem tem “uma relação genuína, na qual ele mesmo desaparece” não toma a arte como objeto. Ou seja, só é digno da arte aquele que a conhece a fundo: o artista e o crítico ou filósofo: “A espiritualização da arte estimulou o rancor dos excluídos da cultura, iniciou o gênero da arte de consumo, enquanto, inversamente, a aversão contra a última impeliu os artistas para uma espiritualização cada vez mais radical… O conceito de deleite artístico foi um compromisso infeliz entre a essência social da obra de arte e a sua natureza antitética a respeito da sociedade” (p. 25).

Theodor Adorno
Theodor Adorno

Se, para Adorno, o objeto estético exige da parte do contemplador o conhecimento (exige que se penetre na sua verdade e na sua não verdade) fica, como tarefa da sociedade a educação estética daquele que contempla. Adorno mostra duas opções ao produtor cultural: conceber a arte como naturalmente maior do que o sujeito que a contempla e, portanto, inacessível a ele de modo que apenas aqueles que têm competência cultural possam participar da experiência estética; ou iniciar (não aponta meios) uma educação estética baseada na reflexão sobre a arte, dissociada de um uso prático referente à cotidianidade e não baseada no desejo ou no prazer.

Com uma clara intenção polêmica, em 1972, Hans Robert Jauss escreve a sua  Pequeña apologia de la experiência estética. Apenas dois anos depois da Teoria Estética de Adorno, Jauss faz uma conferência pública no XIII Congresso Alemão de História da Arte em Constanza e esta é publicada em seguida, apenas acrescida da última parte, dedicada à função comunicativa da  experiência estética. Segundo o que escreve Daniel Innerarity, o tradutor do livro para o espanhol, “és una defensa apasionada del arte, del gozo estético frente a las estéticas de la negatividad y la seriedad  intelectualista del arte ascético, desde Platón hasta Adorno. Contra la oposición entre gozo y trabajo, arte y conocimiento, en ella se afirma que gozar es la experiencia estética primordial” (Jauss, 2002, p. 10). Segundo ele, Jauss se situa  entre os que consideram que a arte possui  um caráter  cognitivo  de modo que  a percepção estética não é nem o conhecimento máximo nem a pura recepção do indizível.

Hans Robert Jauss
Hans Robert Jauss

Jauss descreve a experiência estética privilegiando o ponto de vista da recepção[1] e critica Adorno especialmente por pensar a obra separadamente do seu receptor até o ponto de considerar apenas negativa a forma de pensamento que pressupõe um receptor que interfere na obra:

…Adorno desconfía tanto de la experiencia practica del arte en la era de la industria cultural que le niega toda función comunicativa en la sociedad, y destierra al público a la soledad de una experiencia en la que “el receptor se olvida de sí mismo y desaparece en la obra”. No se ve, sin embargo, cómo el solitario espectador, al que Adorno niega todo goce artístico y sólo concede “sorpresa” o “sacudida”, puede llegar desde la recepción contemplativa a la interacción dialógica. En esta medida la estética de la negatividad, que Adorno desarrolla como terapia frente a la industria cultural, deja abierta la pregunta acerca de cómo se franquea el abismo entre la praxis presente y el arte como promesse de bonheur para la experiencia estética, y como ha de ser conducido el solitario y sorprendido espectador, mediante la experiencia comunicativa del arte, a una nueva solidaridad de la acción (p. 50-51).

A experiência estética, para Jauss, proporciona um espaço de jogo frente à própria experiência, na medida em que as obras de arte não tiram o receptor de seu mundo da vida prática, mas abrem espaço à liberdade necessária  para perceber e modificar essa experiência cotidiana:

Do ponto de vista de la recepción, la experiencia estética se distingue  de otras funciones del mundo de la vida  por su peculiar temporalidad: hace ver las cosas de nuevo y proporciona mediante esta función descubridora el goce de un presente más pleno; conduce a otros mundos de fantasía y suprime en el tiempo la construcción del tiempo; anticipa experiencias futuras y abre así el campo de juego de acciones posibles; permite conocer lo pasado o lo reprimido, conservando de este modo el tiempo perdido. […] La percepción estética modifica a quien percibe, aunque sólo sea porque hace nuevamente eficaz la peculiaridad del contenido estético frente a una  rutinaria hacia los objetos (p. 18).

Hoje o termo gozo, desfrute – “tener uso o provecho de una cosa” – perdeu seu significado primeiro como modo de apropriação do mundo e autoconsciência, que legitimou, em outros tempos, o trato com a arte. Na atualidade a atitude de prazer  se enreda antes,  numa falsa consciência da cultura de consumo. O prazer para os que querem as coisas mais fáceis para desfrutar sem pensar. Assim, quando o receptor é pensado na teoria da arte, é concebido como alguém a ser educado contra sua inclinação ao prazer, transformando a sua empatia em reflexão e crítica. Só é objeto de estudo aquela atitude que ultrapassa a primeira relação de identificação do receptor com o objeto ou com o espetáculo. A experiência estética considerada genuína é somente aquela que se dá quando extirpa de si todo o prazer e  o eleva ao cunho de reflexão.

O que Jauss propõe, ao recuperar o direito do receptor ao gozo como experiência primordial é que se ultrapasse o pressuposto de que a reflexão estética seja o fundamento de toda a recepção. O gozo estético, então, pode ser associado ao conhecer e ao atuar: o receptor sai de uma atitude passiva e de entrega ao prazer, para a liberação da consciência produtiva, receptiva e intersubjetiva ou comunicativa. Assim, a experiência estética é sempre liberação de e liberação para, como, já podemos adivinhar, está posto na teoria aristotélica da catharsis.

Jauss afirma que a tradição ocidental da reflexão teórica da arte está totalmente voltada ao conceito platônico do belo e que seria interessante, senão necessário, descobrir ou redescobrir a práxis produtiva, receptiva e comunicativa da arte na história da cultura europeia. Ele assim o faz, pela retomada  dos conceitos de poiesis, aisthesis e catharsis. O termo poiesis – capacidade poética –  designa a experiência estética fundamental do homem, em sua produção artística, se familiarizar com o mundo, obtendo nessa atividade um saber que se distingue do conhecimento conceitual da ciência e também do fazer instrumental. A capacidade poética presente na construção do objeto artístico marca a separação entre o trabalho comum do cotidiano e o trabalho artístico. A aisthesis designa a  experiência estética fundamental, dada pela obra de arte, de renovar a percepção das coisas, embotada pelo costume. A catharsis, termo que mereceu maior reflexão por parte de Jauss nesse texto, designa a experiência estética fundamental de que o contemplador, na recepção da arte, se desliga da vida cotidiana  através da satisfação estética e retorna a uma identificação comunicativa ou orientadora da  ação.

A oposição entre experiência estética e  práxis moral, segundo Jauss, não é um efeito necessário da arte. Passou-se a pensar sobre ela quando qualquer modelo didático ou exemplar ou qualquer identificação ou simpatia pelo herói foi considerado uma banalidade e uma blasfêmia contra a arte autônoma. Para responder à questão de como  se poderia  superar a oposição entre experiência estética e  práxis moral, Jauss recupera a  catharsis, conforme a descreve Aristóteles, como  propriedade essencial da experiência estética.

Para Jauss, a estética da negatividade está presa na contradição de pressupor  a consciência emancipada de um espectador já formado no trato com a  arte e  que haveria de se liberar mediante o processo comunicativo ou consensual da experiência estética.

É somente a partir  da identificação espontânea, e não a partir das reflexões que suscitam, que a arte pode transmitir normas de ação. É também a partir delas  que se abre a possibilidade de identificação com o herói que, no entanto, é ambígua no sentido de que enquanto espaço comunicativo pode modificar comportamentos na quebra de normas e na reconfiguração que orienta a ação, mas o espectador tem também o direito de liberar-se para um prazer puramente individual. Esta ambivalência fundamental é o preço a ser pago pela catharsis pela mediação do imaginário.

Contudo, a experiência estética não se esgota na alternativa entre um efeito emancipador e um efeito conservador da arte na sociedade. Jauss sustenta que entre  os extremos  de uma função  transgressora de normas e outra cumpridora de normas, há uma outra opção no campo da função comunicativa da arte, que é a  configuradora de normas.[2]

Do ponto de vista da comunicação, a experiência estética se dá, quando ao espectador/receptor é dado o direito de aprovação, de “aceitação na liberdade” como já apontou Kant no juízo do gosto. Jauss recupera Kant, como o pensador “que é uma autoridade indiscutível”, único que apresenta a “receita” de como pode a arte afirmar sua negatividade  frente à realidade social mantendo a sua função configuradora de normas: “el juício estético puede proporcionar ejemplos tanto de um juício desinteresado, no condicionado por uma  necesidad, como de um consenso abierto, no determinado principalmente por conceptos y reglas” (p. 93). A remissão do juízo estético à aprovação dos demais possibilita a participação em uma norma constituinte e, ao mesmo tempo, constrói a sociedade no pluralismo estético. Jauss sustenta que a Crítica do juízo de Kant fez época pela subjetivação da estética, enquanto que seu conceito pluralista de juízo estético que remete a uma aprovação foi esquecido. E só ganhou atualidade agora, diante de uma indústria cultural dominante e dos efeitos dos meios de comunicação de massa. Assim, a tentativa de recuperar a função comunicativa da experiência estética resulta numa positivação dessa experiência. Diante de tal positivação a estética da negatividade não deve “retroceder assustada”  senão que traduzir  novamente as formas transgressoras de normas ou de identificação irônica numa função configuradora de normas. Se a experiência estética não se caracteriza apenas pela criação na liberdade, mas também pela aceitação, isto é, no âmbito da recepção na liberdade, o consenso  aberto, não determinado por conceitos e regras, mas pelo exemplar, dá ao comportamento estético uma significação mediada pela praxis da ação. O receptor joga com os valores preestabelecidos e os que a obra adquire no momento da recepção, portanto ele interfere na obra, faz uma escolha e acrescenta seu próprio julgamento.

Jauss aponta o problema de sua própria teorização da recepção como o problema do horizonte de expectativas do receptor e das concepções pré-recepção que se vinculam à identificação. Isso diz de uma recepção da arte condicionada por fatores externos que impedem o acesso e a identificação de certo público com certa arte.

Nesse sentido, torna-se relevante lembrar as reflexões de Pierre Bourdieu em As regras da arte, quando aponta para a cisão entre uma arte concebida para o grande público, fortemente marcada por sua inscrição na categoria que quer agradar o público, conferir ganhos financeiros imediatos e se legitimar justamente pelo gosto do maior número e outra, que busca sua legitimidade entre os pares, geralmente os próprios artistas, e cuja característica maior seria a busca da autonomia em relação ao mercado.

Na literatura, por exemplo, o prestígio de um gênero em relação a outro, depende muito da qualidade do público:

Os progressos do campo literário no sentido da autonomia são assinalados pelo fato de, em finais do século 19, a hierarquia entre os gêneros e os autores, segundo o critério específico do juízo dos pares ser quase exatamente a inversa da hierarquia segundo o sucesso comercial (Bourdieu, 1996, p. 133-34).

Ou seja, na hierarquia segundo o lucro comercial aparece em primeiro lugar o teatro, depois o romance e por último a poesia; na hierarquia segundo o prestígio, vem primeiro a poesia, depois o romance e por último o teatro. Os gêneros distinguem-se, portanto, por 3 aspectos: preço do produto (mais alto, mais prestígio); qualidade dos consumidores (mais consumidores, menos prestígio); e ciclo de produção (quanto mais rápido o lucro é obtido, menos prestígio).

O mesmo paradigma ainda permanece hoje, quando há uma obstinada aversão dos artistas ao que vende e um prestígio alto pelo que não vende, considerado cult. Ao mesmo tempo, há o fetiche do mercado, que aproxima os artistas do público na mesma medida em que diminui seu prestígio entre os pares. Esses valores são preconcebidos e orientam a aproximação entre obra e receptor, determinando a fruição da arte, num primeiro momento, nem pelo prazer estético, nem pelo conhecimento, mas sim pelo preconceito criado pelo mercado e pelos artistas.

Adorno e Horkheimer, ainda em 1947, chamavam a atenção para o problema da cultura de massa no livro Dialética do esclarecimento. A denúncia de Adorno de que a arte é tomada como mercadoria pela indústria cultural e adaptada ao consumo em larga escala, aponta para um receptor forjado no próprio sistema industrial. Apossando-se da “arte superior” e da “arte inferior”, a indústria cultural tira-lhes o sentido original para tornar uma acessível, no sentido de ser aceita, entendida e consumida e outra mais limpa, com um tratamento mais aceitável, fazendo perder “através de sua domesticação civilizadora o elemento de natureza resistente e rude”. Adorno deixa claro que  a massa  à qual a indústria cultural se dirige não é  “o fator primeiro, mas um elemento secundário, um elemento de cálculo” (Adorno; Horkheimer, 1985, p. 26).

Contudo, a premissa de que, como indústria, os meios acabariam reduzindo os públicos ao padrão de consumidor ideal, produzindo um quadro de homogeneização, é refutada por Renato Ortiz, no seu livro Mundialização e cultura, entre outros autores que resistem ao pensamento que toma o receptor como “tolo cultural” completamente manipulado pela indústria. Esses autores operam mais com conceitos de “nivelamento”, “classes de consumo” e defendem que há, ao lado de uma produção homogeneizante, a diversidade de culturas e a democratização do acesso à arte chamada erudita.

Adorno e Horkheimer citam o cinema como prova da atrofia da atividade do espectador:

…para seguir o argumento do filme, o espectador deve ir tão rápido que não pode pensar, e como, além disso, tudo já está dado nas imagens, o filme não deixa à fantasia nem ao pensar dos espectadores dimensão alguma na qual possam mover-se por sua própria conta, com o que adestra suas vítimas para identificá-lo imediatamente com a realidade (p. 122).

Walter Benjamim aborda o espectador de cinema por outro ângulo e, conforme Susan Buck-Morss, “para Benjamim, a técnica da montagem tinha ‘direitos especiais, talvez mesmo totais’, como uma forma progressista, porque ela ‘interrompe o contexto em que se insere’ e assim ‘age contra a ilusão’” (Buck-Morss, 2003, p. 97).

Walter Benjamin
Walter Benjamin

Considerando o papel do receptor para pensar a arte, Benjamim apresenta uma visão menos pessimista do fenômeno das massas em relação ao pensamento de Adorno (cuja Dialética do esclarecimento é uma resposta ao ensaio “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”, de Benjamin). Martin-Barbero sustenta que Benjamim “foi o pioneiro a vislumbrar a mediação fundamental que permite pensar historicamente a relação da transformação nas condições de produção com as mudanças no espaço da cultura, isto é, as transformações do sensorium dos modos de percepção, da experiência social”. Para Benjamim, “pensar a experiência é  o modo de alcançar o que irrompe na história com as massas e a técnica” (Martin-Barbero, 2003, p. 84).

Pensar a experiência é admitir que estamos cada vez mais pobres dela e que “essa pobreza de experiência não é mais privada, mas de toda a humanidade” (Benjamin, 1996, p. 192). Não há mais volta a uma riqueza de experiências, porque os tempos são outros e agora “surge uma existência que se basta a si mesma”.  Pensar a experiência é, ao mesmo tempo, conseguir entender as transformações que esse empobrecimento produz – na mesma medida em que é produzido – na e pela massa.

Uma das chaves para se entender a nova experiência, para Benjamin,  está na aproximação entre homem e arte operada a partir da reprodutibilidade técnica. Essa aproximação  que destruiu a aura das obras de arte produziu uma mudança nos modos de recepção: o valor da arte não é buscado numa atitude de recolhimento diante da obra, mas na percepção e no uso. Essa é a leitura de uma grande transformação social que coloca o homem, “qualquer homem”, inclusive o homem da massa próximo da arte.

É nesse sentido que Benjamin situa o cinema de modo oposto ao de Adorno: “o cinema corresponde a modificações de longo alcance no aparelho perceptivo, modificações hoje vivenciadas na escala de existência privada por qualquer transeunte no tráfego de uma grande urbe” (Martin-Barbero, 2003, p. 87). Martin-Barbero ainda cita Habermas para acentuar as diferenças do pensamento dos dois expoentes da Escola de Frankfurt: “a experiência que Adorno procura desesperadamente resguardar é a que vem ‘da leitura solitária e da escuta contemplativa, quer dizer, a via régia de uma formação burguesa do indivíduo”, e acrescenta que Benjamim deslocou-se a tempo “de uma experiência burguesa que tinha deixado de ser a única configuradora da realidade” (p. 91).

O apontamento dos novos dispositivos da recepção, cuja chave está na percepção e no uso, é feito por Benjamim no texto “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”. Segundo seu raciocínio “a história de toda forma de arte conhece épocas críticas em que essa forma aspira a efeitos que só podem concretizar-se sem esforço num novo estágio técnico, isto é, numa nova forma de arte” (Benjamin, 1996, p. 192). Desse modo situa o surgimento da mudança na recepção operada de forma visível pelo cinema, no Dadaísmo: “o Dadaísmo tentou produzir através da pintura (ou da literatura) os efeitos que o público procura hoje no cinema” (p. 191). Os dadaístas operam uma ressignificação da contemplação artística: como estavam menos interessados em vender suas obras do que em agir de forma contrária, tornando-as impróprias para o consumo e para a contemplação, opõem ao recolhimento da burguesia a atitude de distração:

Ao recolhimento, que se transformou na fase da degenerescência da burguesia, numa escola de comportamento antissocial, opõe-se a distração como uma variante do comportamento social. […] Na realidade, as manifestações dadaístas asseguravam uma distração intensa, transformando a obra de arte no centro de um escândalo. Essa obra de arte tinha que satisfazer uma exigência básica: suscitar a indignação pública. De espetáculo atraente para o olhar e sedutor para o ouvido, a obra convertia-se num tiro. Atingia, pela agressão, o espectador. E com isso esteve a ponto de recuperar para o presente a qualidade tátil, a mais indispensável para a arte nas grandes épocas de reconstrução histórica (p. 191).

O Dadaísmo tem o mérito de  recuperar o caráter sensível da percepção, ou seja, a percepção onírica, e com isso preparou o espectador para o cinema, “cujo valor de distração é fundamentalmente tátil, isto é, baseia-se na mudança de lugares e ângulos que golpeiam intermitentemente o espectador” (p. 192).

A atitude de recolhimento do indivíduo cuja disposição para a arte é cultivada inexiste naquele que acessa a nova arte através do choque, pela percepção tátil, produzido pelo cinema. A recepção tátil se efetua menos pela atenção do que pela exposição à arte, e desse modo acaba, pelo hábito, produzindo a disposição para a recepção ótica: “no que diz respeito à arquitetura, o hábito determina em grande medida a própria recepção ótica. Também ela, de início, se realiza mais sob a forma de uma observação casual que de uma atenção concentrada” (p. 193).

Paolo Virno, no livro Gramática de la multitud. Para un análisis de las formas de vida contemporâneas propõe uma forma de ler o tempo histórico atual através do conceito de multidão, preservando como uma das características dessa coletividade a atitude distraída da qual falava Benjamim. Virno sustenta que a multidão  atual se caracteriza principalmente pela linguagem, pelo intelecto e situa no nascimento da indústria cultural o momento em que trabalho – poiésis – e política – práxis – deixam de ser conceitos separados para convergirem. O mesmo argumento, tomado pela via da recepção, conforma o texto de Jauss, como exposto antes.

É nesse momento que o trabalhador se torna um virtuoso (executante sem produto material) através da linguagem, porque a faculdade comunicativa torna-se um componente essencial de cooperação produtiva: “en la industria cultural, la actividad sin obra, es decir la actividad comunicativa que se cumple en sí misma, es un elemento central y necesario. Y justamente por este motivo es en la industria cultural donde la estructura del trabajo asalariado coincidió con la de la acción política” (p. 56).

Na indústria cultural não faltam amostras do trabalho material, resultado final da produção artística; no entanto, a produção material é automatizada enquanto não só  o trabalho artístico, mas todo aquele que é executado pelo homem, depende cada vez mais de sua performance linguística, comunicativa e de sua capacidade intelectual, que deve ser entendida como faculdade de pensar, potência e não conhecimento adquirido.

Sendo mais otimistas ou mais pessimistas, todos os autores abordados neste artigo partilham da premissa de que a indústria cultural e o surgimento de novos processos de tecnologia no campo da arte modificaram tanto sua produção como sua recepção e em maior ou menor grau insistem na necessidade de se acompanhar a “evolução” da técnica com um olhar crítico que também lance mão de categorias flexíveis capazes de dar conta dessas metamorfoses. Se está claro que a produção e a percepção da arte se modificaram com a reprodução técnica e com as mudanças profundas no mundo do trabalho, está ainda mais claro que o fruidor de arte hoje é sempre também um artista em potencial. Seu modo de perceber a arte é o ponto de vista daquele que é capaz de fazer também e não mais a do tolo que vê um gênio. As faculdades ditas artísticas, próprias do terreno da arte migraram para o mundo do trabalho, como aponta Virno, o mundo do trabalho exigindo o uso da linguagem e da imaginação mais do que o trabalho braçal, afastado do mundo da arte.

A arte, assim, passa a pertencer muito mais ao mundo do entretenimento (mesmo as exposições de artes plásticas, sempre antes mais restritas a um público conhecedor) do que ao mundo do conhecimento. Ou seja, aquilo que Jauss reivindicava, contra Adorno, é cada vez mais visível como real na recepção estética e, talvez, aquele receptor contemplativo que Adorno queria resguardar esteja hoje em extinção.

*Ieda Magri é doutora em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e professora substituta do Programa de Ciência da Literatura da mesma universidade, onde também desenvolve pesquisa de pós-doutorado sob supervisão de Beatriz Resende. É autora dos livros de ficção Tinha uma coisa aqui (7Letras) e Olhos de bicho (Rocco).


Referências

ADORNO, Theodor. Teoria estética. Trad. Artur Morão. São Paulo: Martins Fontes, 1970.

ADORNO Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.

BENJAMIM, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura: obras escolhidas, volume 1. 10ª reimpressão. São Paulo: Brasiliense, 1996.

BOURDIEU, Pierre. As regras da arte. Gênese e estrutura do campo literário. Trad. Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

BUCK-MORSS, Susan. Dialética do olhar – Walter Benjamim e o projeto das passagens. Trad. Ana Luiza Andrade. Belo Horizonte; Chapecó: UFMG; Argos, 2003.

JAUSS, Hans Robert. Pequeña apologia de la experiencia estética. Trad. Daniel Innerarity. Barcelona: Paidós Ibérica, 2002.

JAUSS, Hans Robert. A História da Literatura como provocação à Teoria Literária. Trad. Teresa Cruz. 1ª ed. Lisboa: Passagens, 1993.

MARTIN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. 2ª ed. Rio de Janeiro: editora da UFRJ, 2003.

ORTIZ, Renato. Mundialização e cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.

VIRNO, Paolo. Gramática de la multitud. Para un análisis de las formas de vida contemporáneas. Trad. Adriana Gomes, Juan Domingo Estop, Miguel Santucho. Traficantes de sueños: Madrid, 2003.

Notas

[1] “[Jauss é] conocido fundamentalmente por haber fundado la Escuela de Constanza y como cabeza visible de la llamada ‘estética de la recepción’, un enfoque hermeneutico de las artes y la literatura, es uno dos renovadores más radicales de la estética contemporánea” (p. 10).

[2] As diferentes funções são associadas ao tipo de identificação com o herói. Jauss apresenta uma tabela de tipos de identificação estética com o herói,  a sua relação com a disposição receptiva, e as normas de comportamento do espectador (p. 87 e 88).

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Um procedimento de Nuno Ramos: a imagem moderna desobrada | Júlia Studart*

Há uma questão saliente no trabalho do escritor e artista visual Nuno Ramos: uma espécie de apropriação desapropriante (num movimento entre posse e despossessão) que ele desenvolve, como modo de uso e operação crítica, logo política, de fragmentos e destroços de algumas imagens da literatura e da arte modernas para tentar reposicioná-las com o seu trabalho numa discussão por dentro do circuito da literatura e da arte agora, no presente. São inúmeros os exemplos dessas intervenções disjuntivas e, mais ainda, são cortes, montagens e acessos extremamente convulsos e intermitentes, o que parece tornar o que faz muito mais interessante e pertinente ao justapor e disseminar essas imagens manifestas entre o que escreve nos seus livros e o que constrói como intervenção visual nas suas exposições. Nuno Ramos procura fazer usos variados da potência da imagem moderna, quase sempre colada a um manifesto, numa virtualização que tende a propor e desfazer toda ideia de programa, ordem ou hierarquia, compondo assim novas imagens numa inoperação do comum.

Importante, portanto, lembrar que é Jean-Luc Nancy quem aponta para um désouvrement nessa conjunção, nessa constituição de uma comunidade inoperante, que seria também, ao mesmo tempo, a possibilidade de pensarmos a arte e a literatura  – como elaboração ficcional da história ou da história como uma invenção constitutiva – como aquilo que ainda pode impor alguma forma de vida contra o poder, como  aquilo que pode viver e, principalmente, sobreviver na intimidade de um ser estranho. Diz ele que é

porque há isto, este desobramento que reparte nosso ser em comum, há “a literatura”. Ou seja, o gesto indefinidamente retomado e indefinidamente suspenso de tocar o limite, de indicá-lo e de inscrevê-lo, mas sem franqueá-lo, sem aboli-lo na ficção de um corpo comum. Escrever para o outro significa na realidade escrever a causa do outro (Nancy, 2001, p. 124).[1]

É pensando nisso – há a literatura / há arte e, muito, no que é escrever para o outro, no que é escrever a causa do outro ao tocar o limite na ficção de um corpo comum – que podemos começar a ler os usos dessas imagens no trabalho de Nuno Ramos entre a literatura e as artes visuais como um désouvrement. Em 1995, por exemplo, ele se junta a Paulo Pasta e Fábio Miguez para realizar uma curadoria para o Conjunto Caixa Cultural, de São Paulo, de uma exposição do gravurista suíço-carioca Oswaldo Goeldi em comemoração ao seu centenário de nascimento. Realizaram também uma pequena publicação reunindo gravuras de Goeldi com alguns poemas de Manuel Bandeira, demarcando aquilo que, com Jacques Rancière em seu livro O destino das imagens, é possível chamar de uma composição seriada a partir dos usos da frase-imagem. A frase-imagem, diz Rancière, não é apenas a união de uma sequência verbal e de uma forma visual; mas sim uma potência de expressão que pode vir tanto nas frases de um romance quanto numa encenação teatral ou num filme ou ainda na relação do dito com o não-dito de uma fotografia. Para Rancière, uma frase não é apenas um dizível e uma imagem não é apenas um visível. E completa:

Pelo termo frase-imagem entendo a união de duas funções esteticamente por definir, isto é, pela maneira como desfazem a relação representativa da imagem pelo texto. No esquema representativo, a parte do texto era a do encadeamento ideal das ações, a parte da imagem era a do suplemento de presença que lhe dá carne e consistência. A frase-imagem derruba esta lógica. No seu seio, a função-frase é sempre a do encadeamento. Mas, doravante, a frase desencadeia-se, tanto que é ela que dá carne. E esta carne ou esta consistência é, paradoxalmente, a da grande passividade das coisas sem razão (Rancière, 2011, p. 65).

Temos aí uma espécie de quebra da lógica representativa, ou seja, uma queda da legenda. Isto pode ser também um procedimento evidente que passa a constituir a “carne passiva das coisas sem razão” nesse projeto da publicação que segue o modelo de um caderno de notas aleatórias, magro e com espaços brancos que desfaz, assim, qualquer possibilidade de leitura das imagens como legendas dos poemas e vice-versa, ou seja, dos poemas como legendas das imagens. O que se tem é uma conversa resoluta e política entre as gravuras e os poemas página a página, independentes, e desde o título do caderno, quase à modo de Dostoievski, uma das leituras obsessivas de Goeldi, para compor aí uma frase-imagem na conjunção de dois termos díspares: Noite morta.[2] E, nessa ambivalência de figurações da noite que morre, da noite que morreu, Goeldi e Manuel Bandeira traçam, trocam e montam uma espécie de impasse entre o que Nuno Ramos, no texto-posfácio do caderno, chama de “intervalo-eixo” entre o agouro e a libertação, o abandono e o esquecimento. Diz ele que os objetos preferidos de Goeldi – as latas derrubadas, os cães vadios, os móveis ao relento, por exemplo – são preservados apenas em sua mesquinhez, mantidos em seu mistério e, por isso, plenos de potência.

Há nas gravuras de Goeldi, diz Nuno Ramos, uma tristeza que resulta não como atributo, mas sim como condição. São coisas que foram deixadas de lado, como um urubu pousado (“que pertence ao chão”) ou uma ossada. Assim, ele entende que essa tristeza que vem dos trabalhos de Goeldi é “banhada, não encontro termo melhor, [diz ele] numa estranha calma” (Ramos, 1995, p. 37). Por isso, essa “espacialidade acentuada, algo metafísica, que isola os seres e torna os lugares profundos, maiores do que cada um” (Ramos, 1995, p. 37). E, ao mesmo tempo, são esses elementos dispostos ao abandono que acrescentam à “espacialidade desencarnada pequenos comentários lúgubres”, indicando que, “num primeiro momento, tudo no mundo de Goeldi parece triste, isolado e caminha para a morte” (Ramos, 1995, p. 38). Desse modo, é importante verificar nessa série de frases-imagens que se armam aí como, por exemplo, entre o poema de Bandeira intitulado Momento num café e a gravura de Goeldi intitulada Destino, o que se pode chamar também de intermitência, de imagens intermitentes, que oscilam entre a palavra e a imagem, entre a imagem e a palavra, criando uma aparente disposição diferida entre os dois trabalhos (procedimento muito próprio de Nuno Ramos e exercido nessa curadoria como um désouvrement do seu gesto como artista e escritor ao tomar posse da imagem moderna para tocar as questões da vida e da arte contemporâneas):

Quando o enterro passou
Os homens que se achavam no café
Tiraram o chapéu maquinalmente
Saudavam o morto distraídos
Estavam todos voltados para a vida
Absortos na vida
Confiantes na vida.

Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado
Olhando o esquife longamente
Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade
Que a vida é traição
E saudava a matéria que passava
Liberta para sempre da alma extinta.
(Bandeira, 1993, p. 155)

Oswaldo Goeldi. Destino. s/d.
Oswaldo Goeldi. Destino. s/d.

O poema de Bandeira é de seu livro Estrela da manhã, de 1936, e na montagem do livro vem logo depois do poema Oração a Nossa Senhora da Boa Morte, quando alguém, sem escolha, pede ajuda às santas Teresinha e Rita dos Impossíveis. E indica que não quer glória, nem amores, nem dinheiro; quer pouco, quer apenas alegria. Adiante, desiste até da alegria, e pede ao menos uma boa morte. Este culto está vinculado ao final da oração da Ave-Maria quando o pedido que se faz à santa é que ela rogue “por nós na hora de nossa morte, amém”. No caso de Momento num café ficamos diante de um poema de observação das circunstâncias cotidianas – muito próprio do procedimento de Manuel Bandeira – entre uns homens distraídos, agarrados à vida num espaço de encontro, e um ritual de morte que se dá num cortejo que passa diante do café.

O descompasso armado pelo poema de Bandeira é, seguindo o que Nuno Ramos diz de Goeldi, praticamente o mesmo: ao mesmo tempo agouro e libertação (se pensarmos na ideia que é a morte que liberta o corpo definitivamente), e abandono e esquecimento (se pensarmos que, no olhar demorado de um único homem, isolado, há um saber do quanto a vida é uma agitação feroz e sem finalidade, uma traição). E, ao que parece, a gravura de Goeldi segue esse mesmo empenho, basta reparar um pouco na flanagem do espectro, o fantasma, com o crânio à mostra, um oco ósseo, uma sobra humana da morte, a mão direita delicadamente colocada no bolso do casaco e, do outro lado, a mão esquerda que parece empunhar uma foice, um instrumento da Morte como figuração do que ela é. Importante perceber o contorno de um corpo insuspeito que pertence ao chão ao lado do espectro e, ao redor, como nos apresenta Nuno Ramos, temos uma

espacialidade acentuada, com indicações de profundidade bem marcadas, que aumentam a fantasmagoria e o isolamento e, de outro lado, numa intensa comunhão formal entre os elementos, […] movimento e solidez, vento e pausa, dilaceramento expressionista e calma oriental. Através dessa dupla raiz o expressionismo de origem é superado. Solidão e tristeza deixam de ser propriamente expressivas para elevarem-se a uma condição exemplar, a de atributos adormecidos porém essenciais da nossa natureza. Tudo em seu trabalho participa dessa qualidade, desde os homens [quase sempre pobres-diabos] até os cachorros humildes, as latas vazias, os paralelepípedos. Não há foco ou hierarquia e a presença humana espalha-se num entorno também ele vivo e movente. Esquecidos ali, sem finalidade prática, os seres esparramados se encontram. São restos, pedaços e detritos que um vento metafísico juntou (Ramos, 1995, p. 38).

Outro bom exemplo desse empenho da curadoria como um gesto de seu procedimento é o uso do poema Boi morto de Bandeira, que abre o livro OPUS 10, publicado em 1952, que na publicação para a exposição do Conjunto Caixa Cultural aparece ao lado da gravura de Goeldi intitulada Náufragos. E, mais uma vez, fica-se diante de uma espectralidade moderna, a do acaso, do acidente (é possível lembrar também de Mallarmé e seu Un coup de dés), quando o que se vê é uma cabeça em movimento com uma transparência fantasmagórica, um anúncio de morte, num paradoxo interessantíssimo: mesmo náufragos “os seres de Goeldi são sobreviventes”, avisa Nuno Ramos; “os seres perdem o rigor mortis e abrem seus contornos a similitudes e passagens insuspeitadas” e é a queda que oferece redenção a quem caiu (Ramos, 1995, p. XX). O poema de Bandeira também aponta para esse cenário de queda e para esses seres, os fora de prumo, os mensageiros da passagem, os desequilibrados:

Como em turvas águas de enchente,
Me sinto a meio submergido
Entre destroços do presente
Dividido, subdividido,
Onde rola, enorme, o boi morto,

Boi morto, boi morto, boi morto.

Árvore da paisagem calma,
Convosco – altas tão marginais!
Fica a alma, a atônita alma,
Atônita para jamais.
Que o corpo, esse vai com o boi morto,

Boi morto, boi morto, boi morto.

Boi morto, boi desconhecido,
Boi espantosamente, boi
Morto, sem forma ou sentido
Ou significado. O que foi
Ninguém sabe. Agora é boi morto,

Boi morto, boi morto, boi morto.
(Bandeira, 1993, p. 213)

Oswaldo Goeldi. Náufragos. s/d.
Oswaldo Goeldi. Náufragos. s/d.

A repetição diferida – boi morto, boi morto, boi morto – desse corpo que se exibe como um restolho à deriva é também muito própria dos interesses de Nuno Ramos em seu trabalho – trabalhar com os destroços do presente, arrancar a pele das coisas –, por exemplo, tem a ver com uma temporalidade de quando a linguagem fala de si mesma, quando ela nos fala sempre da cegueira que a constitui (cecité), como aponta Derrida no livro Memórias de cego (2010, p. 22-23). Pensar o poema, se político, como um corpo animal exposto – figurado nesse boi morto – é armar uma proposição que ao mesmo tempo em que desfaz o caráter humano – “dividido, subdividido” – termina também por refazê-lo e reconduzi-lo a uma vertente deliberada de instinto e desejo – morto, sem forma ou sentido / ou significado –, mais ou menos quando o desejo de saber ver (uma indecidibilidade: vontade de saber – savoir / vontade de ver – voir) fica mais perto de uma natureza da vontade, de um estado natural, como sugeriu Montaigne (1972, p. 481). Basta reparar como Bandeira termina o poema: “O que foi / ninguém sabe. Agora é boi morto, / Boi morto, boi morto, boi morto.

Assim, é possível perceber algo dos modos de uso da imagem moderna por Nuno Ramos – esta, por exemplo, que vem e que surge entre Bandeira e Goeldi – quando a expande para as suas séries de intervenções plásticas ou por seus livros, invariavelmente trabalhos que buscam fincar-se no espaço como um crivo (este espaço informal, trançado, aberto e contingente), como escreve ele no seu primeiro livro, Cujo, publicado em 1993: “Comecei a arrancar a pele das coisas. Queria ver o que havia debaixo. Ergui a superfície do assoalho, que saiu inteira, sem quebrar. Tive de descascar a pele dos tijolos aos poucos, com paciência. […] Fui retirando camadas sucessivas, cada vez mais onduladas e acidentadas” (Ramos, 1993, p. 30-31). Ele opta por imagens de corpos expostos quando refaz essas imagens em textos e objetos, também por exemplo, a partir de bichos mortos, corpos abandonados ou objetos descolocados, como aviões enfiados em galhos de árvores ou uma cama afundada na areia da praia.[3]

O seu livro de poemas intitulado Junco, de 2010, um verbete anfíbio e díspar, que tanto pode ser o nome de uma embarcação chinesa quanto o de uma planta de folhas quase soltas, é composto de imagens de corpos de cães (expostos à beira da estrada) engendradas com imagens de troncos soltos e apodrecidos (abandonados na praia). São fotografias, espalhadas pelo livro, que perseguem os poemas e que, num movimento às avessas, são perseguidas pelos poemas.

Nuno Ramos. Junco. (2011 p. 76-77)
Nuno Ramos. Junco. (2011 p. 76-77)
Nuno Ramos. Junco. (2011 p. 106-107)
Nuno Ramos. Junco. (2011 p. 106-107)

Uma pequena nota ao final do livro, diz que as fotografias foram feitas enquanto escrevia os poemas e que sempre os imaginou juntos, como rasuras feitas de pedaços, detritos, restos e palavras sempre com o cuidado extremo de que no intervalo entre palavra e objeto / objeto e palavra não se tenha aí apenas uma legenda entre um e outro. Tanto que em uma narrativa que está em seu livro Ó, de 2009, “Recobrimento, lama-mãe, urgência e repetição, cachorros sonham?”, há uma pergunta definidora que rearma a dimensão da frase-imagem toda feita a partir de destroços: “Mas faz parte da indiferença meio humilde, meio vagabunda dos cachorros deixar-se atropelar sem sequer amassar a lataria, sem ameaçar nossa integridade física nem causar prejuízo a quem os assassina” e “Cachorros sonham?” (Ramos, 2008, p. 151-152) Imagem intermitente que, por exemplo, já está no seu trabalho de 2008, “Monólogo para um cachorro morto”, que, além de uma instalação com lâminas de mármore, um monitor de tela plana exibe um filme em que Nuno Ramos encosta o carro no acostamento da rodovia Raposo Tavares, em São Paulo, segue até o guard-rail onde há um cachorro morto e deixa um aparelho de som – com os alto-falantes voltados para o animal –  que reproduz o texto “Monólogo para um cachorro morto”. Segue um trecho do texto:

Entre nós dois poesia (Pausa). Entre nós dois meu anjo, meu nojo, minhas mãos suadas e uma fenda. Vê, onde um corpo fendido recebe outro corpo e um terceiro corpo nasce deles, entre eles, feito de. (Pausa) Vento, mau cheiro, delícia; sabão, carranca, monotonia. Assim: teu pelo. Assim: a chuva. Ladrada. Ou carne lacerada, imagem dentro do meu olho. Vê. Você aí. Aí, morto. (Mais alto) Permito que você morra. Permito que fique assim, morto (Ramos, 2010a, p. 442).

São exemplares as exposições Para Goeldi 1, de 1996, na Galeria AS Studio, em São Paulo, com 2 séries de desenhos e 4 esculturas; e Para Goeldi 2, de 2000, na Casa Vermelha, em Curitiba, no Paraná, com móveis usados e lâminas de granito. As exposições parecem retomar uma anotação do seu livro Cujo, de que “A semelhança é o melhor disfarce”.

Nuno Ramos. Para Goeldi 1. 1996.
Nuno Ramos. Para Goeldi 1. 1996.
Nuno Ramos. Para Goeldi 1. 1996.
Nuno Ramos. Para Goeldi 1. 1996.
Nuno Ramos. Para Goeldi 1. 1996.
Nuno Ramos. Para Goeldi 1. 1996.
Nuno Ramos. Para Goeldi 2. 2000
Nuno Ramos. Para Goeldi 2. 2000
Nuno Ramos. Para Goeldi 2. 2000.
Nuno Ramos. Para Goeldi 2. 2000.

Na primeira, o uso do urubu, animal de agouro e libertação, exposto e impresso em areia e silicato; a mala, a cadeira e o cesto fundidos em bronze com restos de vidro derretidos sobre eles, coisas de abandono e esquecimento, até as reproduções de algumas gravuras de Goeldi que sofrem interdição de fumaça e carvão para criar um ambiente que indica uma transparência; e, na segunda, os usos dos móveis em simbiose com as lâminas, como se fossem paredes, e vice-versa e a gravura Tarde, de Goeldi, ampliada numa cava do chão de cimento enchida  com óleo queimado indicando agora um ambiente indefinido – “uma camada que mal se percebe (a não ser pelos reflexos), mas que cria uma espécie de ambiente” (Ramos, 1993, p. 65). Essas exposições de Nuno Ramos sugerem a mesma desierarquização proposta pelas imagens dos poemas de Bandeira entre vivos e mortos e pelas imagens das gravuras de Goeldi “entre seres e coisas, homens e animais, natureza e social” (Ramos, 1995, p. XX) com uma luz desmesurada e destrutiva em que a tristeza, a solidão e a noite se misturam formando um contorno de corpos e de vida sobreviventes (Ramos, 1995, p. XX).

Nuno Ramos radicaliza esse procedimento ao retomar a imagem que vem dos urubus de Goeldi ou do boi morto de Bandeira, por exemplo, no seu trabalho para a Bienal de São Paulo, em 2010: Bandeira branca. Trabalho composto de “três enormes esculturas de areia preta pilada, foscas e frágeis, a partir de cujo topo, feito de mármore, três caixas de som emitem, em intervalos discrepantes, as canções ‘Bandeira branca’ (de Max Nunes e Laércio Alves, interpretada por Arnaldo Antunes), ‘Boi da cara preta’ (do folclore, por Dona Inah) e ‘Carcará’ (de João do Vale e José Candido, por Mariana Aydar). Três urubus vivem na instalação durante toda a duração do trabalho” (Ramos, 2010b); ou seja, é a deliberação ponderada, sobrevivente e crítica do uso de algumas imagens intermitentes que retira da literatura e da arte modernas para provocar embaraçadas e embaraçosas discussões da crítica e do público de agora, o que só demonstra a força política de um trabalho ao apontar para o furo de várias imposições por dentro do circuito fechado da arte.

Por fim, uma última inferência que pode ser pensada como um gesto mais anacrônico ainda, no sentido de uma colisão dos tempos e de uma modulação entre posse e despossessão (uma apropriação desapropriante), é o seu último livro de pequenas narrativas publicado em 2010: O mau vidraceiro. O título é uma recuperação indicativa da imagem do poema homônimo de Charles Baudelaire publicado no pequeno conjunto chamado Spleen de Paris em 1869, dois anos depois de sua morte. Nesse livro Baudelaire desfaz a forma do poema e o contamina definitivamente com a prosa; e esse “poema em prosa” trata de uma natureza contemplativa em torno de um dos elementos mais fascinantes da nova arquitetura de seu tempo, o vidro. Ao mesmo tempo trata de uma natureza demoníaca própria do homem que explode diante das novas formas e circunstâncias da vida moderna. O narrador, pois, reclama com um vidraceiro que faz pregão em bairros pobres sem ter entre seus objetos de venda nenhum vidro colorido. Empurra-o para a escada e, numa explosão de fúria e ímpeto, grita que é preciso, de algum modo, “a vida com beleza! a vida com beleza!” (Baudelaire, 1991, p. 29) Nuno Ramos, por sua vez, desenha todo o seu livro a partir dessa ambivalência da natureza do homem moderno sugerida por Baudelaire em seu poema na imagem do mau vidraceiro. Na quinta narrativa de seu livro, por exemplo, Homem-bomba, fazendo uso de uma posse e de uma despossessão, amplia o impreciso dessa ambivalência da imagem moderna ao armar uma “desobra” e jogá-la ao mar mais impreciso ainda do mundo, da vida e da arte contemporâneas. Eis a pequena narrativa, na íntegra:

Sou o homem-bomba voluntário, sem paraíso prometido, para explodir de vez esta soma de vozes, hierarquizada em intervalos [oitavas, quartas, terças] com um único eco, bum, da minha solidão – vocês ouvem seu ruído espantoso? o deslocamento de ar? os carros incendiados, os pedaços de carne humana, o sangue no asfalto, nas paredes? Outra solidão se vingará (Ramos, 2010c, p. 17).


* Júlia Studart é poeta e doutora em Teoria Literária pela Universidade Federal de Santa Catarina, UFSC. Desenvolve pesquisa de pós-doutorado na Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP, sobre literatura e arte brasileiras (a partir do trabalho do Nuno Ramos). Publicou Arquivo debilitado, o gesto de Evandro Affonso Ferreira (Editora Dobra, SP, 2012), Livro Segredo e Infâmia (Editora da Casa, SC, 2007), Marcoaurélio!, uma plaqueta com a artista visual Milena Travassos (Dragão do Mar, CE, 2006), entre outros.

Referências

BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1993.

BAUDELAIRE, Charles. “O mau vidraceiro” In: O spleen de Paris – pequenos poemas em prosa. Trad. Antonio Pinheiro Guimarães. Lisboa, Relógio D’àgua, 1991.

DERRIDA, Jacques. Memórias de cego – o auto-retrato e outras ruínas. Trad. Fernanda Bernardo. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.

NANCY. Jean-Luc. Trad. Pablo Perera. La comunidad desobrada. Madrid: Arena Libros, 2001.

RANCIÈRE, Jacques. O destino das imagens. Trad. Luís Lima. Lisboa, Orfeu Negro, 2011.

NUNO, Ramos. Nuno Ramos. Org. Ricardo Sardenberg; Texto crítico de arte Alberto Tassinari. Rio de Janeiro: Cobogó, 2010a.

RAMOS, Nuno. “Bandeira branca, amor – Em defesa da soberba e do arbítrio da arte”. Folha de São PauloIlustríssima. São Paulo. 17 de out. 2010b.

RAMOS, Nuno. Cujo. São Paulo: Ed. 34, 1993.

RAMOS, Nuno. “Goeldi: agouro e libertação” In: Noite morta. BANDEIRA, Manuel
e GOELDI, Oswaldo. São Paulo, Conjunto Caixa Cultural, 1995.

RAMOS, Nuno. Junco. Sao Paulo, Iluminuras, 2012.

RAMOS, Nuno. Ó. Sao Paulo, Iluminuras, 2008.

RAMOS, Nuno. O mau vidraceiro. Sao Paulo, Iluminuras, 2010c.

Notas
[1] Tradução minha a partir da edição espanhola de Pablo Perera: “Porque hay esto, este desobramiento que reparte nuestro ser en común, hay ‘la literatura’. Es decir, el gesto indefinidamente retomado e indefinidamente suspendido de tocar el límite, de indicarlo y de inscribirlo, pero sin franquearlo, sin abolirlo en la ficción de un cuerpo común. Escribir para el otro significa en realidad escribir a causa del otro.”

[2] Importante lembrar que Goeldi também compôs para as narrativas de Dostoievski uma série de gravuras. Assim é que alguns livros das novas edições do escritor russo feitas pela Editora 34, de São Paulo, têm, nas capas, algumas dessas gravuras. Caso, por exemplo, de Memórias do Subsolo e de A Dócil / O sonho de um homem ridículo.

[3] Faço referência, respectivamente, aos trabalhos Fruto estranho, de 2010, exposto no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e Marémobilia, de 2010, realizado em Nova Almeida, no Espírito Santo.

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Poesia brasileira contemporânea: ações plásticas e performáticas | Renato Rezende*

Em seu influente artigo “A escultura no campo ampliado”, publicado em 1978, Rosalind Krauss apoia-se na então ainda incipiente evidência de uma lógica artística não mais modernista, e sim pós-modernista, para propor e justificar o conceito de “campo ampliado” para a escultura contemporânea. Definindo escultura como aquilo que se dá no espaço duplamente negativo de “não-monumento” e “não-arquitetura”, a crítica de arte norteamericana constrói sua argumentação problematizando a categorização modernista da escultura e concluindo, por fim, que a “escultura não é mais apenas um único termo na periferia de um campo que inclui outras possibilidades estruturadas de formas diferentes. Ganha-se, assim, ‘permissão’ para pensar essas outras formas” (Krauss, s/d, p. 91). Essas outras formas possíveis de pensar a escultura, contrariando a necessidade da pureza de mediums e da autonomia da obra de arte pregada pelo cânone modernista, situando-se no espaço aberto e maleável de uma troca dinâmica entre paisagem/arquitetura/escultura, abrem-se também para a prática artística de ocupação de vários lugares diferentes pelo artista dentro do campo da cultura e para o uso diversificado de suportes.[1]

Após estabelecer o campo ampliado da escultura, Rosalind Krauss indica que o mesmo procedimento pode ser tentado com outros gêneros artísticos e sugere, por exemplo, que a dilatação do par originalidade/reprodutibilidade possa revelar os contornos do campo ampliado da pintura. Isso é tentado por Gustavo Fares em seu artigo “Painting in the Expanded Field”. O que nos interessa no artigo de Fares é a sua conclusão de que a pintura tem, durante os séculos, perdido um território que era seu.[2] Pensando nesses termos – o da perda de um lugar e, portanto, como veremos, de uma denominação – uma observação semelhante poderia ser feita, e com maior justiça, em relação à poesia: durante os séculos de desenvolvimento da cultura ocidental ela tem perdido um território que era originalmente seu. Em uma rápida e abrangente genealogia da poesia na nossa cultura, desde suas origens gregas, onde ela ganhava contorno e status de arte total, vemos que a tradição épica, ou seja, a tradição homérica, que no correr dos anos gerou Virgílio, Ariosto, Tasso, entre muitos outros, se transformou, com a ascensão da burguesia, em romance e, com o século das imagens, em cinema.[3] Quase ninguém mais escreve longos poemas narrativos com centenas de páginas, muitos personagens e aventuras.[4] Da mesma forma, a tradição da poesia lírica inaugurada por Arquíloco (segundo Nietzsche em O nascimento da tragédia) teria se transformado, na era da cultura de massas e indústria cultural (com a facilidade da reprodução das gravações sonoras), em canção popular.[5] Hoje, são raros os poetas que se dedicam ao poema lírico (sem fazer uso da ironia) e do poema épico tradicionais.[6] Esses gêneros, naquela modelagem, foram, por assim dizer, “subtraídos” da tradição da poesia e transferidos para (e alterados em) os mediums da música, da prosa e do cinema.[7] A poesia, então, adentrou o século 20 com um trunfo que os poetas julgavam inalienável: o pensamento – justamente por ser o pensamento constituído por palavras (assim como poemas são feitos de palavras, segundo Mallarmé). Não é coincidência que muitos dos grandes poetas do século passado foram poetas do pensamento: Eliot, Pound, Pessoa, Valéry… Nas últimas décadas do século 20, no entanto, com o advento da arte conceitual, as artes visuais passaram igualmente a levar uma alta e inaudita carga de pensamento, aproximando-se da filosofia.[8] A irmandade entre poesia e filosofia tem acompanhado a cultura ocidental desde sua origem e tal aproximação tem sido objeto de estudo e debate entre poetas e filósofos há muitas gerações.[9] Restaria-nos pensar, portanto, seguindo essa trilha de pensamento, a relação entre poesia e arte contemporânea em sua confluência filosófica.

Em “Rumo a um mais novo Laocoonte”, publicado em 1940, Clement Greenberg afirma que “quando porventura se confere a uma arte o papel dominante, esta se torna o protótipo de toda arte: as outras tentam se despojar de suas próprias características e imitar-lhe os efeitos. A arte dominante, por sua vez, tenta ela própria absorver as funções das demais” (Greenberg, 1997, p. 46).[10] Ora, se há uma arte dominante hoje, ela se situa, sem dúvida, no reino das artes visuais, ou sua mais recente denominação generalizante, arte contemporânea. Para Rosalind Krauss, que foi discípula de Greenberg, o programa modernista procurou reduzir a pintura à essência de seu medium, ou seja, à planaridade. Tal processo se radicalizou de tal forma que, paradoxalmente, acabou se transformando em seu oposto: radicalizada a especificidade da pintura, ela foi esvaziada para assumir uma categoria genérica de Arte. As telas negras de Frank Stella apontaram para uma planaridade materializada,[11] abrindo caminho para os “Specific Objects” de Donald Judd – a pintura como qualquer outra coisa tridimensional (Krauss, 1999, p. 9-11).[12] Sendo como qualquer outra coisa, a pintura já não podia ser específica, e sim, geral. Desta forma, a pintura deixou de ser pintura para se tornar Arte em geral; e ser um artista passou a significar questionar a essência da Arte (em geral). Assim, o objeto físico deixou de ser necessário, cedendo lugar (ainda enquanto arte, por via da arte, e não da filosofia) à condição conceitual da linguagem.[13] Seguindo essa linha de raciocínio, Arthur Danto pode afirmar que já não há mais um critério possível que determine o que é e o que não é arte: todas as formas de mediums e estilos são legítimas. Isso significa que o artista contemporâneo, ao construir sua poética, tem à sua disposição não apenas as novas tecnologias, mas toda a arte do passado – tenha sido ela reconhecida ou não – e seus meios e estilos (com exceção do espírito em que esta arte foi realizada). “O pluralismo do mundo da arte atual define o artista ideal como um pluralista” (Danto, 1997, p. 114).

Desde logo, o “campo ampliado” pós-moderno pressupunha uma relação mais dinâmica e ambígua entre os mediums. Quase vinte anos depois da publicação de “A escultura no campo ampliado”, em 1999, num ensaio em que estuda a questão da condição pós-midiática da obra de arte contemporânea através de uma análise da obra do “(ex) poeta” belga Marcel Broodthaers, Krauss retorna criticamente à questão da crise do medium. Nessas alturas, seu desconforto com o termo “medium” é tão grande que ela tem a necessidade de abordar o assunto num prefácio:

A princípio pensei que poderia simplesmente traçar uma linha sob a palavra medium, enterrá-la como grande parte dos resíduos tóxicos, e livrar-me dela ao entrar num novo mundo de liberdades léxicas. “Medium” parecia ser por demais contaminado, por demais ideológico, por demais dogmático, por demais carregado de discurso (Krauss, 1999, p. 5).

Articulando três diferentes narrativas, Krauss traça uma genealogia da dissolução do conceito de especificidade do medium nos anos de passagem entre as décadas de 1960/1970. A primeira diz respeito ao trabalho Museu de arte moderna, Departamento das águias, uma sequência de obras que Marcel Broodthaers iniciou em 1968 e deu por encerrada em 1972, através da qual o artista destrói a ideia de um medium estético e transforma tudo em readymade, dissolvendo a distinção entre o estético e o mercantilizado e ficcionalizando a forma como esta perda de especificidade se dá. O segundo e independente ataque à especificidade do meio se dá com o advento da câmera de vídeo portátil (portapak) e o uso do vídeo entre os artistas ligados ao Anthology Film Archives, que funcionou no Soho, Nova York, no final dos anos 1960 e começo dos anos 1970. Usando o portapak para criar, Richard Serra, que, no entanto, se considerava um artista modernista, logrou trabalhar e articular o novo medium como algo agregador, um aparato, e portanto como algo muito distinto das propriedades materiais de um mero suporte físico.[14] Tal percepção é concomitante ao surgimento da TV como meio de comunicação em massa. Segundo Krauss, assim como o princípio da Águia, de Broodthaers, a TV proclama o fim da especificidade dos mediums, inaugurando uma condição cultural pós-midiática, que foi compreendida e utilizada pelos artistas. Finalmente, a terceira narrativa que vinha se somar a essas práticas artísticas inovadoras, e que a elas dava credibilidade intelectual, era oriunda das argumentações de Foucault a favor de uma interdisciplinaridade acadêmica e das proposições pós-estruturalitas e desconstrucionistas de Jacques Derrida e outros pensadores franceses.

Lenora de Barros. ''Procuro-me'', 2001 (Lambe lambe)
Lenora de Barros. ''Procuro-me'', 2001 (Lambe lambe)

Para Krauss, todo medium é intrinsecamente plural e, desse modo, é impossível reduzir um gênero artístico ao seu medium. O próprio Greenberg teria percebido isso ao, mais tarde em sua carreira, abandonar a ênfase na planaridade e cunhar os conceitos de opticalidade e campo de cor. Um dos argumentos principais da autora, nesse ensaio, é que “a especificidade dos mediums, mesmo os modernistas, deve ser compreendida como um diferencial, auto-diferenciado, e, portanto, uma camada de convenções nunca simplesmente redutíveis à fisicalidade de seu suporte” (Krauss, 1999, p. 53). Segundo Krauss, Broodthaers representa a complexidade da condição pós-midiática pós-moderna, e sua genialidade reside no fato de ele ter, ao usar filmes antigos, alusões ao colecionismo, auto-détournments e outros procedimentos, revelado a condição auto-diferenciada (self-differential) dos próprios mediums, alegorizando-a, ficcionalizando-a e fazendo da própria ficção um medium.

Lamentando a irônica proliferação do princípio da Águia quase trinta anos depois do trabalho pioneiro e aberto de Broodthaers, presente em todas as bienais e feiras de arte do mundo globalizado na forma de infindáveis instalações e trabalhos multimídia, funcionando como uma nova academia a serviço do capital, Krauss clama por uma prática de differential specificity (capaz de reconhecer e articular as complexidades da condição pós-midiática através da contemplação e revelação das formas já ultrapassadas que ela encerra) e define medium como algo que, para sustentar uma prática artística, “deve ser uma estrutura de apoio, geradora de uma série de convenções, algumas das quais, ao assumir o próprio medium como seu tema, serão completamente ‘específicas’ a ela, produzindo assim a experiência de sua própria necessidade” (Krauss, 1999, p. 26).

A definição de Krauss parece ressoar com o pensamento do antropólogo brasileiro Antonio Risério, que, em seu Ensaio sobre o texto poético em contexto digital, ataca o que ele percebe como um conservadorismo dentro do próprio ambiente de produção literária, e argumenta contra o confinamento da poesia no suporte livro:

Na verdade, os discursos que querem reduzir a poesia a um dos formatos que ela assumiu, ao longo de sua longa trajetória histórica, indicam para mim, nada mais que a crescente ansiedade de literatos conservadores diante das transmutações formais que presenciamos – e, em consequência, diante da impossibilidade de sustentar o caráter único ou mesmo a hegemonia do modelo gráfico que eles elegeram para o fazer poético. Mas o fato – simples – é que a arte da palavra é anterior ao espaço gráfico gutemberguiano. […] Só alguém completamente enceguecido pelo afã irracional de defender o seu sítio (ou a sua baia) escritural, frente à proliferação de signos e formas de nossa circunstância histórico-cultural, pode pretender que a materialização do poético somente seja viável através do medium gutemberguiano, pelo padrão/formato tipográfico que se estabeleceu com a impressão de textos compostos com versos livres. Os computadores, a holografia, o laser, o vídeo etc., estão aí, à nossa volta (Risério, 1998, p. 200).

Para o pensador baiano, “um poema existe quando se materializa num medium. E cada ‘meio’, além de oferecer um rol de recursos, abre um leque de exigências” (Risério, 1998, p. 46).[15] Mas o que exatamente se materializa num medium? O que é um poema? Agamben também debruçou-se, numa série de ensaios curtos, mas agudos e perfeitamente alinhados com sua proposta de crítica negativa, sobre essa questão (Agamben, 1998; 2002; 2008). Para o pensador italiano, são cinco os institutos poéticos, ou os elementos que diferem a poesia da prosa: o fim do poema (ou seja, o verso final, que se lança no silêncio), a versura (o ponto de suspensão da virada de um verso para outro – como o arado que sobe no final do campo, para retornar abrindo novo sulco – momento decisivo do enjambement), a cesura (pausa embutida no interior do verso), a rima e o enjambement, sendo este último o critério mais marcante, assim definido por ele: “a oposição entre um limite métrico e um limite sintático, uma pausa prosódica e uma pausa semântica” (Agamben, 2002, p. 142).

Poético é o texto no qual essa oposição pode se dar. Partindo da famosa definição pendular de Valéry,[16] mas privilegiando não a harmonia entre som e sentido, mas justamente sua discrepância e irredutibilidade, Agamben afirma que “todos os institutos da poesia participam desta não coincidência, desse cisma entre som e sentido” (Agamben, 2002, p. 143). O poema se define, portanto, como a sobreposição simultânea entre duas séries – a série semiótica e a série semântica, expressão e impressão, presença e ausência, som e silêncio – em atrito e crise, revelando a linguagem em sua própria diferença, em seu lugar enquanto linguagem mesma, em curto-circuito, jamais acatando a unicidade própria do discurso prosaico mas, ao contrário, mantendo a tensão de um antagonismo essencial que aponta para um constante estado de abertura, necessariamente crítico. Jean-Luc Nancy, em seu ensaio A resistência da poesia, afirma: “a poesia é igualmente a negatividade, no sentido em que nega, no acesso ao sentido, aquilo que determinaria esse acesso como uma passagem, uma via ou um caminho, e o afirma como uma presença, uma invasão” (Nancy, 2005, p. 12). Ainda Nancy: “a palavra ‘poesia’ designa tanto uma espécie de discurso, um gênero no seio das artes, ou uma qualidade que pode apresentar-se fora dessa espécie ou desse gênero, como pode estar ausente nas obras dessa espécie ou desse gênero” (Nancy, 2005, p. 9).

Para o pensador brasileiro Adalberto Müller, não se trata mais de perguntar o que é a poesia, mas sim onde ela está. Nesse campo ampliado – ou fissura aberta – o poema – como objeto de linguagem, mas não obrigatoriamente linguagem verbal – desloca-se dos seus suportes tradicionais e requer uma “base epistemológica que possibilite o trânsito seguro de uma área do conhecimento para outra” (Müller, 2012).

Rosana Ricalde. “Mares do Mundo”, 2009 (tela)
Rosana Ricalde. “Mares do Mundo”, 2009 (tela)

Nesse lugar ou lugares fronteiriços ou híbridos (espécie de limbo; invisíveis para a crítica mainstream da poesia brasileira – vide, por exemplo, a quase ausência de estudos sobre um poeta seminal como Wladimir Dias-Pino), inserem-se não poucos poetas ou coletivos brasileiros contemporâneos que de formas variadas trabalham a poesia de uma maneira plástico-performática ou que, em outras palavras, têm criado poemas em um campo ampliado. Entendem-se como “plásticas” as ações poéticas que se inscrevem simultaneamente no campo das artes visuais, notadamente a pintura, a escultura e a fotografia. Embora a performance seja um elemento já constitutivo do universo da arte contemporânea (assim como a vídeoarte[17]), suas possíveis ações extrapolam uma definição que a reduz a esse universo,[18] e evidentemente abarcam a poesia. Entre muitos, podemos lembrar o caso de Alex Hamburger (parceiro de Márcia X em várias performances memoráveis), Alexandre Sá, André Sheik e Domingos de Guimaraens, membro do Grupo UM e do coletivo Os Sete Novos,[19] apenas para citar alguns dos que hoje se inserem no circuito das artes visuais. É o caso também de Michel Melamed, poeta, ator, músico e performer, do cineasta e vídeo-artista Felipe Nepomuceno, do vídeo-poeta e fotógrafo Alberto Saraiva e do artista multimídia Ricardo Aleixo.

Roberto Corrêa dos Santos. “Últimas notas sobre o Grande Vidro”, 2010 (instalação)
Roberto Corrêa dos Santos. “Últimas notas sobre o Grande Vidro”, 2010 (instalação)

Outros artistas procuram manter sua “identidade” como poetas, ao mesmo tempo em que exploram e atravessam tais zonas de fronteira, embora suas produções fora do campo da “literatura” sejam raramente abordadas pela crítica de poesia: é o caso das performances do coletivo Arranjos para Assobio, ligados a UFRJ, e de poetas que expuseram dentro do Projeto Poesia Visual, no Oi Futuro de Ipanema, Rio de Janeiro, sob a curadoria de Alberto Saraiva, como Roberto Corrêa dos Santos (“Últimas notas sobre o Grande Vidro”), Lenora de Barros (“isso é osso disso”) e Xico Chaves.

Adolfo Montejo Navas. “Poética”, 2004 (objeto)
Adolfo Montejo Navas. “Poética”, 2004 (objeto)

Menos raro ainda é a presença da palavra no trabalho de artistas visuais, seja no título (como chave para a obra); em textos em anexo inseparáveis do trabalho (vide as narrativas de Tunga, que, aliás, define-se como poeta[20]); ou no próprio corpo da obra, como, entre muitos exemplos, podemos apontar para algumas obras de Ricardo Basbaum, Leila Danziger, Adolfo Montejo Navas (na tradição de Joan Brossa) e Rosana Ricalde (Corrêa Dos Santos; Rezende, 2011). Há ainda aqueles trabalhos que promovem diálogos entre textos e imagens, como “Morte das casas”, de Nuno Ramos – também um excelente prosador e ensaísta[21] – em diálogo direto com Drummond, ou “4 Cantos”, de Nelson Felix, indissociável dos poemas de Sophia de Mello Brenner; além de performances que se utilizam da linguagem corporal e objetos que remetem à escrita (vide Paulo Bruscky e Gabriela Marcondes, entre outros). As ações plásticas e performáticas de poetas brasileiros contemporâneos obviamente não se esgotam nesses rápidos exemplos; no entanto seria interessante, e até mesmo urgente, estudar os rumos da poesia brasileira a partir da perspectiva que elas abrem.

* Renato Rezende é graduado em literatura espanhola pela Universidade de Massachusetts, Boston, EUA, e mestre em Arte e Cultura Contemporânea pela UERJ. Como poeta, é autor de Passeio (2001), Ímpar (2005) e Noiva (2008) entre outros, recebendo a Bolsa da Fundação Biblioteca Nacional para obra em formação em 1997, e o Prêmio Alphonsus de Guimaraens da Biblioteca Nacional para o melhor livro de poesia em 2005.


Referências

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Notas
[1] O movimento neoconcreto brasileiro, que incluía Hélio Oiticica, Lygia Pape, Lygia Clark e o poeta Ferreira Gullar, entre outros, foi pioneiro em práticas artísticas que exercem intervenções no campo social e interatividade e, referindo-se a tais práticas, o crítico Mário Pedrosa foi um dos primeiros intelectuais no mundo a cunhar o termo “pós-moderno”.

[2] “Gostaria de conjeturar que a ‘pintura’ tem ‘cedido’ através da história parte do território que conquistou para si cinco séculos atrás, se não antes, e que essa ‘expansão’ é testemunhada pelas diferentes formas e mídias que prevalecem hoje. A narrativa, por exemplo, foi apropriada pelo vídeo, enquanto que a importância de ‘ver’ e de ‘estar presente’ parecem ter passado para o reino da instalação e das artes performáticas, nas quais o espaço real é um componente importante do trabalho. A ‘mensagem’, se algum dia existiu, tem sido esvaziada da pintura e assumida pelos críticos, ou pelos próprios artistas, como uma atividade verbal, em paralelo e não necessariamente relacionada aos trabalhos de arte sendo produzidos…” (FARES, 2004, p. 477-487). Entre nós, um estudo que se dedica ao campo ampliado da pintura é Pintura em distensão, de Zalinda Cartaxo (2006).

[3] Para Susan Sontag, o cinema é um subgênero da literatura (Sontag, 1987, p. 21).

[4] Exceções, que provam a regra são Latinoamérica, de Marcus Accioly (2001) e o recente Uma viagem à Índia, de Gonçalo Tavares (2010).

[5] Francisco Bosco, poeta e letrista de música, além de ensaísta, possui um curto, mas definitivo ensaio sobre o assunto. Segundo ele (2007): “A poesia é uma potência, atualizada ou não, da letra. A letra, sem deixar de ser letra, pode ao mesmo tempo tornar-se poesia.”

[6] Segundo Paulo Henriques Britto, o poema épico, ligado à construção de uma nação, extingue-se com a construção do estado moderno, e a última epopeia incorporada ao cânone foi Os Lusíadas, que já contêm elementos poucos ortodoxos ao gênero (o não enaltecimento incondicional da pátria, por exemplo). O poeta lírico, por outro lado, afirma uma individualidade, ou melhor, uma subjetividade. O principal elemento da poesia lírica é a memória do poeta, com cujas experiências e vivências interiores o leitor se identifica. Para o tradutor e poeta brasileiro, vivemos no Brasil atual uma predominância de uma poesia pós-lírica, na qual o “eu lírico” é, acima de tudo, uma encruzilhada de textos: “Dois traços, porém, me parecem característicos da poesia pós-lírica: a tendência a dar mais importância à intertextualidade do que à experiência não literária; e a tendência a exigir do leitor um cabedal de conhecimentos de tal modo especializado que a leitura só se torna viável se for feita paralelamente com uma série de notas e explicações” (Britto, 2000, p. 124-131).

[7] “Boa parte da experiência humana de que tratavam a poesia lírica e a épica é eliminada de antemão; alguns poetas pós-líricos dão a impressão de que a condição humana – as contingências da carne, as paixões, a mortalidade – são temas que só devem ser tocados com as pontas dos dedos, se não evitados de todo e relegados à canção popular ou ao cinema” (Britto, 2000. p. 130).

[8] De acordo com Danto: “Os filósofos da arte e o mundo da arte agem como duas curvas opostas que se tangenciam em um único ponto e depois se desviam para sempre em direções diferentes. Isso acaba reforçando a hostilidade própria dos artistas, desde Íon… […] E assim as coisas teriam permanecido indefinidamente não tivesse a arte evoluído de tal forma que a questão filosófica de seu status quase se converteu em sua própria essência. […] Hoje em dia, às vezes é necessário fazer um esforço especial para distinguir a arte de sua própria filosofia. É quase como se a totalidade das obras de arte tivesse se condensado naquela parte delas mesmas que sempre foi do interesse dos filósofos…. A arte é praticamente uma confirmação da teoria da história de Hegel, segundo a qual o Espírito está destinado a tornar-se consciente de si” (Danto, 2005, p. 101-102).

[9] No contemporâneo, por exemplo, tal discussão é articulada por Giorgio Agamben de forma disseminada em vários de seus escritos, mas especialmente em A linguagem e a morte (2006). Entre nós, o poeta e filósofo Antonio Cícero tem se dedicado ao tema em livros como Poesia e filosofia (2012).

[10] Através de um entendimento e de uma prática das artes como mimese, é possível traçar um percurso de traduzibilidade entre elas (ou seja, as artes como tecné, e equiparáveis entre si em suas diferentes maneiras de imitar o mundo). A questão se problematiza e sofre uma guinada com o advento do modernismo e seu incessante estado de crise, quando as artes deixam de ser representativas e se voltam aos seus próprios mediums (perdendo, desta forma, sua capacidade de traduzibilidade mútua).

[11] Por planaridade materializada Krauss se refere às faixas brancas por onde, segundo Stella, a pintura respirava em telas como a série The Marriage of Reason and Squalor (1959). Tal procedimento é idêntico ao usado por Lygia Pape em sua série Tecelares (1958), e as palavras de Krauss para a obra de Stella poderiam ser integralmente usadas para a obra de Pape, como fica provado em Herkenhoff (2012).

[12] Seria interessante pensar tais conceitos em relação à teoria do não-objeto neoconcreto.

[13] Em A linguagem e a morte Giorgio Agamben pergunta: “Se a filosofia se apresenta desde o início como um “confronto”… e uma “diferença”… com a poesia […] qual é a extrema experiência de linguagem própria da tradição poética?” (Agamben, 2006, p. 91). Tal questão permeia boa parte da obra do filósofo italiano. Em Estâncias, Agamben parece apontar a solução dessa crise – “a urgência para que a nossa cultura volte a encontrar a unidade da própria palavra despedaçada” – na manutenção da abertura alcançada pela prática de uma crítica negativa, ou seja, uma crítica – que nasce no momento em que a cisão entre a poesia e a filosofia alcança seu ponto mais extremo – já não dedicada à análise de um objeto que lhe é exterior e que ela procura apreender, mas ao questionamento de sua própria presença: daí seu encontro com a arte – e com o pensamento filosófico. Neste sentido, a poesia seria uma abertura sempre mantida em aberto, a constante renovação de uma ferida enfim exposta (Agamben, 2007, p. 13).

[14] Novamente, traçando um paralelo com o que acontecia no Brasil, seria interessante pensar na produção dos pioneiros da videoarte no país, especialmente no Rio de Janeiro, como Sonia Andrade, Letícia Parente e Ana Vitória, entre outros, que, com uma câmera emprestada, produziram obras ainda contundentes, que não se filiam nem à dicotomia Concretismo/Neoconcretismo nem à Nova Figuração.

[15] Para Risério, o poema que desguarnece as fronteiras com outros mediums, formando produtos híbridos ou multimídia – sempre, para ele, a partir da palavra – pode ser chamado de ‘texto intersemiótico’: “A poesia é a arte da palavra também no sentido de que é, à sua maneira, arte da insatisfação humana diante dos limites da linguagem. À falta de expressão melhor, pode-se chamar ‘texto intersemiótico’ o poema que não se contenta com a permanência nos domínios incontestáveis da semiótica verbal. Ao apelar para outros códigos, ele se situa numa zona de fronteira” (p. 58).

[16] Em alguns estudos seminais (especialmente “Questões de poesia”, “Primeira aula do Curso de Poética” e “Poesia e pensamento abstrato”) Paul Valéry investiga com rigor a natureza da poesia. Para o autor de Cemitério marinho “um poema é uma espécie de máquina de produzir o estado poético através das palavras”, ou seja,  capaz de transportar o leitor à esfera do poético, torná-lo inspirado. Tal máquina (o poema), capaz de recriar no leitor a experiência do poeta, funciona na troca harmoniosa do movimento pendular entre som e sentido (Valéry, 1999, p. 169-210).

[17] Expando o tema específico da relação entre poesia e vídeoarte em Rezende, Renato. “Poesia e video-artes: algumas aproximações”. Revista Z Cultural, ano VII, n 2. http://revistazcultural.pacc.ufrj.br/poesia-e-video-arte-%E2%80%93-algumas-aproximacoes-de-renato-rezende/

[18] Como lembra Daniela Labra: “No campo artístico, o termo performance (ou performing arts) é abrangente, podendo ser aplicado a qualquer prática em que o corpo está presente, seja dança, artes cênicas, circo ou mesmo uma apresentação musical” (Labra, 2008).

[19] Para uma introdução ao fenômeno de coletivos na cena artística brasileira contemporânea, ver: Rezende; Scovino, 2010.

[20] “Eu me coloco na posição do poeta porque eu acho que poesia não é e coisa escrita ou a poesia falada ou a poesia cantada ou a poesia feita objeto. É o que está por trás da poesia, e isso é texto em qualquer forma, através de qualquer linguagem. E a gente pode usar, pode manipular, qualquer campo da linguagem para ascender a esse território. Esse território é o quê? É o território da densidade máxima da experiência da linguagem.” Entrevista concedida a Sergio Cohn, Pedro Cesarino e Renato Rezende (Tunga, 2008).

[21] Nuno foi incluído por Paulo Ferraz em sua antologia de poetas brasileiros surgidos nos anos 1990 (Ferraz, 2011).

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Francisco Iglésias e a literatura | Silviano Santiago*

Francisco Iglésias é um rapaz alto, muito magro, que pega sempre o último bonde Horto. Não dança, não fuma, não bebe, não namora. Com vinte e dois anos de idade. Sua letra é quase ilegível. Apesar de sério, como acontece com as pessoas magras, não usa cartolas. Sua elegância vem mais do pensamento maledicente. Mesmo desafinado conhece quase todos os sambas e tangos que pululam pelos bairros. Embora ele anuncie constantemente seu desejo de deixar as montanhas, há alguma coisa na paisagem que nos segreda que ele ficará para sempre aqui. Há uma lenda a seu respeito que vale a pena ser contada: dizem que, manhãzinha ainda, quando vem do subúrbio para lecionar, o Iglésias vem conversando franciscamente [sic] com as aves e frutas (Anônimo, Edifício, número 2, fevereiro, 1946).

A relação de Francisco Iglésias com a literatura não é passageira, nem estritamente profissional ou disciplinar. Não é tampouco acidente tardio na sua vida nem consequência de viés inesperado na sua pesquisa historiográfica. A literatura faz parte da sua formação de historiador, ou, de maneira mais ampla, da sua “educação sentimental”, para retomar o título do famoso romance de Gustave Flaubert. Não terá sido por coincidência que, no ano seguinte ao em que se gradua em História pela Universidade (Federal) de Minas Gerais, em 1946, aproxima-se do grupo de jovens ficcionistas e poetas mineiros que idealiza e publica a revista Edifício, tornando-se presente nas páginas dos seus poucos e sucessivos números.

Com capa de Heitor Coutinho, a revista traz epígrafe ? “E agora José?” ?, tomada de empréstimo ao poema de Carlos Drummond de Andrade. O primeiro número da revista estampa a data de janeiro de 1946. No Índice, os nomes de jovens e promissores talentos estão associados aos de escritores já conhecidos. Citemos alguns: Valdomiro Autran Dourado, Vanessa Neto, Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, Wilson Figueiredo, Jacques do Prado Brandão, Otávio Alvarenga, J. Etiene Filho. O título de uma das colaborações se destaca pelo insólito: “Os pensamentos perigosos”. Autor: Francisco Iglésias. O nome da revista era também óbvia alusão a versos de outro poema de Drummond, “Edifício esplendor”. Ao final deste, podemos ler os seguintes versos: “ ? Que século, meu Deus! Diziam os ratos./ E começavam a roer o edifício.” De Drummond são ainda as palavras que abrem o primeiro número: “Esboço para apresentação de EDIFÍCIO”.

Tomada de um dos mais famosos poemas do itabirano, a epígrafe da revista, “E agora, José?”, constata e enumera as frustrações de uma geração diante do legado que recebem dos mais velhos e, pela interpelação à queima-roupa a cada um dos seus leitores, conclama-o à ação lúcida no presente: “o dia não veio,/ o bonde não veio,/ não veio a utopia/ e tudo acabou/ e tudo fugiu/ e tudo mofou,/ e agora, José?” Mais velhos e mais moços, os leitores do poema são todos artistas e intelectuais sobreviventes dos anos de chumbo do Estado Novo e, como tal, ainda podem caminhar. Insiste o poeta de A rosa do povo, transformando o tom pessimista em abertura para a esperança: “José, para onde?” Caminhos não há, há que inventá-los. Se o desesperançado Mário de Andrade foi o patrono dos jovens da revista Clima (maio de 1941 a novembro de 1944), o esperançoso Carlos Drummond o foi da revista mineira.

Os Josés mineiros, à semelhança do seu homônimo acariocado, tinham saído, na pátria, da repressão e da censura impostas pelo Estado Novo e, lá fora, dos horrores causados pela Segunda Grande Guerra. A luta contra o nazi-fascismo dentro e fora do país foi a tônica da revista. Drummond é o poeta que elegem como salvo-conduto para exercer o trabalho estético e político no difícil e lento processo de redemocratização por que deveria passar a nação. Amaro de Queiroz, tomando assento ao lado dos jovens autores brasileiros presentes na Plataforma da nova geração, conjunto de entrevistas publicadas por Mário Neme em 1945[1], escreve no número 2: “A novíssima geração, ao contrário da modernista, é muito mais política do que estética”. Não é de se estranhar que, no número da revista publicado em fevereiro do mesmo ano, Francisco Iglésias proclame: “Agora não tenho dúvidas em afirmar que foi a leitura dos autores marxistas o que mais me marcou no sentido de orientação”. Aquele “agora” era, ao mesmo tempo, sinal de alívio e afirmação tardia de um pensamento enfim liberto. O “sentido da orientação” no presente, suas leituras, era a resposta que o talentoso licenciado em História dava à indagação do poema e à epígrafe da revista.

Naquele momento histórico, Drummond foi unanimidade nacional. Em resposta à enquete feita por Mário Neme, o então jovem Antonio Candido se entusiasmava: “Carlos Drummond representa essa coisa invejável que é o amadurecimento paralelo aos fatos; o amadurecimento que significa riqueza progressiva, e não redução paulatina a princípios afastados do Tempo. Por isso, Mário [Neme], eu acho que tem mais sentido a maturidade de um homem como Drummond do que o verdor quase sempre desnorteado e não raro faroleiro de todos nós”. Antes afirmara: “Carlos Drummond é um dos homens da ‘outra geração’, da tal que você quer que nós julguemos. No entanto, não há moço algum que possua e realize o sentido do momento como ele” (Neme, 1945, p. 31-32). A lua de mel de Drummond com a esquerda iria terminar durante o 2º Congresso Brasileiro de Escritores, iniciado no dia 12 de outubro de 1947, em Belo Horizonte. Segundo o testemunho do poeta, nas reuniões o “espírito sectário” levou de vencida o “espírito democrático”. Sobre o racha ideológico e a sua opção, informa Drummond em páginas do diário: “Nenhum de nós queria impedir o direito de os comunistas se manterem organizados em Partido e exercendo atividade política renovadora. Mas eles pouco entendiam o nosso ponto de vista, se é que, entendendo-o, preferissem fingir o contrário.”[2]

Diante do quadro sumariamente esquematizado, era de se esperar que Carlos Drummond fosse a figura literária que iria absorver a preocupação do jovem historiador, às voltas com o “sentido” ? para retomar um vocábulo caro a Caio Prado Jr. e aos seus discípulos ? do momento político e social. Basta lembrar poemas como “Nosso tempo”, ou “Os bens e o sangue”, para dar-se conta de que cairiam como a sopa no mel sobre as preocupações confessadas de Francisco Iglésias – a História econômica, a História de Minas Gerais, com algumas incursões na História do Brasil (Iglésias, 1971, p. 11). Possíveis e necessários ensaios sobre o poeta de A rosa do povo dariam continuidade às preocupações mais legítimas do historiador e, indiretamente, aos ensaios selecionados para a sua primeira grande coletânea.

Iglésias opta pela solução de continuidade. Confessa ele em prefácio de História e ideologia: “Não se veja, no caso dos autores [estudados], busca de identificação pessoal: com dois deles, por exemplo, temos mais distância que proximidade [grifo meu] – como se dá com Fernando Pessoa, ou, sobretudo, Jackson de Figueiredo, com os quais, ideologicamente, nada temos a ver” (1971, p. 11). No primeiro caso, sobressaem “o misticismo e o messianismo, modos irracionais, ainda que expressos por um poeta de gênio como Fernando Pessoa”. No segundo caso, “o pensamento reacionário, fruto da falta de sentido histórico – expresso por Jackson de Figueiredo” (1971, p. 14). Os dois autores estudados optam por temas e pela defesa de ideias que contrastam com o abecedário historiográfico marxista do autor e contra ele se chocam.

Francisco Iglésias
Francisco Iglésias

De onde o fascínio pela distância em relação ao objeto? De onde o interesse profundo pela face derrotada da moeda ideológica? Qual a razão para se escrever criticamente sobre o avesso do sentido da história?

A primeira resposta às perguntas foi enunciada, ainda que de maneira imprecisa, pelo próprio historiador. Em dado momento, diz que messianismo e irracionalismo políticos “são momentos para a compreensão do presente”; em outro, acrescenta que o pensamento reacionário de Jackson “exerceria influência em seus dias e mesmo depois” (1971, 14). O gosto pela atualidade, que ecoa em nota pessimista o Drummond do poema “Mãos dadas”[3], é a coordenada comum na resposta dada pelo historiador. Iglésias, no entanto, não tematiza a simpatia entre sujeito e objeto, antes a antipatia, ou seja, o alvo da sua escrita ensaística é a distância, ou seja, um entrelugar entre pontos de vista opostos. As exigências da atualidade se esbatem contra o legado de muitos dos melhores. Iglesias tematiza a memória do arcaico e a diferença, a fim de extrair delas tanto o sumo da dificuldade de análise, quanto as forças para transpor obstáculos concretos e instaurar a racionalidade histórica. A análise do presente em vias de transformação não prescinde do conhecimento e estudo da face derrotada da moeda política e do avesso político progressista. Tese incômoda, sem dúvida, para os simpáticos fogueteiros de plantão e, mais incômoda ainda, para os festivos esquerdistas que seriam legião no pós-64, como tão bem retratou Antônio Callado no romance Bar Don Juan.

Segundo o colega de geração e amigo Jacques do Prado Brandão, no mesmo ano em que Iglésias se insere no grupo Edifício, ele se aproxima do universo acadêmico paulista e nele tenta inserir-se. Por um golpe do acaso transfere-se para São Paulo e passa a trabalhar na prestigiosa Livraria Jaraguá, então de propriedade de Alfredo Mesquita, fundador da Escola de Arte Dramática (EAD). Este, em texto memorialista, lembra os áureos tempos da livraria. Escreve Alfredo: “Durante a longa viagem aos Estados Unidos e à Europa, substituiu-me na direção [da Livraria] o amigo Francisco Iglésias, mineiro, bolsista da USP, posteriormente professor da Universidade de Minas, considerado por um dos seus Reitores como a maior cabeça daquela instituição” (Mesquita, 1979, p. 43). Os melhores amigos paulistas de Iglésias, segundo Jacques, são Antonio Candido, Lourival Gomes Machado e Paulo Emílio Sales Gomes. Trata-se de matéria ainda nebulosa, mas depreendemos das poucas informações que seus novos amigos são escritores, críticos e jovens professores, que fizeram parte da revista Clima.[4] Se a hipótese for verdadeira, teremos de dar conta, na formação intelectual de Iglésias, de outras relações perigosas, para usar adjetivo do seu agrado ? as que ele mantém com os jovens intelectuais e universitários paulistas e o seu ideário político.

Tomemos Antonio Candido como guia, já que antes o fora na compreensão do peso e valor da poesia de Drummond nos dois anos que se seguiram à derrocada da ditadura Vargas. Ele nos vai fornecer valiosa pista para mostrar como um quartel de século depois da formatura e da experiência Edifício, em dois ensaios da coletânea História e ideologia, Iglésias se apega às suas origens pelo viés paulista[5]. Responde Candido a Mário Neme:

Aliás, se você me perguntar qual ‘o’ dever específico de nossa geração, eu não saberei responder. Mas se me perguntar qual poderia ser, no meu modo de sentir, um rumo a seguir pela mocidade intelectual no terreno das ideias, eu lhe responderei, sem hesitar, que a nossa tarefa máxima deveria ser o combate a todas as formas do pensamento reacionário. Nos domínios da inteligência, Mário Neme, a Reação assume os aspectos mais díspares e mais cavilosos. Se insinua por todo canto. E, num trabalho monumental de obstrução, ? tanto mais monumental quanto exercido inconscientemente por muitos intelectuais,? breca em todas as curvas a expansão do progresso humano e da inteligência livre” (Neme, 1945, p. 37, grifos nossos).

Em seguida, Candido declina os três caminhos do pensamento que, no Brasil, são altamente tendenciosos: “as filosofias idealistas, a sociologia cultural e a literatura personalista”. Sobre a segunda, personificada pelas últimas obras de Gilberto Freyre, dirá uma das suas frases de maior efeito político: “aí está um caso em que o método cultural carrega água para o monjolo da Reação” (Neme, 1945, p. 39).

Para finalizar, isolemos o caso Fernando Pessoa (1888-1935) tal como visto por Iglésias. Tentaremos depreender do pioneiro ensaio escrito sobre o programa político do poeta luso uma metodologia de leitura da obra literária pelo historiador Francisco Iglésias.

A originalidade da abordagem do texto literário por Iglésias reside no fato de que, na análise e avaliação do fenômeno artístico, ele inverte os procedimentos tradicionalmente estabelecidos pelos cientistas sociais. O texto propriamente literário ? para nos restringir aos limites deste artigo ? é sempre lido por eles a partir do contexto econômico, social e político que o informa. É difícil encontrar um cientista social que, diante do levantamento e análise de um contexto retrógrado que, numa obra literária, alicerça ideologicamente o drama poético, julgue a esta digna de interesse para os contemporâneos e os pósteros. É dura e contundente ? muitas vezes definitiva ? a avaliação que fazem do autor e da obra. O adjetivo que apõem tanto a um quanto à outra é sempre o de reacionários. Romancistas e poetas de pensamento reacionário são dignos do desprezo da História e de todos.

Iglésias inverte os procedimentos. Ele contextualiza a leitura da História pelo texto literário para salvar a este de intromissão duvidosa. Em lugar de nos levar a concluir que Fernando Pessoa é apenas mais um moderno escritor reacionário, à semelhança do que foi dito e escrito, por exemplo, sobre o poeta Ezra Pound ou o romancista Louis-Ferdinand Céline, afirma que é ele “o maior poeta da língua portuguesa”. Ao inverter os procedimentos clássicos dos cientistas sociais, Iglésias pode ser impiedoso, e o é, na análise do reacionarismo de Fernando Pessoa sem, no entanto, arranhar ainda que de leve a alta qualidade da sua poesia[6]. A fim de operar a inversão metodológica, Iglésias assume, num primeiro momento, restrições que devem ser interpretadas com certo cuidado. A primeira restrição aparece sob a forma de exclusão. Diz ele que não vai abordar a poesia de Fernando Pessoa; tratará, antes, do seu pensamento político, ou melhor, corrige-se ele, vai tratar dos “estudos e anotações de natureza política que deixou ou [das] atitudes políticas que assumiu” (Iglésias, 1971, p. 236. Também p. 245 e p. 290)[7]. A segunda restrição aparece sob a forma de limite disciplinar. Diz ele que, diante da complexa e multifacetada obra de Fernando Pessoa, não trabalhará como crítico literário, mas como “estudioso da história das ideias”.

Ambas as restrições são em parte verdadeiras e em parte falsas, mas fazem parte de uma sofisticada estratégia de leitura do texto literário por um historiador. Tanto é verdade que as duas restrições não são totalmente verdadeiras, que começa a análise do seu objeto pela famosa heteronímia do grande poeta cuja origem, como se sabe, é de fundo histero-neurastênico. Iglésias afirma com tranquilidade que iniciará o seu estudo sobre o pensamento político de Pessoa por abordar a questão de maneira paradoxal, ou seja, pelo modo como o poeta encontrou na multiplicidade dos nomes a sua unidade. É, pois, pelo viés inusitado da produção literária que começa a “explicar as ideias e posições políticas” do pensador português. Em página posterior consignará de maneira definitiva o modo como encara a identidade do poeta: “Em vez de significar limitação – a falta do encontro da Unidade –, traduz riqueza – a multiplicidade coerente e autêntica. Na divisão é que [Fernando Pessoa] se encontrou e se afirmou” (1971, p. 242-3).

Antes de pôr as ideias políticas reacionárias de Pessoa contra a parede, Iglésias analisa a questão dos heterônimos, valendo-se da melhor bibliografia então à disposição do historiador. Dessa forma, pôde o historiador estabelecer com toda clareza o princípio da contradição entre discursos dogmáticos como traço fundamental para explicitar o contraste irremediável que existe entre os valores estéticos do discurso poético e os valores ideológicos do discurso político. São duas entidades discursivas que não se casam na obra de Fernando Pessoa e, pelo tom de cada uma delas, guardam autonomia ao mesmo tempo que se afirmam pela contradição[8]. A avaliação delas pelo historiador virá posteriormente. Aproveitando-se da famosa dicotomia estabelecida por Oscar Wilde, Iglésias concluirá que o gênio de Pessoa está na obra poética, já o talento e certa originalidade, no desenvolvimento das ideias sociais (1971, p. 246). Cita Iglésias trecho de carta que o poeta escreveu a Miguel Torga: “Nunca sou dogmático, porque o não pode ser quem de dia para dia muda de opinião […]”, para em seguida comentar: isso não impede que “o tom dogmático seja o que mais frequentemente usa, na prosa e até na poesia” (1971, p. 238)[9].

De posse desses dados conflituosos e com a ajuda de confissões do poeta e de leituras próprias, Iglésias desce ao profundo da crise existencial do autor moderno, cujas raízes se encontram em Shakespeare e ganham viço em poetas como Antero de Quental, cujo “mal era a histeria”, ou em prosadores como o suíço Amiel, que consignou em diário as tramas que “a impotência da vontade” maquina. A Amiel Pessoa dedicará significativo poema, onde se lê: “Inúteis dias que consumo lento/ No esforço de pensar na ação”. Interessava-lhe o político, mas não a vida partidária (1971, p. 252). Importante notar que, se no plano literário a “ansiedade de influência”, de acordo com a fórmula de Harold Bloom, é enorme, já no plano dos escritos econômicos, constata Iglésias, “não há citações ou apelos à autoridade de quem quer que seja” (1971, p. 266). “Meus autores, minhas autoridades”, afirmou Norman O. Brown. Sem autores citados, sem autoridades, o discurso político de Fernando Pessoa é autofágico. O mesmo não acontece com o discurso poético, que se apoia numa erudição monstruosa do legado lírico ocidental.

Antes de ser portanto matéria de importância, antes de ser explicitação do contexto para a leitura dos textos poéticos de Fernando Pessoa, o levantamento feito por Francisco Iglésias extrapola o leito propriamente literário que o torna sedutor e abre as comportas da interpretação para a visualização de um fim mais meritório. A análise do contexto econômico, político e social conduz a ele, historiador, e a nós, leitores, ao melhor conhecimento da cultura em que se inserem Fernando Pessoa e a sua obra poética. Fecha-se o círculo hermenêutico sem se que ofenda o brilho literário, embora grande parte da produção discursiva de Fernando Pessoa tenha sido posta à mostra e explicada pelo historiador das ideias[10]. Fernando Pessoa nada mais seria do que um exemplo a mais na longa história da decadência econômica, política e social portuguesa. Escreve Iglésias: “A nação [portuguesa], que teve a sua plenitude no século XV, quando foi pioneira no mundo, mostrando os mais largos caminhos, não se preparou para aproveitar o que conquistara, não se adequou à nova realidade, mantendo-se presa a velhos padrões; regrediu mesmo, como assinalam os seus melhores intérpretes” (1971, p. 292). E continua: “Portugal e Espanha é que mais contribuíram para construir a riqueza do período conhecido por Mercantilismo, mas não tiraram da situação criada o devido proveito, que foi para outros – notadamente a Inglaterra e os Países Baixos. É esse um dos momentos e fatos mais importantes da História Moderna” (1971, p. 292).

Diante de tal realidade, é compreensível “o saudosismo [do poeta], como é explicável até que se apresentem doutrinas salvadoras fundadas em mitos, que têm acolhida pelo povo e são elaboradas por intelectuais” (1971, p. 293, grifo nosso). O reacionarismo do intelectual, transparente nas formas como elabora doutrinas salvadoras para a nação lusa, antes de ser motivo para a explicação e avaliação da sua obra poética é razão para o historiador investigar e denunciar o contexto retrógrado que paradoxalmente tornou possível aquela vida e aquela obra. Historiador brasileiro e pensadores portugueses se entregariam à mesma tarefa intelectual no plano ideológico: a de “desmistificar – e desmitificar – seu presente e sua História, dando-lhe acento de racionalidade, mas o êxito [da tarefa] ainda não foi obtido”. Daí o retorno à questão do pensamento reacionário em 1971, questão que ainda nos incomoda nos anos 2000, brecando a expansão do progresso humano e da inteligência livre, para retomar as palavras de Candido.

Iglésias nos diz que o discurso poético e o das ciências sociais coexistem como discursos dogmáticos em Fernando Pessoa, mas não se situam no mesmo plano. São autônomos e vivem separados. A obra poética não é a causa do reacionarismo, é antes a consequência acidental dos condicionamentos econômicos e sócio-políticos. Iglésias reconhece, como assinalamos, o valor do primeiro discurso pela alta voltagem lírico-sentimental que o poeta conseguiu imprimir aos versos. Quanto às ideias de Fernando Pessoa sobre as ciências sociais, elas “pouco ou nada representam. Se não chegam a existir para a ciência social, também não contam para Fernando Pessoa enquanto autor – a não ser no aspecto de esclarecimento de sua posição ante problemas sociais. Não lhe enriquecem a obra criadora, mas, para os que amam a sua poesia e se interessam por sua personalidade, a leitura é feita com paixão” (1971, p. 272). Fascínio pela distância, interesse pela face vencida da moeda ideológica e razão para escrever criticamente o avesso do sentido da História encontram o seu fundamento no amor do historiador pela extraordinária obra poética de Fernando Pessoa.

Como um poeta tão extraordinário pode ser tão reacionário nos seus escritos políticos? Eis o enigma Fernando Pessoa, que só um historiador apaixonado pela literatura pode começar a deslindar.

Alguns dos antigos integrantes da revista Edifício com o autor do artigo: sentados, Wilson Figueiredo, Autran Dourado e Jacques do Prado Brandão; de pé, Silviano Santiago
Alguns dos antigos integrantes da revista Edifício com o autor do artigo: sentados, Wilson Figueiredo, Autran Dourado e Jacques do Prado Brandão; de pé, Silviano Santiago

* Silviano Santiago (1936) é professor, romancista e crítico literário. Foi três vezes vencedor do Jabuti – com Em liberdade (romance, 1982), Uma história de família (romance, 1993) e Keith Jarrett no Blue Note (contos, 1997). Seu romance mais recente, Heranças, recebeu o Prêmio ABL de Ficção 2009. A coleção de ensaios O cosmopolitismo do pobre (2005) recebeu o prêmio Mário de Andrade da Biblioteca Nacional. É professor emérito da Universidade Federal Fluminense e escreve nos principais veículos da imprensa brasileira. Em 2013 lançou Aos sábados pela manhã, coleção das colunas publicadas em O Estado de São Paulo, recebeu o Prêmio Machado de Assis pelo conjunto da obra, dado pela Academia Brasileira de Letras, e lhe foi outorgado pela Universidade do Chile o título de Doutor Honoris Causa. Livros seus estão traduzidos ao inglês, espanhol e francês.


Referências

ANDRADE, Carlos Drummond de. O observador no escritório. Rio: Record, 1985.

ANDRADE, Oswald. Ponta de lança. São Paulo, Globo, 1991.

CANDIDO, Antonio. “Clima”, in Teresina, etc. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.

COSTA PINTO, Antônio. “Modernity versus Democracy? The mystical nationalism of Fernando Pessoa”, in: The intellectual revolt against liberal democracy 1870-1945. Jerusalém, The Israel Academy of Sciences and Humanities, 1996.

IGLESIAS, Francisco. História e ideologia. São Paulo, Perspectiva, 1971.

MESQUITA. Alfredo. “No tempo da Jaraguá”, in Esboço de figura, homenagem a Antonio Candido. São Paulo: Duas cidades, 1979.

MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da cultura brasileira. São Paulo, Ática, 1977.

NEME, Mário (org.). Plataforma da nova geração. Porto Alegre, Globo, 1945.

PONTES, Heloisa. Destinos mistos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

Notas

[1] Para uma leitura daquele momento histórico, no campo das artes, leia-se do autor: “Sobre plataformas e testamentos” (Andrade, 1991, p. 7-22).

[2] Continua Drummond: “A ideia de uma associação de escritores livres, sem direção sectária, parece inconcebível para eles [comunistas], que, em vez de convivência pacífica, preferem assumir o domínio pleno da agremiação” (Andrade, 1985, p. 78).

[3] Os versos finais do poema, “O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,/ a vida presente”, esclarecem os iniciais, “Não serei o poeta de um mundo caduco./ Também não cantarei o mundo futuro”. O poema se encontra no livro Sentimento do mundo.

[4] Para o melhor conhecimento da geração, consultem-se Candido, 1980 e Pontes, 1998. Numa primeira versão do seu depoimento, posteriormente corrigida, informa Candido: “Éramos ligados também com rapazes de Belo Horizonte [que depois constituíram o grupo da revista Edifício], tendo Fernando Sabino sido nosso colaborador” (p. 170). Entre uma versão e a outra, percebe-se o dedo zeloso de algum mineiro.

[5] Para o estudo da pista que Candido nos fornece, deve-se consultar o capítulo III Ideologia da cultura brasileira (Mota, 1977), em particular a seção “Antonio Candido e o combate às formas de pensamento reacionário”, p. 126-132.

[6] As últimas linhas do ensaio esclarecerão de vez a posição do historiador: “Fernando Pessoa foi poeta e por sua obra deve ser julgado. Tudo o mais é acidental e de importância secundária, comparado à poesia que deixou” (Iglésias, 1971, p. 298).

[7] Em datas posteriores ao trabalho de Iglésias, foram publicadas duas coletâneas com os artigos políticos de Fernando Pessoa. Uma em três volumes, sob a responsabilidade de Joel Serrão [1979-1980] e a outra, em dois volumes, sob a responsabilidade de Antônio Quadros [1986]. Para informações sobre estas e para uma leitura menos “literária” e menos contundente da problemática ideológica pessoana, consultar: Costa Pinto, 1996, p. 343-355.

[8] O tom dogmático no poema e na reflexão social se dobra em Fernando Pessoa pelo elogio da matemática como lógica superior e transitável por cima das diferenças discursivas. Segundo Iglésias, “um poeta que saiba o que são as coordenadas de Gauss tem mais probabilidade de escrever um bom soneto de amor do que um poeta que o não saiba” (Para este e outros exemplos: 1971, p. 270).

[9] A contradição entre discursos dogmáticos, por sua vez, tornará pouco eficientes, ou inúteis, outras formas de discurso praticadas pelo poeta, por exemplo o jornalístico. Pessoa “não se definia, ou era contraditório e paradoxal, impróprio para o jornalismo, para o doutrinário ou proselitista” (1971, p. 250). O discurso jornalístico, acrescentamos, torna-se panfletário e o doutrinário, partidário.

[10] Ver, a propósito, a leitura que faz do livro Mensagem (1971, p. 287-291).