Este ensaio foi apresentado no seminário Espécies de Espaço, realizado na PUC-Rio e depois publicado em livro pelos organizadores. Como em muitas outras vezes, foi Renato Cordeiro Gomes, amigo e parceiro da vida toda, quem me incentivou a escrevê-lo. Vai reproduzido aqui, com poucas modificações, como homenagem ao grande estudioso das cidades, autor de Todas as cidades, a cidade.[1]
Em janeiro de 1958, Rubem Braga publica aquela que se tornará uma de suas mais conhecidas crônicas, “Ai de ti, Copacabana”, exercendo mais uma vez a maestria que muito contribuiu para dar à crônica, no Brasil, prestígio tanto como forma de jornalismo quanto de literatura, especialmente pela posição única que o autor ocupou em nosso cânone: ser considerado um grande escritor tendo sido, por toda a vida, unicamente cronista.
Capaz de moldar sua escrita ao tema escolhido, lírico diante da borboleta, coloquial ao descrever a cena de rua, dramático ao falar dos personagens da cidade, nesta crônica Rubem Braga assume um tom bíblico, senhor de mares e terras, arrebatado pela defesa de seu espaço, de seu território. Demiurgo, capaz de prever o futuro, o cronista ergue-se ameaçadoramente sobre os vendilhões que avançavam às joias da princesinha. E, sem piedade, prevê a todos, a Copacabana e a seus habitantes, futuro negro.
Diz Rubem Braga:
1. Ai de ti, Copacabana, porque eu já fiz o sinal bem claro de que é chegada a véspera de teu dia, e tu não viste; porém minha voz te abalará até as entranhas.
2. Ai de ti, Copacabana, porque a ti chamaram Princesa do Mar, e cingiram tua fronte com uma coroa de mentiras; e deste risadas ébrias e vãs no seio da noite.
Para terminar em enlutada despedida de amante abandonado:
22. Pinta-te qual mulher pública e coloca todas as tuas joias, e aviva o verniz de tuas unhas e canta a tua última canção pecaminosa, pois em verdade é tarde para a prece; e que estremeça o teu corpo fino e cheio de máculas, desde o Edifício Olinda até a sede dos Marimbás porque eis que sobre ele vai a minha fúria, e o destruirá. Canta a tua última canção, Copacabana!
Metafóricas ou não, muitas dessas previsões irão se cumprir nos anos que se seguiriam. Equivocou-se, porém, o escritor ao imaginar que Copacabana cantava sua última canção. Degradada, empobrecida, rodeada por favelas, emparedada por torres de cimento, a Copacabana superpovoada se tornará abrigo dos solitários e tema de poetas e escritores. Espaço de paradoxos, de dores, de desigualdades extremas, a Copacabana que foi tema de Hollywood foi se tornando espaço especial da criação literária.
Não há nisso, porém, ao falarmos de Rio de Janeiro, tão grande ineditismo. É inspirada no estudo que Renato Cordeiro Gomes fez do grande autor do Rio de Janeiro, João do Rio, cronista do Centro da cidade no início do século, não apenas do Centro elegante que se queria Paris, mas do Centro das vielas e ruas escuras, das casa de ópio e outros vícios, que evoco a cidade dos vícios e os vícios da cidade.
Na apresentação que faz do autor para a coleção Nossos Clássicos, Renato cita João do Rio, que, em “A alma encantadora das ruas”, alerta os cariocas: “Olhai os mapas das cidades modernas. De século em século a transformação é quase radical.” Pois é justamente isso que atrai João do Rio, o desejo de falar da “Cosmópolis” – e agora a expressão é de Ribeiro Couto, também lembrado por Renato –, “Cidade do vício e da graça”. Mais adiante, usando o pseudônimo de Godofredo de Alencar, Paulo Barreto/João do Rio define o interesse do escritor, do artista, de forma provocante e bastante contemporânea: “Nas sociedades organizadas interessam apenas: a gente de cima e a canalha.”
Copacabana incorpora-se à cidade em 1892, quando é inaugurado o Túnel de Copacabana, o Túnel Velho, mas é depois da abertura do Túnel Novo, em 1906, que começa a se transformar de areal em espaço de crescimento da cidade e atração para visitantes e estrangeiros. Em 1910, Copacabana tem vinte mil habitantes e, em 1923, oferece-se ao gosto europeu com a inauguração do Copacabana Palace e sua arquitetura destinada a lembrar hotéis de elegantes balneários franceses.
É a partir daí que Copacabana passará a frequentar a literatura. Com o gosto art decó, o mesmo que vai inspirar a construção dos cinemas da cidade e a novidade dos arranha-céus, Copacabana surge no romance brasileiro já como espaço de elegância e sedução. No início dos anos 1920, Benjamin Costallat coloca sua personagem de maior sucesso, a fútil Mlle. Cinema, na varanda de um dos edifícios art déco que surgiam no bairro – como os edifícios Itaóca (rua Duvivier), Tuyuty (rua Ministro Viveiros de Castro), ou os edifícios Ophir e Guahy (rua Ronald de Carvalho) –, a contemplar a nova avenida. Assim se inicia O marido de Mlle. Cinema:
Rosalina, na janela, observava.
Pela Avenida Atlântica, cruzavam-se automóveis velozes.
A praia, com seu colar iluminado, estendia-se muito branca na noite escura.
Um lindo luar prateava o oceano.
As meninas que faziam o footing com “o passo e o andar de modelos parisienses” não poderiam imaginar que o bairro abrigasse, no início do século seguinte, 161.178 habitantes, ou seja, 3,4 habitantes por metro quadrado, tendo entre seus moradores 16,7 por cento de idosos e servindo de refúgio especialmente para aqueles que a vida tornou solitários: viúvos (10,8%) e divorciados (6%.)
A verdade, porém, é que no início da década de 1960 todo um ciclo da vida de Copacabana chegava ao fim. A Copa das boates elegantes, dos pianos em nightclubs, a Copa das crônicas de Antonio Maria, melancólico intérprete maior do bairro que começava a desaparecer.
Chegados os anos 60, mais precisamente depois de 1964, Copacabana e a crônica começam a definhar. Gênero que só viceja em liberdade, a crônica carioca padecerá de raquitismo durante bem duas décadas. Os anos do regime militar inibirão o país, a cidade, o bairro, o jornalismo. E Copacabana começará sua decisiva transformação.
No decorrer dos anos 1960, parca será a presença de Copacabana em nossa literatura. Clarice Lispector deixará que sua sombra – a do Leme, em especial – surja por entre as narrativas, como em A paixão segundo G.H., em que a narradora se encosta à murada da área para fumar um cigarro: “Olhei para baixo: treze andares caíam do edifício.” Mais do que o Leme da escritora, nesta e em outras obras, é certo espírito opressor do espaço fechando-se em torno dos habitantes que povoa sua ficção.
Com a transferência da capital para Brasília, a cidade começa a se modificar. A vida política que se organizava em torno de copos de uísque nos apartamentos ou boates de Copacabana espalha-se pelo país. É nos anos 1970 que as previsões de Rubem Braga vão se fazendo mais nítidas. A decadência da noite, cuja vida se transferira para Ipanema, a especulação imobiliária, o aumento de moradias empobrecidas são, de algum modo, compensados pela reforma urbanística que moderniza o bairro, com o aterro das praias e o alargamento da avenida Atlântica.
O deslocamento da vida boêmia e do convívio de intelectuais e políticos fará desta década o momento de maior modificação na vida do bairro, tomado pelos automóveis da era JK e com o gabarito das construções liberado.
Adriana Prieto em Lúcia McCartney, uma Garota de Programa (1971), de David Neves
No início de 1970, com Um edifício chamado 200, o dramaturgo Paulo Pontes torna célebre o maior “cabeça de porco” do bairro, o Barata Ribeiro, 200, com seus 507 apartamentos distribuídos em doze andares. Mudou de nome e numeração, mas o Edifício Richard, no número 194, continua sendo o que disse o escritor João Antônio: “um dos crimes mais consideráveis da nossa construção civil. E um dos pontos mais críticos a que pode chegar a chamada civilização do quarto-e-sala.” Ô, Copacabana, de João Antônio, celebrará, em livro de 1978, as previsões de Rubem Braga.
Nesse momento, a própria cidade já se modificara. E seguida às remoções do governo Lacerda, ao surgimento de Vila Kennedy e da Cidade de Deus, a cidade vai-se partindo, como vai mostrar, bem depois, Zuenir Ventura.
Lembro então, aqui, a importante pergunta que faz Henri-Pierre Jeudy em seu Espelho das cidades:
Mas pode-se verdadeiramente detestar uma cidade? E quais seriam as razões? Sua ausência de centro? Seu aspecto desordenado? A feiura de suas construções?
Sua violência cotidiana? Todas as razões para detestá-la terminam por lhe conferir um atrativo. Assim é a natureza humana, que se deixa estranhamente atrair pelo que crê abominar.
Completando mais adiante:
A cidade resiste ao que se espera dela, sobretudo quando não se espera mais nada, e ao que vão fazer com ela, sobretudo quando se crê poder decidir o que ela se tornará.
João Antônio é um caso peculiar de amor a Copacabana. Nascido e criado em São Paulo, muda-se para o Rio de Janeiro no fatídico ano de 1964. Vez por outra tenta voltar para São Paulo, inutilmente. É no Rio, e mais especialmente em Copacabana, que o autor de Malhação do Judas Carioca encontra material para sua literatura, tão malcomportada quanto sua própria vida. Pelas ruas do bairro que atravessa nos horários mais improváveis ou do alto de seu apartamento na praça Serzedelo Correa – que assim define: “ela também é Rio de Janeiro, além de norte, sul, nordeste do país e estranjas”. Com essa espécie de novela-reportagem (chamava a alguns de seus escritos “conto-reportagem”), é aquela Copacabana de todos os vícios e algumas virtudes que entra de vez para a literatura brasileira.
Em dura e corajosa narrativa, que escala todos os personagens que habitam o bairro das manhãs às madrugadas, do Leme à Galeria Alaska, da domingueira pau-de-arara à prostituição da rua Prado Júnior, João Antônio vai apresentando também o salva-vidas à beira-mar, os fanáticos por futebol, o suburbanos que chegam no fim de semana, os moradores do antigo Barata Ribeiro 200 celebrizado por Paulo Pontes e de quarto-e-salas semelhantes, como o edifício Master, de 1955, que deu origem em 2002 ao premiado filme de Eduardo Coutinho.
Do alto das favelas Babilônia, Pavãozinho, Cantagalo, aos becos de “botequins acrilizados”, o interesse de João Antônio era bem definido. A Copacabana que lhe interessa não é a de saudades, nem do cotidiano regular, trabalhador. “Os antigos são uns chatos. Ficam falando uma porção de bagulhos que não tem nada a ver”, e, mais adiante: “Nosso bairro mantém certas manias ridículas, como conservar a Confeitaria Colombo, da rua Barão de Ipanema ou A Marisqueira, da Barata Ribeiro (…) Nenhum desses lugares tem a vida, a confusão e a badalação de uma Adega Pérola.”
O escritor termina o livro com a apologia da contradição, dos paradoxos, em turbilhão amoroso que caracteriza grandes momentos de sua obra. Vale a citação:
Copa injuriada, mal lambida, prejudicada, velha antes do tempo, mijada e cagada pelos cachorros, marafona fanada, os letreiros das fachadas de tuas lojas estão ficando passados, marafona muquirana, muquira, lambona, estuprada, matas cachorro a grito e jacaré a beliscão, haja-te Deus, pasto de energúmenos, caxinguenta outrora linda, atopetada de carros e viventes até onde não aguenta e diz chega. És a que nos resta. (…) É a infeliz, a que foi, calada. Lá no fundo dos olhos, morteiros hoje, de cadela mansa, onde o tempo se esconde, ela ainda atiça, volta e meia, depois da espreita, matreiro, debochado, raro, um brilho, aquele que espeta, chamado dos dezoito anos.
A Copacabana que entra nos anos 1980 é o espaço por onde circulam culturas múltiplas, forçadas pela densidade demográfica crescente a um convívio quase íntimo. A proximidade entre o morro que se expande e o asfalto que encurta toma aí uma configuração inédita que irá, mais tarde, se reproduzir muitas vezes pela cidade.
Provocativamente, falo de segmentos urbanos de desejos profundamente diferentes que circulam por um mesmo espaço geográfico, partilhando, queiram ou não, das mesmas imagens na noite ou no dia. Falo de um convívio com os mesmos cenários, cercados pelos mesmos habitantes sempre que circularem pelos lugares públicos. O texto de João Antônio aparece como um importante turning point na constituição de um imaginário artístico que feche o foco, seja como for, no bairro de Copacabana.
A meu ver, a partir daí, o discurso literário que se ocupará de Copacabana será, sobretudo, a tradução de dois sentimentos. O primeiro é o desejo de encontrar nesse espaço o refúgio da solidão. A intimidade forçada dos edifícios, o trânsito devorador, o ar pesado pela poluição são também antídotos contra o silêncio forçado, contra o excessivo despertencimento. Ao cimento claustrofóbico, bem ou mal, se opõem as praias, importantes sobretudo por estarem onde estão, com sua clareza, sua beleza consoladora. A noite agressiva é, de certa forma, o oposto do abandono, do desamparo.
O outro é a constatação de que a partilha desse espaço de vícios e pecados, de obscenidades, de infrações, é também o espaço da eliminação da censura. Copacabana surge então como suspensão do controle (a despeito do ímpeto de síndicos, vizinhos, igrejas evangélicas) das ruas ao imaginário literário.
É com uma literatura que tem Copacabana como espaço de criação que surge aquela que me parece ser a mais importante e consistente autora da literatura feminista dos anos 1970: Sonia Coutinho. São dessa fase os contos de Nascimento de uma mulher, Uma certa felicidade e Os venenos de Lucrécia. O último verão de Copacabana é de 1985.
De Os venenos de Lucrécia cito o texto em um único parágrafo – e fôlego – do excelente “Doce e cinzenta Copacabana”:
Acorda com o quarto mergulhado em cinzenta penumbra, embora talvez não seja tão cedo quanto parece, o apartamento fica em andar baixo, de fundos, dá para o quadrado de edifícios de um quarteirão não muito extenso de Copacabana, o céu só é avistado erguendo-se bem alto a cabeça (tenta inutilmente espreitá-lo, de longe, através da cortina semicerrada) – um “céu amuralhado” – abre os braços e, de um lado, deitada na grande cama de casal comprada num brechó a preço de nada, toca em pilhas de roupas emboladas, livros, bolsas, papéis (sua mãe jamais compreenderá como se pode dormir numa bagunça dessas e, ainda mais, sem nunca usar camisola, toda vestida ou, como agora, sem roupa nenhuma), do outro lado tateia a mesinha de cabeceira, em busca do relógio: parado, naturalmente, (…) não tem compromisso certo de trabalho, depois que deixou o emprego de fotógrafa de jornal – não! (torna a repetir) não foi uma demissão! – estavam com excesso de pessoal e ela queria mesmo ficar mais disponível, sentia-se muito presa, trabalhando até nos fins de semana, sem tempo para se dedicar à fotografia de arte – e desde quando ganhou o prêmio do Salão não pensa em outra coisa, tem talento, dizem, só que, anda descobrindo, o emprego era bem mais divertido, uma coisa meio pioneira, despertava atenção e merecia algumas regalias, uma mulher fazendo cobertura fotográfica até da Polícia, aos sábados, agora só aparecem coisas desinteressantes, fotos de aniversários de criança e casamentos, felizmente tem suas economias, dinheiro não é problema imediato, gosta apenas da palavra, free-lance, quem sabe uma definição para sua maneira de viver, não é uma free-lance da vida? e às vezes acha até que está perdendo o medo, enfim já cumpriu um itinerário não tão curto, a partir da primeira trepada com aquele namorado lá da cidadezinha (ela tinha dezessete anos) e o que sofreu dos pais, quando descobriram (um ano no colégio interno, ouvindo as freiras falarem do que acontece quando se perde a pureza), e a fuga depois, logo que pôs a cabeça no lugar, para o Rio, para Copacabana.
Dos ricos ou visitantes estrangeiros da avenida Atlântica aos miseráveis andrajosos, na Copacabana que chega ao século XXI, o escândalo não é mais possível. Surge aí a positividade de uma decadência. As coleções de monstruosidades tão caras ao século XIX incorporaram-se às ruas do bairro. Seres de identidade sexual ambígua ou dupla, adultos/crianças e crianças/mulheres, deformados ou modificados, pivetes e aposentados, qualquer ser habita as ruas de Copacabana.
Ao sofrimento dessas exposições corresponde também a liberdade do mostrar-se. Os amores vendidos convivem com os amores liberados. Todas as violências são possíveis, mas todos os amores são também possíveis. O kitsch dos objetos turísticos convive plenamente com obras artísticas na potencialidade infinita desse território urbano.
Essa visão da cena urbana em liberdade sintetiza-se de forma excelente em um momento da poesia de Italo Moriconi, em Quase sertão, de 1996:
Meu novo amor é gente simples do povo.
Tem 19 anos, negro rutilante.
Entre a última vez que nos vimos (tempos atrás)
e hoje cedo
já trocou de nome pra Rick.
O poema se completa magnificamente pelo título: “Copacabana”.
Para abreviar a trajetória até a literatura contemporaníssima, a literatura do “agora, agora” que vem me interessando de forma especial, pulo para o final dos anos 1990, a caminho do início do século XXI.
A Copacabana que chega ao final do século descobre uma interlocução nova com o universo global, antes de mais nada por seus aspectos menos cobiçáveis. A violência, as populações de rua, os desabrigados, as vítimas dos excessos do capitalismo, o desapreço à natureza, os resultados dolorosos da desigualdade circulam como imagens a viajar por mídias de todo o mundo, parecendo povoar – ainda que em proporções diferenciadas – cenas protagonizadas por todas as cidades globais.
São muitas as cidades feridas, para usar a expressão feliz de Barbara Freitag. E é essa mesma especialista em cidades que estabelece a distinção entre cidades em ruínas e cidades feridas. Diz ela:
Diferentemente de “cidades em ruínas” ou “cidades mortas”, onde a vida já foi extinta, depois de ataques externos ou enfermidades internas, a “cidade ferida” ainda dispõe de uma população urbana disposta lutar pela “cura”de sua cidade, esforçando-se por tratar das feridas e devolver à cidade outrora orgulhosa a dignidade e a beleza que a distinguiam das outras.
Dentre as vozes que se manifestam como porta-vozes desse esforço pela busca da dignidade, ainda que sem qualquer intenção expressa ou exercício de militância démodé, estão os diversos escritores contemporâneos que falam de dentro do estômago da baleia: Silviano Santiago, Sérgio Sant’Anna, Arthur Dapieve e mesmo um visitante como Marcelo Mirisola do conto “Rio Pantográfico”.
Foi ainda com essa voz que João Paulo Cuenca começou sua carreira de escritor em 2003 com Corpo presente:
Copacabana amanhece isolada do resto do mundo por pedras e pelo mar. O Túnel Novo abre caminho pra onde a vida parece desenrolar sem culpa. O ressentimento dos duzentos mil moradores começa a escorrer pelos bueiros dos botecos em cada esquina, cinco por quarteirão. São poucos os que veem o dia surgir vermelho. Vagabundos, garis, entregadores de jornais, meia dúzia de travas, putas cansadas, cachorros e alguns velhos andando na praia. (…) O sol se desprende do mar, esquenta o sono das putas, gringos por trás de cortinas prateadas, mendigos e pivetes sob marquises, cobertores imundos. Ilumina janelões na avenida Atlântica. Brilha em cada fresta de ar-condicionado, desenha o teto de conjugados porcos, superpovoados, ilumina quadros caros, coberturas e a piscina do Copacabana Palace, espia basculantes, esquenta as lágrimas de crioulas gostosas, cicatrizando feridas, pingando sangue pelo chão, a oração de beatas que rezam ajoelhadas em frente do espelho de cômodas gastas, o passeio de cachorrinhos estúpidos, o tédio dos porteiros, essa gente sem esperança que dorme cada vez menos enquanto seus dias somem num ralo comum. O sono dos velhos é cada vez menor. Amanhece em Copacabana, as crianças vendendo pó na Djalma Ulrich. Sonhos caindo do céu. Amanhece por trás dos prédios, amanhece o que é feio no que é belo. Amanhece até que não exista diferença.
Nem princesinha do mar, nem Iemanjá salvadora, nem marafona muquirana. Simplesmente, Copacabana é aqui.[2]
Helena Ignez em Copacabana Mon Amour (1970), de Rogério Sganzerla
* Beatriz Resende é editora da Revista Z Cultural.
Notas
[1]Espécie de espaços: territorialidades, literatura, mídia (Belo Horizonte: UFMG, 2008) foi publicado com organização dos responsáveis pelo seminário, Izabel Margato e Renato Cordeiro Gomes. Todas as cidades, a cidade teve sua primeira edição em 1994 (Rio de Janeiro: Rocco) e, republicado em 2008, tornou-se referência para estudos sobre literatura e cidade.
[2] Se quisermos retomar o tema deste estudo/homenagem ao meu amigo que morava na rua Júlio de Castilhos, será fundamental nos dedicarmos ao importante romance de Beatriz Bracher, Anatomia do Paraíso (2015), que se passa todo na Copacabana de nossos dias.
“O fundo daquela história […] era verdade; mas, ao transmitir os detalhes, o junker inventava e se vangloriava.”
Liev Tolstói, “Sebastopol em agosto de 1855”
Entre 17 de outubro de 1854 e 11 de setembro de 1855, a cidade de Sebastopol, na península da Crimeia, foi palco de um dos episódios mais sangrentos da Guerra da Crimeia (1853-56), entre a Rússia czarista e a aliança liderada pela França de Napoleão III. Enfrentavam-se duas forças imperialistas – as antigas nações da Europa ocidental e a Rússia que se ocidentalizava. Liev Tolstói participou das batalhas e essa experiência serviu de base para três contos longos, publicados em 1855 como Crônicas de Sebastopol e que seriam retomados em cenas de Guerra e paz (1869). A experiência também serviu para uma transformação em Tolstói. Diante dos horrores da guerra, o escritor, cuja literatura discute e ao mesmo tempo é veículo do esforço russo de modernização e ocidentalização, começa a questionar o sentido da defesa da pátria grande e a validade da guerra. Escreve ele no início do segundo conto, “Sebastopol em maio”:
Muitas vezes me veio um pensamento estranho: e se um dos lados em guerra propusesse ao outro enviar apenas um soldado de ambos os Exércitos? […] se de fato as complexas questões políticas entre representantes racionais de criaturas racionais devem ser resolvidas por meio de uma luta, que lutem esses dois soldados – um para tomar a cidade, o outro para defendê-la.
Esse raciocínio apenas parece paradoxal, mas é justo. […] Das duas, uma: ou a guerra é uma loucura, ou, se as pessoas praticam tal loucura, não são absolutamente criaturas racionais, como nos habituamos a pensar, sabe-se lá por quê (Tolstói, 2015, p. 182).
Vale da Sombra da Morte (1855), fotografia de Roger Fenton (1819-1869) que retrata um campo de batalha da Guerra da Crimeia: o palco desocupado. Há duas versões da foto, com e sem as balas de canhão.
Para nós, que conhecemos a transformação por que passou Euclides da Cunha quando, quarenta anos depois da experiência de Tolstói, foi cobrir para o jornal O Estado de S. Paulo a Guerra de Canudos, essa mudança soa familiar. Presenciar a inutilidade da guerra faz com que Tolstói privilegie relatos sobre os indivíduos que estavam na guerra – a insegurança de um oficial, o encontro de dois irmãos que acabam indo juntos para a batalha, os feridos nos hospitais de campanha – e não sobre as grandes decisões dos comandantes e as vitórias heroicas dos generais. Leva-o também a experimentar formas literárias diversas e modernas, misturando gêneros – ficção, reportagem e digressão –, pontos de vista narrativos, registros de linguagem.
É preciso ter como referência essa obra de Tolstói, de 1855, quando lemos o primeiro livro de contos de Emilio Fraia. Sebastopol (2018), que reúne três histórias de Fraia, faz uma clara referência aos contos do jovem Tolstói logo no título, assim como nos nomes de cada conto, que repetem os de Tolstói. E em pelo menos dois pontos o escritor brasileiro dialoga com o clássico russo. Primeiro, Fraia parece citar, nos textos que abrem e fecham o volume, cenas e acontecimentos do livro de Tolstói. Segundo, Fraia repete a pergunta de Tolstói sobre a diferença entre a experiência e o relato da experiência; afinal, o soldado, de volta do terror da batalha, inventa e se vangloria, mesmo que seu relato se baseie numa experiência real.
Este é o primeiro livro que Fraia publica sozinho. O autor, nascido em 1982, escreveu junto com Vanessa Barbara o romance O verão de Chibo (2008), finalista do Prêmio São Paulo de Literatura. É também coautor, em parceria com o ilustrador DW Ribatski, da HQ Campo em branco (2013). Sebastopol, que recebeu elogios de autores como Sérgio Sant’Anna e Marçal Aquino, é uma tentativa bem-sucedida de produzir um livro de contos com unidade temática e formal. O andamento e o tom das três narrativas são similares, assim como a questão que as permeia: o estatuto da ficção e o desencontro entre experiência e narrativa. Embora haja nos três relatos uma carga de não dito e questões abertas que podem ou não ser elucidadas ao longo das histórias, Fraia tem uma linguagem segura e precisa. Além disso, utiliza recursos formais interessantes. No segundo conto, por exemplo, alterna entre os pontos de vista do narrador e dos personagens com destreza, sem recorrer a travessão ou aspas, e entrelaça planos narrativos diferentes (o passado dos dois personagens principais e o presente, em que há o encontro dos dois). O recurso dominante, no entanto, é a metaficção, ou seja, a distribuição de comentários sobre o estatuto da ficção e sobre os limites da narrativa. Como numa piscadela, o livro indica que o leitor precisa procurar uma chave metaficcional para interpretar os contos, que a narrativa ali é um enigma que deve ser decifrado para que se tenha acesso ao verdadeiro sentido da obra.
Um dos elementos metaficcionais mais interessantes utilizados por Fraia é a descrição de obras de arte (livros, quadros, filmes) ficcionais. No primeiro conto de Sebastopol, “Dezembro”, uma ex-escaladora começa a reavaliar a narrativa que construiu sobre sua vida ao assistir a um filme de arte, feito por uma mulher chamada Pikman, que conta uma história muito parecida com a sua.
No vídeo, de tempos em tempos uma mulher surgia, uma mulher de cabelos ondulados, nariz grande e lábios finos. Seria você, senhorita Pikman? Ela nunca encarava de fato a câmera mas narrava a história, que, à medida que se desenrolava, se parecia cada vez mais com a minha, e ao mesmo tempo era completamente diferente também (Fraia, 2018, p. 38).
Esse instrumento metaficcional, que Fraia utiliza com competência, tem uma longa tradição na literatura moderna. Um dos modelos mais fortes, claro, é Jorge Luis Borges. As histórias de Borges estão coalhadas de livros, bibliotecas e mapas inventados e impossíveis. “Exame da obra de Herbert Quain”, por exemplo, é na verdade um artigo sobre um escritor ficcional que teria inspirado o autor em “As ruínas circulares”, outro conto do mesmo livro (Borges, 2007, p. 62-8).
Na literatura brasileira atual, além do gosto borgiano pelo exercício de imaginação, há um diálogo com certas tendências contemporâneas das artes dramáticas e plásticas. Cito alguns exemplos, dos muitos possíveis. Paisagem com dromedário (2010), de Carola Saavedra, é uma tentativa de diálogo da literatura com a arte conceitual. É composto da transcrição de 22 gravações que, descobrimos ao fim, fariam parte de uma instalação. A vista particular (2016), de Ricardo Lísias, é um romance sobre um artista que faz performances e instalações. Uma das obras é uma instalação que reproduz uma favela dentro do museu, inclusive a violência policial a que a população das comunidades desassistidas está sujeita. A obra ficcional descrita por Lísias guarda muitas semelhanças com obras de Lola Arias, artista argentina, especificamente com Chácara Paraíso, de 2007, que encena numa favela cenográfica o treinamento de policiais militares paulistas. Um terceiro exemplo: no conto “Aquele vento na praça”, incluído na revista Granta dedicada aos “melhores jovens escritores brasileiros”, Laura Erber trabalha uma série de referências e conceitos do campo das artes plásticas para imaginar a vida e a obra de artistas (Granta, 2012, p. 25-36).
Há outros exemplos, um pouco mais recuados, nas obras de Sérgio Sant’Anna e Bernardo Carvalho. Em Onze (1995), de Carvalho, parte da narrativa trata de um artista holandês cujo trabalho parece remeter às obras de Cildo Meireles (Zero Cruzeiro, 1974-78) ou de Jeff Koons, com seus jogos com o mercado de arte. Kill, o artista de Onze, falsifica dinheiro para abalar o sistema financeiro. “Ao contrário da arte conceitual ou outras artes, que precisam ser reconhecidas como arte para causar algum impacto – pensem em Duchamp, por exemplo –, ao contrário, o trabalho de Kill perdia-se na realidade, era como um vírus injetado na realidade” (Carvalho, 1995, p. 84), escreve um crítico de arte fictício e, Onze. Nos quase cinquenta anos de carreira de Sant’Anna, há inúmeros exemplos, como os recentes “O homem-mulher II” (Sant’Anna, 2014, p. 139-83), que descreve a obra de um dramaturgo fictício. No mesmo livro, encontramos os contos “Madonna” (p. 55-6), em que um ladrão explica sua relação com uma obra de arte roubada, a Madonna (1892-95) de Edvard Munch; e “Amor a Buda” (p. 128-35), que descreve a escultura Tentação (Tangseng e Yaojing) (2005), de Li Zhanyang (desta vez, duas obras reais, mas “ficcionalizadas” ao se incorporarem ao relato literário).
Essas obras parecem nos dizer que a ficção é capaz daquilo de que nenhum outro discurso é capaz. Só a ficção pode aproximar o pensável do impensável. Podemos, por meio da ficção, pensar objetos que não existem. Com isso, ampliamos o que pode ser pensado. Quando, ficcionalmente, Lísias extrapola a obra de Arias, transformando a encenação da artista argentina numa violência real dentro do mundo ficcional, ele consegue imaginar aquilo que, no mundo concreto, parece impossível; o universo possível feito de palavras tem limites mais amplos do que o universo concreto das artes que trabalham com o corpo e com objetos.
Essa literatura conceitual, porém, corre um risco que o teatro pós-dramático e as artes plásticas conceituais também enfrentam. Não à toa, uma das análises que mais dão conta desse tipo de literatura vem não da crítica literária, mas da crítica da arte. O risco dessa ficção é cair na armadilha que Jacques Rancière identifica na estética relacional do crítico e curador Nicolas Bourriaud: ao antecipar o efeito que se espera causar no receptor, essas obras tendem a “conceitualizar essa identidade antecipada entre a apresentação de um dispositivo sensível de formas, a manifestação de seu sentido e a realidade encarnada desse sentido” (Rancière, 2012, p. 71). Traduzindo os conceitos de Rancière, podemos dizer que essa arte (ou, aqui, essa literatura), embora se proponha a questionar estatutos pétreos da arte ou da ficção “modernas” (a autoria, a originalidade, a separação entre ficção e realidade, a função contemplativa da arte pura), acaba por construir uma identidade entre a forma sensível (a matéria própria da ficção: as palavras, as frases, a narrativa), o sentido correto de sua interpretação e a realidade sobre a qual essa obra fala. São obras que incluem em si sua interpretação e sua própria crítica; obras que, diante do medo de que o conceito esteja cifrado demais, repetem-no, exibem-no claramente. No caso da literatura metaficcional, o risco é que, embora descrevam obras fictícias (ou ficcionalizadas) enigmáticas, os contos e os romances podem ser transparentes. São obras de consenso, não de dissenso.
Qual seria, portanto, a mensagem consensual dos contos de Sebastopol? Volto ao primeiro. Nele, a narradora é uma escaladora que sofre um acidente no Everest e tem as pernas amputadas – como os soldados que vemos ser amputados no primeiro conto de Tolstói sobre a Guerra da Crimeia. Ela se torna palestrante motivacional, mas, certo dia, encontra um filme de arte que parece contar sua história. Essa história é e não é a dela, o que a leva a questionar o estatuto da narrativa. Afinal, o que é mais verdadeiro: a história que ela conta nas palestras e nos livros de motivação, ou a história contada por outra pessoa; a história de superação que ela construiu para si mesma, ou a história, mesmo que imprecisa, narrada do ponto de vista de outra pessoa? O leitor de Tolstói é capaz de identificar aqui a dúvida do narrador das Crônicas de Sebastopol. Os combatentes, quando retornam do campo de batalha, não sabem realmente o que aconteceu e criam uma narrativa que os proteja, uma vez que “durante todo o tempo o combate transcorria numa espécie de sombra e de inconsciência, a tal ponto que tudo o que se passava lhe[s] parecia ter ocorrido em outra parte, em outro tempo, com outras pessoas” (Tolstói, 2015, p. 224).
Oficiais ingleses fotografados por Roger Fenton em 1856: a guerra registrada como teatro
No segundo conto de Fraia, uma reformulação de um texto que o autor havia publicado na revista Granta em 2012, um casal chega a uma pousada desativada no meio de uma região rural. Depois de uma briga, a mulher vai embora, e o homem, o brasileiro-peruano Adán, passa os dias com o proprietário da pousada, bebendo e contando sua vida. Certo dia, Adán some, e o proprietário, Nilo, junto com seu único funcionário, esvazia a piscina para ver se ele morreu afogado. No final da história, Nilo visita um vizinho que quer comprar seu sítio e lá encontra um porco. Seria o mesmo porco que Adán viu um dia perdido no meio da vegetação? O porco está doente e vai ter que ser sacrificado. Nesse momento, Nilo ouve o ronco de um motor. Seria Adán indo embora no Fusca que havia deixado na pousada desativada? O conto termina aberto. Afinal, concluímos, não é possível unificar vida nenhuma numa narrativa linear, e o conto demonstra essa impossibilidade. Lembra-nos o narrador que, quando contamos nossas vidas, narramos histórias que correm paralelas, sem nunca se encontrarem (Fraia, 2018, p. 72). As histórias servem, portanto, para chegarmos a essa conclusão: nenhuma vida cabe numa narrativa uniforme e linear.
No terceiro, mais uma vez uma narradora em primeira pessoa. Nadia, uma estudante universitária com nome russo, começa a trabalhar para um dramaturgo, Klaus, que fez algum sucesso no circuito alternativo no passado, mas agora está decadente. A pedido de Klaus, ela pesquisa sobre um pintor russo, Trúnov, que pintava quadros na região de Sebastopol durante o cerco da cidade. Trúnov faz, na pintura, o que de certa forma Tolstói fez nos contos sobre a Guerra da Crimeira: em vez de pintar o encontro sangrento dos batalhões inimigos, retrata os personagens individuais, na sua solidão e em seu drama pessoal. Lembramos o autor de Guerra e paz, que pede que o leitor veja não o palco amplo da guerra, mas o simples soldado: “Olhe bem para esse soldadinho do destacamento das carroças de carga que conduz uma troica de cavalos baios para beber água, cantarolando baixinho e tranquilo para si mesmo, e logo fica claro que ele não vai se perder na barafunda dessa multidão, a qual, aliás, para ele nem existe” (Tolstói, 2015, p. 163).
No conto de Fraia, Klaus está escrevendo uma peça sobre o pintor, ou melhor, sobre o fracasso de Trúnov em pintar um quadro sobre os horrores da guerra. Na peça, um soldado pede que Trúnov o retrate em batalha. O pintor tenta, mas não consegue. Decide retratá-lo sozinho, como no dia em que o conheceu. Antes de terminar o quadro, recebe a notícia da morte do soldado. Então abandona o trabalho, que ficará esquecido por décadas e só será redescoberto nos anos 1960.
A encenação de Klaus também será um fracasso, como foi um fracasso a tentativa de Trúnov de retratar tanto os horrores épicos da guerra quanto o drama da solidão do soldado. (Algumas das imagens mais famosas da guerra são de Roger Fenton, pioneiro do fotojornalismo, que, no entanto, devido às limitações técnicas da época, retratou principalmente soldados posando, como em uma pintura.) Mais uma vez, é o estatuto da ficção, tanto da pintura quanto do teatro, que é questionado. O que a ficção é capaz de dizer?, pergunta-nos o conto. Nós mentimos ao contar nossa história, como a escaladora; falhamos ao tentar unificar nossa vida em um relato, como Nilo e Adán; só podemos falar de nosso fracasso, como Klaus e Trúnov: só podemos falar do fracasso da ficção como representação de algo externo.
Além do comentário metaficcional sobre o estatuto da narrativa, Fraia espalha ao longo do livro comentários sobre o andamento dos contos. Embora os narradores variem – o conto do meio é narrado na terceira pessoa, ainda que Adán às vezes assuma a narração, enquanto os outros dois têm narradoras em primeira pessoa –, o ritmo lento, a estrutura em blocos curtos e o tom simples mas elusivo unificam os três relatos. Essa proposta de transformar o relato curto em uma experiência de duração, na qual o leitor experimente a temporalidade da narrativa, é anunciada em pontos diferentes do livro. (Entendo aqui duração como o tempo como é experimentado pelo sujeito, ao contrário do tempo cronológico, exterior.) No primeiro conto, a narradora enuncia para seu companheiro de escalada, o italiano Gino: “eu sei que você prefere as longas durações” (Fraia, 2018, p. 43). No segundo conto, Fraia escreve: “As horas seguintes transcorrem como uma partida de pontos longos, longuíssimos” (p. 53), a repetição de “longos”, com a ênfase do superlativo, reforçando a afirmação do ritmo. No terceiro, por fim, a narradora comenta a conversa que teve com Klaus a respeito do acontecimento – a chegada do soldado que pede a Trúnov que o pinte – que deveria dar movimento ao enredo da peça que estão escrevendo: “o tal episódio de muito movimento […] estava longe de ser um episódio movimentado de verdade, porque o que Klaus gostava nas coisas era tudo, menos movimento. Ele gostava do que chamava de tempos longos, de chuva, de molhar bolachas no leite, e, claro, ele gostava de gente maluca e perdida” (Fraia, 2018, p. 103).
Há, por fim, mais um elemento importante nos contos de Fraia. Como já dissemos, as histórias que abrem e fecham o volume são narradas em primeira pessoa, por duas personagens femininas. O autor consegue evitar, na maior parte do tempo, colocar marcas de um discurso feminino e mimetizar os lugares-comuns do que se espera de uma literatura “feminina” ou “intimista”. Essas narradoras, no entanto, compartilham com o narrador e os personagens do segundo conto, o único em terceira pessoa, o mesmo tom reflexivo. Narradores e personagens meditam sobre o estatuto da narrativa e a natureza da experiência. No entanto, essas reflexões ocasionalmente soam deslocadas, como se um grande narrador, aquele que unifica o tom e o ritmo lento dos relatos, estivesse falando pela boca dos personagens e das narradoras.
Logo no primeiro conto, por exemplo, a narradora, ponderando sobre a experiência que lhe valeu a amputação, se pergunta: “Quem é que pode pensar que num dia se acorda bem, alimentando o sonho de escalar uma montanha, e no fim da jornada um pedaço do seu corpo simplesmente não existe mais?” (Fraia, 2018, p. 35). O leitor possivelmente pensou que isso poderia acontecer, já que todo ano morrem dezenas de escaladores no Everest. Peguemos outro exemplo, no segundo conto. Enquanto se embriaga com o proprietário da pousada desativada, Adán elabora suas reflexões sobre seu passado e sobre o conflito entre narração e experiência:
Naquele tempo, eu não tinha nada. Às vezes olho para essa época e penso: ela faz parte de uma outra vida, que casualmente é a minha também, mas que poderia não ser, porque nós temos mais de uma vida, e elas não necessariamente se parecem umas com as outras, às vezes não existe nem mesmo uma continuidade entre elas, mas depois de um tempo aprendemos como falar das vidas passadas, e elas se tornam vidas inofensivas à medida que são contadas e à medida que pensamos entender o que significam. Isso nos acalma. Mas é claro que essa é só mais uma ilusão entre tantas. O que eu acho é que a gente conta e repete as histórias porque tem medo delas. No fundo é isso. Um pedido de ajuda. Queremos que alguém nos ajude, nos proteja delas (Fraia, 2018, p. 58).
Essa digressão, estranha na boca de um velho bêbado, parece responder às interrogações da protagonista do primeiro conto, quando ela põe em dúvida a narrativa que construiu a fim de poder tocar a vida adiante. É como se a mesma questão, o mesmo ceticismo em relação à narrativa da experiência, habitasse o discurso de todos os personagens, porque, afinal, esse ceticismo é o que o livro quer dizer ao leitor. É essa a mensagem que deve ficar da leitura.
Ao operar nesses dois níveis – um nível que individualiza os personagens e as vozes e outro que os unifica no mesmo ritmo narrativo e no mesmo sentido final –, Sebastopol ilustra as possibilidades e os riscos de uma metaficção cética que usa histórias, referências (históricas e intertextuais), vozes e personagens diversos para discutir os limites da ficção.
* Lucas Bandeira de Melo Carvalho é doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e, atualmente, desenvolve projeto de pós-doutorado no programa do PACC-Letras da UFRJ. Agradece à Faperj pelo apoio a esta pesquisa.
Referências
BORGES, Jorge Luis. Ficções. Trad. Davi Arrigucci Jr. São Paulo: Cia. das Letras, 2007.
CARVALHO, Bernardo. Onze. São Paulo: Cia. das Letras, 1995.
FRAIA, Emilio. Sebastopol. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2018.
GRANTA, 9: os melhores jovens escritores brasileiros. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.
LÍSIAS, Ricardo. A vista particular. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2016.
RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. Trad. Ivone C. Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2012.
SAAVEDRA, Carola. Paisagem com dromedários. São Paulo: Cia. das Letras, 2010.
SANT’ANNA, Sérgio. O homem-mulher. São Paulo: Cia. das Letras, 2014.
Uma ampla literatura tem demonstrado que o assédio sexual praticado contra trabalhadoras domésticas no local de trabalho representa um problema difundido no mundo inteiro. Em países com uma história marcada pela escravidão e pelo colonialismo, como o Brasil, esse problema está vinculado ao trabalho sexual, imposto às escravas e à prática do concubinato (Gonzalez, 1983; Nakano Glenn, 1992; Stoler, 1991). Nos países ricos, muitas vezes está associado à posição vulnerável das mulheres imigradas por elas não terem documentos regularizados (Vellos, 1997; Parreñas, 2001; Zarembka, 2003; Hondagneu-Sotelo, 2007). É um fenômeno igualmente difundido na América Latina (Wade, 2013; Drouilleu, 2011). Embora no Brasil se trate de uma violência conhecida de todos, e na literatura sobre o trabalho doméstico as referências sejam recorrentes, existem poucas pesquisas específicas sobre esse tema (Vieira, 1987; Barbosa, 2000; Goldstein, 2003; Brites, 2007; Santos, 2009). Segundo DeSouza e Cerqueira, trata-se de um “âmbito de pesquisa que até agora recebeu pouca atenção” (2009, p. 1266). Alguns estudos recentes apresentam informações valiosas. Na pesquisa de Mori et al. (2011) sobre as condições de vida e de trabalho das trabalhadoras domésticas em Salvador e em Brasília, o questionário incluía uma pergunta sobre o assédio sexual: com base nos dados coletados, os autores notam que se trata de uma violência ainda comum.[1] O trabalho de DeSouza e Cerqueira baseia-se em um questionário distribuído em Porto Alegre entre 366 trabalhadoras domésticas não sindicalizadas. Os dados revelam que “26% da amostra relatava ter vivido alguma forma de assédio sexual no trabalho nos últimos 12 meses” (2009, p. 1273).
A escassez de pesquisas detalhadas sobre o assédio sexual praticado contra as trabalhadoras domésticas por parte dos empregadores pode ser explicada considerando-se as resistências – de origens diferentes para as pesquisadoras e as trabalhadoras domésticas – encontradas na abordagem de uma violência que foi naturalizada no discurso dominante sobre a formação da sociedade brasileira e, vista como legítima por muitos homens das classes dominantes (Ribeiro Corossacz, 2018). Desse modo, como notou Segato (2006) ao referir-se à escassez de estudos acadêmicos sobre a figura da babá (tradicionalmente pobre e negra), também nesse caso o racismo pode ter desempenhado um papel, deslegitimando como objeto de pesquisa acadêmica a análise de uma violência que afeta mulheres pobres e negras, cuja presença é fundamental na vida familiar dos acadêmicos e das classes brancas abastadas. Graças às lutas das trabalhadoras domésticas e das mulheres negras contra o sexismo, o racismo e sua imbricação, houve mudanças importantes, mas ainda é difícil avaliar a extensão do fenômeno no passado e no presente. Este artigo apresenta os resultados de uma pesquisa conduzida entre 2013 e 2017, que oferecem sugestões iniciais para a análise desse fenômeno, igualmente úteis para compreendermos os motivos pelos quais esse problema foi pouco pesquisado. Em particular, meu interesse é analisar como esse assédio ocorre e como as mulheres reagem a ele, contribuindo, assim, para a compreensão dos significados desse tipo de violência.
2. Trabalho doméstico remunerado, divisão sexual do trabalho e racismo
Para compreendermos o problema do assédio sexual vivido pelas trabalhadoras domésticas, é necessária uma visão que o situe dentro das condições gerais do trabalho doméstico remunerado e dentro da divisão sexual do trabalho. A literatura sobre o trabalho doméstico observou como esse tipo de atividade é confiada às mulheres e subdividida entre diversos grupos de mulheres (para algumas referências, ver Nakano Glenn, 1992; Parreñas, 2001; Ehrenreich, Hochschild, 2003; Mojoud e Falquet, 2013). Apesar das diferenças entre as mulheres na distribuição da carga de trabalho doméstico e em sua remuneração, e apesar das transformações que se referem às relações entre os sexos, essa é uma atividade que continua sendo desenvolvida por mulheres (Hirata, 2002; Ávila e Ferreira, 2014), que é considerada feminina e da qual os homens se encarregam muito pouco. De resto, o fato de ser um trabalho atribuído a elas é a razão pela qual não é reconhecido como trabalho e, portanto, prestado gratuitamente (Delphy, 1998). Por conseguinte, é fundamental analisar as implicações da distribuição do trabalho doméstico entre grupos de mulheres, distintos por classe e raça e, ao mesmo tempo, considerar o quadro geral do trabalho doméstico: um trabalho que todas as mulheres – e alguns grupos delas mais do que outros – realizariam naturalmente, ou seja, para o qual se sustenta que tenham capacidades inatas; um trabalho que tem “não valor” (Delphy, 1998), que é considerado sem qualificações, tornado invisível e, por isso, gratuito ou remunerado com salários baixos.
Os dados relativos ao Brasil, examinados por Bruschini (2006), demonstram como os afazeres domésticos recaem sobre as mulheres, sem diferenças no que se refere à cor e em relação a homens da mesma cor. Entre as pessoas que declararam ocupar-se de atividades domésticas (68% das entrevistadas), 68,3% são mulheres e 31,7% são homens. Ainda entre aqueles que declararam ocupar-se de atividades domésticas, encontramos 45% de homens brancos e 44,3% de homens negros, 88,7% de mulheres brancas e 91% de mulheres negras (2006, p. 348). Um dado interessante refere-se à distribuição das tarefas domésticas entre os filhos: 80% das filhas declararam ocupar-se da casa, contra 38% dos filhos, o que demonstra como o atual modelo educativo reproduz, desde os primeiros anos de vida, a tradicional divisão sexual do trabalho doméstico, no qual cabe à mulher cuidar do lar. As diferenças entre as mulheres surgem em relação a duas variáveis que, juntas, contribuem para a definição de classe: os anos de instrução e o trabalho remunerado. Quanto mais anos de instrução elas possuem, menos horas semanais dedicam às atividades domésticas. Do mesmo modo, também para aquelas que têm uma atividade remunerada fora do domicílio, é menor o número de horas dedicadas às atividades domésticas. Esses dados são muito importantes porque, se lidos atentamente, podem ajudar-nos a entender não apenas como a divisão sexual do trabalho doméstico é idêntica dentro dos grupos de cor, mas também como nela se insere o racismo, que diferencia as mulheres em relação ao acesso à instrução e ao mercado de trabalho. De fato, não podemos compreender as relações sociais entre os sexos de forma isolada; é necessário analisá-las no conjunto das relações sociais, consideradas em sua mútua reprodução (Kergoat, 2004, p. 42). A combinação entre racismo e sexismo faz com que as horas de atividades domésticas não cumpridas pelas mulheres mais instruídas, que trabalham fora de casa – ou seja, pelas mulheres brancas –, sejam cumpridas por aquelas mulheres que, historicamente, não tiveram acesso à instrução básica nem aos estudos universitários, ou seja, pelas mulheres negras e pobres, e não pelos homens. As atividades domésticas não realizadas por mulheres brancas que não cuidam da casa porque trabalham fora ou porque foram educadas para não as fazer não são realizadas pelos homens de seu núcleo familiar, e sim por outras mulheres, pobres e negras. Em sua totalidade, a divisão sexual do trabalho doméstico permanece inalterada. Se é certo que um dos pilares do racismo é o fato de que os brancos devem ser servidos pelos negros e de que no Brasil esse “servir” ainda remete a relações de escravidão, também é importante entender que o racismo não age em um vazio social, mas se combina, nesse caso, com o sexismo. Não é apenas o racismo a produzir a separação entre mulheres que podem pagar para outra mulher cuidar dos próprios filhos e da própria casa e mulheres que, ao contrário, têm como única possibilidade de emprego assumir o trabalho doméstico de outras mulheres. Nesse caso, o racismo funciona como um mecanismo que contribui para reproduzir o sexismo, uma vez que se insinua em uma estrutura social em que os homens não são considerados os primeiros responsáveis pelas atividades domésticas e de cuidado. Esse é um exemplo de como as relações sociais se produzem mutuamente, ativando e/ou transformando outras relações sociais, o que nos leva a desenvolver uma análise que se concentre na imbricação das relações sociais de classe, raça e gênero (Crenshaw 1989; Ochy 1999; Hill Collins e Bilge 2016).
O resultado da pesquisa mostra como a questão da divisão sexual do trabalho, que atribui às mulheres as tarefas domésticas, não representa um tema principal de mobilização para as ativistas e as trabalhadoras. Os temas sobre os quais elas mais se debruçam e se mobilizam dizem respeito ao reconhecimento da dignidade do trabalho doméstico como profissão, ao reconhecimento dos mesmos direitos trabalhistas e previdenciários e à luta contra o racismo na sociedade brasileira. Uma distribuição mais igualitária das tarefas domésticas entre homens e mulheres dentro da família não constituiu um horizonte explícito de luta, embora a batalha das trabalhadoras domésticas represente um desafio real ao mecanismo que naturaliza o trabalho doméstico como atividade feminina e especialmente das mulheres negras e pobres. Nas entrevistas realizadas, percebeu-se que muitas vezes poder cuidar da própria casa é algo valorizado e, quando não é possível fazê-lo, esse trabalho é delegado a outras mulheres.[2] Portanto, se por um lado o trabalho doméstico automaticamente atribuído às mulheres não constitui, por si só, uma realidade a ser transformada, por outro, há maior envolvimento na luta contra o racismo, que se vincula a experiências de discriminação, vividas diariamente (ver também Bernardino-Costa, 2015).
O racismo e as desigualdades de classe são as dimensões predominantes nas narrativas das trabalhadoras domésticas. Por sua vez, são sistemas de opressão que criam cisões entre as mulheres, fragmentando o trabalho doméstico em unidades de incumbências separadas, que juntas reproduzem o efeito de liberar a coletividade dos homens desse tipo de atividade. Esse mecanismo é importante para compreendermos por que as esposas dos molestadores, as empregadoras, geralmente preferem não acreditar nas denúncias das trabalhadoras, ou seja, por que é difícil que ocorra uma aliança entre mulheres de origens sociais diferentes diante do assédio sexual vivido pelas trabalhadoras domésticas.
3. Características do trabalho doméstico remunerado no Brasil
Por razões históricas (herança da escravidão) e por causa da resistência por parte dos atuais empregadores a reconhecer o pleno estatuto das trabalhadoras domésticas, elas constituem uma das categorias mais vulneráveis no que se refere aos direitos trabalhistas. Um dos elementos evocados para explicar as dificuldades em considerar o trabalho doméstico um trabalho para todos os efeitos diz respeito à especificidade de seu local de exercício, que ao mesmo tempo é casa particular e local de trabalho, e ao tipo de relação que historicamente se construiu entre a trabalhadora e a família empregadora. Trata-se de um trabalho e de uma categoria que tendem a não ser formalizados, justamente por estarem associados à dimensão familiar e de cuidado, aos afetos e às relações que compõem as atividades de cozinhar, lavar, limpar e passar roupa. Vale notar como essas atividades domésticas são concebidas e sentidas como intrinsecamente femininas e impossíveis de ser contabilizadas, regulamentadas e formalizadas pela lei (por exemplo, as resistências às inspeções por parte das autoridades competentes, OIT/FORLAC, 2015), mas não de ser controladas de maneira detalhada pelo/as empregadore/as. O documento da OIT fala oportunamente de resistência cultural como um dos elementos que impedem a formalização desse trabalho. Portanto, o problema estaria no tipo de atividade e no fato de essas mulheres trabalharem na casa de uma família, sobretudo na cozinha, lugar associado às atividades femininas e, por conseguinte, percebido como particularmente difícil de ser reconhecido como “local de trabalho”. Além disso, existe a solidão do trabalho dentro de casa. Conforme sustenta uma sindicalista de Campinas: “Porque ela tá lá, sozinha. Então ela tá em situação vulnerável.”
Segundo dados referentes à época da pesquisa, no Brasil havia 6,2 milhões de trabalhadores domésticos, dos quais 92,6% mulheres e 61% negras (DIEESE, 2013). Além dos dados estatísticos, diversas estudiosas (Santos-Stubbe, 1998; Goldstein, 2003) evidenciaram como o trabalho doméstico é associado à negritude. Não encontrei dados sobre a cor dos empregadores nem sobre eventuais mudanças ocorridas nas últimas décadas, que seriam informações úteis para compreendermos de maneira mais aprofundada os múltiplos níveis de relações sociais que se concretizam no trabalho doméstico remunerado. Segundo Silva, “o emprego de ajuda doméstica remunerada aumenta com o nível de renda e com a brancura da pele” (Silva, 2010, p. 23). Por sua vez, Pinho e Silva observam como a branquitude e a negritude se constroem justamente por meio das relações domésticas, e notam “como o amplo emprego do trabalho doméstico remunerado reforça a associação entre branquitude e poder e a naturalização da posição subordinada das mulheres negras” (2010, p. 109).
Foto: Zilka Salaberry e Jacira Sampaio em Sítio do Pica-pau Amarelo. Fonte: www.pinterest.co.kr
De 1999 a 2009, houve um aumento na proporção das trabalhadoras domésticas com idade entre 30 e 44 anos, passando de 36,9% a 42,5% (Pinheiro, Fontoura, Pedrosa, 2011, p. 39). Isso faz pensar que as mulheres jovens de classe popular tendem a buscar outras atividades de trabalho, talvez justamente por serem menos estigmatizadas. O trabalho doméstico remunerado está se transformando: o número de mensalistas tem diminuído, e o de diaristas, aumentado (OIT/FORLAC, 2015). Ambos os dados evidenciam que, por parte das mulheres que tradicionalmente desenvolveram essa profissão, existe um esforço para buscar alternativas de trabalho ou para redefinir as condições desse emprego. É possível observar um duplo movimento: se de um lado as trabalhadoras domésticas lutam pelo reconhecimento do trabalho doméstico como trabalho para todos os efeitos, de outro, essa profissão continua sendo estigmatizada, e as mulheres de classe popular e negras, quando podem, procuram outro emprego, conforme se verificou também nas entrevistas em que as mulheres declararam desejar que as filhas tenham outra profissão.
Com o sexismo e a opressão de classe, o racismo marca de modo estrutural a vida das trabalhadoras domésticas (Oliveira, 2008). É importante lembrar que o racismo age não apenas na definição do trabalho doméstico remunerado como um trabalhado adequado a mulheres pobres e negras, mas também dentro do próprio trabalho doméstico: “Mesmo representando 62% do total de trabalhadoras domésticas no país, as negras recebiam, em 2009, uma remuneração média de R$ 364,84, ao passo que as domésticas brancas recebiam R$ 421,58” (Pinheiro, Fontoura, Pedrosa, 2011, p. 53). Portanto, é necessário considerar de que modo as condições do trabalho doméstico remunerado são constantemente produzidas a partir da imbricação entre racismo, sexismo e desigualdades de classe.
O Brasil está entre os países que criaram as mais avançadas medidas legislativas para equiparar os direitos das trabalhadoras domésticas aos dos outros trabalhadores. Contudo, essa categoria ainda não goza dos mesmos direitos das outras categorias (OIT/FORLAC, 2015). As importantes melhorias obtidas são resultado da batalha das sindicalistas domésticas que trabalharam obstinadamente pelo reconhecimento de seus direitos (Bernardino-Costa, 2015). Desde os anos 1930, elas se organizaram em associações e levaram adiante sua luta por meio de alianças com o movimento negro e o movimento feminista, buscando sempre o reconhecimento do Estado: o ponto principal foi obter o reconhecimento do direito de ter direitos (Cornwall e Oliveira, 2014). Com efeito, as resistências a reconhecer as trabalhadoras domésticas como uma categoria profissional igual às outras estão profundamente radicadas na sociedade brasileira. No texto da Constituição de 1988, apesar da luta das trabalhadoras, elas foram excluídas de importantes direitos trabalhistas, o que demonstra que o Estado foi um agente ativo na exploração das mulheres negras e pobres. Apenas em 2013, após anos de luta, foi aprovada a Proposta de Emenda nº 72. Contudo, em junho de 2015, com a promulgação da lei 150/2015, que recebia as modificações introduzidas pela PEC 72/13, alguns direitos previstos pela PEC, como o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), deixaram-nas em desvantagem em comparação com outros trabalhadores. Durante as entrevistas, algumas sindicalistas exprimiram frustração por essa situação: “A posição dos sindicatos de trabalhadoras domésticas contrasta com o discurso oficial de ‘segunda abolição da escravidão’” (Acciari, 2016, p. 127), como foi definida a PEC 72/13. Embora se tenham alcançado resultados importantes, em um contexto marcado por políticas neoliberais de precarização de todos os empregos, ainda hoje o trabalho doméstico se caracteriza por ser uma profissão não equiparada às outras.
Portanto, a história das iniciativas das trabalhadoras domésticas se caracteriza pelo fato de elas terem tomado publicamente a palavra, produzindo discursos e exigências políticas em um contexto em que sua subjetividade foi representada no discurso dominante branco e de classe alta como invisível, mas silenciosamente presente com suas atividades de cuidar da casa e da família branca de classe média alta (Gonzalez, 1983). Esse quadro é importante para compreendermos os obstáculos encontrados pelas trabalhadoras domésticas ao abordarem a questão do assédio sexual no local de trabalho. Do ponto de vista histórico, a atitude mais comum é negar que se trata de violência. Em face dessa negação, o silêncio foi o modo mais frequente que as trabalhadoras encontraram para enfrentar essa violência e seguir em frente. Contudo, permanecer em silêncio não significa consentir (Mathieu, 1991).
Foto: Reprodução/Eu Empregada Doméstica. Ilustração de Laudelina de Campos Melo (1904-1991). Fonte: https://medium.com/afetosperifericos/busca-por-humaniza%C3%A7%C3%A3o-ainda-%C3%A9-o-principal-objetivo-de-trabalhadoras-dom%C3%A9sticas-37de6d74e114.
4. As mulheres entrevistadas e a entrevista
O material desta pesquisa foi coletado durante encontros com sindicalistas e trabalhadoras domésticas. Entre 2013 e 2014, entrevistei no Rio de Janeiro 19 trabalhadoras domésticas, 4 mulheres ativas no Sindicato dos Trabalhadores Domésticos, a advogada que trabalhava para ele e uma líder histórica da luta das trabalhadoras domésticas na mesma cidade. Em 2015, entrevistei em São Paulo 2 sindicalistas do Sindicato dos Trabalhadores Domésticos, uma trabalhadora doméstica e a advogada que trabalhava para o sindicato, e 4 sindicalistas do Sindicato dos Trabalhadores Domésticos, em Campinas. Em 2017, estive com um grupo de 4 mulheres ativas no Sindicato dos Trabalhadores Domésticos, de Nova Iguaçu (Rio de Janeiro, todos esses sindicatos são afiliados à Contracs). As sindicalistas e as advogadas realizam seu trabalho gratuitamente. No mesmo ano, entrevistei Israel, responsável pelo Sindicato dos Empregados Domésticos de Natal, único caso, que eu saiba, de um sindicato que tem como chefe um homem assalariado e que não é trabalhador doméstico. A situação do Sindicato de Natal me pareceu uma exceção em relação às outras realidades sindicais nacionais.[3] Nesse sindicato, tive dificuldade para entrevistar a mulher que, com o responsável, atendia tanto por telefone quanto pessoalmente e tinha o cargo de tesoureira. Essa mulher não quis ser entrevistada, alegando que era Israel, e não ela, quem poderia dar as informações. Quando lhe perguntei o que ela fazia no sindicato, respondeu-me: “Eu faço tudo aqui, desde lavar o chão e arrumar as salas até atender o telefone e os clientes.” A situação do sindicato de Natal parece reproduzir a divisão social do trabalho, segundo a qual as atividades domésticas competem à mulher, enquanto o aspecto mais profissionalizante do trabalho realizado no sindicato é reconhecido e atribuído de modo mais explícito ao homem. Durante o período em que fiquei na sala de espera, pareceu-me evidente que a mulher tinha um ótimo preparo no que se refere aos direitos trabalhistas, além de saber lidar profissionalmente e com muita firmeza com situações difíceis do ponto de vista emocional.
As trabalhadoras entrevistadas têm idades entre 34 e 67 anos, com uma prevalência de mulheres na faixa dos 50 anos. As mais velhas começaram a trabalhar quando tinham cerca de 8 a 10 anos, muitas vezes sem terem terminado a escola. De 20 entrevistadas, 5 se declararam negras, 6 pardas, 5 brancas ou amarelas, com uma prevalência entre estas últimas de mulheres provenientes do Nordeste. A 4 trabalhadoras não tive oportunidade de perguntar a cor. Segundo minha percepção, tratava-se de duas negras, uma de origem nordestina e uma branca. De 20 mulheres, 9 declararam nunca ter sofrido assédio sexual, mas sabem que se trata de um problema comum; 11 declararam ter sofrido assédio ou tentativa de assédio por parte dos maridos de suas patroas quando estas não estavam em casa. A esses dados acrescentam-se aqueles relativos às sindicalistas que também foram trabalhadoras domésticas: de 10 ativistas, 3 sofreram assédio sexual por parte do próprio patrão.
É necessário deter-se nas condições estruturais do encontro entre a antropóloga e as entrevistadas: de um lado, uma trabalhadora doméstica pobre e, na maioria dos casos, não branca; de outro, uma mulher branca, de classe média, facilmente identificável como uma possível empregadora. O único modo de superar as dificuldades inerentes a essa assimetria social estrutural é ter consciência dela no momento em que se instaura o diálogo. Nesse sentido, durante as entrevistas, busquei os termos adequados para abordar os temas mais difíceis, primeiramente dialogando com as sindicalistas e, depois, perguntando à trabalhadora somente ao final da entrevista se algum patrão lhe “faltou com o respeito”. Essa foi a expressão mais alusiva, porém, ao mesmo tempo, mais clara e eficaz para abordar o tema do assédio sexual, que eu sabia ser difícil de tratar e nomear.[4] Nessa perspectiva, eu tinha consciência de que não seria possível abordar o assunto sem antes me aproximar da vida das entrevistadas e daqueles problemas que eram sentidos como os mais prementes em seu trabalho. Em alguns casos, falei abertamente de “assédio sexual”. De fato, dependendo do tipo de diálogo instaurado com a entrevistada, foi possível nomear de maneira explícita o problema do assédio. Minha franqueza ao fazer as perguntas tornou mais fácil para elas exprimir-se ou esconder-se atrás de respostas evasivas e, para mim, delimitar os espaços possíveis para o diálogo. Além disso, ao apresentar o tema, sempre deixei claro que condenava esse tipo de comportamento. Conforme veremos mais adiante, quase sempre a mulher do empregador que molesta nega o fato e assume a defesa do marido. Nos casos em que a trabalhadora afirmava ter tido esse tipo de experiência, tentei compreender o quanto lhe era possível falar sobre o assunto, ou seja, até que ponto eu poderia fazer-lhe perguntas sem desrespeitar suas emoções. “Como aconteceu, quando, onde, como você reagiu e como reagiu o patrão” são perguntas que nem sempre pude fazer.
Essas considerações são importantes para entendermos o campo da pesquisa, no sentido de avaliarmos as possibilidades de acesso às informações sobre o assédio sexual contra as trabalhadoras domésticas. Com efeito, se de um lado é necessário perguntar e interpelar as mulheres sobre esse tema, considerado tabu porque revelaria a “culpa” da mulher e não a do homem, de outro, é necessário compreender os obstáculos que limitam a possibilidade de nomear essa violência. Por exemplo, Elisa, de 35 anos e que se define como amarela, sofreu e reagiu ao assédio de seu patrão. Na entrevista, afirmou que falou a respeito apenas com a irmã, embora tenha evitado mencionar os detalhes. Para entender o quanto é doloroso conseguir contar a experiência de assédio sexual, cito as palavras de Oliveira, histórica ativista das trabalhadoras domésticas: “[…] a experiência que tive na infância, quando um homem de 60 anos se masturbou na minha frente, olhando para mim e me pedindo para segurar seu órgão sexual. Foram necessários muitos anos para que eu conseguisse falar a respeito. Nem mesmo no movimento eu conseguia tocar no assunto. Não tinha coragem de falar sobre essa situação de violência sexual no meu local de trabalho” (Cornwall e Oliveira, 2014). Portanto, é necessário entender as múltiplas dificuldades para as trabalhadoras domésticas em abordar o tema do assédio sexual. Essas dificuldades estão ligadas ao contexto da entrevista, ao estigma associado ao fato de essas mulheres serem objeto de assédio sexual, de modo geral, e no âmbito do trabalho doméstico remunerado, de modo específico.
5. Trabalho doméstico, escravidão e assédio sexual
A comparação entre trabalho doméstico remunerado e escravidão surge constantemente nas pesquisas (Melo, 1989; Kofes, 2001; Goldstein, 2003; Ipea, 2011; Bernardino-Costa, 2015). Como já notado por Gonzalez (1983), a figura da mucama foi transposta para a da trabalhadora doméstica, cuja característica é ter de oferecer serviços domésticos e sexuais. Também nas minhas entrevistas fez-se referência ao período da escravidão. Laura, de 54 anos, define-se como morena clara e afirma ter sofrido tentativas de assédio: “Porque eles acham que a empregada doméstica, como não tem família aqui, é submissa a eles [para fazer] qualquer coisa. Entendeu? Acham que, porque você trabalha na casa deles, é obrigada a fazer tudo o que eles querem. Não é assim. Você é uma trabalhadora.” E depois explica: “Ainda existe muita escravidão como antigamente.” Evocar a escravidão para descrever uma situação de trabalho em uma sociedade capitalista é um modo de denunciar a falta de direitos e a violência extrema que vivem as trabalhadoras domésticas. Segundo Carneiro, o trabalho doméstico é “o elo de continuidade entre a sociedade colonial e a atual” (2015, p. 7). Um dos elementos que contribui para construir a continuidade entre a figura da escrava de origem africana e a trabalhadora doméstica é justamente o assédio sexual por parte dos empregadores ou de seus filhos. Na literatura, há registros de que os donos de escravos violentavam as próprias escravas e as usavam para iniciar os filhos na vida sexual (Freyre, 1986). Essa realidade historiográfica foi naturalizada e englobada no senso comum e difundida por meio de lugares-comuns e expressões como “ter um pé na cozinha”, que indicam como pessoas que podem ser consideradas brancas na realidade têm um parentesco com a mulher escrava ou a trabalhadora doméstica negra. A prática de “iniciar” na sexualidade heterossexual os rapazes das famílias brancas abastadas com as trabalhadoras domésticas é conhecida e foi corroborada pelas violências que os homens adultos perpetravam contra elas. Numa pesquisa anterior estudei a “iniciação sexual” com as trabalhadoras domésticas, entrevistando homens brancos de classe média alta, e observei que se tratava de uma iniciação em relações de domínio de classe, raça e sexo, uma violência que teve um papel central na formação de certo modelo de masculinidade branca heterossexual (Ribeiro Corossacz 2014 e 2018).
A continuidade entre o período da escravidão e o presente ainda vive. Segundo uma sindicalista do Rio, hoje, quando é o filho que assedia a trabalhadora, os pais “nem acreditam, porque na época da escravidão os filhos se iniciavam com as mucamas, né? Então tem pais que acham que ainda estão na época da escravidão, né?”. Os pais acreditam que seja um comportamento legítimo, e não que se trate de uma violência, justamente porque, no passado, era algo aceito. Também entre as entrevistadas, as relações sociais da escravidão são evocadas para se tentar dar um sentido ao assédio sexual sofrido. Débora, de 24 anos, parda, conta: “Você tá trabalhando ali na casa dele. Você tá fazendo as coisas pra ele. Eu não sei [o que se passa] na cabeça dele: já que ela é minha empregada… Como se fosse no tempo da escravidão, sabe? Patrão que tinha as escravas, que também eram objeto sexual dos patrões. Então às vezes eu fico pensando: será que eles acham isso até hoje também?”. As palavras de Débora permitem entender a sobreposição entre trabalho e cor, razão pela qual a trabalhadora doméstica é associada à escrava negra, independentemente de sua cor.
6. Vergonha, silêncio, resistência
Segundo as sindicalistas, raramente as trabalhadoras domésticas procuram o sindicato para denunciar o assédio sexual por parte dos patrões. É um assunto sobre o qual têm dificuldade em falar, até mesmo com as sindicalistas, como me fazem notar algumas. Conforme uma sindicalista de Nova Iguaçu, as trabalhadoras acham que “não serve para nada; elas pensam que não vale a pena contar porque é a palavra delas contra a palavra deles, e eles têm mais dinheiro. As patroas não vão acreditar, mas vão achar que elas são as responsáveis, quem provocou. Elas preferem ir embora, sem falar nada”.
As dificuldades para nomear esse tipo de violência devem ser relacionadas ao fato de que, se as trabalhadoras relatam o ocorrido, quase nunca são levadas a sério pela mulher do patrão. É a história, por exemplo, de Elenilda, de 47 anos, branca, que me contou sua experiência:
“Aí ele pegou e falou assim: ‘Elenilda, senta aqui.’ Quando eu fui sentar na cadeira, ele veio com um negócio grande, aí eu saí correndo. Aí eu cheguei pra minha patroa e falei. Ela disse: ‘Não, mas ele é médico; não vai fazer isso, não’.”
Depois do ocorrido, Elenilda conversou a respeito com seu pai e decidiu deixar o emprego sem receber o pagamento devido. Posteriormente, em outra casa, o patrão tentou ter relações sexuais com ela, que também nesse caso decidiu ir embora.
Conforme o relatado por trabalhadoras e sindicalistas, nos casos de assédio sexual, quase nunca a empregadora acredita na trabalhadora, defende o marido ou o justifica e, em alguns casos, manda a trabalhadora embora, acusando-a de ser a culpada. Tornamos a encontrar aqui a típica inversão, segundo a qual não seria o homem a agredir a mulher, mas a mulher a provocar o homem ou mentir sobre a agressão sofrida. A inversão das responsabilidades é o pressuposto para sugerir e reativar a ideia de que, no fundo, a mulher teria consentido e não deveria ter permitido que o assédio acontecesse (Mathieu, 1991). Como em muitos casos essas mulheres não podem perder o emprego, essa situação determina uma restrição da própria liberdade de escolha e de ação. Uma sindicalista do Rio de Janeiro lembra como o perfil dessas mulheres que não conseguem falar é muitas vezes aquele de mulheres “sozinhas, que não têm marido. São chefes de família. Pra não perder o emprego, elas ficam quietas e não… não falam nada”.
O mecanismo da inversão das responsabilidades também está presente quando algumas trabalhadoras, inclusive as sindicalistas, ao serem indagadas se conhecem episódios de assédio por parte dos patrões, respondem identificando como elemento provocador o modo como algumas trabalhadoras domésticas se vestem (com decotes, saias ou shorts muito curtos) ou se comportam (“dão confiança”). Portanto, pode acontecer de as próprias trabalhadoras serem reprodutoras de uma cultura que responsabiliza as mulheres pelo comportamento dos homens, reproduzindo a ideia de que o homem “reage” à visão de corpos sexualmente provocadores. Em algumas situações, porém, as mulheres da família assumem a defesa da trabalhadora doméstica. É o caso de Luana, de 53 anos, que se define como negra e recebeu apoio da filha adulta do patrão idoso, que tentara assediá-la; ou de uma sindicalista negra que contou que, quando criança, a patroa a colocava para dormir em sua própria cama, e somente mais tarde entendeu que esse era um modo de a patroa protegê-la de possíveis agressões por parte de seu marido.
Nas entrevistas com as sindicalistas, também se discutiu como a vergonha e o medo são sentimentos difundidos entre as trabalhadoras molestadas e podem tornar-se um freio, impedindo-as de denunciar os patrões ou relatar o assédio. Em alguns casos, as sindicalistas têm a sensação de que houve assédio, mas se dão conta de que as trabalhadoras não conseguem nomear essas violências, mesmo que expressem muita raiva. Portanto, as sindicalistas sabem reconhecer que a não denúncia e a não nomeação das violências são um modo de enfrentá-las, de resistir, e são capazes de acolher essas modalidades de comunicação. Isso é possível porque compartilham com as trabalhadoras as mesmas experiências e condições de vida e conhecem as opressões estruturais de classe, raça e gênero, que tornariam uma ação individual de denúncia particularmente onerosa.
É interessante notar que o responsável pelo sindicato de Natal foi o único a nomear espontaneamente a questão do assédio sexual quando lhe perguntei quais eram os principais problemas relatados pelas trabalhadoras que se dirigem ao sindicato. Na entrevista, tive a impressão de que, pela sua experiência, a denúncia desse fenômeno é mais difundida, embora ele tenha descrito os mesmos mecanismos observados pelas outras sindicalistas: é muito raro fazer uma denúncia às autoridades judiciárias, que, de todo modo, tendem a não acreditar ou a contestar a falta de “provas concretas”, e é reconhecida a diferença de poder entre o homem que molesta e a trabalhadora doméstica.
Portanto, a primeira dificuldade diz respeito justamente à possibilidade de nomear o assédio sofrido e receber crédito, e isso contribui para a dificuldade de avaliar a efetiva extensão do fenômeno. O silêncio de muitas trabalhadoras domésticas sobre o tema do assédio sexual deve ser reconduzido aos obstáculos que elas encontram quando nomeiam essas violências, e não considerado um indicador de sua ausência. A dificuldade em nomear e denunciar esses assédios deve ser entendida como o resultado da experiência específica dessas mulheres na imbricação das relações de classe, raça e gênero, que produziu a ideia de que as mulheres pobres e negras são sujeitos sexuais disponíveis, cuja palavra tem menor legitimidade. Esses elementos participam igualmente da atitude difundida entre homens da classe média branca, que admitem ou toleram o assédio sexual contra as trabalhadoras domésticas, representando-o como uma forma de “iniciação sexual” masculina, como uma expressão legítima para dar livre curso a uma sexualidade masculina, definida como incontrolável (Ribeiro Corossacz, 2014).
Por essas primeiras observações, parece compreensível que sejam pouquíssimas as trabalhadoras que decidem denunciar o assédio às autoridades judiciárias. As três advogadas que entrevistei no Rio de Janeiro, em São Paulo e em Nova Iguaçu[5] contaram como é raro levar adiante uma causa desse tipo. Sobretudo a advogada de Nova Iguaçu relatou que nunca recebeu casos como esses. Comparada ao ato de falar a respeito com as sindicalistas, a possibilidade de denunciar às autoridades representa outra passagem, que corre o risco de ser apenas fonte de frustrações e humilhações. De fato, uma escolha como essa significaria tornar pública a violência e sofrer o estigma a ela associado; não obstante, segundo as advogadas do Rio e de São Paulo, dificilmente levaria a uma vitória processual.
Por fim, com base no que foi relatado pelas sindicalistas e pelas trabalhadoras, podemos supor que, no passado, o fenômeno fosse mais amplo, enquanto nos últimos anos se reduziu. Essa mudança deve ser relacionada às lutas das sindicalistas por melhorias nas condições de trabalho. Contudo, todas elas têm consciência de que o fenômeno do assédio sexual existe e de que muitas vezes é silenciado pelas próprias trabalhadoras domésticas. Anazir Maria de Oliveira (Dona Zica), histórica líder das trabalhadoras domésticas do Rio de Janeiro, ressalta o quanto é difícil, antes de tudo, “relatar o fato”. Em sua opinião, os episódios de violência contra as trabalhadoras domésticas diminuíram em comparação com o passado, mas ela insiste no fato de que se trata de um fenômeno “muito oculto”. Justamente por isso, nos encontros de formação organizados pelo sindicato, o tema sempre é abordado com o objetivo de estimular as trabalhadoras a denunciar e reagir e de oferecer um espaço e um apoio que as acolha e torne possível a denúncia. Existe também uma ideia corrente, compartilhada tanto pelas sindicalistas quanto pelas trabalhadoras, segundo a qual hoje em dia as jovens trabalhadoras reagem aos assédios porque estão mais conscientes dos seus próprios direitos.
Além disso, pelos testemunhos coletados, parece menos frequente que seja o rapaz da família a molestar a trabalhadora doméstica. Segundo a advogada do Rio, hoje esse fenômeno é menos frequente também porque os jovens têm relações sexuais com moças da própria classe social antes do casamento, enquanto no passado isso era proibido ou menos tolerado. A chamada “iniciação sexual” com a “empregada” parece menos difundida. O perfil do molestador que aparece nos testemunhos é o de um homem adulto. Contudo, para compreendermos o quão efetivamente essa situação mudou, são necessários mais dados, que podem ser obtidos com pesquisas sobre como os jovens de hoje veem a trabalhadora doméstica.
Portanto, as trabalhadoras e ativistas têm consciência dos obstáculos e da exposição a ulteriores formas de violência que as mulheres enfrentariam ao denunciar, ou seja, a negação por parte da empregadora, o redimensionamento do episódio e a dificuldade para obter justiça.
7. As reações
Dos relatos emergem algumas situações recorrentes de assédio sexual: o homem se apresenta nu, com o sexo para fora da calça, e tenta agarrar a trabalhadora, que procura desvencilhar-se, às vezes fechando-se em um cômodo. Também é comum que o homem se esfregue na mulher ou a apalpe enquanto ela trabalha (lavando, cozinhando) ou quando pede a ela para fazer um serviço. Em outros casos, o homem entra à noite no quarto onde dorme a trabalhadora e a molesta.
A maior parte das trabalhadoras domésticas entrevistadas que viveu situações de assédio reage deixando o emprego sem dar explicações sobre o motivo pelo qual vai embora e sem receber o pagamento devido. Esse comportamento também foi observado na pesquisa de Mori (2011). A escolha por ir embora sem denunciar indica o quanto está radicada nas trabalhadoras a convicção de que falar é inútil: diante dessa situação, optam por uma ação liberatória, pois têm consciência das dificuldades de transformar sozinhas as relações sociais. Trata-se, portanto, não apenas de uma forma de rebelião à violência do assédio e da deslegitimação da própria palavra, mas também de um exercício da própria subjetividade. Naira, que tem 50 anos e se define como parda, viveu duas experiências de assédio. Segundo ela: “A gente sempre acha que a gente vai pagar o preço.”
Maria José, de 70 anos, chegou ao Rio vinda do Nordeste quando tinha 20 anos para fugir da seca. Contou-me: “Eu tinha 21 anos [no momento do assédio]. Mas acontece que eu vim praticamente da roça, era uma moça boba, né? Assim, eu não tinha nenhuma experiência de vida, não tinha nem namorado, e ele me assediou. Foi horrível, porque eu tava na cozinha lavando louça, e ele saiu do quarto dele nu e entrou na cozinha, e aquilo pra mim foi horrível, né?”.
O assédio continuou. O patrão se masturbava na frente dela ou pedia-lhe para tocá-lo. Na conversa, não foi possível ter mais informações. Ao me contar essas experiências, Maria José chorou. Muitos anos depois, ao participar do Teatro do Oprimido com outras trabalhadoras domésticas, Maria José conseguiu falar a respeito pela primeira vez: “Chorei no dia e tudo, porque a gente guarda aquilo e não tem coragem, tem vergonha de contar.” Seu relato incentivou outras trabalhadoras a narrar vivências semelhantes, que serviram de base para a preparação de um espetáculo teatral sobre o tema.
Em diversas entrevistas, notou-se que um ponto central é a possibilidade de as mulheres denunciarem o assédio ou simplesmente falarem sobre ele. Laura, de 54 anos, parda, conta: “Mas tem muitas que ficam caladas. Eu falei pra ele: ‘Ó, se você tentar me assediar outra vez, eu falo pra sua esposa.’ E ele: ‘Tem certeza que você conta?’ Eu falei: ‘Conto.’ Aí ele: ‘Eu mando você embora… Você vai ter coragem?’ Eu falei: ‘Vou.’” Situação semelhante é contada por Zezé, de 71 anos, proveniente do Nordeste. Em uma das duas experiências de assédio que sofreu, pediu ao patrão que parasse. O homem respondeu: “Cala a boca, Zezé!” Ela, por sua vez, disse-lhe: “Eu não vou calar porque o senhor tá aí.” O fato de os homens não quererem que as mulheres falem denota a consciência de que seu poder nunca é absoluto: as mulheres podem falar. Os homens reconhecem que o ato de nomear essas violências representa o primeiro passo da rebelião e, por isso, tentam deslegitimar a palavra das mulheres. Outra mulher que viveu duas experiências de assédio especifica que, em um caso, o homem tinha “medo de eu falar”.
Débora, de 34 anos, define-se como parda. Aos 12 anos, chegou ao Rio vinda do Nordeste. Aos 15, começou a trabalhar como doméstica. No momento da entrevista, trabalhava em diversos apartamentos, mas no passado trabalhou e viveu em um apartamento onde cuidava da casa e dos filhos do casal. Nesse emprego, a certa altura o patrão começou a entrar com frequência em seu quarto, para procurar roupas, até que uma noite tentou assediá-la. Ela achou que ele estivesse bêbado e, na manhã seguinte, conversou com ele, dizendo-lhe que não podia comportar-se desse modo e que, da próxima vez, o denunciaria. Por um tempo, o assédio não tornou a acontecer, até que uma noite se repetiu. Na manhã seguinte, Débora estava decidida a denunciá-lo. Pediu para falar com ele e para que a demitisse. Ele lhe perguntou por que queria ir embora, e ela lhe explicou que lhe avisara da primeira vez e que, naquele momento, não queria mais ficar. Ele lhe pediu desculpas, dizendo que tinha bebido. No final, ela decidiu ficar, mas não dormir mais no local de trabalho, alegando que decidira voltar a estudar. Assim, podia justificar sua escolha aos olhos da patroa, à qual não contara o ocorrido. Concluiu seu relato da seguinte maneira: “Porque eu particularmente penso assim: no trabalho, o patrão no lugar dele, e eu no meu. Não sei, o patrão vê a gente ali, também como a gente tá como empregada, não sei se eles acabam vendo a gente como objeto pra eles. Não sei se é isso que eles pensam”. Conforme sustenta Ávila, o trabalho doméstico remunerado comporta a ideia segundo a qual se espera uma disponibilidade permanente da trabalhadora (2010). Essa disponibilidade se refere não apenas às horas de trabalho, mas também, como nota Gonzalez (1983), às atividades e aos papéis, podendo incluir a apropriação do seu corpo sexual.
Protestar é nomear o assédio por aquilo que ele é, um ato ilegítimo de violência. Na entrevista com dona Zica, emerge outro aspecto central para entendermos a dinâmica do silêncio em torno dessas violências: o papel desempenhado pela cor na possibilidade de nomeá-las. Aos 15 anos, dona Zica saiu do interior para trabalhar no Rio de Janeiro, na casa de uma senhora, onde dormia todas as noites, exceto aos domingos, quando a mãe ia buscá-la. O irmão da patroa a assediava, batia com muita força à porta do seu quarto e com insistência, às vezes chegando a forçá-la. “Eu ficava morrendo de medo. Abrir eu não ia abrir, mas tinha medo que ele forçasse… Foi muito assim, muito sério; eu acabei confessando pra minha mãe o que tava acontecendo, e aí ela me tirou do emprego. Entendeu? Mas eu tive sorte. Porque ele poderia entrar, né? E concluir a intenção dele.” A mãe não explicou à empregadora o motivo real pelo qual decidiu levar a filha embora, apenas deu uma desculpa. “Mas naquela época… Era calado mesmo, né? Acontecia, e [a gente] ficava calada, entendeu?”. Explicou-me que atualmente, ao contrário, não é assim. O sindicato dá informações e indicações de como denunciar. Mais adiante na entrevista, insistiu: “Nunca reclamei. Reclamei com a minha mãe, e ela me tirou da casa.” Quando lhe perguntei qual a cor das pessoas para as quais trabalhava, ela me respondeu: “Brancos. Mais um motivo pra não acreditarem, né?”. Entre os testemunhos coletados, essa afirmação é a única que expõe explicitamente a questão de como a cor pesa na definição de quem merece crédito na denúncia do assédio sofrido, problema do qual as sindicalistas e advogadas têm consciência. Na afirmação de dona Zica, subentende-se que os outros componentes da família não teriam acreditado nela por eles serem brancos e ela, negra. Desse modo, dona Zica expõe a questão de como a classificação da cor dos sujeitos envolvidos condiciona a própria possibilidade de nomear a violência. Falar a respeito com a mãe significa saber que se tem acesso à credibilidade porque se faz referência a uma rede de relações sociais, a uma comunidade, que pode reconhecer as condições de trabalho e de opressão em que Zica se encontrava. A longa militância de dona Zica e seu percurso de conscientização da exploração do seu trabalho podem explicar a escolha de explicitar o papel que o racismo desempenha em estabelecer o que é nomeável, crível e condenável.
Na entrevista, dona Zica também relaciona a questão da credibilidade com o sentimento de culpa que muitas trabalhadoras experimentam quando vivem situações de assédio: “E nesses acontecimentos, aquilo que eu tava te falando: um caso assim, de um sentimento até de culpa da própria empregada, né? Por que que eu não lutei, por que que eu não falei, por que eu não fiz isso? Geralmente, é uma outra questão: os pais (dos filhos que assediaram, n.d.r.) não acreditam.” Portanto, romper o silêncio em torno do assédio sofrido significa enfrentar a experiência de não ser levada a sério por ser uma trabalhadora doméstica e negra, e essa experiência se concretiza quando a família empregadora a acusa de ser “mentirosa”, isso é, a família pode “até mandá-la embora… Fazer com que ela fique um pouco inibida, porque como é que ela vai provar?… Tá totalmente isolada ali. Vai provar como?”.
8. Conclusões
Os dados coletados nesta pesquisa demonstram o quanto é difícil a abordagem do tema do assédio sexual contra as trabalhadoras domésticas, antes de tudo por elas próprias. Com efeito, essa experiência de violência é caracterizada pela imbricação das discriminações de classe, raça e gênero. Trata-se de uma violência de gênero que não pode ser isolada de outras formas de opressão, como a pobreza e o racismo. Por trás da dificuldade das trabalhadoras domésticas em nomear e denunciar o assédio sexual, é necessário reconhecer o contexto social mais amplo, que, no plano individual e coletivo, nega e deslegitima suas vivências de opressão estrutural e suas palavras para nomeá-las. A escassez de dados sobre esse fenômeno está ligada a dois fatores principais: a histórica tendência a negar a violência estrutural que afeta as mulheres pobres e negras; a dificuldade de um ambiente universitário, durante muitos anos composto por pessoas brancas de classe média, em abordar a imbricação de racismo, sexismo e desigualdades de classe na vida das trabalhadoras domésticas.
Apesar das dificuldades estruturais em abordar o assunto, a possibilidade de falar sobre as experiências de assédio sexual durante a entrevista tornou-se para as trabalhadoras uma oportunidade não apenas para denunciar, mas também para compartilhar uma análise mais ampla sobre as condições de trabalho e de vida. Assim, a compreensão dessas experiências de assédio só se torna possível se a entendermos em relação às outras formas de opressão, de classe e de raça que elas vivem. Um aspecto a ser ressaltado é a reflexão das trabalhadoras sobre a posição das empregadoras ante o assédio sexual perpetrado pelo marido. Mesmo sendo o assédio sexual, como a própria expressão indica, um assédio marcado pelas relações sociais de sexo, não há entre as trabalhadoras uma expectativa de solidariedade de gênero por parte da empregadora, pois elas reconhecem que outras relações de poder interferem e que também e contemporaneamente marcam esse assédio em termos de raça e classe. Nas falas das entrevistadas, as desigualdades de classe e o racismo constituem o principal terreno de encontro entre trabalhadoras domésticas e empregadoras; por isso, elas avaliam que para a empregadora é mais importante acreditar no marido do que na trabalhadora, validando assim o próprio privilégio de classe e raça e reproduzindo o racismo e a opressão de classe. Isso não significa que não reconhecem quando as empregadoras enxergam a situação de violência perpetrada pelos homens da família, como demonstram os dois casos relatados. Assim, nas falas das entrevistadas há uma visão da realidade em termos de imbricação de relações sociais: mesmo não utilizando o termo, elas vivem e descrevem a constante interligação entre as opressões de raça, sexo e classe.
Nesse quadro, o papel do sindicato é fundamental. A dificuldade em nomear o assédio é percebida pelas sindicalistas como uma forma de omissão falante que elas respeitam justamente porque há um reconhecimento recíproco. Com efeito, elas têm consciência dos obstáculos que as mulheres enfrentariam se fizessem uma denúncia e, portanto, reconhecem o silêncio como uma forma de “resposta estratégica a posições de relativa falta de poder” (Gal, 1991, p. 182). É justamente essa análise que permite dar apoio para sair do silêncio. Se considerarmos a dificuldade das trabalhadoras em nomear o assédio no mais amplo contexto da combinação de racismo, sexismo e desigualdades de classe que elas vivenciam, entenderemos como o silêncio se torna uma forma de resiliência, um modo para denunciar o nível de opressão vivido e o sentimento de impotência.
* Valeria Ribeiro Corossacz é doutora em antropologia social pela E.H.E.S.S. de Paris em cotutela com a Università di Siena. Sua área de pesquisa é a imbricação de racismo, sexismo e desigualdade de classe. É professora de antropologia na Universidade de Modena e Reggio Emilia, Itália. É autora, dentre outros, dos livros O corpo da nação. Classificação racial e gestão social da reprodução em hospitais da rede pública do Rio de Janeiro (UFRJ Editora, 2009), e White middle-class men in Rio de Janeiro. The making of a dominant subject (Lexington Books, 20018).
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Notas
[1] Em Brasília, de 25 entrevistadas, 7 declararam ter sofrido assédio sexual (2011, p. 145).
[2] Contudo, é necessário aprofundar com dados ulteriores o modo como ocorre a distribuição do trabalho doméstico nas famílias das trabalhadoras domésticas.
[3] Ao contrário dos outros sindicatos encontrados, o de Natal não tem vínculos com a CUT, mas é filiado à Força Sindical de São Paulo, do qual, no entanto, Israel lamenta nunca ter recebido apoio.
[4] Barbosa nota como muitas vezes é embaraçoso tratar desse assunto, seja por parte do pesquisador, seja por parte das entrevistadas (2000).
[5] No Rio e em Nova Iguaçu, também havia outras advogadas que trabalhavam para o sindicato; porém, não consegui entrar em contato com elas.
Alguns acontecimentos aceleram o tempo. A nova edição da Revista Z Cultural, “Modos de ser na cidade”, estava já organizada quando a epidemia da COVID-19 modificou, em poucas semanas, os modos como vivemos nas cidades. De repente, estar perto ou longe mudou de significado, e passamos a experimentar uma temporalidade ao mesmo tempo acelerada – acompanhando em tempo real as atualizações sobre números de infectados e mortos e as medidas de governos em todo o mundo para conter a epidemia – e em suspenso – isolados em casa, sem saber quando a cidade voltará a ser lugar de encontro.
Em uma revista dedicada ao contemporâneo, não podíamos deixar de refletir a emergência desse acontecimento. Por isso, preparamos um primeiro volume da nova edição, “Modos de ser na cidade: a cidade em quarentena”, em que reunimos artigos escritos no calor do momento, híbridos de testemunho e reflexão. A antropóloga Valeria Ribeiro Corossacz, professora da Università degli Studi di Modena e Reggio Emilia, adota o ponto de vista da mulher em quarentena na Itália, mostrando como “a nossa vida biológica, que tanto queremos proteger, não pode existir sem nossa vida social e sobretudo relacional”. Em “A cidade sob ataque ou como sobreviver entre ruínas”, o professor da Sapienza Universidade de Roma Ettore Finazzi-Agrò discute como a cidade enquanto lugar que torna “a existência individual uma coexistência” transforma-se em “enormes lazaretos”, dando lugar a um “espaço constelado por vazios” e a um “tempo parado”. E Luiz Eduardo Soares, antropólogo e professor aposentado da UERJ, usa a metáfora da respiração artificial – última esperança dos infectados pelo novo coronavírus que tenham desenvolvido a síndrome aguda respiratória – para falar do Rio de Janeiro como cidade sem oxigênio. “A pandemia das desigualdades abissais e do racismo estrutural não sufocava, não matava, não atrofiava tantas vidas?”, pergunta Soares. De Berlim, a poeta, fotógrafa e tradutora Adelaide Ivánova contribui com “Ken Loach #2”, poema-roteiro que é antes de tudo uma escuta do outro – no caso, de uma mulher aposentada e solitária tentando se manter em um bairro que passa por “gentrificação”, na iminência da pandemia.
Além das reflexões-testemunhos sobre a pandemia, esta edição publica três artigos do dossiê sobre a cidade. No primeiro, o arquiteto e ativista Alberto Kerdman Bloch fala da ocupação do entorno da Lagoa de Geribá, em Armação dos Búzios (RJ). O segundo é um ensaio em que o professor Marco Chandía Araya busca na literatura latino-americana a imagem do umbral (o limiar, a soleira) para falar da organização da vida urbana no continente. No terceiro, o economista e urbanista Edmar Augusto Santos de Araujo Junior usa a teoria econômica do valor para repensar criticamente as políticas de conservação do patrimônio público. Publicamos ainda um ensaio da historiadora da arte e curadora Andrea Giunta sobre a artista plástica brasileira Rosana Paulino; entrevistas com os arquitetos e urbanistas Tainá de Paula e Sérgio Magalhães sobre os desafios de um projeto de cidade inclusivo; e uma resenha do romance Desta terra nada vai sobrar, a não ser o vento que sopra sobre ela (2018), de Ignácio de Loyola Brandão, por Augusto Guimaraens Cavalcanti.
Adiado pela emergência da crise, o segundo volume de “Modos de ser na cidade”, já preparado e composto pelos artigos que responderam à última chamada da revista, será lançado em breve. Quem sabe, então, a quarentena tenha nos obrigado a repensar a cidade e estejamos a caminho de cidades muito diferentes, renovadas, potencializadas nos seus dons de circulação e convivência com o diferente.
Agradecemos ao fotógrafo Bruno Veiga pela gentil cessão da foto da capa deste volume da revista.
Não é fácil escrever neste momento contando o que estamos vivendo na Itália, contando com um estado de suspensão. A cada dia que passa se torna claro que é o começo de uma nova normalidade que não conhecemos. Na verdade, o que posso fazer é escrever o que estou vivendo, me posicionando, como aprendi a fazer sempre enquanto antropóloga feminista.
A minha experiência do isolamento é determinada por minha cor branca, por minha classe média, por meu emprego público e por meu gênero, mas no começo foi antes de tudo situada geograficamente.
Moro em Roma, mas trabalho numa universidade em uma das regiões mais atingidas pela epidemia, a Emilia Romagna. Antes que Roma parasse, assim como o resto do país, eu parei de pegar o trem para ir trabalhar, recebi indicação de começar a gravar as aulas em casa, quando as escolas de Roma ainda estavam abertas.
Experimentei antes das pessoas que conheço em Roma a dimensão prevalente desta epidemia: não enfrentamos essa emergência toda/os da mesma condição. Há quem sofre mais no isolamento, quem sofre menos, há quem pode continuar trabalhando, quem não pode, quem perde o emprego, mas mesmo assim estamos juntos, de uma forma única e nova para nós. A saúde de um cidadão qualquer é importante para a minha saúde, o coletivo se tornou prioridade sobre as individualidades e para o que muitos concebem simplesmente como “minhas liberdades”.
Relembrando o que aconteceu: dia 21 de fevereiro é descoberto o primeiro paciente Covid-19 no Norte da Itália, a partir daquele momento algumas cidades são fechadas, ninguém sai, ninguém entra, mas o resto do país continua normalmente. Dia 4 de março fecham todas as escolas do país, dia 8 o país inteiro se torna “zona vermelha” e o primeiro-ministro pede para os italianos ficarem em casa. Dia 11 todos os estabelecimentos comercias não essenciais são fechados, ficam abertas lojas de comida e farmácias. Dia 22, frente ao crescimento dos contágios e das mortes e com as greves espontâneas do/as trabalhadoras dentro de várias fábricas, o primeiro-ministro decide fechar a produção de bens não essenciais e não estratégicos para a economia do país.
Essas datas não são suficientes para entender o tempo psicológico de uma experiência completamente nova, em que cada um demorou o seu próprio tempo para entender realmente o que estava acontecendo, como essas decisões iam afetar a própria rotina. Coisas banais, que fazíamos automaticamente, não são mais banais nem permitidas. Desde dia 11 de março já foi mudado quatro vezes o modelo de declaração necessário para sair de casa, há controles da polícia nas ruas de carros e transeuntes.
Os primeiros dias foram marcados pela campanha #euficoemcasa, a que todos foram chamados a aderir com senso de responsabilidade, fazendo um esforço coletivo para limitar os contágios e aliviar o fluxo de doentes para os hospitais. Fomos bombardeados por mensagens, áudios, entrevistas, artigos e vídeos nos contando a tragédia dos hospitais, onde médicos deviam escolher (e ainda devem) quem entubar e quem não entubar, quem poderia viver e quem não. Mas é possível falar em uma comunidade nacional que, coletivamente, cada um fazendo sua própria parte, enfrenta o contágio? Por quem é formada essa comunidade nacional?
A responsabilização dos indivíduos que não devem sair de casa, que não devem passear, foi logo tema de reflexões e alvo de críticas: e quem não pode deixar de sair? Quem precisa trabalhar, ou ajudar uma pessoa dependente? A lei prevê e autoriza esse tipo de motivação para os deslocamentos, mas o que acontece com quem não tem casa, ou com os/as que estão presos nos centros de detenção para pessoas estrangeiras consideradas “ilegais”. O que acontece com as mulheres que vivem violência doméstica? O que acontece com as pessoas com transtornos mentais, ou com equilíbrio mental que requer um momento diário fora de casa e afastado das relações familiares? A retórica #euficoemcasa exclui quem não pode ficar em casa de forma segura e saudável, narra uma realidade parcial, tentando produzir um sentimento de coletividade a que muitos/as aderiram com convicção, inclusive pelo alívio psicológico por se sentir parte de uma coletividade, enquanto estamos numa condição de solidão e isolamento forçados, prolongados e sem saber quanto tempo vai durar.
Outro momento de produção de união que encheu muitos corações de força foi quando os/as italianas tocaram ou cantaram música nas janelas abertas no mesmo horário (18 horas). Em muitos casos foi tocado o hino nacional, mas aconteceram variações interessantes, como “Bella Ciao”, a música da Resistência ao fascismo. Mas quem está na condição de poder tocar uma música, de cantar? Enquanto na minha cidade, em muitos bairros, esse foi um momento de união e solidariedade entre pessoas que não se conheciam, para os habitantes das cidades mais atingidas não era imaginável ter um momento de música. O luto, a morte e perda de pessoas queridas ou conhecidas, a angústia pelas contagiadas, pelas muitas pessoas com febre e tosse em casa sem ser devidamente atendidas, e o medo pelos trabalhadores nos hospitais, tudo isso podia tornar o espaço da música coletiva uma farsa. E o que dizer das revoltas nos cárceres depois que foram vedadas as visitas como medida para conter o propagação do vírus, durante as quais morreram detidos, muitos por overdose de remédios que foram roubados da farmácia da prisão. De novo, nos perguntamos por quem é formada essa comunidade nacional.
Quando, apesar das restrições aos movimentos individuais, o número dos contágios continuava subindo, sobretudo nas regiões mais ricas do país, que são as mais atingidas, e aumentavam as notícias sobre greves auto-organizadas nas usinas e fábricas, ficou claro que responsabilizar o indivíduo contribuía para esconder, disfarçar duas questões:
1. O sistema da grande produção não queria parar de produzir – o capitalismo não quer parar – e a rede de saúde pública dessas regiões, sobretudo da Lombardia, que se definia como “excelente”, não estava preparada para lidar com essa situação.
2. A configuração de uma realidade em termos de saúde versus capitalismo, que também outros países (fora a China) estão enfrentando, demonstrou as resistências dos proprietários dos meios de produção em parar de produzir e se concretizou na persecução individual de quem está fora de casa, aparentemente sem motivo.
Como se toda/os pudéssemos da mesma forma contribuir para a diminuição dos contágios. A prefeitura de Roma chegou ao cúmulo de lançar um aplicativo para que os cidadãos possam denunciar, em forma de verdadeira delação, grupos de pessoas na rua.[1] Nas cidades, carros da polícia circulam com megafones mandando ficar em casa. Enquanto isso, há pessoas que devem ir trabalhar sem as devidas medidas de segurança, porque a economia não pode parar.
O desafio então em que me encontro, junto a muitas outras pessoas, é procurar o equilíbrio necessário entre participar individualmente com os nossos atos ao esforço de conter o contágio através do isolamento e distanciamento social, mas também reconhecer como esse esforço, sem adequadas medidas, se transforma em um mecanismo de reprodução das opressões e das desigualdades de classe, raça e gênero.
Se de um lado esse vírus parece ser democrático na sua forma de contagiar (quem mais tem vida social, mais é exposto), do outro sabemos que ser curado depende de outros fatores: o acesso aos serviços médicos, e antes de tudo a presença de serviços médicos adequados.
A Itália, como outros países, está experimentando os resultados de décadas de cortes à saúde pública praticados por governos de esquerda e de direita. A escassez de recursos públicos para a área da saúde é o resultado da adesão incondicional da classe que nos governou à economia neoliberal, propagada pela União Europeia. Médicos e enfermeiros são a categoria mais atingida em termos de mortes pelo vírus, por falta de medidas de segurança. Se nos parece impossível pensar que pode existir uma alternativa a esse sistema, então temos que reler Mark Fisher. O medo que os mais poderosos têm de perder os privilégios é para nós o motor para pensar que outra sociedade é possível, para mudar.
Uma das questões sobre as quais temos que refletir, e que é resultado da produção feminista, é o quanto o doméstico é político, o quanto o espaço doméstico é central na reprodução de relações de opressão de raça, gênero e classe. As mulheres são as que estão pagando o preço mais alto da emergência, tendo que fazer frente a todas as necessidades que antes eram organizadas fora de casa ou através da ajuda de pessoas externas ao núcleo doméstico.[2] Se parece que as mulheres morrem menos do que os homens, a suspensão da normalidade (como por exemplo o fechamento das escolas) implica em aumento do trabalho e cuidados feito pelas mulheres.
Calcula-se que na Itália há 2 milhões de trabalhadoras domésticas, na maior parte estrangeiras e não regularizadas, que não foram até agora incluídas nas medidas tomadas para ajudar quem ficou sem poder trabalhar.
Como no resto do mundo, também na Itália o trabalho doméstico tende a não ser formalizado e é exposto a diversas formas de exploração. Não incluir nas medidas de compensação salarial as trabalhadoras domésticas é uma escolha política que atinge de forma violenta as mulheres de classe popular e muitas vezes de origem estrangeira, na base do argumento, mais ou menos implícito, que trabalho doméstico não é trabalho como os outros. Esse argumento, que afeta de forma diferente a vida de todas as mulheres que cumprem trabalho doméstico, nesse momento específico tem como consequência também invisibilizar o trabalho das mulheres que vão assumir “naturalmente” as tarefas que não são mais cumpridas pelas trabalhadoras domésticas[3]. Há quem considere que a própria trabalhadora doméstica deve continuar trabalhando nesses dias de isolamento, porque a limpeza da casa não pode ser organizada de uma forma nova e mais igualitária dentro da família. Temos que registrar como é difícil para muitos empregadores aceitar pagar o salário e deixar a trabalhadora também cumprir o isolamento.
Nessa nova vida, como é o tempo de trabalho dentro de casa de um casal heterossexual com filhos? Quem atende às necessidades das crianças? Quantas interrupções no trabalho de cada um dos parceiros? Quem cuida da casa quando todos estão sempre em casa? Se essa experiência de isolamento, de suspensão da economia e da rotina poderia representar um momento de transformação radical, isso não pode ser afirmado só em relação à economia global capitalística, porque sabemos que não existe a dicotomia produção/reprodução.
A revolução radical que muitos dizem podermos realizar a partir desse momento de crise do capitalismo globalizado (penso por exemplo em Žižek[4]) não pode acontecer se não focarmos também na revolução dentro das nossas casas, nas nossas unidades domésticas, onde o trabalho repetitivo, cansativo do ponto de vista físico e psicológico, deve ser repensando numa perspectiva feminista.
Como sabemos, a casa não é um lugar seguro para muitas mulheres, apesar de ser um abrigo para muitas frente à opressão de raça, classe e religião que vivem na sociedade. Os dados dizem que, desde a atuação das medidas de isolamento, caiu brutalmente o número de crimes na rua, e aumentou o número dos crimes dentro de casa. Para as mulheres e crianças que sofrem violência doméstica, para as pessoas LGBTQ que vivem em famílias que negam suas escolhas, ficar em casa significa não poder ter acesso às relações sociais que reconhecem a violência que estão vivendo. Para essas pessoas são as relações fora de casa que representam justamente uma segurança. As feministas de “Non una di meno” (“Nem uma a menos”, movimento nascido em 2016) lançaram uma campanha, #euficoemcasamas, para denunciar as implicações para muitas mulheres de ficarem dentro de casa.[5]
A campanha visa abrir espaços virtuais em que se possa comunicar o que as mulheres vivem, as mudanças na relação com o espaço e o tempo, denunciar e conseguir apoio para sair da violência doméstica entrando em abrigos institucionais e denunciar as formas de legitimação da violência de gênero e homo-transfóbica a que assistimos no Facebook e em outras redes sociais. Além da questão da violência sexual e física, o isolamento forçado aumenta a dependência econômica de muitas mulheres, o que por sua vez as torna mais vulneráveis do ponto vista da autonomia sexual.
Não podemos aceitar que haja mulheres que devem escolher entre defender a própria saúde e defender a própria pessoa da violência de gênero. O que vemos nessa crise mundial é que falta uma análise adequada de como sexo e gênero impactam nos contágios, nas mortes e na vida de quem enfrenta a existência na epidemia. Na Itália se calcula que as mulheres representam 1/3 das mortes por Covid-19, mas não sabemos o porquê, inclusive porque a cada dia que passa fica mais claro que os dados que temos não são confiáveis (como, quem recolhe os dados?). Falta saber também como origem nacional e classe impactam nos contágios. Precisamos de uma análise e de uma política de intervenção que considerem a imbricação das relações sociais em que vivemos.
Outro aspecto impactante desses dias é o fato de que muitas pessoas estão lidando com o luto sem poder se despedir de quem morreu. Os doentes que entram nos hospitais não recebem visitas, os médicos ligam para as famílias para dar notícias, inclusive para informar sobre a morte. Quando isso acontece, a família não pode recuperar o contato com o morto, os enterros são proibidos para evitar concentrações e às vezes não há espaço suficiente para guardar todos os caixões.[6]
É comum acontecer da família não saber para onde o corpo foi levado, onde foi enterrado. Em muitos casos não há notícias, o que leva a uma relação com o luto completamente nova, que se caracteriza por ser uma experiência ao mesmo tempo individual e coletiva, feita em ausência de relações e contato físico.
Como sabemos, por lei hoje não podemos nos abraçar, nos tocar, chorar no ombro de alguém, não é possível a experiência concreta do carinho. Ainda não sabemos os efeitos desta nova maneira de viver o luto nas comunidades mais atingidas, a falta de relações e de um ritual culturalmente reconhecido como apropriado para se despedir do morto é uma novidade para a nossa sociedade. Neste momento de emergência e crise é possível que as pessoas que perderam alguém querido se concentrem no presente, nas necessidades atuais, inclusive a de não serem contagiados, mas quais os efeitos no tempo de um luto sem relações, sem rituais de despedida?
Muitos apontam para o fato de que na maior parte os mortos são pessoas idosas, como se essa informação nos ajudasse a resistir e ter esperança, e racionalmente isso faz sentido (e essa é a lógica que levou os médicos a considerarem, em falta de recursos para todos, optar por curar os pacientes mais novos). Mas o sofrimento invade nossos corações.
Surpreendi-me ao ouvir umas das mensagens que o presidente da República enviou aos italianos nesse momento, dedicada exatamente à importância que as pessoas idosas têm nas famílias, sobretudo para as crianças. Em que sentido os idosos são importantes para nós? Não é só uma questão de afetos, é também uma configuração de práticas cotidianas, que são feitas de afeto, de presenças nos espaços públicos e privados, um modo para todas as gerações de imaginar o que significa “vida”. Fora das escolas primárias vemos um grande número de avós esperando a saída dos netos, e há quem chame atenção sobre a intensidade de contato entre crianças e idosos na nossa sociedade para explicar o alto número de mortos e contagiados em comparação a outros países europeus. A presença dos avós para cuidar das crianças aponta como a organização do trabalho produtivo e reprodutivo determina que não seja previsto para os pais (sobretudo os homens) o tempo do cuidado, o tempo para a reprodução da vida.
Enfim, não podemos deixar de lembrar também que muitos desses idosos recebiam uma aposentadoria, que talvez ajudasse membros da família mais novos que sobreviveram ao contágio.
O que estamos vivendo é certamente uma experiência que nos permite entender, de uma forma nova e dramática, algo que ensinamos nos cursos de antropologia: a nossa vida biológica, que tanto queremos proteger, não pode existir sem nossa vida social e sobretudo relacional. Somos humanos porque feitos de relações e de cultura, a nossa vida é feita de relações, e está sendo muito difícil proteger a vida de um vírus através do isolamento, da falta de contato físico.
Nessas semanas, descobri que a casa pode não ser mais o lugar da intimidade: o que me falta é a intimidade que experimento quando ando na rua, nos trens, quando cruzo pessoas, quando os olhares não são o meio para calcular quantos metros temos entre nós.
Sinto falta da minha cidade onde as relações anônimas, mas sempre sociais, constituíam também a minha intimidade.
* Valeria Ribeiro Corossacz é professora associada de antropologia da Università degli Studi di Modena e Reggio Emilia, Itália.
[2] Esse aspecto não é específico da Itália, ver “COVID-19: the gendered impacts of the outbreak”, em https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(20)30526-2/fulltext.
[6] Na cidade de Bergamo, a mais atingida, 310 foram os mortos levados para fora da cidade para serem cremados (notícia no Rádio Jornal RAI1 do dia 29 de março de 2020).
E de repente aqueles homens podiam ser montão, montoeira, aos milhares mis e centos milhentos, vinham se desentocando e formando, do brenhal, enchiam os caminhos todos, tomavam conta das cidades. E pegavam as mulheres, e puxavam para as ruas, com pouco nem se tinha mais ruas, nem roupinhas de meninos, nem casas. […] Era preciso de mandar tocar depressa os sinos das igrejas, urgência implorando de Deus o socorro. E adiantava? Onde é que os moradores iam achar grotas e fundões para se esconderem – Deus me diga?
João Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas
Estes eram homens e mulheres, menores e morenos, de olhos esquivos e inquietos, e que, por serem fugitivos e desesperados, tinham em nome de que viver e morrer. Eles habitaram as casas em ruínas, multiplicaram-se, constituindo uma raça humana muito contemplativa. […] Há alguma coisa aqui que me dá medo. Quando eu descobrir o que me assusta, saberei também o que amo aqui. O medo sempre me guiou para o que eu quero. E porque eu quero, temo.
Clarice Lispector, “Brasília”
Viver numa cidade – e não importa, agora, o seu tamanho – significou, até hoje e em via de regra, conviver com os outros, tornando a existência individual uma coexistência. A vida urbana, em suma, sempre foi basicamente ligada ao que Heidegger definiu como mitsein, o “ser com”, o que significa ainda compartilhar experiências, ideias e práticas, tempos e espaços vitais, até chegar à definição daquilo que o sujeito é ou deveria ser. E tudo isso acontecia graças ao confronto com o Outro, que podia levar, por sua vez, tanto à identificação empática com ele, quanto à discriminação e à exclusão daquilo que se considerava diferente e hostil.
A cidade era, nesse sentido – e retomando as teorias de Roberto Esposito –, o espaço comunitário por excelência dentro do qual, todavia, podia agir um mecanismo ao mesmo tempo imunitário ou discriminatório, gerado pelo medo daquilo que se apresentava como novo ou estranho/estrangeiro. A cidade, qualquer cidade, produzia ou reproduzia, nessa perspectiva, o paradigma político, ou talvez biopolítico, que sustenta as relações de poder no mundo contemporâneo. Essa oscilação entre a inclusão e a exclusão tornava a dimensão urbana – sempre até ontem, antes da “grande doença” – mais complexa e bastante diferente da imagem totalmente disfórica (e, a meu ver, implicitamente eufórica) que nos deu, por exemplo, Émile Verhaeren no seu Les villes tentaculaires, e não correspondia mais, de resto, à visão ainda mais antiga que, da vida urbana, nos ofereceu Baudelaire.
O ritmo e o crescimento das cidades, com efeito, fizeram com que elas ocultassem aos poucos, nas suas dobras ou atrás das suas esquinas, a forma horizontal originária, para dar lugar a uma dimensão sempre mais vertical, tanto em sentido físico quanto metafórico, tanto arquitetônico (“concreto”, na ambivalência do termo) quanto social. Os arranha-céus, que despontaram inúmeros nos espaços esvaziados de cortiços e casebres, podem ser considerados, em princípio, exatamente os emblemas duma relação do alto para o baixo que distingue os incluídos dos excluídos no contexto urbano – sem apagar, porém, o movimento expansivo da urbs monstruosa e tentacular, espraiando casas e homens num território sempre mais vasto.
Esse distanciamento entre as classes não só não salvou os privilegiados do contato com aqueles que não “têm poder nenhum” (como diria Guimarães Rosa), mas produziu, por paradoxo, uma multiplicação infinita dos choques imaginados por Baudelaire, até eles perderem o seu caráter de revelação do inesperado. O choque, de fato, o encontro ou o confronto com o diferente, não era mais um episódio isolado, mas um mecanismo multiplicado e esperado de relações entre os indivíduos ou entre as classes – classes que, por sua vez, perderam aos poucos os seus confins exatos, embora continue até hoje a existir uma massa indefinida de outsiders, de excluídos e misérrimos que não pertencem a nenhuma categoria. Para dar um exemplo brasileiro, o fato de virar uma esquina e passar do luxo e da maravilha da Sala São Paulo – patrimônio cultural e arquitetônico das elites – para a região de Cracolândia inutilizava qualquer surpresa, neutralizando-a. Tratava-se, no fundo, de uma convivência que, descontando a permanência das diferenças, misturava-as, todavia, num microcosmo onde a comunidade se tornava a outra face da imunidade, numa coexistência sempre regulamentada por um Poder soberano que canonizava os comportamentos justos e errados, legitimando-se pela força da Lei.
Aquilo que eu quero dizer, no fundo, é que a cidade contemporânea, pelo menos até ontem, questionava e punha em dúvida as categorias clássicas, confundindo o horizontal e o vertical, o dentro e o fora, criando um curto-circuito entre as noções estabelecidas de cidadão (membro da pólis, com os seus requisitos políticos) e de habitador da cidade (de quem circula por ela sem a ela pertencer, de quem mora nela sem demorar). Um discrime, todavia, que a atual situação de contágio geral da população parece anular (visto que todos estão sujeitos à pandemia, que, como nos diz a raiz da palavra, é um fenômeno patológico que diz respeito a toda a população, ao dêmos), mas que, na verdade, continua a se repropor no momento em que o slogan atual “stay at home”, repetido de forma obsessiva, exclui justamente aqueles que não têm casa e que, sendo “sem-teto”, aparentam não pertencer (e, de fato, não pertencem) ao dêmos.
A epidemia generalizada, mudando o aspecto e o ritmo da cidade, suspendendo o seu tempo e esvaziando os seus espaços comunitários, coloca, portanto, novas e inesperadas questões sociais e políticas (ainda relacionadas, então, com a pólis) que devem levar não só a repensar a cidade como coexistência de muitos, mas a reavaliar direitos e deveres individuais. Assistimos, em outras palavras, a uma subtração ou a uma limitação das prerrogativas próprias de todos os cidadãos – daqueles que moram na rua como daqueles que demoram nas suas casas e nos seus arranha-céus –, visto que todos estão obrigados, diante duma Lei pensada para salvaguardar a “saúde pública”, a se submeter às ordens impostas pelo Poder. O problema sociopolítico reside, justamente, nessa compulsória imposição dos deveres, nessa supressão ou limitação dos direitos.
Num artigo recente, Giorgio Agamben questionou, justamente, o atual estado de exceção que, em aparência, limita fortemente a autodeterminação do sujeito, tomando conta da nossa vida tanto individual quanto – e sobretudo – coletiva. Essa “abolição do nosso próximo”, enquanto possível portador do contágio, seria, na opinião do ilustre filósofo, uma medida autoritária que levaria, justamente, à anulação daquela convivência que é o princípio sobre o qual se rege a dimensão urbana. Se é verdade, por um lado, que a pandemia, proibindo os contatos entre as pessoas ou a circulação no espaço urbano, leva a uma desfiguração completa (social, política, econômica…) das cidades – e basta olhar para o esvaziamento completo de praças e ruas, que tem transformado os “espaços públicos” em lugares desertos e imóveis, ao ponto de lembrar um quadro metafísico, à la manière de De Chirico –, devemos, por outro lado, considerar que os regimes que se mostraram e se mostram mais reticentes em tomar medidas mais rigorosas são em geral (com a exceção da China, onde tudo começou) os regimes populistas, soberanistas ou até pseudofascistas, como os Estados Unidos de Trump, a Grã-Bretanha de Johnson e, não por acaso, o Brasil de Bolsonaro.
Se podemos, então, concordar em via teórica com Agamben, visto que todos nós renunciamos a uma parte importante da nossa liberdade e dos nossos direitos, não podemos todavia esquecer que aquilo que está em jogo é a nossa existência e a dos outros, ou, para usar uma expressão de Walter Benjamin tantas vezes evocada pelo filósofo italiano, a “vida nua”, a nossa pura sobrevivência enquanto espécie humana. Diante de milhares de mortos, de milhões de contagiados, não vejo alternativas ao sequestro, imposto e, ao mesmo tempo, livremente escolhido, de nós mesmos, tornados agentes patógenos em relação aos outros.
Tudo isso, aliás, acaba inutilizando, pelo menos em parte, as considerações de Guy Debord, avançadas no capítulo 172 do seu La société du spectacle, sobre a imagem ambivalente da cidade que o urbanismo moderno persegue através do isolamento dos seus habitantes. Citando:
O movimento geral do isolamento, que é a realidade do urbanismo, deve também conter uma reintegração controlada dos trabalhadores, segundo as necessidades planificáveis da produção e do consumo. A integração no sistema deve apoderar-se dos indivíduos isolados em conjunto: fábricas, casas da cultura, colônias de férias, todas essas coisas devem funcionar como “grandes conjuntos habitacionais”, especialmente organizados para os fins desta pseudocoletividade que acompanha também o indivíduo isolado na célula familiar: o emprego generalizado dos receptores da mensagem espetacular faz com que o seu isolamento se encontre povoado pelas imagens dominantes, imagens que somente através deste isolamento adquirem seu pleno poderio.
De fato, nessa crítica contundente da sociedade capitalista, aquilo que necessariamente falta é a possível emergência dum fator que não é nem político nem econômico, mas patológico, fruto, então, duma globalização incontrolável da doença contra a qual não temos armas senão o isolamento individual que nos expõe sozinhos – e nisso concordo com o ilustre filosofo – às “imagens dominantes”. E que a análise, embora magistral, não possa ser aplicada ao tempo presente, o demonstra a ideia da existência daqueles grandes conjuntos habitacionais que, pelo contrário, o atual Poder imunizador proíbe, não só de habitar, mas de frequentar, seja mesmo de forma esporádica.
As cidades de hoje, enormes lazaretos, perderam, assim, as suas características, impedindo qualquer convivência, qualquer circulação das pessoas: nem villes tentaculaires, nem dimensões onde os indivíduos se chocam ou se mesclam em lugares promíscuos, elas mantêm, sim, as suas prerrogativas urbanísticas e arquitetônicas, que perduram, todavia, num tempo parado e num espaço constelado por vazios, caracterizado por lugares totalmente desertos. Cidades, enfim, que sobrevivem numa “espera enorme” (para citar ainda uma definição do deserto/sertão rosiano), num “silêncio imenso” (lembrando Macunaíma), onde resta e no qual ecoa apenas a esperança daquilo que pode acontecer, daquilo que com certeza vai acontecer, mas em contextos que não vão permanecer com certeza iguais ao que eram.
As cidades tentaculares e tentadoras de Verhaeren (opostas, na sua visão, tanto a Les campagnes hallucinées, quanto a Les villages illusoires, numa rígida, quase psicótica, taxonomia), ou, para dar outro exemplo, a Metropolis de Fritz Lang de anteontem, depois a nossa cidade de ontem e, afinal, esta estranha e alienante cidade de hoje – dimensão assolada na qual vivemos mas não convivemos – acabam desenhando, no decorrer de pouco mais de um século, uma sequência de mudanças radicais da qual desconhecemos os êxitos. Eu, pelo menos, não os conheço: eu em fuga dos outros, sozinho por emergência, sobrevivendo, num contexto de mortos e doentes, numa normalidade totalmente anormal, numa condição inabitual dentro do meu espaço habitual – na habitação, enfim, na qual estou “isolado em conjunto”, longe dos outros e perto de mim mesmo, tentando todavia escapar ao poderio das “imagens dominantes”, impostas pela sociedade do espetáculo e veiculadas, agora, pela comunidade virtual e imunitária da rede.
(E o Rio, cadê?
Como o clichê, e o real,
desmanchou no ácido
de Venceslau.
E o sol, cadê?
Cadê o carnaval?
E o samba, José?
O Rio dançou?)
1. Abominações introdutórias
O Rio de Janeiro é um clichê global poderoso que está em xeque. A cidade rebelou-se contra seu retrato. O Dorian Gray urbano precisa da degradação de sua imagem-fetiche para libertar-se do feitiço e viver, assumindo os riscos e as novas possibilidades. Cumpre destruir a imagem encantada e deixar morrer o que sobrevivera às custas da fantasia benevolente. Esta é a exigência dos milhões de cariocas que se rebelam contra a domesticação imposta pela história edulcorada que contamos a nós mesmos sobre o que somos. Esta é a agenda de quem ama a liberdade e a justiça, nas suas mais variadas acepções. O tempo da autoindulgência acabou. O Rio atravessa um momento doloroso e fecundo de perigo e reinvenção. A estação de fúria e tempestades não anula o mar, o sol, o esplendor da mata Atlântica e a dança infinita, mas estilhaça ilusões e incinera a pachorra pusilânime dos cartões postais.
O parágrafo acima é a abertura da introdução a meu livro Rio de Janeiro: histórias de vida e morte, publicado em 2015 (Companhia das Letras). O livro saiu na Inglaterra em 2016 (editado pela Penguin) e o jornal The Guardian me convidou para escrever um ensaio sobre a cidade, que seria publicado no dia da inauguração das Olimpíadas. Lendo o resultado da encomenda, decidiram transferir a publicação para a data do término dos jogos. Consideraram meu artigo “less celebratory” do que esperavam e o momento pedia. Recordando tudo o que aconteceu com o Rio na última década, me parece tão óbvio o que escrevi. O monumento de iniquidades estava diante de nós, escancarado, e o frenesi das obras municipais não ocultava a decadência que se infiltrava por todos os poros. Tomo a liberdade de citar ainda o título da introdução: “A Grande Guerra contra o Clichê”. Explico a importância que confiro ao tema: “… a imagem não é só um erro. É um mapa que orienta comportamentos e percepções cotidianos. Não é apenas um retrato falso, mas um modelo restritivo que aprisiona, em uma identidade, a pluralidade de modos de ser e sentir.” Por fim, descrevendo mudanças em curso, concluo:
Se a velha ordem desfaz-se, grão a grão, se o clichê está em chamas, qual ponto de vista adotar para testemunhar esse processo? A primeira pessoa impõe-se como a perspectiva mais razoável e honesta. Sobretudo quando o mundo que balança e vai cedendo lugar a outro repercute tanto em dimensões subjetivas e na vida privada, quanto em níveis substantivos e na esfera pública. É interessante registrar que nesse trânsito entre mundos, sutileza e estrondo substituem-se a todo momento e, por vezes, confundem-se, a depender da sensibilidade do observador. Até porque os mundos distintos, ou antagônicos, conviverão. Pureza é a qualidade da teoria, não da história, muito menos das histórias contadas de pontos de vista particulares.
Pois hoje, março de 2020, blindado pelo confinamento doméstico para deter a expansão da pandemia, empenhado em redigir o diário do bunker, declaro a quem possa interessar: a primeira pessoa talvez não seja apenas uma solução para lidar com a experiência íntima de processos históricos ainda em curso, muito menos uma estratégia estilística, eixo de construção estética ou declaração de enviesamento cognitivo. Tornou-se um imperativo, esse “eu” testemunhal, única janela que me oferece uma fresta para a cidade, fora o tsunami virtual. E daqui não vejo o Redentor, que lindo, cartão postal e alegoria, mas restos e detritos, memória do caos.
Curioso, o suporte canônico do relato sobre a cidade em primeira pessoa é o flâneur, andarilho sem norte que inspeciona as dobras da vida e faz do léu remédio para o breu, não se intimidando ante a opacidade das paredes e a espessura dos sentidos. Hoje, não. O regime da imobilidade inverte a flânerie, que subsiste sublimada, figura de um passado idealizado, espírito do tempo em que cidade era o lugar comum no qual as pessoas circulavam. Agora, é o território onde moram e esperam a visita da indesejada das gentes. Imobilidade é a nova ordem, cronista, poeta, voyeur. Caminhar por aí, bater perna, espiar o movimento, entreter-se com o mosaico das cenas cambiantes, transitar sem apuro e plano, dispor-se ao improvável sem método, entreouvir e entrever bastidores nos entreatos, personagens sem nexo, o faraó urinando, a cantora careca, o vizinho de cueca e gravata, nem pensar. Salvo se alguém jogar nas redes e você pescar. No confinamento, internet é a experiência urbana possível, nosso crivo será o crivo alheio reeditado. Mas não é isso a linguagem? Certas coisas ficam mais claras na escuridão.
A cidade, a cidade de verdade, ela está vazia. A realidade, mais intangível do que nunca. Imagem fugidia, que um internauta deu a outro, que passou a outro, tecendo a luz balão como os galos de Cabral. Luz, não exatamente: talvez a imagem da praia de Copacabana despovoada sob o céu flamejante do fim do verão. Paisagem inútil.
O vozerio no deserto aprende a língua da hora. Pandemia. Coronavírus. Covid-19. Curvas aceleradas de contágio. Aglomeração. Isolamento. Contenção. Grupos de risco. Achatamento da curva. Epidemiologia. OMS. Sequenciamento genético. A guerra contra o vírus. E os slogans: evitem aglomerações, fiquem em casa, não saiam, protejam os mais velhos. Interessante lembrar 2013. Atravessamos um portal, voltamos a junho de 2013 pelo avesso. Daquela vez, ouvíamos ou gritávamos: vem pra rua, vem. Não fique aí parado, você é explorado. O povo na rua derruba o aumento. Em síntese: a massa, a aglomeração, redescobre o protagonismo. De lá pra cá, protagonismo virou empreendedorismo, desempregado na informalidade virou empresário-de-si-mesmo, a viração pra sobreviver no desamparo virou resiliência popular ou criatividade empreendedora, a agenda neoliberal varreu direitos e a punição de corruptos virou Lawfare. Entretanto, cruzado o portal de volta a 2020, a velha demanda popular se realiza como verdadeira maldição: não vai ter Copa, nem Olimpíada.
A cidade respira, ainda sem aparelhos, intuindo lufadas de enxofre, no tenso ensaio geral pra tragédia que se avizinha – somando-se às bem-instaladas na rotina, e naturalizadas, fruto das desigualdades, do racismo estrutural, da violência como política de governo. O que parecia longo, tortuoso, incerto e contraditório processo de transformação da cidade e da sociedade brasileira subitamente se converte em uma internação na emergência da história para tratamento de choque. Metemo-nos numa espécie de exercício simulado coletivo para o naufrágio contratado, tantas vezes adiado. Talvez agora seja pra valer. Vistam os salva-vidas, quem os tiver ao alcance da mão. E os outros? O que será a cidade quando as águas baixarem? E o país?
Nesse momento, cresce a adesão a uma perspectiva ética e política mais solidária, muita gente fabulosa fazendo o possível e o impossível para ajudar as comunidades mais vulneráveis, ante a letargia criminosa do governo federal. À noite, nas favelas, traficantes determinam reclusão, assumindo responsabilidades que contrastam com a bulimia do presidente fascista, que tripudia, rosna e requebra as ancas de atleta fake sobre a pilha de cadáveres por vir.
O leito de morte, com seu sentido de urgência, a falta de ar – destino que não se distribui aleatoriamente, porque a propensão física é agravada pela vulnerabilidade socioeconômica –, essa deveria ser a referência elementar para a definição de prioridades, com base nas quais se organizassem economia e política. Tudo mais é secundário e se ordena ao redor. A quem falta oxigênio não se pode pedir paciência.
Por isso, deixo registrada a pergunta que me parece crucial: se o parágrafo anterior faz sentido, por que deixaria de fazer sentido nas circunstâncias em que estaremos depois da pandemia ou por que não teria feito sentido naquelas circunstâncias em que estivemos antes da pandemia? A pandemia das desigualdades abissais e do racismo estrutural não sufocava, não matava, não atrofiava tantas vidas? Longe de mim subestimar a pandemia em curso, quero apenas extrair da experiência coletiva tão dramática e radical, mais do que a dor, algum aprendizado. Afinal, já ficou demonstrado que a realidade imutável – a economia capitalista sob hegemonia financeira – era só uma construção política cuja estabilidade dependia da crença em sua imutabilidade.
E o que mais se pode aprender? Ou melhor, o que tenho aprendido?
2. A orgia perpétua e letal dos inquilinos que não vemos[1]
Que coisa mais difícil conceber um mundo sem intenção mas com finalidade, que troço enrolado. Cabe na cabeça de quem? Tá certo, os cientistas sabem separar as partezinhas minúsculas das partes minúsculas, abrem as vísceras do cosmos, calculam movimentos e há séculos descrevem – viva Darwin! – a inteligência da natureza, que pensa grande, combinando um sistema com outro, recolhendo as aparas, corrigindo o que desequilibra a marcha claudicante das espécies, em meio aos choques da matéria, de cujo avesso já se tem notícia, embora mal se vislumbre. Claro que tudo fica ainda mais complicado quando físicos criativos, assim como os músicos atonais, os poetas corajosos e os democratas radicais, valorizam a polifonia, o dissenso, a desarmonia, o desequilíbrio, refutando a unidade da inteligência e da finalidade. A gente oscila entre, por um lado, a aposta na evolução, com toda a corte de penduricalhos imaginários e morais, e, por outro, o reconhecimento de regressões, contradições, escorregadas entrópicas, pulsões de morte. Se a lógica da matéria é a linguagem de Deus, talvez convenha aderir ao panteísmo.
Acontece que você tem mais o que fazer, mesmo confinada em casa para prevenir a difusão da pandemia. Mais e melhor do que perder tempo lendo divagações vadias desse autor que custa a se explicar. Já lá se foi um parágrafo e nada de prático, ou de emocionante. Nenhuma notícia sobre o coronavírus, a expansão mundial, as curvas do contágio, os dados mais recentes sobre infectados e vítimas fatais, ou políticas de contenção e prevenção. Tu tens mais uma linha pra me convencer a continuar lendo, pensará a leitora gaúcha. Tudo bem. Que tal o seguinte?: antes da pandemia, na percepção popular, as únicas conexões entre as pessoas, no interior de uma sociedade, e além dela, eram os contatos e contratos estabelecidos ou guiados por interesse, intenção e sentido. Duvido que você me dê um exemplo que escape a essa hipótese. Agora, em meio à trepidação que antecede o que virá, adivinhando o alarido dos carrilhões que se aproximam, a cabeça das gentes concluirá: tem, sim, um fiozinho invisível mas real, substantivo, físico, a nos ligar, efetiva ou potencialmente, a todos. E todas. Essa linha –que não são os impulsos e os memes da comunicação virtual – atravessa portas, paredes, classes e cores, gêneros, idades, muros e identidades, ideologias e línguas. De repente, de uma hora pra outra, está aí, estampado diante de nós: há linhas que nos ligam, conexões biológicas, físicas, que podem nos matar ou mesmo, eventualmente, nos imunizar. Essa camada do que chamamos realidade sempre existiu. Nunca estivemos sós ou separados dos outros – e por isso se fala em ecologia e na crise do clima como catástrofe global. Há um nível em que um destino comum se engendra. Nosso poder de controlar os fluxos torrenciais desses rios invisíveis é limitadíssimo, sobretudo se apelarmos apenas para as percepções comuns, desprezando a ciência, ou se buscarmos soluções individuais ou grupais.
Ah! Entendi, dirá a leitora imaginária, tu és mais um daqueles despolitizados mercadores de platitudes, que ciscam pra lá e pra cá, apenas pra defender os ideais bonitinhos que ficam bem na foto e fazem sucesso nos blogs de autoajuda: todos somos iguais e só a união salva a humanidade. Viva o amor e a misericórdia! Salve a solidariedade! A exploração de classe, a dominação de gênero, o racismo estrutural, tudo o que de fato importa e estrutura a sociedade é omitido e discretamente varrido pra baixo do tapete.
Não, minha amiga, nada disso. Não me subestime. A vertebração político-econômica das sociedades e os eixos de poder e conflito permanecem fundamentais. As opressões não desaparecem quando outra dimensão do real é identificada e focalizada. Faz toda a diferença enfrentar a pandemia como trabalhador precarizado, em moradias sem saneamento, acuado pelo desalento, ou como alguém do 0,1% da população brasileira que detém 48% da riqueza nacional. Entretanto, você há de convir que muda nossa imagem de nós mesmos, e do mundo, admitir a existência e experimentar a presença de vizinhos e inquilinos invisíveis, desprovidos de intencionalidade (interesse e sentido), que atendem a dinâmicas próprias, interagindo conosco, com as demais espécies e com o ambiente, cuja força parasita e consome a nossa.
A sorte de cada um e cada uma de nós não depende apenas do fortuito, por definição imprevisível, cujo âmbito de intervenção é até certo ponto e em certa medida circunscrito por nossas condições socioeconômicas, educacionais, psicológicas, genéticas e fisiológicas. Acaso e necessidade sempre foram os polos de nosso percurso existencial. Não se trata somente do fortuito, mas da atuação de cápsulas de gordura microscópicas, portadoras de material genético e proteína, que não estancam ante as fronteiras dos corpos, de tal modo que seus efeitos não se precipitam de fora para dentro, como nos cataclismos naturais (enchentes, terremotos, tornados, etc.), mas a partir de dentro, enlaçando indivíduos nos circuitos viróticos, infiltrando fake news nas células de defesa de nossos corpos, numa bizarra campanha bélica intracorpórea de contrainformação e contrainteligência.
Na era em que prosperam teorias da conspiração – essas armadilhas mentais paranoicas, cujo pressuposto é a atribuição de intencionalidade, sentido e funcionalidade a tudo o que existe e acontece –, é fascinante (e terrível) observar que nem tudo é passível de controle (nem tudo é político, portanto, embora o sejam as condições nas quais são vivenciados os efeitos de processos físicos não intencionais – embora muitos desses processos sejam consequências inesperadas de ações humanas irresponsáveis e gananciosas) e que a ilusão primeira, que subjaz à nossa construção coletiva da realidade, talvez seja a negação dos fios vivos, físicos, repletos de energia, que nos ligam a todos e todas, enredando-nos num destino comum. Conexões, insisto, sem sentido, intencionalidade ou funcionalidade para a ordem humana, como espécie, ou para a ordem política, subsidiariamente econômica, das sociedades. Em suma, assim como um lance de dados não abole o acaso, as mais alucinadas teorias conspiratórias não domesticam a vida, em sua exuberante multiplicidade criativa e exorbitante negatividade.
As religiões tratam das pragas, a literatura, das pestes, as mitologias, dos desastres. A política se apropria das desditas, pro bem e pro mal, quando não são suas causas remotas. Mas a interação de partes nossas com partes alheias deforma, extrapola, cruza e neutraliza as bordas dos corpos que dizíamos nossos – para John Locke, a propriedade primeira, esteio da liberdade, é o corpo, e proprietário é o ser que chamamos indivíduo, assim subjetivado porque, simultaneamente, contrastado com o objeto de sua posse e inscrito numa cadeia coletiva de direitos naturais. Os animais humanos não intercambiamos apenas dons, dívidas, odores, signos, afetos e fluidos sexuais. Eis aí a orgia perpétua dos inquilinos invisíveis, desdenhando da unidade que nos atribuímos sob o modo das identidades e a forma da consciência. Se Freud minou a identidade-a-si do sujeito e a miragem do autoconhecimento, a promiscuidade virótica completa o trabalho, renovando o recado não suficientemente aproveitado em 1918.
3. E depois?
Claro que não devemos nos iludir com deduções tão a gosto de nosso viés iluminista: graças à pandemia do coronavírus, a realidade se revelará e varrerá do mapa apropriações que lhe confiram significados capazes de remeter de volta aos escaninhos da intenção e do sentido o que lá não cabe. Já vimos esse filme e não só em 1918. Aliás, nada mais refratário ao escrutínio racional da experiência do que as crenças, elas são imunes à mudança e tudo reconfiguram para assimilar. Esse apetite pantagruélico se compreende: crenças servem não só à preservação de relações de dominação político-econômica, mas também à ordem psíquico-emocional, estabilizando expectativas e conjurando a insegurança. Aqui vale uma nota ainda mais cética: uma coisa é a ciência, em sua vertiginosa mutação e audaciosa abertura, outra coisa é a resistência de tantos e tantas cientistas a acolher a instabilidade em suas vidas e projetar a incompletude que caracteriza a ciência sobre suas visões do mundo e de si mesmos ou mesmas. No final dos anos 1980, refletindo sobre a tradição hermenêutica que Gadamer codificara, afirmei que não há nem pode haver uma visão de mundo científica, simplesmente porque ciência não tem visão, nem as metáforas visuais (ver, enxergar, contemplar, vislumbrar, focalizar, iluminar, refletir, esclarecer, clarificar, ponto de vista, ótica, etc.) se aplicam a definições conceituais de objeto. Por isso, cientistas como cidadãos costumam operar como o comum dos mortais, sobretudo quando se trata de enfrentar os desafios extremos da existência humana ou as complexidades, e contradições, do social. Um exemplo sou eu mesmo, cientista social de ofício, fora do papel e do papel de autor. Valho-me do sempiterno Fernando Pessoa: como o poeta, sou aqui um fingidor, e finjo tão completamente que chego a fingir que é dor a dor que deveras sinto. Adaptando, diria que me iludo tanto quanto os que acuso por ingênuos. Pelo menos guardo em mim o desconforto, o desassossego a que Pessoa dedicou sua obra derradeira e incompleta.
O que virá depois da pandemia? O fim do ciclo neoliberal, provavelmente, porque terá ficado evidente que aquilo que se vendia como sendo os limites da realidade e da economia, na verdade, eram os limites da política e da política econômica. Ou seja, o que parecia incontornável e imutável ter-se-ia desmanchado no ar. Pensamentos heterodoxos que já vinham sendo formulados e sistematizados tenderão a se impor, a começar pela Europa. Mas esse novo momento, com novas características, pode vir a ser apenas mais uma oportunidade de revitalização do capitalismo, inaugurando novo ciclo que o salve da autofagia especulativa financeira e das convulsões sociais, contratadas pelo agravamento das crises sociais causadas pelas políticas de austeridade. É possível que a agenda ambiental e da sustentabilidade conquiste patamar superior de legitimidade. E é possível também que, da experiência mundial de combate à pandemia, reste a expansão da tolerância a formações institucionais autoritárias, a vigilância transferindo-se dos subterrâneos clandestinos das agências de espionagem e dos algoritmos virtuais para a sede oficial dos governos, em aliança ostensiva com as empresas monopolistas da comunicação virtual global.
É também possível que do reconhecimento de nossa interdependência, enquanto indivíduos, coletividades, cidades e nações, não derive mais solidariedade, empatia e a ampliação do apoio a políticas sociais redutoras de desigualdade ou até mesmo a modelos socialistas de organização do poder e da economia, mas, ao contrário, o crescimento do medo e dos preconceitos, a elevação dos muros e das separações xenófobas e racistas, a intensificação da brutalidade policial e do punitivismo. Estaremos, nesse caso, trocando a interdependência por mais dependência, em todos os níveis, mantidas e aprofundadas assimetrias e iniquidades. Pessimismo? Não sei. Lembremo-nos que um coronel da PM do Rio comparou a polícia a um dedetizador, que protegeria a sociedade do mal que a pudesse infectar. Políticas eugenistas foram a marca de regimes fascistas e nazistas, embora, mitigadas, tenham sido aplicadas em situações menos extremas – inclusive no Brasil e no Rio de Janeiro. As polícias brasileiras têm se comportado como a metáfora do domínio autoritário das elites brancas contra os riscos de contágio e desordem. A contaminação, figura metonímica por excelência, serve de metáfora para a agenda reativa dos que vocalizam a perpetuação do racismo estrutural. Não espantaria que o futuro nos reservasse a emergência de uma polícia médica, que aplicasse a metáfora como metonímia, isto é, que adotasse a separação entre classes e a contenção xenófoba, sob vigilância, como modos de convívio, como modelos de conexões interpessoais e como princípios reguladores das relações sociais. Contudo, há sempre esperança de que o conhecimento e a imaginação antecipadora ajudem a evitar que o apartheid seja nosso futuro – em meio à catástrofe climática e a pandemias – e que respiração artificial seja nossa única aspiração antes do fim.
* Luiz Eduardo Soares é antropólogo, cientista político, escritor e professor aposentado do Instituto de Ciências Sociais da UERJ. Seu livro mais recente é O Brasil e seu Duplo (Todavia, 2019).
Notas
[1] Minhas hipóteses dialogam com diversas reflexões de Bruno Torturra, expostas em sua série brilhante e inspiradora, no YouTube, “Boletim do Fim do Mundo”.
Adelaide Ivánova (Recife, 1982) é poeta, fotógrafa, jornalista e ativista social. Publicou autotomy (…) (2014), Polaroides (2014), O martelo (2016, vencedor do Prêmio Rio de Literatura) e 13 nudes (2019). Edita o zine MAIS PORNÔ PVFR e traduziu, entre outros, Ingeborg Bachmann, Hans Magnus Enzensberger e Paul Celan. Mora desde 2011 em Berlim, na Alemanha.
Fred tinha menos de 60 anos quando
Foi encontrado no apartamento
De menos de 60 metros quadrados
No qual vivia há anos
Sozinho.
Fred era desempregado
E apesar de ter ex-mulher e filhos
Não tinha família
Eu não sei quais circunstâncias levaram
Fred a ser tão solitário
Estou ciente que Fred não deve ter sido nenhum
Anjo
Mas Fred morreu muito sozinho muito bêbado e muito pobre
Num apartamento
Numa cidade
Que é Berlim
Mas que poderia ter sido qualquer outra.
O prédio onde Fred morava
Pertenceu outrora à Stasi a polícia secreta da Alemanha Oriental
E o Muro de Berlim passava bem na frente
Depois que o Muro “caiu”
O prédio foi vendido pra um investidor privado
Que além deste tem muitos outros prédios (é claro)
Este edifício é onde Fred foi morar
Fred aí encontrou sua última casa
Um apê quarto-e-sala
Onde construiu com as próprias mãos
Um grande beliche de madeira maciça
Da qual anos depois ele mesmo caiu
E morreu
Numa época que os aluguéis em Berlim ainda eram
Baratos e os apartamentos vazios eram
Devidamente ocupados: por punks, estudantes, trabalhadores ou refugiados.
A vizinha de cima de Fred
Que gostava muito dele
Se chama Eva Eva é
Uma ex-jornalista de moda da Alemanha Oriental
Ser jornalista de moda na Alemanha Oriental ao que parece era bonito
Porque sem mercado capitalista os editoriais eram feitos
De forma artesanal
As próprias jornalistas e stylists inventavam
E costuravam os looks que não precisavam
Fazer propaganda ou lobby pra nenhuma marca ninguém era obrigado a botar nenhuma dondoca na capa
Devia ser massa
(eu recomendo buscar a revista Sibylle na internet)
A carreira de jornalista de moda de Eva
não vingou depois que o Muro caiu
Ela disse: “acima de tudo era um mercado etarista que não aceitava
Nem respeitava mulheres mais velhas”.
Eu imagino os fashionistas do oeste
Desvalorizando a expertise única de Eva
Jornalista de moda anticapitalista
Que se aposentou como autônoma
e hoje ganha uma mixaria que ela
Complementa trabalhando
Aos 72 anos
Como cozinheira duas vezes por semana numa casa de família.
Eva veio morar nesse bairro quando ninguém queria
Não tinha café não tinha lojinha
“A única coisa que tinha era um monte de bêbado na pracinha”
Hoje em dia diz Eva “é melhor
Tem mais vida e mais jovens no bairro
Só ficou ruim porque o aluguel vai ficando cada vez mais caro
E cada vez se fala mais inglês no prédio”
(Eva não aprendeu inglês aprendeu russo)
Eva diz que gentrificação é ruim, mas é boa pra mulheres e idosos
Porque nos beneficiamos do fato
De que se tem vida nas calçadas do bairro temos menos medo
De voltar pra casa de noite sozinha
Depois do trabalho
Só continuamos evitando a pracinha
Que continua sem iluminação pública
Porque sabemos que iluminação pública é do interesse de: 1) mulheres 2) propriedade privada
Se na pracinha não tem nada de valioso
Só uns desempregados e mulheres voltando de noite da uni ou do trabalho
Pra que gastar esses euros iluminando a praça pública?
Se na pracinha tivesse uma loja de carro
Certamente que uns postes já teriam sido instalados
Não é mesmo?
Gentrificação então é isso
É quando o setor privado
É quem investe na melhoria dos bairros
“Provendo” o que Estado tinha que prover
Tornando privado aquilo que na real é público
E o preço que pagamos é alto (mães-solteiras e idosos são os primeiros a serem despejados)
E é por isso que ativistas da moradia
Falam tanto não somente do direito de morar
Mas do direito à cidade aliás viva Kotti und Co., viva o London Renters Union, viva o MTST!
Esses dias tentando driblar o “Mietendeckel” antes dele ser aprovado nome coloquial da lei tramitando no Senado de Berlim de regulamentação e redução dos aluguéis
O investidor privado dono do seu prédio
Mandou um aumento de aluguel pra Eva
Que ficou muito preocupada
Ela levou seu caso pra Associação dos Inquilinos
E depois foi num evento informativo
Com Katalin Gennburg
Sobre expropriação dos grandes proprietários #DW&Co.Enteignen!
Mas nada disso ajudou a resolver a situação concreta de Eva
Além de tudo Eva tinha levado uma queda
E quebrado um braço
Então não podia trabalhar na casa da família
E se não tinha como trabalhar não tinha como complementar
A aposentadoria chocha
Que Eva ganha depois de trabalhar
Anos e anos
Como jornalista autônoma
Então não tinha como pagar o aumento.
Eva ainda não perdeu seu apartamento.
Eva é minha vizinha de cima
E eu moro no apartamento onde Fred antes morava
E eu durmo na cama que Fred construiu
E eu tenho muito carinho por Fred que nunca conheci
Mas cujo trabalho braçal produziu uma cama muito gostosa
Na qual eu às vezes perco o sono
Sem saber como vou pagar o próximo aluguel
Ou o aumento do preço da calefação que apesar de cara não funciona e o senhorio não conserta
Já que até junho todos os meus trabalhos foram cancelados por causa do Coronavírus
Às vezes eu fico me perguntando se Fred foi feliz aqui
Como às vezes eu sou mas nem sempre
Será que ele também perdia o sono
Com medo de ser despejado?
O que será que nos conecta, nós três, pra além de um endereço?
Não sei direito.
Eu também não tenho família
Também trabalho na casa dos outros Apesar de ser jornalista
Certamente também será chocha minha aposentadoria
E quando estou triste bebo sozinha em casa.
“O desafio é substituir o regime mecânico de argumentação por um regime de verdade, de abertura, de sensibilidade ao que aqui está.”
Comitê Invisível, Aos nossos amigos: crise e insurreição
Os espaços de uso comum são determinantes para a experiência de se viver nas cidades. Análises sobre a sociabilidade urbana revelam a importância da comunicação e o potencial de vitalização que ocorre nesses ambientes onde o mundo nos atravessa e nos constitui (Bordreuil, 2002). No entanto, as práticas urbanas submetidas à dominação política muito frequentemente excluem a participação das comunidades nas decisões sobre a evolução dos espaços onde habitam, desconsiderando as demandas por uma maior equidade socioespacial. Como fator agravante, as discussões sobre a qualidade do viver na cidade são atravessadas frequentemente por ideias e convicções ideológicas muitas vezes binárias, desconectadas do contexto sociocultural e da realidade cotidiana, na espera de uma utopia (Comitê Invisível, 2016).
Outras leituras sobre os processos de evolução das cidades caminham no sentido de desmodernizar o campo de conhecimento urbanístico em sintonia com a ideia de descolonização (Mignolo, 2017), possibilizando a reavaliação de planos e projetos que ainda se embasam com frequência em abordagens técnicas simplificadoras da cultura moderna (Morin, 2008), sem uma compreensão holística essencial para proposições e ações no sentido de proporcionar uma maior equidade para os diferentes grupos e indivíduos. Esse caminho busca outros tipos de pensamento sobre os espaços urbanos a partir de ideias transformadoras e ações focadas no presente, no agora (Comitê Invisível, 2018), movimentando as subjetividades individuais e coletivas envolvidas nesses processos.
Conscientes de que não há um desenho de cidade que assegure uma vida tranquila para todos nem a perspectiva de uma equidade absoluta, muitos urbanistas desenvolvem estratégias que possibilitam transformações concretas em diferentes escalas no desenho urbano, conjugando abordagens culturais e socioespaciais, aspectos técnicos, critérios qualitativos e subjetivos, e tecnologias sociais. Dessa forma, buscam elevar o nível do debate na esfera pública, ampliando a visão das práticas urbanísticas, aproximando propostas transformadoras e mobilizações estratégicas embasadas na coragem, na autoconfiança e na energia coletiva, transformando modelos sociopolíticos opressores por meio da ação no presente. É nesse contexto que o conceito de biopolítica opera, entendendo a população como um problema político, considerando ao mesmo tempo aspectos biológicos, científicos e questões relacionadas às estruturas de poder (Foucault apud Garrison, 2017).
O desafio é trazer para situações concretas em andamento a discussão filosófica sobre a evolução da cidade e suas comunidades, liberando os atores sociais da autocolonização sociopolítica a partir do entendimento sobre quem se beneficia das decisões sobre o desenho e o desenvolvimento urbano, e das subjetividades que são ativadas nesses processos e projetos que envolvem solidariedades assimétricas de indivíduos e grupos que participam de diferentes formas da dominação política (Botelho, 2007). O conceito de biopolítica desenvolvido no campo da teoria social desde Michel Foucault contribui para analisar as estratégias e mecanismos que conduzem a vida em sociedade sob regimes autoritários, atuando sobre o conhecimento e influenciando os processos de subjetivação que configuram as relações de poder.
O reconhecimento de novos valores e sensibilizações tem o potencial de transformar as subjetividades coletivas, mudando a forma de participação das pessoas e grupos que agem ou se omitem no processo de construção da cidade. Esse movimento é uma operação complexa que envolve tanto os colonizadores como os colonizados, que, mesmo excluídos dos espaços elitizados da cidade, muitas vezes trabalham ou se manifestam no sentido da continuidade da submissão do seu grupo, apoiando decisões sobre as estruturas urbanas que contribuem para a perpetuação da inequidade social e espacial em troca de vantagens pessoais. Se os colonizadores não são os agentes naturais desse movimento, por outro lado grande parte dos que não têm os seus desejos e direitos respeitados nas decisões sobre o comum se omite, porque participa de alguma forma das relações de dominação política que se configuram no contexto das parcerias da gestão política com interesses econômicos.
Entender a manipulação da esfera subjetiva e a forma como ela afeta os grupos e comunidades além da esfera pessoal nos faz perceber o quanto estamos isolados, vivenciando uma subjetividade desvinculada das pessoas no nosso entorno. Por outro lado, as particularidades da dominação política em função de cada contexto, da situação específica em jogo e do momento vivido em cada lugar revelam a indeterminação do jogo político, permitindo-nos acreditar em cenários alternativos a partir de estratégias de ação que desestabilizem as estruturas de poder. As relações com as pessoas com quem compartilhamos as ruas e espaços de uso comum no nosso entorno e a visão coletiva das demandas locais podem motivar insurreições comunais (Comitê Invisível, 2016) a partir de uma mudança de percepção dos sentidos de vida e das formas de se viver que absorvemos no cotidiano de forma inconsciente através de fluxos de imagem e informações (Pelbart, 2008).
Transformações do espaço e de funções urbanas originadas em práticas comunais em escala local abrem espaço para ações em escalas maiores na cidade a partir da ampliação do conhecimento e do entendimento das questões em jogo. O front é o das pessoas na luta legítima pelos seus direitos e interesses que são específicos para cada comunidade, cujas possibilidades de evolução precisam ser imaginadas e visualizadas a partir de discursos verdadeiros, configurando espaços biopolitizados. Esses são os componentes das culturas que se transformam para evoluir, em que as novas ferramentas de comunicação têm um papel importante, embora não substituam as relações e afetos presenciais. Nessa discussão sobre fatos urbanos em andamento em um balneário turístico, observamos o insolidarismo social com fortes repercussões na evolução de ambientes ao mesmo tempo urbanos e naturais especialmente relevantes para a cidade, e apontamos as perspectivas de mudanças desse cenário a partir da resignificação das subjetividades individuais e coletivas no sentido de uma nova vitalidade social.
2. Uma lagoa perdida no meio da cidade
“Poderia falar de quantos degraus são feitas as ruas em forma de escada, da circunferência dos arcos dos pórticos… mas sei que seria o mesmo que não dizer nada. A cidade não é feita disso, mas das relações entre as medidas de seu espaço e os acontecimentos do passado…”
Italo Calvino, As cidades invisíveis
Muitos estudos enfocam a importância do contato com a sociedade local quando são desenvolvidos projetos para os espaços públicos nas cidades, permitindo uma avaliação sensível e uma visão que envolva não apenas os aspectos físicos do território, mas também a dimensão sociocultural, a partir do conhecimento das pessoas que vivem ou usam aquele espaço (Bloch, Costa, Kotaki, Katz, 2013). Essa abordagem participativa amplia a compreensão do lugar em vários sentidos que não seriam alcançados apenas pela interlocução com profissionais como arquitetos, engenheiros ou biólogos, contribuindo para evitar soluções que se contrapõem às demandas e desejos da comunidade local e decisões técnicas equivocadas no que se refere ao desenho urbano e à acessibilidade aos espaços de uso público (Cadiou, 2002; Tixier, 2002).
No entanto as práticas urbanísticas em Armação dos Búzios muitas vezes não adotam metodologias participativas e, mesmo quando a elaboração de planos e projetos busca envolver as comunidades locais, as decisões sobre as prioridades de investimento determinadas pela estrutura política adiam sine die a sua realização, pondo em risco a consolidação do desenho urbano concebido ou mesmo inviabilizando um futuro possível e desejado. Esse é o caso do Parque Lagoa de Geribá, cujo projeto foi desenvolvido e aprovado em 2002 e ainda não saiu do papel. Recentemente levei diversas pessoas que veraneiam em Búzios há mais de vinte anos para passear no entorno da Lagoa de Geribá e elas ficaram impressionadas com o seu tamanho (Figura 1, parte mais estreita da península) e com o fato de não a conhecerem, apesar de circularem sempre por ali, da Praia de Geribá à peixaria de Manguinhos, ou ao centro gastronômico na Barrinha (Bloch, 2019).
Figura 1: Lagoa de Geribá. Fonte: Arquivo Prefeitura Municipal de Armação dos Búzios, 2002.
Essa é uma das áreas mais densas da cidade, e a “ocultação” dessa lagoa é um grave problema urbanístico. Uma lagoa que não participa da paisagem da cidade e não se torna uma área de lazer corre o risco de ser poluída, aterrada, e até desaparecer. A degradação da Lagoa de Geribá é o resultado das decisões e omissões dos gestores públicos e da incompreensão dos moradores sobre a importância desse ambiente natural.
Quando a paisagem natural não é valorizada pelo poder público acaba sendo desconsiderada até pelos moradores, que dão as costas para ela (Figura 2).
Figura 2: Ocupações na Lagoa de Geribá, de costas para o espelho d’água. Foto do autor, 2014.
Os brejos e lagoas de Búzios são estruturas naturais que acumulam e infiltram as águas pluviais, alimentando o lençol freático, impedindo a salinização do subsolo e preservando o ecossistema local. A reversão do processo de degradação dessa lagoa demanda a superação do paradigma moderno (Morin, 2008) na gestão da(s) cidade(s), promovendo a interação dos diferentes campos profissionais relacionados ao urbano no sentido de rever os planos e as estruturas de drenagem, que se baseiam em técnicas hidráulicas sem atentar para a repercussão dessas intervenções nos sistemas naturais, desconsiderando o potencial desse local como espaço de lazer e sociabilização.
O projeto elaborado para o parque no entorno da lagoa (Figura 3) visa a sua preservação e também a promover conexões de caminhos para pedestres e ciclistas, valorizando a qualidade de vida dos moradores e a atividade turística. A criação do parque contribui ainda para induzir um processo de regeneração da paisagem natural, conjugando os sistemas da natureza e os sistemas da cultura na construção da paisagem urbana, considerando a relevância do sistema lagunar de Búzios para a paisagem (Bloch e Costa, 2014), e valorizando e inserindo no cotidiano da vida das pessoas os elementos naturais e culturais que já pertencem ao lugar (Corner, 1999). O acesso a essa lagoa possibilitaria também usos e apropriações diversas, motivando as pessoas e comunidades na busca de novas alternativas de valorização dos espaços urbanos.
Figura 3: Projeto para o Parque Lagoa de Geribá. Fonte: Relatório Final AMBIOTEC, 2002.
3. Um imbróglio pode ser uma oportunidade
“Abrir-se ao mundo é abrir-se à sua presença aqui e agora… Se ‘o mundo’ deve ser salvo, será em cada um de seus fragmentos.”
Comitê Invisível, Motim e Destituição Agora
Muitos moradores da cidade foram surpreendidos com a ideia do governo municipal de construir uma Unidade Básica de Saúde (UBS) em uma área destinada a uma praça pública situada nas margens da Lagoa de Geribá. A praça nunca foi de fato construída, mas o terreno doado ao município quando da aprovação do loteamento “Ilhas de Búzios” tem inclusive o nome de Praça do Farol. O projeto para o parque não é apenas uma questão de funcionalidade e de estética, conjugando no seu desenho aspectos sociais e ambientais na forma de ocupação desse espaço natural, considerado de alta prioridade de preservação pela comunidade científica internacional.
No entanto, a cultura da gestão pública impõe o isolamento das diferentes secretarias que deveriam participar do planejamento da cidade, cada uma enfocando apenas a sua especialidade, e os gestores não têm nem buscam uma percepção da cidade como um todo (Bloch, 2010). Quando decidiram a localização da Unidade de Saúde, ignoraram o imenso valor urbanístico desse ambiente natural, que tem um papel fundamental para a biodiversidade e para a oferta de áreas públicas de lazer envolvendo atividades esportivas, recreacionais e educacionais. Embora seja complicado reconhecer a falta de planejamento e mudar o lugar já escolhido para a obra, o que precisa ser considerado é que será muito mais oneroso para a cidade dar prosseguimento à implantação da UBS na Praça do Farol, que é um dos acessos principais do parque, do que buscar alternativas para essa decisão.
Diversos moradores do bairro, arquitetos públicos e outros atores sociais contestaram a localização da UBS porque, embora o parque ainda não tenha sido implantado, a preservação dos terrenos públicos que fazem parte do projeto é que permitirá em algum momento a sua realização. A contestação foi ignorada pelos gestores públicos e a obra foi iniciada irregularmente, porque a Lei Orgânica do Município não permite a construção nos lotes destinados à implantação de praças públicas. Um grupo de moradores acionou o Ministério Público para impedir a continuidade da obra, e foi proposta a relocalização da UBS em terrenos mais bem localizados para os futuros usuários da UBS.
Foram realizadas duas audiências públicas para discutir o imbróglio, e as manifestações contrárias à obra mencionaram a importância da visibilidade e da acessibilidade da lagoa para a sua preservação: “Podemos mudar a construção da UBS para outro lugar, mas não podemos mudar a lagoa de lugar.” Um representante da vereadora que fez a indicação da obra argumentou que a instalação dessa unidade de saúde seria importante para os moradores pobres do bairro, alegando que o posto no qual eles são atendidos fica muito cheio, formando grandes filas. Para justificar a continuidade da construção naquele local, alguns vereadores argumentaram que as pessoas “endinheiradas” que moram perto da lagoa não querem a UBS no bairro porque não precisam dos serviços públicos de saúde e não se importam com as pessoas com menos recursos.
Na realidade, esse conflito não existia: as pessoas que se manifestaram nas audiências não se opuseram à construção da UBS no bairro, mas indicaram outra localização que não obstruísse o acesso ao parque e a visibilidade da lagoa. Ao mesmo tempo que contestavam a ocupação da praça, demonstraram aos apoiadores da vereadora que a vida de todos seria valorizada com a criação desse parque – independentemente de faixa de renda ou classe social –, tanto no aspecto da saúde, pela oportunidade de lazer e sociabilização nesse espaço de uso público, como na valorização das suas moradias, apontando alternativas de localização da UBS mais favoráveis aos usuários.
A discussão pública teria a função de resolver o impasse, proporcionando uma maior compreensão do problema, mas as audiências solicitadas pela sociedade civil não foram vinculantes, ou seja, as conclusões decorrentes das manifestações do público presente não foram consideradas, revelando a manipulação das ferramentas do sistema democrático pela simulação da participação da sociedade na decisão, que não considerou a necessidade de planejar as estruturas de saúde em sintonia com o desenho urbano nem com as necessidades da comunidade local. Os atendimentos de saúde nesses bairros se dão hoje na Policlínica, e as filas são resultado de uma forma arcaica de funcionamento desse setor. Por outro lado, uma readequação da Policlínica permitiria abrigar com qualidade e conforto tanto a Policlínica como a nova UBS com acessos independentes, resultando em uma economia importante para o município e proporcionando um melhor acesso aos usuários da UBS em comparação com a Praça do Farol.
Esse é o X do problema: os modelos de gestão pública que prevalecem nas cidades e as decisões sobre os investimentos públicos estão submetidos à dominação política envolvendo diferentes atores sociais que visam prioritáriamente a benefícios pessoais. Para prosseguir com a construção da UBS embargada pelo Ministério Público, os vereadores amplificaram esse gravíssimo erro de planejamento, alterando a Lei Orgânica Municipal. A mudança da Lei Orgânica para esse fim é um escândalo político e jurídico, e ainda assim não poderia retroagir para que se aprovasse o projeto em questão, mas o fôlego dos que contestavam acabou. A ideia de juntar um grupo de pessoas com a participação da imprensa e das mídias sociais para reverter a situação, impedindo o acesso dos construtores e o reinício da obra, não aconteceu. A alternativa de seguir investindo no trabalho de advogados privados para tentar novamente embargar a obra também foi abandonada, devido à descrença quanto ao resultado do prosseguimento da ação e ao medo de represálias contra os que se manifestavam a favor da praça e da lagoa.
Nesse imbróglio estão superpostas três principais dimensões e subjetividades: o contexto dos manifestantes que se opõem à ocupação da praça mas estão expostos a ameaças de represálias pessoais e diretas; as relações de solidariedades assimétricas dos cabos eleitorais, seus parceiros e familiares, que constituem sofisticadas modalidades de controle envolvendo a submissão da subjetividade; e a ilusão dos que se posicionaram a partir da visão utópica de uma sociedade igualitária, desconsiderando a complexidade das questões em jogo e desconectando-se do momento presente. A compreensão desses processos e o compartilhamento de novas percepções sobre as questões coletivas podem abrir espaços para a mudança desse estado de impotência social, em que as pessoas não se posicionam em relação às decisões que determinam a evolução dos espaços comuns da cidade em função dessa submissão que está subjetivada (Pelbart, 2008).
As mudanças podem acontecer quando nos damos conta de que não somos autônomos, e sim moldados pelas informações e comunicações que nos atravessam, e que podemos reinventar a nossa subjetividade, tanto a pessoal como a coletiva, transformando o contexto social no qual estamos inseridos a partir de uma nova percepção dos acontecimentos, e gerando ações fora do sistema institucional. A edificação em andamento na Praça do Farol poderá, por exemplo, ser readequada para abrigar a sede do parque com paredes e portas de vidro, um centro cultural voltado para a educação ambiental e para encontros entre as pessoas do bairro e da cidade, áreas para o lazer e atividades diversas, sem muros e cercamentos que obstruam a paisagem da lagoa.
4. Identificando obstáculos e caminhos possíveis
“Uma insurreição pode estourar a qualquer momento, por qualquer motivo, em qualquer país, e levar não importa aonde.”
Comitê Invisível, Aos nossos amigos: crise e insurreição
Manifestações a favor da continuidade da construção da UBS no terreno da praça foram motivadas principalmente pela rede de reciprocidades que dá forma e substância ao poder, envolvendo cabos eleitorais que intermedeiam as relações entre os políticos e os seus eleitores e buscam nessa atuação a perspectiva de acesso à liderança política e ascensão social na comunidade. Essas relações de solidariedade fazem com que os posicionamentos soem como se caminhassem no mesmo sentido, “e não como imposição da vontade do mais forte sobre a do mais fraco” (Botelho, 2007, p. 67-68). No contexto dessa decisão, o “mais fraco” foi pressionado no sentido de não considerar os argumentos que mostravam que a revisão da decisão discutida nas audiências públicas proporcionaria melhores resultados para si e para a cidade.
As tensões nessas relações são muitas vezes ocultas para os dominados, que não visualizam os papéis dos diferentes atores sociais. Ou ocultadas de forma consciente para manter os interesses – embora assimétricos – alinhados. No caso em questão, a decisão foi defendida posteriormente por alguns membros do PSOL (Partido Socialismo e Liberdade), reiterando o argumento de vereadores de que o impedimento da construção da UBS tinha origem em uma visão elitizada, que não considerava as demandas dos mais pobres, sem se darem conta de que estavam contribuindo para o sequestro da vitalidade social inerente à proposta da criação do parque. Essa situação expressa também uma forma de sujeição da subjetividade, na qual a ideologia exerce pressões deformadoras no processo de compreensão e de posicionamento em relação aos acontecimentos (Konder, 2002).
Por outro lado, diferentes pessoas e grupos criticam a gestão pública nas ruas e em encontros sociais, sem promover ações concretas, e seguem esperando uma mudança de contexto, um político “do bem”, uma transformação vinda de fora, não se sabe de onde. Essa espera é uma recusa de encarar o que acontece no nosso entorno, no presente, é se manter à margem do processo. É viver à espera da utopia, temendo os riscos das mudanças no presente (Comitê Invisível, 2016). A alternância política sem uma vitalização social apenas muda os atores e suas formas particulares de articular gestão pública e interesses privados, dando continuidade às relações de parceria entre atores sociais de diferentes classes cujos conflitos são eclipsados pelos ganhos compartilhados, mesmo que de forma assimétrica.
Mesmo os cenários desejados e compartilhados por um grande número de pessoas da cidade não se tornam objeto de reivindicações potentes: o enfrentamento das estruturas de poder que determinam o que é feito com o dinheiro público não faz parte da nossa prática social. As brechas existem, mas as pessoas têm medo de questionar ou propor alternativas às decisões da gestão política, principalmente porque são poucas as pessoas e estabelecimentos na cidade que estão legalizados ou regulares, quando muito obtêm autorizações provisórias para o funcionamento dos seus negócios, ficando expostos a represálias. Outra parte importante da população da cidade é contratada pelo poder público a partir de indicações políticas. Esse é o cenário que explica a nossa “acomodação” e a crença de que nada se pode fazer para mudar o rumo das coisas.
A dominação política não apenas regula a gestão pública de forma explícita em muitos aspectos e negócios, mas também se infiltra na esfera cultural e subjetiva, promovendo leituras e interpretações simplificadas dos acontecimentos, tanto na esfera da cidade formal quanto nas áreas de ocupações espontâneas. Propostas de transformação desse modelo precisam disseminar as ideias que podem promover mudanças concretas das estruturas funcionais que irão afetar o cotidiano, mas Pelbart (2008) reconhece que a libido coletiva que permitiria imaginar que algo diferente seja possível nos foi sequestrada. A condição que permitiria recusar essa decisão sobre a localização da UBS é a de não temer a ruptura, o dissenso, na busca de redesenhar a lógica da cidade e da vida em comum.
Uma insurreição sobre um tema em um espaço determinado, um acontecimento “fora da curva”, pode reintroduzir a ideia de mudança, quebrando um padrão histórico, liberando a força das pessoas para uma reação à dominação política que é ao mesmo tempo brutal e sutil. Não basta criticar o governo e as instituições que fazem parte do planejamento disfuncional. É preciso um outro plano de percepção e de movimentação, sair do vazio das estruturas discordantes e desconectadas e entrar no espaço em que nós somos “o local de passagem e de articulação e de uma quantidade de afetos, de linhagens, de histórias, de significações, de fluxos materiais” (Comitê Invisível, 2016, p. 94), a comunidade como experiência. A sublevação na escala de uma comunidade na qual se vive e interage é uma forma de enfrentamento que pode gerar transformações das formas de vida e das estruturas locais, contribuindo para a conceituação de planos e projetos, produzindo continuamente novos afetos e um espírito de autovalorização.
Em Búzios acontecem encontros e conversas em muitos lugares onde as pessoas compartilham seus desejos, crenças e descrenças. A criação da feira periurbana com produtos orgânicos na Praça da Ferradura foi uma invenção catalisadora desse processo de encontros e associações: grupos de leitura, música ao vivo, o dançar juntos, comidinhas especiais preparadas nas barracas. Se, por um lado, Botelho aponta o entrelaçamento de esferas sociais distintas na configuração da dominação enquanto princípio geral de regulação das relações sociais no Brasil, e indaga sobre a capacidade dos grupos subalternos de promover a ruptura daquilo a que estão submetidos, Pelbart busca revelar a potência do ser vivo para o exercício do poder sobre a vida, tendo por objeto as pessoas afetadas por processos de conjunto. Essa potência da vida no contexto contemporâneo se opõe às formas de submissão da subjetividade aos diferentes tipos de poderes, ao lado das lutas tradicionais contra a dominação e contra a exploração.
A partir da sinergia coletiva, da cooperação social e subjetiva, da inteligência, do afeto, e do desejo, as relações de poder são reavaliadas nessa busca pela transformação. A inteligência coletiva e a percepção de novos desejos produzem novas crenças, permitindo imaginar e articular formas de cooperação que podem promover as transformações desejadas. As relações criativas produzem, além das trocas de informações, o compartilhamento de cenários imaginados e desejados, motivando a participação da sociedade nos processos decisórios. Aproximar projetos coletivos das pessoas mais pobres e exploradas, cujos sentidos estão mais separados do poder de ação, contribui para a reinterpretação das suas identidades e condicionamentos em favor da vida – valorizando a criação de um parque que proporciona a inclusão e a mobilidade social – e não da doença ou da morte representadas pela unidade de saúde oferecida a essas comunidades carentes.
O desejo e a disposição de gozar do nosso pedaço de mundo na vida cotidiana pode tomar a forma de uma ação insurrecional, substituindo o etos sindical por um etos comunal (Comitê Invisível, 2016, p. 105-106). Quando ficamos vinculados às infraestruturas políticas formais, elas nos organizam sem que se abram possibilidades de experimentação que podem fazer acontecer um movimento a partir da sinergia coletiva, da cooperação social e da produção imaterial, subjetiva, no contexto do intelecto e do afeto. Insurreições focadas em propostas locais para o redesenho urbano se contrapõem ao processo que reproduz as desigualdades sociais, buscando a funcionalidade e a qualidade dos espaços de uso público nas diferentes partes da cidade.
A transformação de estruturas locais depende do entendimento das perspectivas de mudanças do cotidiano e dos ganhos para a vida em comunidade. São as comunidades conectadas entre si que possibilitam não apenas um enfrentamento contestador do ponto de vista ideológico, mas um movimento com propostas concretas para a reestruturação urbana, promovendo ações de curto prazo alinhadas com os cenários desejáveis de uma evolução que se realiza ao longo do tempo. Estamos falando do reconhecimento da quarta dimensão no processo de evolução urbana, da mudança das relações de poder a partir dos enfrentamentos que realizam ao longo do tempo o potencial de transformação da sociedade em cada acontecimento. A proposta de ampliar a visibilidade dessas questões busca promover a criação de um espaço político de interação e colaboração, em que exista abertura para discutir e mediar os conflitos.
5. A biopolítica e a transmutação da cidade: work in progress
Essa discussão sobre vivências e experiências na cidade de Armação dos Búzios busca aprofundar o entendimento das práticas urbanas a partir da observação dos acontecimentos que produzem o desenho dos espaços de uso público e conduzem a evolução da cidade. A ideia é atualizar o questionamento sobre decisões políticas em andamento, buscando superar as limitações da sociedade para a transformação do modelo de gestão autoritária que coopta muitas vezes técnicos e acadêmicos para dar credibilidade a projetos imediatistas que visam a favorecer parcerias políticas. O desinteresse das diferentes gestões políticas pela realização do projeto que propõe a inserção da Lagoa de Geribá na paisagem e na vida da cidade evidencia o desafio enfrentado pela sociedade buziana, que está associado à sequência do seu desenvolvimento histórico e cultural (Botelho, 2007), culminando na alteração da Lei Orgânica do Município por um motivo circunstancial.
A falta de planejamento e a precariedade da infraestrutura, que impactam principalmente a parcela mais pobre da população, se refletem no ambiente como um todo, na desconectividade de ruas e caminhos, no aterramento de áreas brejosas para a construção informal ou irregular, e na obstrução do caminho das águas, isolando os moradores das paisagens naturais e reduzindo a acessibilidade ao seu entorno imediato. Os personagens que questionam os gestores políticos se deparam com forças reativas que trabalham de forma pessoal, influenciando comportamentos e intimidando aqueles que buscam o esclarecimento e a transparência. Consultores contratados, ocultando o caráter segregador dos seus projetos “técnicos” e os seus reflexos no espaço urbano e na estrutura social, fazem prevalecer seus critérios para as decisões usando o seu prestígio, que “é uma maneira particularmente maliciosa de fazer valer a própria autoridade em vez das razões” (Schopenhauer, 2001, p. 66).
Reverter a decisão de implantar a UBS na Praça do Farol demanda um posicionamento decisivo da sociedade, contestando o funcionamento da atividade de planejamento urbano a partir do entendimento da sua natureza sistêmica. Pelbart se pergunta como detectar modos de subjetivação emergentes que podem agregar as pessoas e promover a visibilidade das inteligências grupais para criar novos cenários, novas formas de cooperação, e inspirar novos acontecimentos. É a desenvoltura social nos espaços de uso comum onde a vida acontece – ruas, calçadas, praças – que permite agregar valores à superconectividade proporcionada hoje pelas redes sociais. Os espaços públicos produzem territórios existenciais alternativos que vitalizam as conexões virtuais, alimentando o espírito de cooperação e de ativação das forças sociais, dando sentido e sentimento aos encontros virtuais.
A crítica das mídias sociais e das relações no espaço virtual não deve subestimar seus potenciais subutilizados, e sim reconhecer o espaço que essa evolução tecnológica proporciona para o agir local, para manifestações e insurreições no nosso entorno. Essas ferramentas são recursos para a ativação de uma positividade e uma potência política que estão desvitalizadas pela compartimentação da cidade em condomínios e guetos, pela individualização dos meios de transporte e pela precariedade dos espaços de uso público. Pelbart (2015) desenvolve a ideia de biopotência como oposição ao poder de dominação, como um espaço de possibilidades em que nada está decidido, em que a vitalidade social potente possibilita a transformação das estruturas objetivas e subjetivas que sustentam a dominação política, superando o medo e as tensões a partir da cooperação social, do compartilhamento intelectual, econômico e afetivo.
A disseminação do entendimento da importância do que acontece na Lagoa de Geribá e no seu entorno tem o potencial de ampliar as demandas por mais saúde, educação, serviços, a partir de uma vitalidade que envolve a linguagem, a inventividade, uma sensorialidade ampliada e a afetação recíproca, promovendo transparência e abrindo espaço para uma reforma do sistema político. Esse é o caminho para o espírito comunal que agrega grupos heterogêneos, menos hierarquizados, diferentes da liderança política que determina um rumo único para seus seguidores. Nesses espaços as pessoas vivenciam afetos ao mesmo tempo que constroem um território existencial subjetivo em sintonia com o seu entorno, em oposição à homogeneização cultural. As dinâmicas da sociedade refletem os movimentos das pessoas que convivem na cidade, e embora Mignolo ressalte a dificuldade de “mudar os termos da conversa”, de agir descolonialmente, ele acredita que as reflexões e “opções descoloniais” são o caminho para a mudança de rumo da matriz colonial de poder (Mignolo, 2007) que contribui para engendrar as nossas práticas de dominação política.
Essas práticas passam pela contratação de funcionários para as estruturas públicas técnico-administrativas voltadas para o atendimento dos interesses do grupo eleito e seus parceiros econômicos. Se, por um lado, essa característica da sociedade e a imaturidade institucional da administração pública no Brasil explicam muitas vezes a ausência de uma visão de longo prazo, por outro lado contribuem para mascarar as limitações na abordagem do problema urbano, que, a nosso ver, são decorrentes também do paradigma do pensamento moderno, ao mesmo tempo disjuntivo e colonialista. A falta de interação entre os saberes das estruturas técnicas vinculadas às diferentes áreas de conhecimento – sob a influência do paradigma da separação – transfere às estruturas políticas as atribuições de decisão sobre as intervenções na cidade.
A reversão desse quadro reside na progressiva resignificação das nossas subjetividades para a conquista do acesso aos processos decisórios, a partir da interação dentro do próprio campo social e entre os diversos campos sociais que coabitam na cidade. A perspectiva de superação das nossas subjetividades submissas passa pelos afetos solidários na nossa prática diária, desvendando o nosso desenvolvimento histórico e cultural colonialista e transformando as visões simplificadoras do paradigma moderno, que dissocia o conhecimento científico e a reflexão filosófica. Em Búzios – uma cidade turística que atrai trabalhadores, veranistas e visitantes de origens as mais variadas –, as subjetividades são múltiplas em função da diversidade de espaços de relacionamento na atividade profissional, na esfera familiar, na vizinhança, nas redes sociais, na prática de esportes e outras formas de lazer. Essas interações econômicas, culturais e afetivas podem ser recíprocas ou hierarquizadas, presenciais ou virtuais, mas sempre há uma forma de comunicação entre as pessoas e um potencial para afetos solidários e novos horizontes.
* Alberto Kerdman Bloch é M.Sc. em Engenharia do Meio Ambiente pela École Polytechnique Federale de Lausanne, doutor em Urbanismo pelo PROURB/UFRJ, arquiteto e ativista em Armação dos Búzios, com foco na harmonização da ocupação urbana com os sistemas naturais do lugar e no redesenho das estruturas de mobilidade, buscando a valorização dos deslocamentos ativos e das interações sociais nos espaços de uso comum.
Referências
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El mundo íntimo y privado del hogar y el externo y público de la calle, están sugestivamente determinados por el intersticio de la figura que representa la imagen del umbral, espacio fundante del fenómeno urbano. Sutil delimitación de realidades complementarias que fundan la ciudad en su versión de habitabilidad: conjunto de experiencias simultáneas de unos con otros en un lugar geográfico debidamente señalado. Si la ciudad no la hace la calle, solamente; tampoco corresponde ceñirla exclusivamente al universo íntimo de la casa. No es el espacio abierto materializado en la plaza pública, ni la aldea rural ni el peristilo interior islámico. De igual forma, no basta con que exista una aglomeración de casas para que haya una ciudad y, al revés, el puro carácter de vida pública es igual de insuficiente. “Uno no habita en cualquier parte sino en un mundo en el que el adentro y el afuera, lo privado y lo público, lo interior y lo exterior están desde siempre en resonancia.” (Mongin, 2006, p. 291). Siendo así, la ciudad es-otra-cosa. La comarca pintoresca, en la que moran muchos bajo una determinada organización funcional, es la intercepción de estas dos experiencias vitales del tránsito incesante del entrar y el salir, y en cuya movilidad el sujeto de la acción acarrea partes de esos mundos.
Porque, así como la intimidad del hogar trasciende la vida adulta del sujeto ciudadano, así también la calle vulnera su privacidad hogareña, ya que cuando éste “vuelve” lo hace con algo más: trae consigo un “trozo de calle”, una anécdota, el agobio del cotidiano citadino. Como en Neruda (2000, p. 186),[1] cuando el padre irrumpe con su existencial pesadumbre el espacio íntimo donde el niño duerme:
De pronto trepidaron las puertas.
Es mi padre.
Lo rodean los centuriones del camino:
ferroviarios envueltos en sus mantas mojadas,
el vapor y la lluvia con ellos revistieron
la casa, el comedor se llenó de relatos
enronquecidos, los vasos se vertieron,
y hasta mí, de los seres, como una separada
barrera, en que vivían los dolores,
llegaron las congojas, las ceñudas
cicatrices, los hombres sin dinero,
la garra mineral de la pobreza.
La escena evoca el encuentro de esos dos mundos que configuran la experiencia urbana: la irrupción de los “centuriones del camino” con la intimidad protectora que abriga el sueño del hijo.[2] Todo lo cual pone en evidencia una singular paradoja: la de edificar la casa para ocuparla, y así disfrutar lo que para Sócrates es su verdadera belleza: su comodidad;[3] pero, simultáneamente, la necesidad de salir a la calle para encontrarse/desencontrarse en esa reciprocidad que crea el acto de habitar la ciudad. “La ciudad inaugura una experiencia singular, en la medida en que favorece la confrontación de cada habitante con cualquier otro.” (Weber, 1987, p. 43).
Los referentes extremos adentro/afuera no constituyen ciudad. Se requiere del cruce que es exclusivo de la cotidianeidad. Si la ciudad no admite completamente el locus amoenus, propio y exclusivo del hogar, tampoco aceptará la imposición absoluta del espacio público externo. Por eso requieren unirse, porque lo interno/externo no son fenómenos aislados, sino que, por el contrario, se desarrollan en una incesante correspondencia que permite definir el hecho urbano en términos de entradas y salidas. En este sentido, la ciudad clásica y mediterránea que es parte del legado urbano latinoamericano, y cuya clave es la plaza, “nace de un instinto opuesto al doméstico” (Chueca Goitia, 1968, p. 9). O, más matizado, en diálogo con él, puesto que el habitar es el punto de llegada del hecho urbano, nunca de una vez y para siempre, sino en construcción dentro de esa movilidad definida entre los marcos referenciales extremos. Habitar es pues un principio natural, primitivo, inherente al buen vivir que se da sólo en un modelo de ciudad, o, mejor, en un paradigma de cultura urbana, que sin descuidar el conflicto intrínseco que lo tensiona, permita crear la propia ciudad, habitable y al mismo tiempo real y posible.
Ha quedado demostrado que el exceso de racionalismo producto de la industrialización llevó a la ciudad a su punto más crítico, al desprecio por la naturaleza. Pero, del mismo modo, ni la Ciudad hidalga de Indias o la comarca medieval premodernas, extremadamente jerarquizadas y excluyentes de los “mancebos de la tierra” (Romero, 2001, p. 78), tampoco condujeron al necesario equilibrio. La ciudad, así, debe nacer del paradigma occidental moderno y de las alternativas contrahegemónicas.
O sea, de una dialéctica centrada en la figura del umbral; ahí donde se produce el contacto entre la casa (íntima, desconocida, privada, particular, segura, amena) y la calle (colectiva, expuesta, púbica, hostil, insegura). Una es de y para sí misma; la otra, de y para conotros. En una habita la familia que es reflejo de la comunidad; en la otra, la comunidad que representa a todas las familias. No obstante, los elementos de este binarismo si bien conforman la ciudad, no constituyen a priori la experiencia urbana, ya que ésta se da en el sujeto que habita un espacio que no es síntesis, sino tensión, roce, fricción, es decir: el umbral.[4]
En la casa tradicional, el umbral se arma en torno al dintel: el punto de apoyo superior que sostiene la puerta principal. Por lo tanto, es aquella zona ambigua que no está ni adentro ni afuera. El sujeto da un paso hacia fuera y sale del umbral a la calle; o bien, da uno hacia dentro y está en casa. ¿Y si se queda ahí, bajo el dintel, dónde está? En una zona neutral que rebasa la realidad. Un área metafísica donde se producen experiencias vitales trascendentales que definen el hecho urbano. El umbral de la casa es el escenario del quiebre vital del ir/volver, como Odiseo, cuyo verdadero valor pareciera no ser el regreso sino el intento eterno por el desexilio y “que o verdadeiro lar está no passado ou no paraíso ou em algum outro lugar, que jamais estamos em casa” (Borges, 2007, p. 53). Es el primer contacto real del niño con un mundo que no-es-su-hogar, sino lo otro, la otredad: desconocida, y a su vez, seductora.[5] En el umbral se lleva a cabo el sentido real de la existencia humana a partir del desgarro entrañable del dolor y la felicidad. Amor y desdicha; risa y llanto; vida y muerte, son experiencias umbrales. Guardan siempre un significado que va más allá del hecho que las produce.
Para el caso es útil el drama de Federico García Lorca, La casa de Bernarda Alba (1945).[6] La ciudad, la casa, los personajes masculinos y en general el espacio externo, incluyendo el Coro que anuncia la llegada de los cegadores y una historia paralela,[7] no están presentes, de manera íntegra o acabada, en el drama lorqueano, ya que el mundo fuera de las cuatro paredes que resguardan el espacio doméstico dictado por Bernarda —y en parte burlado por sus hijas— aparece en forma incompleta, indefinida, borrosa: son figuras que se construyen sólo desde el interior de la casa, por murmuraciones, supuestos, oídas a medias, “…estuvo [Angustias] —dice La Poncia— detrás de una ventana oyendo la conversación que traían los hombres, que, como siempre, no se puede oír” (García Lorca, 1985, p. 93). El mundo exterior, que pueda irrumpir la “decencia” hogareña, al no poderse evidenciar en su integridad, ya que se percibe sólo desde la distancia (incluso en el sermón de la Iglesia o desde las rendijas del portón, o detrás de las ventanas), se reconstruye sólo a partir de la voz de La Poncia (criada vieja, mujer vivida) o del prejuicio de Bernarda. Y así, de manera oblicua, engañosa, las jóvenes hijas de Bernarda armarán su propio mundo, a su antojo, conveniencia o voluntad. Así conocen a los hombres, simbólicamente manifiestos en Pepe el Romano (100 y 135, respectivamente):
Criada. Pepe el Romano viene por lo alto de la calle…
Magdalena. ¡Vamos a verlo! (salen rápidas)
Criada. (A Adela) ¿Tú no vas?
Adela. No me importa.
Criada. Como dará la vuelta a la esquina, desde la ventana de tu cuarto se verá mejor…
MARÍA JOSEFA (anciana, loca, madre de Bernarda, 80 años). [Ante la locura desatada por el héroe] Pepe el Romano es un gigante. Todas lo queréis. Pero él os va a devorar porque vosotras sois granos de trigo. No granos de trigo, no. ¡Ranas sin lengua!
La distancia entre el cuarto femenino y la calle del pueblo —de los hombres, de los gañanes, de Pepe, de aquel mundo prohibido y deseado a la vez— la cubre el tupido umbral de la casa de Bernarda, espacio que sólo se atraviesa imaginariamente, de anécdotas disfrazadas, hiperbólicas, transfiguradas por el tiempo y la memoria de quien las vivió y que no es, por cierto, ninguna de las muchachas.
El mundo que construye García Lorca de la ciudad en que viven encerradas esas mujeres no constituye para ellas la experiencia urbana propiamente dicha, ya que se configura sólo a partir de una mirada cristalizada, mediada por el umbral que separa lo externo[8] de la casa misma, el lugar que ampara, o inútilmente intenta amparar, la decencia, la honra de esas jóvenes sumidas bajo el peso de una tradición hecha a partir de negaciones, y cuyo fin es preservar la apariencia de lo abnegado por sobre la libertad y el placer. Entonces, al no haber esa resonancia recíproca, que reclama Mongin (2006), entre el adentro y el afuera, no hay experiencia urbana: sólo el deseo femenino reprimido entre las infranqueables paredes de la casa. Las hijas de Bernarda, aunque tensionan el umbral no lo cruzan, y, por consiguiente, el intento no basta para hacer de ellas sujetos urbanos plenos. “Muchas veces miro a Pepe [dice Angustias, su enamorada] con mucha fijeza y se me borra a través de los hierros, como si lo tapara una nube de polvo de las que levantan los rebaños” (García Lorca, 1985:128). Y el resto, la contraparte imprescindible, lo construyen desde los retazos que logran hurtarle, hábil, astutamente a la calle y contra la tiránica acción de su madre: “¡mujeres ventaneras y rompedoras de su luto!” (p. 122).
No obstante, ante todo lo dicho, es innegable la presencia de la ciudad en el relato del poeta andaluz, y que lo que en ella sucede no es experiencia urbana. En efecto lo es, porque el sentido último está en las formas de transgredir el umbral, en el deseo irrefrenable de vivir-la-ciudad. En un contexto mayor, el conflicto opera como metonimia de la tensión entre las dos España: la tradicional y la moderna: habitación blanquísima…muros gruesos…cuadros con paisajes inverosímiles de ninfas o reyes de leyenda. La casa de Bernarda Alba viene, así, a presentar un fenómeno sociocultural en tránsito cuya inflexión es la tragedia provocada por la irrupción de la modernidad que afanosamente busca penetrar las paredes de ese espacio íntimo celosamente defendido.
De modo que el umbral es condición de habitabilidad inserta en la vida del mundo cotidiano. Es quien le otorga valor real y simbólico a la experiencia urbana: hecho vital y dinámico permanente.
La ciudad latinoamericana: experiencia dialéctica de los espacios
Con la expansión iberoamericana, la ciudad precolombina recibe el impacto de tres vertientes foráneas. La occidental clásica de la civitas grecorromana, la nórdica anglosajona doméstica y campestre y la del Oriente medio de tradición islámica. En el contacto de estos surge la ciudad habitada, pero no de un encuentro armonioso, sino de una dialéctica marcada por influjos y resistencias.
Del mediterráneo llega la polis griega. Es sin duda alguna el modelo más exitoso que se reproduce sin excepción en todo el universo lusohispanoamericano. Con la espada y La Biblia se funda, como acto político, la ciudad que graficará la ocupación del nuevo espacio. “El conquistador arranca unos puñados de hierba, da con su espada tres golpes sobre el suelo y, finalmente, reta a duelo a quien se oponga al acto de fundación” (Romero, 2001, p. 61). Así, en este ritual simbólico queda inscrita la ciudad hidalga que dará origen más tarde al modelo de la ciudad-Estado de carácter público ideado por la Grecia clásica, aquello que Aristóteles llamó una vida noble para un fin noble. Predominó como modelo por proceder de una cultura que pensó la ciudad desde una razón ordenadora,[9] desde un espíritu apolíneo centrado en el ideal del ciudadano ligado estrechamente al espacio que habita.
Tempranamente la ciudad fue objeto de reflexión filosófica. “Los filósofos han pensado la Ciudad; han llevado al lenguaje y al concepto la vida urbana” (Lefebvre, 1973, p. 46). No se trata de una abstracción que dificulte la necesaria condición de explicar el hecho urbano, se trata, al contrario, de una reflexión desde la realidad misma, como experiencia que involucra todo el ser de quien la habita. Este filosofar nace en y con la ciudad y en sus múltiples modalidades, convirtiéndose en actividad propia y especializada. La ciudad se convierte así en epicentro, núcleo del espacio político, sede del Logos y regida por el Logos, y, por lo tanto, referente espacial inequívoco frente a lo otro, al extramuro, a la no-ciudad.
La ciudad fue la “cosa perfecta”. El orden perfecto (cosmos) que en un contexto primitivo ferozmente beligerante se sobrepone sobre la “imperfección” (caos), modelo que reprodujo el conquistador en tierras americanas sobre lo que para él era lo inhóspito y salvaje. Creta es la cuna de una cultura netamente urbana. Sin duda no más grande ni más rica ni más compleja que otras que le precedieron, pero sí dueña de un sentido urbanístico inusitado. Volcado más que a la ciudad, a quien la habita; como conciencia despierta o sensibilidad que, según Joel Kotkin (2007), Sócrates confirmaba diciendo que “los lugares del campo y los árboles nada me enseñan, pero sí la gente de la ciudad” (Kotkin, 2007, p. 65). A diferencia de los filósofos de otros lugares, centrados en la divinidad y en el mundo natural, el griego reflexionó sobre el papel de los ciudadanos a la hora de garantizar la buena salud de la koinonia.[10] “Los ciudadanos, decía Aristóteles, eran como marineros en la cubierta de un barco. Su tarea consistía en asegurar la preservación del barco en el viaje” (p. 66).
Proceso reflexivo y práctico que derivó en la polis griega. Porque ésta constituye el hecho más importante y grandioso de la historia antigua. Se distingue con caracteres propios de todas las restantes formas culturales, de un largo período que se inicia en la Asia central. “En Oriente, si bien había tenido lugar una cultura urbana de notable alto nivel, las ciudades no parecían obedecer al desarrollo de una fuerza vital espontánea de su población cuanto a la voluntad rígida de los gobernantes constructores de ciudades” (Randle, 1994, p. 81). Lo cual quiere decir que de ninguna manera podría afirmarse que el urbanismo griego haya provenido de orígenes autóctonos ya que no fue pensada bajo normas urbanicistas sino en función del sujeto, quien debe conducir, como el barco, el espacio que habita. En este sentido, es una ciudad pensada y hecha en y desde su principal elemento: el ciudadano. Cada uno es responsable que su habitar funcione y que la ciudad navegue, crezca y prospere. Obviamente, se trata de un Estado aún muy excluyente, de una democracia de la no libertad, aunque ello no quita, en este contexto de reflexión, que el propósito haya sido el de erigir, como en efecto se erigió, una ciudad así.
Acá, los orígenes de la polis. Durante los siglos XII al VIII a. de C., termina de formarse la ciudad griega en torno a tres lugares clave: el altar común, la acrópolis y el ágora para el intercambio de mercaderías o ideas. Su formación no obstante no hace tanto una aportación material como moral, puesto que el ágora no es en esencia un conjunto construido, sino “simplemente un espacio vacío, libre, abierto al público, donde se van a reunir los ciudadanos y construir progresivamente las instituciones características de la ciudad-estado griega” (Randle, 1994, p. 91). Esta será la matriz reproducida en la historia de la civilización occidental, centrada en la plaza, el espacio externo y público del encuentro. Porque acá lo principal es el bien común, disponer de un espacio para el libre desarrollo de las actividades propias y necesarias para ser ciudadano. El teatro, el gimnasio, el templo, la estatua, la fuente de agua, no son otra cosa que hitos que ayudan a desenvolver el espíritu urbano en su integridad. El alma ciudadana que se materializará en la koinonia, en el vivir-en-comunidad. Sin embargo, nada de esto hace por sí solo a la ciudad. En el pensamiento griego clásico, el buen vivir no se logra si no es con los otros, en un espacio debidamente adecuado para ello y representado básicamente por el ágora.
Todo esto va moldeando una conducta urbana impulsada por el gestor de la cultura occidental. Desde la polis se proyecta un poder hegemónico que en el transcurso histórico se irá instalando como el único, mejor y verdadero modo de vivir. Nace pues un modelo particular que en base al poder se autoconstruye como universal socavando las múltiples otras realidades que le circundan. Grecia emprende así el proceso colonizador que va a continuar más tarde Roma y por consiguiente la Europa central.
Esta ciudad es eminentemente política. En La condición urbana, Oliver Mongin (2006) afirma que desde el momento en que se evoca la política, la ciudad se vuelve sinónimo obligado de polis, ya que está naturalmente asociada a la invención de la política, afirmando que la politeia se caracteriza por un espacio “público” que da una visibilidad “política” a las relaciones humanas (Mongin, 2006, p. 100-1). Es una puesta en escena en “común”, ligada a la acción de hacerse ver por los demás, en palabra y acto, esto a fin de que cada ciudadano, al distinguirse, multiplique las posibilidades de adquirir la “gloria inmortal”. La pertenencia a un mismo cuerpo, el de la ciudad, “da lugar” a la experiencia de compartir el logos, el intercambio de palabras: algo inmaterial que no tiene necesidad de inscribirse en un lugar preciso. La ciudad griega es recuerdo y preservación de lo grande, palabras y actos. El espíritu de la polis, antes que material y territorial, antes que muralla y antes que ágora misma, remite a los valores de la vida pública, que es una cuestión en principio de voluntad mental, una idea (Mongin, 2006, p. 102).
En este carácter público de la ciudad antigua radica la principal diferenciación con respecto a la ciudad moderna, que desarrolla costumbres privadas de lo público. La polis, en este sentido, no es territorio urbano territorialmente localizado, lo cual habría sido un impedimento de colonización, sino lo que lleva cada ciudadano consigo, la acción y la palabra como elementos potenciales de crear un espacio urbano en cualquier momento y lugar. He ahí el valor que la filosofía política griega le asigna.
Lo mental se va configurando con lo físico, el espacio ideal se va progresivamente reforzando con el espacio geográfico y arquitectónico. Ágora significa reunión y palabra y no designa necesariamente lugar construido, porque su valor está en la representación como “espacio vacío” equidistante de todo; centro que ya no remite a la centralidad de Kratos (personificación masculina de la fuerza y del poder). De modo que impulsada por reformas cívico-militares y por la reflexión filosófica, la polis se convierte en “un universo sin estratos ni diferenciaciones […] La diferenciación social reemplazará pues a la indiferenciación, la división a la unidad” (Mongin, 2006, p. 103-4). Hasta Hipódamo. Porque su pensamiento basado en el damero, que va a afectar tanto la organización geográfica de la ciudad como la organización política de la polis, está en la base de un cambio que atentará ese carácter indivisible de la ciudad, en tanto polis. El espacio cívico anterior que procuraba integrar indiferentemente a todos los ciudadanos será reemplazado por el del damero cuyo rasgo principal es la diferenciación.[11]
El espacio de todos para todos, queda, así pues, estratificado en zonas que separan a los ciudadanos en clases y a la ciudad en áreas urbanas: la de los dioses, la del Estado y la de los individuos. Es posible afirmar que con Hipódamo surge el concepto de barrio, y aunque se arguya que responde a criterios estéticos, lo cierto es que su trascendencia se debe más bien a una cuestión práctica, frente a la tarea de tener que delinear numerosos y extensos espacios urbanos. “La ventaja del damero reside en que permite el loteo fácilmente, lo que no era tan factible en las ciudades de crecimiento espontáneo y sin arreglo a plan” (Randle, 1994, p. 110). Razón que explica la exitosa aplicación en la fundación emprendida por los ibéricos en tierras americanas. De ahí que se piense que no es invento de Hipódamo, ya que lo que él hizo fue normalizar una idea que venía de antiguas culturas prehelénicas, siempre ligada a las conquistas militares. Lo religioso, lo tradicional, lo estético, la higiene e, incluso, el asoleo, quedan siempre, en estos casos, supeditados a estrategias ofensivas/defensivas de dominio militar, a fines prácticos expansivos. Todo lo cual hace que con el nuevo urbanismo hipodámico, espacios como la calle, el centro, el suburbio y el barrio mismo, adquieran desde entonces significación particular. De partida, los barrios aristocráticos, donde se encontraban los viejos santuarios y donde habitaban los eupátridas, y, al otro extremo, los barriospopulares, diseminados dentro de los muros de la ciudad, albergaban a la gran población. Se cuenta que las calles eran tortuosas, estrechas e irregulares. “Xenofonte no tenía más que extender su bastón para cerrarle el paso a Sócrates” (Randle, 1994, p. 112). Pero ahí no termina la realidad urbana, más allá, en el extramuro, cerca de la necrópolis, habitaba una población suburbial que no había entrado aún a la lógica de la polis, semirrústicos y fronterizos se alojaban en los arrabales. Aunque fue la polis, desde el ágora, compleja y estratificada, la que rigió cada uno de estas zonas en base a una lógica que también propició el comercio (Weber, 1987, p. 5).
Toda ciudad […] es un “lugar de mercado”, es decir, toda ciudad tiene como centro económico del asentamiento un mercado […] La ciudad, en su origen, y sobre todo cuando se distingue formalmente del campo, es normalmente tanto un lugar de mercado como una sede feudal o principesca: posee centros económicos de dos tipos, oikos y mercado [Marcas autor].
Entonces la ciudad, además de política es comercial. El mercado y la sede administrativa la conforman. “Serían pocos los atenienses que en alguna hora del día no fuesen al ágora por negocios particulares o del Estado, cuando no simplemente para charlar o solazarse” (Randle, 1994, p. 115).
Ahora, si el ágora no designa necesariamente un espacio físico sino reunión y palabra, se puede ir más allá sosteniendo que no recae en sí misma el valor real y concreto, sino en aquello que le rodea: lo definido que hace de ella espacio neutral. Esto es calles, barrios, casas. Todo lo que hace posible su configuración como centro ambiguo. La ciudad no es el ágora, la plaza es sólo la imagen simbólica del peso de una materialidad que le circunda y que recae en la vida cotidiana de su habitante.
La circulación jugará un rol clave en esta nueva mirada. Pero no porque durante la expansión del urbanismo industrial se haya concebido la movilidad como esencial para el desarrollo y crecimiento de la ciudad, sino porque, frente a las necesidades de habitabilidad y de espacio, ante la explosión demográfica, se debió potenciar al máximo el principio de conectividad que permite el tráfico. Los griegos ya lo habían aplicado, y sabían de la urgente necesidad de comunicar cada una de las distintas zonas que componían la polis. Contra la incomunicación de cada zona, la que a su vez era un mundo propio, una frontera desconectada de las otras, debía haber algo que las uniera y conectara entre sí, de lo contrario caerían en un aislamiento que favorecería al desarrollo de una particularidad autónoma. La universalidad del Imperio no concibe este abandono, no podía aceptar la indiferenciación que atentaba directo contra la rigurosa estratificación de un sistema orgánico que se expandía verticalmente sobre todo el dominio territorial. La circulación permite unir las partes indistintas regidas a un único espacio urbano. Cada particularidad refleja en sí misma la ciudad en su conjunto. Esa es la idea. Y aquí sobre el tráfico cobra valor otro elemento: la calle. Urbanistas contemporáneos cuestionan que sea la casa la que domine la ciudad y en su lugar proponen la calle, relegando la habitación a un espacio secundario.
La calle no puede entonces ser evaluada en sí misma sino en relación con la circulación. Aunque se le asigne un valor adicional no reducible sólo al espacio transitable (vías de acceso, circulación, fluidez), la calle es todo el mundo urbano que no es casa, es decir, el espacio externo en cuanto público. Patricio Randle (1994), una vez que detalla dimensiones específicas de las calles de la Grecia antigua, fundamenta lo anterior diciendo que “se puede pensar que la estrechez de las calles tenía sus razones prácticas: el ancho tenía importancia relativa ya que estaban destinadas principalmente al tráfico peatonal. Inclusive estaban destinadas más a la conversación que a la circulación.” (Randle, 1994, p. 151-2). Con todo, la ciudad clásica es la ciudad griega, la ciudad mediterránea, esa que, con palabras de Chueca Goitia (1968:9), citando a Ortega y Gasset, es, ante todo: plazuela, ágora, lugar para la conversación, la disputa, la elocuencia, la política. En rigor, la urbe clásica no debía tener casas, sino sólo fachadas que son necesarias para cerrar una plaza, escena artificial que el animal político acota sobre el espacio agrícola.
Una ciudad sin casas, sólo fachadas. Es la postura extrema de una occidentalización urbana que hallará su contraparte absoluta en el universo rústico, en la ciudad doméstica y campestre asociada al mundo anglosajón. Dentro de esta polarización, que por cierto no es más que referencial, útilmente referencial, se instala la ciudad como legado de una larga tradición que tiene su punto de arranque dentro del conflicto dado entre la experiencia pública y privada del hombre antiguo. La ciudad como fachada es el modelo que asume Chueca Goitia para fundamentar aquello que, según Ortega y Gasset, la ciudad clásica nace de un instinto opuesto al doméstico…, en el sentido que la ciudad es, ante todo, espacio político, el lugar donde se conversa y donde los contactos primarios predominan sobre los contactos secundarios. El ágora es la gran sala de reunión y sede de la tertulia ciudadana, la tertulia política. Un espacio urbano que tiene como clave para el desarrollo de la vida ciudadana el ser “locuaz y parlero, y en la medida que esta locuacidad se pierde decae el ejercicio de la ciudadanía.” (Chueca Goitia, 1968, p. 8). Las ciudades que no entran en esta definición, es decir, la anglosajona y la islámica, al no ser locuaces, son calladas o reservadas, “tienen de vida doméstica lo que les falta de vida civil” (p. 10).
Entonces, lo que de aquí se desprende es que ni casas, ni aglomeraciones humanas, ni concentraciones industriales, ni regiones suburbanas, e, incluso, ni siquiera una civilización (atendiendo experiencias de ciudades precolombinas), equivalen, juntas o por separado, a ciudad, si no existe en ella como elemento central y determinante la plaza. Una suerte de agorafilia que viene a echar por tierra todos los elementos que constituyen, como el ágora misma, la ciudad que se vino configurando hasta hoy.
Ante la cual la ciudad doméstica y callada, la ciudad interior, la ciudad de puras casas y que carece de plaza es una ciudad eminentemente campesina como la ciudad locuaz y civil es eminentemente urbana. La plaza entonces se instala como conditio sine qua non de la urbe, y, por eso, como elemento diferenciador esencial entre ésta y el campo. El campo al no tener ágora, carecería del encuentro dialógico dado en el contexto de la conversación, o sea, de una vida parlera y civil que sólo ostentaría, en este entendido, exclusivamente la ciudad clásica mediterránea.
Pero se ve también que esta distinción no se reduce a lo que concierne únicamente al tema urbano. En un plano más amplio permite distinguir el mundo antiguo del moderno. El hombre antiguo, asentado en un estilo de vida preferentemente agrario, utiliza maneras distintas de comunicarse. La conversación, como la vida toda en su conjunto, están inmersas en la cosmovisión rural que es a su vez rutinaria, circular porque remite siempre al ciclo repetitivo de la naturaleza. Y no sólo porque este acto trascendental, por cierto, no se lleva a cabo en el espacio vacío (plaza), ausente en el campo, sino, principalmente, porque su contenido carece del trasfondo que en la polis es el asunto político, la escenificación cívica, a través del diálogo con el otro, y no siempre conocido, de los asuntos de todos, de la cuestión pública, del bien común, en última instancia, del Estado. Digamos que más allá del contexto, que si rural o cívico, con plaza o sin ella, será el lugar de enunciación el que va a distinguir un tipo de diálogo de otro. Los asuntos del Estado no se dan en el circuito agrario como los contenidos de éste tampoco prosperan en el epicentro urbano. Lo que exige criticar, de un lado, el modo cómo la cultura occidental moderna instala sobre la figura del ágora el ejercicio político como instancia legitimadora de una verdad universal, retórica, letrada, y, de otro, y debido a este mismo orden racional, abogar por lo que éste deja fuera o no valora debidamente y que es el poder inconmensurable de la oralidad.
Respecto a esto último, y sin dejar de reconocer el inmenso aporte del primer urbanismo depositario del pensamiento griego, interesa recuperar también las costumbres y tradiciones antiguas y olvidadas del mundo agrícola. Importa salvar el lenguaje primario de la voz oral. Si el interlocutor urbano es “locuaz y parlero”, el campesino será, por el contrario, monotonal y espontáneo, de espíritu familiar más que público, y de un habla en general carente de aventuras y de asombro (ligado esto estrictamente al sentido novedoso que entrega la ciudad, para no confundirlo con lo mágico y maravilloso que porta el relato oral). Es un acto, como dice Jorge Teillier (2002:86) en su poema “Cuando todos se vayan”, practicado con los mismos amigos de siempre, sentado “en el roído mostrador de un almacén/ para hablar con antiguos compañeros de escuela”. Una relación, dice ahora González Vera (1929, p. 23), entre peones viejos, a esa hora en que “los vecinos sacaban pisos a la acera y aguardaban la hora de la cena”. Para conversar, para llevar a cabo ese acto tan elemental que no se da, porque no podía darse, en la plaza de la ciudad, sino tan sólo en la aldea, en una aldea como Alhué.[12]
Lo que, por otra parte, y como se dijo, permite también pensar que en el ágora no se discute otra cosa que no sea aquello de interés público, concerniente a todos y donde la intimidad, los asuntos domésticos (el cerco, los animales, la cosecha) no tienen lugar, ni interés, a no ser, claro, que involucre a más de una familia, pueblo, comunidad, porque en ese caso media el poder central. La polis griega, en este sentido, deja de lado la dimensión íntima de la existencia humana, instalando la elocuencia como medio legitimador de un cierto ser ciudadano, y tal vez el único capaz de hacerse cargo de la res publica. Promueve así el oficio de charlatán, que contrario al peón viejo es capaz de asociar muchas palabras que maravillan, convencen y seducen.
Porque, en efecto, si bien ahí está la gracia del hombre público, la del aldeano, no carente de elocuencia, está en otro lado. Pero no deja de estar: “Debe andar mi abuelo por los campos recién arados/ hablando con los pinos, espantando gorriones. / Mi abuelo tiene una voz profunda, aprendida del tiempo” (Teillier, 2002, p. 24). Elocuencia otra que ni el razonamiento del civitas grecorromano ni el proyecto ilustrado moderno recogen: el canto, el contacto con la divinidad y la naturaleza, el silencio… La instrucción del niño pasa del hogar a la escuela, de la madre al profesor, ahí se formalizan. La salud familiar queda en manos de la ciencia médica, y entonces hierbas, rezos, mejunjes y prácticas inverosímiles, propias de la tradición oral, se hacen “secretos”, y hasta prohibidos. El amor, y el sexo, se institucionalizan civil, legalmente. Las disputas por tierra (esas por las que los personajes de Rulfo matan) las asume, pues, la justicia, en muchos casos juez y parte. Aparece en todo esto la figura del intelectual moderno, precedido del funcionario público.
Y, sin embargo, la construcción identitaria del sujeto moderno requiere no perder de vista estas dos dimensiones: manejar, de un lado, las herramientas fundamentales que le permiten erguirse como ciudadano de la vida moderna, pero, a su vez, de otro, necesita no descuidar, recuperar y fortalecer su lado íntimo y sensible que la arrogancia del racionalismo instrumental modernizador le anula. Requiere, en consecuencia, para que se constituya en el sujeto autónomo mantener vivas estas dos tendencias formativas, estos hábitos fundamentales, estas esferas esenciales de nuestro vivir en conversaciones, que pese a responder a estadios distintos dentro de la Historia, habitan simultáneamente en el interior. Se es polis como se es casa, como homo urbanus se es homo agris. Ejes referenciales que se cristalizan en lo que Maturana (2008, p. 23) llama “lenguajear”: encuentro dialógico que hace al hombre vivir en plenitud.
No obstante, entre estos dos modelos, el campesino y el civil, aparece un tercero: el religioso. Dispuesto, se dirá, para ser atendido como el prototipo que obedece al proyecto de ciudad que se busca proponer. Sí, porque el modelo de ciudad islámica no se aviene, justamente, ni al logos parlero de la polis griega, ni al ciclo aislado y silencioso del mundo agrario. Se ajusta más bien a una tercera opción que recoge parte de estos dos extremos, pero irreductible a ellos. Una ciudad que bien puede llamarse privada. De eso da cuenta, al menos, el Corán, que en sus versículos 4 y 5 del capítulo XLIX, llamado El Santuario, señala: “El interior de tu casa —dice Mahoma— es un santuario: los que lo violen llamándote cuando estás en él, faltan al respeto que deben al intérprete del cielo. Deben esperar a que salgas de allí: la decencia lo exige” (Chueca Goitia, 1968, p. 12). Esto refleja que el musulmán lleva al extremo la defensa de lo privado, pero, por lo mismo, no debe permanecer durante mucho tiempo en la cárcel que él mismo se ha preparado, de ahí que su vida se escinda en vida de harén y vida de relación. “No puede, pues, hablarse de una plena vida doméstica, ya que ésta se halla constitutivamente dividida. Tampoco cabe decir que domina la vida pública […] ya que existe la vida de harén”. (1968, p. 13). Y en efecto, esto es así porque “la civilización islámica se basaba en una poderosa visión del sentido del ser humano” (Kotkin, 2007, p. 97). La necesidad de unir la comunidad de creyentes constituía un aspecto fundamental del Islam. De hecho, para Mahoma, la ciudad debía ser ese lugar donde los hombres recen juntos. La ciudad como un gran templo de oración y penitencia, tanto dentro como fuera de la casa. Su carácter religioso la determina, desde la propia casa trasciende a todo, impregna todo. Si la ciudad clásica es la suma de un determinado número de ciudadanos, la ciudad islámica será la suma de un determinado número de creyentes.
Y el Islam se extendió al punto que en su máximo apogeo llegó a superar al Imperio romano. Se trata de una irradiación muy particular que, contrario a la expansión occidental, absorbe y asimila muy rápidamente, ya que lo principal en él no era crear nuevas culturas, sino instalar una nueva concepción de la vida, impuesta por una religión rigurosa e inflexible tendiente a un gobierno puritano. De modo que en su desarrollo expansivo, heredado, por cierto, del mundo primitivo oriental, así como de las urbes prehelénicas, lo que distingue a las ciudades islámicas es su semejanza. En ninguna otra cultura se encuentra relación parecida. Las ciudades griegas y romanas eran en general muy diferentes entre sí. Las había regulares u orgánicas, y otras funcionales, producto del azar histórico. Pero de uno u otro modo todas sobresalían con respecto al notable empobrecimiento de la ciudad musulmana. La ciudad islámica es funcional y formalmente un organismo más simple y tosco cuyo universo todo quedaba reducido a las leyes inquebrantables del Corán. Habría pues una regresión ante la polis griega: carece de ágora, de circos, de teatros. Lo único que conservaron estas ciudades fueron las termas que terminaron siendo un espacio importante de encuentro social.
A los rasgos anteriores de la ciudad islámica (privada, hermética y sagrada) habría que añadirle la condición de secreta. La ciudad islámica es una ciudad secreta, indiferenciada, misteriosa y recóndita, que no se exhibe, que no se ve. Sin calles, sin rostro. Otra cosa: si las ciudades no tienen calles, todo se constituye de adentro hacia afuera, negando el espacio colectivo. Contrario a la ciudad occidental que se organiza de afuera hacia adentro, desde la calle, que penetra el espacio íntimo y doméstico. Ahora, si hay calle islámica, esta es aparente, falsa: son callejones sin salida, carentes de la linealidad clásica que conducen de un punto a otro, ya que, al no tener salida, no tienen continuidad, no sirven al interés público sino al privado, al conjunto de casas en cuyo interior penetra para darles entrada. No son calles. Son estrechos pasadizos que se quiebran, se cierran, y aún cuando sean amplias, no son calles, ya que, en rigor, la calle como tal no admite la privacidad, esa condición indispensable que necesita el piadoso musulmán. La calle así se opone porque no sirve al sentido intimista islámico; sí sus estrechos y enrevesados y pedregosos pasajes, los que a su vez tampoco sirven a la ciudad mediterránea para entablar la vida civita. La diferencia entonces entre Toledo y París más que arquitectónica es cultural, incluyen las formas de habitarlas. Porque el intimismo, la privacidad y el ocultamiento, van de la mano con la estructura que la ciudad del Islam ofrece. Pero no por eso no tendrían el carácter urbano. La ciudad islámica fue preferentemente urbana; es más, su oposición al entorno campestre y su apego a la vida urbana, hacen que se asemeje a la ciudad mediterránea y se distancie del modelo rupestre anglosajón. Al punto que es válido afirmar “que todavía es más honda la dicotomía campo-ciudad en el Islam que en cualquier otra cultura” (Chueca Goitia, 1968, p. 70). La oposición de la ciudad musulmana es radical y excluyente frente al campo representado por la vida nómada.
No significa sin embargo que la solución definitiva al problema del fenómeno urbano se halla en la ciudad musulmana, espacio del habitar que no por diferenciarse de los modelos extremos recién vistos vendrá, por eso, a ofrecer el punto intermedio que se busca, la relación dialéctica entre el adentro y el afuera urbano, y aunque aparentemente así se manifiesta, no lo es y esto porque, está dicho, la ciudad islámica responde a un modelo regido por la fe religiosa de un pueblo milenario. La interpretación que ofrece Chueca Goitia es clara. Hay una exigencia superior al extremo que la casa es un santuario y la calle, una necesidad que responde, antes que todo, al respeto de esa vida autopenitente. El hogar de la vida doméstica no es cárcel. En consecuencia, el exterior tampoco debe verse como la liberación de ese enclaustramiento. Todo lo cual no quita, pues, rescatarla en cuanto a un espacio otro que, según lo visto, no es el griego ni tampoco el campesino. Se trata de una ciudad alternativa que por una cuestión de exigencia vital hará, no del ágora ni tampoco del interior de la casa, sino del patio casero, el espacio de la íntima contemplación, el lugar capaz de congregar dentro de sí ambos universos: el relacional como el íntimo (Chueca Goitia, 1968, p. 12).
La vida de harén condiciona la organización de la casa musulmana como un recinto herméticamente cerrado al exterior y, lo que es más, completamente disfrazado. [Allí] todo está imbricado, revuelto y confuso de tal manera que el camouflage resulta perfecto. La vida completamente reclusa, sin apariencia exterior alguna, da lugar a una difícil ciudad sin fachadas. Algo opuesto totalmente a la ciudad clásica, donde el escenario y la fachada eran lo principal.
Tal situación le lleva entonces al musulmán a organizar su vida doméstica en torno al patio, al peristilo o jardín cerrado de tapias y arbustos. De este modo, atempera, acomoda su casa deseada, y no reñida con las leyes del Corán, dentro de la cual podía gozar de las delicias de la vida al aire libre en un espacio estrictamente privado. En su ductilidad habitacional en lugar de enfrentar la calle, la elude, al punto de decir que, en la ciudad musulmana, la calle, en su sentido de exteriorización de la vivienda (fachadas), no existe; como tampoco existe, por mandato divino y por estilo de vida que ya no es el del campesino antiguo, una vida doméstica plena. A causa de ello el musulmán habilita el patio, no le interesa la calle ni tampoco la plaza, porque ese rol lo cumple el patio. Pero como ya no se trata de política sino de religión, su función en la vida social es muy diferente.
De tal forma que ya no se está ante un ágora para la discusión y la dialéctica, sino ante un espacio para la meditación silenciosa y pasiva del tiempo que fluye. Por eso, en lugar de plaza como entidad urbana abierta, los musulmanes, incluso para la vida en común, prefieren de nuevo el patio, donde vuelven a encontrarse encerrados en una actitud de tipo extático-religiosa. El único elemento de la ciudad que adquiere vida y está dominado por el bullicio humano es el zoco, la alcaicería o el bazar. Pero esto obedece ya a una necesidad puramente funcional insoslayable.
Ahora, esto de crear un patio interior parece una solución acomodaticia, que en el fondo no aporta a la solución del problema de la ciudad como punto de encuentro real y efectivo entre la calle y la casa. Más bien opera como camuflaje, espacio simulado de algo que quiere a la vez ser público y privado, sin llegar a constituir al final ninguno de los dos. Se entiende que la ciudad musulmana, como todas las ciudades, obedece a necesidades profundas de su comunidad, a circunstancias espirituales, a condiciones nacidas del entorno físico, al clima, al paisaje, en una frase: a una concepción unitaria. Pero no por eso se tomará acá su modelo como paradigma de la ciudad que configuró el espacio urbano que se ocupa, sin olvidar, por cierto, que muchas de las ciudades hispanolusas son depositarias de esa rica tradición musulmana, que pasó primero por los imperios y luego al subcontinente.
Hasta aquí se ha hecho público el reparo contra aquel estilo de vida exclusivamente exterior, del mismo modo como se rechaza el enclaustramiento doméstico de la casa labriega, y aunque el peristilo islámico pareciera ser la salida, puesto que recrea la calle sin perder de vista la intimidad del hogar, lo es en principio y sólo en principio, ya que el patio, el patio del fondo de la casa, no sólo ofrece un débil simulacro a la experiencia real y concreta de habitar la ciudad; le da la espalda, la niega, la confunde fatalmente. Hace pasar una realidad por otra que no es, porque la vida pública, al igual que la vida íntima, no se viven sino en plenitud, absolutamente.
La vida de patio interior promueve, así, hoy día, una ciudad de apariencias, simulada, una experiencia de vida urbana espuria, y con ella la soledad, el individualismo, la carencia de factores integrales del individuo moderno incapaz de enfrentar el mundo en su complejidad plena. El patio del fondo de la casa (que hoy puede ser tristemente homologable al espacio virtual), es el sustituto pobre y farsante del mundo de la vida cotidiana llevado a cabo en el habitar urbano. El patio del fondo de la casa, en suma, es el recodo protector, cómplice y testigo de la estructura familiar de la sociedad burguesa donde se fragua el carácter de un sujeto que lleva impreso en su interior el desprecio por la calle, la que más tarde ocupará para ordenarla según la lógica adquirida en su formación desvinculada de factores comunitarios y colectivos, egoísta y carente del profundo sentido de solidaridad. Los rasgos identitarios adquiridos al interior del patio del fondo de la casa terminan configurando a un hombre insatisfecho e incapaz de establecer los lazos societales que la vida urbana moderna precisa.
Lo anterior queda retratado en la imagen que nos ofrece José Donoso en su cuento “Paseo” (1960). Relato en que a través de un niño (¿él mismo?) configura los rasgos fundamentales de una sociedad oligárquica decadente. La probidad de una vida que para Matilde —su tía paterna— se reducía a los pleitos aduaneros de sus hermanos abogados y a los problemas de la casa. “Esto, para ella, era la vida”, dice el niño. El resto, lo externo: la magia de los barcos, el ruido alborotado de la calle, no cuentan, “porque mi vida —dice— era, y siempre iba a ser, perfectamente ordenada”. Pero aquí lo más importante, el espacio relegado que modela este carácter. El personaje recuerda (Donoso, 1983, p. 75 y 85, respectivamente):
Cuando yo llegaba del colegio por la tarde iba directamente a la planta baja, y montando mi bicicleta nueva daba vuelta tras vuelta por el estrecho jardín del fondo de la casa, centrado en torno al olmo y al par de escaños de fierro. Detrás de la tapia, los nogales de la otra casa comenzaban a mostrar un leve bozo primaveral, pero yo no hacía caso de las estaciones y sus dádivas porque tenía cosas demasiado graves en que pensar. Y como sabía que nadie bajaba al jardín hasta que el ahogo de pleno verano lo hiciera perentorio, era el mejor sitio para meditar sobre lo que en casa sucedía [Énfasis mío].
Así como la polis griega se erige sobre el espacio vacío del logos, para tratar parlamentariamente el bien común, y así como la ciudad campesina emerge en torno al ciclo de la vida agraria, donde más bien habla la naturaleza, así también la ciudad musulmana está montada sobre la vida privada y el sentido religioso de la existencia. Lo que al fin lleva a no tomar partido por ninguno de estos modelos en forma aislada.
Porque la ciudad que se habita en América Latina no responde ni a una ni a otra, sino que se ajusta al encuentro/desencuentro de los tres tipos de habitar urbano en forma simultánea. Así pues, la ciudad en su devenir histórico acogerá al sujeto de estilo de vida activa, al de vida cíclica y al de vida contemplativa. Luego, la conformación de este sujeto, como ser ciudadano moderno, se mantendrá irreductible a estas formas referenciales hasta acá revisadas. Las hará, pues, suyas en forma indistinta, con más o menos énfasis, dependiendo de sus particularidades culturales en la heterogeneidad de experiencias recogidas de esta larga tradición urbana regional.
* Marco Chandía Araya es doctor en Literatura Hispanoamericana, Universidad de Chile. Profesor UFPA/Campus Abaetetuba. marcochandia@gmail.com. Ha publicado diversos artículos en el área de los imaginarios urbano-porteños del Pacífico sur y el libro La Cuadra, pasión, vino y se fue…Cultura popular, habitar y memoria histórica en el Barrio Puerto de Valparaíso (Santiago de Chile, 2013).
Referencias
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WEBER, Max. La ciudad. Madrid: La Piqueta, 1987.
Notas
[1] “La casa”, de “Yo soy”, en Canto general. Como Neruda, muchos escritores vuelven a esa escena inicial de cuando de oídas construían en el imaginario un mundo que luego conocen y plasman en su obra. Parece ser que es el sentido auditivo pues el que nos pone en contacto por primera vez con el desconocido mundo fuera-de-la-casa.
[2] Muchos escritores vuelven a esa escena inicial de cuando de oídas construían en el imaginario un mundo que luego conocen y plasman en su obra. Parece ser que es el sentido auditivo pues el que nos pone en contacto por primera vez con el desconocido mundo fuera-de-la-casa.
[3] Según P.H. Randle (1994, p. 120), el filósofo griego juzga inútiles las pinturas y otras decoraciones ya que la verdadera belleza estaría en la relación que se establece entre el habitante y su construcción.
[4]Umbral proviene del latino lumbral, cuya raíz es el sustantivo lumen, luz, luz de día. Siguiendo el étymos, lumbral no es luz, sino por donde pasa, o más preciso: donde llega ésta, por donde se filtra la luz del día, lo cual quiere decir que el lumbral no siempre está iluminado, pero tampoco oscuro; antes bien está sombrío, porque umbra es sombra, proyectada por un cuerpo. Umbral es algo entre el reflejo de un cuerpo que se interpone ante la luz y la luz que se cuela ante un cuerpo que le oscurece. Umbral puede representar un espacio más o menos iluminado (sombrío, lúgubre), pero no será nunca la oscuridad absoluta, porque en la oscuridad absoluta no se da nada, y el umbral, al tener algo de luz, es algo, que, sin ser luz propiamente dicha, está afectado por ésta: es sombra, oscuridad iluminada, luz oscurecida, un espacio ambiguo, oxímoron en permanente transformación.
[5] “La casa es el primer mundo del ser humano. Antes de ser ‘lanzado al mundo’ […] el hombre es depositado en la cuna de la casa. Y siempre, en nuestros sueños, la casa es una gran cuna […] La vida empieza bien, empieza encerrada, protegida, toda tibia en el regazo de una casa [En el espacio amado que le permite al niño poseer] verdaderamente sus soledades [entre] la dialéctica del juego exagerado y de los aburrimientos sin causa, del tedio puro. (Marcas autor) (Bachelard, 1991, p. 35).
[6] Léase la primera anotación explicativa antes de comenzar los diálogos de los personajes. El autor nos sitúa en una “Habitación blanquísima del interior de la casa de Bernarda. Muros gruesos. Puertas en arco con cortinas de yute rematadas con madroños y volantes. Silla de enea. Cuadros con paisajes inverosímiles de ninfas o reyes de leyenda. Es verano. Un gran silencio umbroso se extiende por la escena. Al levantarse el telón está la escena sola. Se oyen doblar las campanas. Sale la CRIADA” (García Lorca, 1985, p. 83).
[7] Se trata de un hecho de muerte que cuenta La Poncia, según la cual una muchacha soltera habría tenido un hijo, de padre desconocido, a quien mata a fin de “ocultar su vergüenza”, ocultándolo luego bajo unas piedras, pero unos perros hallan el cuerpo y lo depositan en la puerta de su casa, situación que despierta odio en los habitantes quienes la arrastran calle abajo para lincharla y hacer justicia por sí mismos. Obviamente, el episodio opera aquí como subterfugio de advertencia ante el intento de que las hijas de Bernarda puedan hacer lo mismo. Demarca el espacio exterior, teñido por el macabro escándalo, impúdico y deshonroso, del interior, de apariencia decente y casta, imagen que inútilmente Bernarda intentará mantener. (García Lorca, 1985, p. 122-3).
[8] Ese, para Bernarda, “maldito pueblo sin río, pueblo de pozos, donde siempre se bebe el agua con el miedo de que esté envenenada.” (García Lorca, 1985, p. 90).
[9] “Las ciudades emergían ya completas por un parto de la inteligencia en las normas que las teorizaban, en las actas fundacionales que las estatuían, en los planos que las diseñaban idealmente”. Es decir que, para Rama (1984, p. 1), la ciudad, antes de ser realmente, lo era racionalmente, por medio de una idea o razón que la preconcibe.
[10]Koinonia, que hoy se usa más como concepto cercano a la teología, tiene acá el sentido de recuperar su valor de comunidad, que deriva a su vez de koiné, que también pasó a significar casa, por su directa relación a común. Por otra parte, oikos, es casa, pero ya en el contexto de bienes y personas, como unidad básica de la sociedad, en la ciudad-Estado tradicional.
[11] Modelo que reproducirá en el siglo XIX el Barón Haussmann en París. Es decir, un reordenamiento racional del espacio y con ello el sometimiento y control de su habitante. El damero o modelo haussmanniano responde a esa lógica ordenadora y excluyente (Ortiz, 2000, p. 30).
[12]Alhué: estampas de una aldea [1928], relato que reflejaba la vida provinciana: anodina, indefinida y lenta. En mapudungún, “morada de las ánimas”. Se trata, por otro lado, de reparar en el valor de eso que Benjamin (1998, p. 115) recoge cuando reclama, en “El narrador”, contra la pérdida del hábito de intercambiar anécdotas y prácticas cotidianas, contra esa notoria menguante comunicabilidad de la experiencia que trae consigo la modernidad, a favor de ese acto épico de la verdad. A ese saber expresado en voz baja, a ese antiguo y tan grata costumbre que es la del oficio de platicar.
1. As dimensões econômicas da preservação patrimonial
“Flores adornam cada estação desse Calvário. São as flores do mal. Aquilo que é atingido pela intenção alegórica permanece separado dos nexos da vida; é, ao mesmo tempo, destruído e conservado. A alegoria se fixa às ruínas. Oferece a imagem da inquietação entorpecida.”
Walter Benjamin, 1989
Charles Baudelaire, “um lírico no auge do capitalismo”, é a referência assumida por Walter Benjamin para compreender a Paris moderna do século XIX. Buscava, assim, entender as transformações produtivas e espaciais operadas na modernidade que, ao desmantelar relações sociais e, frequentemente, o suporte físico sobre as quais se desenrolavam, verdadeiras ancoragens mentais da memória coletiva, geravam angústia e um sentimento de perda. Poderiam ser esses espaços e as relações sociais que nele se ancoram ao mesmo tempo destruídos e conservados?
A estratégia de preservar conjuntos históricos da paisagem, espaços urbanos construídos e elementos arquitetônicos de valores excepcionais era, naquele momento, uma prática relativamente recente. Surge como contraponto às ações promovidas a partir da Revolução Francesa (1789) de destruição de símbolos e monumentos que representavam o poder no Antigo Regime. O desejo de preservação da memória surge naquele momento, que coincidia, de um modo geral, com a formação dos Estados nacionais, como uma importante reação. Passa a ser validada pelo sistema de acumulação de capital a memória consolidada em uma seleção de objetos associados, sobretudo, ao poder de determinadas classes sociais. Foram preservados igrejas (clero), castelos (aristocracia), mercados (burguesia comercial) e equipamentos de usos coletivos como, entre outros, teatros, museus e bibliotecas (comunidades locais). O modo de ser nas cidades do novo sistema urbano moderno estaria, a partir de então, intrinsecamente relacionado a esses dispositivos de memória social. Apenas recentemente passaram a ser preservados feiras de artesãos, fábricas, vilas operárias, fortalezas militares, estações ferroviárias, sobrados das classes médias urbanas, e registradas manifestações culturais de comunidades tradicionais.
Podemos situar, assim, na modernidade as condições sociais, culturais, políticas e econômicas que possibilitarão emergir e florescer o discurso da preservação do patrimônio cultural. As rupturas abruptas de valores culturais compartilhados alçaram, neste sentido, objetos arquitetônicos em risco iminente de destruição ao patamar de ancoradouros da memória coletiva. O que nos permite considerar que a modernidade alterou profundamente a concepção humana do espaço (destruindo, construindo) e do tempo (acelerando e desacelerando). A partir de então passam a ser formuladas, com maior ou menor êxito, políticas públicas visando a assegurar a permanência do patrimônio edificado no território.
1.1 Modernidade e cultura
Na modernidade, as cidades tornam-se o espaço da produção material, com a ruptura da unidade espacial – habitação-trabalho – do feudalismo, permitindo a livre circulação de capital, consumidores e mercadorias, de acordo com os novos modos de vida exigidos pela consolidação dos Estados nacionais. Ao mesmo tempo, alterava-se paulatinamente a concepção hegemônica da cultura. Novos símbolos materiais e imateriais foram criados para situar culturalmente o povo no território.
Os principais marcos simbólicos e econômicos da modernidade coincidem com a mudança da noção de cultura, posta pelo Iluminismo. Era preciso criar uma cultura de valores alheios aos compromissos e relações sociais fixas das comunidades tradicionais, estimulando o consumo em massa, o compromisso com jornadas de trabalho rígidas e o respeito à ordem, às leis burguesas e aos valores exógenos.
No contexto geopolítico da América Latina, o início da modernidade coincide com a colonização europeia sobre os povos explorados e escravizados. A teoria decolonial considera como evento inaugural da modernidade as grandes navegações e a chegada dos europeus às Américas. Esses eventos relacionados, a partir do saque de ouro, do trabalho escravo e do domínio da propriedade territorial, explicam as bases de valor para uma acumulação primitiva de capital que culminou, sobretudo na Inglaterra, na Revolução Industrial e na hegemonia do modo de produção capitalista global.
Um dos pontos que compõem a matriz colonial de poder da modernidade/colonialidade foi descrito por Ramón Grosfoguel (2012), decorrente da teoria do sistema-mundo:
um sistema interestatal político-militar de Estados dominantes e subordinados, de Estados metropolitanos e periféricos, correspondentes na maioria dos casos à hierarquia da divisão internacional do trabalho e em sua maioria organizados ao redor da ficção do Estado-nação (Grosfoguel, 2012).
Neste sentido, é possível relacionar a narrativa de preservação do patrimônio cultural ao nascimento dos Estados nacionais como um símbolo para legitimar uma determinada unidade entre o povo e o território, em torno de elementos preponderantemente europeus. Durante o século XVIII, a burguesia e seus valores revolucionários à sociedade feudal alteraram paulatinamente a forma de organização e produção do espaço. O sistema de acumulação rompeu com qualquer tradição incoerente com valores capitalistas. A burguesia era a primeira classe dominante da humanidade que assumia o poder não pelo que os seus ancestrais eram, mas pelo que eles realizavam, não tendo compromisso aparente com identidade e tradição.
As Revoluções, Industrial e Francesa, marcam a grande ruptura da continuidade que abriu espaço para a era das invenções das tradições, estudada por Eric Hobsbawm (2002). As tradições inventadas são reações a situações novas, estabelecendo seu próprio passado, por meio de uma continuidade artificial. Elas são um contraste entre as constantes mudanças do mundo moderno e a tentativa de estruturar, de forma imutável, certos aspectos da vida social.
O que entendemos como patrimônio cultural forja-se também sobre o processo de invenções de tradições para emprestar o sentido de lealdade e coesão aos elementos constitutivos do Estado-nação. Esse conceito origina-se de uma demanda criada pela invenção dos próprios Estados-nações. Nos países europeus foram utilizados como artifícios de manutenção de poder do clero e da nobreza, que foram fortemente abalados pelas revoluções burguesas.
No Brasil, inicialmente, a retórica do discurso preservacionista sustentava-se, sobretudo, em imóveis característicos da colonização de uma elite branca europeia. O Estado, por meio de suas diretrizes, regulamentações legais e ações fiscalizadoras, passa a ser um agente central, que transforma coisas em bens, dirimindo conflitos, determinando quais objetos devem ser protegidos e liberando outros para serem destruídos (Gonçalves, 2002).
A preocupação moderna dos “administradores da vida social”, expressa pela tarefa de substituir a ordem divina pela ordem artificial racionalista, baseada em leis, envolveu também técnicas de moldagem da mente humana e da vontade a partir do controle e da educação comportamentais. Esses elementos fundiram-se na ideia de cultura, de forma paradoxal e ambivalente, posto que a emancipação e a liberdade humana, que a modernidade preconizava, deveriam sofrer limites para impedir uma universalidade no exercício dessas ações, que seria incoerente com o modo de exploração capitalista do trabalho.
O conceito de cultura, assumido desde o início da modernidade, passou a conciliar essa dupla estratégia, ou uma série de oposições: cunhar uma condição humana, buscar a autoafirmação e a criatividade libertadora de uns, e a regulação normativa e a obediência às leis por outros. As definições de cultura como construção de uma ordem social e urbana fazem pensar exatamente no papel que o patrimônio cultural tinha neste momento da modernidade. Bauman (2012) aponta que era preciso mostrar pela morfologia urbana como a ordem e os valores foram produzidos até então e que deveriam ser imutáveis.
A concepção universal de cultura verifica-se pelo vínculo do homem ao solo, através do genius loci, o “espírito do lugar”, que caracteriza o povo nascido em determinado local, a partir de três recursos fundamentais: clima, solo e paisagem. O solo caracteriza-se como o recurso diferenciador para a manifestação da cultura, pois é o lugar onde se assenta o Estado- nação. Além de compor a paisagem, por meio da interação cultural entre homem e meio ambiente, e sofrer as influências do clima, o solo serve como suporte para as diversas atividades humanas (Buela, 2005).
Este sentido de cultura como resultado da ação histórica foi apontado pela primeira vez por Marx, a partir da célebre frase: “tudo que é solido desmancha no ar”, sublinhando o papel transformador das capacidades humanas, acirrado pela luta de classes. A era moderna foi marcada por contradições, geradas pela revolução incessante dos meios de produção. Se, por um lado, os novos suportes às atividades, processos, poderes e expressões demonstram que não há limites para a criatividade, a invenção e a realização da atividade humana, por outro, provocam a destruição constante das relações sociais fixas, uma apropriação indevida de valor e o embotamento do espírito do homem moderno. A contradição em sua base estava no caráter revolucionário da burguesia, que desenvolvia uma moderna tecnologia, organização social, poder produtivo e transformador, mas sem poder seguir sendo plenamente revolucionária, sob o risco de perder seus poderes e privilégios (Berman, 1986).
O que era construído no século XIX era monumental, mas as construções não eram feitas para durar, o que se construía era feito para ser posto abaixo. A autodestruição inovadora do capitalismo, que precisa se desfazer das coisas para refazê-las continuamente, realimentando o ciclo intermitente de produção de taxas de lucro: “ainda as mais belas e impressionantes construções burguesas e suas obras públicas são descartáveis, capitalizadas para rápida depreciação e planejadas para se tornarem obsoletas” (Berman, 1986, p. 98).
A aceleração do processo de modernização, fragmentação das narrativas de vida e perda de contato com as raízes culturais associada ao fluxo cada vez mais veloz do tempo transformado em dinheiro colocou o patrimônio cultural como uma tática política dos sujeitos modernos para lidarem com a estratégia do capital de destruir as ancoragens físicas da memória coletiva, para tentar frear a desintegração real e simbólica operada na produção social do espaço.
1.2 Espaço e tempo
A compreensão humana sobre o espaço e o tempo, de maneira articulada, como duas dimensões idênticas, foi alterada pela invenção humana do tempo desvinculado dos eventos naturais na sociedade industrial. A concepção do espaço e do tempo abstratos permitiu ao homem, ao longo do seu processo evolutivo, planejar no espaço aquilo que acontecerá depois que ele partir, deixando objetos fixos, expressando uma memória evocada pelas novas gerações. Essa capacidade humana tomou outras proporções com a hegemonia do tempo socialmente necessário para a produção e o consumo de mercadorias. O tempo veloz regido pelo capital tornou a cidade o local indispensável para a realização do lucro, deixando-a sem muitos espaços para contatos sociais, compromissos comunitários e vínculos sociais mais duradouros. A vivência humana no espaço urbano moderno é bem caracterizada na Paris reconfigurada pelas reformas de Haussmann (1850-1871), associada ao consumo ocasional e despretensioso, a uma atitude blasée diante do encontro inesperado, a uma vivência no espaço fugaz da metrópole capitalista, livre de vínculos comunitários e laços de vizinhança.
O espaço socialmente produzido em um mundo urbano-industrial caracterizava-se pela homogeneidade, fragmentação e hierarquização, assumindo uma categoria de interpretação da realidade social e política. O conceito de espaço compreendido pelas relações sociais de produção é operacionalizado pela categoria de “espaço social” (Lefebvre, 2006, p. 12), que permite compreender o patrimônio cultural como um “construto social”, preservado em função da memória coletiva e das representações sociais, significando paradoxalmente a demarcação de espaços da memória em que o poder representado está ameaçado.
O tempo social, cujo fluxo é determinado pela velocidade de circulação monetária, torna-se contraditório com o tempo lento e defasado do patrimônio cultural, evidenciando a construção do passado no presente pela seleção de fatos históricos necessários para narrá-lo. Ao entrelaçar passado, presente e futuro, o patrimônio contrasta com a concepção racionalista e linear do tempo abstrato.
O passado é narrado no presente, projetando um futuro que se expressa pela capacidade de imaginar, sonhar, planejar etc. Todas essas são ações capazes de expressar essa memória prospectiva, que se projeta para o futuro, que estamos tentando preservar. O patrimônio cultural oferece essa dimensão temporal ampliada para pensar as cidades, por condensar essas dimensões no conhecimento do passado, na revisão de valores atuais e no planejamento do desejo de preservar ancoragens da memória coletiva.
Por outro lado, o patrimônio vem sendo produzido como espaço híbrido para significar resistência ou espetáculo, sendo facilmente capturado pelos interesses econômicos hegemônicos, gerando cicatrizes nos espaços urbanos e nas relações sociais. A memória coletiva que ainda está viva no cotidiano das cidades confere sentido para a interpretação dos espaços como uma ancoragem fixa e duradoura.
O patrimônio, ao evocar memórias e expressar signos atemporais, dialoga e transmite valores entre as gerações e representa esse atributo simbólico do espaço social compreendido como base para o desenvolvimento de atividades econômicas. Em toda a sua potencialidade simbólica e democrática, o patrimônio edificado reforça a memória coletiva, servindo como suporte físico para as manifestações culturais nas cidades contemporâneas.
1.3 Território e políticas públicas
O controle sobre o tempo e o espaço permitiu o desenvolvimento de um sistema de poder no qual o território torna-se a categoria capaz de mediar as relações sociais. O patrimônio cultural edificado situado no território é um “construto social”, em que, por meios de políticas públicas de preservação, cria-se uma morfologia de gerações entrelaçadas. Cada geração é responsável pela gestão do patrimônio que herdou, ao mesmo tempo que cria patrimônios para as próximas gerações, gerando a produção de um estoque permanente de bens protegidos.
O resultado da transformação do discurso preservacionista em ação política foi estruturado por um sistema de valores, buscando conferir unidade e coesão do povo ao território. O discurso preservacionista, verificado primeiramente na Europa, ainda no século XVIII, nos anos pós-Revolução Francesa, aparece no Brasil no século XIX e se institucionaliza durante os anos de 1930, com a criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), em 1937, a primeira instituição dedicada ao patrimônio cultural na América Latina.
As cidades vinham sendo remodeladas a fim de atender às transformações homogeneizadoras do capital, arruinando as construções e os aparatos físicos da memória coletiva. Os intelectuais modernistas brasileiros que capitanearam a proposta de preservar o patrimônio nacional teceram narrativas sobre suas impressões de mundo, buscando conciliar crescimento econômico com a preservação das identidades culturais e a herança do patrimônio histórico arquitetônico. Ações que ecoaram nas estruturas mais profundas do Estado nacional, deixando marcas até os dias de hoje.
Naquele momento, observava-se o discurso preservacionista na administração pública. Projetos de preservação cultural foram transformados em decretos-leis, ações ordinárias em políticas públicas articuladas, e se construíram instrumentos jurídicos para definir, selecionar e proteger o que seria o patrimônio nacional. A seleção de valores materiais a serem protegidos, por meio do conceito de patrimônio histórico e artístico nacional, foi oficializada pelo Decreto-Lei n. 25/1937, instituindo o tombamento como ato do poder público. Tal ato representou o primeiro instrumento institucional no Brasil capaz de regular a propriedade privada, limitando interesses econômicos e reforçando a função social da propriedade, permitindo organizar um sistema de gestão patrimonial, com suas ancoragens institucionais e territoriais (Rabello, 1981).
O conceito de território favorece a relação entre políticas públicas e patrimônio cultural por meio de demarcação e disputas por espaços físicos, recursos, e de reconhecimentos de valor. O território torna-se uma categoria capaz de abarcar relações sociais diversas, em uma disputa para atribuir valores imateriais aos bens presentes nos espaços urbanos construídos. Essa categoria reúne, sob o ponto de vista da democracia, mecanismos de produção e apropriação real e simbólica dos recursos disponíveis.
O patrimônio cultural é um atributo do território, mediando relações sociais diversas: entre gerações, entre objetos e sujeitos, entre estratégias e táticas de ação política etc. É nesse território socialmente construído, concebido a partir de transformações do espaço, no tempo, reflexo das relações sociais, das lutas de classe e das ocupações simbólicas, um território politizado, que se situa o patrimônio cultural edificado. A narrativa patrimonial legitima assim uma disputa por recursos do Estado, que empodera, mantém, reafirma e protege das ameaças aniquiladoras do capital.
Considerando a visão do território posicionado entre o passado e o presente (Santos, 1996), é possível conceber a relação que se estabelece do patrimônio edificado como um recurso à comunidade. Situado na esfera da cultura e operacionalizado enquanto política pública, o patrimônio cultural é capaz de corporificar direitos, ao tornar meros objetos sujeitos ativos, potencializados muitas vezes pelo cotidiano.
Em uma estrutura capitalista periférica, que busca mercantilizar os artifícios da memória e das imagens, o patrimônio edificado adquire, enquanto bem territorial, um caráter de: resistência à generalização imposta pelo capital financeiro, que pode, ao passo, espetacularizá-lo em um ambiente urbano de consumo. O capital, ao transformar o território em “superfície lisa e sem marcas (…) admitidos apenas os sinais indicativos dos contextos propícios à ancoragem, circunstancial e veloz, dos investimentos e, portanto, aos pousos indispensáveis ao lucro” (Ribeiro, 2005, p. 125), pressiona o patrimônio cultural a se associar a um ambiente de consumo espetacularizado e despolitizado.
O patrimônio cultural assume, assim, uma dupla perspectiva: (1) enquanto aparato físico, permanece no tempo, estancando o ciclo do lucro da produção capitalista do espaço construído, corporificando uma ação política; (2) enquanto espaço socialmente construído para evocar a memória coletiva, torna-se um atributo territorial, um espaço de disputa de narrativas, expressão do sujeito coletivo que corporificou direitos. Torna-se um ativo (contra ou para) a penetração da fração financeira do capital, obtendo recursos para manutenção de atividades econômicas, podendo ainda ser facilmente apropriado, mercantilizado, despolitizado e espetacularizado.
2. A origem do valor e a preservação cultural
“A troca de mercadorias começa onde acabam as comunidades, no ponto em que elas entram em contato com outras comunidades ou com membros de outras comunidades.”
Karl Marx, “A Moeda”
No final do século XVIII, um grande contingente humano, desprovido de posses de terra e de meios produtivos, passou a ser submetido a uma rotina de trabalho industrial degradante e a um sistema de trocas desiguais, tendo como única fonte de recursos a sua própria força de trabalho. A grande massa de homens livres passou a trocar horas de trabalho socialmente necessárias para a produção de mercadorias por salários abaixo do nível de reprodução da força de trabalho.
O elemento essencial de transformação humana, expresso pela dignidade do trabalho inalienável, que une homem ao solo através da cultura, começou a ser rompido. O sentido de preservação cultural, material e imaterial, pode ser relacionado com a teoria do valor na história do pensamento econômico.[1]
Até meados do século XVIII, a casa coincidia com o local de trabalho dos ofícios tradicionais e a família era o centro físico da economia. A ideia de que as ordens de produção eram determinadas pela capacidade da oferta, na nova ordem do trabalho industrial, liberou os trabalhadores da vontade do amo, mas os subordinou a uma rotina fabril repetitiva, em que eles não detinham mais o controle de seus esforços nem do processo de trabalho como um todo, que muitas vezes significava a execução diária de uma ou duas funções.
Com a consolidação do mundo urbano-industrial, acreditava-se que o mercado seria capaz de satisfazer de forma ilimitada todas as necessidades sociais. Essa ideia apoiava-se na concepção do que ficou conhecido como “Lei de Say” (1803), do economista francês Jean Baptiste Say (1767-1823), baseando-se na ideia de que a “produção gera a sua própria demanda”, ou seja, toda renda gerada na produção com lucros e salários é inteiramente gasta na compra de mercadorias.
Em termos monetários, a Lei de Say pressupõe que nenhuma troca visa somente ao dinheiro e que este não interfere na produção, nem na circulação, tendo apenas um papel passivo. Se alguém não quiser utilizá-lo de imediato, ele será gasto por outra pessoa, já que os indivíduos visam apenas a produtos, não havendo limites para a satisfação das necessidades individuais. A quantidade de dinheiro se ajusta às quantidades proporcionais das trocas e os indivíduos acabam subordinados a uma força invisível: o mercado.
Diversos pensadores contestaram a Lei de Say, dentre os quais destacam-se Thomas Malthus (1766-1834), Karl Marx (1818-1883) e John Maynard Keynes (1883-1946). Porém, a lei acabou influenciando a Escola Clássica, principalmente Adam Smith (1723-1790), Jeremy Bentham (1748-1832), David Ricardo (1772-1823), bem como os pressupostos das teorias da economia neoclássica,[2] sobretudo pela contribuição de John Stuart Mill (1806-1873).
A ideia de valor em sua vertente utilitarista, embasada na Lei de Say, influenciou as disciplinas sociais e as funcionalidades espaciais nos desenhos e desígnios urbanos do modernismo, também na forma de pensar a arquitetura. O utilitarismo extrapolou a disciplina econômica, manifestando-se na forma de planejar as cidades, produzindo patrimônio desvinculado dos aspectos históricos e antropológicos.
2.1 A noção utilitarista do espaço urbano
A concepção utilitarista do valor no pensamento econômico moderno influenciando a construção social do espaço na modernidade é melhor sintetizada pela análise da teoria panóptica de Jeremy Bentham (1784), articulando as causas do valor aos sistemas de controle social. Partindo de premissas racionalistas típicas do Iluminismo, ele acreditava que os homens se comportavam de forma hedonista, buscando permanentemente a satisfação individual imediata, e que eram avessos à dor e ao sofrimento.
Diferentemente de Smith e Ricardo, que desenvolveram a teoria do valor-trabalho, Bentham acreditava que a origem do valor das mercadorias era a escassez e a utilidade. Cada mercadoria deveria conter utilidade para satisfazer uma necessidade de qualquer espécie, que é o valor de uso, de modo a justificar as trocas.
O valor determina o preço, e o dinheiro é apenas um instrumento que mede a quantidade de prazer ou sofrimento. O valor de uso é a base do valor de troca. A utilidade tornou-se uma vertente da teoria do valor, determinando quanto uma mercadoria vale em comparação com as demais. Pensando no papel do poder disciplinar como forma de aumentar a utilidade e docilidade das pessoas, Bentham buscava institucionalizar políticas coercitivas de racionalização do trabalho, tendo como sua grande adaptação o panóptico, que foi mais bem analisado por Foucault (1975).
O panóptico, projetado por Bentham, teria se inspirado no zoológico de Versalhes, construído por Le Vaux, um importante arquiteto da época escolhido para compor o projeto arquitetônico para o rei Luiz XIV, na França do século XVII. Esse projeto consistia em um octógono central para estabelecer uma observação individualizante e classificatória sobre os animais, comportados em sete celas diante da estrutura central. O panóptico de Bentham era “um zoológico real; o animal é substituído pelo homem, a distribuição individual pelo grupamento específico e o Rei pela maquinaria de um poder furtivo” (Foucault, 1975, p. 179).
A teoria benthamiana foi aplicada em projetos de manicômios, penitenciárias, escolas, hospitais, fábricas e em vários outros projetos de intervenção urbana, e esse advento de poder transcendeu o aparato arquitetural no qual estava estruturado e acabou orientando a organização social do espaço urbano de forma incompatível com as estruturas das comunidades tradicionais.
O panóptico é composto por uma estrutura periférica, construída em anel, e, no centro, uma torre com janelas virada para o interior desse anel. A estrutura é dividida em celas, com duas janelas, uma direcionada para a parte interna e a outra posicionada para a parte externa, de modo que a luz, vinda da torre, atravesse o espaço interno, possibilitando ao vigilante ver a pessoa sempre dentro da cela, mas sem ser visto, no alto da torre. Qualquer um, ou simplesmente ninguém, poderia estar dentro da torre, para que o efeito fosse o mesmo sobre a mente do indivíduo dentro da cela.
É visto, mas não vê; objeto de uma informação, nunca sujeito numa comunicação (…). Daí o efeito mais importante no Panóptico: induzir no detento um estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder (Foucault, 1975, p. 177).
Nas Figuras 1 e 2, apresentamos o único presídio panóptico construído na América Latina, em Cuba, na década de 1930, preservado atualmente e, com status de patrimônio cultural, transformado em museu. A concepção do projeto vai além das questões específicas tratadas pelo sistema penal, revelando uma organização do espaço e a compreensão do tempo, sob a ótica do controle social, deflagrada na modernidade pela noção de utilidade na formação do sujeito moderno.
Figura 1: Presídio Modelo, Ilha da Juventude, Cuba. Fonte: Santiago Lanza, Flickr, 2007.Figura 2: Presídio Modelo, Ilha da Juventude, Cuba. Fonte: BBC/Laura Diaz Milan.
O panóptico sintetizava uma organização social e de poder sobre a multiplicidade de corpos, cujo efeito transbordou o espaço físico das celas, generalizando-se enquanto método de controle na organização social do espaço e na vida dos homens, como uma das prerrogativas imanentes do “contrato social” que fora instituído na modernidade, que foi se sofisticando até os dias de hoje. A divisão binária e a marcação dos homens em loucos e sãos, criminosos e inocentes, doentes e saudáveis, produtivos e improdutíveis, aptos e não aptos ao trabalho, etc., impunha um poder disciplinador, coagindo-os antes que ousassem romper com a ordem burguesa. O poder se impõe de forma subjetiva, pelo princípio da (in)visibilidade, no qual o indivíduo retoma a posição de controlado por si próprio.
Na abordagem do panóptico, os efeitos sobre o urbanismo ocorrem por meio da relação estabelecida pelo poder disciplinador com a ideia de utilidade como medida classificatória de valor na construção do espaço urbano. A liberdade e seus dispositivos codificados juridicamente, como supostamente a condição da democracia ocidental moderna, defrontam-se com o contradireito, representado pelo poder disciplinador.
Esse é o lado obscuro do sistema representativo igualitário que a burguesia preconizava, pois sustenta, reforça e multiplica as assimetrias de poder. O poder disciplinador era a “contrapartida política das normas jurídicas segundo as quais era redistribuído o poder” (Foucault, 1975, p. 196) e pune, por meio do direito penal, somente determinados grupos sociais.
No século XX, a projeção física e técnica do panóptico se transformou em um modelo generalizável de relações de poder, na vida cotidiana dos homens, infiltrando-se nas estruturas já existentes e aperfeiçoando outras, tornando possível amplificar as forças sociais: “aumentar a produção, desenvolver a economia, espalhar a instrução, elevar o nível da moral pública; fazer crescer e multiplicar” (Foucault, 1975, p. 183). Aumentar a utilidade dos trabalhadores, como forma de crescer a economia, com base no valor utilitário: “as disciplinas funcionam cada vez mais como técnicas que produzem indivíduos úteis” (Foucault, 1975, p. 185).
Ao expor o papel que o poder assume, Foucault aborda o capital como uma técnica econômica, resultante inevitável de condições conjunturais, do exercício desse poder nas relações produtivas e na organização dos corpos múltiplos. A concepção utilitarista sobre o valor aparece na sequência: moral – disciplina – utilidade – produtividade – crescimento – lucro – acumulação.
A economia é representada como uma modalidade de poder na estrutura panóptica generalizada, em que o controle disciplinar exercido sobre os indivíduos é semelhante ao papel desempenhado pelo “mercado” na contemporaneidade. Ambos estão vazios, não há vigia, nem ninguém lá dentro, a coerção invisível é estabelecida sem a necessidade de aplicar força física, submetendo os indivíduos ao humor do mercado. Essa visão utilitarista do valor se transformou em critério para a formulação de políticas públicas, em detrimento da divisão social do excedente.
2.2 O valor trabalho abstrato e a preservação cultural do espaço urbano
A teoria do valor trabalho abstrato considera que a origem do valor no sistema de produção capitalista é o trabalho. Adam Smith (1776) e David Ricardo (1817) fornecem o arcabouço de ideias iniciais que ajudaram a desenvolver essa teoria do valor. Karl Marx (1867) consolida a teoria do valor trabalho abstrato, superando os gargalos teóricos postos por Smith e Ricardo, oferecendo as ferramentas para futuramente ser desenvolvida uma teoria da renda do solo urbano, tão importante ao patrimônio cultural edificado.
Smith apresenta uma teoria do crescimento econômico, investigando o processo de geração de riqueza por meio do produto anual per capita obtido pela produtividade do trabalho útil. O que caracteriza a riqueza de uma nação é a capacidade que os indivíduos têm de produzir um volume maior de bens que sejam úteis para satisfazer as mais diversas necessidades humanas no período seguinte.
Uma condição para que uma nação possa aumentar a produção desses bens é a divisão social do trabalho. Se cada membro da sociedade se especializar na atividade para a qual se mostre mais produtivo e trocar o excedente por outras mercadorias produzidas por seus concidadãos, essa sociedade estará assim aumentando a possibilidade de satisfazer suas mais ilimitadas necessidades, com um mínimo de esforço.
A permuta de bens úteis pelo conjunto dos indivíduos pressupõe uma dupla definição de valor que estaria em jogo para cada mercadoria: o valor de uso e o valor de troca. A mercadoria deve conter utilidade, a fim de satisfazer uma necessidade humana de qualquer espécie. Ela deve pressupor também um valor de troca, que se expressa na quantidade de qualquer outra mercadoria pela qual ela pode ser trocada. O valor de troca da grande maioria das mercadorias, de todas aquelas cuja oferta pode variar ilimitadamente, em função da atividade humana, seria determinado pela quantidade de trabalho empregada na sua produção. Para Smith, o valor de cada mercadoria, expresso através de um montante de dinheiro, nada mais seria do que uma quantidade de trabalho. Tanto de trabalho poupado da parte daquele que compra a mercadoria, quanto de trabalho efetivo da parte daquele que se deu o esforço de produzi-la. Embora o trabalho seja a medida real do valor de troca de todas as mercadorias, não é possível tomá-lo como critério para avaliar o valor das diferentes mercadorias.
Smith não define um padrão de medida invariável para mensurar o valor relativo das mercadorias em função da quantidade trocada por essa medida padrão. As trocas dos produtos são intermediadas pelo dinheiro, e o valor nominal da remuneração nem sempre corresponde ao seu valor de compra real. Não existe essa correspondência proporcional entre a quantidade de trabalho empregada numa mercadoria e a quantidade de trabalho que essa mercadoria pode comprar no mercado. A teoria do valor de Smith não explica o papel do equivalente geral e universal, o dinheiro, que medeia as relações sociais.
Ricardo[3] argumenta que é o trabalho que define o quanto uma mercadoria vale em comparação com as demais, buscando resolver a questão da determinação dos preços relativos, como parâmetro de valor. O objetivo era estabelecer um padrão de medida invariável para definir o valor relativo e estimar a variação no valor de troca. Para ele, o critério para medir a variação do valor relativo das mercadorias seria a quantidade de trabalho, que no nível macro depende da relação entre salários e lucros, na divisão do produto entre as classes sociais, apontando pela primeira vez a participação dos proprietários de terras na divisão do excedente, por meio do recebimento da renda da terra.
Ricardo discorda de Smith em que a quantidade de trabalho varia em função da quantidade da medida padrão do valor relativo das mercadorias, buscando definir um padrão para verificar se as demais mercadorias subiram ou diminuíram de valor de troca. A mercadoria que realiza uma mediação entre as quantidades permutadas das demais mercadorias também sofre ela própria uma variação de seu valor de troca. A relação estabelecida pelo dinheiro como parâmetro de valor é indicada pela primeira vez, mas continuava a exercer um papel passivo.
Marx aponta como o trabalho consiste na substância do valor das mercadorias, demonstrando que a distinção entre valor de uso e valor de troca comporta aspectos qualitativos e quantitativos. Todas as coisas úteis, como o ferro, o papel etc., constituem o conteúdo material da riqueza, o suporte material do valor de troca. Este último, por sua vez, não seria um aspecto intrínseco ou imanente à mercadoria, tal como ocorre com a utilidade.
O valor de troca surge como aspecto puramente relativo, estabelecendo uma igualdade entre proporções quantitativas de valores de uso diferentes, necessitando de um equivalente geral e universal que explique essa inversão de valores lançada pelo capitalismo, em que o trabalho assume a perspectiva de trabalho morto e as mercadorias assumem a perspectiva de trabalho vivo.
Quando se abstraem todas as qualidades específicas das diferentes mercadorias, a única qualidade que lhes resta seria a qualidade de ser produto do trabalho humano. Desaparece até mesmo a qualidade de ser produto do trabalho do marceneiro, do pedreiro etc., restando apenas a propriedade de ser dispêndio de força humana em abstrato.
Para Marx, a forma do valor de troca fornece a gênese da forma-valor mais comum das mercadorias, que seria a forma-dinheiro. Ele acredita que as mercadorias somente vêm ao mundo, somente podem entrar em circulação, na medida em que apresentam um duplo aspecto: objetos de uso e suportes de valor. Em contraste com a materialidade palpável do primeiro aspecto, como objeto de valor, a mercadoria seria uma realidade puramente social.
O trabalho também é ele próprio uma mercadoria, mas uma mercadoria de tipo especial, adicionando seu valor integral às mercadorias, mas sendo vendido exatamente por seu valor de mercado – a quantidade de valor-trabalho necessária para reproduzi-lo. Cada mercadoria possui uma mesma forma-valor, um mesmo equivalente-geral para definir seu valor. O dinheiro enquanto intermediário necessário das trocas passa a ser a manifestação do valor, passa a comandar a produção e o consumo, ocultando o aspecto social da determinação do valor, que é o tempo de trabalho socialmente necessário para a produção da mercadoria.
O dinheiro que entra inicialmente no modo produtivo termina o processo com uma magnitude superior. Esta é exatamente a expressão da mais-valia, verificada no esquema simplificado: dinheiro (D) – mercadoria (M) – dinheiro (D’), em que D’> D, em uma magnitude que corresponde exatamente à mais-valia: uma fração do tempo não remunerada, a base da acumulação de capital, caracterizada como uma apropriação indevida de valor gerado pela força de trabalho.
O dinheiro cumpre um papel social na medida em que alguém compra uma mercadoria, possibilitando a realização do valor e de uma relação social de produção. O dinheiro aparece como expressão de uma relação social, que oculta o processo de geração de valor por meio do trabalho corporificado, mesmo sendo fruto de relações coletivas, sentenciando o trabalho vivo.
Mas está aí aberta também a possibilidade de crise, diante do “salto mortal da mercadoria”, já que a compra do produto pode não se realizar e o dinheiro pode ser entesourado, não exercendo um papel passivo no processo de produção e circulação, pois o produto só se transforma em mercadoria se for comprado no mercado.
O valor se realiza por meio do trabalho abstrato, mas, para manter a competição capitalista, o uso de tecnologia libera a força humana nas atividades mais rentáveis. A substituição de trabalho por máquinas apenas assegura uma lucratividade setorial de curto prazo, excluindo competidores intensivos em mão de obra do processo de produção capitalista. No longo prazo, o capital se concentra nas empresas mais poupadoras de mão de obra, diminuindo a base para a realização do valor, levando a uma diminuição das taxas de lucro, que apresentam uma trajetória decrescente, deflagrando uma crise do valor.
O fetiche do dinheiro ocorre, na medida em que, ao se tornar expressão de uma relação social de produção, parece que “ser dinheiro” consiste em uma propriedade natural de uma coisa. Em sua dimensão abstrata, o dinheiro em si possui um caráter tão material que a sua abstração já seria suficiente para constituir o modo de produção capitalista, por meio da formatação da consciência coletiva. É exatamente aí que entra o papel da cultura na possibilidade real de abstração do dinheiro, apontado por Marx no livro III de O Capital. A cultura é responsável por organizar o modo de produção capitalista, deflagrando valores simbólicos e possibilitando uma organização burguesa da classe trabalhadora.
O espaço urbano construído tombado, de propriedade privada, é uma mercadoria do tipo especial: possui valor de troca, é um bem alienável e comporta um espaço cultural de reprodução das relações de produção e de sociabilidade, mas está sob a tutela do Estado que preservou o espaço, impedindo a transformação pelo capital.
Ao impedir a destruição e reconstrução do espaço urbano, o patrimônio cultural torna-se um atributo valorado pela renda movimentada pelos seus usuários, que lhe conferem valor de uso, reconhecendo símbolos e convenções sociais, mas o Estado terá que impor critérios definidos pelos princípios da equidade urbana e da divisão de ônus e bônus do processo de urbanização para restaurar valores de uso em áreas com boa infraestrutura instalada, embora sem transferir recursos coletivos para proprietários privados de forma indevida.
3. Considerações finais
A crise do valor, expressa pelo decréscimo da taxa de lucro no longo prazo, atinge os espaços urbanos tombados, que passam a ser reconfigurados por políticas de conservação que contribuem com a produção de novos sentidos do patrimônio cultural. O conteúdo simbólico associado ao patrimônio interpela uma massa de valores culturais capazes de moldar a inserção econômica de uma cidade, muito atrelada a uma rede de serviços, em um período atual marcado por um processo de desindustrialização e um descompasso generalizado de divisão do excedente produtivo.
A teoria do valor foi fundamental para a formulação de uma teoria da renda do solo urbano, de modo a identificar também uma mais-valia fundiária, ou um valor coletivo presente no solo, que vem sendo apropriado indevidamente por grandes proprietários privados da terra. A propriedade privada permitiu historicamente que os proprietários de terra se apropriassem de parte das taxas de lucro, cobrando uma renda da terra, contornando a falta de controle do capital em relação à irreprodutibilidade da terra enquanto meio produtivo.
No patrimônio cultural edificado, o conteúdo em que o valor se realiza (os fatores de produção, trabalho e capital e suas respectivas remunerações, salários e lucros) para a produção da mercadoria “espaço urbano construído” está se exaurindo. O espaço construído tombado, situado geralmente em áreas centrais, deprecia-se gradualmente, de modo que, em algum ponto da deterioração completa da edificação, ao final do último período, quando se esgota o valor de uso com o consumo definitivo do bem, o preço do imóvel será equivalente apenas ao preço do terreno, delimitado pela renda absoluta e outras categorias de renda, e os componentes do preço teriam magnitudes nulas.
O preço do solo urbano é uma função da renda da terra sobre a taxa de lucro média da economia. O preço do espaço construído corresponde à renda do solo, ao capital investido na construção do espaço e à remuneração desse capital, expresso pela taxa de lucro e pagamento de salários. A depreciação do imóvel corresponde à perda de valor de uso, ao desgaste da estrutura física com o consumo paulatino, e aplica-se apenas ao valor da edificação. O preço do solo está relacionado ao direito de receber uma renda, não se caracterizando como um produto nem como um custo, associado à apropriação privada de bens comuns.
O valor social contido no preço do solo, por meio da renda da terra urbana, pode ser utilizado para restituir o valor de uso do patrimônio edificado, por meio de políticas de conservação e restauração de imóveis, a partir de critérios muito bem delimitados e ajustados aos instrumentos do “Solo Criado” presentes no Estatuto da Cidade, de 2001.
Argumenta-se que recursos necessários para a conservação patrimonial podem ser obtidos pela recuperação da renda da terra gerada pelas autorizações de adensamento, que geram ganhos financeiros extraordinários alheios aos esforços dos proprietários e construtores e que são de origem coletiva. A noção de patrimônio cultural pelo tombamento foi o primeiro instrumento capaz de regular a propriedade privada da terra e agora, associada à teoria do valor, pode contribuir para a noção de bens comuns.
* Edmar Augusto Santos de Araujo Junior é economista, graduado pela UFF, doutor em Urbanismo pelo PROURB/UFRJ e colaborador do Laboratório de Patrimônio Cultural e Cidade Contemporânea (LAPA/PROURB/UFRJ).
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Notas
[1] A “fisiocracia” é considerada uma das primeiras teorias econômicas, nascida no século XVIII, na França, por expoentes como François Quesnay (1694-1774). No momento da passagem da hegemonia das cidades sobre o campo, pré-Revolução Francesa, os fisiocratas viam nos produtos agrícolas a fonte da riqueza e origem do valor. Esse movimento lançou a base empírica que deu origem à palavra economia, significando algo como “organização da casa”.
[2] A “economia neoclássica” é inaugurada a partir do processo conhecido como “revolução marginalista”, que ocorreu entre 1862 e 1873. Os pensadores Stanley Jevons, na Inglaterra, Léon Walras, na França, e Carl Menger, na Áustria, com métodos e visões que aproximaram a economia à física por meio das ferramentas matemáticas, restringiram o objeto de estudo da economia à questão técnica da alocação dos recursos e otimização de utilidades marginais, despolitizando os processos sociais de formação e divisão do valor econômico.
[3] David Ricardo contribuiu para o desenvolvimento da teoria geral da renda da terra, iluminando a distribuição do produto total entre as três principais classes sociais da época: proprietários de terra, capitalistas agrícolas e industriais e trabalhadores assalariados.
No podemos, ante ciertas imágenes, permanecer imparciales. Nos confrontan y nos conmueven, no sólo por lo que representan, sino por cómo lo hacen. En 1997 la artista brasileña Rosana Paulino realiza una serie de retratos que parten de fotografías de mujeres su familia, incluida la suya, transferidos en xerografías a la tela, bordados con hilo negro y tensados en un bastidor.[1]
Sobre el gris de la impresión – que al disminuir las tensiones entre el blanco y el negro vuelve sutiles los contornos de los rostros y de los cabellos –, contrasta una costura intensa, de hilos negros superpuestos que obturan los ojos, la boca, la garganta.[2] El resultado de esta textura no remite a un saber específico. No se trata de la unión de dos partes, ni de un bordado que en puntos ordenados representa sus motivos tal como sucede en los ornamentos de los ajuares de novias o en las tapicerías. Es, por el contrario, una sucesión de líneas sin orden decorativo. No remiten a una mujer bordando en un contexto bucólico. Paulino las nombra con la palabra sutura en lugar de costura o bordado. Cada puntada recorre varios centímetros desplazándose en horizontales, verticales y diagonales que se suman y encabalgan hasta lograr cubrir una forma que casi alcanza el negro compacto. Las puntadas denotan violencia. Tanto que, aunque tensada por el bastidor, la tela se ondula como consecuencia del trabajo de compresión que la puntada realiza. El contraste entre negro y grises vuelve más evidente la tensión entre lo que estaba (un rostro impreso a partir de una fotografía) y lo que ahora se ve (un rostro cubierto por una violenta costura). Las consecuencias de esta intervención en la imagen son estremecedoras. Las suturas que cubren zonas del rostro remiten a la obliteración del derecho a ver, a hablar, a respirar, a tragar, a pensar.
Son retratos de mujeres afrobasileñas. Las marcas obscuras nos llevan inmediatamente a pensar en la esclavitud, en los cuerpos marcados, clasificados. No podemos apartarnos de la idea de que un castigo les ha sido impuesto. Vienen a nuestra mente imágenes como las que dejó Jacques Arago en Brasil, durante la primera mitad del siglo XIX, de esclavos enmudecidos por dispositivos que obturaban su boca; o como los realizados por Richard Bridgens en la misma época en Trinidad, de mujeres con máscaras y collares de castigo.[3] Ese archivo late en estas imágenes. Hayamos o no visto las representaciones a las que nos referimos, la violencia ejercida sobre el cuerpo inmediatamente remite a la que se instrumentó en la esclavitud, abolida en Brasil a fines del siglo XIX, el 13 de mayo de 1888 cuando se aprueba la Ley Áurea.
Pero existe, junto a éste, otro archivo. Como señala Fabiana Lópes (2018), se trata de una estrategia formal y de intervención feminista, y la relación la confirma la propia artista cuando vincula esta obra con la experiencia que le transmite su hermana, una socióloga destacada, especialista en relaciones familiares y en violencia doméstica. Una violencia que se expresa por el uso de elementos cotidianos como instrumentos de poder – tenedores, agujas, cigarrillos –. Los bastidores se originan en las conversaciones con ella. La violencia doméstica se imprime sobre la violencia social del racismo. Valen ejemplos citados por autoras como Djamila Ribeiro (2018), cuando analiza que en la televisión brasileña la mujer negra se encasilla en dos roles, la empleada doméstica o la mulata exuberante y sexual. Paulino (2014) confirma la percepción de los estereotipos de la televisión y recuerda experiencias de su infancia, cuando tenía que jugar con muñecas blancas porque no había negras.
La serie de los bastidores refiere a la mujer afro brasileña. Juliana Ribeiro da Silva Bevilacqua (Paulino, 2018, p.150) observa el doble sentido de la palabra bastidor que, además del dispositivo que tensa la tela, nombra el fuera de escena en el teatro, reforzando la analogía con la invisibilidad de esas mujeres violentadas y culpabilizadas. Son las mujeres que no son vistas, entre bastidores, en la estructura de la sociedad. La mujer negra está en la base de la pirámide, gana menos, aunque tenga la misma formación que la mujer blanca tiene mayor dificultad para encontrar empleo. La mujer negra gana menos que el hombre negro, gana menos que la mujer blanca, gana menos que el hombre blanco (Paulino, Antonacci, 2014). En la serie de los bastidores Paulino superpone la memoria familiar, y la condición socio histórica de la mujer afrobrasileña.
Como veremos en este capítulo, Rosana Paulino trabaja sobre archivos personales y sobre archivos que la ciencia occidental, blanca, elaboró cuando fotografió esclavos y mestizos, imágenes centrales en las teorías del racismo científico. Una ciencia cuyos postulados universalizantes contribuyeron a reforzar los presupuestos racistas de la sociedad. En esta elaboración de los archivos se explora la construcción de la subjetividad de la mujer negra: cómo se forjan, se refuerzan y se sostienen las prácticas de la sumisión (Tvardovskas, 2013).
La condensación de experiencias colectivas y personales, de raza y de género, permite abordar su obra desde las perspectivas del feminismo interseccional, en el que opresiones de género, de clase y de raza configuran tramas de tensiones coexistentes. Cuando se centra en la clase y la raza para abordar el género, Paulino desarticula los presupuestos universalizantes en torno a la experiencia femenina. Genera zonas alternativas en la construcción de conocimentos que parten de una experiencia social en primera persona cuyos fundamentos investiga. Su obra propone una política de la imagen desde la que se descalzan saberes naturalizados interceptados desde estrategias que el arte ha investigado intensamente: el collage, el montaje de imágenes preexistentes que, puestas en contacto, friccionadas, encienden el campo semántico en el que se inscriben y provocan una mirada, una interpretación, una afectividad intelectual y emocional, distintas.
Feminismo y arte afro brasileño
Se ha repetido en distintos textos que el feminismo artístico no tuvo una expresión afirmativa en el arte brasileño (Buarque de Hollanda, Herkenhof, 2006; Melendi, 2017). Si trazamos una rápida comparación con otros casos que hemos analizado en este libro, no encontramos una acción comparable a la de María Luisa Bemberg en Argentina, con sus films de activismo feminista, ni tampoco un activismo de las imágenes como el que desarrollaron Mónica Mayer y Polvo de Gallina Negra en México.
Heloisa Buarque de Hollanda (2006, p. 159) señala en la presentación de la exposición Manobras Radicais que en 2006 co-curó con Paulo Herkenhoff que “Historically, Brazilian cultural context is resistant to a discussion about differences in the field of arts, that is, it is a context that indicates a non-democratic art system.” Herkenoff confirma esta percepción: “Brazil is resistant to the discussion of differences in the field of art: women, men, blacks, indigenous peoples, whites, Japanese, Jews, Moslems, homosexuals, domestic colonialism, cultural plurality, class structures. It is cool to reject it at first glance. In this sense, Brazilian art system is not “politically incorrect”, but anti-democratic” (Buarque de Hollanda, Herkenhoff, 2006, p. 162). Aunque reconoce que las artistas brasileñas no se han identificado con el feminismo, Buarque de Hollanda (2006, p. 97) señala que “Esas nuevas artistas, que dicen no querer tener nada que ver con el feminismo, son el mayor ejemplo de la victoria arrasadora de las conquistas feministas”. Se trata, en este caso, de la lectura feminista que una curadora realiza de las obras de artistas mujeres, no de una agenda que ellas asumen.
Manobras Radicais incluyó tres de los bastidores de Rosana Paulino. En la sección de Annotations, al final de este catálogo, Heloisa Buarque de Hollanda (2006, p. 206) proponía una lectura de la obra de Paulino: “Embroidery in Rosana is more than the drawing with lines, blood, needles and back stages. It is a juxtaposition –in super light layers—of experiences, stories and trajectories. Thought-feelings. There are scars of several generations of women imprinting their history on handkerchiefs, nightgowns, children cloths, satin laces, laceworks and silks”. En estas notas, borradores de un glosario de palabras claves, aun cuando aparecen términos como post-feminism or sorority, no aparece la de feminismo interseccional.
Aunque, como señalamos, las cuestiones raciales y de género tienen una presencia central en la obra de Paulino, cuando le preguntaban si era feminista ella respondía que no, que era femenina. Distintas razones la separaban del feminismo que conocía. “Una reivindicación del feminismo clásico, el derecho al trabajo, nunca fue una cuestión para la mujer negra. Nosotras trabajamos desde siempre, es eso o morir de hambre. Mi madre fue empleada doméstica en Perdices, en el barrio de la PUC de São Paulo, una de las cunas del feminismo en São Paulo. Muchas de esas mujeres podían ser feministas porque había alguien limpiando su casa, cuidado de sus hijos” (Paulino, Gobbi, 2019)[4]. En el mismo sentido se pregunta Sueli Carneiro (2005),
¿En qué mujeres estamos pensando? (…) Ennegrecer al movimiento feminista brasilero ha significado, concretamente, demarcar e instituir en la agenda del movimiento de mujeres el peso que la cuestión racial tiene en la configuración de las políticas demográficas; en la caracterización de la agresión contra la mujer introduciendo el concepto de violencia racial como un aspecto determinante de las formas de violencia sufridas por la mitad de la población femenina del país que es no blanca; en la incorporación de las enfermedades étnico-raciales o las de mayor incidencia sobre la población negra, fundamentales para la formulación de políticas públicas en el área de salud; o introducir en la crítica a los procesos de selección del mercado de trabajo, el criterio de la buena presencia como un mecanismo que mantiene las desigualdades y los privilegios entre las mujeres blancas y negras.
Carneiro (2005, p. 26) señala con claridad el propósito emancipador del feminismo negro: terminar con la segregación y con el modelo universalizante que diluye lo específico.
En la experiencia de la mujer negra, en sus cuerpos, escribe Grada Kilomba (2012, p. 124), se superponen condiciones: “Por no ser ni blancas, ni hombres, las mujeres negras ocupan una posición muy difícil en la sociedad supremacista blanca. Representamos una especie de doble carencia, una alteridad doble, ya que somos la antítesis de ambos, blanquitud y masculinidad. (…) las mujeres negras (son) lo “otro” del otro”. El feminismo negro no se desarrolló sin dificultades. bell hooks (2000, p. 15) señalaba su necesidad, su urgencia, cuando escribía:
Es esencial para la prosecución de la lucha feminista que las mujeres negras reconozcan la ventaja especial que nuestra perspectiva de marginalidad nos da y hacer uso de esa perspectiva para criticar la dominación racista, clasista y la hegemonía sexista, así como para refutarlas y crear una contra hegemonía. Estoy proponiendo que tenemos un papel central por desempeñar en la realización de la teoría feminista y una contribución a hacer que es única y valiosa.
El feminismo negro intercepta la categoría universal ‘mujer’ desde la raza.
La noción de feminismo interseccional fue propuesta por Kimberlé Crenshaw en su tesis de doctorado en la Universidad de Chicago en 1989 para referirse a una aproximación multidimensional del sojuzgamiento:
La interseccionalidad es una conceptuación del problema que busca capturar las consecuencias estructurales y dinámicas de la interacción entre dos o más ejes de subordinación. Trata específicamente de la forma como el racismo, el patriarcalismo, la opresión de clase y otros sistemas discriminatorios crean desigualdades básicas que estructuran las posiciones relativas de las mujeres, razas, etnias, clases y otras (p. 14)
Pero como señala Djamila Ribeiro (2016, p. 1), ya en 1851 Sojourner Truth, ex esclava, pronunció en la Convención de Derechos de las mujeres en Ohio el discurso “¿Y yo no soy una mujer?”, en el que exponía que la experiencia de exclusión de las mujeres blancas no era la de la mujer negra, forzada a trabajar como un hombre, y cuyos hijos eran vendidos como esclavos (Ribeiro, 2016).[5] En tanto las mujeres blancas luchaban por el derecho al voto y al trabajo, las mujeres negras luchaban por ser consideradas personas. En esta lucha también se inscribe el activismo de Angela Davis y la publicación, en 1981, del libro Mujeres, Raza y Clase, en el que propone un análisis anticapitalista, antirracista y antisexista. Ribeiro (2016, p. 2) propone pensar la raza, la clase y el género en forma simutánea, como categorías indisociables, y aborda un estado de la cuestión sobre el surgimiento del feminismo negro en Brasil. Un proceso que toma forma en 1985, durante el III Encuentro Feminista Latinoamericano en Bertioga, municipio del Estado de Sao Paulo, en el que emerge la actual organización de mujeres negras como expresión colectiva en encuentros regionales y Nacionales. Emergen desde entonces organizaciones como Geledés, Fala Preta, Criola. La antropóloga brasileña Lélia González (1988), además de colocar a la mujer negra en el centro del debate, analizó la jerarquización de saberes como producto de la clasificación racial de la población concebida desde un modelo universal y blanco. El racismo, señala, se constituyó “como la ‘ciencia’ de la superioridad euro cristiana (blanca y patriarcal), mientras se estructuraba el modelo ario de explicación” (González, 1988).
Las condiciones superpuestas que subsumen a la mujer afrobrasileña, tienen una elaboración simbólica en la obra de Paulino. Desde ciertos saberes culturalmente desplazados –coser, bordar, elaborar formas de barro—, junto a otros socialmente jerarquizados –la ciencia occidental blanca—sus obras descalzan presupuestos y otorgan centralidad a la experiencia vivida por ella, por su familia, por las mujeres afro brasileñas. Paulino aborda afectos contrarios al discurso negacionista que concibe a la sociedad brasileña desde una coexistencia sin conflicto: sus obras lo abordan desde lo personal subjetivo y desde la universalidad ideológica que instrumentaliza la ciencia. Los collages de Rosana Paulino interceptan lo que Ribeiro (2016) denomina “silencio epistemológico”. Esta autora señala que en Brasil la violencia hacia las mujeres debe involucrar el estudio comparativo de las estadísticas: en tanto en diez años el asesinato de las mujeres blancas en Brasil disminuyó un 9,8%, el de las mujeres negras aumentó un 54,2%.[6]
Al centrarse en la mujer afro brasileña, en las formas en las que fue integrada al sistema productivo brasileño como esclava que trabaja en la plantación o amamanta a los hijos de sus dueños blancos, teniendo incluso en ocasiones que relegar la alimentación de sus propios hijos, Rosana Paulino produce una poética política de los imaginarios de la ciencia de los blancos sobre las personas. La coexistencia de las configuraciones racistas subyacentes en las imágenes del siglo XIX y presente en la sociedad brasileña contemporánea, el cruce entre el archivo familiar y el archivo ‘científico’, propone la construcción de una subjetividad emancipadora.
Arte afrobrasileño y políticas curatoriales
En la entrevista publicada en abril de 2019, cuando a Rosana Paulino le preguntaron si el interés sobre el arte afrobrasileño se vincula a un ‘boom’ del arte negro, respondió que tales narrativas eran creadas para desvalorizar discursos que están conquistando espacios. “No es una onda, no es un “boom”, es el Brasil. Si alguien todavía no lo ha percibido, nuestro país es así.” Y agrega que cuando “el 55% de la población se define como no blanca y una exposición con 30 obras solo tiene dos de artistas negros, algo está errado”. Exposiciones recientes otorgaron relevancia al arte realizado por artistas afro brasileños y por mujeres afro brasileñas involucradas en la conceptualización de un feminismo negro (Paulino, Gobbi, 2019).[7]
Desde 2015-2016 son consistentes las iniciativas curatoriales e institucionales orientadas a dar visibilidad a la presencia de artistas negros en Brasil, tanto en su larga historia como en las generaciones de las más jóvenes. Hubo exposiciones precedentes que establecieron puntos de partida fundamentales. Por ejemplo, la exposición A mão afro-brasileira: significado da contribuição artística e histórica (1988), realizada como conmemoración de los 100 años de la abolición, organizada por el artista y curador brasileño Emanoel Araujo en el Museo de Arte Moderno de Sao Paulo (MAM-SP), en la que participaron dos artistas mujeres, Maria Adair y María Lídia Magliani. En 2013 Araujo realiza una nueva exposición, A Nova Mão Afro-Brasileira en la que participaron otras dos, Rosana Paulino y Sonia Gómes, sobre un total de veinticuatro artistas. Las cifras demuestran que las mujeres también están escasamente representadas en el arte afrobrasileño. En las transformaciones que en los últimos años experimentó el arte brasileño, fue central la política que llevó adelante Araujo, primer director negro de la Pinacoteca de Sao Paulo (1992-2002), quien durante su gestión incrementó ampliamente la representación de artistas afrobrasileños en la colección. Desde 2004 Araujo es director fundador del Museo Afro Brasil en Sao Paulo.[8]
En 2014 la exposición Historias Mestiças curada por Adriano Pedrosa y Lilia Moritz Schwarcz en el Instituto Tomie Ohtake de Sao Paulo, dio visibilidad a una representación del arte brasileño que trastocaba los lugares canónicos del arte blanco, abstracto y formalista que domina en la historia del arte de Brasil. La exposición no se enunciaba exclusivamente desde la primera persona, la de los artistas negros. También incluía la mirada de artistas cuya obra se involucra con la exclusión cultural afro brasileña o indígena representada, por ejemplo, por la fotografía de Claudia Andujar y su serie Marcados.
Cabe en este sentido introducir un tema que generalmente no se aborda en el campo del arte. Historiadores, curadores, artistas, nos movemos en un universo de imágenes que no se expresan, necesariamente, en primera persona. Eso no desautoriza lecturas ni universos poéticos. Quizás el ejemplo que podría traerse en este punto del debate es el de las fotografías que durante años realizó Claudia Andujar a partir de su contacto permanente con los yanomanis, en cuyos territorios vivía. Su obra se basa, en un sentido, en una aproximación poética que se elabora desde lo cotidiano y desde la identificación con la comunidad. Ella no constituye ese archivo visual desde su experiencia como yanomani, sino con los yanomanis. Su obra contribuyó de manera poderosa a otorgarles visibilidad y a llamar la atención internacional sobre las políticas extractivistas que apuntan a los territorios en los que viven, que se extienden entre Brasil y Venezuela. En una exposición reciente de las fotografías de Andujar realizada en el Instituto Moreira Salles de San Pablo y de Rio de Janeiro se contraponía una larga entrevista a Andujar y sus denuncias sobre una masacre de yanomanis, con el discurso del presidente de Brasil, Jair Bolsonaro, quien encendió con sus discursos la violencia hacia los territorios indígenas en Amazonia, blanco de la extracción minera. Sin embargo, los yanomani no participan de las exposiciones en primera persona, con sus nombres, con su identidad. Esto es lo que destaca Rosana Paulino cuando ante el 34 Panorama de Arte Brasileira, que propuso un diálogo entre las antiguas esculturas de piedra tallada y seis artistas brasileños, se preguntaba por qué no se ve obra de los pueblos indígenas del Brasil, herederos de las culturas nativas. Se trata de una representación sin participación (Paulino, 2016).
La nueva visibilidad de los artistas afrobrasileños se intensificó desde 2014. La exposición Territórios: artistas afrodescendentes no acervo da Pinacoteca realizada entre diciembre de 2015 y junio de 2016, curada por Tadeu Chiarelli, reunió las obras de la colección realizadas por artistas negros durante los últimos dos siglos. Chiarelli destacó que el museo aspiraba a cumplir con la agenda de la diversidad en las artes de Brasil. La exposición Historias Afroatlánticas realizada en 2018 en el MASP, así como las exposiciones individuales que recuperan la narrativa afroatlántica de artistas como Alejadinho, Maria Auxiliadora da Silva, Emanoel Araujo, Melvin Edwards, Rubem Valentim, Pedro Figari, Lucía Laguna y Sonia Gomes, fueron paralelas a la exposición de Rosana Paulino en la Pinacoteca de Sao Paulo, entre 2018-19, presentada luego en el Museu do Arte do Río de Janeiro. Esta nueva presencia nos aproxima a la transformación que actualmente experimentan las instituciones artísticas brasileñas que promueven el conocimiento de los artistas afrobrasileños.
Otro hecho significativo impactó en los últimos años en el arte brasileño. Durante 2015 y 2016 se produjo un debate intenso en torno a una obra presentada en Itaú cultural de San Pablo, A mulher do Trem, acusada de racismo por el uso de blackface, recurso por el cual un actor blanco representa, con la cara pintada, a un negro.[9] El debate no estuvo exento de negación y naturalización de una situación que existe en la cultura brasileña, en la que la ficción teatral y televisiva ubica a los afrobrasileños en el lugar de empleados domésticos (lo que refuerza el estereotipo racista) y les niega posibilidades de trabajo cuando para representarlos recurre a actores blancos maquillados. La institución canceló la obra y abrió un debate público. Propuso revisar el racismo estructural presente en su organización, que en una historia de 30 años invisibilizó la producción artística afro-descendiente. Diálogos Ausentes, mesas de análisis que se desarrollaron durante 2016, culminaron con una exposición con el mismo título curada por Diane Lima y Rosana Paulino. En una de las sesiones realizadas durante 2016 participaron, entre otros, los artistas Aline Motta, Eneida Sanches, Mariane Figueira, Dalton Paulo, la curadora Fabiana Lopes, y la artista y curadora Diane Lima, que actuó como mediadora de esta y de otras sesiones.[10]
Entre las iniciativas activadas para visibilizar el arte afro brasileño y para debatir sus poéticas, Fabiana Lopes (2018) destaca la que se llevó adelante en el programa Ateliê Oço, en San Pablo, dirigido por el artista y curador Claudinei Roberto da Silva. Durante más de diez años y sin patrocinios, Ateliê Oço funcionó como un laboratorio de investigación que dio visibilidad y un marco de debate a la obra de artistas negros. En este espacio se realizó la exposición de Rosana Paulino Amor: modos e usos, en 2011.[11]
Aunque Brasil no legalizó el racismo como sucedió en los Estados Unidos, las desigualdades que enfrentan son más profundas que en ese país. Simulada bajo ideologemas como el de “democracia racial”, que oculta el racismo en la sociedad brasileña, o el “mito de las tres razas”, que refiere a la relación supuestamente armónica entre indígenas, europeos y africanos, la desigualdad racial en el Brasil fue abordada en los últimos años por agendas de diversidad. Estas fueron articuladas desde políticas de acción afirmativa -o cuotas- que las universidades llevaron adelante desde 2003, junto a programas para financiar la educación y para proporcionara apoyos que permitan mantener a los niños en las escuelas (Lloyd, 2016).[12] Los recortes a la educación que realiza el presidente Jair Bolsonaro atentan contra las políticas de inclusión.[13]
Aunque faltan estudios específicos sobre la formación de los artistas brasileños contemporáneos, puede analizarse la emergencia de una o más generaciones de artistas afrobrasileños, con formación artística universitaria (maestrías, doctorados y posdoctorados), que en los últimos años han quebrado el aislamiento que la propia Rosana Paulino describía cuando sostenía que durante los años 90 ella era una figura aislada en el mundo del arte brasileño: “Estuve prácticamente diez años haciendo arte contemporáneo sola, sin otros artistas negros (…). Había una brecha de 20 años (…). Estaban Emanoel Araújo, que podría ser mi padre; Abdias del Nacimiento, que podría ser mi abuelo. Sonia Gomes estaba en Minas, Ayrson Heráclito en Bahía” (Paulino, Gobbi, 2019).
El giro institucional que podemos ubicar entre 2014 y el presente señala un nuevo panorama. Curadoras como Fabiana Lopes o Diane Lima investigan el contexto crítico de la producción de los artistas afrobrasileños, punto de partida negado pocos años atrás por el establishment que no reconocía su existencia y que negaba la pertinencia de incluir referencias a la raza en relación con el arte (Roffino, 2018).[14] Desde 2014 comenzó a dar cuenta de la emergencia de jóvenes artistas negros y de un giro en las políticas curatoriales. En 2015 se invitó por primera vez a un artista negro, Paulo Nazareth, a representar a Brasil en Pabellón Latinoamericano de la Bienal de Venecia. Los nombres de artistas que integran las nuevas generaciones se inscriben con fuerza en el campo del video, la fotografía y la performance. Paulo Nazareth, Aline Motta, Eneida Sanches, Mariane Figueira, Dalton Paulo, Michelle Matiuzzi, Eustáquio Neves, Tiago Gualberto, Helo Sanvoy, Marcos Palhano, Charlene Bicalho, Priscila Rezende, Millena Lizia, Juliana Dos Santos, Olyvia Bynum, Natalia Marques, Sonia Gomes, Lídia Lisboa, Charlene Bicalho –una lista incompleta, pero que aun así es necesario nombrar, de artistas afrobrasileñas. Fabiana Lópes destaca también el lugar referencial que Rosana Paulino ocupa para artistas como Sidney Amaral, Moses Patricio, Renata Felinto, Wagner Viana y Janaina Barros, Charlene Bicalho, Natalia Marques, Juliana dos Santos, Dalton Paula.[15] Rosana Paulino enriquece la lista de artistas jóvenes: Kika Carvalho, Castiel Vitorino, Mariana de Matos, Sheila Ayó, Ana Lira, Lucimélia Romão, Coletivo TROVOA, Panmela Castro.[16] Se trata de artistas afrobrasileños formados en el lenguaje del arte contemporáneo, que integran en sus obras referencias a sus subjetividades y contextos de enunciación.
Una poética afrobrasileña
Desde 2012 Rosana Paulino revisa el sentido político de las fotografías “científicas”, cuyas tipologías actuaron como instrumentos simbólicos que reforzaron la opresión de la esclavitud. “Las definiciones pertenecen a los definidores no a los definidos”, escribe Toni Morrison en Beloved. Esta es la perspectiva desde la que Rosana Paulino aborda el imaginario científico occidental sobre los afrobrasileños durante el siglo XIX. El archivo científico no es una fuente pura, se estratifica en el tiempo: aunque formado en los siglos de la esclavitud en Brasil su poder configurador sigue activo. Cuando yuxtapone imágenes del pasado Paulino activa las raíces del presente.
Con sus collages e instalaciones introduce una distancia y un debate respecto de las líneas principales del arte brasileño. No se trata de una obra que se exprese como la continuidad de la genealogía estilística que propone ‘devorar’ el modernismo europeo, como Tarsila de Amaral en su propuesta antropofágica. Tampoco se inserta en la línea evolutiva de la abstracción. Aunque se apoya en el legado de los artistas afrobrasileños, se separa de la idea de continuidad estilística: su lenguaje difiere respecto de la propuesta de una expresividad figurativa como la de, por ejemplo, María Auxiliadora[17]; también de la abstracción que domina en la obra de Rubem Valentim.[18] En dos autorretratos con máscara que realiza en 1998, ella interpela el canon de la antropofagia y de la abstracción. En uno se representa rodeada de la hoja de banano que flanquea a la figura de La negra de Tarsila de Amaral (1923); en el otro por las banderas abstractas características de la obra de Alfredo Volpi. Yuxtapone su autorretrato y su relación con la comunidad afrobrasileña con la génesis del canon dominante del arte en Brasil y elabora las potencialidades críticas de esta yuxtaposición.[19] Walter Benjamin propuso a Brecht como un aliado estratégico de su valoración de los procedimientos críticos – como el montaje – que permiten que el aparato productivo quiebre su complicidad con el poder – el fascismo en palabras de Benjamin. En sus lecturas del archivo Rosana Paulino propone un análisis de sus consecuencias estéticas y políticas. Las decisiones sobre las formas son tan significativas como las selecciones de imágenes sobre las que opera críticamente. En su conjunto forman parte de un activismo poético que se expresa como relectura de un canon –el del arte brasileño–, que operó desde la exclusión. Sus collages lo cuestionan desde la filosofía política que sirve de marco a sus imágenes.
Volvamos, por un momento, al uso que Paulino propone del archivo personal. Primero recurrió al mismo en la serie de los bastidores. En otro formato, desde otra propuesta, vuelve sobre el álbum familiar cuando selecciona once de sus fotografías, impresas unas 1500 veces, sobre pequeñas bolsas de tela (8 x 8 cm), cosidas en los bordes, ordenadas en hileras –diecinueve de alto, setenta y ocho de ancho. Los rostros de mujeres, hombres y niños de su familia nos miran desde la tipología del retrato convencional, realizado para recordar un momento en la vida. Son retratos de grupo o singulares. Algunos remiten al formato de la fotografía institucional, la del documento de identidad. Observada desde la distancia, Parede da memoria (1994-2015) convoca una vibración casi óptica, en la que los pequeños cuadros de tela se ven como acentos, como sutiles movimientos. Un paisaje de tonos grises y cálidos que enfatizan las costuras que bordean cada pequeño objeto.
Estas pequeñas bolsas cosidas remiten a los patuá, amuletos, pequeños sacos que contienen objetos o substancias vinculadas al axé o la fuerza mágica en las creencias Umbanda.[20] Puede trazarse un paralelo con el uso de reliquias en la religión católica: un tejido, el fragmento de un objeto o hueso vinculado a un santo, o la tierra que los cruzados traían de Tierra Santa.[21] En ambos casos el objeto adquiere un sentido protector una vez que ha sido bendecido en el catolicismo o pasado por el “cruzamento” en la religiosidad Umbanda. En su casa había un patuá, sobre la puerta de entrada. En la yuxtaposición de materiales y de sentidos que propone Paulino se funden creencias no occidentales con los usos de la fotografía en el arte más contemporáneo. Impreso y multiplicado, este pequeño objeto se sumerge en una escala monumental en la que se cruza lo doméstico. Se trata de una pared-monumento, que durante varios años estuvo en proceso hasta el día en que la obra pasó a integrar la colección de la Pinacoteca de Sao Paulo, durante 2015 (Bevilacqua; Lopes; Palmas, 2018, p. 149). Como señala Fabiana Lopes, “Con esta pieza, Paulino crea un memorial del sujeto negro y con su abordaje estético logra cerrar una brecha dentro de la memoria nacional respecto a este tema.”[22] Un sentido alegórico atraviesa el conjunto, en el que el recuerdo personal, el álbum de familia de las personas queridas, se engarza con una dimensión histórica que traslada siglos al presente. Aunque la obra no trata estrictamente sobre la esclavitud, la recuerda. Parede da memoria es la visión expandida de una imagen privada que se vuelve colectiva. En esa simultaneidad de impresiones se manifiesta la familia afro-brasileña, dispar respecto de aquella blanca, ordenada o antropofágica que ha moldeado el canon de representación del arte del Brasil.
Uno de los rasgos de clasificación social que establece diferencias, junto al color de la piel, es el cabello. Angela Figueiredo lo investigó en un proyecto en el que analizó el sentido estético, cultural y resistente del cabello negro, y que presentó en la exposición fotográfica Africa Global Hair (2011).[23] Dos ejemplos, entre muchos que podría traer a esta discusión, llevan a un primer plano el rol distintivo del cabello a la hora de establecer las diferenciaciones sociales que inciden en las perspectivas racistas respecto de la diáspora africana. Por un lado, la performance de la artista peruana Victoria Santa Cruz, Me llamaron negra, en la que relata, al tiempo que golpea rítmicamente sus manos, lo que sintió cuando la llamaron ‘negra’, algo que desconocía, y palabra en la que percibió una ofensa. Su reacción fue alisar su cabello y empolvar su rostro. Hasta que un día se dio cuenta de que adaptarse al requerimiento del amo diluía su existencia, su identidad. En la performance la frase “¿Y qué? ¡Sí, negra soy!” repetida al ritmo del cajón, señala el quiebre y el pasaje de la marginación al orgullo.[24] El archivo de esta performance provoca una relación empática y transformadora. Tal el poder del arte, de una imagen, de una secuencia de frases que se pronuncian en el tiempo, en una trama narrativa que permite la identificación con el momento de conversión del sujeto sojuzgado al sujeto empoderado.
La filósofa brasileña Djamila Ribeiro relata en primera persona la felicidad que experimentó la primera vez que pudo alisar su cabello y moverlo. Describe también el tormento que implicaba el proceso de alisarlo. Su padre se oponía a que lo hiciese, alababa la belleza de su cabello. Sin embargo, este nunca quedaba como ella lo imaginaba. Una sensación de no pertenecer la acompañaba. Hasta que un día, como Victoria, comprendió que se trataba de una máscara, y también se produjo en ella ese pasaje de una relación sojuzgada a una resistente representada por el cabello.
La escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, en el primer capítulo de su novela Americanah (2013), que transcurre en Princeton, describe la experiencia de trenzarse el cabello en una peluquería en la que conviven mujeres negras que provienen de distintos países de Africa o del Caribe. Allí, durante las seis horas que demanda el trenzado, se crea una comunidad diaspórica transnacional. La artista paulista Priscila Rezende realiza una performance, Bombril (2010) en la que lava su cabello con utensillos de cocina, convirtiéndolo en una esponja. Bombril es una marca de productos de limpieza conocida, y es también una de las muchas formas despectivas para referirse al cabello de la persona negra. Al apropiarse y literalizar el peyorativo, Rezende lleva al espectador a confrontar el discurso social discriminatorio y a tomar posición.[25]
A esta tensión y a esta condición encrespada del cabello afro-brasileño remite Paulino cuando en 2006 dispone mechones de cabello encapsulados con vidrios de relojes. El cabello como el color de la piel, funcionan como sinécdoques de las formas en las que en Brasil se clasifica a sus habitantes. Desde el cabello pone en escena dos mecanismos principales. Por un lado, construye un catálogo, que es también un observatorio de lo común y de lo distinto. En segundo lugar inscribe nombres en la letra cursiva del letraset (como Isis, Irene o Marly), con lo que remite a un proceso de construcción de la subjetividad de mujeres afrobrasileñas específicas. El cabello natural, que puede incluso tallarse alrededor de la cabeza, representa el agenciamiento desde la diferencia. Es un signo de empoderamiento y de posicionamiento político.
Los cabellos encapsulados, por otra parte, reponen el interés que Paulino tiene por la ciencia. Los recuerdos de su infancia se acumulan cuando se refiere a su pasión por la biología, que compitió con su interés por el arte. La ciencia señala un acorde conceptual visible en muchas de sus obras. En este caso, en las “muestras” de cabello crespo, frisado, que se conservan y se identifican. Se suman aquí al menos dos sentidos. Por un lado el del coleccionismo científico que extrae y ordena variaciones de un elemento natural para observarlo. Por otro, el sentido de relicario al que nos referimos en el patuá. En cada semiesfera se cuida ese objeto vinculado a una persona, a una vida, a una mujer. Nuevamente la raza y el género. En el centro de esta pieza un cristal de mayor tamaño reúne fotografías del pelo trenzado, oscuro, junto a fragmentos de cabello rubio. Las pulsiones conceptuales e ideológicas del feminismo negro aparecen como mensaje subyacente. Mujeres clasificadas y socialmente sojuzgadas por su cabello.
En 2012 Rosana Paulino realiza la serie Assentamento, en la que plenamente se involucra con el discurso científico y su relación con el racismo. Ella introduce la fotografía de una mujer afro-brasileña incluida en una serie realizada por el fotógrafo franco-suizo Auguste Stahl (1828-1877), encomendada por el cientista suizo naturalizado norteamericano Louis Agassiz (1807-1873). Las fotografías fueron re descubiertas en 1974, cuando fueron encontradas en el ático del Peabody Musuem, fundado por Agassiz, en el que quedaron olvidadas por décadas (Wallis, 2006). Sin embargo, Paulino no parte de este archivo sino de su reproducción en el libro O negro na fotografia brasileira do século XIX, publicado en 2004 por el coleccionista George Ermakoff.[26] Un libro que introduce un archivo que no tenía estado público en Brasil, y que se inserta en la dinámica de la historia de las imágenes, para la que las copias son el punto de partida de apropiaciones y resemantizaciones.[27] Detengámonos por un momento en la historia de estas imágenes.
Para Agassiz el científico era un ser privilegiado que sabía develar el plan divino mediante la observación de la naturaleza, en la que diferenciaba una jerarquía natural entre los seres, de los animales a los humanos y entre las razas humanas. Diferenciaba entre razas superiores e inferiores, blancos y negros respectivamente, y consideraba que los segundos, creados para vivir en cinturones tropicales, abdicaban de su autonomía ante la superioridad del hombre blanco (Machado, 2010). Entre 1865-1866 participa en la Expedición Thayer, que fue desde Río de Janeiro hasta el Amazonas. Profesor en Lawrence School, rama de la Universidad de Harvard, fue popular por defender el creacionismo, el poligenismo y por su adhesión a la teoría de la degeneración de las razas. Viajó a Brasil para desautorizar a Darwin y sus teorías publicadas en El origen de las especies (1859). Buscaba probar que el “mulatismo”, presente en la población brasileña intensamente mestizada, provocaba la “degeneración racial”.[28] En su libro A journey to Brazil, publicado en 1867, sostenía que si se ponían en duda los efectos perniciosos de las razas, había que viajar a Brasil. Auguste Stahl fue el fotógrafo que Agassiz contrató para realizar un archivo fotográfico que probase sus teorías. Se trata de 200 imágenes que se conservan en el Museo Peabody de Harvard, en gran parte inéditas debido a su polémico contenido, integrado por retratos desnudos de la población africana de Rio de Janeiro y por tipos mestizos de Manaos. Cuarenta de esas fotografías fueron exhibidas por primera vez en San Pablo en Rastros e Raças de Louis Agassiz: Fotografia, Corpo e Ciência, Ontem e Hoje — (T)races of Louis Agassiz: Photography, Body and Science, Yesterday and Today, exposición organizada por Capacete y la 29ª Bienal de Artes de Sao Paulo, en el Teatro de Arena (2010).[29] Las fotografías de Stahl, realizadas de frente, de perfil y de espaldas pretendían probar las teorías de Agassiz.[30] En 1840 éste se había involucrado en el debate norteamericano sobre las razas y sus posiciones acerca de que el mestizaje era el camino de la degeneración social impactaban en los grupos que sostenían el segregacionismo en el sur de los Estados Unidos. Ya en 1850 Agassiz había encargado a J. T. Zealy fotografías de esclavos norteamericanos desnudos tomadas desde distintos ángulos. El Peabody museum fue legalmente demandado por Tamara Lanier, quien reclama que uno de los fotografiados es su antepasado y cuestiona el provecho obtenido de la imagen, utilizada para la promoción de conferencias y libros (Petit, 2019).
Rosana Paulino trabaja a partir de un polémico archivo liberado por el libro.[31] Trabaja sobre sus imágenes en diversos tamaños, imprimiéndolas sobre tela o incorporándolas en sus collages. Le interesan los afectos que portan estas imágenes (Paulino, Antonacci, 2014). En 2012, durante un programa de residencia entre artistas brasileños y afro americanos realizado en Tamarind Institute, en la University of New Mexico, Albuquerque, comienza una serie de obras sobre papel, Assentamento, que utiliza las imágenes de una mujer, de frente, de espaldas y de perfil, reproducidas en este libro. Paulino las imprime y desarrolla a partir de ellas un dibujo que traza raíces e incluye un corazón. La expansión de la imagen impresa en el dibujo realizado a mano destaca la metáfora de enraizamiento: la historia brasileña está cruzada por la esclavitud y por la vida y la cultura que mujeres y hombres trasladados desde Africa introdujeron en la cultura de Brasil, en una sociedad que aun reproduce tramas de subordinación de más de 300 años de esclavitud. La mujer fotografiada por Stahl fue trasladada desde Africa, fue esclavizada. El corazón que la artista superpone al cuerpo, el color rojo sobre la monocromía en grises de la imagen extraída del libro, traduce la tensión entre la separación y el enraizamiento, procesos, ambos, violentos. Se trata de abordar los afectos y la visión del mundo, las experiencias que millones que hombres, mujeres y niños esclavizados en Africa portaban y que forman parte de la sociedad brasileña contemporánea.
De frente, de espaldas, de perfil. La imagen se continúa en raíces y en formas acuareladas que la rodean, convirtiéndola en la célula de lo que será en una nueva configuración social. Una mujer africana trasladada, observada desde los dispositivos que la ciencia utilizaba para construir las taxonomías que justificaban las teorías de las razas puras, las teorías de las razas dominantes y de las desempoderadas. Las imágenes exponen la presencia de ese cuerpo violentado por un traslado involuntario, sojuzgado por condiciones de travesía inhumana, seguida de una explotación también inhumana, que forma parte del Brasil colonial tanto como del de la independencia o del contemporáneo. A pesar de la violencia, las raíces se expanden desde el cuerpo que se convierte en el lugar de un assentamento, un proceso de enraizamiento, una construcción cultural nueva. Las raíces y el follaje que brota de sus ojos, esas formas que parecen casi dendritas que se prolongan desde las células, hacen de su cuerpo un tronco, un eje que conduce, que conecta el cuerpo con el espacio que lo rodea.
Un año más tarde, en 2013, Paulino realiza la instalación Assentamento, que incluye las mismas imágenes, de frente, de perfil, de espaldas, ampliadas a tamaño natural.[32] El cuerpo se reproduce dislocado, descalzado por los cortes de una costura / sutura que une para recomponer la forma. Divididas en cinco partes, en cinco fragmentos de tela, las figuras experimentan un desplazamiento hacia la derecha o hacia la izquierda. Los hilos que penden interrumpen la continuidad de una sutura que remite a la captura, traslado, esclavitud; a la llegada a un espacio completamente distinto en el que debía rehacerse. Reconfigurarse en una nueva sociedad, la brasileña, que aun está atravesada por la diferencia social, racial. Un orden patriarcal. El corazón superpuesto condensa su historia, sus afectos, sus creencias, las costumbres que traía con ella. Intercalados en el espacio que queda entre los cuerpos impresos, tres fardos de madera y de brazos atados en una pira, han sido preparados para ser devorados por un fuego aludido, que en cualquier momento podría encenderse. En los comienzos de la esclavitud en Brasil en el siglo XVI un esclavo vivía entre 2 y 5 años. Los fardos de Assentamento remiten al desgaste, al escaso valor de personas que eran para el sistema como madera para ser quemada y repuesta. Así eran concebidos los esclavos en la dinámica del capitalismo, en la que la economía del monocultivo (siglos XVII-XIX) se vinculó a la emergencia del capitalismo industrial en Gran Bretaña (siglos XVIII-XIX) (Williams, 1944). Darcy Ribeiro escribió que mientras Gran Bretaña expandía las máquinas a carbón, en Brasil se quemaba carbón humano (Ribeiro, 1995). Entre los fardos, entre las fotografías ampliadas e impresas de una esclava que fue fotografiada y observada para fundamentar desde la ciencia la jerarquía entre las razas, la relación entre mestizaje y degeneración, coloca el video Mar distante, que introduce la travesía que culminaba con el arrebato de la identidad en la explotación de los cuerpos en la gran maquinaria de la plantación. “Assentamento”, señala Paulino, tiene dos sentidos. Por un lado, significa base, estructura, fundamento. Por otro, es el lugar en el que se asienta la fuerza del templo, la energía de la casa en las religiones afro brasileñas (Paulino; Antonacci, 2014).
En 2014, durante una residencia en el Bellagio Center de la Rockefeller Foundation, Paulino realiza una serie nueva de collages a partir de las fotografías del libro de Ermakoff. Introduce siluetas vacías en las que resuena el cuerpo ausente, el cuerpo borrado, al que le ha sido arrebatado su estatuto de humano. Ese Brasil pensado como un enorme almacén, en el que existía una flora y una fauna para ser exploradas tanto como las especies humanas (Ribeiro, 1995). En este trabajo también investigó las imágenes del libro Flora Brasílica, planeada e iniciada por el botánico brasileño Frederico Carlos Hoehne, publicado en fascículos entre 1940 y 1968 por la Secretaría de agricultura, industria y comercio de Sao Paulo –utiliza las imágenes del fascículo número 7, Labiadas, Gêneros 1-14, por C. Epling & J.F. Toledo, que reúne la flora del Brasil. Pequeñas flores, pequeños detalles de esa flora brasílica, ganan cuerpo en la progresión de la serie, e invaden el espacio. En los últimos collages los personajes quedan casi cubiertos por vegetales.
Además de la flora estos collages incluyen huesos. Se incluye así una referencia, explica Paulino, al cementerio de Negros Nuevos (New blacks), en Río de Janeiro, que reúne los restos quemados y acumulados de los esclavos que llegaban a Brasil y morían. Descubierto en 1996, durante la reforma de una casa que realizaban sus habitantes, éste funcionó aproximadamente entre 1769 y 1830, en una de las barracas del antiguo mercado negrero. Se cerró para demostrar a Inglaterra que Portugal cumplía las condiciones del tratado para finalizar el tráfico de esclavos que había firmado en 1827. Se calcula que allí murieron entre veinte y treinta mil personas, sobre todo niños y adolescentes. El sitio, hoy Memorial dos Pretos Novos,[33] deja ver los osarios a través de una pirámide de vidrio. A Rosana Paulino le produzco un fuerte impacto visitarlo (Lopes, 2018, p. 178). En la serie de collages los huesos cambian de medida, en algunos son del mismo tamaño que la cabeza de las figuras, en otros lo aumentan varias veces. Quienes eran forzosamente traídos de África como esclavos no eran considerados personas, eran sombras de personas, sombras de ciudadanos. La sombra del Brasil. El almacén tuvo un rol fundante de la sociedad brasileña, una de las más desiguales del mundo, en la que el trabajo no es valorizado, menos aun el trabajo manual, y en la que existe una fuerte jerarquización de clases. “Estudio estas cuestiones con regularidad, qué es ser mujer, qué es ser negra en la sociedad brasileña. Porque en estas cuestiones algo me incomoda, y solo consigo trabajar, de hecho, con las cuestiones que me incomodan. Ese nudo en mi garganta creció conmigo y tengo que hablar, y escogí el arte para tratar estas cuestiones”.
“Natural” es la palabra que Paulino introduce para elaborar un concepto visual y afectivo respecto de la ciencia y de su historia. La historia, tal como ha sido narrada, participó activamente en la fundamentación de los preconceptos que subyacen en teorías en las que existe un fuerte componente racista, empeñado en demostrar la superioridad de una raza sobre otra. En ¿História natural? (2016), introduce un doble signo de pregunta, imitando el español que, en esta duplicación, encuentra más enfático. Un recurso que visualmente refuerza la pregunta. El doble signo involucra, junto a la colonización portuguesa, la española: desde 1518 hubo esclavos en Cuba y República Dominicana –en Cuba la esclavitud fue abolida en 1886, dos años antes que en Brasil.
¿História natural? (2016) es un libro complejo, que incluye grabado sobre papel y sobre tela y que se organiza como una historia en imágenes, tal como la de los naturalistas. Rosana Paulino elabora una contra historia desde el discurso, el archivo, la imaginación y las imágenes realizadas por el discurso científico del siglo XIX. Intercepta la normalización de las teorías científicas; interviene críticamente sus archivos fotográficos. Frases como “El progreso de las naciones”, “La salvación de las almas”, “El amor por la ciencia”, introducen lemas del capitalismo y de la religión, agentes del sojuzgamiento y disciplinamiento de los esclavos. Una religión, la cristiana, que se impuso, sin lograr desplazar los componentes africanos, persistentes en las religiones afroamericanas, afrocaribeñas, afrobrasileñas. Fragmentos de tela cosidos cubren y descubren textos e imágenes. La impresión de azulejos portugueses entre los cuales se escurre la tinta roja, fusionan la idea de colonización y violencia. El libro se ordena en capítulos: la flora, la fauna, las gentes. En la sección que refiere a las personas, las fotografías de indígenas y esclavos se coordinan en distintas posiciones. Algo las distingue: el rostro vacío, ocupado por la imagen del fondo con mares ocupados por barcos esclavistas; el rostro con los ojos cubiertos por una forma obscura, que simbólicamente obtura su mirada, junto a la silueta de su cuerpo fotografiado. Un vacío, una ausencia.
Permanência das Estruturas (2017), se incluye en sus series textiles, en las que cruza imágenes, suturas y textos. El hombre cuya fotografía reproduce el libro de Ermakoff, el vacío que deja su contorno, los huesos, los azulejos portugueses y el texto que títula el collage, Permanência das Estruturas, escrito en rojo, en distintos tamaños, están allí, repetidos, para que no olvidemos. Para que no olvidemos el modo en el que esas personas eran trasladadas en viajes que duraban más de un mes, en condiciones inhumanas, Paulino imprime también el barco negrero, el mapa que indica la disposición de los cuerpos, el hacinamiento.[34] Es importante no olvidar, podemos pensar, ante el conjunto de pruebas de tal ominoso pasado-presente. La mirada científica, los huesos encontrados en Rio de Janeiro, la referencia a quienes intensamente practicaron el comercio de personas como esclavos, el mapa del barco que los transportaba. Los memoriales re-cuerdan –re: de nuevo, cordis: corazón–; vuelven a pasar por el corazón, por afectos, los restos de un pasado activo. Sentimos ante ellas, hoy, todo lo que permanece en la sociedad brasileña contemporánea.
Las formas geométricas que en ¿Historia natural? obturan los ojos de algunos de los retratos, permiten a la artista ingresar en uno de los ejes narrativos de la historia del arte brasileño: el arte abstracto y la centralidad que éste ha adquirido en los últimos años. Intensamente exhibido y coleccionado por museos internacionales, la abstracción brasileña constituye actualmente el eje central del canon del arte brasileño. Observemos cuál es el rasgo dominante de estas formas geométricas en series como Geométría à brasileira o A Geometría à brasileira chega ao paraíso tropical (2018). Para ello detengámonos por un instante en la lectura curatorial propuesta por el MASP de la obra de Rubem Valentim en su exposición antológica.[35] Se dice en el catálogo de esta exposición que este artista se apropia de la abstracción de origen europeo que dominó en el arte brasileño de los años cincuenta y sesenta, sometiéndolo a las raíces africanas, al diseño o a diagramas que representan a los orishas de las religiones afrobrasileñas. En tal sentido Valentim produce una operación antropofágica, deglute la abstracción europea para convertirla en afrobrasileña. La metáfora es potente, coloca al arte afrobrasileño en una relación de equidad con el de los artistas que conforman el canon del arte brasileño (Tarsila de Amaral, Helio Oiticica, Lygia Clark, Lygia Pape, entre otros). En tal sentido el catálogo reproduce obras de Auguste Herbin y de Mira Schendel. Ciertamente, cuando observamos los collages de Paulino podemos pensar en los Grandes nucleos de Helio Oiticia, en los que los planos suspendidos en el espacio, de colores homogéneos, dejan ver a las personas que se mueven alrededor o dentro de la pieza. En los collages de Rosana Paulino tales planos reverberan. Los planos de color interceptan las imágenes en blanco y negro de la flora, la fauna y las gentes del Brasil. Las formas puras cubren parcialmente los rostros y los ojos de indígenas y afro brasileños. Son intervenciones críticas que reponen distintas preguntas ¿en qué contextos de marginación social se construyó la abstracción brasileña como forma pura, racional, capaz de circular sin conflictos, de internacionalizarse? ¿Qué es lo que la centralidad de estas poéticas historizadas, analizadas y expuestas casi de manera excluyente, no han permitido ver? ¿De qué otras maneras puede analizarse el arte de Brasil? Las preguntas recién comienzan a ser investigadas. Las exposiciones a las que nos referimos en las primeras secciones de este capítulo otorgan visibilidad a obras de artistas afrobrasileños que no figuraban en los relatos principales del arte. Los estudios enfocados sobre cuerpos de obra que carecían de museografía y de investigación comienza a realizarse. Sus consecuencias comienzan a trasladarse a las historias del arte, a las colecciones de las instituciones artísticas, a las investigaciones curatoriales, a los estudios académicos universitarios. La historia vigente es una historia parcial. Nuevas complejidades requieren ser estudiadas, exhibidas e historizadas para acceder a una comprensión estética más compleja y desafiante. Brasil es un país de diversidades que el discurso unilateral de la historia del arte ha dejado en las sombras.
* * *
Escribo este texto desde una posición a la vez interna y externa. Interna porque se aborda la complejidad del arte contemporáneo para quebrar la marginación de experimentaciones disruptivas con un lenguaje que activa referencias poderosas en la cultura brasileña. En ella se juegan los derechos de la ciudadanía de conocer el pensamiento estético contemporáneo en toda su complejidad. Importa comprender la sofisticación excepcional y distinta de la obra de lxs artistas afrobrasileñxs contemporáneos. Faltan libros, exposiciones, traducciones, estudios específicos que permitan conocer poéticas particulares, no generalizables. Aspiro, con este estudio que incluye referencias a artistas, investigadores, teóricos y curadores afrobrasileños, a contribuir a un campo de estudio que hasta hace 5 años tenía poca representación en las exposiciones internacionales de arte brasileño y latinoamericano. Estamos comenzando, urge su inscripción regional y global. Las obras existen, se necesita expandir los instrumentos que permitan conocerlas. Y necesita redefinirse lo que hasta ahora se consideró como ‘arte latinoamericano’. Al mismo tiempo mi posición es externa porque las consecuencias de la discriminación impuesta por siglos de esclavitud no obraron en forma específica sobre mis experiencias. Escribir sobre obras todavía silenciadas, distanciando la escritura de un sentido heroico, involucra la urgencia estética e intelectual de conocer un arte que remite a experiencias afectivas que involucran a más de la mitad de la población brasilera. La mujer afrodescendiente es, como señaló Rosana Paulino, la base de la pirámide social de la explotación y de la exclusión. Contra sus cuerpos se ejerce una violencia social y simbólica. Su obra, junto a la de muchxs otrxs artistas afrobrasileños, representa la mayor transformación estética que se está produciendo en el arte contemporáneo de Brasil. Urge conocerlo.
* Andrea Giunta é curadora, historiadora da arte e professora na Universidade de Buenos Aires.
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Notas
[1] Rosana Paulino trabajó sobre las imágenes en Xerox, las amplió y las transfirió al tejido de algodón con una emulsión que diluye el tonner de la fotocopia. Comunicación por correo electrónico con la autora, 22 de julio de 2019.
[2] La formación de Rosana Paulino es como grabadora, graduada en grabado en la Universidad de Sao Paulo en artes visuales, con una especialización en London Print Studio, en Londres, y un doctorado obtenido también en la Universidad de San Pablo. Aprobó el proceso de selección para estudiar biología en Unicamp y Artes en USP, optó por el arte –en Brasil no se permite cursar en dos universidades públicas al mismo tiempo. Su madre le proporciono conocimientos que se asocian a lo femenino, como coser, bordar, o hacer figuras con el barro del río. También creció en contacto con los saberes de la religión Umbanda. Fabiana Lopes (2018) destacó que Rosana Paulino fue la primera persona negra en recibir un doctorado en artes visuales.
[3] En su tesis de doctorado Rosana Paulino (2011) señala como referencia las imágenes de Jacques Etiene Arago y de N. Maurin, Castigo de escravos (1839, colección del Museo Afro Brasil).
[5] Este artículo traza un excelente estado de la cuestión sobre el feminismo negro en Brasil. Todas las referencias que incluyo a continuación provienen de este artículo. La cita de los libros y artículos a los que Ribeiro refiere, se inscribe en una política de investigación que de visibilidad a las investigaciones precedentes.
[6] Ribeiro cita el Mapa da Violência 2015: Homicídio de mulheres no Brasil, p. 30.
[7] El debate sobre la presencia negra en el arte brasileño tuvo también una fuerte activación a partir del debate que generó la presentación acrítica de la obra de Tarsila do Amaral, La negra (1923) en la retrospectiva de la artista realizada en el MoMA durante 2018. Ver en tal sentido los artículos publicados por The Art Newspaper, Hyperallergic y The New York Times.
[8] Posee una colección de más de 6000 obras organizadas en distintas áreas temáticas –Africa, trabajo, esclavitud, sagrado y profano, religiones afro brasileñas, historia y memorias, artes. Pinturas, esculturas, grabados, fotografías, documentos y piezas etnológicas permiten conocer los procesos de la diáspora africana y de la cultura afro brasileña.
[12] Marion Lloyd, “Una década de políticas de acción afirmativa en la educación superior brasileña: impactos, alcances y futuro / A decade of affirmative action in Brazilian higher education: Impact, scope and future”, Revista de la Educación Superior, Volume 45, Issue 178, April-June 2016, pages 17-29. https://doi.org/10.1016/j.resu.2016.02.002
[14] Roffino, Sara, “Is Brazil’s Most Famous Art Movement Built on Racial Inequality? A New Generation Argues ‘Yes’”, ArtNetNews, March 13, 2018
[15] Fabiana Lopes destaca el lugar de educadora y mentora de Rosana Paulino, con quien muchos de estos artistas hicieron residencias, op. cit., p. 176.
[16] Comunicación por correo electrónico con la artista, 12 de agosto de 2019.
[17] Autodidacta, Maria Auxiliadora se dedica exclusivamente a la pintura a partir de los 32 años. La propia artista custionó que se considerase su obra como “primitiva”, “ingenua” o “popular”.
[18] Un artista que a partir de los años 1950 se apropia del lenguaje de la abstracción geométrica europea.
[19] Kanitra Fletcher (2011) analiza estos autorretratos como una intercepción respecto del modelo de las fotografías comisionadas por Louis Agassiz a J. T. Zealy para probar sus teorías poligénicas sobre sujetos de inferioridad biológica.
[20] Religión multifocal y multicultural, de parácticas plurales, que introduce elementos de las religiones africanas, aborígenes (tupí) y católicas. Ver Ortiz, 1975.
[21] Estudié en el colegio franciscano Instituto Tierra Santa de Buenos Aires. En el uniforme llevábamos un broche con la característica cruz de Tierra Santa que en su centro tenía un pequeño relicario con un fragmento de tierra de Jerusalén.
[23] La exposición se realizó en Centro Cultural da Caixa Econômica Federal em Salvador, Bahia, durante el mes de noviembre de 2011, mes de la conciencia negra. Ver Figueiredo, 2012.
[24] Victoria Santa Cruz, Me gritaron negra, 1974 https://www.youtube.com/watch?v=cHr8DTNRZdg
[26] El libro incluye las fotografías de Augusto Stahl de la colección del The Peabody Museum of Archeology & Ethnology de Harvard. La publicación liberó estas imágenes en la escena intelectual y artística brasileña.
[27] En relación con la historia de la lectura de las imágenes se puede plantear la relación comparativa con la historia de la lectura de los textos que plantea, por ejemplo, Chartier (1992).
[28] Djamila Ribeiro advierte el sentido despectivo que tiene en Brasil el uso del término “mulata”, que proviene de “mula” o “mulo”, efiere a lo híbrido, producto del cruce de especies, y que diferencia al caballo noble del de segunda clase. “Se trata de una palabra negativa para indicar mestizaje, impureza, mezcla impropia, que no debería existir”. Desde el periodo colonial el término fue utilizado para designar a los negros con la piel más clara, fruto del estupro de las esclavas por el señor del ingenio. La denominación tiene un cuño machista y racista. Remite a más de tres siglos de esclavitud en Brasil. Djamila Ribeiro, op. cit., p. 99.
[31] Recientemente se han producido controversias. En 2012 el Museo Peabody denegó el permiso de reproducirlas en la exhibición sobre racismo que se realizaba en Grindelwald, Suiza, por considerarlas sensibles y por la política del museo de evitar fotografías de desnudos. Ver Mary Carmichael, “Harvard in fight over racist images: Swiss group aims to expose Agassiz”, The Boston Globe, 27 junio 2012. http://archive.boston.com/news/local/massachusetts/articles/2012/06/27/
harvard_in_fight_over_racist_images/; Editorial Opinion “Harvad should openly discuss Agassiz’s racial experiments”, The Boston Globe, 5 July 2012 https://www.bostonglobe.com/opinion/editorials/2012/07/05/harvard-should-openly-discuss-louis-agassiz-and-his-racial-attitudes/7QFq3ScfcerEGDNCqhF5UL/story.html (consultado: 27/07/2019). En este artículo se cuestiona que Harvard no haya realizado una revisión crítica del legado de Agassiz y que siga promoviendo su figura con frases como “Few people have left a more indelible imprint on Harvard tan Louis Agassiz”, considerado uno de los “founding fathers” of the modern American scientific tradition”. Se problematiza su anacronismo respecto de las teorías de Darwin, a las que se opuso, pero no se problematiza hasta qué punto colaboró en la legitimización del racismo en los Estados Unidos. Ver en el sitio de Harvard, “A Tale of Two Scholars: The Darwin Debate at Harvard. Louis Agassiz was a scientist with a blind spot — he rejected the theory of evolution” https://news.harvard.edu/gazette/story/2007/05/a-tale-of-two-scholars-the-darwin-debate-at-harvard/ (consultado: 27/07/2019)
[32] Expuesto por primera vez en el MAC – Museu de Arte Contemporânea de la Ciudad de Americana, en São Paulo –una ciudad vecina a Campinas.
[33] Es parte del Instituto de Pesquisa e Memoria dos Pretos Novos, Rio de Janeiro, cuyo propósito es la reflexión sobre la esclavitud y sus consecuencias en Brasil.
[34] La imagen proviene del diagrama del barco de Brookes, de 1788.
[35] Tal es la hipótesis central de la exposición curada por Adriano Pedrosa y Fernando Oliva sobre el artista como parte del ciclo de exposiciones Historias Afro-Atlánticas realizadas en el MASP durante 2018.
Tainá Reis de Paula Kapaz é arquiteta, urbanista e ativista das lutas por moradia. Tainá prestou assistência técnica para movimentos como a União de Moradia Popular (UMP), o Movimento dos Trabalhadores sem Teto (MTST) e o movimento Bairro a Bairro. Membro da Comissão de Gênero do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio de Janeiro (CAU-RJ) e coordenadora do coletivo Rede BrCidades. Foi eleita copresidente do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB-RJ), onde tem debatido uma agenda arquitetura social e de recuperação dos saberes construtivos populares.
Heloisa Buarque de Hollanda: Como você, arquiteta preta e periférica, foi eleita presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil?
Tainá de Paula: Conseguimos uma concertação de vários setores da categoria com arquitetos acadêmicos, e arquitetos funcionários públicos, um setor profissional que sempre demandou uma agenda progressista na reflexão de cidade, na reflexão de arquitetura. A arquitetura e o pensamento sobre a cidade, hoje, no Brasil, têm um legado monumentalista. São grandes intervenções e grandes equipamentos arquitetônicos em detrimento de uma agenda mais próxima às pessoas que habitam a cidade. O Konder [Marcos Konder Netto], por exemplo, que foi funcionário público por muitos anos, projetou arquiteturas monumentalistas, mas também pontuais, voltadas para o público de baixa renda. O Lelé [João Filgueiras Lima] pensou o SUS [Sistema Único de Saúde] como uma arquitetura inclusiva, acolhedora, o Zanine [José Zanine Caldas] praticava a arquitetura com outros valores… Sou da geração lulopetista de arquitetos. Entro, em 2003, na Universidade Federal Fluminense, num período no qual ainda não havia cotas sociais e raciais. Era uma universidade que reconheci como branca e universalista na construção do seu saber, então me coloquei como tarefa trazer mais pretos, mais pensamento preto como uma ação de melhoria da excelência acadêmica. Conseguimos conectar e traduzir demandas que não passavam perto da academia e que, na verdade, são centrais no Brasil de hoje, que é majoritariamente preto, pobre e periférico. É um gargalo para o qual não bastou a prática extensionista. A gente precisou empobrecer e empretecer no lato sensu. Hoje, o debate do urbano no Brasil nunca esteve tão em disputa. Fala-se muito em cidades digitais, na Agenda 2020, 2030 da ONU, que são pautas importantíssimas, mas que precisam estar muito bem casadas com nossas agendas prioritárias. Precisamos lembrar que o Rio de Janeiro, a segunda maior capital do Brasil, tem 50% dos seus domicílios sem água e esgoto, e não temos ainda uma agenda concreta de eliminação dessas desigualdades territoriais.
HBH: Você já era do IAB?
Tainá de Paula: Sim. Já era associada do IAB, já era conselheira do Conselho de Arquitetura e Urbanismo, mas não bastava – aí entendendo o IAB – como um campo de produção desse pensar da cultura da arquitetura e do urbanismo, portanto, um lugar estratégico. Quais são os desafios dos arquitetos do Rio de Janeiro hoje? Os interesses privados ou os interesses da população?
HBH: Como foi essa agenda no passado?
Tainá de Paula: Me incomoda, por exemplo, num passado recente, ter dado uma medalha para o [José Mariano] Beltrame, outra para o Sérgio Cabral. Temos um processo grande de militarização de territórios que tiveram sua agenda urbana, econômica, social atropelada pela lógica necropolítica e genocida de estado. Chegou a hora da gente inverter essa balança e fazer parceria direta com a sociedade civil. O período lulopetista estabeleceu a agenda urbana, a partir do planejamento urbano, de um ministério. Isso acabou pelas mãos do Bolsonaro. É importante que a gente fale isso. Um dos primeiros atos públicos de Jair Bolsonaro foi a eliminação do Ministério das Cidades. Disse Bolsonaro: “Eu não quero falar, nem saber de cidade.” Então, ele nos coloca à própria sorte, nos condena a trabalhar nas cidades por conta própria. E esse estar por conta própria nos coloca em um lugar sem financiamento, recurso, amparo, e sem respaldo legal, jurídico e administrativo. Nos reposiciona na direção de um enfrentamento de território. Essa nova agenda urbana não começa pela via institucional, começa pela sociedade civil. O que essa sociedade quer? O que essa periferia está querendo? Precisamos fazer um novo chamado. Precisamos reaglutinar fluxos.
HBH: As associações de bairro ainda têm algum poder?
Tainá de Paula: Estão totalmente dominadas pela milícia. Nesse sentido acho que a formação de favelados é da maior importância. Eles precisam ser capacitados, empoderados e vocalizados no lugar de promoção e divulgação da sua nova agenda.
HBH: No IAB existe a prioridade com a arquitetura social?
Tainá de Paula: É uma disputa. O Conselho é bem plural, tem quem defenda o mercado privado, os interesses imobiliários, e quem se preocupe mais com as questões sociais. Mas existe um entendimento claro que nos une de que é preciso fazer alguma coisa porque ou a gente faz agora, ou é destruição da cidade, e ninguém quer isso. Tenho feito um caminho de estruturação, uma rede de entidades que até então jamais tocariam nesses problemas, mas que hoje se preocupam É importante aproximar arquitetos de engenheiros, aproximar arquitetos de técnicos, aproximar arquitetos do mercado da construção civil, aproximar sobretudo da vida cotidiana da sociedade enquanto elemento de potência na discussão da nova cidade que queremos.
HBH: Esse é seu pontão.
Tainá de Paula: Esse é meu pontão. O segundo pontão que eu acho que também é muito importante, mas não necessariamente vai reverberar a curto prazo, é a formação. É disseminar conhecimento, fazer imersão, formar mais arquitetos periféricos. Além disso, há necessidade de uma reflexão ontológica, epistemológica, teórica sobre as narrativas do saber hoje instituído. Com todo o meu respeito pelos catedráticos e pelas ideias clássicas que temos nas faculdades de arquitetura, o clássico já não nos sustenta mais. E acredito que temos muito a contribuir com os processos de construção nas favelas, que, na verdade, há dois séculos promovem a moradia para milhões e milhões de pessoas.
HBH: Esses processos são geralmente muito criativos e originais. Alguns deles são 100% inovação e deveriam ser levados mais a sério… Isto está na sua pauta?
Tainá de Paula: Está super em pauta. Na verdade, eu não coloco nada em pauta, coloco em disputa, porque é mesmo uma guerra. A gente precisa falar da cidade que queremos no século XXI. No Rio de Janeiro, 70% da distribuição de energia elétrica é informal, ou tem algum grau de irregularidade. A gente precisa dar conta disso e de temas similares….
HBH: Temos massa crítica para essa pauta?
Tainá de Paula: Sim. Hoje, temos à disposição uma expertise de no mínimo cinquenta anos de favela, de arquitetura de favela. Temos nomes exemplares como Sérgio Magalhães, Pablo Benetti, [João] Carlos Calafate, Luiz Carlos Toledo. Não desmerecendo a expertise que a gente acumulou, tenho que admitir que a agenda institucional que criamos não deu conta da reflexão sobre cidades que deveríamos ter construído. Eu, por exemplo, faria hoje um projeto para a Rocinha diferente daquele que fiz em 2007. É importante que a gente tenha a dimensão dos saberes e entendimentos que esses territórios têm e que não cabem na institucionalidade da governança, o que às vezes não é levado em conta.
HBH: Saberes que expressam competências.
Tainá de Paula: Claro. Não teríamos hoje condições para construir moradia para todos os favelados. A gente precisa falar disso. Por outro lado, foram os favelados que construíram suas próprias casas. Quando a gente fala, por exemplo, um termo que eu abomino, que técnico fala muito: “Nós precisamos desfavelizar o Rio de Janeiro.” Querido, olha só! A favela é um bairro popular autoconstruído e autogerido. E muitas vezes o Estado nunca passou lá. É como se você convidasse alguém para sua casa e dissesse assim: “Esta casa aqui não condiz com você. É inadequada. Vamos demolir esta casa.” Você gostaria que alguém falasse isso para você? É importante entender que a favela já é uma solução, haja vista que é uma solução melhor do que a que a gente estabeleceu, que é a não construção de casas, porque o Estado não constrói casas.
HBH: E o Minha Casa, Minha Vida?
Tainá de Paula: O Minha Casa, Minha Vida é parte de uma solução equivocada. O Minha Casa, Minha Vida replicou um modelo que foi construído pelos IAPs [Institutos de Aposentadorias e Pensões], nos anos 1930, depois com o BNH [Banco Nacional de Habitação], na década de 60, e depois da Meu Lote, Minha Casa, em Sepetiba, Cidade de Deus, Favela-Bairro, e agora o Minha Casa, Minha Vida. A ampliação do perímetro da cidade e a pulverização, o expurgo de pobre para áreas periféricas, não é a solução da cidade. A gente precisa pensar primeiro na construção de cidade e depois nos seus equipamentos. Não seria mais interessante reunir e urbanizar São Cristóvão, Jacarezinho e Manguinhos, estabelecendo conjuntos habitacionais nessas áreas já consolidadas da cidade?
Minha Casa, Minha Vida é um programa econômico, não um programa habitacional. Era importante dar conta do aquecimento do setor imobiliário, do aquecimento da construção civil. Então, quando o banco entrega um dinheiro praticamente a fundo perdido para o especulador, para o construtor, ele vai querer extrair o máximo daquele recurso. E isso resulta fatalmente em construções péssimas. Péssimo material, arquitetura lixo.
HBH: Vocês têm alguma proposta nesta direção?
Tainá de Paula: A proposta é a gente repensar, estabelecer uma pausa total nos projetos habitacionais e conseguir dar conta do gargalo de cidade que foi construído no passado. É importante frear a ampliação da cidade. O que é preciso estabelecer é: como a gente dá conta da ocupação do Porto Maravilha, onde foram investidos bilhões de reais? Precisamos de todas as classes ali representadas.
HBH: Seria como aquele projeto de mistura de classes de Paris, é isso?
Tainá de Paula: Claro. Foi feito ali um investimento pesado em mix social. Num bairro como Montmartre, por exemplo, você tem todas as classes sociais e todo tipo de empreendimento. É a minha tarefa. Estamos tentando convencer a CDURP [Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto] de que é a única maneira possível de ocupar o Centro.
HBH: Eu acho essa a melhor solução.
Tainá de Paula: Tem uma legislação também muito interessante na Colômbia, que tem desde o ponto de vista da terra – a Lei 70 – até o ponto de vista dos empreendimentos imobiliários. Não é permitido haver domínios raciais na cidade, que é o que acontece no Rio de Janeiro. No mapa racial Ipanema-Leblon, o número de pretos dá para ser contado nos dedos. A Colômbia fez um pacto na década de 1980 e instituiu a Lei 70, que basicamente é: tanto por cento de um terreno num determinado bairro tem que ser de propriedade de uma pessoa negra. É importante começar a perceber que a cidade tem que ser pensada e criada para todo mundo.
HBH: Como é o ensino de arquitetura na universidade brasileira?
Tainá de Paula: Importante falar sobre os saberes pluriversais da arquitetura negra. A universidade brasileira de arquitetura nasce no seio das elites na medida em que ela era quase um complemento da escola de belas artes, na época quase uma distração para uma elite colonialista que se mudava para os grandes centros urbanos ou como complementação de uma determinada formação. Por exemplo, se você fosse artífice ou engenheiro era bom cursar a faculdade de belas artes para complementar o seu saber. Após a revisão getulista é que começa a ser institucionalizado o saber técnico da arquitetura. Só que a arquitetura que era ensinada era a de uma escola modernista totalmente eurocentrada, cujo objetivo era a tecnicidade e a eficiência, desde o ponto de vista da metodologia de projeto até especificação de material, o detalhamento construtivo, enfim, uma estruturação de um saber da cidade que opera na lógica de que a arquitetura brasileira precisa ser substituída por uma arquitetura de excelência da técnica. Esse é um gargalo muito importante, já que excludente de todo o saber construtivo que o Brasil já tinha. A arquitetura moderna é caríssima do ponto de vista de manutenção. Não reponde à nossa realidade tropical. O movimento pós-moderno por sua vez não teve fôlego para enfrentar a favela, porque assumiu o norte do mercado da popularização, da hiperfabricação, hiperindustrialização dos materiais… Erramos radicalmente ao abandonar tanto nossos modelos arquitetônicos originais.
HBH: Você está falando da arquitetura negra, indígena ou portuguesa?
Tainá de Paula: Sim, porque a arquitetura eclética dos anos 1930-40 que vem do legado português e francês se constrói de estuque e óleo de baleia, que é um processo construtivo indígena. A arquitetura eclética que se misturou. Outro exemplo: a França tinha uma indústria de cerâmica desenvolvida. Mas aqui a construção lança mão de recursos similares aos indígenas, como vemos no caso do uso do óleo de baleira e conchas nos prédios de características belle époque no Centro do Rio de Janeiro.
HBH: Tem conchas nas construções do Centro?
Tainá de Paula: Sim, na maioria das fundações e das paredes. Mas o pensamento patrimonial brasileiro acha que isso é feio. Heloisa, Lucio Costa, a referência maior da arquitetura brasileira, mandou derrubar vários desses prédios porque ele achava menores. Ele derrubou o Palácio Monroe, que era do tamanho da Câmara dos Vereadores da Cidade do Rio de Janeiro. Grandes legados patrimoniais foram destruídos. Na Praça Onze tínhamos um casario idêntico ao do Saara, aliás o Saara ia até a Praça Onze, e isso foi destruído porque a cidade que se queria era a cidade moderna, do carro, dos grandes prédios, da Presidente Vargas. Os tratados dos patrimônios falam muito sobre isso, que a arquitetura do Rio de Janeiro precisava ser vencida e ultrapassada, porque estava descaracterizando o futuro possível da cidade. A academia impôs esse pensamento, rebaixando durante anos o Zanine, o [Severiano] Mário Porto, o Lelé, que receberam enorme críticas nos seus exercícios profissionais.
HBH: A missão da universidade, em princípio, seria um entendimento do Brasil…
Tainá de Paula: Por isso que eu acho tão potente entender e fazer brotar a arquitetura negra do Brasil, a arquitetura diaspórica. Existe hoje no Brasil um entendimento claro de que a arquitetura negra foi totalmente apagada, desde a arquitetura dos quilombos, das senzalas, dos lugares dos negros no Brasil. A gente tem um exemplo claro, que é o legado da Pequena África, no Centro da cidade. Temos dois milhões de corpos negros ali embaixo do que está sendo chamado de Pequena África. O Rio de Janeiro, na realidade, é uma Grande África, e a população é absolutamente desinformada. A academia não está fazendo o seu papel, que seria o da disputa arqueológica e arquitetônica daquele patrimônio. O resultado é um crime patrimonial. A Praça Mauá está plantada em cima de corpos. O então prefeito Eduardo Paes abriu, viu e plantou VLT e praças como se nada tivesse acontecido na cidade do Rio.
HBH: Aquele setor dos pretos novos é um exemplo.
Tainá de Paula: É um exemplo. Mas aquilo é a ponta do iceberg de uma coisa monstruosa. Seria importante olhar outros exemplos, como Berlim. Tanto o Museu do Holocausto quanto as indicações dos memoriais da cidade inteira sobre o genocídio são peças-chave e fundamentais para a discussão do novo marco civilizatório. Todo alemão, independente de sua classe social, sabe o que foi aquele genocídio. E aquele genocídio muito provavelmente é incapaz de ser replicado, por mais que existam neonazistas. Uma criança do ensino fundamental vai ao Museu do Holocausto e sabe o nome de todas as famílias nazistas. O Brasil, o Rio de Janeiro e o Centro do Rio de Janeiro, ao contrário, têm a tendência de homenagear com o nome de praças e ruas gente que foi dono de escravo, que matou gente. Bairros como Brás de Pina, [a cidade de Duque de] Caxias, são homenagens a figuras que escravizaram e cometeram crimes bárbaros, arrastando escravos acorrentados, arrancando braços e corpos… E não vão ser arquitetos e doutores brancos, nem as elites escravocratas, que vão fazer a disputa de narrativa simbólica e epistemológica desse empretecimento do saber das cidades.
HBH: Qual a extensão do patrimônio negro urbano brasileiro?
Tainá de Paula: Temos as casas de venda, costume, e, falando a partir de 1850 e da Lei de Terra, que também foi a Lei do Ventre Livre, que foi um marco na criação de uma leva de população negra alforriada, vamos ter a procura de moradia por parte dos alforriados em determinados lugares. Vão para o Centro, formando os cortiços. Os negros começam então a ter territorialidade de construções, como a primeira favela do Rio, que é a Providência, e uma série de favelas pretas que se estabelecem por conta da abolição da escravatura. As primeiras construções de favelas eram muito interessantes do ponto de vista de sua arquitetura. O quintal com janelas de madeira, com uma ambiência muito mais rica do que a arquitetura do capitalismo da pobreza proporciona hoje para o preto favelado.
HBH: O passado trouxe alguma expertise na área da construção?
Tainá de Paula: É importante lembrar que, quando os negros saíram da África, tinham expertise na construção de castelos. A arquitetura africana dos séculos XVII e XVIII é mil vezes melhor do que a arquitetura portuguesa dos mesmos séculos. A arquitetura negra mundial precisa ser estudada e precisa inclusive ser recuperada para a sociedade. Minha parte na pesquisa é conduzir novos referenciais porque o racismo e a branquitude operam nesse desaparecimento de referenciais. Mas precisamos construir um novo legado de referenciais no país.
HBH: Como se processa essa construção?
Tainá de Paula: Durante muito tempo, o urbanismo clássico brasileiro entendeu que o território para dar certo tem que ser pensado do zero. Se os modernistas quisessem um gramado, demoliam o que houvesse para construir o gramado. Entretanto, o território deve ser entendido à luz do que já acontece, e não do que gostaríamos que tivesse acontecido ali. O outro ponto é a eliminação da dinâmica centro-periferia. Existe um centro de economia, controle e de dinâmicas que acaba pautando o norte dessa periferia. Para mim o centro-periferia acabou. Eu vejo que a ideia de centro está numa construção quase distópica do meu pensamento futuro de cidade. Se os problemas não forem resolvidos para todos, serão fagocitados por esses próprios problemas. Penso no lixo, na agenda de infraestrutura, no colapso hídrico. É sustentável num país de Bolsonaro a gente pensar que toda a zona sul vai conseguir, de forma perpétua, comprar água? Não acho. O centro-periferia acabou. A agenda é uma agenda única. O mar vai ficar poluído para todo mundo. Essa dinâmica que nos conecta precisa ser colocada na frente da discussão urbana que a gente quer. Essa cidade que a agenda está pensando é exatamente a mesma da agenda do centro. Não tem privilégio na cidade. Ou ela é toda nossa, ou não será.
* Heloisa Buarque de Hollanda é escritora e pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde coordena o Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC/Letras/UFRJ), o projeto Universidade das Quebradas e o Fórum Mulher & Universidade.
Arquiteto e doutor em urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Sérgio Magalhães é professor do Programa de Pós-Graduação em Urbanismo da FAU/UFRJ e diretor-presidente do comitê executivo do XXVII Congresso Mundial de Arquitetos. O evento, que ocorreria em julho de 2020 e nesta edição escolheu o Rio de Janeiro como capital mundial de arquitetura, foi adiado para 2021 devido à pandemia do coronavírus. Sérgio Magalhães foi secretário municipal de Habitação do Rio de Janeiro (1993-2000) e secretário de Estado de Projetos Especiais do Rio de Janeiro (2001-2002). Em uma conversa no dia 9 de março de 2020, o arquiteto revê os modelos de desenvolvimento urbano das últimas décadas, principalmente no Rio de Janeiro.
Heloisa Buarque de Hollanda: Sérgio, sabe o que seria legal, só para a gente ter um chão? Seria você dizer o que é cidade.
Sérgio Magalhães: A cidade é o lugar onde as pessoas têm a chance de se encontrar entre os diferentes. E isso é desde a origem. Lá no comecinho, muitos pensavam que a cidade resultava das necessidades econômicas. Hoje já está comprovado que resulta de outros tipos de necessidade. No caso, talvez, religiosas. E ela se mantém com isso, a cidade tem vitalidade quando oferece essa possibilidade.
HBH: Isso se perdeu?
SM: Em alguma medida, se perdeu. É interessante, porque o movimento moderno de arquitetura, que tem a sua base no final do século XIX, mas sobretudo na primeira metade do século XX, ante o grande desafio da cidade grande industrial, com as desigualdades gigantescas que tinha, passou a entender que a sua tarefa seria produzir cidades da igualdade. E, nessa cidade da igualdade, de certo modo, o espaço urbano não faria muito sentido, porque, se somos todos iguais, essa necessidade de interação se reduz. E, se examinarmos a cidade moderna, a cidade modernista de Le Corbusier sobretudo, e depois, digamos, a Brasília do Plano Piloto, nós perceberemos que temos áreas livres, temos jardins, mas pouco espaço, o que corresponde a esse ideário. Isso também foi apropriado muito facilmente, depois, pela especulação imobiliária no mundo todo.
HBH: O quê? Essa cidade da igualdade?
SM: O modelo da falta de espaço. Mas a da igualdade também, porque, se botar todos os iguais dentro dos seus condomínios fechados, não precisa. Em certo sentido, a cidade perdeu isso.
Perdeu também porque elas têm, hoje, muitos guetos pobres. Eu estive, na semana passada, em Campo Grande, fazia anos que eu não ia para lá. E o que me impressionou, além da decadência urbanística muito grande, foi a relativa naturalização daquela decadência, vista como algo normal. As pessoas não se dão conta de que não é necessário viver desse jeito, porque morar e viver lá é uma perda de energia brutal. Lá, na Baixada e nas outras cidades brasileiras. Não é só no Rio de Janeiro. As cidades grandes brasileiras estão em um processo muito triste.
Eu fui ver os “Pibinhos”, os PIBs anteriores, peguei os últimos sessenta, que é a série histórica que tem no IBGE, de 1961 para cá. E é impressionante, porque nas duas primeiras décadas desse período, de 60 a 80, as taxas somadas ano a ano chegam a 90%, o que dá uma média de 4,5% ao ano. E de lá para cá, nas quatro décadas seguintes, elas somam 18%. As quatro décadas são 18%, enquanto as duas primeiras somam 90%, o que dá uma média de 0,45%, um décimo do PIB per capita que houve nas duas primeiras décadas. E o interessante é que essas duas primeiras décadas correspondem ao final do período de grande explosão demográfica urbana, que começou pelos anos 40 e 50 e vai até o final dos anos 70. Então, nesse período de grande explosão demográfica urbana, o PIB cresce dez vezes mais do que nos anos seguintes, em que a explosão desaparece e a tendência das grandes cidades é a estabilidade demográfica. No Rio de Janeiro sobretudo. O Rio é a metrópole brasileira que menos cresce demograficamente desde os anos 80. E tende à estabilidade.
A ONU-HABITAT acabou de publicar um conceito que eu achei muito interessante, acho que vai ser muito útil. Um conceito chamado capital espacial. Esse capital espacial é correlacionável com o capital humano, capital financeiro, capital político. Ele é um conjunto de indicadores, mais de vinte, como questão de saneamento, de meio ambiente, entre outros, que dão um número que designaram por este termo: capital espacial. E o interessante é que eles, antes de divulgarem, fizeram um trabalho empírico em algumas cidades, cerca de vinte cidades. E esse trabalho empírico demonstrou que há uma correlação direta entre capital espacial elevado e desenvolvimento econômico elevado. E uma correlação direta entre capital espacial baixo e desenvolvimento econômico baixo.
Beatriz Resende: O saneamento entra junto nisso?
SM: Entra, entra tudo. Esses indicadores são muitos. O que nós, arquitetos, intuitivamente, dizemos sempre é que a cidade é essencial para o desenvolvimento, e agora há um indicador científico, digamos, para ajudar nisso. Essa estatística nossa, brasileira, de um PIB baixo em quarenta anos, corresponde a essa deterioração do sistema urbano brasileiro, que é um patrimônio gigantesco por conta do tamanho da população urbana, e, ao mesmo tempo, é uma degradação contínua. Todos nós sabemos o que significa, não vivemos, mas sabemos o que significa uma pessoa morar nesses lugares que nem são tão longe e trabalhar no Centro, na Zona Sul, e gastar quatro, cinco horas por dia. E voltar para lá por uma rua sem calçada, sem iluminação adequada. Que estímulo tem para a educação? Que estímulo tem para o aperfeiçoamento profissional?
HBH: Eu estava pensando, porque você começou a dizer que a cidade é um encontro. O que tem de encontro nessas faixas capitais, nessas periferias, é gigantesco, porque é uma sobrevivência, você faz uma rede de solidariedade e de encontro que é gigantesca.
SM: É, eu acho que tem, e isso está associado, no meu ponto de vista, com a autoconstrução. O Brasil tem 80% das casas que produziu sem financiamento, sem crédito nenhum. Tudo o que os governos construíram, tudo o que os bancos financiaram, a Caixa Econômica, bancos privados, institutos, tudo somado dá 20%.
A grande maioria das pessoas, eu pergunto sempre, tem essa consciência, mas as pessoas pobres, sem financiamento, sem acesso, e tendo que morar, elas constroem. Ao construir, elas levam um período longo e com enorme sacrifício. Isso constrói uma subjetividade, eu imagino. E quando essa subjetividade é compartilhada com outras situações equivalentes, cria-se ali um vínculo que dá uma identidade para aquele lugar, e que, portanto, se contrapõe, de certo modo, às exigências do capitalismo moderno, que pede para que as pessoas tenham uma mobilidade espacial absoluta, disponíveis para estarem em qualquer lugar a qualquer momento. Ele exige, e os Estados Unidos é campeão nisso, que a pessoa, ao mudar de emprego, possa mudar de estado, possa mudar de país, mas vai morar em um lugar muito parecido com o que morava antes. As casas são padrão, a comida é a mesma, os hotéis são iguais. O país oferece o anódino para que todo mundo possa estar em qualquer lugar sem ter sentimentos de pertencimento.
Essa ideia de pertencimento, na cidade, fica muito reduzida. Nesses lugares mais pobres, onde há uma relação diferente, o espaço público tem valores mais fortes do que onde ele é de ninguém. Eu acho que a cidade ainda vai precisar ter uma retomada disso.
HBH: Nova York conseguiu.
SM: É, Nova York conseguiu. E quando as pessoas daqui viajam, as pessoas que não dão bola para o convívio na cidade, elas vão procurar o quê? Elas vão procurar lugares onde elas caminham, e ficam encantadas com isso. A pessoa mora em um condomínio fechado, mora na Barra da Tijuca, mora no Plano Piloto de Brasília. A pessoa viaja para essas cidades à procura do que é de fato urbano.
HBH: Sérgio, qual seria o projeto, hoje, para a cidade do Rio?
SM: Hoje eu tenho a convicção de que o papel da Prefeitura original, o papel das municipalidades na origem, se perdeu entre nós. As cidades foram concebidas, desde a modernidade, depois que deixou de ser feudo, com a responsabilidade de orientar como ocupar o território. Como ocupar o que é público e como regular o que é privado. E nas nossas cidades, no Rio sobretudo, isso já foi perdido. Primeiro, considerando que no caso da favela seria provisório, transitório. Assim, já deixava ali sem controle. Sem controle urbanístico e, portanto, sem serviço. E depois isso foi crescendo, a cidade foi se expandindo, a cidade perdeu muito em densidade. É uma crise anunciada que se a gente não tomar uma decisão agora vai ser mais complicado.
HBH: O que é perder em densidade?
SM: É o seguinte. Quando o Rio deixou de ser capital, em 1960, ele tinha a cidade ocupada por 16 mil habitantes por km². Nesse momento, a cidade era estruturada por bondes e trens. Assim, as linhas de trem e as linhas de bonde eram o lugar preferencial para as pessoas terem a moradia e o trabalho. E elas eram o lugar onde as pessoas se concentravam. A partir dos anos 60, o trem foi abandonado, a população era de 3 milhões e o trem carregava, aproximadamente, um milhão por dia. Agora, quando houve a concessão, ele carregava 150 mil pessoas e a população tinha mais do que dobrado. E os bondes foram eliminados. Dessa forma, o rodoviarismo permitiu que a cidade se espraiasse, já não faria mais sentido aquela estrutura, que era mais rígida, pelos trilhos. E, com isso, dos 16 mil habitantes por km² em 1960, nós chegamos ao final do século XX com menos de 10 mil. Perdemos quase 60% de densidade. E a região metropolitana chegou a 6.500. O que nisso tem de ruim é que as áreas novas não têm acompanhado as infraestruturas necessárias. E o estado, a Prefeitura, não tomou conta. A função original dela ficou muito reduzida nas áreas formais anteriores. Com isso, teve toda a consequência que conhecemos hoje da bandidagem, da milícia, do tráfico, que, com a política ausente, o espaço é tomado. Isso é um dado. Para que a cidade tenha mais vitalidade, é preciso retomar os territórios. Pronto! Só que agora estamos ante um desafio mais complicado, porque parou o crescimento demográfico. O Brasil não cresce mais, o país todo, e o sistema urbano também não, que é 85% da população. E o Rio especialmente. O Rio está com 12 milhões e vai continuar assim.
BR: A média de nascimento é de um filho por família.
SM: Aí tem um problema mais complicado. Ainda que a população não cresça, e não crescerá, o número de domicílios vai aumentar mais do que a metade do que tem hoje. Hoje nós temos, na região metropolitana, 4 milhões, e nós vamos ter 6 milhões.
HBH: Por quê?
SM: Porque a família diminui de tamanho. E como a família diminui de tamanho, cada família é um domicílio. A população é de 12 milhões, e tem, em média, três pessoas por domicílio, são 4 milhões de domicílios. Ao final dos anos de 2030, nós vamos ser 12 milhões, se não diminuir, e vamos ter duas pessoas por domicílio. Então, em vez de 4 milhões, nós vamos ter 6 milhões. Se nós tivermos o mesmo modelo de ocupação do território que nós tivemos nesses últimos sessenta anos, que é expandir para onde não tem nada, nós vamos aumentar a miséria e reduzir mais a densidade, isso é um dado horrível. E tem um dado complementar péssimo também, que é, se a população é a mesma e se ela se desloca para a periferia, ela diminui nos lugares consolidados. Assim, os bairros consolidados, que têm qualidade, perdem população e, portanto, perdem vitalidade.
BR: O Centro, por exemplo?
SM: O Centro tem uma razão louca, que foi a proibição de construir casa e apartamento durante trinta anos. E esse desejo de ter cidades monofuncionais. Mas, agora, independente disso, o Centro vai continuar vazio, mas os bairros consolidados bons, se não houver uma reversão no modelo, o que é complexo, eles vão perder gente. Copacabana já teve 300 mil, hoje tem 150 mil. Ipanema perde, Leblon perde. As pessoas acham que é melhor ter menos gente, mas é pior. E não só é pior porque esse bairro perde vitalidade, mas porque aquele fenômeno que você falou antes vai se agravar, o recurso vai ser o mesmo ou menos. Para atender mais, mesmo que seja pouco, ele deixa de atender onde está atendendo hoje. A cidade toda perde. E o Rio de Janeiro, especialmente, fez uma política inédita, ninguém no mundo fez essa política, nem quando Nova York, nos anos 60, entrou em decadência. O que Nova York fez? Consolidou o centro.
HBH: Gentrificou tudo?
SM: Não gentrificou, não. Nova York construiu o World Trade Center. Em volta dele construiu o Financial Center. E aos poucos a cidade foi se recuperando. Paris também não gentrificou com o Haussmann.
HBH: Como não gentrificou?
SM: Porque aumentou a população. Não diminuiu, aumentou.
HBH: A Prefeitura incentivava a remodelação sem custos e botava a pessoa para fora.
SM: Individualmente, ocorre, mas, estatisticamente, não. Então, no caso do Haussmann, por exemplo, que dizem que gentrificou, Paris tinha um milhão de habitantes quando ele começou, e quando ele terminou, vinte anos depois, tinha 2 milhões. Tinha 800 mil pobres quando começou, em um milhão, e 1,2 milhão quando ele terminou, em 2 milhões. É claro que você está em um sistema em que você vende a sua casa por necessidade. Não vai conseguir algo equivalente naquele lugar ou próximo daquele lugar nas condições que você tinha. Vai para longe ou vai para o aluguel, não tem como repor aquilo. Mas, agora, o conjunto, a estatística, não diz isso. Enfim, nós estamos com essa questão urbana, que não é só no Rio de Janeiro, são todas as cidades brasileiras. E não são só as cidades brasileiras, o modelo é quase universal. É preciso haver uma mudança de paradigma, que só vai se dar com a conscientização sobre o problema, e não com a naturalização da desgraça.
HBH: A periferia está começando a ascender socialmente, já foi mais rápido e agora está desacelerado, mas a gente vê muitos na universidade. Essas pessoas vão para onde?
SM: Eu não sei se isso é assim mesmo, porque também aumentou muito a população na periferia. E tem estudos que mostram que, há duas gerações, os avós eram analfabetos, os filhos são alfabetizados e os netos já têm curso superior.
Bom, eu acredito que essa ascensão do neto na educação em relação ao avô – o Sennett mediu isso em Boston, naquele livro A corrosão do caráter, o [Peter] Collins também – não é um fator local, é um fator histórico.
HBH: Você pode falar um pouco mais sobre essa diferença?
SM: Isso é um fator histórico que o mundo acompanha. Ao você fazer a relação entre as coisas, não há progresso. Na casa da minha avó não tinha energia elétrica, na casa do meu pai teve e na minha tem internet. Estou fazendo uma hipótese. Se você perguntar para a minha avó se melhorou a vida. Claro, não tinha energia elétrica e agora tem. Mas todas as cidades passaram por isso e nós não passamos na dimensão que precisaríamos passar. Nesse sentido, nós estamos evoluindo menos do que o mundo evoluiu. A percepção pode melhorar individualmente, mas, no contexto, não.
BR: Esse exemplo da água que você deu é muito bom, a questão do saneamento. Quase metade da população não tem, o Brasil não tem saneamento.
SM: Isso é um absurdo. E se você vai para a Baixada, lá a água é absolutamente intermitente. Às vezes [o morador] passa duas semanas sem água, qualquer que seja a qualidade dela, não tem. E, do ponto de vista do desconforto, isso custa energia. Isso custa dinheiro, porque a água comprada em galão é mais cara do que a água encanada. O gás custa mais caro, porque a dominação territorial impõe um preço com sobrepreço. O aluguel custa mais caro. A venda do imóvel paga uma percentagem mais alta. Então, há todo um grau de perdas que a população pobre passa que está naturalizada para ela e está oculta para nós. Nós estamos absolutamente à margem disso.
HBH: Você diria que há um impacto forte da educação na cidade, no urbanismo? Uma política educacional melhoraria a cidade? Como?
SM: Sim, eu acho que sim. Seria um absurdo eu achar o contrário. Acho que a educação é essencialmente consciência. A educação faz ver as coisas de um modo diferente, dá para comparar as coisas, dá para ver as diferenças. Pressupõe-se que a educação seja para isso. É importante para a cidade, para a vida, para o país. Agora, o que eu falei antes, sobre a naturalização dessas dificuldades da periferia e essas dificuldades estarem ocultas para nós, na Zona Sul, nos bairros melhores, bem servidos, isso é um absurdo. E isso eu acho que a educação, tanto aqui quanto lá, tem que fazer a diferença.
BR: Essa falta de consciência aparece, inclusive, no momento das eleições, porque saneamento, projetos como esse de água, não dá voto.
SM: Eu acompanho, há uns vinte e tantos anos, mais ou menos, eleição por eleição. Nunca o tema da cidade entrou na pauta. Em nenhuma eleição, seja federal, estadual ou municipal. Nunca. Só entra educação, saúde e segurança. E fofocas entram muito também.
Agora, por exemplo, nós estamos em uma cidade como o Rio de Janeiro, que eu sempre considero que tem que ser vista em sua dimensão metropolitana, dos 12 milhões. Ela não tem, desde que acabou com a FUNDREM [Fundação para o Desenvolvimento da Região Metropolitana do Rio de Janeiro], no governo Moreira Franco, há trinta e tantos anos, nenhum sistema de planejamento. E no município do Rio de Janeiro, há muitos e muitos tempos, eles desconstruíram, também, o sistema de planejamento. Se você pegar as regiões metropolitanas brasileiras, uma ou outra tem alguma coisa incipiente. Essa noção de planejar está abandonada. Você vai para as grandes cidades do mundo e isso é algo forte.
BR: A mobilidade urbana também. A rede de trem é basicamente a mesma desde sempre.
SM: De tudo, vou mostrar para vocês no mapa. Aqui está o centro da cidade, daqui saem três linhas de trem. A primeira é a Leopoldina, que vai para a Baixada, em direção a Caxias. A outra, que é a Deodoro, que vai até o final, até Santa Cruz. E, depois, a intermediária, que é auxiliar, e que vai em direção a Nova Iguaçu. Essas três linhas de trem estão sucateadas. Elas têm uma possibilidade de se transformarem em metrô por um preço baixíssimo. Você vai ver as estações como estão, não têm o menor conforto, não têm a menor possibilidade. Elas estão lá desde os anos não sei quanto e continuam. Agora, quando foi feita a Olimpíada, em Deodoro tinha um foco de Olimpíada, depois tinha no Engenhão, no Maracanã e no Sambódromo. Isso tudo somado dava mais público do que o que construíram na Barra. O que fizeram? Só melhoraram as estações diretamente vinculadas a esses quatro lugares. As outras 24 estações ficaram do jeito que estavam. No entanto, se você transforma essas linhas por um preço vil em metrô, você passa de 500 mil passageiros por dia para, pode-se chegar, 2,5 milhões. Dois milhões e meio, [ou seja,] você atende a 70% da região metropolitana. E vou dar um preço, só para ser generoso com os que tomaram a decisão, isso poderia ser resolvido por menos de 3 bilhões de reais. Eles gastaram 10 bilhões para fazer, daqui para a Barra, o metrô linha 4. E ainda têm orgulho de dizer que é a maior linha do mundo. Um metrô de linha única, que não tem rede. Que metrô é esse?
Essa falta de planejamento faz com que o governador do estado, na mesa dele, decida com o empreiteiro por onde vai passar o metrô. Foi o que foi feito e declarado, tanto pelo Sérgio Cabral quanto pelo dono do metrô.
SM: Não abriu a da Gávea porque já não interessava mais, já tinha feito o serviço que precisava fazer, que era botar o túnel, que é a coisa mais barata que tem. Dá maior rendimento e é mais fácil de fazer. Então não é a falta de dinheiro, mas não há um planejamento que passe de um governo para o outro.
HBH: Sérgio, e sobre o encontro? Para onde foi na cidade? Como se recupera a sociabilidade?
SM: Ela mudou muito. Ela tem vários outros instrumentos que não havia antes. A parte tecnológica, que eu não tenho dúvida que é importante. As informações que vêm por outros canais, como televisão, rádio, e que na cidade convencional original não tinha. Isso tudo acresce, enriquece, mas, ao mesmo tempo, ela é muito canalizada. Tanto que esses sistemas de rede social, como o WhatsApp, dão uma chance enorme para a briga, porque quando não se está frente a frente não há entonação. Então, de certo modo, é um instrumento de sociabilidade e tem [os seus problemas], não estou culpando-o.
HBH: O que está acontecendo nesses espaços como praça Mauá? Esses lugares que seriam as praças, lugares do encontro. Essa função foi recuperada?
SM: A praça Mauá melhorou extraordinariamente. Nela, com certeza, embora a praça Mauá seja uma relação em que a pessoa vai lá para ver o museu e coisas assim, mas, de qualquer modo, é muito mais enriquecedora do que era antes. Isso eu não tenho dúvida. E vai melhorar.
HBH: E o Porto Maravilha?
SM: O Porto também. Acho que o grande legado foi derrubar aquela perimetral.
HBH: E os projetos de edifícios ali? De residências?
SM: É um projeto de quinta categoria. Um projeto urbanístico, no século XXI, que é absolutamente convencional, repete o que estava lá, perdeu uma oportunidade gigantesca.
HBH: Como deveria ser?
BR: Também tem o fator Odebrecht, que inclusive criou a sede ali, um prédio que hoje está vazio.
SM: O fator Odebrecht é o fator corrupção. O Porto deveria ter um desenho urbanístico contemporâneo, o que não teve.
HBH: Como é o desenho contemporâneo?
SM: Primeiro, não é monofuncional, tem que misturar funções. Depois, sob o ponto de vista do espaço, também, porque não se pode criar grandes edificações e não dar uma relação conveniente com o espaço público vizinho. Há inúmeros exemplos mundo afora. Aqui no Rio mesmo, quando houve a Olimpíada, nós convencemos o prefeito, que na época era o Eduardo Paes, a não levar tudo para a Barra, fazer a vila de mídia no Porto. E fizemos um concurso [para selecionar terrenos] de 17 hectares, [encontramos] mais ou menos 110 locais capazes de ser ocupados. Dezessete hectares seriam para esse projeto, que envolveria 5 mil unidades habitacionais, mais escritórios, hotel, centro de convenções. Foi feito o concurso e foi uma maravilha de resultado, foram quatro vencedores. Hoje a qualidade urbanística ficou evidente, era uma coisa muito superior, [mas] aquilo mixou, não foi para a frente, porque a especulação imobiliária para a Barra é absolutamente desenfreada.
Em segundo lugar, para hipervalorizar o que eles queriam fazer, eles colocaram edifícios de cinquenta pavimentos, quinze edifícios de cinquenta pavimentos. Naquela ocasião não havia nenhum edifício de cinquenta pavimentos no Brasil. Hoje tem em Camboriú, mas não tinha. E eu falei para ele, tive uma reunião com ele e com o secretário, eu disse: “Olha, prefeito, eu não sou contra edifícios de cinquenta pavimentos, cem, duzentos, não estou falando sobre isso, mas acho que é temerário, não havendo nenhum edifício de cinquenta pavimentos, projetar cinquenta, e esses cinquenta serem a base desse desenvolvimento.” Aí o secretário de urbanismo disse: “São cinquenta pavimentos, mas não é obrigatório ter, pode ficar menos.” Então, você acha que você vai vender e a pessoa vai construir menos? Conseguiu vender o projeto todo para a Caixa Econômica. E a Caixa Econômica, então, criou o tal do Cepac [Certificado do Potencial Adicional de Construção], e, com ele, a Caixa Econômica ficou com um mico na mão, que hoje é um gorila, porque não tem economia urbana para fazer aquilo ir para cima. O que teria de habitação não paga o preço dos Cepacs. Então, ou a Caixa Econômica vai ter que chegar em um momento de reconhecer o prejuízo ou vai ficar isso indefinidamente. E se, por acaso, o [projeto] for construído, não vai acrescentar nada, porque vai continuar um modelo monofuncionalista.
BR: E o gabarito foi alterado mesmo?
SM: Não, o Rio de Janeiro tem uma peculiaridade que ainda prevalece em alguns bairros, que é o continuum construído, seja de quatro pavimentos, como era em Ipanema, seja de oito a doze, como é em Copacabana, ou no Centro, naquela zona do Agache. E isso determina um tipo de cidade. Nos anos 60, para depois, se achou que isso era muito impositivo, muito autoritário. E que deveria ser responsabilidade de cada produtor de edifício ter o melhor edifício possível. A legislação praticamente aboliu esse continuum construído e deu autonomia para o lote. Isto é, o lote mede 20×50, então se afasta aqui e lá e constrói o edifício solto. Esse edifício solto é de muito interesse para a especulação imobiliária, e São Paulo começou a ser o manancial disso. Esse modelo urbanístico paulista é hoje hegemônico no Brasil. Nas cidades brasileiras, se sobrevoarmos elas, podemos ver um edifício alto que não tem nada a ver com o entorno. E até que ponto isso tem a ver com a política brasileira? Até que ponto o continuum construído e a definição do espaço público como orientador das construções têm a ver com um certo grau de interação com a política? Ou, do outro lado, como o espaço público, sem ser definidor daquela condição, mas sendo subalterno à iniciativa privada do edifício, tem a ver com a política do toma lá dá cá, com a política do seja o que bem quiser, com a política do indivíduo? Essas coisas não são soltas. A arte, a cultura, a arquitetura, a política, a economia. Elas estão no seu tempo. Eu acho que o Rio de Janeiro perdeu essa condição. E não foi vantajoso para o país.
BR: Eu gostaria que você retomasse essa questão referente ao espírito carioca, que você já falou que pode renascer.
SM: O espírito carioca é isso. Ele é construído no espaço público. Aí também tem um fator de muito interesse que é que, até o final do século XIX, o mar era um lugar chato, um lugar perigoso, cheio de doença, o lugar do lixo. As cidades em geral eram construídas de costas para a água. E o Rio também. Quando o mar passou a ser um lugar de prazer, que a cidade se volta para ele, surgiram aqueles resorts na França, na Itália. No caso do Rio de Janeiro, com Pereira Passos, ele constrói a relação viária entre o Centro e a Zona Sul, que estava em expansão, mas ele não constrói essa relação viária, que seria o razoável, aproveitando os caminhos existentes e alargando-os. A rua do Catete, Marquês de Abrantes, entre outras. Ele constrói a via Beira-Mar, como a constrói definindo a praia como local público e livre, de acesso geral. E Copacabana, que nos primeiros momentos não tinha isso, passou a ter. Então, ao criar esse sistema, ele criou um espaço público de interação totalmente livre, que é a praia. Um lugar onde as pessoas se despem e seus símbolos originais se perdem. Assim, cria-se uma subjetividade também especial, cria-se um espírito especial, que ainda tem força e que foi capaz de fazer com que as praias brasileiras fossem, por lei, públicas. Nós podemos ter praias não públicas, mas é uma contravenção. O Rio é a metrópole mais importante à beira-mar, o ano todo disponível, e a praia é um lugar democrático, não tenho dúvida. Ela hoje está muito loteada, mas continua sendo um lugar democrático. Isso constrói um espírito diferente.
Outra questão, também, para o Rio de Janeiro, e Pereira Passos tem a ver, é que as cidades constroem as suas identidades a partir de situações [que acontecem] aos poucos. Se a gente identificar Paris hoje, nós vamos identificar pela Torre Eiffel. Paris tem 2 mil anos, a Torre Eiffel tem cento e poucos. Se pegar Nova York, a imagem ambiental dela é do século XX, que são os arranha-céus. O Rio de Janeiro tem a identidade coletiva determinada pelos grandes elementos geográficos ao longo de toda a história. E as construções se associam a esse fenômeno geográfico e entram em simbiose, sobretudo depois que é construída a Beira-Mar, porque a relação passa a ser muito mais clara entre o que está de pano de fundo e a cidade que se coloca junto ao pano de fundo.
A identidade carioca é também uma situação muito peculiar, porque, da Zona Norte toda até a Zona Sul, você é pontuado por referências que são permanentes, que não mudaram ao longo de cinco séculos. E isso se passa de uma geração para a outra de um modo efetivo. O espírito carioca tem peculiaridades que são difíceis de encontrar em algum outro lugar, porque se somam a esses elementos permanentes, que constroem, ao mesmo tempo, a imagética da cidade e da metrópole, espaços que têm uma qualidade ímpar. Não é só a rua, não é só a praça Mauá, é o espaço livre da praia. Isso a gente valoriza pouco, de certo modo. A gente naturalizou.
* Beatriz Resende e Heloisa Buarque de Hollanda são editoras da Revista Z Cultural.
Tendo por força geradora uma frase de Bertold Brecht, Desta terra nada vai sobrar, a não ser o vento que sopra sobre ela (2018, Global, 372 pgs.) é o décimo primeiro romance publicado por Ignacio Loyola Brandão – escritor longevo cujo fôlego de produção é admirável, tendo ao todo, entre escritos ficcionais e não-ficcionais, 46 livros publicados. Ficção científica-política, ao mesmo tempo, futurista e distópica, Desta terra nada vai sobrar pode ser referida como uma ópera-bufa sobre toda e qualquer utopia de nação como promessa de felicidade.
Desde tempos modernos, a crítica utópica de nação tem sido projetada por certa ficção fantástica produzida no Brasil de modo sui generis. A este respeito, o poeta Murilo Mendes chegou a certa vez afirmar que o Brasil seria mais surrealista que todos os surrealistas juntos. Vale também lembrar o livro Quarup (1967) de Antonio Callado que retrata o centro geodésico da nação brasileira como um formigueiro. Por sua vez, o naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire, ao descrever o país numa crônica da primeira metade do século XIX, chegou a afirmar. “Havia um país chamado Brasil, mas absolutamente não havia brasileiros”.
Igualmente associável a certo universo do fantástico, esta ficção brandoniana narra o cenário de um país cuja existência não mais é capaz de impor limites entre a realidade e a invenção. Ambientada nas últimas décadas do século XXI, a peça ficcional Desta terra tem ecos de certa trilogia da distopia presente no romance moderno através de: Admirável mundo novo de Aldous Huxley (1932), 1984 (1949) de George Orwell e Fahreineit 451 (1953) de Rad Bradbury. De outra forma análoga, Desta terra nada vai sobrar também pode ser lida como o fim da trilogia distópica de Ignacio Loyola Brandão sobre o Brasil, que se inicia com Zero (1975), passa por Não verás país nenhum (1981), até chegar a este livro de 2018.
Narrada num futuro em que nenhuma utopia mais faz sentido, Desta terra nada vai sobrar, a não ser o vento que sopra sobre ela é do mesmo modo filha de outra trilogia distópica referente aos seguintes filmes: Roma (1972) de Federico Fellini, Blade Runner (1982) de Ridley Scott e Brazil (1985) de Terry Gilliam. Com satélites e câmeras por todos os lados, a inventiva narrativa de Desta terra é produzida em primeira e terceira pessoas, tendo por cenário um mundo super vigiado de tecnologias virtuais. Num país periférico de presidentes-fantasmas, painéis eletrônicos sobre ruínas de edifícios despejam excessos de informações por paisagens em esgotamento: são máfias de paparazzos e papa-defuntos, musas de sorrisos plastificados e cafés descafeinados, falsificadores de água e estocadores de vento, postos de inconveniência e uma rodoviária kafkiana de nome “Gregoriano Samça”, padres voadores e cabeças erguidas em poses prontas a serem invejadas e fotografadas. Sobram sonhos quebrados, pedaços de utopias espalhadas e lamentos urbanos a serem transmitidos por nebulosas de telas prismáticas.
Originando-se pela epígrafe euclidiana de “Novas fases da luta” de Os sertões (1902) que discorre sobre certa normalização da anormalização, passando por Brasília (“uma tigela cheia de escorpiões”) até as montanhas de palavras fiscalizadas e exauridas, o Brasil desta supracitada peça ficcional é uma terra tão inexata quanto a palavra de um político. Mas, de que Brasil fala Ignacio? Desencantado, terceirizado e cronicamente inviável, o Brasil de Ignacio Loyola é a fotografia abismal de um território flutuante e itinerante de antagonismos beligerantes; um “país dos eternos descontentes”, “um país que não se move, medieval”. Num universo pós-político de uma nação cuja extinção do ensino público é iminente, o Brasil de Desta terra nada vai sobrar pode ser lido como a própria exaustão das grandes narrativas de país. A partir de um livro como este, a única forma possível de qualquer representação nacional passa a ser tão somente pela via do fragmentário e do entrópico.
Com quase nada mais presente a não ser o vento que sopra sobre ela, a terra brasileira de Desta terra é descrita como um território semiarruinado de projetos, uma pátria subtraída até mesmo das manifestações populares. Muros eletrificados e torres de vigia resguardam a sua paz. Por sorte ou por propina, seus golpes institucionais e consecutivos impeachments (palavra já naturalizada e epistolar) se sucedem por bastidores de patrulhas inquisitórias, exorcismos televisivos, queimas totais de espaços superfaturados e novas dinâmicas liberais de cóleras comerciais. Domesticados por marqueteiros e anestesiados por décadas de cadáveres sobre cadáveres, os brasileiros de Desta terra são narrados sob o ponto de vista de um narrador em terceira pessoa e, simultaneamente, por Felipe (protagonista da trama romanesca que envolve a busca jamais satisfeita pela amada/amante Clara) como seres monocórdicos entretidos por meias-verdades de farsas históricas e políticas.
Contextualizada numa nova era de extremos, por entre muros, placas, banners, posters, letreiros e outdoors de um sonho de nação a todo momento em liquidação, o Brasil de Desta terra nada vai sobrar, a não ser o vento que sopra sobre ela só é apreensível fortuitamente sob o signo do mistério dos mistérios: – “O Brasil foi catalogado entre os grandes enigmas de todos os tempos. Um desafio. Mistérios como a mente inacessível dos juízes; a existência da Atlântida; a realidade do sorriso da Mona Lisa; a vida depois da morte; as vozes gravadas no além; as duas notas dissonantes jamais percebidas na Sinfonia número 4 – Opus 60, de Beethoven; o cemitério das estrelas cadentes. (…) Consultorias históricas de renome internacional, aliadas a brasileiros de bom senso, contrataram auditores analistas, mas eles embarcaram de volta, exaustos e perplexos, confessando que não há conclusão. Desolados, afirmaram que, mesmo usando modernos métodos e toda a tecnologia de ponta, jamais definiram que tipo de povo o brasileiro é, como conseguiu formar uma nação, o que esse povo quer, como age e vive. São desconhecidos seus projetos e sonhos e por que mantém tanto humor, picardia, talento repentista, ironia e aceita tudo. Principalmente por que e do que vive. Uma coisa é segura, todos vivem à espera do que vai acontecer, sabendo que nunca acontecerá.”
* Augusto Guimaraens Cavalcanti é escritor e pós-doutorando pelo PACC\Letras da UFRJ, tendo publicado, entre outros: Poemas para se ler ao meio-dia (2006, 7Letras), Fui à Bulgária procurar por Campos de Carvalho (2012, 7Letras) e Máquina de fazer mar (2016, 7Letras).
A Revista Z Cultural propõe, nesta edição especial, uma reflexão sobre múltiplos aspectos do cativeiro. A partir do século XVI até a primeira metade oitocentista, milhares de africanos foram arrebatados violentamente de suas famílias e terras, desembarcados no litoral brasileiro e escravizados. Homens e mulheres, de diferentes etnias e territórios africanos, tiveram que se reconstruir e se reinventar diante da truculência do sistema escravocrata. Diferentes estudos e abordagens destacam como os cativos e seus descendentes brasileiros ressignificaram suas trajetórias de vida sob a escravidão e no pós-abolição. Desse modo, iniciamos com a entrevista de Lilia Schwarcz e Flavio dos Santos Gomes que organizaram o Dicionário da escravidão e liberdade: 50 textos críticos.
Apresentamos artigos inéditos que discutem, por meio de diferentes aspectos, as vivências dos escravizados. O texto de Marcus J. M. de Carvalho é uma análise inovadora sobre um aspecto crucial do sistema escravocrata: o tráfico atlântico. O estudo destaca como, anos mais tarde, os cativos desembarcados ilegalmente evocaram a lei de 1831 para pleitearem suas liberdades.
Lucimar Felisberto dos Santos evidencia, em texto embasado em análise documental, o ativismo de mulheres negras escravizadas e o feminismo negro, no Município Neutro, entre 1871 e 1888. Marcelo Mac Cord, através da observação dos Censos de 1872 e 1890 e outras fontes documentais, analisa o recorte étnico-social que perpassou a escolarização básica pernambucana.
Luiz Alberto Couceiro investiga – por intermédio do processo criminal contra a Escola de Feitiçaria Coroa da Salvação – o contexto, a ação e os atores envolvidos em processo de acusação de feitiçaria, em 1870, em Cunha, São Paulo. A questão da feitiçaria também é analisada por Valéria Costa, que revela como, na Recife oitocentista, as ações de livres e libertos e a prática de suas religiosidades foram mecanismos de resistência ao cativeiro. Marc Hertzman, com Fake news, fake history?, traz a discussão, sob perspectiva bastante atual, dos mitos construídos sobre Zumbi dos Palmares.
O conjunto de textos segue com as análise de José Ricardo da Costa, que investiga a influência mítica na narrativa de Antônio Olinto e problematiza a reterritorialização de uma família que tenta se estabelecer em solo africano após a abolição da escravatura no Brasil. Marcelo da Rocha Silveira investiga a presença negra na Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro, então centro de atividades artísticas do Império, e destaca as dificuldades de afirmação do artista negro na instituição. O texto de Rosilma Diniz Araújo Bühler objetiva estabelecer interlocuções com base nas inquietações levantadas por intelectuais negras e negros em seus escritos, no tocante às diversas expressões identitárias.
Lucio Valentim, em seu estudo, busca os resquícios de escravidão em cenas do cotidiano: um comercial de perfume, um comercial de Natal, um patrão que dá bananas aos empregados no Dia da Consciência Negra. Vincenzo Cammarata traz a discussão sobre o papel da língua na definição das desigualdades sociais e raciais, dentro e fora do ambiente escolar de Luanda. Vanessa Maria Poteriko da Silva aborda a relação entre a ideologia escravocrata de depreciação do negro e a trajetória dos negros que nasceram pós-abolição, por meio dos relatos de Carolina Maria de Jesus em seu livro Diário de Bitita (1986). A reflexão sobre a questão do cabelo crespo, para negros e negras, como um legado histórico e político é feita por Anita Pequeno. Concluímos o dossiê com o estudo comparativo de Stelamaris Coser sobre a escravidão no Brasil a partir da escrita imaginativa de Gayl Jones (1949- ), que dialoga com a historiografia em abordagem interamericana e diaspórica.
Assim, consideramos que os estudos que compõem o dossiê Escravidão: múltiplos aspectos e reflexões, com suas diferentes perspectivas e dialogando com o documento, apresentam o cotidiano e as ações daqueles que vivenciaram a escravidão e são significativos para a apreensão da história e cultura nacional.
Lilia Schwarcz e Flávio dos Santos Gomes, juntos, organizaram o Dicionário da escravidão e liberdade. O dicionário reúne cinquenta verbetes, escritos por vários pesquisadores, com o objetivo de mostrar um “panorama abrangente, temporal e geograficamente falando” (Schwarcz; Gomes, 2018, p. 41), em que o “mundo do cativeiro” e a ação dos escravizados são evidenciados. É, portanto, com muita satisfação que realizamos esta entrevista e desejamos que sua leitura propicie reflexões.
Lilia é professora titular do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo (2005) e professora visitante em Princeton (desde 2011), editora da Companhia das Letras, membro do conselho da Revista Etnográfica (Lisboa), da revista Penélope (Lisboa) e da Revista Cadernos de Pesquisa da Fundação Carlos Chagas. Foi professora visitante e pesquisadora nas universidades de Leiden, Oxford, Brown, Columbia (como Tinker Professor), École des Hautes Etudes en Science Sociales e, em 2010, recebeu a comenda da Ordem Nacional do Mérito Científico Nacional. Lilia é autora, entre outros, de Retrato em branco e negro (1987, vencedor dos prêmios APCA e FNL), O espetáculo das raças (Companhia das Letras, 1993 e Farrar Strauss & Giroux, 1999, prêmio FNL) e Lima Barreto, triste visionário (São Paulo, Companhia das Letras, 2017, Prêmio APCA).
Flávio dos Santos Gomes é professor permanente no programa de pós-graduação em História Comparada, no Instituto de História da UFRJ, e professor colaborador do programa de pós-graduação em História da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Em 2009 obteve a John Simon Guggenheim Foundation Fellowship e, em 2014 (junho-julho), foi pesquisador visitante da New York University (NYU). Desenvolve pesquisas em história comparada, cultura material, escravidão, história da educação e instituições escolares para escravizados e libertos no Brasil Oitocentista. Atua no Laboratório de Estudos de História Atlântica das sociedades coloniais e pós-coloniais (LEHA). Autor de, entre outros, A hidra e os pântanos: mocambos, quilombos e comunidade de fugitivos no Brasil (séculos XVII-XIX) (São Paulo, Editora UNESP/Editora Polis, 2005) e Mocambos e quilombos: uma história do campesinato negro no Brasil (São Paulo: Ed. Claro Enigma, 2015).
Créditos: Renato Parada
Fonte: acervo pessoal de Flávio Gomes
Nilma Accioli e Raffaella Fernandez: Na apresentação do Dicionário da escravidão e liberdade, vocês destacam que “completam-se 130 anos da extinção da escravatura no Brasil. É muito tempo, mas as marcas do passado escravista ainda atormentam o país”. Quais são essas marcas do cativeiro e quais as perspectivas para superá-las?
Lilia Schwarcz: São muitas as marcas no presente. Estamos matando uma geração de jovens negros nas periferias do país e não nos damos conta. Os números e taxas são de guerra civil. Também mantemos um racismo estrutural e institucional que se manifesta como uma linguagem perversa na educação, na saúde, no lazer, no transporte, nas taxas de natalidade e mortalidade. As perspectivas do momento presente não são nada boas. Pois a saída para vivermos uma democracia plena seria apostar em modelos mais inclusivos, plurais e igualitários de cidadania no Brasil.
Flávio dos Santos Gomes: É interessante pensar como a escravidão foi ontem! E cronologicamente falando. Qualquer pessoa que nasceu na primeira metade do ano de 1871 (antes da Lei de 28 de setembro, a chamada Lei do Ventre Livre) foi escravo – aos 17 anos – até 1888. E se esta pessoa morreu com 90 anos (portanto em 1961) ela pode ter sido mãe (certamente avó foi) de quem tem hoje mais de 85. Significa que você tem ainda hoje uma memória da escravidão produzida pelos filhos mais velhos e netos dos escravizados e das primeiras gerações dos libertos pós 13 de maio. Para além da dimensão cronológica temos permanências e continuidades. O que mais tem de impacto é o racismo estrutural e estruturante da (e na) sociedade brasileira contemporânea. Os negros sistematicamente excluídos ocupam um “lugar social”: aquele da subordinação, da desigualdade, da cidadania incompleta etc. Talvez este seja o silêncio (suposto afastamento temporal) mais estrondoso da sociedade brasileira depois de 131 anos da extinção da escravidão (1888-2019). O Brasil não foi só o último país a abolir a escravidão nas Américas. Sobretudo, ele atualmente tem mais de 54% de população negra (pardos e pretos contabilizados pelo IBGE). Uma população que ocupa os piores índices de desigualdades e exclusão. Números assustadores. Um Brasil só de brancos talvez não aumentasse muito os seus índices de desenvolvimento humano (IDH) mas um Brasil só negro cairia muitas posições. As políticas públicas dos últimos dez anos – especialmente cotas para as universidades públicas, para os concursos públicos e melhoria no ensino – têm sinalizado possibilidades de mudanças neste cenário secular de exclusão racial, mas com passos ainda lentos; tamanha a desigualdade histórica! E não falamos somente de algo originado somente pelos mais de 370 anos de escravidão (se fala da montagem dos primeiros engenhos e uso de escravizados indígenas e africanos desde 1512), mas também da desigualdade reproduzida na pós-emancipação com a falta de políticas públicas (ou legislação coercitiva) nas áreas rurais e urbanas, repressão às populações negras, ações policiais e mesmo com argumentos raciais cientificistas de intelectuais e pensadores. Com a abolição e o fim de uma subordinação econômica e jurídica (a propriedade sobre o escravizado) as hierarquias e desigualdades são reforçadas por desqualificações sociais e supostamente científicas, no caso a raça.
NA e RF: Ainda na apresentação do Dicionário, é enfatizada a importância da recente produção acadêmica na construção de mudanças. De que maneira as novas abordagens históricas afetariam os currículos escolares consolidando a ideia de historicidade, ou seja, permitindo a construção de um pensamento de que a realidade pode ser modificada?
Lilia Schwarcz: Em primeiro lugar, as pesquisas vêm mostrando como escravizados e escravizadas eram, sim, vítimas desse sistema, mas não só. Sempre agenciaram seu lugar e condição. Em segundo, a nova historiografia tem mostrado como o sistema escravocrata brasileiro foi não só muito duro, mas também, e como resposta, aquele que gerou mais reação por meio de revoltas, insurreições, assassinatos, fugas, abortos e envenenamentos. Por fim, as investigações vêm mostrando como, junto com os africanos e africanas, vieram muitos saberes expressos em forma de cosmologias, conhecimentos técnicos, culinária, arte e formas de sociabilidade.
Flávio dos Santos Gomes: A historiografia brasileira sobre a temática é reconhecida internacionalmente. Deste modo foi difícil optar por apenas 50 verbetes, mas fácil encontrar obras, pesquisadores, estudos e investigações de quase uma centena de intelectuais que têm se debruçado mais contemporaneamente sobre escravidão e pós-abolição. Esta inflexão historiográfica ganha força – se quisermos datá-la – na segunda metade dos anos 1980. Também período da redemocratização, da Constituinte de 1988 e fundamentalmente dos debates dos movimentos sociais de luta contra o racismo no Brasil. Ainda precisamos reconhecer – enfatizar em escritos e manuais – a importância de intelectuais e militantes negros das décadas de 1970 e 1980 nestas mudanças e inflexões historiográficas. Não mais se admitia que se falasse de escravidão sem um repensar sobre as perspectivas das sociedades africanas, do impacto do tráfico, das linguagens sociais e ideológicas do regime escravista, das formas de trabalho e, sobretudo da violência da escravidão na produção de uma sociedade hierarquizada e estratificada em termos raciais. Assim como qualquer outro tema histórico, as questões do presente foram (e continuam) fundamentais para as inflexões historiográficas dos últimos 30 anos. Além disso, neste período surgem gerações de historiadores negros e negras com pesquisas consolidadas e obras sobre o tema, com grupo de estudos, formação de alunos e debates.
NA e RF: Uma das dificuldades para a pesquisa é o acesso à documentação? Como isso afeta o estudo sobre a escravidão e o pós-abolição?
Flávio dos Santos Gomes: Eu particularmente discordo da idéia de “dificuldade com a documentação”. A dificuldade só existe em termos de acessar arquivos não organizados (especialmente aqueles do judiciário) e não uma dificuldade histórica de localizar experiências e personagens. Na verdade, uma vertente historiográfica mais antiga ainda se baseava na falsa idéia da impossibilidade de se pesquisar a escravidão devido à suposta queima de documentos por Rui Barbosa depois da Abolição. De fato, Rui Barbosa, ministro do regime republicano decretou a “queima de documentos” (falava em “apagar a mancha”) da escravidão num explícito aviso aos fazendeiros e políticos que falavam em indenização com a extinção da escravidão. Significaria um símbolo para distanciar a escravidão, a experiência dos escravizados e as formatações econômicas envolventes. Com isso a idéia da escravidão – assim como a monarquia – era associada ao atraso, algo obsoleto em comparação a República, progresso, século XX. O que uma renovada historiografia tem feito não é somente analisar o pós-emancipação, mas incluir esta dimensão temporal, política, social e ideológica na concepção de história do Brasil: história do trabalho, história das cidades, história agrária, história do pensamento social, história cultural e outras. O Brasil entre 1890 e 1940 estava vivendo uma sociedade pós-colonial envolvida com o fim do trabalho escravo e os desdobramentos disso para vários setores dos mundos do trabalho, da cultura e das ideologias. Na verdade, o que se está fazendo atualmente é voltar com a temática da pós-emancipação para repensar a história do Brasil, ou como ela foi pensada. As experiências da pós-abolição foram banidas da história do Brasil
NA e RF: Tumbeiros, senzalas, quilombos e “casas de dar fortuna” eram também espaços de resistência cultural?
Flávio dos Santos Gomes: Penso na possibilidade de organizar – analiticamente falando – tais espaços como territórios. Devemos ter cuidado com as armadilhas da narrativa fácil do heroísmo esvaziado ou do romantismo denúncia. O que menciono sempre em palestras e para os meus alunos em cursos de graduação e pós é a dimensão temporal e a dimensão espacial para pensar a escravidão no Brasil. Mundos rurais do café, açúcar, mas também do arroz, do algodão, do fumo, do cacau, da mandioca e da produção de alimentos devem ser repensados na perspectiva de mostrar complexidades, naturezas diversas, elites, paisagens econômicas e mesmo étnicas dos escravizados e libertos. As cidades são bons exemplos. A história urbana no Brasil é a história da escravidão e do pós-emancipação. As grandes cidades foram repensadas e fundamentalmente “organizadas” enquanto espaços e territórios africanizados, crioulizados e formas de pensamento e coerção de senhores, poder público, higienistas e depois arquitetos. Há dimensões de religiosidades – e também formas rituais de edificações e coletividades urbanas – que ainda precisam ser estudadas. Há dissertações e teses inéditas explorando isso. Podemos sim falar de “resistência cultural”, mas com o cuidado de não esvaziar os sentidos sociais, políticos e mesmo econômicos. Há estudos que falam de segregação espacial, territórios e formas de alimentação e consumo organizando espaços urbanos a partir da escravidão, dos africanos e também dos libertos.
NA e RF: Como você analisa o papel dos negros no processo abolicionista?
Flávio dos Santos Gomes: Os avanços das pesquisas históricas têm demonstrado um movimento em torno da Abolição – aliás, se usava a palavra emancipação ou o debate sobre o “Elemento Servil” – desde a década de 1860, porém usamos movimento abolicionista para a última década da escravidão, anos 1880. Vários estudos têm recuperado movimentos complexos mobilizando vários setores sociais, passando de jornalistas a associações operárias e carnavalescas. Com isso o protagonismo de setores negros – intelectuais e jornalistas negras e negros – têm aparecido. Mas ainda precisamos saber mais sobre as áreas rurais, pois os estudos sobre emancipação/abolicionismo acabaram privilegiando as cidades e as fontes dos jornais/periódicos abolicionistas. E as áreas rurais? Para o Recôncavo da Bahia há referências sobre a constituição de bandas de músicas por parte de libertos e setores letrados negros. Enfim, é possível falar num “abolicionismo negro” para ressaltar tais protagonismos e ideias para além das abordagens que enfatizam somente as dimensões parlamentares e brancas (pensadores e políticos) do debate e mobilização política em torno do fim da escravidão.
NA e RF: O Rio de Janeiro era uma “cidade negra”? De que maneira, no pós-abolição, essa situação foi determinante na história da cidade?
Flávio dos Santos Gomes: Sim, o Rio era uma “cidade negra”, a que mais concentrava africanos num espaço atlântico e fora da África no século XIX. O termo “cidade negra” foi cunhado analiticamente por Sidney Chalhoub, mas depois redimensionado por várias pesquisas. Investigações têm mostrado outros espaços semelhantes espalhados em diversas partes do Brasil. Exemplo: sabemos bastante hoje sobre Porto Alegre e suas dimensões urbanas, escravistas e africanas – força dos africanos ocidentais – no século XIX, mas ainda sabemos pouco sobre São Luis. Rio de Janeiro, Salvador, Recife, Porto Alegre e São Luís eram importantes “cidades negras” do Brasil oitocentista. Eu destacaria o papel dos forros, pois Brasil e Cuba foram países escravistas oitocentistas com incríveis percentuais de negros livres (libertos ou filhos de libertos) concentrados em áreas escravistas urbanas. Isso chama atenção para outra pauta dos estudos emergentes: a possibilidade de reescravização, tal a força da escravidão em todas as áreas e termos daquela sociedade.
NA e RF: De que maneira as obras de autores negros e pardos como, por exemplo, Maria Firmina dos Reis (1822- 1917), Machado de Assis (1839-1908), Cruz e Sousa (1861-1898) e Lima Barreto (1881-1922) podem ser analisadas no contexto do Brasil escravista?
Lilia Schwarcz: São autores muito distintos mas que, em comum, trataram do sistema escravocrata. Literatura não é mero reflexo. Ou seja, não é apenas consequência ou corolário de um contexto. Na verdade, ela é pura reflexibilidade uma vez que ajuda a produzir o momento que pretende apenas descrever. Foi assim com Lima Barreto que radiografou um Brasil mais amplo, que incluía os subúrbios e a estrada de trem. Numa época em que não se falava de racismo, ele denunciava a Nova República e seu descaso para com as populações recém libertas. Machado, como funcionário público, sempre deu ganho de causa para os escravizados e escreveu contos maravilhosos como “Pai contra mãe” em que faz uma alegoria dura do Brasil escravocrata “em que nem todos sobrevivem”. Luiz Gama e Cruz e Souza denunciavam o sistema, assim como Firmina dos Reis, cuja descoberta recente diz muito sobre o silêncio que paira, ainda hoje, sobre esses grupos nacionais que, segundo o último censo, correspondem a 55% da nossa população.
NA e RF: No Dicionário da Escravidão e Liberdade você analisa teorias raciais e destaca que “também no Brasil raça foi amiúde um conceito ‘desolador’”. Por quê?
Lilia Schwarcz: No final do XIX, diante da eminente libertação dos escravos, intelectuais brasileiros criaram outras formas de discriminação, não mais pautadas na história pregressa, mas antes numa suposta cientificidade. Esse foi um modelo de pensamento, em voga até os anos 1930, que produziu muitos estereótipos ainda vigentes (e totalmente equivocados) sobre as populações negras. Raça foi e é um marcador forte de diferenças e continua a produzir várias formas de discriminação no país.
NA e RF: Como rediscutir a escravidão em tempos de polêmicas que envolvem o “lugar de falar”?
Lilia Schwarcz: Penso que há um protagonismo na questão que deve ser exercido pelos próprios ativismos negros. Também acredito que o ativismo teve e tem um papel central no sentido de propor agendas e questões para a academia.
NA e RF: Os estudos destacam o quanto foi tardia a Abolição da Escravatura no Brasil? Que reflexão você propõe sobre esta questão?
Flávio dos Santos Gomes: Acho que tem duas questões aí! O fato de ser último mostra a “força da escravidão” na sociedade brasileira – a linguagem, conforme tem analisado Lilia Schwarz – na medida em que as elites não abriram mão da escravidão, o tal privilégio da sujeição. Outra coisa é enfatizar que embora ter sido último, o fim da escravidão não foi aqui algo derradeiro também porque não havia mais importância econômica. Pelo contrário, mostra – como em outras partes das Américas – um período de muitos conflitos, incertezas, medos e denúncias. As abolições foram resultado de lutas de classes, onde os escravizados pensaram a respeito das suas vidas, destinos e expectativas.
Lilia Schwarcz: A escravidão no Brasil, nos finais do XIX estava muito enraizada no contexto brasileiro, e vinculada a políticas de estado. Tanto que, um ano depois da “abolição” era chegada a vez do Império se despedir. No país a escravidão não era apenas um sistema de trabalhos forçados, era uma linguagem com graves consequências. Ela moldou condutas, criou estruturas de mando e obediência, padrões de violência, formas de discriminação arraigadas. Tanto que, se conhecemos a data de início do período que se convencionou chamar de “pós-abolição”, 13 de maio de 1889, não sabemos quando termina. Afinal, até a nossa contemporaneidade, continuamos a praticar no país um racismo estrutural, no sentido de que encontra-se muito “estruturada” nas várias áreas da sociedade brasileira: social, cultural, econômica, educacional, na saúde, na segurança. O Brasil é um país muito desigual; o quinto mais desigual do mundo. Esse local no concerto das nações só pode ser explicado pela vigência e perpetuação da linguagem da escravidão. Muito foi feito, mas muito mais há por se fazer.
* Nilma Accioli é doutora em História Comparada pela UFRJ, possui pós-doutorado no Programa Avançado de Cultura Contemporânea-PACC/UFRJ, pós-graduação em História do Rio de Janeiro (UFF). Autora do documentário “Ibiri, tua boca fala por nós”, 1º colocado no Festival de Filmes de Pesquisa Esclavages: mémoire, heritáges et formes contemporaines (Paris, 2009), e dos livros José Gonçalves da Silva à nação brasileira: o tráfico ilegal de escravos no antigo Cabo Frio (Funarj, 2012) e O sagrado e oprofano: vivências negras no Rio de Janeiro (Appris, 2019). Trabalha com o registro da memória sobre a escravidão e o pós-abolição entre as comunidades remanescentes de quilombos na Região dos Lagos, RJ.
** Raffaella Fernandez é pós-doutoranda no Programa Avançado de Cultura Contemporânea da UFRJ. Atua na Universidade das Quebradas e na Faculdade de Letras como docente de Literatura e Teoria literária. Estuda o espólio literário de Carolina Maria de Jesus desde 1999. É autora de A poética de resíduos de Carolina Maria de Jesus (2019). Organizou os dois últimos livros de Carolina de Jesus: Onde estaes felicidade? (2014) e Meu sonho é escrever (2018).
Referências
SCHWARCZ, Lilia Moritz; GOMES, Flávio dos Santos. Dicionário da escravidão e liberdade: 50 textos críticos [1ª ed.]. Companhia das Letras, 2018.
Resumo: Depois de 1831, os navios negreiros não podiam mais descarregar nas principais cidades brasileiras, passando a deixar sua preciosa carga humana nos portos naturais do litoral. O tráfico teve que se adaptar às novas circunstâncias. Em Pernambuco, todas as praias adequadas estavam nos limites dos grandes engenhos. O tráfico seria impossível sem a participação direta dos seus proprietários, a partir dali senhores de engenho-traficantes. Anos depois, alguns africanos ilegalmente escravizados contaram em juízo como desembarcaram no Brasil ainda crianças e adolescentes e como foram escravizados assim que desembarcaram. Este trabalho aborda esse processo.
Palavras-chave: tráfico de escravos; navios negreiros; escravidão infantil; escravidão.
Abstract: After 1831, slave-ships could not unload at the major towns of Brazil. Instead they had to leave their precious human cargo at smaller harbors on the coast. The slave trade had to adapt to those new circumstances. In Pernambuco, all beaches that served that purpose were part of major sugar plantations. The Atlantic slave trade would have been impossible without the direct participation of their owners, who became plantation owners and slave-dealers at the same time. Years later, some African illegally enslaved people told in court how they landed in Brazil as small children and adolescents and how they were enslaved as soon as they arrived. This paper focuses on this process.
Uma vasta literatura tem demonstrado a serena intensidade do tráfico atlântico de gente escravizada perpetrado pelo Brasil afora depois da sua proibição em 1831. Como se sabe, a partir dali os africanos tornavam-se legalmente livres ao tocarem o solo brasileiro. A cada desembarque, portanto, era cometido o crime de escravização de pessoa livre. Esse crime desdobrava-se pelo país adentro, ao ser compartilhado por todos que adquiriam, herdavam e alugavam essas pessoas. Esse processo, amplamente difundido e de longa duração, não era invisível. É difícil avaliar, mas é inevitável refletir sobre o seu impacto no tal ethos brasileiro, que preocupou gerações de estudiosos, como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Hollanda e tantos outros antes e depois. Seria bizarro não ligar, mesmo que de maneira indireta, a repercussão dessas práticas ao molde da elástica tolerância e naturalização da corrupção, da violência e da mentira pública na mentalidade brasileira contemporânea. Claro que contrabando de cativos da África sempre existiu, pois o infinito litoral brasileiro é um convite para a entrada ilegal de mercadorias até os dias de hoje. Mas o que aconteceu entre 1831 e a década de 1850 foi diferente, pois a economia do país passou a ser movida por uma atividade ilegal. Por mais que se tenham contrabandeado cativos africanos antes, ou pau-brasil, ouro, ou sonegado quintos reais etc., nada se compara ao tráfico depois de 1831. Isso, mesmo relevando-se o que não se deve relevar: a brutalidade do tráfico. Pedindo perdão por um exemplo tosco logo no começo, mas é como se o uso de derivados de petróleo fosse proibido na contemporaneidade, e, mesmo assim, continuássemos a assistir toda a economia movendo-se à gasolina, óleo diesel etc. O tráfico era às claras. Quando era disfarçado, seu produto, os africanos escravizados, não o eram. Eles circulavam de mão em mão abertamente.
O tráfico, todavia, não nasceu pronto e estruturado a contento. Foram necessárias muitas adaptações. Algumas delas são o tema deste texto, que enfoca principalmente Pernambuco, que, em virtude de sua posição no tráfico, serve de modelo para outras paragens do mundo atlântico escravista, como veremos a seguir. Os inúmeros e repetidos desembarques paulatinamente impactaram o cotidiano das localidades em que ocorriam. Os proprietários rurais que controlavam os pontos do litoral mais adequados para desembarques foram grandes beneficiários do tráfico. Era inevitável, todavia, o envolvimento de outros agentes menos abastados, trabalhadores livres e libertos, além dos próprios cativos que esses proprietários podiam mobilizar nas ocupações de apoio. O tráfico precisava de trabalhadores em várias atividades que garantiam o bom andamento dos desembarques e o acolhimento seguro dos recém-desembarcados.
Como veremos, o tráfico ocupou uma miríade de barqueiros, produtores locais de víveres, pequenos negociantes das povoações do litoral, barbeiros, carpinteiros e até desocupados robustos que, eventualmente, podiam encontrar serviço na repressão e vigilância dos recém-escravizados. Todos os que habitavam nas proximidades dos locais de desembarque buscavam ganhar algo com o negócio, salvo bem-intencionadas exceções que, como sempre, servem para confirmar a regra geral da acumulação do capital mercantil. Embora os traficantes e os grandes proprietários dos recém-escravizados fossem os maiores beneficiários dessa prática criminal, é preciso notar que essa imensa riqueza, respingava para a clientela desses mesmos proprietários rurais e traficantes, de tal forma que o tráfico contribuiu para o estreitamento das relações clientelísticas que permeavam a sociedade. Ao mesmo tempo esses respingos contribuíram para legitimar o próprio tráfico e a escravidão diante dos seus beneficiários diretos e indiretos, por mais modestos que fossem seus ganhos em relação aos imensos lucros dos donos do negócio.
Além dos riscos normais de captura e da navegação atlântica, pairavam outros desafios para se desembarcar fora dos portos das maiores cidades, que contavam com estruturas e equipamentos para o acolhimento dos navios negreiros. Era preciso planejar as operações para evitar improvisos que gerassem prejuízos. A chave do sucesso era o controle do acesso a um porto natural adequado, pois, mesmo que os africanos livres chegassem em segurança à praia, a posse deles dependia dos poderes relativos dos proprietários rurais do entorno do ponto de desembarque. Para ser direto, portanto, o tráfico não poderia acontecer sem o envolvimento direto dos proprietários das terras que circundavam aquelas praias. Eventualmente, em arribada ou fugindo dos ingleses, houve embarcações que procuraram o litoral de Pernambuco devido à sua proximidade de Angola e Congo principalmente. Quando isso acontecia, entrava em operação as redes constituídas pelos traficantes em várias partes do país, pois um desembarque em local fora do controle do(s) consignatário(s) da embarcação podia resultar em perda total. As praias de Pernambuco, sem exceção, estavam na zona da mata açucareira, o que fez dos senhores de engenho protagonistas do tráfico. Esse protagonismo dos proprietários rurais repetir-se-ia em outras províncias com maior ou menor intensidade.
Décadas depois, em ações de liberdade, os próprios africanos narraram esses procedimentos do tráfico de forma clara e direta. Um deles, Camilo, tinha uns quarenta anos de idade em 1874, quando ajuizou sua ação no termo de Itambé, na fronteira entre Pernambuco e Paraíba. Camilo veio do Congo depois de 1831. Na letra da lei, portanto, era um africano livre e não um cativo. Ao depor diante do juiz, contou que já fazia uns 27 a 30 anos que havia chegado, ou seja, veio no começo da década de 1840. Disse ainda que não tinha mais do que uns sete anos de idade, quando viajou no navio negreiro cujo nome não se lembrava, desembarcando na praia de Atapus, na ponta de Tapessoca, ao norte da ilha de Itamaracá, perto de Barra de Catuama, um dos principais portos do tráfico em Pernambuco depois de 1831. De lá, à meia noite, foi levado para o engenho Itapirema, onde ficou preso na casa de purgar junto com outros 90 companheiros de viagem (Amaral e Sette, 2012, passim). Nessa época, os navios negreiros traziam muitas crianças, principalmente os que vinham do Congo e Angola. Camilo, com seus sete anos de idade, era uma delas. Do engenho Itapirema, foi conduzido até a vila de Goiana, onde foi batizado, recebendo o nome de Camilo. Seu nome africano não chegou até nós.
Engenhos do entorno de Goiana e Itamaracá Fonte: Arquivo Público Estadual de Pernambuco, Mapa n. 1301, circa 1842
O depoimento dele coincide em vários pontos com o de Mahommah Gardo Baquaqua, outro cativo africano levado para Pernambuco poucos anos depois. Camilo procedia do Congo. Baquaqua da Costa da Mina (Law e Lovejoy, 2001, p. 149), mas desembarcou ao norte de Barra de Catuama, perto portanto do local onde Camilo pisou pela primeira vez no Brasil. Uma vez em terra, Baquaqua ficou em uma propriedade agrícola, certamente um dos muitos engenhos da zona da mata norte de Pernambuco, que segundo seu famoso relato, servia como uma espécie de mercado de escravos. De lá foi repassado, talvez mais de uma vez, até chegar a um padeiro, seu primeiro senhor no Brasil, ao qual serviria até ser vendido a um capitão da marinha mercante, seu último senhor, antes de sua fuga em Nova York. Camilo ficou em Pernambuco, primeiro aprisionado no engenho Itapirema, de onde seguiu para ser batizado em Goiana, no sobrado de Manoel Gonçalves, junto com os africanos Abraham, Manoel, Luis e Justino, provavelmente crianças como ele, ou, no máximo, adolescentes. Só Camilo ainda estava vivo em 1874, quando intentou sua ação de liberdade, alegando justamente que viera depois da lei antitráfico de 1831. O padre que batizou aqueles malungos era branco e alto, disse o africano, que foi herdado por um filho do seu primeiro senhor, Manoel Gonçalves – o dono do tal sobrado onde ocorreu o batismo – depois pelo seu neto. Serviria aquela família, e sobreviveria, por três gerações senhoriais.
Sobre Baquaqua, veja-se o vídeo produzido pela rede de professores de História das escolas públicas de Pernambuco REDHIS:
Desembarcar no litoral da zona da mata brasileira, em alguma praia que margeava grandes engenhos, é algo que sempre aconteceu. A facilidade da viagem do litoral africano ao Brasil era bem conhecida, ao ponto de ser o pretexto para o início das aventuras de Robinson Crusoé, publicado em 1719. É numa viagem para trazer cativos da África para a Baía de Todos os Santos que a trama de Daniel Defoe realmente começa. A viagem para o Brasil era bem mais curta e segura do que para o Caribe e isso era bem sabido por todos. Essa facilidade encorajou o aventureiro na ficção e inúmeros negociantes do mundo real a contrabandear cativos da África até os brasis. Os donos dos melhores portos naturais das zonas de plantation eram os maiores beneficiários. Alguns dispunham de condições excepcionais para tal, como o engenho Salgado, na embocadura do Cabo de Santo Agostinho. O viajante Tollenare esteve lá em 1817 e ficou impressionado pelo fato do rio Ipojuca, que margeava o engenho, poder receber embarcações de até 150 toneladas (Tollenare, 1956, p. 69). Pelo Alvará de 1813 que regulava a matéria, era possível carregar cinco cativos por cada duas toneladas de arqueação. Um barco de 150 toneladas, portanto, seria capaz de trazer em segurança 375 cativos na travessia atlântica.
Ora, sabemos que o dono daquele engenho trouxe pelo menos 5.186 cativos para o Recife, pagando os direitos correspondentes (Albuquerque, Versiani e Vergolino, 2013, p. 220). O viajante francês contou que o proprietário não sabia quanto custaram os 130 a 140 cativos que tinha no Salgado, pois eles vieram diretamente da África em dois navios do próprio senhor de engenho (Tollenare, 1956, p. 74). Não é difícil imaginar que trouxe mais outros tantos cativos africanos diretamente para seu engenho, sem passar pelo Recife, tendo à sua disposição um porto dessa qualidade e sendo um experiente negociante atlântico de cativos. Na realidade, depois de 1831, o “senhor Ramos”, como o chamava Tollenare, continuou no tráfico, inclusive em sociedade com o filho, José Ramos de Oliveira, que viria a ser o primeiro presidente da Associação Comercial de Pernambuco. Os relatos de Camilo e Baquaqua, portanto, são narrativas de experiências repetidas por centenas de milhares de africanos contrabandeados para o Brasil depois da lei antitráfico de 1831.
Pernambuco era um importante ponto nesse processo. Gonsalves de Mello constatou a vinda de cativos africanos para a capitania de “forma regular” já na metade do século XVI (Gonsalves de Mello, 1967, p. 175). Os pedidos do donatário remontam ao começo da colonização, como indica sua carta de 1542, na qual se queixava que haviam se passado três anos que solicitara à coroa uma licença para poder trazer cativos da Guiné (apud Gonsalves de Mello, 1967, p. 86). Aparentemente o rei atendeu a súplica, pois, em 1552, o jesuíta Antonio Pires notou que ali havia “grande a escravaria assim de Guiné como da terra” (1967, nota 7, p. 106). Em 1587, eram tantos os africanos em Pernambuco que Gabriel Soares de Souza relatou que os homens bons de Olinda eram capazes de mobilizar 4 a 5 mil “escravos da Guiné”. Era, portanto, a capitania que mais africanos tinha na América portuguesa nessa época (Soares de Souza, 1987, p. 58).
Mesmo diante da concorrência de outros açúcares, Pernambuco permaneceria na rota do tráfico pelos séculos seguintes, inclusive, vale salientar, sua elite participou ativamente da expansão do negócio no XVII na própria África. Ao periodizar a História da África centro-ocidental, Thornton (1999) demarca um salto no tráfico na segunda metade do XVII, a partir do que chamou de era dos governadores brasileiros, que começa justamente com os heróis da guerra contra a ocupação holandesa (1630-1654), Fernandes Vieira e Vidal de Negreiros, que se sucederam no governo de Angola, entre 1658 e 1666. Negreiros – nome mais que apropriado para um intermediário do tráfico – comandou a expedição de 1665, que deu início ao colapso do Reino do Congo, ao aprofundar as guerras civis que se estenderiam até ao menos 1718, provocando um crescimento exponencial na oferta de cativos para o mundo atlântico escravista (Thornton, 1999, cap. 4 e passim). Numa perspectiva mais ampla, percebe-se que, entre o XVI e o XIX, o volume do tráfico para Pernambuco precede apenas Rio de Janeiro, Bahia e Jamaica (Domingues da Silva e Eltis, 2008. Costa, 2013).
Apesar dessa presença marcante de Pernambuco nesse negócio, a historiografia local tradicional não se preocupava muito com a demografia do tráfico no século XIX e sequer identificava os principais negociantes atlânticos. Esse não era assunto para os literatos e historiadores que escreviam sobre as “glórias de Pernambuco”, construindo a história oficial das elites locais. O primeiro a tentar produzir um quadro demográfico desse processo no XIX foi Peter Eisenberg (1974). É relativamente injusto, todavia, constatar essa omissão apenas para a historiografia sobre Pernambuco, ou mesmo sobre o Brasil. O comércio atlântico de escravos demorou a receber a importância que hoje tem no mundo acadêmico. Antes, foi preciso que o estudo da escravidão nas Américas se consolidasse como tema historiográfico legítimo. Quando Philip Curtin (1969) publicou seu famoso censo, contava com poucos trabalhos sobre o tráfico no Brasil, à exceção do clássico de Pierre Verger.
À medida que a historiografia avançou, foi ficando claro que a participação do Brasil era ainda maior do que se pensava. Os dados de Curtin apontavam que o Brasil havia recebido em torno de 38% de todos os africanos que vieram para as Américas. Atualmente, no sempre atualizado censo do slavevoyages, o Brasil está perto de 47%. A tendência é aumentar, pois as pesquisas que alimentam o site indicam que o lugar sobre o qual menos se sabe ainda é a América portuguesa, inclusive no século XVIII, a época do ouro e apogeu do comércio de gente da África como um todo para as Américas. É vergonhoso prever, portanto, que em breve é bem possível que cheguemos à conclusão que o Brasil recebeu mais da metade de todos os africanos banidos para as Américas. Não podemos, portanto, silenciar sobre este assunto e seus infinitos desdobramentos.
Contabilizar o volume de gente cativa que veio para as Américas, todavia, foi sempre complicado. Estava certo Curtin ao admitir que a demografia do tráfico envolvia um certo numbers game, uma expressão carregada de ironia, já que game tanto significa jogo como brincadeira de criança, ou seja, futebol é um game, esconde-esconde também. O censo do tráfico envolve saltos indutivos, projeções quase que intuitivas, que seguem uma estrita lógica histórica, mas sem a segurança de outros processos melhor documentados (Curtin, cap. 1, passim). No que se refere a Pernambuco, um importante estudo de Domingues da Silva e Eltis produziu uma série confiável sobre o tráfico, confirmando sua posição relativa, atrás de Jamaica, Bahia e Rio de Janeiro. Deixou claro ainda que os negociantes locais foram capazes de armar pelo menos 2.000 viagens para negociar cativos na África, o que situa o Recife no quinto ou sexto lugar entre os portos do tráfico, ou seja, dali saíram mais viagens negreiras do que todos os portos franceses juntos (Eltis e Domingues da Silva, p. 122).
Apesar dessa posição, aquele estudo constatou também que há bem menos trabalhos sobre o tráfico para Pernambuco do que para outros locais que receberam menos gente da África, como é o caso de Cuba, Haiti e os Estados Unidos, por exemplo.[1] Ora, diante da nossa ignorância sobre o tráfico para Pernambuco e da consistência das pesquisas sobre outros locais, talvez não seja exagerado também supor que, à medida que a historiografia for avançando, Pernambuco talvez ultrapasse a Jamaica, que até onde se sabe, recebeu em torno de 100 mil cativos a mais durante toda a duração desse lucrativo negócio. O que sabemos até agora é que Pernambuco começou a receber cativos da África no século XVI e só parou na metade do XIX. São poucos os lugares nas Américas que compartilham esse vexame. No Brasil só a Bahia e Pernambuco.
Essa posição de Pernambuco contrasta com a secular decadência de sua produção açucareira, sempre espremida pela concorrência de outros açúcares, pouco compensada pelo surto algodoeiro entre o final do XVIII e a Confederação do Equador, em 1824. A natureza, todavia, colaborou para contornar esse problema, pois o trajeto desde o Congo e Angola até o entorno do Cabo de Santo Agostinho é a viagem mais rápida da África até as Américas, devido ao regime de ventos atlânticos e à corrente de Benguela que empurra os barcos naquela direção. Assim, a relativa escassez de capitais foi compensada pela facilidade da viagem. Com o tempo, esse trajeto rotinizou-se, deixando de ser uma aventura incerta. O resultado é que uma amostra de 37 navios negreiros que viajaram de Angola e Congo até o Recife, entre 1827 e 1831, levaram, em média, 26 dias na travessia. Um deles concluiu o trajeto em apenas 19 dias (Carvalho, 2018, passim). A bem da verdade, no que tange à duração da viagem desde a África, a Bahia e o Rio de Janeiro também levavam enorme vantagem em relação ao Caribe.
Essa facilidade para se chegar ao Brasil incomodava a esquadra inglesa que reprimia o tráfico. Como deixou claro o experiente Capitão Henry James Matson, que patrulhou o litoral africano na década de 1840, a viagem até o Brasil durava em média metade do tempo de uma viagem à Cuba. Por isso, explicou, os traficantes brasileiros podiam utilizar barcos velhos e de baixa qualidade e depois abandoná-los. Mesmo que os ingleses capturassem três ou quatro de cada cinco dos seus navios negreiros, o tráfico para o Brasil continuaria rentável, dizia Matson.[2] A demorada e complexa travessia para o Caribe exigia equipamentos mais sofisticados e uma tripulação maior, além de mais água e comida. A natureza subsidiava o tráfico para o Brasil e mais ainda para Pernambuco, cuja secular decadência econômica não justificaria seu lugar no tráfico atlântico não fosse essa facilidade natural.
Essa curta duração da travessia atlântica, juntamente com o fato de controlarem o acesso aos portos naturais na própria zona da mata açucareira, subsidiava duplamente os senhores de engenho-traficantes locais. Uso aqui esta expressão – senhores de engenho-traficantes – sem aspas, pois não se trata de um eufemismo, mas de um conceito muito simples, pois essa camada de proprietários rurais era protagonista do tráfico e não apenas um mercado para a preciosa mercadoria humana. Era diretamente nas praias que margeavam seus engenhos que os navios negreiros “desovavam” os cativos. Dependia desse protagonismo o sucesso da operação. Os senhores de engenho-traficantes foram fundamentais para a continuação do tráfico em Pernambuco depois de 1831, pois todo o litoral margeava engenhos, alguns dos quais contavam entre os mais antigos e tradicionais da província.
Isso não quer dizer que o processo não envolvesse riscos. Além da navegação atlântica em si e da perseguição inglesa, não era simples chegar ao ponto exato onde o barco era esperado para desembarcar os cativos no Brasil, ou mesmo embarcá-los na África. O tráfico precisava dos práticos de inúmeros portos antes restritos à cabotagem. O famoso “Relatório Alcoforado” menciona o “patrão-mor” (o prático mais graduado) de Campos (RJ) que enriqueceu guiando navios negreiros.[3] As operações de embarque e desembarque dos cativos mobilizavam muita gente. Nos dois lados do Atlântico surgiram estruturas de sinalização em pontos altos do litoral. À noite, acendiam-se fogueiras. No Nordeste, os jangadeiros alcançavam o alto-mar para ajudar a guiar os navios negreiros.[4] Erros podiam ser fatais, como um naufrágio nos arrecifes em Alagoas em 1844. Segundo o vice-cônsul inglês em Maceió, não sobrou ninguém vivo, restando uns trezentos cadáveres espalhados pela praia. Todos negros, exceto dois homens, um deles despedaçado no meio dos destroços do barco.[5]
Ao se transferir para as praias, o tráfico passou a envolver uma miríade de agentes que antes, quando muito, eram apenas consumidores da mercadoria humana. Estruturas foram construídas em várias partes do litoral para aprisionar e recepcionar a preciosa carga humana. As práticas médicas da navegação intercontinental haviam comprovado a importância de se fornecer imediatamente água e alimentos frescos nas escalas e portos de destino, pois só assim era possível manter os navegantes saudáveis. O mesmo se aplicava aos cativos recém-desembarcados, invariavelmente desidratados, famélicos e com chagas abertas pela fricção no casco ou pelo contágio bacteriano e virótico. O desembarque de um navio negreiro era um grande evento que demandava provisões variadas imediatamente.
O caso da escuna Aracaty, em 1842, serve de exemplo. No processo, a Marinha brasileira considerou a grande quantidade de frutas a bordo como prova de que se tratava de um navio negreiro. No momento da apreensão, havia no convés uma enorme quantidade de melancia, manga, laranja e maracujá. Ora, além da tripulação, havia 385 africanos a alimentar. Um tripulante alegou que aquelas frutas haviam sido adquiridas de uma barcaça que passou por perto, negando assim que teriam sido enviadas pelos consignatários do navio negreiro que, segundo a Marinha, estariam na praia recepcionando a carga humana.[6] Chama atenção essa variedade de frutas, pois implica a existência de pomares, cujos produtos teriam que ser entregues imediatamente. A cada hora perdida aumentava o perigo de morte dos cativos. Vale salientar ainda que uma barcaça, com seu casco achatado, podia facilmente adentrar os rios ali perto, carregando frutas produzidas em diferentes localidades. Sendo ela dos traficantes, ou contratada a barqueiros independentes, o fato é que havia um sistema de abastecimento organizado.
Tripulação do Aracaty Fonte: Arquivo Histórico do Itamaraty, Coleções Especiais, Comissões Mistas (tráfico e negros), Embarcação Aracaty, Lata 2, Maço 1, Pasta 1
Detalhe do passaporte do Aracaty Fonte: Arquivo Histórico do Itamaraty, Coleções Especiais, Comissões Mistas (tráfico e negros), Embarcação Aracaty, Lata 2, Maço 1, Pasta 1
Depois de 1831, o tráfico exigia pressa, precisão e adaptação a locais de embarque e desembarque bem mais acanhados do que antes. Essa é uma das razões do paulatino encolhimento das embarcações. Brigues, escunas e depois sumacas, palhabotes e até iates substituíram os navios maiores que antes traziam cativos para os portos das grandes cidades brasileiras. Era preciso barcos mais ágeis, facilmente manobráveis, menos visíveis em alto mar, capazes de entrar em enseadas acanhadas e que custassem menos, de tal forma que, caso capturados, abandonados ou naufragados, o prejuízo era menor. De fato, não foram poucas as embarcações abandonadas ou encalhadas depois da viagem. Uma delas jazia em Porto de Galinhas em 1844 com 37 pipas de água no porão – típico lastro de navio negreiro – além de caldeira e grilhões no convés. Não muito longe, o cadáver de um “infeliz africano agrilhoado” em avançado estado de putrefação.[7] Esse encolhimento dos navios foi notado pelos cônsules português e inglês no Recife. Joaquim Baptista Moreira, em 1844, soube da chegada de pelo menos seis pequenas embarcações que saíram do Recife com papéis para ir até São Tomé e Príncipe, mas que, na realidade, foram para a Costa da Mina, de onde voltaram, desembarcando os cativos “a salvo nos pequenos portos desta província”.[8]
O agente consular inglês no Recife, Mr. Cowper, confirmou essa mudança nos negreiros, que encolheram além do padrão das escunas e sumacas de 150 a 300 toneladas, chegando a iates de apenas 45 a 60 toneladas. Segundo ele, essas embarcações já saiam do Brasil com as mercadorias do tráfico empacotadas de tal forma que podiam ser descarregadas no litoral africano na cabeça de um homem. Esses iates viajavam com passaportes para navegação de cabotagem. Em alto-mar, desviavam para a rota. Superlotados, voltavam com 100, 150, até 300 pessoas, que obviamente não conseguiam sequer deitar de tão apinhadas.[9] Eram barcos adaptados aos locais de embarque e desembarque, pois eram capazes de adentrar baías estreitas, estuários de rios ou ancorar perto da praia, tanto no litoral do Brasil como da África. Podiam assim operar em locais remotos que não dispunham das estruturas de portos como Recife ou Luanda, por exemplo. Essas circunstâncias explicam as muitas viagens grotescas nessa época. Embarcações minúsculas apinhadas de gente cruzando o oceano e despejando com sucesso sua sofrida carga humana, como um barco a vela, uma “lancha” na linguagem da época, sem nome de tão pequena que cruzou o oceano até a Bahia com um mestre, dois tripulantes e 42 meninos a bordo, dos quais 36 conseguiram sobreviver.[10]
Comprar crianças barateava as operações do tráfico, pois custavam menos na África. Eram boa mercadoria para os traficantes, mesmo não sendo a mais valiosa. Estavam onipresentes no XIX (Campbell, 2006, p. 261-285; Diptee, 2006, p. 183-196; Villa e Florentino, 2016, p. 1-20). A odisseia de Camilo, com seus sete anos de idade, repetiu-se inúmeras vezes, como nos casos de Maria e Joaquim Congo, por exemplo, que falaram na ação de liberdade ajuizada por Maria, em 1884, quando já tinham em torno de 50 anos de idade. Nas palavras de Joaquim, já fazia “uns quarenta e tantos anos” que haviam chegado em Pernambuco. Camilo, como vimos acima, desembarcou em Atapus, no continente, ao norte da ilha de Itamaracá na década de 1840. Joaquim e Maria, pisaram pela primeira vez no Brasil, na praia de Porto de Galinhas, do outro lado da província, na zona da mata norte. Não sabemos os nomes africanos dessas crianças. No momento em que depôs a favor de Maria, Joaquim não era mais cativo. Era um africano livre, condição que pretendia estender a Maria, alegando que haviam viajado no mesmo navio negreiro. Eram malungos entre si, irmanados, portanto, pela viagem atlântica.
Narciso Congo também era africano livre e malungo de Maria e Joaquim, quando depôs naquele processo. Tinha 16 anos quando chegou ao Brasil – mais o menos a mesma idade de Baquaqua, segundo Law e Lovejoy (2001), quando desceu em Pernambuco em 1845. Baquaqua e os demais africanos aqui mencionados chegaram na mesma década. Aos 16 anos, Narciso era valioso, pois estava na plenitude de sua capacidade de trabalho. Todavia, logo depois do batismo na vila do Cabo de Santo Agostinho, conseguiu fugir. Apesar de não sabermos detalhes sobre o seu trajeto, em seu depoimento, ele disse que foi capturado no Recife, a mais 60 quilômetros de distância do local de desembarque, o que não é uma distância pequena para ser percorrida a pé, muito menos por um africano boçal em fuga. No Recife, foi capturado e enviado para o Arsenal da Marinha, o que nos permite assumir que foi reconhecido como um africano livre pelas autoridades locais.[11] Narciso vivia de carregar água em 1884 e afirmou ter vindo no mesmo navio de Maria. Nas suas palavras, apenas uma “menina”, quando chegou no Brasil.[12]
Manoel também desembarcou em Porto de Galinhas, na zona da mata sul de Pernambuco, por volta de 1849 ou 1850, segundo seu depoimento em 1884 ao juiz do termo de Palmares. Pelos seus cálculos, tinha uns 7 anos de idade pois estava “mudando os dentes” nessa época.[13] Benvinda, por sua vez, desembarcou com 4 ou 5 anos de idade. Mesmo assim, lembrava-se de alguns detalhes parecidos com o que disse Baquaqua em suas memórias, pois, era de noite quando pisou pela primeira vez no Brasil e foi logo conduzida para uma casa-grande onde ficou aprisionada até ser leiloada. De Porto de Galinhas, conhecido porto do tráfico, foi levada para o engenho Conceição ali perto. Tal como Camilo, Benvinda sobreviveu a seus primeiros senhores e intentou sua ação de liberdade em 1885. O proprietário que herdou Benvinda reconheceu que ela era angolana, mas argumentou que ela chegou no Brasil não com 4 ou 5 anos, como alegou a africana, mas sim em idade de mamar, antes de 1831, portanto.[14] Ao defender sua propriedade, admitiu, portanto, o que já se sabe: havia crianças pequenas, crias de braço, como se dizia então, nos navios negreiros, alguns deles verdadeiros “berçários infernais”, nas palavras do tenente Forbes que patrulhou o Atlântico sul na marinha inglesa justamente nos anos 1840, a década em que as crianças aqui mencionadas chegaram ao Brasil (Forbes, 1849, p. 87).
Todas essas crianças foram ilegalmente escravizadas em praias nos limites de alguns dos maiores e mais tradicionais engenhos de Pernambuco. O litoral era controlado por senhores de engenhos que estavam inseridos no topo da escala social das povoações próximas, pois eram eles que ocupavam as posições mais altas na justiça de paz, na guarda nacional e na polícia civil. Eram eles, portanto, os encarregados de reprimir o tráfico do qual eram protagonistas. É uma bobagem falar desses senhores de engenho como vítimas dos traficantes, aos quais estariam endividados, pois era impossível um negreiro desembarcar sua preciosa carga humana sem estar sob a proteção do proprietário que controlava o acesso ao local de desembarque. Esses proprietários rurais, portanto, eram senhores de engenho-traficantes – uma expressão que pode ser utilizada sem aspas, pois é um termo que define a posição relativa deles nesse ramo de negócios, pois não eram apenas compradores de cativos recém-chegados, mas protagonistas do processo, desde o desembarque até a escravização das mais de 150 mil pessoas livres que vieram para a província depois de 1831 nos porões de navios negreiros.
Esse crime, portanto, foi protagonizado pela tal “nobreza da terra”, melhor dizendo, senhores de engenho traficantes. O maior ou menor destaque de cada um desses protagonistas nesse ramo de negócios é matéria para a historiografia atual e futura. O que fica claro, é que o tráfico marcaria o litoral desses imensos brasis e foi um potente instrumento de reforço e legitimação da escravidão, ao envolver diferentes agentes, inclusive empregando muita gente, que compunha a população livre pobre circunvizinha aos pontos de desembarque. Claro que o tráfico sempre empregou muita gente, mas depois de 1831, era uma atividade francamente ilegal mesmo que apoiada pelo estado brasileiro, ao menos a partir da regência do pernambucano Araújo Lima, em 1837, cujo engenho margeava o rio Sirinhaém, que desembocava em Ponta de Serrambi, um conhecido ancoradouro de navios negreiros depois de 1831.
Em 1847, Nabuco de Araújo escreveu um ácido livreto de oposição ao partido praieiro, que passou a governar Pernambuco durante o quinquênio liberal (1844-1848). O texto panfletário foi publicado anonimamente. Décadas depois, sua autoria seria reconhecida por seu filho, Joaquim Nabuco, em Um estadista do Império (vol. 1, p. 36). Nabuco de Araújo conhecia bem a elite local, pois, como explicou seu filho e biógrafo, estudou Direito em Olinda e iniciou sua carreira sob a proteção dos irmãos Cavalcanti de Pernambuco, três dos quais iriam se tornar senadores no Império e Viscondes (de Albuquerque, Suassuana e Camaragibe). No livreto, o futuro ministro da Justiça do gabinete Honório de 1853, o “gabinete da conciliação”, rechaçava as repetidas acusações dos praieiros de que o partido conservador de Pernambuco apoiava e praticava abertamente o tráfico. Mas sua defesa é uma manobra retórica típica do pensamento conservador da época, pois, ao invés de negar o crime, Nabuco de Araújo preferiu dizer que todos o praticavam, inclusive os praieiros. Assim, admitiu expressamente que havia gente do clã Cavalcanti que permitia o “desembarque e o depósito de africanos em seus engenhos”. Nabuco de Araújo estava escrevendo anonimamente em 1847. Nada tinha a temer, portanto. Segundo ele, o tráfico contava então com a “sanção moral do país”, do que resultava sua impunidade (Nabuco de Araújo, 1847; 1977, p. 9).
Praticado pelos maiores negociantes dessa época, o tráfico desdobrou-se, indo muito além das praias onde ocorriam os desembarques, de tal forma que terminou alcançando praticamente toda a escala funcional e clientelar do estado imperial, através da distribuição de propinas e emolumentos que chegavam até os padres e capelães das povoações e engenhos que, ao batizarem aquelas crianças e adolescentes, confirmavam a escravização ilegal, pois o que estava expresso em um livro de batismo definia a qualidade e a condição da pessoa, servindo como prova de propriedade. As propinas e pagamentos que se propagavam pelo entorno dos pontos de desembarque faziam girar a economia local. As relações clientelares estreitavam-se. A escravidão saía fortalecida não apenas por se renovar demograficamente, mas por reforçar essa malha clientelar, espalhar pequenos ganhos monetários entre não proprietários de cativos, legitimando o processo diante de seus beneficiários grandes e pequenos, diretos e indiretos.
* Marcus J. M. de Carvalho é professor de História da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Agradece ao CNPq pelo apoio a esta pesquisa.
Referências
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CAMPBELL, Gwyn. “Children and Slavery in the New World: A Review”, Slavery and Abolition, vol. 27, n. 2, August 2006, p. 261-285.
CARVALHO, Marcus J. M. de. “A rápida viagem dos ‘berçários infernais’ e os desembarques nos engenhos do litoral de Pernambuco depois de 1831”. In OSÓRIO, Helen e XAVIER Regina (Orgs.). Do tráfico ao pós-abolição: trabalho compulsório e livre e a luta por direitos sociais no Brasil. Porto Alegre: Oikos, 2018, p. 126-164.
COSTA, Valéria Gomes. “O Recife nas rotas do atlântico negro: tráfico, escravidão e identidades no oitocentos”. Revista de História Comparada (Rio de Janeiro) n. 7, vol. 1, p. 186-217, 2013.
CURTIN, Philip The Atlantic slave trade: a census. Madison, University of Wisconsin, 1969.
DIPTEE, Audra A. “African children in the British slave trade during the late Eighteenth century”, Slavery and Abolition, vol. 27, n. 2, August 2006, p. 183-196.
DOMINGUES DA SILVA, Daniel Barros e ELTIS, David. “The slave trade to Pernambuco, 1561-1851”. In ELTIS, David e RICHARDSON, David (Eds.). Extending the Frontiers: Essays on the New Transatlantic Slave Trade Database. New Haven, Yale University Press, 2008, p. 95-129.
EISENBERG, Peter, Modernização sem mudança. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977.
FORBES, Lieutenant R.N. Six months’ service in the African blockade, from April to October, 1848, in command of H.M.S. Bonetta. London, Richard Bentley, New Burlington-Street, 1849.
GONSALVES DE MELLO, José Antônio e XAVIER DE ALBUQUERQUE, Cleonir (Orgs.). Cartas de Duarte Coelho a El Rei. Recife, Imprensa Universitária, 1967.
LAW, Robin e LOVEJOY, Paul (Orgs.). The Biography of Mahommah Gardo Baquaqua: His Passage from Slavery to Freedom in Africa and America. Princeton, Marcus Wiener, 2001.
NABUCO, Joaquim. Um estadista do Império. 3 volumes. Rio de Janeiro, Garnier, 1897.
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THORNTON, John. Africa and Africans in the Making of the Atlantic World, 1400-1800. Cambridge, Cambridge University Press, 1999.
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Notas
[1] Sobre a demografia do tráfico para Pernambuco, veja-se: DOMINGUES DA SILVA e ELTIS (2008), p. 95-129. Veja-se ainda: COSTA, 2013, p. 186-217.
[2] Depoimento de Henry James Matson, 21/06/1849. In House of Commons Parliamentary Papers,Reports from the Select Committee of the House of Lords, 1850, vol. 6, p. 202.
[3] ANRJ (Arquivo Nacional, Rio de Janeiro), Fundo Justiça, IJ6-525, Relatório Alcoforado-Africanos, 1837-1864, fls. 2.
[4] Sobre os detalhes dos desembarques nas praias, veja-se: CARVALHO (2012).
[5] Mr. Hamilton para o Earl of Aberdeen, 17/07/1844; Mr. Burnett a Mr. Cowper, 31/05/1844. In British Parliamentary Papers, Slave trade. Correspondence with Foreign Powers relative to the Slave trade [class B and C], n. 28, vol L., Feb. 04, Aug. 09, 1845, p. 417.
[6] Embarcação Aracaty, Lata 2, Maço 1, Pasta 1 Arquivo Histórico do Itamaraty, Coleções Especiais, Comissões Mistas (tráfico e negros). Parliamentary Papers. Slave trade. Correspondence with British Commissioners and with foreign powers relative to the Slave trade [class A and B], vol. 23, p. 268-273. Veja-se ainda: REIS, GOMES E CARVALHO, p. 161-162.
[7] Caetano José da Silva Santiago a Chichorro da Gama, 08/02/1844, Arquivo Público Estadual de Pernambuco Jordão Emerenciano (APEJE), Polícia Civil, vol. 8, fls. 40-42. José Venceslao Affonso Pereira Rigueira Pereira de Bastos para Caetano José da Silva Santiago, 15/02/1844, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro (ANRJ), Fundo Justiça, pasta IJ-1-323.
[8] Joaquim Baptista Moreira ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, 10/12/1844. In: Torre do Tombo, Ministério dos Negócios Estrangeiros, Pernambuco, caixa 3.
[9] Mr. Goring a Lord Aberdeen, 16/05/1845, Parliamentary Papers. Slave trade. Correspondence with Foreign Powers relative to the Slave trade [class B], vol. 30, p. 443.
[10] Mr. Cowper a Lord Aberdeen, Second Enclosure in 292, 31/12/1841, Parliamentary Papers. Slave trade. Correspondence with British Commissioners and with foreign powers relative to the Slave trade [class A and B], vol. 23, p. 437.
[11] Sobre o destino dos africanos livres em Pernambuco, veja-se: OLIVEIRA (2010).
[12] Memorial da Justiça (Recife), Fundo: Recife, Caixa 1161. Ano 1884, Autor: Maria (Africana). Réu: Rita Maria da Conceição, fls. 13 e 13 verso.
[13] Memorial da Justiça (Recife), Fundo: Palmares, Caixa 2696. Ano 1884, Autor: Manoel (Africano). Réu: Irineu Cavalcante Filgueira de Menezes.
[14] Memorial da Justiça (Recife), Fundo: Recife, Caixa 2782. Ano 1885, Autor: Benvinda (Africana). Réu: José Francisco Pereira da Silva.
Nós, mulheres negras, fazemos parte de um contingente de mulheres, provavelmente majoritário (…). Fazemos parte de um contingente de mulheres que trabalharam, durante séculos, como escravas nas lavouras ou nas ruas, como vendedoras, quituteiras, prostitutas… Mulheres que não entenderam nada quando as feministas disseram que as mulheres deveriam ganhar as ruas e trabalha! Fazemos parte de um contingente de mulheres com identidade de objeto. Ontem, a serviço de frágeis sinhazinhas e de senhores de engenho tarados. Hoje, empregadas domésticas de mulheres liberadas e dondocas, ou de mulatas do tipo exportação. Quando falamos em romper com o mito da rainha do lar, da musa idolatrada dos poetas, de que mulheres estamos falando? (Carneiro, 2003, p. 50)
Por uma nova perspectiva de análise
Ao trazer à tona o racismo no feminismo, o Feminismo Negro vem sendo responsável, nos últimos anos, por uma específica etapa da chamada revisão historiográfica porque intersecciona os conceitos de gênero, raça e classe. Nesse sentido, recentes estudos vêm se dedicando à compreensão do modo de funcionamento das sociedades marcadas pela experiência da escravidão, priorizando análises sobre as vivências e agências de mulheres negras e suas relações com o racismo e o sexismo, fundamentais para pensar a dinâmica da exclusão capitalista (Davis, 2016).
Como resultado do descrito, estão sendo revistas, desde a onda de publicações dedicadas aos estudos sobre a temática iniciada nos idos anos 1970, análises sobre escravidão que não visibilizaram as mulheres, camuflando muitas realidades, destacadamente suas experiências e vivências. No âmbito de uma nova tendência historiográfica cuja violência contra as populações negras na escravidão e pós-abolição tem sido ressaltada, a despeito do convívio com uma literatura moderno-hegemônica-branca, o protagonismo da mulher negra vem sendo tema de diversas pesquisas que escrutinam os mais variados contextos diaspóricos sob várias perspectivas (Xavier, Farias e Gomes, 2012).
O significado das experiências de mulheres negras no trabalho escravo, em contrapartida, tem sido importante para o Feminismo Negro. Fundamentalmente porque possibilitam visualizar condições similares pós-abolição. Donde se conclui que a abolição não significou, de fato, o fim das relações abalizadas na escravidão. Além disso, o contexto chama a atenção para o fato de a negra escravizada ser a primeira categoria de mulher no trabalho fora de casa.
Ainda que haja um legítimo uso político da História – pela introdução de novos temas, fontes e problemas, bem como pelo reconhecimento de novos protagonistas como sujeito das análises históricas –, o sentido do uso de novas ferramentas e de novas perspectivas teóricas e metodológicas para reinterpretar os acontecimentos do passado não é outro senão o de dar maior volume à história das sociedades. Enriquecendo, assim, com novas versões, a chamada história oficial.
Especificamente em relação aos estudos sobre os processos históricos que envolveram as relações entre indivíduos escravizados e os demais membros de sociedades escravistas, as novas interpretações têm tido como resultados análises que alteram principalmente as perspectivas predominantes em diversos trabalhos sobre a temática, por colocar em evidência a insubmissão de populações negras durante a vigência da escravidão e pós-abolição. Em verdade, por colocar em evidência as vivências e experiências de novos sujeitos da História, a tendência teórica que tem origem a partir dessas novas versões são apontadas como marco de movimentos como o antiescravagista e o antirracista que deram origem a movimentos políticos como o feminismo negro, não obstante a inclusão de mulheres brancas nestes movimentos (Davis, 2016, p. 47).
O feminismo, enquanto movimento político cujo principal objetivo é a luta para abolir as desigualdades que as mulheres enfrentam, tem sua historicidade. Estavam entre os principais objetivos políticos das primeiras feministas responsáveis pela primeira “onda” de manifestos, que teria ocorrido no século XIX e início do século XX, certos direitos negados às mulheres filhas do patriarcado, que lhe faziam oposição. Assim, o foco original do feminismo era a promoção da igualdade nos direitos contratuais e de propriedade para homens e mulheres, e na oposição de casamentos arranjados e da propriedade de mulheres casadas (e seus filhos) por seus maridos. Ainda no último quartel do século XIX, o ativismo por parte desse grupo de mulheres passou a focar principalmente na conquista de poder político, especialmente o direito ao sufrágio feminino (Krolkke e Sorensen, 2005, p. 1-23).
Como não eram cidadãs daquela categoria, a agenda de reivindicação de mulheres pobres e negras não consta nas primeiras ondas dos movimentos feministas, que dão demasiado ênfase a experiências de mulheres brancas. A própria historicidade do feminismo, portanto, coloca em xeque as especificidades que o movimento carece de considerar. Mesmo porque a heterogeneidade da categoria “mulher” apenas começou ganhar notoriedade histórica em meio aquela onda já comentada de publicações dedicadas aos estudos sobre a escravidão e, também, sobre as sociedades pós-coloniais iniciada nos anos 1970. Com ela, novos sujeitos ingressam no imaginário acadêmico (Chalhoub e Silva, 2009, p. 13-45).
É no bojo dessas perspectivas que surgem feminismos alternativos que tratam de questões que são percebidas como limitando ou oprimindo outras dimensões da vivência de específicas mulheres, bem como de identidades marginalizadas. Este é o caso do Feminismo Negro. Diversas feministas, destacadamente negras, vêm procurando negociar um espaço dentro da esfera do feminismo para a consideração de subjetividades relacionadas à categoria “raça” (Hall, 2009, p. 66).[1]
Antonio Ferrigno: “Mulata quitandeira”. São Paulo, Pinacoteca do Estado
A percepção do direito à liberdade como um dos objetivos do ativismo
Historicamente falando, como havia diferença de objetivos no interior da categoria mulher, o não reconhecimento das mulheres negras como sujeito das análises históricas fazia com que suas causas ficassem subsumidas, enfraquecidas mesmo, ante aos desígnios das brancas. Por exemplo, ainda que as mulheres negras, independente de sua situação civil, fossem forças atuantes nos mundos do trabalho ao longo de vários séculos, na França, as mulheres casadas receberam o direito de trabalhar sem a permissão de seu marido apenas em 1965. Reflexões sistematizadas por Sueli Carneiro, conforme destacado na epigrafe deste texto (Carneiro, 2003).
Em se tratando da estrutura do ativismo da mulher negra que a conjuntura do sistema escravista formatou o que prevaleceu foi uma luta por melhorar a condição do cativeiro e, destacadamente, para obter a almejada alforria. Peculiarmente, nos objetivos de melhorias das cativas consta a luta por algum grau de autonomia na produção, pela criação de laços familiares e pela escolha ou aceitação de padrinhos e/ou senhores. Especialmente quanto à alforria, chama a atenção o fato de estudos sobre o tema ter confirmado a prevalecia de manumissões gratuitas e agenciadas pelos próprios escravizados. (Florentino, 2002, p. 9-40; Chalhoub, 1990) Destacadamente nas últimas décadas do período escravista, e em áreas urbanas. Fundamentalmente para o Município Neutro da Corte, nesse que foi o último período de vigência legal da escravidão no Brasil – o recorte dado por este texto –, os números dos censos realizados apontam para um significativo decréscimo no número de cativos, que vinha sendo potencializado nas duas décadas anteriores (Chalhoub,1990, p.148).
Conforme os números dos censos realizados no período, em 1849, havia 110.602 homens e mulheres mantidos sob o regime da escravidão nas freguesias urbanas do Rio de Janeiro. No recenseamento de 1872, foram computados menos da metade. Em verdade, foram contados 48.939 africanos e crioulos escravizados. E, da finalização desse que foi o último censo realizado acusando a presença da categoria até a abolição total da escravidão, o número de alforrias na província do Rio de Janeiro continuou a aumentar de forma expressiva. Segundo Robert Slenes,
Os negros da cidade do Rio nas últimas décadas da escravidão sempre tiveram uma chance mais do que razoável de conseguir a liberdade: nada menos do que 36,1% da população escrava da matrícula de 1872-1873 receberam liberdade até a matrícula de 1886-1887 (Chalhoub, 1990, p. 158).
As pesquisas sobre o tema indicam que essas “chances mais do que razoáveis” foram resultados de específicas negociações. Que foram utilizadas naquele objetivo as mais singulares estratégias: desde um comportamento específico e calculado até ajuizamento de ações visando à liberdade. O significado disso é que, por esses e outros meios, africanas/os e crioulas/os cativas/os procuraram formas de mudar seu estatuto jurídico, elevando-se socialmente à condição de libertas/os. Representam um contingente de homens e de mulheres que não permitiram que suas aspirações fossem frustradas pelas exigências do sistema escravista. Defendendo ser este um comportamento político essencial na reivindicação por direitos, destacando o de liberdade como um dos fundamentais – uma vez que ser escrava/o significava antes de tudo um estatuto jurídico, que se caracterizava por não ter o indivíduo a sua posse – este texto terá como eixo principal à análise de específicas estratégias utilizadas por mulheres negras para a conquista da alforria no perímetro urbano do Rio de Janeiro – o Município Neutro – no período entre 1870 e 1888. Estratégias que configuram, em verdade, um prenúncio da via parlamentar de luta.
Fontes diversas contribuem na análise, mas se dará destaque a ações cíveis de liberdade levadas a cabo por mulheres escravizadas na capital do Império, através de seus curadores. Destacadamente a documentação que chegou à segunda instância de apelação – o Tribunal de Relações – nas décadas de 1870 e 1880. Registros que permitem elucidar diversas estratégias escravas para a conquista da liberdade e, ainda, realizar uma sumária investigação sobre como as mulheres negras aprenderam a extrair das circunstâncias opressoras a força necessária para resistir ao cotidiano da escravidão no seu próprio rescaldo.[2]
Pode-se falar em rescaldo por que o sistema escravista, sobretudo em perímetros urbanos na segunda metade do século XIX, sofrera várias adaptações para atender uma agenda de reivindicações imposta pelos próprios escravizadas/os. O que resultou em maior autonomia dos mesmos no trabalho e até mesmo na possibilidade de alguns homens e mulheres sujeitas/os ao regime morarem por suas contas em cortiços ou casas de cômodos. O que tornava difícil o intenso controle por parte de seus senhores. Analisando um contexto mais alargado, Keila Grinberg argumenta que “o que fazia a diferença na vida de um escravo de qualquer meio urbano das Américas de fins do século XVIII e meados do século XIX era o próprio fato de estar vivendo em uma cidade, tendo acesso a tudo o que a vida urbana proporcionava” (2002, p. 57).
A possibilidade, e oportunidade, de atuar nos mundos de trabalho urbano possibilitou a alguns escravizados uma economia a título de pecúlio para promover a autoindenização. De acordo com a avaliação de Manolo Florentino, a despeito de considerações que argumentam ser a liberdade comprada uma “conquista escrava por excelência”, nas negociações para a manumissão “concorria grande dose de concessão levada a cabo de acordo com as vicissitudes do cálculo senhoril”. No entanto, considerando os ajustamentos do sistema escravista, vale anotar que tal cálculo tinha a ver com a avaliação da possibilidade real de se perder o controle total sobre os escravizados. Daí se observar maleabilidade no trato social da parte de proprietários de escravos que buscavam se adaptar às novas circunstâncias. Diante das circunstâncias, sobressaíram as modalidades de alforrias classificadas como “gratuitas”, “de serviço” ou “condicionais”.
Na escravista sociedade do Município Neutro nos anos 1870 e 1880, o aumento de alforrias gratuitas e de serviço, ou “sob condição”, refletiu estratégias utilizadas tanto pelas/os escravas/os quanto por seus senhores, para conquista e concessão da liberdade, respectivamente. Estratégias mais “políticas”, segundo Florentino. Por exemplo, o predomínio absoluto das alforrias gratuitas, que em verdade, era um panorama observado desde a segunda metade dos anos 40, para o autor
Assinalou a chegada ao auge da “politização” na busca da liberdade. Tratar-se-ia do ápice de um longo processo em que, esquematicamente, a conquista da liberdade deslocou-se da esfera da formação do pecúlio (i. e., do mercado) para a órbita intrínseca da negociação entre o escravo e o seu senhor, sem, contudo, esterilizar por completo a possibilidade de que alguns pudessem comprá-la (Florentino, 2002, p. 20-21).
Dois fatores teriam contribuído, na avaliação de Florentino, para que o ato de alforriar fosse investido de novos sentidos em meados do século XIX.: o preço do escravizado[3], que passou a ser avaliado pelo valor de mercado, verificado no momento da compra, e “a crescente recusa senhorial em aceitar a liberdade mesmo dos escravos que, as duras penas, ofereciam pelo seu resgate o valor corrente de mercado”.
Nesse sentido, se houve um declínio da compra de alforria pelos escravos, ele deve ser pensado dentro do panorama geral vigente em meados do século XIX. Momento em que a questão da reposição da mão-de-obra ensejava estratégias mais “políticas” também por parte de senhores. Modalidades de alforrias como as gratuitas e as de servir, de acordo com um novo ideário da sociedade imperial, permitiria a reprodução dos laços de dependência e que novas políticas de controle fossem instituídas nas relações escravistas. Podiam ter o efeito de transformar ex-escravos em negros libertos, mas fiéis e submissos a seus antigos proprietários.[4]
A vida urbana, entretanto, proporcionava outras coisas, como o acesso a informações. No objetivo de instituir novas políticas de controle social foram elaboradas as leis abolicionistas. Assim, como seus senhores, africanas/os e crioulas/os mantidos em regime de escravidão estiveram atentos às transformações sociais em curso, inclusive as legislativas. Não apenas percebiam o movimento das mudanças da estrutura da conjuntura como atuaram significativamente em todas as etapas em um processo que deslegitimava a anteriormente estabelecida. Interessados em alterar suas condições de vida, perceberam a via judicial como um componente fundamental na luta contra a escravidão e, destacadamente, um instrumento político de limitação da dominação senhoril.
As Ações Civis de Liberdade como instrumento formalizador do direito à liberdade
Entre os anos de 1850 e 1879, cerca de 70 escravos residentes na Corte tiveram seus nomes arrolados, por outrem, como apelantes ou apelados em processos que chegaram tanto à Corte de Apelação como ao Supremo Tribunal de Justiça.[5] Neste texto, será feita uma reflexão a partir da análise do conteúdo de 14 processos envolvendo casos de mulheres negras escravizadas. Constam da amostragem referente àqueles que chegaram ao tribunal de segunda instância de apelação na década de 1870. Trata-se de casos de mulheres escravizadas que apelavam fundamentalmente por seu direito à liberdade.
A maioria dos processos arrolados na amostragem, 23 ações civis ou criminais, tratava-se de ações de liberdade movidas contra aquilo que a/o escravizada/o considerava injusto na relação imposta pelo sistema escravista e que, por isso, via como necessária a intervenção judicial do Estado para forçar seus proprietários, ou seus herdeiros, a concordarem com as adequações que aquele sistema vinha sofrendo. Destacam-se nas ações os casos em que a principal demanda era a recusa dos mesmos em conceder a alforria, em muito dos casos já conquistada por ter sido comprida uma condição pré-determinada ou por ter sido saldado o seu valor aberto a título de indenização.
Ao longo de uma pesquisa realizada no Arquivo Nacional foram localizados os vinte e cinco processos que chegaram a Corte de Apelação. Dois deles, os de Delfina e Júlia, entretanto, não foi possível a localização. Os aqui analisados são aqueles envolvendo mulheres negras escravizadas demandando as suas liberdades.[6] Retrataram experiências de luta vividas por africanas/os e crioulas/os para conquistarem suas alforrias e ingressarem nos mundos dos libertos, galgando, assim, degraus significativos na escala social possível de ser trilhada por aqueles que tiveram a escravidão como experiência de vida. Casos que são os últimos que a documentação tem registrado para os períodos finais da escravidão para as mulheres dessas categorias (ver quadro abaixo).[7]
Quadro Fontes – Referências de processos
Nome da ré
Proc. núm.
caixa
ano
Natureza da ação
Tipo de Apelação
Francelina
7633
3699
1870
Ação de Liberdade
Contra a reescravização
Carolina
12888
3682
1870
Ação de Liberdade
Cumprimento de condição
Geraldina e outras
7553
3691
1870
Ação de Liberdade
Contra a reescravização
Delfina
13747
3695
1871
Doc. não localizado
Eulália
14181
3683
1871/72
Ação de Liberdade
Escravidão injusta
Efigênia
14298
3687
1872
Ação de Liberdade
Escravidão injusta
Rosa
14273
3680
1872
Ação de Liberdade
Cumprimento de condição
Josefa
14198
3693
1872
Ação de Liberdade
Escravidão injusta
Eva
14133
3686
1872
Ação de Liberdade
Escravidão injusta
Joaquina
14149
3688
1872
Ação de Liberdade
Escravidão injusta
Marcelina
8293
3683
1873
Ação de Liberdade
Escravidão injusta
Rita
14206
3684
1872
Ação de Liberdade
Escravidão injusta
Francisca
14652
3688
1873
Ação de Liberdade
Direito à autoindenização
Benta e outras
2623
3689
1879
Ação de Liberdade
Prazo de matrícula
Fonte: acervo do Arquivo Nacional
É importante ressaltar que, apesar de esses processos chegarem de fato à Corte de Apelação ou ao Supremo Tribunal de Justiça década de 1870, tratam-se de apelações referentes a processos abertos em datas anteriores, que tramitaram por instâncias jurídicas inferiores. O fato em si faz com que as experiências representem um retrato do ápice de negociações. Especialmente porque a mediação do aparato institucional nos acordos envolvendo a alforria despolarizava um processo que podia envolver tão somente proprietário e propriedade.
É verdade que as várias mulheres que recorreram aos tribunais para terem a posse de sua liberdade, no mais dos casos, já a julgava conquistada. Isso por terem cumprido a condição imposta por cláusula testamentária, por força de específicas leis, por terem adquirido o pecúlio necessário à suas indenizações ou mesmo por terem sido submetidos a uma escravidão injusta. A tese defendida aqui é que suas experiências são indícios do modo operante do ativismo de mulheres negras escravizadas em suas lutas pelo direito à liberdade, sobretudo. Informam, ainda, os meandros das negociações necessárias à sua obtenção e algumas das dimensões das relações sociais de uma específica sociedade escravista que, apesar de sua força, tinha que se adequar aos princípios de legalidade que as leis abolicionistas instituíam.[8]
As ações de liberdade
Em uma sociedade escravista, do ponto de vista dos escravizadas/os, o status de livre pode ter sido percebido como um direito a se adquirir. E perseguido mesmo por escravas/os urbanas/os, que gozavam de certa liberdade e autonomia. Afinal, no caso da que se desenvolveu no Brasil, em geral, e no Rio de Janeiro, em particular, as distinções legais entre escravos, libertos e livres estabeleciam uma hierarquia até mesmo entre africanos e afrodescendentes. Aos escravizados não era permitido possuir sobrenome, firmar contratos, dispor de suas vidas, testemunhar contra homens livres, escolher seu trabalho ou empregador. Somente após a lei de 1871, por exemplo, foi-lhes possível firmar legalmente contrato com terceiros.[9]
Quanto às/aos libertas/os, apesar de a primeira Constituição do Imperial, de 1824, classificá-las/os como cidadãs/ãos brasileiros, os indivíduos dessa condição não gozavam das mesmas prerrogativas dos livres. Além disso, havia distinções legais que se somavam a outros tipos de ultrajes decorrentes do tratamento dispensados aos dessas condições jurídicas. No trato social, observava-se uma gradativa intensificação do processo de racialização das relações. O reconhecimento daquelas distinções pode ter funcionado mesmo como estímulo para muitos buscarem galgar degraus sociais. Impulsionando-os a esforçarem-se, até mesmo com sacrifícios, para conquistar sua liberdade e a de seus familiares, com prioridades para as mulheres cujo ventre determinava a condição sociojurídica dos descendentes de escravizados.
Diante da necessidade da intervenção do Estado no poder senhorial, a via judicial se apresentou, pelos exemplos encontrados, como um instrumento com o qual podiam contar não somente aqueles que as “duras penas” teriam conseguido acumular pecúlio, mas, também aqueles que tinham interrompido as negociações de compra por parte de seus proprietários ou de seus herdeiros.[10] Como já destacado, a despeito das transformações sociais que sinalizavam o fim da escravidão, alguns senhores desejavam prolongar o domínio sob sua propriedade ou mesmo tirar vantagens econômicas do esforço de seu cativo para conquistar a liberdade ou para melhorar sua condição social. Foi esse o dilema enfrentado pela crioula Francisca de 36 anos, escrava do senhor Francisco Raimundo Correia, narrado no relato feito por seu curador Graciliano Aristides de Prado Pimentel quando, em 1873, elabora a petição inicial em do processo aberto em sua defesa:
Diz a preta Francisca, por seu curador, que, achando-se depositado por mandato de V. Ex.a, a fim de resgatar a sua liberdade, e tendo depositado em mão de José Patrício de Castro Pereira, a quantia de 600$ para esse fim destinado, requer à V. Ex. a se digne mandar citar ao seu senhor Francisco Raymundo Correia de Faria Sobrinho para vir receber em juízo na primeira audiência a referida quantia e passar carta de liberdade à suplicante ou nomear e aprovar peritos que avaliem a suplicante sob pena de revelia.[11]
A curta narrativa do dilema enfrentado por Francisca, que a impeliu travar uma batalha judicial contra o seu proprietário, possibilita atentar para o fato de que nas últimas décadas em que a escravidão vigorou nem sempre prevalecia o “cálculo senhoril”, como argumentou Manolo Florentino referente a algumas décadas anteriores. A despeito da concessão do proprietário, era uma época em que a via judicial, como outros tipos de atos de resistência, favorecia aos cativos em suas agências pela liberdade.
A leitura do processo informa que o senhor Francisco Raymundo Correia de Faria Sobrinho, o proprietário de Francisca, alegou em juízo tê-la comprada por R$ 1:600$000 (um conto e seiscentos mil-réis) – valor bem mais alto do que o de mercado à época da tentativa de autoindenização de sua escrava – e, segundo os argumentos do curador, pretendia repor esta quantia sem considerar a desvalorização e, também, os anos de exploração nos quais a escrava esteve “arruinando a saúde”. A despeito da vontade do proprietário, Francisca em uma primeira avaliação, tem estipulada sua indenização em R$ 700$000 (setecentos mil-réis). Alegando estar sendo prejudicado, o senhor Francisco consegue que seja feita uma segunda avaliação de preço de sua cativa. Como resultado, o valor da indenização é aumentado para R$ 1:200$000 (um conto e duzentos mil-réis). Dando prosseguindo ao litígio, o curador de Francisca entra com um pedido de reforma desta segunda avaliação alegando ser ela ilegal.
Os bastidores do processo e os argumentos utilizados pelos advogados do senhor Francisco, que levaram os peritos, em uma segunda avaliação, aumentar em quase 80% o valor da indenização de Francisca, são detalhes que escapam ao nosso conhecimento. Mas cabe ressaltar a coragem de uma escravizada ao enfrentar seu proprietário em um tribunal. Afinal, o que estava em jogo no processo era o seu valor no mercado de carne humana. O seu direito à liberdade que Francisca garantiria mediante ao pagamento de um valor acordado. Não pode haver dúvida quanto o interesse dessa mulher nesse processo. Este fato parece ser de conhecimento do proprietário de Francisca que busca tirar o máximo de vantagens do projeto da visão de liberdade de sua escrava.[12]
A documentação colabora para dar visibilidade à dinâmica da relação envolvendo senhores e escravizados naquele período. O resgate do drama enfrentado por Francisca é importante fundamentalmente para destacar que a alforria forçada já era uma prática costumeira nas negociações judiciais por liberdade. Fato que tem relação direta com o texto final da redação da Lei 2040, que reconheceu uma série de direitos dos escravizados. Mas o seu significado é mais amplo, por indicar que os escravizados souberam extrair diversos significados daquela lei. Em verdade, foram bem além de sua intencionalidade para que o texto fosse revestido em conquistas rumo à aquisição da liberdade.
As/os africanas/os e seus descendentes, cativas/os, utilizaram as ações de liberdade, enquanto instrumento legal, como prerrogativa quando da impossibilidade de chegar a um acordo com seus senhores. Em verdade, o caso de Francisca apresenta uma situação limite, quando a via “política” não dava conta das negociações e a ganância dos senhores impulsionava-os até mesmo a burlar leis preestabelecidas no intuito de não conceder a tão almejada alforria a seus escravos. Porém, o que se tem tentado ressaltar é que o que foi recuperado da leitura da documentação, que revela a atuação política pela via legal como uma ação tática daquela mulher negra, pode ser considerado um modelo daquilo que Edoardo Grendi cunhou como “excepcional normal”. Uma experiência que é aparentemente excepcional, mas que se constitui como uma prática comum no cotidiano social.[13]
Foram muitos os cativos que, não tendo conseguido acumular pecúlio para elevar-se á condição de liberto e, atentos às transformações culturais de sua época procuravam meios legais obterem a sua alforria e para que seus descendentes desfrutassem desta condição. Outros casos analisados deram conta de demonstrar essa que parece ter sido uma norma do cotidiano social. A pesquisa documental permitiu trazer a tona experiências como a de Eva, escrava de Antônio Francisco Couto. Tudo leva a crer que, durante sua gestação, a escravizada, atuando em favor da liberdade, conseguiu acumular um pecúlio de R$ 70$000 mil-réis para comprar a alforria da filha que carregava em seu ventre logo após o seu nascimento. Ao nascer, a criança recebeu o nome de Francelina. A ação, calculada, de Eva garantir-lhe-ia a consecução de um projeto familiar: ver livre a sua descendência. Afinal, segundo o que parecem ter sido os seus cálculos, os futuros filhos de sua filha não nasceriam sob o julgo da escravidão.
A parda Francelina nasceu em três de abril de 1860, no Rio de Janeiro. Foi liberta na pia de batismo por sua senhora, D. Joana, em maio do mesmo ano. Entretanto, em 1870 teve sua liberdade contestada pelo senhor Couto, marido de dona Joana, que utilizando como argumento princípios como o de “o parto segue o ventre” e, denunciando o machismo daquela sociedade, o da “incapacidade da mulher”. Consegue, assim, a reescravização da menina. Era outro tempo. Segundo o resultado da apelação proferido pelo juiz responsável pelo julgamento da ação: “não pode a mulher casada conceder liberdade a um escravo do seu casal”. Apesar do argumento do procurador Domingos Custódio de Souza – que a soma auferida com a liberdade da escrava teria servido à subsistência de ambos – em conclusão, o juiz argumentaria que “a tese jurídica, discutida nestes autos é a incapacidade da mulher do recorrido para conceder liberdade a uma escrava do casal”. A pequena Francelina, aos 12 anos de idade, deixa de pode ostentar o estatuto de liberta.
Se naquele tempo, naquela sociedade escravista, os esforços de Eva para obter a soma necessária para ver sua filha Francelina crescer como liberta não foram bem-sucedidos, o fato, em si mesmo, já é significativo. A experiência dessa mulher negra é um indicativo da complexidade das estratégias de lutas por direitos, pela liberdade e por melhoria das condições de vida e de um tipo de ativismo que as/os escravizadas/os protagonizavam no objetivo de defender e proteger direitos duramente conquistados. Um tipo de fenômeno que transcorria até mesmo de forma ascendente e geracional, ou seja, mãe lutando para que seus descendentes tivessem uma experiência de vida em melhores condições que a sua. Vale anotar, no entanto, que, tendo em vista a diversidade de relações sociais possíveis e a complexidade das relações escravistas em áreas urbanas, nem sempre foi este o movimento observado nos processos de aquisição de alforria. Sua conquista era algo que dependia da experiência individual e de circunstâncias específicas.
Uma dessas circunstancia era o caso de ser considerado injusto o preço proposto pelo proprietário quando da oferta de indenização da/o escrava/o de sua propriedade. Era uma prática comum no cotidiano que foi legitimada com as determinações da lei 2040. A partir de sua promulgação, nesses casos, seria instituído arbítrio para avaliar o justo valor a ser negociado na transação de transferência da posse de liberdade. No trato social, antes da lei, uma intervenção desse tipo podia ser feita até mesmo por um delegado de polícia, como se deu no caso envolvendo Francisca Rosa. A senhora de uma escravizada de nome Rufina, reconsiderou e prometeu, na presença da dita autoridade, conceder a alforria de sua escrava pelo valor de um conto e quinhentos, “pedindo tão somente que não demorasse a conclusão do negócio por mais de oito dias”.
O caso foi relatado em um recurso de apelação interposto pai da escravizada, o africano Francisco Diogo, da nação cabinda[14].Provavelmente, percebendo a importância de um ventre livre, após ter conseguido obter sua própria alforria, trabalhou duro para comprar libertar sua filha. Infelizmente o projeto familiar não foi bem-sucedido. O caso foi ajuizado por que proprietária nem mesmo deu atenção ao prazo proposto pelo delegado de polícia. Francisca Rosa, apesar de ter sido chamada a delegacia várias vezes, por se recusar a concluir as negociações, acabou fazendo com o que poderia ser uma rápida negociação se estendesse por muitos anos.
A abertura do processo se deu no ano de 1856. Mesmo ano em que o preto Francisco Diogo, no intuito de negociar a liberdade de sua filha, procurou a senhora Francisca Rosa para que esta “abrisse o preço” para a venda de sua cativa, o valor apresentado foi a quantia de dois contos de réis. Valor considerado abusivo pelo pai da apelada. Em julgamento de primeira instancia, em 1856, Francisco Diogo teve seu pedido deferido. Segundo as autoridades: “Vista do exposto sendo evidente que o suplicante tem legitimo direito de libertar sua filha, visto que a suplicante abriu preço à liberdade prometendo-o positivamente perante pessoas respeitosas”.
No entanto, Francisca Rosa recorre da decisão, saindo vitoriosa em um segundo julgamento em 1859. O resultado que foi contestado por Francisco que diz ser a filha,
Vitima da caprichosa bronca de uma mulher rancorosa, que depois de ter formalmente prometido conceder a alforria de uma sua filha, depois de ter aberto preço, retratou-se por ciúmes que teve de um seu amasio que fora um dos protetores da misera escrava, e a conseqüência de tudo, e que o recorrente depois de ter esgotado todas as suas economias, tudo quanto possuía, tem de ver sua filha voltar a um cativeiro bárbaro, a fim de cevar (?) a vingança por muito tempo comprimida por sua senhora.[15]
Pode ser que pai e filha tenham, de alguma forma, se beneficiado com o entendimento judicial sobre a questão. Uma vez que, em 1869, treze anos após a abertura do processo, o caso continuava sem resultado. É o filho Francisca Rosa, Antônio Gomes Pereira, quem neste ano reivindicava a posse de Rufina.
Se no caso da crioula Francisca, exposto acima, a questão provavelmente envolvia o desejo do seu senhor em lucrar ao conceder a liberdade a sua escrava, o caso da supervalorização do preço da indenização de Rufina envolvia relações pessoais mais complexas. Segundo se verifica na documentação, um dos “protetores” que financiou o valor da pleiteada indenização de Rufina era ou fora amásio de dona Francisca Rosa. Segundo o pai da Crioula Rufina, este teria sido o principal motivo de o processo se arrastar nos tribunais do Império por mais de uma década. É importante ressaltar que mesmo tendo recentes estudos destacado a autonomia e a liberdade de movimentos dos escravos urbanos, Francisco Diogo foi enfático em desqualificar a condição de vida da filha, classificando-a de “mísera” e chamando de “bárbaro o seu cativeiro”. Condições que as/os escravizadas/os tinham por objetivo mudar através de atos individuais e coletivos de resistência diários, que podem ser organizados e entendidos, destacadamente o seu caráter de ativismo, para uma maior compreensão de suas lutas.
Lutas que vêm de longe
Eva e Francisco Diogo não representam casos excepcionais de escravos fluminenses que conseguiram acumular pecúlio. Através de seu senhor, ou de um protetor de melhor condição social, vários escravizados depositaram judicialmente somas auferidas com o seu trabalho no objetivo de se autoindenizar. Só para exemplificar, e voltar às narrativas das experiências de atuação políticas pela via judicial por parte de mulheres negras escravizadas, verificou-se que, em outubro de 1876, quando a Junta Classificadora de Escravos[16] concluía o trabalho de seleção daqueles seriam contemplados para, com os recursos arregimentados, receberem a sua alforria, pelo menos 127 escravos residentes no Município Neutro foram identificado como possuidores de depositário.[17]
Trabalhar por anos para obter o pecúlio necessário para sua própria indenização e/ou a de seus entes queridos foi escolha estratégica daqueles que as circunstâncias assim permitiram. Estratégias mais “políticas”, no entanto, tiveram que adotar aqueles que ou não tinham um ofício, ou não tinham a permissão para andar ao ganho, ou que sofreram qualquer tipo de impedimento de acumular um pecúlio. Estratégia desse tipo seria, por exemplo, se fazer merecedor da concessão da liberdade por parte do proprietário. Como já foi anotado, os modelos de alforrias gratuitas e de servir predominaram em meados do século XIX, destacadamente Corte, o que para Manolo Florentino representou uma etapa mais politizada das negociações entre senhores e escravos. É preciso ainda ressaltar que, em ambos os casos, podia estar em jogo tanto a reprodução das relações escravistas quanto uma possibilidade real de deixar para trás o “misero” cativeiro.
Nos casos de concessão da alforria por condicionalidade, a condição para a liberdade podia ser a de servir por longos anos a um proprietário ou a seus herdeiros. Como se corria o risco de uma eventual impossibilidade de efetivação do acordo, assumir a/o escravizada/a uma postura dócil e obediente até que decorressem os anos estipulados por promessa ou em testamento, era uma escolha estratégica e calculada de muitos cativos. Fazia parte dos cálculos políticos, afinal, foram vários os casos em que se observavam esses projetos serem interrompidos por herdeiros ou tutores, atingidos pela crise econômica da época ou desejosos em ampliar seus lucros, para o que já chamou atenção Sidney Chalhoub. Circunstancias que não frustraram as expectativas de muitos escravizados fluminenses, não colaborou para desistirem de obter a liberdade e melhorar sua condição social, como comprovam os números recenseados.[18]
O caso da crioula Rosa, de 29 anos por ocasião da abertura de seu processo, é um exemplo de uma mulher negra escravizada que obteve a liberdade condicionada a um comportamento dito adequado. E foi exatamente este o argumento apresentado pela cativa ao curador para que ele construísse a narrativa de sua defesa. Em 1872, o processo de Rosa chega à Corte de Apelação. Nele, a apelada reclama por ter sido vendida, pela viúva de seu falecido proprietário, o senhor José Bento, ao senhor João Batista de Oliveira Ferraz. Segundo Rosa, seu falecido proprietário, em seu testamento, teria lhe concedido a liberdade sob a condição de servir a seu sogro enquanto este vivesse. O senhor Bento estabeleceu o seguinte no documento: “Se falecesse em época que seu sogro ainda vivesse, ficariam livres seus escravos com a obrigação de o servir, durante a sua vida, isto no caso de que tais escravos procedam bem”.[19]
Segundo o curador, a “autora sempre procedeu bem, obediente, sossegada, humilde e ativa nos serviços que lhe eram ordenados”, tal qual a exigência do falecido. Uma vez falecido o sogro do senhor Bento e tendo Rosa “procedido bem” em servi-lo enquanto este vivia, considerou a mulher negra que a condição de sua liberdade já estava satisfeita. Supunha que poderia, então, gozar totalmente de sua liberdade. Entretanto, viu-se em meio a uma negociação que envolvia a sua venda e resultaria na continuidade da sua condição de cativa. Rosa, então, muda a sua tática e recorre aos tribunais.
Muito provavelmente o comportamento obediente, sossegado, humilde e ativo na execução dos serviços demonstrado por Rosa ao longo dos últimos anos de vida do sogro do senhor Bento, fazia parte de uma estratégia para a obtenção de sua liberdade e melhoria de condição social. Podendo mesmo ser interpretado como uma prática individual e efetiva de transformação da realidade. Do tipo possível de ser acessado nas circunstâncias em que aquela mulher vivia. Estratégia parcialmente vitoriosa, uma vez que teve ela sancionada a sua liberdade em primeira instância. Infelizmente, o senhor João Batista recorreu. O resultado final deste libelo não foi possível constatar na documentação, mas vale o resgate da forma de luta dessa mulher negra pela causa da liberdade.
“Viver em conformidade” foi também a estratégia da escrava Carolina. Com o falecimento de dona Maria Felizarda do Nascimento, foi ela doada à sua filha Maria Felizarda da Cruz, em 1855. Isso por que teve sua liberdade condicionada a servir a proprietária, a mãe, e a seus donatários – marido, filhos e netos – enquanto esses vivos fossem. O Conhecimento minucioso da cláusula testamentária que narrava a condicionalidade proporcionou a construção do argumento que serviu de base à ação de liberdade movida contra o contestador Felicíssimo Antônio Gomes, em 1870, quando morre sua esposa, a donatária. O que rezava o documento, estabelecido no testamento deixado por Dona Maria Felizarda do Nascimento, sogra do réu, era que a liberdade plena da escravizada Carolina estava condicionada “aos serviços da A., à donatária já referida, e por morte d’esta donatária à seus filhos, e caso não os tenha, ao seu marido, e caso faleçam os donatários, ficaria liberta a A.”[20]
Segundo a autora do processo, a escrava Carolina, a donatária Maria Felizarda da Cruz tivera um filho, de nome Fructoso, e ele teria morrido em idade tenra. A morte imatura do filho da donatária, provavelmente, criou na cativa a expectativa de se ver alforriada ao término do cumprimento da condição relacionada à filha de sua falecida proprietária. Não contava que o marido de Dona Maria Felizarda da Cruz se tornasse um impedimento ao usufruto pleno de sua liberdade. Em contrapartida, o senhor Felicíssimo Antônio Gomes, possivelmente, também não contava que a experiência do cativeiro pudesse ter produzido em Carolina algumas percepções acerca de seus direitos.
Carolina percebeu que as coisas estavam fora do lugar, uma vez que o que ficava definido pelo testamento que os donatários seriam, então, a filha, os netos e o marido da proprietária. Na ação judicial movida, a cativa reivindica não somente o seu direito à liberdade plena, como também indenização, pelos anos que serviu indevidamente ao genro de sua ex-senhora. A questão da rede de sociabilidade que favorecia aos cativos obterem acesso a informações contidas nos testamentos de seus falecidos senhores permanece como um importante tema que envolve rever não somente alguns de seus significados, mas, também, o grau de autonomia e mobilidade das/os cativas/os.
A luta legal pela causa da liberdade
A manutenção do compromisso da concessão da alforria mediante indenização ou por ter a/o escravizada/a comprido a “condição” pré-estabelecida, mesmo em cláusula testamentária, se apresentou como um aspecto de uma luta no âmbito de uma “cultura legal”, que tinha por objetivo a conquista da liberdade pelos próprios escravizados. O conhecimento do conteúdo dos testamentos de seus falecidos senhores foi imprescindível nas batalhas judiciais para forçar supostos donatários ou herdeiros a manter o acordo feito pelo proprietário. Mas é necessário destacar que trabalhar além do necessário para se obter um jornal que excedesse o exigido pelos proprietários, ou em atividades extras – no caso dos escravos ganhadores – que possibilitava acumular um pecúlio, foi sim um dos modos operantes das estratégias utilizadas pelos escravizados urbanos nas últimas décadas de vigência da escravidão para transformar suas condições de vida, de maneira geral. A historiografia sobre o tema é ampla. Porém, foram relacionados para a reflexão proposta com este texto, processos e ações judiciais que tratam de específico ativismo de mulheres negras escravizadas, ou seja, do uso de uma “cultura legal” em suas práticas efetivas de transformação da realidade em que elas viviam.[21]
O texto será concluído com a abordagem de ações judiciais que chegaram à instância de apelação cujas autoras eram mulheres negras exclusivamente exploradas na prostituição. Trata-se da análise de Ações de Liberdade que chegaram aos tribunais do Município Neutro na defesa da liberdade com base no argumento de submissão a uma “escravidão ilegal e infame”. Todos foram abertos a partir do início da década de 1870. Envolviam até mesmo escravas pretas e pardas que se alojavam em casas montadas pelos seus próprios senhores que as obrigavam ao pagamento de uma diária bastante elevada. Aqui trataremos dos casos de sete mulheres negras que aparecem como autoras em processos, cuja referência já foi pontuada, a parda Rita, moradora da rua carioca nº. 103; a preta Efigênia de 24 anos; a parda Joaquina de 25 anos, moradora da rua das violas nº. 91; a crioula Josefa; Marcelina, escrava de José Vás da Costa; Eulália, moradora da rua do Hospício; e a quitandeira Eva.
De acordo com Sidney Chalhoub, as ações judiciais movidas na Corte em favor das negras exploradas na prostituição foram resultadas dos esforços conjuntos de um chefe de polícia e do juiz municipal da Segunda vara municipal de nome Miguel José Tavares. Fizeram no sentido de combater “o imoral escândalo da prostituição escrava”. No entanto, é possível perceber as agências das cativas no processo de construção de suas defesas por seus curadores. O acordo entre as duas autoridades, provavelmente feito com base no Direito Romano segundo o qual o senhor que forçasse a uma escrava a se prostituir era obrigado a libertá-la, se deu em 1871. Entretanto, nos anos 1867 e 1869, dois chefes de polícia – Conselheiro Luiz de Paiva Teixeira e Francisco de Faria Lemos, respectivamente –, teriam tentado criar posturas públicas com o mesmo objetivo: diminuir o contingente de mulheres negras que se prostituíam pelas ruas do Rio. (Macedo Junior, 1869).
Nos processos, os advogados aparecem na condição de curadores. Como curadores, requeriam a remoção de suas curateladas para depósitos particulares ou públicos, onde aguardariam o julgamento da ação sumária de liberdade que era impetrada sob a alegação de má utilização da propriedade privada. Mau uso que rendia considerável lucro. Explorando suas escravas na prostituição os proprietários, em sua maioria mulheres, podiam obter uma renda diária de até quatro mil réis. Antes de se verem envolvidos em diligências judiciárias, muitos senhores libertaram as escravas que possuíam no exercício da prostituição. O que pode ter contribuído para um considerável aumento no número de cartas de alforria registradas nos cartórios da Corte no ano de 1871.
Em 1871 cerca de 200 escravas sexualmente exploradas estavam em litígio através de seus curadores. Todas enfrentaram judicialmente seus proprietários, questionamento o direito de propriedade, afirmando terem eles perdido o direito sob suas pessoas por aquela prática. Por exemplo, o curador da preta Efigênia alegou que a perda de direitos de seu proprietário se dava por infame procedimento, por prática de atos contra a moral e bons costumes. Em defesa de suas curateladas os advogados explicitavam as condições em que eram submetidas. Segundo eles, as escravas eram obrigadas a receber todos e quaisquer tipos de indivíduos. Também declararam que o trabalho causava sérios danos à saúde das cativas, que a atividade era proibida por leis nacionais e internacionais, não podendo uma escrava estar a ela submetida. Que o valor pago era todo entregue aos proprietários. Afirmavam, também, ser a prostituição uma atividade bastante lucrativa.
O processo da parda Joaquina, aberto em 1872, nos permite entrar um pouco no cotidiano de uma destas mulheres. A mulher negra chegou ao Município da Corte vindo da província de Santa Catarina a bordo de um vapor de nome Imperador na condição de escrava de José Bonifácio Caldeiras de Andrade. Foi vendida na Corte à dona Florinda, moradora na rua da Viola nº. 91, que logo se dedicou a explorá-la na prostituição. Mais tarde, Joaquina foi vendida para dona Amélia Carolina Garcia, filha do Conselheiro Thomas Xavier Garcia de Almeida. Enquanto vivia o Conselheiro, a integridade de Joaquina foi preservada. Após a sua morte, provavelmente por estar enfrentando os problemas econômicos do período, sua filha Amélia passa a alugar a escrava à dona Francisca, moradora à rua do regente nº. 24, que também passou a explorá-la sexualmente.
De acordo com a própria Joaquina, cobrava-se aos clientes, por visita, R$ 5$000 (cinco mil-réis). E ela recebia até oito homens, diariamente. O que significava que uma escrava submetida à exploração sexual poderia render ao seu proprietário até R$ 40$000 (quarenta mil-réis) diários, algo em torno de R$ 1200$000 (um conto e duzentos mil-réis) mensais. Importa anotar que, quando entra com processo, exigindo a sua alforria, a mulher negra possuía alguns graus de autonomia sob sua vida. Na qualidade de escrava de ganho, já havia trabalhado no bordel de dona Valquíria Adelaide Belford, que lhe dava alimento e onde conseguia até R$ 50$000 (cinquenta mil réis) diários. Seu bom desempenho pode tê-la favorecido na negociação com sua senhora.
Um acordo entre as duas tornou possível a escrava viver por sua própria conta, pagando um aluguel de trinta mil-réis mensalmente, mais o jornal exigido por sua proprietária, pois ela relata que:
Em março de 1871, dali saíra (do bordel de Dona Valquíria) e foi viver em casa de sua própria conta a rua de São Joaquim nº.49 – o que comunicou a D. Amélia, já então casada com o R. (o réu seria o atual marido de D. Amélia o senhor José Júlio da Silva) e a quem entrega o jornal.[22]
O nome de Joaquina provavelmente figurava entre os, aproximadamente, duzentos processos de liberdade ajuizados nos anos de 1871 e 1872. Foi por ter sido sua primeira ação rumo à aquisição da liberdade frustrada por sua ex-proprietária que seu processo chegou à corte de apelação. Pelo depoimento de Lionídia Rosa de Jesus, uma das testemunhas de defesa arrolada no processo, dona Florinda, primeira proprietária de Joaquina na Corte, só teria vendido a escrava ao saber que ela estava juntando pecúlio para remir-se da escravidão, disse ainda que o dinheiro vinha de donativos de “pessoas que compadeciam de sua sorte”. Dona Florinda, no entanto, apossou-se da soma e vendeu a dita escrava.
Nota-se que, apesar das circunstâncias, a escravizada lutava efetiva e insistentemente para transformar a realidade em que vivia. Apesar da autonomia e da provável melhoria da condição de vida, ter posse de sua liberdade era algo imprescindível para Joaquina. E, atenta à dinâmica do jogo político, viu na iniciativa daquelas autoridades uma possibilidade real de obtê-la, legalmente. Declarou em juízo já possuir o direito a usufruí-la desde que fora explorada sexualmente por dona Florinda, logo que veio província de Santa Catarina para o Rio de Janeiro. Concorria para sua defesa o fato de também estar sendo exposta à exploração sexual por seus proprietários por ocasião da abertura do processo. No entanto, a condição de “explorada” não fica muito clara no caso de Joaquina, as testemunhas arroladas não contribuíram muito para sua defesa. Foram, inclusive, desqualificadas pelo advogado de defesa do réu.
O desfecho do caso de Joaquina será analisado um pouco mais adiante. Mas até onde o seu processo permite recuperar, a escravizada não era “constrangida a deixar que o seu corpo fosse devassado e o seu pudor ultrajado, já por ameaças, já por efetivos castigos”,[23] como fora o caso de da escravizada de nome Josefa. Assim descrita a sua experiência de exploração sexual, esta curatelada, após passar por uma série de “constrangimentos”, foi também arrolada entre as prostitutas da Corte e o advogado designado para ser seu curador entra com uma ação de liberdade. Em 1872, manda citar como réus Caetana Rosa, Manoel Marquês de Carvalho Alvim e Matilde Rita do Nascimento. Todos com efetiva participação na trajetória de exploração sexual daquela mulher negra. A primeira por haver lhe iniciado no exercício da atividade e explorado, por três anos, seu corpo na prostituição, o segundo e a terceira teriam comprado a escrava para submetê-la ao mesmo tipo sujeição. Ainda assim, Josefa extrai das circunstâncias forças para lutar pela sua liberdade.
A preferência sexual de senhores por belas escravas pretas e pardas é tema recorrente na historiografia. Como se pode inferir, explorar economicamente tais mulheres representou um excelente negócio para senhores ávidos de aumentar seus rendimentos. Alternativamente – ou por não ter alternativa –, para algumas cativas, como parece ter sido o caso de Joaquina, a atividade se apresentou como oportunidade para obtenção de melhor condição de vida. Afinal, quando sua proprietária, dona Amélia Carolina Garcia, comunicou à Joaquina a necessidade de empregá-la ao ganho nas ruas do Rio de Janeiro, segundo teria confidenciado à sua amiga Lionídia, a própria cativa teria exposto as dificuldades de atuar como ganhadeira exercendo outras ocupações e teria sugerido ganhar por meio do exercício da prostituição.
A atividade parece ter estado nos cálculos de Joaquina, entendeu que se entregando à prostituição poderia amealhar o suficiente para juntar o pecúlio necessário à autoindenização. Isto ficou evidenciado também no caso de Marcelina, escrava de José Vás da Costa, cujo processo chegou à Corte de Apelação em 1873. A escravizada declarou em juízo que, por cinco anos, vinha empregando-se nesta atividade. Declarou também viver “sob si” e que “para esse efeito recebeu de seu senhor autorização escrita para fazer economias separadas, e até para promover um benefício em seu favor”. O problema foi que “apesar de todos os lucros colhidos nesta torpe indústria não quis o seu senhor conduzi-la a liberdade”.[24]
Marcelina era um sobrevivente ao regime de opressão do escravismo. Vivia com sua mãe, era responsável pelo pagamento de seu próprio aluguel e remetia mensalmente ao senhor José um jornal de R$ 60$000 (sessenta mil-réis). Chegou até mesmo a ser citada nos autos como “chefe de família”. De acordo com os argumentos do advogado de defesa da mulher negra escravizada, a condição de vida da cativa poderia se “nivelada” aos livres da cidade. E para viver como se livre fosse, tinha que se submeter, a contragosto, a uma atividade que classificou como “torpe indústria”.
Entretanto, o círculo do trajeto percorrido pela informação sobre a decisão do delegado de polícia e do juiz da Segunda Vara de promover as ações de liberdade envolvendo as escravas submetidas à prostituição por seus senhores, iniciada a pelo menos dois anos antes da abertura do processo em seu favor, chegou à Marcelina. Como a liberdade estava no horizonte de suas expectativas, a estratégia utilizada por aquela mulher negra naquela conjuntura foi a de também recorrer, em seu próprio favor, “à humanitária providência tomada por esse juiz para arrancar do cativeiro algumas escravas”. Também no seu caso, o pecúlio oferecido ao seu senhor não foi aceito. A via legal da autoindenização não fora bem-sucedida. Apesar da abertura de seu preço pelo proprietário, e de a escrava já possuir pelo menos R$ 400$000 (quatrocentos mil-réis) a título de pecúlio, o senhor Vás se recusou a finalizar a negociação.
Mas foram deverás vários os casos bem-sucedidos. Segundo relatório enviado pelo Chefe de Polícia da Corte ao Ministro da Justiça, somente no ano de 1871 teria sido expedido 186 cartas de alforrias motivadas por haver os proprietários de escravas explorando-as sexualmente.[25] Nessas circunstancias, é bastante plausível que a difusão da decisão judicial em favor das negras escravizadas exploradas na prostituição possa ter, de fato, aberto brechas para algumas escravas tentarem obter suas alforrias acusando indevidamente seus senhores. Foi o que concluiu o juiz que indeferiu a ação de liberdade movida pela suposta quitandeira Eva.
Assim como Marcelina, Eva teria procurado, em 1872, as autoridades judiciais para acusar seu proprietário, o senhor Eduardo Xavier dos Santos Lima, de explorá-la na prostituição pelo menos um ano antes. Segundo sua declaração, ela se prostituía em uma casa da rua Estreita de São Joaquim. Seu proprietário alegou em sua defesa que tinha a negra em ganho lícito, recebendo por dia o “módico jornal de mil duzentos e oitenta réis” proveniente da venda de quitandas e que não era culpado se ela, sem o seu consentimento e em virtude de sua “ninfomania”, se entregava à prostituição. O curador, entretanto, retrucou dizendo ser impossível que o senhor de Eva desconhecesse sua verdadeira atividade. Além disso, a atividade de quitandeira não poderia render o acerto que lhe era pago.
Dessa feita, a balança da justiça pendeu em favor do réu. O juiz em sua sentença considerou que Eva tinha apenas licença para quitandar e que se prostituía sem o conhecimento ou responsabilidade do proprietário. O argumento vencedor foi o produzido pelo advogado de defesa do senhor Eduardo. Ele teria se apresentado em juízo e afirmado que seria o exposto pelo curador teria sido “invento para ver a autora se consegue a liberdade envolta com essas outras que têm sido depositadas”. Segundo ele, seu cliente teria a apelada em “ganho lícito, que provendo trabalho auferindo de seus jornais unicamente quatro patacas (1$286 mil-réis) por dia. Além disso, segundo as testemunhas arroladas, até mesmo para a defesa da autora, a escrava nunca tinha sido vista dedicando-se à prostituição, apenas souberam do fato por terem ouvido a confissão da própria boca de Eva.
Pode não ter sido esse aquele caso, mas explorar as belas cativas em atividade sexual rendia aos senhores uma pequena fortuna que significaria, em pouquíssimo tempo, a quantia suficiente para a compra de uma nova escrava. Considerando que o aluguel de uma escrava variava de R$ 30$000 (trinta mil-réis) a R$ 50$000 (cinquenta mil-réis) mensais, para alguns proprietários, não preocupados com a “moral e os bons costumes”, este tipo de atividade, na qual se podia empregavam sua escravaria feminina, era uma excelente fonte de lucro. Donas de bordéis, como Valquíria Adelaide Belford Silveira, podiam enriquecer com tal atividade. Segundo a preta escrava de nome Efigênia, sua falecida proprietária, Eva Joaquina de Oliveira, tinha cativas pelo menos oito escravas, todas sendo obrigadas a se prostituir.
Algumas donas de bordéis podiam mesmo funcionar como “testa de ferro” de proprietários ambiciosos. De acordo com o processo da parda Eulália, escrava de propriedade do senhor Antônio Pereira Liberato, quando veio da província do Paraná para supostamente ser negociada por Francisco José Pereira Liberato – irmão do proprietário contra quem, indevidamente, é movida a ação de liberdade – teria sido explorada na prostituição no bordel de Dona Corina, uma parda moradora da rua do Hospício. Eulália, no entanto, declarou que a diária de 15$000 mil-réis que obtinha por ser explorada nesta atividade não era destinada à Dona Corina antes, “a uma moça que lá ia buscar”. A “moça” em questão podia ser um membro da alta sociedade fluminense, como dona Amélia Carolina Garcia, filha de um renomado político brasileiro, o Conselheiro Thomas Xavier Garcia de Almeida. Como já anotado, após a morte do pai, ela passou a alugar a negra escrava Joaquina à dona Francisca que a explorava sexualmente. A herdeira do conselheiro pode ter feito parte de uma categoria de mulheres daquela sociedade que, pela pouca habilidade em lidar com um mundo dos negócios eminentemente masculino, e por considerarem mulheres de uma categoria superior, estiveram mais afeitas a encaminhar suas escravas ao ganho através da arte de seduzir. Provavelmente a prática se dava com os seus consentimentos.
Como relatado, quando chamado a depor como réu no processo, o proprietário de Eulália, alegou desconhecer que sua cativa estivesse em uma casa para ser explorada na prostituição. Identificava a casa de Corina como tão somente uma casa para venda de escravos. Assim como dona Francisca, dona Corina e seu estabelecimento poderiam estar colaborando para que pessoas da alta sociedade, como os irmãos Pereira Liberato e dona Amélia Carolina Garcia, pudessem estar aumentando seus lucros explorando o corpo de negras escravizadas, sem o prejuízo de serem vistos como transgressores da “ordem e dos bons costumes”.
E o processo histórico aqui analisado também envolveu a desumanização da mulher negra. Quiçá para que a sua exploração sexual, mesmo por outras mulheres, não entrasse em desacordo com o ideal de feminilidade vigente à época – que procurava destacar o papel da mulher como o de mães protetoras, parceiras e amáveis donas de casa. Um dos chefes de polícia do período, o senhor Francisco de Faria Lemos materializou a ideologia ao dizer em seu relatório que “a escrava posta à janela, não é uma mulher, é uma máquina que se move ao aceno da senhora, que a faz rir para os transeuntes com medo de ameaças das lágrimas de dor do azorrague”. [26] Importa ressaltar que o mesmo deixava transparecer no seu relato a prevalência do elemento feminino nesse tipo de exploração.
Como já destacado, aquela não era apenas uma sociedade com escravo. Era uma sociedade escravista. Como tal, produzia diferentes estruturas de acordo com específicas conjunturas. Assim, nem sempre pardas e pretas donas de bordéis foram apenas “testas de ferro” de conceituados membros da Corte. Em alguns casos explorar sexualmente negras escravas foi estratégia de sobrevivência àquele mundo. Tendo em vista a dinâmica de exclusão capitalista, a performance pode ter sido o caminho encontrado também por mulheres negras alforriadas para extrair das circunstancias opressora de sua vida um arranjo econômico plausível. Por exemplo, no caso da crioula Efigênia, sua falecida proprietária de nome Eva Joaquina de Oliveira era uma preta forra. Na condição de curatelada, Efigênia declarou que a mulher negra tivera a propriedade de pelo menos oito escravas, todas exploradas na prostituição. Na ação que move contra seus herdeiros e o senhor Manoel Furtado de Mendonça – testamenteiro, inventariante e ex-amásio –, afirma que foi comprada pela preta aos catorze anos de idade e explorada na prostituição por pelo menos seis anos.
Difícil saber se a condição racial dos réus interferiu no desfecho do caso da crioula Efigênia. O que temos como fato é que, entre sucessos e fracassos judiciais, pode-se destacar o resultado da sentença que se pode ler no seu processo, que tramitava na Corte de Apelação em 1872, como uma das poucas Ações de Liberdade examinada a constar a imputação dos envolvidos na exploração sexual daquelas mulheres negras. Nela se lê:
Por este procedimento (i.e., o de obrigar a escrava a atos contra a moral e os bons costumes), segundo o direito romano, subsidiário do nosso, perderão os réus o direito sobre a autora, que deve ser declarada livre, sendo eles condenados nas custas.[27]
Considerações finais
A análise sobre o papel e as experiências da mulher negra, destacadamente no trabalho escravo, de fato, tem sido um dos temas essenciais para a compreensão dos modos de funcionamento das sociedades marcadas pela tragédia da escravidão. E tema é caro ao feminismo negro. Ao defender que as mulheres negras são posicionadas dentro das estruturas de poder de maneiras fundamentalmente diferentes das mulheres brancas, o movimento encontra a legitimidade argumentativa em análises históricas como a feita nas páginas anteriores.
Destacadamente, o feminismo negro busca demonstrar que as relações racializadas, produzidas em contextos como aquele em que a escravidão vigorou como sistema que organizava a ordem social, influenciaram diretamente na feminilidade negra. Fundamentalmente por razão de serem as mulheres negras escravizadas percebidas como unidades de trabalho, unidades estas desprovidas de gênero. Mulheres cuja desumanização resultava em que aspectos da existência fossem ofuscados mesmo em análises sobre o trabalho compulsório. Os debates e discussões sobre a promiscuidade sexual obscureciam a situação das mulheres negras durante a escravidão, resultando na invisibilidade de suas agências.
A se permitir acompanhar reflexões como as de Sueli Carneiro a respeito de um provável majoritário contingente de mulher que não constituem parte do mito da rainha do lar, o feminismo negro remonta as vivências de ume grupo específico de mulheres e recuperam os sentidos de suas lutas enquanto sujeitos que, de fato, protagonizaram suas histórias. Conforme sugestões de Angela Davis, a partir desta perspectiva teórica e de específicos procedimentos metodológicos, é possível, então, deslocar olhares viciados sobre o tema do feminismo hegemônico e atribuir centralidade ao papel da mulher negra na luta contra as explorações que se perpetuam no presente.
Quando a documentação permite adentrar mais incisivamente nas redes sociais tecidas mesmos em contextos onde a opressão sobre os corpos femininos negros foi mais intensa, percebe-se que a as donas desses corpos, ou as que tiveram de lutar para que eles fossem seus, não permitiram que suas aspirações fossem frustradas. E quando o próprio sistema produziu oportunidade de corroê-lo, estiveram ali, atentas.
* Lucimar Felisberto dos Santos é pós-doutora pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2015); Doutora em História Social do Brasil pela Universidade Federal da Bahia (2013); Mestra em História pela Universidade Federal Fluminense (2006) e Graduada em História pela Universidade Federal Fluminense (2003). Experiência em pesquisas e estudos sobre História, Historiografia e Relações raciais no Brasil Imperial, com ênfase nas especificidades da história do Rio de Janeiro, escravista e urbano; sobretudo nas mudanças conjunturais ocorridas na virada dos séculos XIX ao XX.
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Notas
[1] Aqui, considera-se uma construção política e social. Seguindo a linha analítica proposta por Stuart Hall, utiliza-se “raça” como uma “categoria discursiva em torno da qual se organiza um sistema de poder socioeconômico, de exploração e exclusão – ou seja, o racismo” (Hall, 2009, p. 69).
[2] Em verdade, a Corte de Apelação do Distrito Federal foi criada posteriormente, em 1890, em substituição ao Tribunal das Relações do Rio de Janeiro estabelecido em 1751. Representou um órgão de Segunda Instância aonde eram julgados recursos dos diversos tribunais civis de todas as províncias brasileiras
[3] Segundo cálculos de Pedro Carvalho de Mello (1984) o preço de um escravo no mercado do Rio de Janeiro variou de R$ 627$000 (seiscentos e vinte e sete mil-réis) em 1835, para aproximadamente R$ 1008$000 (um conto e oito mil-réis) em 1870. Nos anúncios de venda de escravos analisados no Jornal do Commercio, no início da década de 1870, os preços variavam de R$ 300$000 (trezentos mil réis) – um escravo de meia idade – a R$ 1:200$000 (um conto e duzentos mil réis) – no caso de um escravo de 36 anos “acostumado ao serviço de ganho, ou para outros serviços”. O preço de venda dos escravos na década de 1870, seguiu em ritmo ascensional, sendo um cativo vendido, em 1880, por até R$ 1:600$000 – um conto e seiscentos mil-réis.
[4] Refletindo sobre o assunto, Sidney Chalhoub (1999, pp. 96-98) se utiliza da análise do caso do escravo Pancrácio, personagem de uma das obras de Machado de Assis. Utilizando como fio condutor para conduzir sua reflexão a narrativa criada para o personagem pelo literato, comenta as mutações das relações sociais na Corte no período que precedeu a abolição
[5] Em 18 de setembro de 1828, é criado o Supremo Tribunal de Justiça, como órgão de última instância, substituindo o Tribunal da Mesa do Desembargo do Paço, Mesa da Consciência e Ordens e a antiga Casa da Suplicação do Brasil. A Relação do Rio de Janeiro voltou a atuar como órgão de primeira e de segunda instâncias.
[6] A listagem constituiu parte de uma amostra das fontes escritas analisadas para a produção de um capítulo da minha dissertação de Mestrado defendida, em 2006, no Programa de Pós Graduação da Universidade Federal Fluminense (Santos, 2016).
[7] Processos que chegaram à Corte de Apelação, a 2ª vara cível do Município da Corte e fazem parte do acervo do Arquivo Nacional.
[8] Muitas das estratégias levadas a cabos por escravizados entraram para a legalidade após a publicação da Lei de 1871. Por exemplo, a lei, em seu artigo 4.º, regulamentou a prática do pecúlio, obrigando os senhores a concederem liberdade ao escravo que tivesse em sua posse o valor de sua indenização.
[9] Ao se referir Lei de 1871, está tratando-se da chamada Lei do Ventre Livre, também conhecida como “Lei Rio Branco”. Foi uma lei abolicionista, promulgada em 28 de setembro de 1871, assinada pela Regente em exercício, a Princesa Isabel. A principal disposição do instrumento legal foi tornar livres (ou ingênuos – categoria criada com a lei) todos os filhos de mulheres escravas nascidos a partir da data de sua promulgação. Mas a dita lei tinha seus meandros. Teve a função de regulamentar relações de trabalho aos libertos e escravizados, por exemplo. Quanto à criança nascida do “ventre livre”, como seus pais continuariam escravos (a abolição total da escravidão só ocorreu em 1888 com a Lei Áurea), a lei estabelecia duas possibilidades: poderiam ficar aos cuidados dos senhores de sua mãe, servindo-os, até os 21 anos de idade ou entregues ao governo para que o mesmo depusesse de seus serviços. Ao fim e ao cabo, o principal objetivo do instrumento legal foi o de possibilitar a transição, lenta e gradual, no Brasil do sistema de escravidão para o de mão de obra livre
[10] Sobre a flutuação dos preços do cativo, ver Mello, 1984, p. 104.
[11] Processos crimes da Corte de Apelação, 2ª vara cível, processo 14652, cx. 3688, Arquivo Nacional, 1873.
[12] De acordo com os números utilizados por André Boucinhas (2006) em sua dissertação de mestrado para analisar o consumo e comportamento no Rio de Janeiro na Segunda metade do século XIX, os trabalhadores urbanos e artesãos auferiam uma renda média anual de R$ 721$000 (setecentos e vinte e um mil-réis) ou R$ 60$000 (sessenta mil-réis) mensais.
[13] Edoardo Grendi (1977, pp.506-520), no artigo “Micro-analisi e storia sociale”, propôs um paradigma, baseado no oximoro “excepcional normal”. Sua reflexão era em torno da questão do uso das fontes históricas como “testemunhos indiretos”. Chamou a atenção para o fato de que qualquer documento aparentemente excepcional pode resultar, na realidade, “excepcionalmente normal” por, na verdade, revelar fatos comuns à realidade que o pesquisador tem por objetivo se aproximar
[14] Ações de liberdade da Corte de Apelação, 2ª vara cível, processo 7809, cx. 3798. Apelada: Rufina, crioula por seu pai o preto Francisco Diogo, Arquivo Nacional, 1856
[16] A Junta foi um órgão veiculado ao Fundo de Emancipação de Escravos, instrumento jurídico instituído pela lei “do ventre livre” que regularizava a lenta e gradual abolição no Brasil. O artigo 4º da lei nº 2.040 tratava sobre a obrigatoriedade de concessão de liberdade aos escravos que apresentassem “seu valor de compra” (Santos, 2009, pp. 18-39).
[17] Junta Classificadora dos Escravos, notação 6-1-39, Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro.
[21] Daí defender Chalhoub que “o texto final da lei de 28 de setembro foi o reconhecimento legal de uma série de direitos que os escravos haviam adquirido pelo costume e a aceitação de alguns objetivos das lutas dos negros” (Chalhoub, 1999, p. 159).
[22] Ações de liberdade da Corte de Apelação, 2ª vara cível, processo 14149, cx. 3688. Apelada: Joaquina, Arquivo Nacional, 1872.
[23] Ações de liberdade da Corte de Apelação, 2ª vara cível, processo 14198, cx. 3693. Apelada: Josefa, Arquivo Nacional, 1872.
[24] Ações de liberdade da Corte de Apelação, 2ª vara cível, processo 8293, cx. 36883. Apelada: Marcelina, Arquivo Nacional, 1873.
[25] Relatório do chefe de Polícia da Corte ao Ministro da Justiça, Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1871.
[26] Relatório do chefe de Polícia da Corte ao Ministro da Justiça, Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1871.
[27] Ações de liberdade da Corte de Apelação, 2ª vara cível, processo 14298, cx. 3687. Apelada: Efigênia, Arquivo Nacional, 1872.
Resumo: O artigo discute questões educacionais e suas implicações políticas, étnicas e sociais no Recife e suas cercanias, no século XIX. Tomando como base de análise os Censos produzidos em 1872 e 1890, procuramos compreender como era o acesso à instrução primária e os níveis de letramento da população naquele referido espaço. Documentos públicos, petições de populares, jornais e outros tipos de fontes nos ajudam a adensar as análises. Ao final, demonstramos o recorte étnico-social que perpassou a escolarização básica na capital pernambucana e região.
Abstract: This article discusses educational issues and their political, ethnic and social implications in Recife and its surroundings in the 19th century. Based on the analysis of the Censuses produced in 1872 and 1890, we sought to understand the access to primary education and the literacy levels of the population in that space. Public documents, popular petitions, newspapers and other types of sources help us thickening the analysis. In the end, we show the ethnic-social dimension that permeated primary schooling in Pernambuco’s capital and region.
O artigo que entregamos aos leitores é um ensaio que se ancora nos Censos de 1872 e 1890. O primeiro deles foi o mais amplo, geral e de caráter científico realizado no Império do Brasil. Apesar disso, o governo subestimou os problemas que enfrentaria para contabilizar uma população que habitava um território com dimensões continentais. Os prazos curtos, que foram estipulados para a difícil empreitada, ainda esbarraram na precariedade dos transportes e das comunicações. Foram tantos os problemas técnicos que precisavam ser superados, no registro das informações e na tabulação dos dados, que os resultados da missão estatística somente foram publicados em 1877. O Censo de 1890, por sua vez, que foi a segunda grande contagem da população brasileira, realizada no alvorecer do período republicano, também encontrou grandes problemas em seu processamento. Entre eles, as desconfianças que foram suscitadas nos recenseados e a demorada publicação dos resultados finais, feita em 1898, por causa irregularidade no envio de dados (Rodarte e Santos Júnior, 2008, p. 3; Gouvêa e Xavier, 2013, p. 104-105). Por tudo isso, ambos os documentos possuem imperfeições, mas são excelentes bússolas para compreendermos o Brasil oitocentista.
Ainda do ponto de vista empírico, para complementar o trabalho analítico que foi feito a partir dos Censos de 1872 e 1890, utilizamos as mais diversas fontes que podem ser encontradas em arquivos pernambucanos. Especial atenção mereceram as que foram produzidas pelos poderes públicos locais, como os relatórios da Instrução Pública, as correspondências trocadas entre os diretores desse órgão e os chefes do Poder Executivo e as leis que foram aprovadas para regular a escolarização. As petições de populares, que foram enviadas ao Poder Legislativo por meio de abaixo-assinados, solicitando a criação e/ou manutenção de aulas noturnas, também compõem com relevância o nosso corpus documental. Das entidades da sociedade civil recifense, compulsamos os estatutos e os manifestos de organizações voltadas para o fomento da instrução primária e os livros de matrículas dos alunos que estudaram no Liceu de Artes e Ofícios, estabelecimento de ensino criado por artesãos e professores pretos e pardos filiados a Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais. Os jornais pernambucanos, sejam eles de grande ou pequena circulação, finalizam o material que fundamental nossas análises.
Em todas as fontes que compulsamos, buscamos compreender as relações entre cor, condição jurídica, instrução e classe social na cidade do Recife e suas cercanias, tendo como recorte temporal os anos 1870 e 1880. Esse período é de vital importância não somente por causa dos censos de 1872 e 1890, que nos ajudam a aferi-lo, mas porque foi uma época em que se fortaleceu, no Império do Brasil, o debate sobre a escolarização popular em tempos de desagregação do escravismo e da criação de critérios educacionais para o exercício dos direitos políticos. Para apoiar nossas escolhas temática e temporal, a nova historiografia da educação tem absoluta importância, pois há muito tempo seus pesquisadores desconstruíram o mito de que os escravos e seus descendentes, trabalhadores livres ou libertos, pretos ou mestiços, no século XIX, passaram ao largo dos bancos escolares, estivessem eles em estabelecimentos de ensino públicos ou particulares (Fonseca, 2002 e 2007; Barros, 2005; Silva, 2000; Veiga, 2008). Sem dúvida, tal contribuição, cujos textos mais seminais foram publicados na década de 2000, dialoga com a renovação das pesquisas em história social da escravidão, iniciada nos anos 1980.
Apesar dos rigores e dos critérios acima descritos, há uma série de lacunas nesse artigo. Sem dúvida, elas são fruto da complexidade do período estudado, das análises mais panorâmicas que foram empreendidas e do fato de a pesquisa estar em processo de maturação. As limitações editoriais de um texto dessa natureza, que toca em tantos assuntos diacronicamente sensíveis, também nos impõem escolhas. Por exemplo, aqui não realizamos recortes de gênero, mas sabemos que a escolarização das mulheres é assunto de extrema importância epistemológica e política. Oportunamente, priorizaremos o debate da temática. Como último alerta, talvez o leitor sinta falta de algumas comparações entre os Censos de 1872 e 1890, mas, nem sempre isso é possível para o pesquisador. Apesar de ambas as contagens populacionais possuírem questionamentos comuns, outros são bastante específicos. Por exemplo, a realizada no período imperial faz um levantamento dos menores em idade escolar, indica sua cor e mensura os que frequentam estabelecimentos de ensino. A outra nada nos informa sobre o assunto.
A cor, a condição jurídica e a instrução da população recifense segundo o Censo de 1872
Em 11 de janeiro de 1873, o Diário de Pernambuco informava aos seus leitores que a cidade do Recife era composta por onze paróquias.[1] Orientado pela matéria que revelava alguns números do Censo de 1872, e também apoiado pela bibliografia especializada, sabemos que entre as paróquias mais centrais, pujantes e movimentadas estavam São Frei Pedro Gonçalves, onde estava localizado o porto e as principais casas de grosso trato da capital pernambucana, Santo Antonio, lugar onde se concentrava as vidas pública e administrativa provinciais, São José do Ribamar, região mais precarizada onde residiam muitos artesãos de pele escura, e Boa Vista, seio das camadas médias urbanas e espaço do comércio sofisticado. Graça da Capunga, Afogados, Poço da Panela, Várzea, São Lourenço da Mata, Jaboatão e Muribeca, cada qual com suas especificidades sociais, econômicas e demográficas, estavam entre as paróquias que compunham as chamadas zonas suburbana e rural da cidade. O rio Capibaribe era um vetor de comunicação e de transporte entre boa parte dessas freguesias quer entre si quer com o interior pernambucano (Carvalho, 1997, 1988; Arrais, 2004; Mac Cord, 2005, 2012).
Demograficamente, ao lançarmos nosso olhar para as onze paróquias que compunham a capital pernambucana, percebemos que nelas residiam 116.671 pessoas – aproximadamente 13,86% de toda a população provincial, segundo o Censo de 1872. Obviamente, esses indivíduos estavam distribuídos de forma bastante heterogênea no território recifense, sendo que 54,06% concentravam-se nas paróquias mais centrais. Impressionava a densidade populacional nas localidades de São Frei Pedro Gonçalves, Santo Antonio e São José, visto que eram insulares e somente poderiam crescer por meio de aterros – que foram sendo feitos no transcorrer do século XIX. Apesar de contar com muitos moradores, Boa Vista era continental e ainda suportava novos arruamentos no período em quadro, pois compunha o complexo “rurbano” da cidade e possuía relações de vizinhança com algumas paróquias suburbanas e rurais (Carvalho, 1997, 1988; Arrais, 2004; Mac Cord, 2005, 2012). O Gráfico 1 ainda oferece outro importante dado mais geral, para compreendermos o perfil populacional do Recife: 87,03% de seus moradores eram juridicamente livres, por mais que muitos deles conhecessem uma liberdade absolutamente precária.
Fonte: (BRASIL, [1874?]).
Para compreendermos os dados do Gráfico 1, e suas peculiaridades conjunturais, precisamos saber que, no transcorrer do terceiro quartel do século XIX, o contingente populacional do Recife mais que duplicou. O crescimento do número de pessoas juridicamente livres pode ser explicado por dois fatores. O primeiro deles nos remete para o significativo montante de trabalhadores livres que migrou do interior da província, por causa da chamada “crise na lavoura” açucareira registrada entre os anos de 1850 e de 1870. O deslocamento espacial pode ser justificado, portanto, pela busca de condições de vida e de emprego menos precários possíveis, já que as “modernizações” no plantio da cana de açúcar desempregaram e expulsaram um sem número de trabalhadores dos engenhos (Eisenberg, 1977; Marson, 2008). O outro fator nos remete para o tráfico interprovincial de escravos, comércio que se tornou uma alternativa ao fim do tráfico transatlântico de africanos escravizados, algo que somente se efetivou com a lei de 1850. Motivado pela expansão das lavouras localizadas no sul do Império do Brasil, muitos senhores recifenses, em busca de lucros, venderam seus cativos em função da nova demanda (Slenes, 1976).
A maior parte dessa gente juridicamente livre que viveu no Recife, e que representava 87,03% de sua população, era composta por matizes de cores as mais diversas. Pessoas com a pela escura, que se identificavam ou eram identificadas, entre outros etnônimos, como pardos, caiados, mulatos, pardos, pretos e cabras, fossem livres ou libertos, abundam na documentação. O Censo de 1872, que padronizou, em nível nacional, os habitantes do país como brancos, pardos, pretos e caboclos, fez com que perdêssemos essas nuances. Apesar disso, atentos ao Gráfico 2, observamos que 59,21% dos moradores da capital pernambucana se declararam ou foram declarados como não-brancos. A atribuição da cor sempre foi um dado sensível em nossa sociedade escravista (Mattos, 1998). Na primeira metade do século XIX, Pedro Pedroso, reconhecido publicamente como mestiço, se dizia preto ou mulato de acordo com suas conveniências (Pereira da Costa, 1984, p. 62). Os artesãos da família Ferreira Barros, pernambucanos livres da cor preta, no transcorrer do século retrasado, também passaram a se declarar pardos na medida em que conquistavam mobilidade social por meio da escolarização e do trabalho qualificado (Mac Cord, 2010).
Fonte: (BRASIL, [1874?]).
Estrategicamente, da mesma forma que os não-brancos ressignificavam os tons de suas peles a partir de uma plêiade de tonalidades escuras, o Gráfico 2 também permite que levantemos alguns problemas sobre a significativa presença de pessoas brancas no Recife – 40,79%. No Censo de 1872, observamos que a capital pernambucana contava com 8.038 estrangeiros, sendo que a maior parte deles, 6.110, era europeia – 5.288 portugueses e 822 indivíduos registrados com outras nacionalidades.[2] Africanos escravizados e livres contavam 1.859. Sul-americanos e asiáticos, 69. Aquele pequeno contingente de europeus, quase sempre associado à branquitude, representava apenas 5,23% da população recifense. A cidade não recebeu, no século XIX, e nem mesmo no final desse período, grandes levas de imigrantes vindos da Europa (Araújo, 1997, p. 209). Filhos e netos de portugueses, nascidos no seio da própria comunidade instalada na capital pernambucana, poderiam até ser fenotipicamente brancos. Da mesma forma, os outros europeus. Contudo, eram demograficamente irrelevantes. Creio que a maior parte dos brancos tabulados no Censo de 1872 tenha se declarado assim ou foi dessa forma declarado por razões sociais, políticas e econômicas.
A partir dos dados até aqui analisados, podemos afirmar que a maior parte da população recifense era composta por gente juridicamente livre, pobre e com a pele escura. O Gráfico 3 permite que adicionemos mais uma característica a esse contingente populacional. Na tabulação, observamos que 68,89% dos moradores da capital pernambucana eram analfabetos. A média nacional era um pouco maior, em torno de 82,3% (Ferraro, 2002, p. 34). Certamente, esses números geraram muitos debates entre aqueles que, desde meados dos anos 1860, se envolveram com dois temas relacionais: a instrução popular e o direito de voto. As elites letradas e proprietárias brasileiras queriam que a base da sociedade, em tempos de desagregação do escravismo, fortalecesse suas “moralidade” e “civilidade” por meio da instrução primária e da aprendizagem de ofícios (Martinez, 1997, P. 8-11, 50, 83; Kuhlmann Junior, 2001; Fonseca, 2002; Chalhoub, 2003, p. 282). Ao mesmo tempo, também queriam promover a exclusão eleitoral de uma massa de libertos e de livres pobres que não comprovasse renda e fosse desprovida de uma ferramenta básica: ler e escrever (Graham, 1997; Rosas, 2002; Dias, 2005; Souza, 2014).
Fonte: (BRASIL, [1874?]).
No Censo de 1872, apesar de não anunciada, há uma fronteira muito tênue entre os que foram considerados analfabetos e os que foram registrados como sujeitos que sabiam ler e escrever. O que chamamos de “alfabetização” é uma categoria espinhosa, que precisa ser problematizada no espaço-tempo. Historicamente, nos censos ocidentais e brasileiros, o simples fato de se assinar/desenhar o nome era parâmetro para que alguém fosse considerado alfabetizado para fins estatísticos (Ferraro, 2002, p. 31). Por si só, esse dado diminuiria, e muito, a percentagem dos que efetivamente soubessem ler e escrever. Outro problema surge quando “saber ler e escrever” é compreendido acriticamente, enquanto competências que são adquiridas simultaneamente. Pelo menos até a segunda metade do século XIX, de forma ideal, caso não existissem grandes percalços, primeiramente se aprendia a técnica da leitura em um prazo de até dois anos. Depois, caso fosse possível financiar o restante da instrução primária, o estudante poderia iniciar sua aprendizagem da escrita. Realizar as quatro operações matemáticas seria o último estágio dessa caminhada pedagógica (Morais, 2016, p. 98; Gouvêa e Xavier, 2013, p. 111).
Fonte: (BRASIL, [1874?]).
O Gráfico 4 permite que esmiucemos um pouco mais o anterior, revelando o elevado percentual de escravos que não dominavam o saber ler e/ou escrever. A legislação pernambucana pode ser um bom indicador para compreendermos o alto índice de analfabetismo entre os cativos. Aprovada em 14 de maio de 1855, a Lei n. 369, que dava nova organização à instrução primária provincial, proibia a matrícula de escravos em escolas públicas. Eles também estavam proibidos de cursar o Ginásio Provincial, estabelecimento público de ensino secundário. Só as escolas particulares poderiam aceitá-los em suas instalações (Collecção, 1855, p. 43, 47 e 51). Sem sombra de dúvidas, a Lei n. 369 tinha sua inspiração nas chamadas “Reformas Couto Ferraz”, ocorridas na Corte. Os legisladores pernambucanos foram inspirados pelo Decreto Imperial n. 1.221, de 17 de fevereiro de 1854. Ao proibir a matrícula de escravos em escolas públicas do município neutro, o governo central procurou reforçar hierarquias na sociedade escravista, frisar que o direito à instrução pública era prerrogativa constitucional do cidadão brasileiro e criar uma normatização que fosse seguida por todas as províncias imperiais (Silva, 2014, p. 91).
Apesar de os escravos serem proibidos de frequentar oficialmente a instrução pública pernambucana, na época do Censo de 1872, muitos travaram contato com o mundo letrado. Entre outras formas, quando necessitavam conhecer certos registros e códigos no mundo do trabalho ou ouviam leituras de textos feitas em voz alta. Tal ato de publicidade era feito pelos mais diversos tipos de gente, inclusive por escravos que aprenderam a ler e/ou escrever com seus senhores, malungos ou até mesmo em escolas particulares (Wissembach, 2002, P. 108, 110 E 119; Morais, 2016, p. 108 e 113; Machado e Gomes, 2017). Há vários exemplos de escravos letrados no Recife oitocentista, o que pode nos ajudar a compreender o percentual de 0,07% de cativos que, em algum nível, eram considerados alfabetizados. Nos jornais recifenses da primeira metade do século XIX, encontramos algumas notícias de venda e de fuga de artesãos escravizados que liam e escreviam (Luz, 2014, p. 169 e 243-244). Em mesmo período, Agostinho, o Divino Mestre, tinha mais de 300 seguidores entre livres, libertos e escravos. O profeta alfabetizava muitos deles utilizando-se de um ABC que condenava a escravidão com base na Bíblia (Carvalho e Ferreira, 2017).
Atentos ainda ao Gráfico 4, dentre os 31,04% de moradores livres do Recife que, em diversos níveis, sabiam ler e/ou escrever, podemos incluir muita gente de pele escura que conseguiu se capacitar por meio de processos pedagógicos formais, matriculando-se em escolas públicas ou particulares. Na primeira metade do século XIX, alguns meninos de cor, livres e libertos, tiveram a chance de frequentar a ainda pouco organizada instrução pública pernambucana. Eles eram oriundos de famílias nucleares chefiadas por homens. Nos poucos mapas disponíveis para análises, tais menores sempre foram registrados com suas famílias declaradas. Por causa desta regularidade, eles alcançavam algum grau de escolarização na medida em que fizessem parte de núcleos familiares organizados (Silva, 2007, p. 298-341). Entre os anos 1841, quando foi fundada, e 1872, quando foi feito o Censo, a Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais, grupo mutualista formado por artesãos pretos e pardos, livres e libertos, ofereceu aulas noturnas para seus sócios, e para trabalhadores em geral, em locais como a Igreja de São José do Ribamar, um sobrado na Rua Direita e uma espaçosa casa na Rua da Imperatriz (Mac Cord, 2012).
FIGURA 1 – Litografia aquarelada de Guesdon. Panorama da freguesia de São José por Frederick Hagedorn (1856). Diretoria de Documentação/CEHIBRA, Acervo da Fundação Joaquim Nabuco-Recife. Detalhe da obra que destaca a Igreja de São José do Ribamar.
Não era nada fácil para os trabalhadores pobres e de pele escura aprender a ler e a escrever quer de forma insuficiente quer de forma plena. Os que conseguiram frequentar alguma aula noturna enfrentavam imensos problemas para manter sua regularidade discente e o interesse pelos estudos. A Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais costumava afirmar que seus alunos precisavam de mais tempo que o habitual para fazer os devidos exames de habilitação. Segundo a entidade mutualista recifense, isso ocorria porque eles estavam em precário patamar sociocultural e ainda sentavam em seus bancos escolares muito cansados, logo após uma exaustiva jornada de trabalho (Mac Cord, 2012, p. 205-206). Junto disso, das dificuldades advindas do cansaço após a labuta diária, existiram outros entraves para a instrução formal da classe trabalhadora no período em quadro, como, por exemplo, a falta de professores dispostos a lecionar à noite em bairros mais distantes, a própria distância entre a residência do estudante e a escola, o cancelamento oficial de cadeiras de instrução primária por falta de público e a inexistência de boas condições materiais nos estabelecimentos de ensino noturno (Costa, 2012).
Sobre os 55,99% que era composto por gente livre e analfabeta (entre eles, certamente, uma imensa maioria de trabalhadores de pele escura), vários motivos podem ser arrolados para a compreensão da magnitude do dado estatístico recifense. Vejamos duas justificativas bastante representativas. A primeira delas nos remete para o parágrafo anterior, ou seja, para os problemas enfrentados pela classe trabalhadora, inclusive para garantir sua subsistência, o que afetava sensivelmente suas possibilidades de escolarização. De forma complementar, em inícios da década de 1870, existiram poucas aulas noturnas na província, como atestavam as próprias autoridades públicas (Lima, 2014, p. 62). Para tentar mudar o quadro, abaixo-assinados foram produzidos por setores mais pobres da população recifense, exigindo-as. Em 1871, os moradores dos povoados de Areias, Barro, Peres e Tejipió, em Afogados, peticionaram às autoridades a escolarização de seus filhos, impedidos de frequentarem as aulas diurnas porque trabalhavam.[3] Em mesmo ano, o professor da cadeira diurna da Graça da Capunga solicitou sua contratação na recém-aberta cadeira noturna da mesma localidade, ainda vaga, porque havia vinte interessados em aprender a ler e escrever.[4]
Os morados do Recife entre 6 e 15 anos: sua relação com a escola no Censo de 1872
No quesito “população considerada em relação às idades”, o Censo de 1872 organizou as pessoas de forma bastante criteriosa: “meses”, “anos completos”, “quinquênios”, “decênios”, “maiores de cem anos” e “não determinadas”. Nessa seção, voltaremos nosso olhar para dois “quinquênios” bastante específicos, listados naquele documento estatístico: dos 6 aos 10 anos e dos 11 aos 15 anos. Metodologicamente, nossa escolha é justificada quando observamos o próprio Censo de 1872, que, em seu quesito “instrução”, indica que a população em idade escolar era aquela que estava entre 6 e 15 anos. Ao estudarmos a Lei n. 369 de 14 de maio de 1855, que dava nova organização à instrução primária pernambucana, percebemos que sua compreensão sobre a idade escolar era praticamente a mesma. Em seu Capítulo 3, mais precisamente no Artigo 71, os legisladores indicaram que as escolas provinciais não poderiam admitir “alunos menores de cinco anos, nem maiores de quinze” (Collecção, 1855, p. 43-44). Tal regularidade vai ao encontro da construção de um tempo de vida associado ao aprendizado formal, que, no Ocidente, instituiu parâmetros sobre o que seria a mais adequada idade para se frequentar a escola (Gouveia, 2004, p. 278).
Na faixa etária entre 6 e 15 anos, portanto, segundo o quesito “população considerada em relação às idades” do Censo de 1872, o Recife contava com 27.801 habitantes. Os menores livres somavam 24.644 indivíduos, enquanto os escravos chegavam ao total de 3.157. Por sua vez, ao atentarmos para o quesito “instrução”, o referido documento estatístico demonstra que somente os menores livres (entre 6 e 15 anos) foram tabulados como sujeitos que estavam dentro (“frequentam escolas”) ou fora (“não frequentam escolas”) dos estabelecimentos de ensino da capital da província. Não há referências, infelizmente, se eles eram públicos ou particulares. Com esse critério demográfico, os censores somente consideraram em seus cálculos escolares os 24.644 menores livres, excluindo assim os 3.157 escravos. Em vista disso, ao retomarmos a Lei n. 369, de 1855, que dava nova organização à instrução primária pernambucana, notamos que, além de manter os escravos excluídos da instrução pública, a estrutura social não permitiu que eles estivessem em estabelecimentos particulares de ensino. Ou, na melhor das hipóteses, podemos sugerir que se deixou de fazer o registro oficial dos estudantes cativos que eram crianças e jovens.
Fonte: (BRASIL, [1874?]).
Em números absolutos, os 27.801 moradores do Recife que estavam em idade escolar correspondiam a 23,92% de sua população. Ou seja, quase ¼ das pessoas que habitavam a cidade, número superlativo, poderiam estar em escolas públicas ou particulares, segundo a Lei n. 369 de 1855. Ao observarmos o Gráfico 5, contudo, notamos que somente 19,24% dos menores, ou seja, 5.349 indivíduos livres, tinham real acesso à escolarização formal. Número bastante inexpressivo. Em outro momento, demonstramos que não era nada fácil para a classe trabalhadora conseguir instrução para seus familiares e agregados. Recordemos da petição que foi feita pelos moradores de Afogados, que não conseguiram matricular seus filhos nas aulas diurnas porque trabalhavam. E mesmo que os menores pobres, livres e trabalhadores conseguissem sentar nos bancos escolares, tinham frequência irregular porque lhes faltavam recursos e tempo (Veiga, 2008, p. 507-508; Barros, 2005, p. 80, 81 e 130). De uma forma geral, seus responsáveis buscavam escolas em que, junto do ler e escrever, se pudesse também aprender um ofício, receber roupas, abrigo, algum pecúlio e alimentação, como nos arsenais de Guerra e de Marinha (Silva, 2013, p. 27-61; Cunha, 2005, p.109-113).
Como podemos facilmente concluir, a precariedade cotidiana quase impedia que os menores pobres, livres e trabalhadores (matriculados em escolas públicas e particulares) continuassem seus estudos. Não por acaso, a estrutura social afastava por completo a maior parte deles das lições que eram oferecidas pelos professores primários da capital pernambucana. No Recife de 29 de outubro de 1875, em relatório para o presidente da província, a Inspetoria Geral da Instrução Pública corrobora nossa análise. O referido departamento governamental informava ao chefe do Poder Executivo que o público escolar era pequeno em toda a província por causa de circunstâncias conjunturais, como a disseminação da varíola e os tumultos causados por movimentos sediciosos (talvez estivesse fazendo referência ao “Quebra-Quilos”), e de problemas estruturais, como a pobreza e a miséria em que estavam mergulhadas as crianças pernambucanas, cujos pais não podiam mandá-las para as escolas por causa de tantas mazelas. O documento ainda afirma, por fim, que faltavam asilos para amparar a infância desvalida, o que contribuía para o baixo rendimento da instrução pública provincial.[5]
Fonte: (BRASIL, [1874?]).
O Gráfico 6 permite que encerremos essa seção com conjecturas muito semelhantes àquelas que fizemos quando discutimos a percepção social da cor, sensibilidade que dependia dos condicionantes socioculturais, das conveniências cotidianas, das relações políticas e da capacidade de negociação simbólica dos sujeitos. O dado novo, contudo, aparece quando comparamos os Gráficos 6 e 2, que apresentou o total da população do Recife definida pela cor. Do ponto de vista estatístico, se os brancos compunham 40,70% dos moradores da capital pernambucana, nas escolas públicas e particulares seus menores abocanharam 50,48% das matrículas. Uma desproporção considerável em seu favor. Os pardos estavam bem representados, pois a cidade era composta por 40,40% deles e suas crianças e seus jovens livres compunham 39,88% do corpo discente recifense. Da mesma forma os caboclos, que no primeiro caso eram 0,48% e no outro 0,53%. Os pretos, entretanto, experimentaram a maior perda de representatividade na comunidade escolar, pois, mesmo compondo 18,33% da população local, somente 9,11% dos estudantes (que tinham entre 6 e 15 anos e eram livres) foram daquela forma registrados pelos censores.
Salvas as imprecisões objetivas e subjetivas do Censo de 1872, parece evidente que os censores e as famílias (ou tutores e curadores) dos menores recifenses livres, pobres ou não, que estavam matriculados em escolas públicas e particulares, tendiam a mudar sua cor na medida em que entendiam a escolarização como instrumento de mobilidade social. Nesse jogo intrincado, as motivações de cada um daqueles sujeitos poderiam ou não convergir. Para os que nasceram com a pele escura, os sentidos de liberdade e de cidadania estavam em disputa quando da desagregação do escravismo (Albuquerque, 2009). Para os pretos, poderia ser estratégico se tornar pardo. Da mesma forma, para esses últimos também seria vantajoso ser reconhecido como gente branca. Concomitantemente, não podemos perder de vista que a instrução pública e particular pernambucana possa ter sido mais discriminatória com as pessoas livres que apresentassem fortes marcas fenotípicas de africanidade. Até o início dos anos 1870, recaía sobre essas pessoas a suspeita de serem escravas, mesmo que fossem livres ou libertas (Chalhoub, 2012). Sem dúvida, estamos diante de duas situações que não se excluem mutuamente, tendo em vista as complexidades da sociedade recifense.
Propostas e ações em torno da instrução pública e particular nos anos 1870
No início dos anos 1870, diante de um quadro aterrador no âmbito da instrução pública e particular, especialmente revelado no processamento do Censo de 1872, a sociedade pernambucana buscou criar novos parâmetros que a aproximasse da “civilização” e do “progresso”. Na esfera pública, uma das mais importantes iniciativas nesse sentido foi a elaboração de uma nova norma que regulasse a escolarização provincial. Depois de muitos debates legislativos, os deputados pernambucanos aprovaram a Lei n. 1.143, aos 8 de junho de 1874, que tinha por objetivo reorganizar o ensino primário e secundário local. Na esfera privada, em 1871, com o apoio da Associação Comercial Beneficente e de importantes figuras públicas, a Imperial Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais, entidade fundada e administrada por artífices pretos e pardos, ganhava o benefício de criar e manter o Liceu de Artes e Ofícios do Recife (Mac Cord, 2012). Outra entidade particular pernambucana, de vital importância nesse emergente processo de valorização do ensino escolar, foi a Sociedade Propagadora da Instrução Pública. O grupo foi fundado em 1872 por professores, médicos, cônegos e demais gente que desfrutava de respeitabilidade (Santos, 2014).
Especialmente sobre a Lei n. 1.143, aprovada em 1874, há um bom termo comparativo com a Lei n. 369, de 1855. Aquela primeira norma não faz mais qualquer menção à proibição da matrícula de escravos nas escolas públicas e no Ginásio Provincial, algo que era basilar na outra. Na Lei 1.143 também não encontramos qualquer autorização para que os cativos somente frequentassem as escolas particulares, como fazia a norma anterior. Em outras palavras, o escravo não é sequer citado na legislação dos anos 1870 (Collecção, 1874, p. 59-66). Ainda nos faltam pesquisas para afirmar os motivos dessa ausência, mas talvez possamos sugerir que, no período em quadro, o ler e escrever, base da instrução primária, começasse a ser pensado como um instrumento para qualificar o exercício da cidadania política (Chalhoub, 2007, p. 231). Nesse sentido, como o escravo não era cidadão, e com a acelerada (e em curso) desagregação do escravismo na província, parecia desnecessário aos legisladores reeditar o que era vital em meados dos anos 1850. Outra hipótese é que talvez fosse interessante permitir que alguns escravos tivessem a oportunidade de se “lapidar” por meio de aulas que os ensinassem a ler, escrever, contar e rezar.
Governo e sociedade pernambucanos participavam de um fenômeno mais geral, ocorrido no Império do Brasil desde finais dos anos 1860 e que se intensificou após a chamada “Guerra do Paraguai”. Nesse processo histórico, por exemplo, o ministro Paulino de Souza, do Partido Conservador, reforçava a necessidade de se ampliar a instrução básica da população brasileira por meio de escolas ambulantes, noturnas, de fábricas, de domingo, de verão e para a infância desvalida. Outro ministro, João Alfredo Correia de Oliveira, também daquele mesmo partido, propôs um projeto, em 1874, que ampliaria a instrução básica. Ele entendia que a população mais pobre, de qualquer faixa etária, deveria ter mais fácil acesso ao ensino profissional, pois era preciso responder às demandas por mão de obra em uma época de “transição” do trabalho escravo para o livre (Rocha, 2010). A própria Lei do Ventre Livre, de 1871, de caráter emancipacionista, que estava inserida no debate da referida “transição”, tinha por objetivo oferecer aos ingênuos um nível de instrução que os transformasse em trabalhadores morigerados, minimamente escolarizados e conhecedores dos princípios “morais” que norteavam a sociedade brasileira (Fonseca, 2002).
No começo dos anos 1870, apesar de todas essas articulações nacionais e pernambucanas para o aumento da oferta e da “qualidade” da instrução pública, o que de fato ocorreu na cidade do Recife (em sua vida cotidiana e mais comum) é o que sublinharemos nessa seção. Caso fiquemos apenas na ordem das leis educacionais e dos projetos político-pedagógicos, deixaremos de conhecer sua (in)efetividade na história social e na vida rotineira das pessoas. Portanto, para iniciarmos o exercício proposto, no final do ano de 1875, a Inspetoria Geral da Instrução Pública informou ao presidente de Pernambuco que existiam 11.309 menores matriculados em escolas públicas de toda a província. Desses, 8.312 assistiam efetivamente às lições que eram ministradas por seus professores primários. Na cidade do Recife, especificamente, foram contabilizadas 3.974 matrículas, sendo que, segundo o documento, apenas 2.554 discentes registravam assiduidade nas aulas de ensino básico. Justificando-se, o inspetor relatou ao chefe do poder executivo que muitas escolas públicas ainda não tinham enviado seus mapas à repartição, “por isso os algarismos supra são inferiores ao número real dos alunos”.[6]
Relativizemos ou não as alegações que foram feitas pela Inspetoria Geral da Instrução Publica, estamos diante de importantes problemas. Mesmo que o conjunto dos mapas estivesse incompleto e, por causa disso, o governo encontrasse dificuldades para conhecer o número de matrículas realizadas em escolas públicas recifenses, o total de 3.974 estudantes é bastante tímido para finais de 1875. Especialmente quando havia um consistente debate nacional e pernambucano sobre a necessidade de se fomentar a instrução popular. Talvez, o volume de matrículas se adensasse com os mapas atrasados e os enviados pelos estabelecimentos particulares. De qualquer forma, sugerimos que, apesar de todo o alarde quanto à disseminação da leitura e da escrita, não encontraríamos números muito superiores aos que foram computados pelo Censo de 1872, que afirmava que a capital da província possuía 5.349 indivíduos livres, entre 6 e 15 anos, em salas de aula – como comentamos anteriormente, não sabemos se públicas e/ou particulares. Bastante reveladora, contudo, é a irregularidade na frequência escolar de 35,73% dos menores, o que corrobora todo o debate em que sublinhamos os motivos para que a instrução fosse um privilégio para poucos.
Fonte: Livro de Matrículas no Francês, 1858-1878, fls. 1-18, Universidade Católica de Pernambuco (doravante UNICAP), Recife, Biblioteca/Coleções Especiais, Série Liceu de Artes e Ofícios; Livro de Matrícula das Aulas de Geometria, 1858-1878, fls. 1-21, UNICAP, Recife, Biblioteca/Coleções Especiais, Série Liceu de Artes e Ofícios; Livro de Matrículas de Primeiras Letras, 1858-1878, fls. 1-36, UNICAP, Recife, Biblioteca/Coleções Especiais, Série Liceu de Artes e Ofícios.
Na falta de mapas das escolas particulares, que complementem o relatório da Inspetoria Geral da Instrução Publica, escrito em finais de 1875, o Gráfico 7 apresenta dados sobre as aulas noturnas que foram oferecidas pela Imperial Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais. Podemos comparar o período em que a entidade criou e manteve o Liceu de Artes e Ofícios do Recife, a partir de 1871, com o anterior. Existiram outras aulas noturnas além das tabuladas, mas foram os códices de francês, geometria e primeiras letras que sobreviveram ao tempo e chegaram até nós. Nos primeiros anos de existência da referida escola pernambucana, e no bojo dos debates sobre a necessidade de se fomentar a instrução popular, houve um aumento considerável de estudantes matriculados, especialmente nas lições de primeiras letras. Nessas, a média etária era de 16,22 anos, ou seja, acima da então chamada idade escolar (Mac Cord, 2012). O Gráfico 7 ainda informa que, apesar do aumento quantitativo de estudantes nos primeiros anos do Liceu de Artes e Ofícios do Recife, posteriormente houve uma queda, muito em função das históricas dificuldades enfrentadas pelas famílias trabalhadoras, como analisamos oportunamente.
FIGURA 2 – Palacete do Liceu de Artes e Ofícios do Recife. Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, FOTOS, Armário 8.2.2. (7), negativo 04470; COSTA, Menna da [Liceu de Artes e Ofício, PE, 1880]. Observação: A fotografia foi tirada dias depois da inauguração do Palacete (IMPERIAL, 1881, p. 26-27).
A Sociedade Propagadora da Instrução Pública, fundada em 1872, por sua vez, também buscou fomentar a escolarização básica dos pernambucanos. Além de criar sua própria Escola Normal para a formação de professoras, muitos de seus estabelecimentos particulares de ensino aceitavam gratuitamente estudantes pobres e ainda subvencionavam suas roupas, sapatos e livros (Santos, 2014, p. 71 e 91). A entidade educacional sabia que essa era condição sine qua non para mantê-los em sala de aula, mesmo que encontrasse dificuldades para realizar seu objetivo. Junto disso, na documentação disponível, notamos, na década de 1870, o esforço de seus Conselhos Paroquiais, junto às autoridades provinciais, no sentido de criar (e também nomear professores para as) aulas noturnas de primeiras letras destinadas aos adultos. Na cidade do Recife, em 1873, por exemplo, o Conselho Paroquial da freguesia do Poço da Panela solicitou a abertura de uma escola noturna e outra diurna no povoado do Monteiro. Em mesmo ano, o Conselho Paroquial da freguesia da Graça da Capunga pediu que a escola diurna dos povoados de Cruz das Almas e da Encruzilhada do Rosarinho também pudessem oferecer aulas de primeiras letras à noite.[7]
Atentos aos discursos vindos de cima da pirâmide social e às iniciativas da sociedade civil em torno da instrução popular, setores populares não estiveram passivos nesse processo de redefinição da liberdade e da cidadania. Por meio de abaixo-assinados dirigidos às autoridades provinciais, eles reivindicaram o direito de aprender a ler e escrever, para que também, estrategicamente, fizessem parte da “civilização” e do “progresso” e pudessem usufruir de seu legado. Oportunamente, citamos um abaixo-assinado produzido em 1871 pelos moradores dos povoados de Areias, Barro, Peres e Tejipió, localizados na freguesia de Afogados. No documento dirigido aos deputados provinciais pernambucanos, recordemos, seus redatores solicitavam aulas noturnas de primeiras letras. A justificativa da petição é emblemática: “o conhecimento da arte de ler e escrever, único e precioso elemento sobre cujas bases assenta o edifício da civilização e traça o princípio da felicidade material e moral do homem, é ambicionado por todas as classes da sociedade”.[8] Os peticionários deixaram evidente sua compreensão das regras do jogo e foram além, na medida em que frisaram que a instrução era um direito e não um privilégio.
No final da década de 1870, um grupo de trabalhadores da Passagem da Madalena produziu um abaixo-assinado que solicitava aos deputados provinciais pernambucanos a oficialização de sua aula noturna destinada para o sexo masculino. Ele temia que seu caráter voluntário gerasse descontinuidades nas lições de primeiras letras. A insegurança era legítima, tendo em vista o perfil social dos peticionários e o fato de que a iniciativa instrucional existia há pouco mais de um mês. Eles eram operários de “um importante estabelecimento fabril” e acreditavam que sua escola noturna era um instrumento para que “um grande número de crianças e pessoas adultas [não] deixem de aprender a ler e escrever, por serem ocupadas em diversas profissões durante o dia”. Ainda segundo o documento, 32 estudantes frequentavam as lições de primeiras letras, “na sua maioria artistas”. Para que suas pretensões fossem atendidas, de forma muito apropriada e conveniente, nos moldes do paternalismo e da economia do favor, os redatores do abaixo-assinado finalizaram sua petição afirmando que estavam certos de seu deferimento, visto que o Poder Legislativo “sempre facilita o ensino primário naquelas localidades onda há uma população que conviera educar e instruir”.[9]
Os anos 1880, o problema da instrução pública e particular e o Censo de 1890
O início dos anos 1880 continuou pouco auspicioso para a instrução básica dos pernambucanos, especialmente daqueles que eram mais pobres. Seminal, um dos relatórios da Inspetoria Geral da Instrução Pública afirmava que “a situação do ensino não se pode transformar de improviso por atos regulamentares”.[10] Parece evidente que os debates e as normas que procuraram fomentar o aprendizado da leitura e da escrita não alcançaram seus objetivos, muito em função de a escolarização estar vinculada à perspectiva da cidadania, algo absolutamente problemático em uma sociedade pautada por privilégios, escravismo e racialização. Ainda sobre o alerta feito pelo referido órgão, sabemos que, por si só, a aprovação de leis não garante o respeito ao seu escopo, assim como não promove uma imediata mudança na percepção cotidiana de justiça e de direitos (Thompson, 1987). Ao mesmo tempo, os orçamentos provinciais também podem nos enganar, tendo em vista que muitos recursos eram destinados às escolas. Só que nem sempre o que foi previsto pelo erário era executado pelos governantes, pois alguns setores da administração pública gastavam mais e outros menos do que o programado, de acordo com os mais diversos interesses.
No Brasil, desde os anos 1870, o desejo por excluir a base da pirâmide social do processo político stricto sensu, utilizando para isso critérios educacionais, sobrepôs os projetos de inclusão por meio da escola. A Lei Saraiva, de 1881, que acabou com o voto indireto em todo o país, exigia a alfabetização e a efetiva comprovação de renda dos eleitores. No 2º Distrito do Recife, por exemplo, a norma que restringia a cidadania política eliminou os direitos de 60,3% daqueles que podiam ir às urnas. Entre os mais pobres, antes da reforma eleitoral, agricultores, jornaleiros e artesãos compunham 48,2% do eleitorado. Por sua vez, os mais ricos e as camadas médias urbanas, conjunto que incluía negociantes, funcionários públicos e proprietários, 25,7%. Depois de aprovada a Lei Saraiva, o primeiro grupo caiu para 10,6%. O outro subiu para 62%. Naquele referido distrito, para ratificarmos a nova relação entre posses, direitos políticos e escolarização, sonho acalentado por muitos membros da “boa sociedade”, nas eleições de 1876 os analfabetos compunham 40,4% das listas eleitorais, mas em 1884 foram reduzidos para 4,7% (Souza, 2014, p. 168-170 e 181). Esse último percentual tem relação com algumas exceções previstas pela Lei Saraiva.
A redução do número de eleitores acirrou a economia do favor, pois ficou mais fácil para as elites letradas e proprietárias controlarem a máquina eleitoral e suas redes de clientela. No final dos anos 1880, em artigo intitulado “A reforma da Instrução”, publicado no jornal A Epocha, seu articulista faz parecer que as mudanças na lei eleitoral tiveram graves consequências na seleção dos professores pernambucanos, pois teria aumentado o quantitativo daqueles “cujos títulos de habilitação são algumas vezes unicamente os seus títulos eleitorais”.[11] Certamente, esse quadro mantinha a instrução pública e particular no “improviso”, como havia denunciado anos antes a Inspetoria Geral. O próprio Liceu de Artes e Ofícios do Recife e a Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais, sua mantenedora, experimentaram mudanças depois da Lei Saraiva. Seus principais gestores e professores, artífices pretos e pardos escolarizados, conquistaram muitas vantagens porque foram habilitados como eleitores. Concomitantemente, com o passar do tempo, o fortalecimento da troca de favores com seus patronos fez com que muitos doutores reconhecidos como brancos começassem a fazer parte da diretoria e da sala de professores (Mac Cord, 2014).
Em meio às mudanças ainda mais excludentes em uma sociedade baseada em privilégios, escravismo e racialização, novos atores ligados à instrução pública e particular ganhavam visibilidade. Criado em 1878, o Grêmio dos Professores Primários em Pernambuco tinha por objetivo reunir docentes de ambos os sexos, no intuito de aperfeiçoar a instrução primária e o próprio magistério (Estatutos, 1878, p. 5 e 9). Em princípios de 1890, o Club Literário Ayres Gama, formado por jovens mais ou menos vinculados à escola primária, criou a Associação Pedagógica Pernambucana, que também buscava fomentar a escola básica e o aperfeiçoamento docente.[12] Junto dessas instituições, outras, que a priori tinham caráter diverso, criaram suas próprias aulas noturnas para “civilizar” o povo e qualificar eleitores. Entre os anos de 1889 e 1891, vinte clubes republicanos foram fundados no Recife e em Olinda. Alguns deles, que só aceitavam sócios alfabetizados, ofereciam lições de leitura e de escrita à comunidade (Souza, 2018, p. 86, 88 e 96). Em mesma época, organizações operárias e artesanais também foram criadas, para, entre outras metas, escolarizar a classe trabalhadora, conscientizá-la politicamente e qualificá-la eleitoralmente (Mac Cord, 2016).
Fonte: (BRASIL, 1898).
Todos os esforços particulares e as tentativas de incremento da escola pública, contudo, obtiveram inexpressivos resultados quantitativos no intervalo de quase vinte anos, como podemos observar no Gráfico 8. Contudo, antes de analisarmos essa tabulação, que foi embasada no Censo de 1890, e apresenta os graus de instrução básica dos habitantes do Recife e suas cercanias, será preciso fazer um importante alerta. Na época em que a referida contagem populacional foi publicada, as localidades de Jaboatão, São Lourenço da Mata e Muribeca foram registradas como municípios pernambucanos. Portanto, o Recife perdera suas antigas dimensões espaciais e políticas, ficando circunscrito somente aos bairros de São Frei Pedro Gonçalves, Santo Antonio, São José, Boa Vista, Afogados, Graça da Capunga, Poço da Panela e Várzea. Com essa nova configuração político-administrativa, a capital do estado havia perdido parte de suas características mais rurais. Isso posto, por questões metodológicas que facilitaram nossas operações comparativas, decidimos juntar os dados demográficos do Recife com os das três outras cidades, para que tenhamos, a partir do Gráfico 8, parâmetros de análise mais precisos em relação ao Censo de 1872.
Feito o alerta, a primeira leitura do Gráfico 8 permite afirmar que, diferentemente do período compreendido entre os anos 1850 e 1870, que testemunhou uma explosão demográfica no Recife, o intervalo de tempo entre os Censos de 1872 e de 1890 registrou uma pequena curva ascendente no crescimento de sua população e de suas cercanias. Por sua vez, do ponto de vista do saber ler e escrever, a contagem feita pelo Império do Brasil informou que 31,11% dos moradores da capital pernambucana (pretensamente) dominavam essas competências. O de 1890, considerando aquela localidade mais ampla, 31,52%. Em termos percentuais, como podemos atestar, também houve um ínfimo aumento no quantitativo de pessoas consideradas alfabetizadas, segundo os critérios estatísticos dos censores oitocentistas. Entretanto, caso tomemos a cidade do Recife isoladamente, tendo como parâmetro o Censo de 1890, notamos que 37,38% dos seus habitantes brasileiros e estrangeiros sabiam ler e/ou escrever. O número um pouco maior deve refletir sua urbanidade, a maior presença de ações instrucionais e suas complexidades sociais, em relação às zonas rurais menos adensadas e mais empobrecidas de Jaboatão, Muribeca e São Lourenço da Mata.
No Gráfico 8, dentre os habitantes do Recife e suas cercanias, 1,78% dos que sabiam ler e/ou escrever eram estrangeiros – 2.587 indivíduos. Diferentemente do Censo de 1872, não há seus locais de origem. A maior parte deles deveria ser portuguesa, pois, além de abundarem na região, falavam nosso idioma. Ainda sobre os estrangeiros, no Censo de 1890, o item “população recenseada no estado de Pernambuco quanto à nacionalidade” apresenta uma inconsistência, pois somos informados que havia 2.227 na capital e suas cercanias. Desses, 2.125, maioria absoluta, vivia no Recife. Certamente existiram alguns mais, considerando-se o montante de considerados alfabetizados. Contudo, supomos que tenha diminuído o número de imigrantes na capital, que chegou a contar 8.038 no Censo de 1872. De certa forma, caso essa afirmativa seja verossímil, podemos sugerir que, nos primeiros anos da República, menos europeus (sujeitos fenotipicamente brancos) viveram no espaço em foco. O Gráfico 8 também permite concluir que a maior parte dos ditos alfabetizados era composta por brasileiros, perfazendo um total de 29,74% da população. Parece evidente, pelo que já foi discutido, que, hegemonicamente, fosse gente de pele escura em seus mais variados tons.
Dentre os que não liam e/ou escreviam, há 68,89% no Censo de 1872 e 68,48% no outro, somando Recife e suas cercanias. Regularidade que acompanha as anteriormente analisadas. Em 1890, caso observemos somente a capital, 62,62% eram analfabetos, número um pouco menor. A explicação desse fenômeno vai ao encontro da que propomos no caso dos recifenses que sabiam ler e/ou escrever: existiam mais oportunidades de escolarização nas cidades, comparativamente ao campo. Apesar de expressivos, os percentuais acima eram menores que a média nacional, 82,6%. De qualquer forma, os analfabetos do Recife e região nos remetem para um perfil social bastante específico: gente com pele escura, pobre e sem empregos regulares. Ela sofreu os mais duros golpes após o fim da escravidão, pois teve que responder aos primeiros desafios do pós-abolição. Cativas ou não antes do 13 de maio, essas pessoas precisaram ensaiar novos espaços de liberdade em uma sociedade sem escravidão, mas marcada pelo racismo científico (Gomes e Machado, 2015, p. 36-40). Tal ensaio exigia que criassem pontes para uma efetiva cidadania, pois suas vidas não eram muito diferentes do tempo em que vigia o escravismo (Rios e Mattos, 2007, p. 55).
Fonte: (BRASIL, 1898).
Para embasar nosso argumento sobre uma maioria de não-brancos analfabetos, o Gráfico 9 nos remete aos critérios de cor que balizaram a feitura do Censo de 1890. Eles foram tão homogeneizadores e impositivos quanto aqueles que pautaram a contagem realizada em 1872. Apesar disso, ainda observamos certas regularidades, em quase duas décadas, quando lançamos nosso olhar para a percepção étnica dos e sobre os moradores do Recife e suas cercanias. Na comparação com o Gráfico 2, notamos que, no início do período republicano, houve um aumento da percentagem de caboclos, que passaram de 0,48% para 2,02%. Da mesma forma, existe uma estabilidade entre aqueles que se declararam ou foram declarados brancos: de 40,79% para 40,37%. Tendo em vista as conjunturas excludentes do pós-abolição, muitos sujeitos que tinham a pele menos escura continuaram a achar conveniente se declararem brancos ou serem assim declarados. Os etnônimos pardo e mestiço merecem especial menção. O primeiro apareceu no Censo de 1872. O outro, no de 1890. Tendo em vista que os números são similares, 40,40% e 44,31% respectivamente, provável é que estejamos diante de um grupo étnica e socialmente semelhante.
No último quartel do século XIX, os pretos foram os que conheceram e/ou construíram a maior queda de representatividade percentual no seio da população recifense e de suas cercanias. No espaço de quase vinte anos, segundo os censos até aqui estudados, eles passaram de 18,33% para 13,30% dos habitantes da referida região. Em 1890, exclusivamente na capital, eles somavam 12,17%. Talvez tenhamos aqui um fenômeno bastante parecido ao que ocorreu com os menores que eram estudantes, no ano de 1872. Recordemos que apesar de os pretos comporem quase ¼ dos habitantes da capital pernambucana, somente 9,11% das crianças e dos jovens entre 6 e 15 anos, livres e regularmente matriculados foram declarados dessa forma. Ao analisarmos esse caso, sugerimos que os números poderiam apontar para a exclusão daqueles com mais fortes sinais de africanidade e/ou para a conveniente manipulação da cor nas mais diversas situações cotidianas. Nos primeiros anos republicanos, essa última estratégia também continuava vinculada à mudança de status social dos indivíduos, ao afastamento do passado escravista e à própria proteção pessoal e/ou familiar em uma sociedade onde o racismo científico ganhava força.
Considerações finais
Há muito que se pesquisar, pensar e escrever sobre a instrução pública e particular brasileira, e pernambucana, no século XIX. Ainda existem muitas lacunas para sua melhor compreensão e nosso artigo não teve a pretensão de preenchê-las. Contudo, avanços fundamentais ocorreram nos últimos 30 anos. Especialmente quando a historiografia da educação demonstrou que o regime republicano não foi o “marco zero” das iniciativas governamentais e civis no campo da escolarização, os escravos e seus descendentes também estudavam em estabelecimentos imperiais de ensino e os trabalhadores pobres, livres e com a pele escura buscavam nas aulas noturnas um caminho para sua inserção social e respeitabilidade pública. No tempo presente, como desdobramento dessas investigações seminais e inovadoras, ganha cada vez mais espaço os estudos acadêmicos sobre intelectuais, doutores, políticos e professores, muitos deles pretos e pardos, oriundos da base da pirâmide social, que lutaram por mais acesso à instrução pública e à cidadania no Império do Brasil. Da mesma forma, os pesquisadores também estão mais atentos às entidades que, com os mesmos objetivos, foram criadas ou apropriadas por tais personagens.
Do ponto de vista historiográfico, no campo da educação, devemos nos cuidar para que não vivamos um movimento radicalmente pendular. No passado, os estudiosos ampliavam o ângulo de suas análises e negligenciavam as ditas “atipicidades” em suas explicações, mais estruturalizantes, sobre os problemas educacionais brasileiros. Por outro lado, neste momento, devemos ficar cada vez mais atentos para não reduzir acriticamente o ângulo de nossas análises, criando assim ilusões biográficas e desconsiderando os condicionantes sociais. Sem sombra de dúvidas, no Império do Brasil, existiram escravos e ex-escravos, e também seus descendentes libertos e livres, gente pobre, frequentando, mesmo que forma precária, espaços (in)formais de aprendizagem. Os poucos que conseguiram se tornar professores, doutores, intelectuais e políticos tiveram que lutar bravamente contra uma estrutura social que manteve a maior parte da população excluída dos direitos políticos, econômicos e sociais. E também da escola pública e particular, como demonstramos nesse artigo, já que os Censos de 1872 e 1890 indicaram que pouco mais de 82% da população brasileira não teve acesso aos mais básicos conhecimentos da instrução primária.
As fontes, nesse artigo, demonstraram que setores das classes populares reivindicaram o acesso ao ensino básico, seja para que seus filhos tivessem um futuro melhor, seja para votassem após a reforma eleitoral, seja para que alcançassem algum status social positivo. Contudo, não podemos superestimar a importância da escola para todos aqueles que estavam na base da pirâmide social. Talvez, muitos deles se sentissem desconfortáveis com a ideia de frequentar estabelecimentos oficiais de ensino. Como afirma E. P. Thompson, “o universo instruído estava tão saturado de reações de classe que exigia uma rejeição e desprezo vigorosos da linguagem, costumes e tradições da cultura popular tradicional” (2002, p. 32). Nesse sentido, apesar da pouca oferta pública e particular de instrução básica em Pernambuco, provavelmente também faltasse mais interesse e pressão vindos “de baixo” para aumentá-la. Poderia não ser atraente para os trabalhadores pobres e de pele escura estar em um espaço que lhes tratava “como grosseiro, imoral e ignorante” (Thompson, 2002, p. 32). E para “corrigi-los”, ou aos seus filhos, muitas vezes os professores utilizavam violência física e/ou moral, coisa que lhes fazia parecerem escravos. Isso, sem dúvida, não era algo por eles desejado.
* Marcelo Mac Cord é doutor em História Social pela Unicamp. Professor Adjunto da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense. Autor dos livros O rosário de d. Antonio: irmandades negras, alianças e conflitos na história social do Recife, 1848-1872 e Artífices da cidadania: mutualismo, educação e trabalho no Recife oitocentista. Coorganizador dos livros Rascunhos cativos: educação, escola e ensino no Brasil escravista e Organizar e proteger: trabalhadores, associações e mutualismo no Brasil (séculos XIX e XX).
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Notas
[1]Diário de Pernambuco, 11 de janeiro de 1873, Fundação Biblioteca Nacional (doravante FBN), Hemeroteca Digital Brasileira. Disponível em http://memoria.bn.br/hdb/uf.aspx. Acesso em 1º mar. 2019.
[2] Para saber mais sobre a comunidade portuguesa no Recife oitocentista, consultar (CÂMARA, 2013). Sobre os outros europeus, faltam pesquisas. Especificamente sobre os alemães, consultar (MAC CORD, 2019).
[3] Documento 04, Caixa P136, Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco (doravante ALEPE), Recife, Divisão de Arquivo, Série Petições.
[4] Códice IP-25, fl. 459-460, Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano (doravante APEJE), Recife, Setor de Documentos Manuscritos, Série Instrução Pública.
[5] Códice IP-30, fl. 354-355, APEJE, Recife, Setor de Documentos Manuscritos, Série Instrução Pública.
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