Tempo de leitura estimado: 9 minutos

BLOOKS na cauda longa da literatura | de Diana Damasceno

O debate sobre a substituição do livro pela internet está defasado. A discussão atual está voltada para a influência da web na produção, circulação e recepção da literatura. Essas questões adaptam-se perfeitamente ao fenômeno conhecido como “cauda longa”, explorado pela primeira vez por Chris Anderson, editor-chefe da revista “Wired”, em artigo sobre um novo universo de livros, filmes e músicas, gerado pela web, onde produtos culturais de nicho conquistam a cada dia um público maior e mais diversificado. Assim, estão na rede formas de criação, nas quais conteúdo e ferramenta de produção são indissociáveis.

A literatura, em processo de produção nesse ambiente, se apresenta através deblooks. Para quem ainda desconhece o termo, blook é um anglicismo de blog – abreviatura de weblog, termo criado em 1997, pelo norte-americano Jorn Barger, editor do “Robot Wisdom”, o primeiro blog da rede – + book – livro, em português – e possui três significados: 1 – gênero surgido na internet que se utiliza da formatação dos blogs para publicar obra literária ou artística; 2 – textos de um blog, impressos em formato de livro; 3 – gíria dos cassinos norte-americanos para a carta curinga do baralho. Assim, um possível conceito de blook seria o de um gênero intermediário entre a forma de livro e a forma de blog, que funciona como alternativa para publicação de textos. De fato, a internet se infiltrou por todo o tecido social do mundo contemporâneo, interferindo, inclusive, nas formas de pensamento e comunicação e o espaço virtual, ao que tudo indica, passou a ser um território de visibilidade.

O professor de psicologia da PUC do Rio de Janeiro, Rafael Sacchi Zaremba, acredita que a simples utilização de um teclado e da tela do computador já é suficiente para criar um novo estatuto na escrita, diferente da escrita à mão. “A ‘escrita digital’ parece trazer para a escrita o caráter coloquial e a falta de compromisso característicos da fala. Seja na internet ou fora dela, o computador vem aproximando a lógica da escrita à da fala e, com isso, fazendo com que escrever se torne mais fácil e prazeroso do que costumava ser quando éramos obrigados a raciocinar com caneta e papel”, afirma Zaremba. Talvez por isso, a sensação de que o número de escritores aumentou nos últimos anos, com a multiplicação dos blooks.

A editora e crítica literária Heloísa Buarque de Hollanda pesquisou a literatura existente nos blogs e concluiu que há textos muito bons, ainda não impressos, na web. Por isso, organizou, em 2007, no Rio e em São Paulo, a exposição “Blooks – Tribos & Letras na Rede”, com curadoria de conteúdo de dois jovens poetas: Bruna Bebber e Omar Salomão. A mostra através de poesia, prosa, letras de música, quadrinhos e games traz a intromissão do computador e da internet na leitura e na escrita e, consequentemente, a profusão de criações literárias deste novo século. Para Bruna, o primeiro passo foi fazer um grande entulho de informação e depois ler um por um e agrupar. “Começa na ‘primeira geração’ de blogueiros, passa pelos que estão chegando agora, blogs novos, mesmo. Têm também escritores que migraram pra internet depois de já terem livros publicados, como Antonio Cícero; há os polêmicos, os anônimos, e ilustres blogs desconhecidos. A intenção era dar autonomia aos leitores/visitantes pra decidirem o que preferem. Eles decidem o que é bom, a gente só organizou uma programação variada. Censura não combina com internet”, conclui.

O escritor Flávio Izhak, selecionado para a mostra, sinaliza a eficiência da rede para a visibilidade de seus textos: “Eu publico contos na internet há seis anos. Há quatro criei meu blog, ‘Bohemias’, onde passei a publicar meu material com maior frequência. No início, eu postava qualquer conto que tinha guardado – e alguns que ia escrevendo – para mostrar meu trabalho. Eram textos em copião, rascunhos de histórias, fragmentos de alguma coisa: mais inspiração que transpiração. De algum jeito, o blog começou a ser lido e se tornou um passaporte para que eu conhecesse outros leitores e escritores. Quando comecei o blog não conhecia nenhum escritor pessoalmente. Foi por meio da internet que criei uma rede de leitores e amigos escritores”.

Em 2004, Flávio organizou com o jornalista Marcelo Moutinho, a coletânea “Prosas cariocas” (Casa da Palavra), misturando autores que naquele momento ainda tinham um ou dois livros com outros bem jovens, que conheciam apenas por seus blogs. Naquele mesmo ano, Flávio Izhak também teve um conto publicado no livro “Paralelos” (Agir), produto das muitas possibilidades de integração entre digital e impresso. Todos os autores participantes, sem exceção, conquistaram seus primeiros leitores na web, no portal literário que deu nome à coletânea que, além de apresentar escritores inéditos, criou uma rede de discussão sobre a literatura, reunindo autores de todo o Brasil e se transformou em ponto de encontro de gente que debate e, principalmente, escreve literatura hoje.

A escritora e jornalista Ronize Aline, componente desse grupo, venceu um dos concursos digitais de literatura: “Ter meu conto ‘A senhora da primeira fila’ entre os três vencedores do concurso promovido pelos sites ‘Paralelos’ e ‘Portal Literal’ representou a concretização da possibilidade de encontros. A partir da sua publicação nos dois sites, que são referência em termos de literatura, passei a encontrar e a ser encontrada, real e virtualmente, por outros escritores (alguns novos, outros nem tanto) que vinham comentar meu texto. Isso abriu as portas para que eu passasse a colaborar com o ‘Paralelos’, tendo outros contos publicados e, inclusive, sido chamada para editar um especial do site”. Só no Google, podemos encontrar hoje algo em torno de 1090 sites de poesia e 3200 sites de romance, dos autores consagrados aos iniciantes, mas o livro impresso parece ser ainda o objetivo dos escritores.

“Literatura na internet é apenas um novo suporte para a publicação de texto. Até porque o que mais se costuma encontrar são textos de escritores, construídos com o intuito de serem publicados em papel, mas que ainda não conseguiram editora e utilizam a internet para torná-los conhecidos ou submetê-los à crítica pública antes de submetê-lo ao crivo dos editores”, diz Ronize Aline.

Apesar disso, com as ferramentas da rede, é inegável que já existem debates, com alguma discordância, sobre as transformações na produção escrita, a possibilidade de surgimento de novas linguagens, a revisão da noção clássica de autoria e os novos relacionamentos interativos, como é o caso da relação escritor-texto-leitor. Iniciativas como a da editora inglesa Penguin Books, que criou o blog “A million penguins”, onde cada usuário cadastrado podia escrever um capítulo ou trecho dele, e reescrever partes criadas por outros usuários, gerando histórias completamente criadas pelos internautas, são exemplos claros dessas novas tendências.

Na web, todos podem escrever. A coordenadora da Central de Educação a Distância da Puc-Rio, Maria Apparecida Campos Mamede-Neves, acredita que esse tipo de experiência está ligado à idéia da rede enquanto um universo simbólico atraente: “A representação da internet fica atrelada a uma vivência de satisfação pela qual se lhe outorga a condição de agradabilidade. Assim, escrever em blogspode partir de um princípio bastante distinto daquele de produzir literatura de fato”.

Para muitos autores, a internet, pelo menos por enquanto, ainda não construiu uma linguagem literária diferenciada e tem uma função bastante objetiva. É o que pensa Cecília Gianetti, autora de “Lugares que não conheço, pessoas que nunca vi” (Ediouro/Agir) e editora do Portal Literal. “Não existe uma linguagem de literatura de Internet. Ficções curtas em posts podem ser publicadas em papel, sem qualquer prejuízo em relação ao original. E continuará não existindo a tal da literatura de blog. Não faço literatura digital. Não existe a literatura on-line como gênero. Não existirá até que surjam histórias na web impossíveis de serem contadas no suporte livro – sob o risco de, impressas, virarem outra coisa que não é absolutamente o que se propunham ser na Internet. Aí, caso se reconheça e popularize essa ocorrência extraordinária de literatura intransponível para o papel, valerá debater o surgimento de um novo nicho”.

Se são grandes as dúvidas sobre o estatuto dos textos digitais, elas ficam ainda maiores quando se trata da visibilidade dos autores digitais para os editores tradicionais. Antonio Carlos de Mello teve seu romance “Madame Flaubert” ainda em versão on-line, (http://mmeflaubert,notlong.com), resenhado, com ótima crítica, há alguns meses, em jornal de grande circulação, até hoje, não conseguiu publicação. “Acredito apenas que meu romance não despertou interesse dos editores que dele tomaram conhecimento através da resenha. Embora seja uma homenagem e uma atualização crítica do ‘Madame Bovary’. Embora estejamos no ano em que o romance de Flaubert completa seu 150º aniversário. Embora a resenha tenha elogiado o romance. Embora um autor e crítico como Gustavo Bernardo (um dos poucos autores – se não o único – a ser um dos finalistas do Prêmio Jabuti em quatro categorias diferentes) tenha classificado ‘Madame Flaubert’ como uma obra-prima. Embora eu tenha um blog com quase 200 mil visitantes, aproximadamente mil visitas/dia”, diz Mello.

Beatriz Resende, coordenadora do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ e crítica literária, discorda. Ela acredita que “a internet dá sim visibilidade e os editores a estão usando para caçar talentos. Os blogueiros já estão prestando atenção a isso”. Em meio ao debate, real e virtual, que acontece em torno da literatura na rede, uma possibilidade concreta: a “cauda longa” da literatura hoje pode estar nas listas dos mais vendidos de amanhã, uma vez que já há algum tempo fala-se sobre o setor quaternário da economia, aquele que engloba os produtos de maior criatividade e densidade intelectual. Não seria esse o sonho de todo escritor?

 

* Diana Damasceno é jornalista, crítica literária, professora nas Universidades Cândido Mendes e Veiga de Almeida, e pesquisadora do Programa Avançado de Cultura Contemporânea/UFRJ.