Resumo: Estruturar uma disciplina envolvendo tecnologias aplicadas à tradução e localização de videogames em cursos de graduação em tradução é uma tarefa bastante complexa nos dias de hoje, particularmente devido ao escasso acesso a materiais autênticos. Este trabalho descreve como manipular os componentes linguísticos do primeiro videogame da série Call of Duty, com vistas a refletir sobre as possíveis demandas tradutórias de softwares de entretenimento e sua possível inserção na sala de aula de formação de tradutores.
Palavras-chave: Call of Duty; tradução e localização de videogames; ensino de tradução.
Abstract: Designing a course involving the translation and localization of videogames in undergraduate programs in translation is a complex task in today’s reality, particularly due to short access to authentic materials. The main focus of this work is to describe how to manipulate linguistic assets of the first Call of Duty game installment, trying to shed some light on potential translation demands of entertainment software and its incorporation in the translator training.
Keywords: Call of Duty; translation and localization of videogames; translation training.
Foi-se o tempo em que o professor de tradução ocupava uma posição central na sala de aula e os alunos permaneciam sentados em suas carteiras ouvindo a tradução “correta” de um texto. Um tempo em que o professor de tradução apresentava o texto, geralmente literário ou técnico, sempre no formato impresso, e os alunos produziam as traduções em papel almaço. Um tempo em que a participação dos alunos restringia-se a escutar a tradução oficial, lida pelo professor, copiá-la da lousa ou reproduzi-la em seus computadores pessoais, geralmente em formato .doc. Como alunos, professores ou pesquisadores versados nos Estudos da Tradução, muitos de nós tivemos essa experiência. Também sabemos que abordagens dessa natureza para o ensino de tradução ainda existem em várias partes do mundo (Delisle, 1998; Colina, 2003; Kiraly, 2014). No entanto, esse cenário se encontra em processo de total transformação, principalmente em nível de organização curricular de ensino de tradução no Brasil e no exterior, atingindo a prática docente em sala de aula.
Hoje, tornou-se imperativo que as aulas de tradução – assim como várias outras (Belanga-Fernández, 2010; de Pablo, 2007) – estejam ancoradas em abordagens centradas nos alunos e que haja um processo ativo de ensino e aprendizagem de tradução através do uso de variados aparatos tecnológicos. Nesse novo paradigma, professores e alunos estão fora de suas carteiras, trabalhando lado a lado, envolvidos em diferentes tipos de atividades práticas não mais restritas ao texto impresso e ao papel almaço. Em comparação ao que se tinha antigamente, as aulas de tradução de hoje estão irreconhecíveis[1].
Atualmente, a dinâmica de trabalho em sala de aula de ensino de tradução consiste em traduzir textos literários, científicos, técnicos, jurídico-comerciais, dentre tantos outros publicados nos mais diversos formatos e extensões de arquivos, com o aporte de sistemas sofisticados de memória de tradução (softwares específicos para produção e edição de traduções, bem como armazenamento de bancos de dados terminológicos e corpora compilados). O objetivo, em linhas gerais, é usar a tecnologia para aumentar a produtividade do tradutor e a qualidade de seu trabalho.
Também faz parte da dinâmica de sala de aula traduzir, com suporte tecnológico, materiais audiovisuais para o cinema, para a televisão, para a mídia impressa e on-line ou para empresas que fazem uso de vídeos corporativos de modo geral. A tradução de sites da internet igualmente integra a lista de exercícios do aprendiz de tradução, que passa a ser capacitado não somente a traduzir hipertextos de conteúdos variados (Pym, 2010; Jiménez-Crespo, 2013), mas também a lidar com uma grande gama de softwares específicos para a tradução e edição de páginas de internet e de todos os formatos digitais que ela reúne.
E as mudanças não param por aí. A incorporação de recursos tecnológicos ao trabalho do tradutor, em consonância com os avanços da internet, também possibilita a tradução de softwares utilitários (Sandrini, 2008), como, por exemplo, programas e aplicações que armazenam dados, que manipulam imagens, que editam textos (e.g., o pacote do Microsoft Office), bem como de softwares de entretenimento, ou videogames, objeto de estudo deste trabalho.
Desde as pinball machines, criadas em 1970, à criação do Pac-Man pela empresa japonesa Nintendo em 1980, que posteriormente teve como produção mais famosa o Super Mario Bros, somadas ao desenvolvimento, entre os anos de 1990 e 2000, do Unicode e de distintas plataformas, como PC, PS2, PS3 e PS4, PSP, Xbox (360), GC, GBA, Nintendo DS (Wii), Wii U, incluindo os smartphones, a bilionária indústria de videogames tem atraído usuários das mais diversas idades e nacionalidades. Isso sem contar a arena on-line que possibilitou às empresas o acesso à opinião dos jogadores de MMO, agregando sofisticação cada vez maior aos videogames, que hoje reúnem arte gráfica, arte fílmica, literatura, ciências da computação e interação audiovisual.
Um dos principais desafios que emerge é como ensinar tantos conhecimentos e habilidades para compreender o emaranhado de arquivos que compõem esses materiais multimodais (Silva, 2014) a serem traduzidos/localizados para outro país, já que a principal estratégia dessa indústria é o alcance de outros mercados com a promessa de garantir jogabilidade e experiência de gameplay similares entre todos os públicos (Chandler; Deming, 2012; Coletti; Motta, 2013; Souza, 2012, 2014). A despeito da rápida expansão da indústria de videogames e da existência de numerosos cursos de formação de tradutores em todo o mundo, muitos cursos universitários em nível de graduação ou pós-graduação ainda não incluíram a tradução de videogames em suas matrizes curriculares (O’Hagan; Mangiron, 2013).
Bernal-Merino (2008) explica que as principais razões para a ausência da prática de tradução de videogames na sala de aula de tradução são: o número reduzido de professores que trabalham com essa temática e que têm que dispor de tempo para explorar as tecnologias disponíveis usualmente utilizadas na extração dos arquivos executáveis dos softwares; a falta de investimento tecnológico por parte das instituições de ensino; e a dificuldade de se estabelecerem parcerias entre as universidades e a indústria de localização de videogames. Para o autor, a junção desses fatores faz com que a tradução e localização de softwares de entretenimento sejam estudadas apenas em nível teórico. Quando muito, trabalha-se com traduções descontextualizadas – em arquivos passíveis de serem abertos em editores de texto comuns – de materiais linguísticos dos videogames, sequer abordando questões inerentes à sua multimodalidade (Gambier, 2006), e/ou aos seus aspectos técnicos e tecnológicos, sobretudo em termos de manipulação de software (Bernal-Merino, 2008, 2014), e/ou às inúmeras possibilidades narrativas (Mäyrä, 2008), haja vista que não existe uma sequência linear exata para muitos videogames, como os de RPG (role play game).
Nesse contexto, este trabalho descreve como manipular os componentes linguísticos do primeiro videogame da série Call of Duty, distribuída pela Activision Blizzard desde 2003, com vistas a refletir sobre as demandas tradutórias de softwares de entretenimento e sua possível inserção na sala de aula de formação de tradutores. Trata-se de uma proposta didática, de viés naturalista, que busca apresentar formas de manipulação textual de um videogame, com vistas a “alimentar” e “amadurecer” a formação do tradutor-localizador de videogames. Este trabalho constitui-se como um primeiro passo para a futura estruturação de uma disciplina voltada especialmente à tradução e localização de videogames[2], que exigirá a adoção de uma metodologia no mínimo compatível com os estudos que circundam a tradução, localização e multimodalidade.
No caso da instituição à qual pertencem os autores deste trabalho, o Curso de Bacharelado em Tradução do Instituto de Letras e Linguística da Universidade Federal de Uberlândia (ILEEL/UFU), criado no âmbito do Reuni, possui em sua matriz curricular duas disciplinas destinadas ao ensino e à aprendizagem de ferramentas tecnológicas de apoio ao tradutor, intituladas Treinamento de Tradutores e Novas Ferramentas I e II. Com o número cada vez maior de oferta de ferramentas de tradução – on e off-line –, optou-se por dividir o conteúdo das disciplinas da seguinte forma: na disciplina I, o aluno é instrumentalizado a trabalhar com os principais sistemas de memória de tradução, conhecidos internacionalmente como as principais CAT Tools (computer-assisted translation tools); na disciplina II, dedica-se à prática de tradução e localização de websites e softwares utilitários e de entretenimento, sendo dedicadas apenas três unidades didáticas à tradução de videogames.
Por que o primeiro videogame da série Call of Duty (2003)?
A resposta a essa pergunta é relativamente simples e pode ser depreendida de outras indagações: como conseguir softwares inéditos, arquivos executáveis e todos os outros elementos da linguagem de programação que fornecem a interação entre o videogame, a plataforma e o usuário? Como seguir o exposto por Kiraly (2000), que já afirmava, há mais de uma década, que as aulas de tradução que não estiverem baseadas em materiais autênticos e em situações do mundo real são desmotivadoras e sem propósito?
Central nisso é destacar que as empresas desenvolvedoras dos videogames não cedem seus arquivos, seja para uso didático ou não, por questões de sigilo e direitos autorais. A título de ilustração, em contato recente feito pelos pesquisadores deste trabalho junto à Synthesis Brasil, responsável pela tradução e localização do videogame Far Cry 4, a empresa informou que, com o intuito de evitar ilegalidades, apenas fornece os arquivos aos tradutores profissionais envolvidos no projeto, os quais, por sua vez, assinam contratos de sigilo e recebem os textos fragmentados em tabelas do Word ou Excel, de forma não linear, organizados em colunas independentes e sem quaisquer referências ao contexto do videogame. O desafio pedagógico dos professores é como abordar e ensinar essa temática nos cursos de tradução sem o manuseio e a experiência tradutória de materiais reais, que poderiam simular o que o mercado exige do tradutor-localizador.
Para Gouadec (2003) e Bernal-Merino (2014), o tradutor não é um simples agente na linha de produção de localização de software, mas sim um profissional-chave que dará sustentação para todo o processo de localização. É, sim, um profissional que terá de lidar com mais de dez diferentes plataformas de adaptação cultural e linguística de um único videogame, com especificidades técnicas que acrescentam complexidade ao hardware e software, bem como gigantescos glossários de termos técnicos. Ainda, para Bernal-Merino (2008, 2014), um tradutor-localizador dessa mídia tem de: entender da tradução do videogame em si, com uma variedade de textos em múltiplos formatos em áudio e vídeo, com seus manuais de instalação e arquivos de ajuda; traduzir o site oficial do videogame, lidando com a linguagem HTML e JavaScript, além da linguagem propagandística que envolve o material de divulgação do videogame; traduzir os patches (ou programas extras) que aumentam a funcionalidade do videogame, o que demanda que o profissional da tradução conheça sua ambientação e personagens.
Diante dessa variedade de textos e formatos de arquivos, percebe-se o quanto o processo de tradução de um videogame pode ser complexo. Para Yuste-Frías (2014), um tradutor de videogame não é somente o sujeito que traduz os textos que serão dublados ou lidos nas legendas, mas também o primeiro agente paratradutor e, por conseguinte, o melhor localizador, aquele que deveria decidir pela edição definitiva de todos e de cada um dos paratextos que envolverão o videogame na tela, bem como daqueles que irão prolongá-lo fora dela.
Diante disso, fez-se necessária uma escolha para a exploração pedagógica dessa temática. Após realizada uma busca na internet, percebeu-se que o videogame Call of Duty (2003) para PC encontrava-se disponível na íntegra, com todos os seus arquivos de texto, áudio e vídeo, o que possibilitou seu uso para fins didático e de manipulação textual para tradução. Além disso, trata-se, nas palavras de O’Hagan e Mangiron (2013, p. 15), da série mais rentável da história dos videogames, ultrapassando as bilheterias das séries cinematográficas Harry Potter e Star Wars.
Do gênero de tiro em primeira pessoa (first person shooter), o primeiro videogame da série Call of Duty foi produzido pela empresa estadunidense Activision Blizzard e lançado em 2003. A série, inicialmente desenvolvida para Microsoft Windows, expandiu-se rapidamente para outras plataformas, como PlayStation, Wii, XBOX, dispositivos portáteis e, também, Macintosh. Em Call of Duty 1, 2 e 3, a produção é ambientada na Segunda Guerra Mundial. Já Call of Duty 4 (Modern Warfare), lançado em 2007 e seguido de Modern Warfare 2 (2009), narra uma guerra fictícia. Por sua vez, Call of Duty Black Ops, lançado em 2010, revela um cenário futurístico e é seguido de Black Ops II (2012), que se ambienta em 2025. Em seguida, Call of Duty: Ghosts foi lançado em novembro de 2013 e Advanced Warfare, em 2014. Em abril de 2015, a Treyarck, empresa desenvolvedora do videogame, anunciou o lançamento de Black Ops III.
Para fins didáticos, dos tipos principais de projeto de tradução e localização de videogames descritos por Bernal-Merino (2008) e O’Hagan e Mangiron (2013), quais sejam, full localization (i.e., localização completa, que consiste na tradução dos boxes e documentos do videogame, de seu website e até mesmo em marcas culturais de recursos midiáticos) ou partial localization (i.e., localização parcial, que, como o próprio nome demonstra, consiste na tradução de apenas algumas partes do videogame), acreditou-se ser possível implementar em sala de aula apenas este último, isto é, tradução e localização parcial do jogo. No exemplo tratado aqui, ilustra-se apenas a manipulação do menu principal do videogame. Para O’Hagan e Mangiron (2013), seria necessário, para se traduzir em sala de aula um jogo completo (full localization) pensar em disciplinas exclusivas para tradução e localização de videogames que sejam no mínimo compatíveis com sua sofisticação.
A estrutura do videogame e a manipulação textual
Para a realização da tradução do videogame Call of Duty, é necessário fazer com que o aluno entre em contato com alguns conceitos básicos sobre a estruturação dos arquivos. Na maioria dos casos, os videogames para PC possuem uma pasta chamada “local”, que contém as strings (linhas ou cadeias de texto) do videogame. Neste caso, pode-se editar o conteúdo desses arquivos, que, em se tratando de Call of Duty, encontram-se no formato XML, viabilizando a utilização da aplicação Notepad++[3] para a tradução, configurando-se, assim, como um exemplo simples de manipulação textual.
Todas as strings estão compactadas em um arquivo-pasta de extensão “.pk3” – semelhante a um arquivo “.rar” ou “.zip” –, que contém várias pastas e/ou arquivos compactados. Para manipular esses arquivos, é necessário o uso do software PakScape[4]. Para realizar a extração das strings do videogame, segue-se o seguinte caminho: C:\Program Files\Call of Duty\Main. Dentro da pasta “Main” estão os arquivos “.pk3”. O arquivo de interesse é o arquivo “localized_english_pak1.pk3”, no qual estão contidas as strings para tradução. Ao se abrir o arquivo-pasta “localized_english_pak1.pk3” por meio do software “PakScape”, são exibidas as pastas e os arquivos (resultado similar ao da abertura de um arquivo “.rar” com o programa Winrar).
Expandindo a pasta “english”, através do botão “+” em “localizedstrings”, os arquivos serão apresentados com a extensão “.str”. No exemplo a seguir, o arquivo a ser editado será o “menu.str”, que, como o próprio nome indica, possui as strings do menu principal do videogame (Figura 1).
É importante ressaltar que não existe um padrão de extensão de arquivos traduzíveis em videogames, o que depende do desenvolvedor/programador. Vários videogames incluem ainda os arquivos de vídeo e legendas, como em um filme, o que torna a tradução impossível sem o apoio do desenvolvedor/programador. A esse respeito, Bernal-Merino (2008, 2014) afirma que a indústria de videogames infelizmente não criou uma única ferramenta de localização capaz de traduzir os softwares de entretenimento. No caso de Call of Duty utilizado aqui como exemplo, o videogame para PC disponível na internet possui arquivos em pk3, que podem ser abertos pelo software PakScape; no entanto, isso não é possível com a maioria dos softwares.
Em seguida, cria-se uma pasta separada fora do programa “PakScape”, no local de preferência do usuário. Então, copia-se o arquivo que se deseja traduzir, que, neste exemplo, é o arquivo “menu.str”. Após editado (no caso, traduzido), esse arquivo deverá ser salvo, usando o programa “PakScape”, dentro do arquivo-pasta “localized_english_pak1.pk3” em substituição ao arquivo anterior”.
Para edição (i.e., tradução), deve-se clicar com o botão direito do mouse sobre o arquivo “menu.str” e selecionar a opção “Edit with Notepad++” (assumindo que o programa já esteja instalado com as configurações padrões; do contrário, é necessário instalar o programa pela primeira vez ou novamente). Após aberto no programa “Notepad++”, o arquivo será exibido da forma apresentada na Figura 2.
As strings a serem traduzidas estarão sempre seguidas da palavra “LANG_ENGLISH” e entre aspas, conforme destacado em retângulo na Figura 2. Neste caso, a string a ser traduzida é a palavra “Yes”. Nesta fase, já é possível fazer a tradução.
Aqui cabem duas observações: (i) não se pode abrir arquivo “.str” (neste caso, “Menu.str”) em outros editores de texto como o Microsoft Word, pois ele adiciona recursos de formatação que não são aceitos pelo videogame Call of Duty; e (ii) não se pode alterar as aspas utilizadas para delimitar a string (por exemplo, aspas normais por aspas inglesas), pois quaisquer alterações podem inserir bugs e, por conseguinte, comprometer a jogabilidade.
Após o término das traduções, deve-se salvar o arquivo e copiá-lo no software PakScape (neste caso, “Menu.str”) para a pasta “localizedstrings/english”. O programa exibirá uma caixa de diálogo perguntando se o arquivo deve ser substituído. Clica-se na opção “Yes to all”. Após clicar em “Yes to all”, é necessário clicar no menu “File” e, depois, na opção “Save” do programa “PakSapace”.
Na Figura 3, pode-se observar a tradução de parte do menu “Choose skill level” (“Escolha seu nível de habilidade”), em que as palavras “Back” e “Greenhorn” foram substituídas, respectivamente, por “Retornar” e “Iniciante”. Observa-se, assim, como se pode manipular as strings de texto em uma aula prática de tradução de videogames.
Demandas tradutórias para a prática de tradução de videogames em sala de aula
Neste trabalho, buscou-se descrever uma forma simples de manipulação do componente textual do videogame Call of Duty, com o propósito de evidenciar, sob uma perspectiva tecnológica, as demandas tradutórias de um tradutor-localizador de videogames. Tal descrição possibilitará a construção mais coerente e eficaz de uma unidade didática destinada a esse tipo de material. Como não é possível obter um videogame autêntico diretamente de uma empresa desenvolvedora por questões comerciais, de sigilo e de direitos autorais, optou-se por utilizar um videogame disponível na internet e que pode ser baixado livremente, com seus arquivos originais de texto.
Para o caso concreto de construção de uma unidade didática destinada a esse fim, destaca-se, pelo menos no contexto atual ora descrito, a tradução apenas dos peritextos (e.g., títulos, índices/menus e textos de apresentação) que introduzem o texto a ser traduzido. Sabe-se que os hipertextos dos videogames, compostos de textos, imagens e sons (as unidades verbo-ícono-sonoras), inseparáveis no processo de localização, também necessitam ser trabalhados em sala de aula, mas, por questões de tempo disponível na disciplina, ainda não foram contemplados. No entanto, vale lembrar que, como o perfil dos alunos é heterogêneo, havendo aqueles mais afeitos e aqueles mais avessos à tecnologia, é importante uma abordagem por tarefas de crescente nível de complexidade (Hurtado-Albir, 2007). Nesse sentido, o exemplo ora mostrado parece ser uma base adequada para que se possa vir a trabalhar, caso possível, em níveis mais avançados de manipulação de software, inclusive dos materiais midiáticos dos videogames.
De todas as maneiras, a tradução apenas do menu do videogame, no exemplo aqui descrito, pode ilustrar os caminhos e/ou cuidados necessários para se lograr uma tradução eficaz, a qual não apenas se restringe ao componente linguístico propriamente dito, mas também inclui as especificidades de um software que, se respeitadas, garantem a jogabilidade. Inclusive, é possível fazer alterações em strings a fim de mostrar aos alunos como é importante se ater ao conteúdo linguístico que pode ser alterado.
Considerações finais
O processo de tradução e localização de um videogame envolve adaptar as necessidades do produto ao mercado. Esforços devem ser feitos no sentido de estabelecer parcerias entre a universidade e o mercado de trabalho, com vistas a acompanhar a crescente evolução dos videogames. Ao que tudo indica, o caminho nessa direção é árduo, mas nos parece ser o ideal se quisermos de fato trabalhar com materiais autênticos e, mais que isso, acompanhar a esteira do desenvolvimento tecnológico, que segue cada vez mais rápida. Igualmente, esse esforço é necessário se também quisermos desenvolver boas práticas (best practices) de tradução e localização de videogames, o que certamente ultrapassa o uso de planilhas do Microsoft Excel com fragmentos de texto a serem desvendados por tradutores desmunidos de uma de suas principais armas: o contexto.
Principalmente por não se tratar de um freeware, um software de domínio público ou software disponibilizado sob uma licença creative commons (que permite livre distribuição e uso, com algumas ressalvas), lembramos a importância da legalidade e ética no que diz respeito ao uso de softwares em sala de aula. O exemplo ora apresentado faz uso apenas de uma parte ínfima do software, restrita à sala de aula e, portanto, sem qualquer distribuição ou alteração de código-fonte. Acreditamos que iniciativas dessa natureza talvez possam convencer a indústria de que uma pareceria é viável sem infringir o sigilo e os direitos autorais. Essa parceria é fundamental se de fato desejamos transcender o componente linguístico e abordar todos os aspectos envolvidos na tradução e localização de games, o que inclui, dentre outros, a multimodalidade, a narrativa não linear e o manejo de tecnologias amigáveis (user-friendly) e outras nem tanto. Certamente, todas as partes envolvidas (distribuidores, desenvolvedores, usuários, pesquisadores, professores e tradutores-localizadores) têm muito a aprender com base no conhecimento compartilhado e na troca de experiências.
* Marileide Esqueda é professora adjunta da Universidade Federal de Uberlândia, onde atua no curso de bacharelado em tradução. É doutora em Linguística Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas.
** Igor A. Lourenço da Silva é professor adjunto da Universidade Federal de Uberlândia, onde atua no curso de bacharelado em tradução. É doutor em estudos linguísticos pela Universidade Federal de Minas Gerais.
Referências
Berlanga Fernández, I. Metalenguaje interactivo: herramientas en la red para nativos digitales. Revista de Comunicación y Nuevas Tecnologías, n. 15, p. 274-288, 2010.
BERNAL-MERINO, M. A. Translation and localisation in video games: making entertainment software global. Nova York: Routledge, 2014.
BERNAL-MERINO, M. A. What’s in a ‘game’. Localisation Focus. v. 6 n. 1, p. 29-38, 2008.
CHANDLER, H. M.l; DEMING, S. O. The game localization handbook. 2. ed. Sudbury: Jones & Bartlett Learning, 2012.
COLETTI, B. L.; MOTTA, L. A localização de games no Brasil: um ponto de vista prático. In-Traduções, v. 5, n. esp.– Games e Tradução, p. 1-12, out. 2013.
COLINA, S. Translation teaching: from research to classroom – a handbook for teachers. Arizona: McGraw Hill, 2003.
DELISLE, J. Le métalangage de l’enseignement de la traduction d’après les manuels. In: DELISLE, J.; LEE-JAHNKE, H. (ed.). Enseignement de la traduction et traduction dans l’enseignement. Ottawa: PUO, 1998. p. 185-209.
DE PABLO, P. El cambio metodológico en el Espacio Europeo de Educación Superior y el papel de las tecnologías de la información y la comunicación. Revista Iberoamericana de Educación a Distancia, v. 10, n. 2, p. 15-44, 2007.
DUNNE, K. J. Localization. In: SIN-WAI, C. (Org.) The Routledge encyclopedia of translation technology. Nova York: Routledge, 2015. p. 550-562.
GAMBIER, Y. Multimodality and Audiovisual Translation. In: MUTRA CONFERENCE, Copenhagen, 1-5 maio 2006. Proceedings… Copenhagen: MuTra, 2006. p. 1-8.
GOUADEC, D. Le bagage spécifique du localiseur/localisateur. Le vrais ‘nouveau profil’ requis. Meta, v. XLVIII, n. 4, p. 526-545, 2003.
HURTADO-ALBIR, A. Competence-based curriculum design for training translators. The Interpreter and Translator Trainer (ITT), v. 1, n. 2, p. 163-195, 2007.
JIMÉNEZ-CRESPO, M. Translation and web localization. Londres & Nova York: Routledge, 2013.
KIRALY, D. From assumptions about knowing and learning to praxis in translator education. InTRAlínea, v. 16, p. 1-11, 2014.
KIRALY, D. A social constructivist approach to translator education: empowerment from theory to practice. Manchester, UK & Northampton, MA: St. Jerome, 2000.
MÄYRÄ, F. An introduction to game studies: games in culture. Londres: Sage Publications, 2008.
O’HAGAN, M; MANGIRON, C. Pedagogical issues in training game localizers. In: O’HAGAN, M; MANGIRON, C. Game localization: translating for the global digital entertainment industry. Amsterdã/Filadélfia: John Benjamin, 2013. p. 243-276.
PYM, A. Website localization. Tarragona: Intercultural Studies Group, 2010.
SANDRINI, P. Localization and translation. MuTra: Thematic Volumes on Multidimensional Translation. v. 2, p. 167-91.
SILVA, Fernando da. Apontamentos teóricos e práticos sobre a análise de multimodalidade em jogos digitais localizados. Scientia Traductionis, n. 15, 155-165, 2014.
SOUZA, R. V. F. de. O conceito de “gameplay experience” aplicado à localização de games. Scientia Traductionis, n. 15, 8-26, 2014.
SOUZA, R. V. F. de. Video game localization: the case of Brazil. TradTerm, v. 19, p. 289-326, nov. 2012.
YUSTE-FRÍAS, J. Localización de videojuegos: paratextos materiales e icónicos. Scientia Traductionis, n. 15, p. 61-76, 2014.
Notas
[1] A despeito do fato de a tecnologia, principalmente aquela relacionada aos sistemas de memória de tradução, ter transformado as dinâmicas de sala de aula, Kiraly (2014, p. 3) explica ainda haver a necessidade de se repensar o ensino teórico e prático de tradução, com vista a não formarmos autômatos.
[2] Apesar dos atuais debates que rondam tal denominação, Dunne (2015) define a localização como o processo pelo qual determinado produto ou conteúdo digital desenvolvido em uma localidade é adaptado linguística e culturalmente para ser vendido em outros países. No caso da tradução e localização de videogames, o termo está associado à expansão e alta rentabilidade na produção de videogames e consoles, que fazem com que a indústria vise atingir o maior público possível ao redor do mundo, havendo a necessidade da adaptação à cultura e ao cotidiano dos jogadores, objetivando oferecer uma experiência de jogo completa ao usuário.
[3] Notepad++. Disponível em: <https://notepad-plus-plus.org>. Acesso em: 31 jan. 2016.
[4] PakScape. Disponível em: <http://jkhub.org/files/file/89-pakscape/>. Acesso em: 31 jan. 2016.
Recebido em março de 2016.
Aprovado em maio de 2016.