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Apresentação | André Villas-Boas

Esta edição da Z Cultural é dedicada ao design visual – expressão mais abrangente do que design gráfico por alcançar também projetos de design que vão além da veiculação via impressão, como as mídias digitais e audiovisuais. O critério para a seleção dos textos foi o de abarcar alguns dos mais frequentes campos de estudo da jovem produção acadêmica na área – jovem porque, embora a graduação em design já tenha alcançado os 50 anos, sua produção acadêmica só tomou fôlego em meados dos anos 1990.

Assim, estão aqui presentes estudos e narrativas que focalizam a tipografia, o design gráfico, o design digital e a teoria do design. Sendo o campo assumidamente interdisciplinar, estão presentes nos artigos categorias e metodologias originárias de outras áreas, como a sociologia, a filosofia, a literatura, a pedagogia, a ergonomia, a informática. E, para não deixar de lado interfaces que sempre rodeiam a nós, designers, três dos oito artigos se debruçam sobre objetos de estudo que pertencem a outros campos de atividade: o ensino, a editoração e a ilustração.

André Villas-Boas (Organizador)

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O design como “máquina de guerra”: reconfigurando a téchne e a ars | Alexandre Schiavoni*

O design neste artigo será entendido como “máquina de guerra”, no sentido de atividade projetual que possui uma dimensão estratégico-política. Essas ideias fortes estiveram presentes nas categorias de téchné e ars utilizadas da Antiguidade ao Medievo. Este texto é também uma reflexão que defende a hipótese de que na ideia contemporânea de design atuam três registros distintos: se, em um primeiro momento, ele é a atualização dos conceitos de téchne e ars; em outro, o design não é redutível e nem tampouco sinônimo das noções modernas de arte, técnica, tecnologia e ciência, ainda que estas estejam contidas no próprio conceito de design; em um terceiro, o design se apresenta como campo profissional aberto e móvel para onde convergem distintos saberes, ou seja, design é devir.

A relação do design com a arte, a técnica e a tecnologia tem sido bastante problematizada[1]. Certamente não são discussões menores, uma vez que há um consenso sobre a importância que esses elementos têm no fazer projetual. Contudo, há que se chamar a atenção para o fato de que há outros campos de produção de saber que também realizam interfaces complexas, difíceis e/ou interessantes com o design.

Pelo fato de se encontrar no entroncamento para onde convergem diversos saberes, o design se apresenta como um campo interdisciplinar por excelência (Villas-Boas, 2009). Esta é, sem dúvida, sua marca fundadora. Contudo, essa fluidez pode apresentar-se como problemática quando se percebe que há uma miríade inumerável de profissionais que reivindicam parentesco, ou mais que isso, filiação direta mesmo, com o fazer do design.

Não se pretende aqui definir o design – que na maior parte das vezes, habita uma região nebulosa –, mas procurar tornar mais clara uma configuração histórica que ele tem assumido na produção de conhecimento na contemporaneidade. Essa configuração, se não delimita o design, ao menos aponta para alguns lugares que ele pode estar ocupando no quadro da produção de saberes.

Muito da curiosa configuração do design contemporâneo remete à noção de téchne utilizada pelos gregos antigos. O fato de que só muito recentemente tenha se forjado um conceito – design – que, em alguma medida, procurou dar conta da multiplicidade do fazer projetual (Burdek, 2010, p.13-16), corrobora com este retorno aos gregos que aqui se propõe.

Quando téchne não é técnica nem arte

Da Antiguidade Clássica à Renascença não se fazia distinção entre arte, técnica, tecnologia; entre ciências aplicadas e ciências puras ou entre belas-artes e artes aplicadas. Na Antiguidade, os gregos utilizavam a expressão téchne para se referir àquilo que identificamos hoje como saberes autônomos, tais quais arte, arquitetura, engenharia, design, publicidade, propaganda etc. A expressão grega posteriormente seria traduzida para o latim como ars e utilizada até fins da Idade Média. Numa apreensão rápida poderia haver a tentação de traduzir téchne  por técnica e ars por arte, mas isto seria um equívoco. (Contudo, frequentemente estes dois conceitos, que originalmente possuem o mesmo significado, assim o são traduzidos). Melhor seria respeitar o valor semântico das duas expressões, que apontam para um mesmo significado. Falar de téchne ou de ars, é falar da mesma coisa, é, também, reportar a conceitos de difícil tradução. Talvez, por esta dificuldade, já se pode vislumbrar uma certa empatia entre estes conceitos e o design.

O primeiro autor a utilizar a expressão téchne foi o historiador Heródoto, definindo-a como “saber fazer de forma eficaz”. Já para Platão a téchne estaria ligada “à realização material e concreta de algo” (Dias, s/d). Há em ambas as definições a dimensão da realização de uma atividade, ou seja, a téchne é ação que extrapola o plano da contemplação e da meditação (Dinucci, 2008). Não que ela não se dedique à contemplação e à meditação, mas, efetivamente, objetiva a realização de um fim prático, que pode ser material ou intangível. Pode-se, desse modo, se pensar na téchne como uma atividade também ligada à política no sentido de estratégia. No mundo grego a participação do cidadão na pólis exigia a construção de um discurso e, consequentemente, de toda uma tecnologia voltada para o pensar e o agir. A filosofia se constituirá nesta grande “máquina tecnológica” que auxiliará a condução do homem livre na politeia. A téchne partilha, desse modo, o fazer prático com a filosofia, mesmo estando esta mais afeita ao pensar, ao especular, que também é uma atividade, mas de outra natureza porque não visa a um fim material.

A téchne, por estar sujeita a regras sistemáticas de observação, de execução e de repetição, está ligada a um tipo específico de pensamento (episteme) e é capaz de produzir discurso sobre o fazer (logos). Assim, ela se apresenta porque uma das suas condições de existência e de afirmação está na possibilidade de transmissão desse saber, ou seja, o technites, aquele que exerce e ensina o seu ofício, não o faz com base apenas na sua experiência particular, mas sim calcado na extrapolação dos casos individuais visando certa universalidade. O profissional das technai é um observador atento do seu mundo e do seu tempo. Observa e age sobre a natureza quando transforma a matéria em produto; interfere na esfera humana quando coloca em circulação aquilo que produziu.

Desse modo, a téchne, concebida como ação humana, se opõe, por um lado, à ordem e aos movimentos da natureza e, por outro, ao caos.  Distancia-se, ainda, do mundo divino, pois as technai desse plano produzem coisas belas, justas e verdadeiras. Sendo ação humana que transforma a matéria da natureza – evidentemente, o faz de forma eficaz, pressupondo uma episteme e um logos – a téchne está firmemente ligada à poiésis, à produção.

No livro X da República, Platão (1997) elabora uma hierarquia para a poiésis (produção) e estabelece sua correspondência com a teoria. Na relação desta com o mundo das ideias, o filósofo identifica três níveis de teorizações: o “saber dos artistas”, a episteme e a téchne (Santaella, 2000). Como o resultado da atividade do artista não está relacionado com a realidade do mundo das ideias, ele se dedica à geração tão somente daquilo que Platão denomina de simulacro. O artista, na sua prática, procura imitar, mimetizar a natureza percebida como realidade verdadeira; estabelece com ela uma relação direta simulando aquilo que os olhos captam. Ora, sendo a realidade uma sombra do mundo verdadeiro, que para Platão é o mundo das ideias, o artista produz, por assim dizer, a cópia da cópia. É um gesto nefasto, na visão platônica, uma vez que o artista, com sua obra, reforça o engano da própria realidade e distancia ainda mais os indivíduos da verdade.

Por conta dessa deficiência, a ação do artista é excluída do âmbito das téchne: na sua poiésis (na produção da obra) o “saber dos artistas” não exige uma téchne que justifique este nome. Por outro lado, o conhecimento produzido pela episteme é um saber demiúrgico, porque possibilita pensar o “ser” tal como é por natureza. O demiurgo, ao criar as coisas, o fez acrescentando-lhe suas essências, tornando-as efetivamente verdadeiras. Esta verdade essencial habita o plano das ideias e é este plano ideal que a episteme investiga. Já o conhecimento elaborado pela téchne é diferente daquele da episteme, pois só se aproxima do divino, é um saber de ordem humana. A téchne busca vislumbrar o “ser” na sua integralidade, mesmo não o conseguindo tal como o fazem os deuses, mas se distancia do “saber dos artistas” porque interfere e lida com a natureza, procurando não mimetizá-la, mas transformar a matéria dela extraída. Ainda assim, a poiésis das technai é limitada internamente por um saber-fazer que não lhe permite atingir plenamente o mundo das ideias. Nisto, a episteme lhe supera.

Vê-se, então, que na hierarquia platônica a poiésis demiúrgica, por ser divina, é aquela que cria as essências do mundo verdadeiro, a esfera das ideias. A poiésis epistêmica, por se constituir num grande esforço do pensamento, se aproxima da produção demiúrgica. E a poiesis da téchne, afastada da demiúrgica e atuando no plano humano, transformando a matéria da natureza em algo útil, belo e verdadeiro, somente pode ser assim denominada, se possuir uma episteme que lhe seja correlata.

Platão identifica, ainda, três formas que a téchne pode assumir: a utilitária, a militar e a do governo dos homens. Evidentemente que já se está no Período Clássico e as transformações pelas quais passa o conceito de téchne estão a refletir as mudanças ocorridas no plano social e político de Atenas. Algumas modalidades de poiésis, que pertenciam no mundo pré-socrático ao campo da téchne como, por exemplo, a agricultura e o artesanato – sistematicamente foram banidas desse espaço. Ao mesmo tempo se observa nesta operação a emergência de um processo classificatório e hierarquizador dos campos do saber. Contudo, sobrevive no registro do pensamento racional platônico, senão como resquício, ao menos como impossibilidade de exclusão, algo daqueles fazeres outrora pertinentes ao mundo das technai (apud Barbosa, 2003).

É, contudo, Aristóteles quem vai fixar um sentido amplo para téchne e que durante séculos marcará o pensamento ocidental. Segundo Aristóteles, (…) a experiência quase se parece com a ciência e a arte. Na realidade, porém, a ciência e a arte vêm aos homens por intermédio da experiência, porque a experiência (…) criou a arte, e a inexperiência, o acaso. E a arte aparece quando, de um complexo de noções experimentadas, se exprime um único juízo dos casos semelhantes (Barbosa, 2003, p. 55).

No trecho citado, téchne foi traduzida por arte, como comumente tem sido feito, e episteme por ciência. Contudo, traduzir téchne por arte também se mostra insuficiente para dar conta da complexidade do conceito. Em todos os casos, téchne e episteme são superiores à experiência, ainda que dela não prescindam.

Caso seja correto identificar a produção plástica, escultórica, arquitetônica e dos objetos de uso cotidiano do mundo antigo como realização da téchne, também o será quando identificarmos as artimanhas de Ulisses narradas por Homero na Odisseia. Este era apresentado como um mestre da téchne porque possuía grande poder de convencimento sobre os homens. Também era mestre na arte de safar-se das dificuldades que lhe impunham os deuses. Medeia, ela também uma mestra da téchne, a utiliza para se vingar de Jasão, seu marido traidor, ao orquestrar uma terrível vingança: matar a futura esposa de Jasão e, lhe infringindo dor maior, assassinar os próprios filhos que com ele teve. Tem-se aí o caso de um domínio de saber ligado à magia e, para os gregos, isto também é possuir téchne.[2]

A téchne fazia parte do mundo das realizações materiais, tanto quanto do espaço da política ou da filosofia. Era um saber-fazer de um modo especial, pois requeria uma série de habilidades estudadas e aprendidas. Aquele que domina determinada téchne, o faz ultrapassando o conhecimento adquirido apenas pela experiência, porque o “faz bem” e porque estudou e a aprendeu.[3] Não se restringe apenas ao ato de produzir (poiésis), mas é saber fazer coisas a partir de reflexão e planejamento. É mais do que possuir a simples habilidade de fazer, pois demanda atividade intelectual e, consequentemente, produção de um determinado saber. Neste sentido, a téchne supera a empiria, ou seja, apenas saber-fazer através de um aprendizado puramente técnico, desprovido de pensamento. Vê-se, então, em todos os casos, desde Platão a Aristóteles, a profunda semelhança com o ofício do designer. Ele não é e nem se apresenta com um “prático” que apenas domina certas técnicas ou certas tecnologias na elaboração do seu projeto. Há sempre uma grande carga reflexiva naquilo que resulta como produto final da atividade projetual.

Aristóteles, no terceiro capítulo do livro VI da Ética a Nicômaco, afirma:

Toda téchne versa sobre a produção, sobre o emprego de técnicas e sobre o teorizar como se pode produzir ou se produz algo do que é suscetível tanto de ser como de não ser, e cujo princípio está naquele que o produz e não no produzido (Aristóteles, 2001, p. 4).

A passagem é rica. Aristóteles enfatiza o caráter teorizante da téchne para além da aplicação pura e simples de técnicas, estas podendo ser acessadas pela experiência. Chama a atenção para o fato de que o locus de força no uso das téchne não está no produto, mas no sujeito que o produz e no fim a que se destina. É ele, o technites, que tem o poder de agir sobre a matéria (seja ela concreta ou intangível) transformando-a. Para usar uma linguagem própria do nosso tempo, pode-se dizer que na passagem acima, Aristóteles se refere à téchne como produtora de um saber que se utiliza de método (como se pode produzir ou como se produziu algo) e teoria (do que é suscetível tanto ser como de não ser) para realizar seu fim. Por isso, afirma mais adiante, ela é superior à experiência, mas dela não prescinde.

Ao estabelecer regras, a téchne se apresenta como uma atividade vinculada à experiência e, por oposição, contrasta com o acaso, com o espontâneo e com o natural. Liga-se, desse modo, ao artificial; àquilo que é produzido e feito a partir do estabelecimento de certas regras. Contudo, a téchne prepondera sobre a experiência porque se utiliza de recursos que em muito a extrapolam. A experiência por si só não seria suficiente para a realização plena da téchne. Aquilo que atualmente denominamos de arte estava impregnada pela téchne para os gregos. Do mesmo modo a arquitetura, a engenharia ou mesmo a confecção de um móvel ou uma peça de vestuário.

Toda téchne pressupõe a produção de saber, mas difere da episteme porque esta última vincula-se exclusivamente à produção de conhecimento em estado puro. Em todo caso, ambas se referem ao conhecimento do universal. Tanto téchne como episteme, porque podem e são aprendidas através dos estudos, e são acessadas a partir de um logos (discurso), diferem da experiência e, por isso, lhe são superiores. Era estranha a sufixação de téchne com o conceito de logos – tal como se fez na Modernidade com a criação do conceito de tecnologia – uma vez que para a realização do primeiro se pressupõe obrigatoriamente o uso do segundo (Brandão, 2010).

Em síntese, o conceito de téchne, como nos alerta Vargas (1994), ultrapassa em muito a noção moderna que se tem de arte e técnica:

As “techné” gregas eram, em princípio, constituídas por conjuntos de conhecimentos e habilidades profissionais transmissíveis de geração a geração. São desse tipo de saber a medicina e a arquitetura gregas. Também são “techné” a mecânica, entendida essa como a técnica de fabricar e operar máquina de uso pacifico ou guerreiro, e os ofícios que hoje chamamos de “belas artes”. Ao lado dessas havia também, uma “techné” exata como, por exemplo, a utilização das matemáticas na agrimensura e no comércio. Mas, não se deve entender “techné” sempre como um saber operativo – manual. Com efeito, o conceito de “techné” é mais extenso (Vargas, 1994, p.18).

Quando ars não é arte nem técnica

Posteriormente, o conceito grego de téchne será traduzido para o latim por ars e será utilizado até o século XVIII. Na Idade Média, ganha variados usos significando, em linhas gerais, a arte de bem fazer algo, isto é, o conceito de ars continua com a mesma acepção e atributos da téchne. Desde a ars amandi dos romanos, passando pela ars mechanica dos construtores de catedrais, chegando à ars moriendi dos monges medievais, o saber-fazer vinculado à produção de conhecimento, de estudo, de observação a um conjunto de regras, continua sendo a tônica da concepção. Ainda que na contemporaneidade seja comumente traduzida por arte, não se estava a falar aí sobre a arte no sentido estrito de uma produção plástica e sim de uma prática humana pensada, estudada e conhecida.

Contudo, a ars mechanica, que não era mais do que uma das muitas modalidades que a ars incorporava, a partir da Renascença foi aos poucos assumindo as características daquilo que hoje denominamos técnica (Dias, s/d). Este deslocamento se consolida no século XVII por ocasião da elaboração da Enciclopédia, quando Diderot e D’Alembert

propuseram-se então a organizar o Dictionaire raisoné des sciences, des arts et des métiers, abarcando todo o conhecimento científico, artístico e técnico a partir do empirismo técnico, pois acreditavam que a única maneira de conhecer seria por sensações no manuseio das coisas; mas, não abandonaram o racionalismo, principalmente quando expresso através das matemáticas. Todos os conceitos derivavam de fatos, mas esses deveriam ser ordenados preferivelmente pela matemática para serem compreendidos (Vargas, 1996, p. 257).

A matematização do conhecimento sobre a natureza e sobre todas as coisas, que seria levada a efeito pelos enciclopedistas, é uma antiga aspiração do pensamento moderno, remontando a Galileu Galilei e Descartes. O desenvolvimento da reflexão sobre a cinemática e a mecânica iria engendrar, por fim, a ideia de que a natureza e todo o cosmos funcionavam de fato como uma grande máquina regida por uma racionalidade que poderia ser descoberta. O próprio corpo humano passa a ser extensivo dessa noção mecânica. Visto, percebido e estudado como conjunto de engrenagens e sistemas que se relacionam entre si, o corpo é entendido como uma máquina perfeita. A noção de saúde e doença evidentemente compartilha a lógica desta mesma metáfora: saúde, corpo-máquina funcionando dentro da normalidade; doença, máquina enguiçada. Para além do que sugere a metáfora maquínica, há novos conceitos formulados que cumprem com importante papel no plano do pensamento e da produção material a categoria do normal e do patológico (Canguilhem, 2002). Não é de surpreender, então, o importante papel que o conceito de ars mechanica vai desempenhar a partir de então.

Como se apontou acima, esse modo de pensar e organizar os saberes era desde a Antiguidade completamente estranho e novo. A novidade e estranheza não residiam no fato de classificar ou hierarquizar o conhecimento, mas sim no moto que regia este feito. Durante a Idade Média foram elaborados diversos esquemas classificatórios do conhecimento tendo como referência as Sete Artes Liberais.[4] Nestas organizações por vezes havia um espaço que era ocupado pela ars mechanica que, como regra geral, até o século XII, figurava fora do grupo das ars que se dedicavam à produção de saber.[5]

Havia projetos categorizadores na Idade Média conforme nos relata Meirinhos (2009), contudo, a natureza destas classificações em muito difere da dos enciclopedistas do século XVIII. Não há a crença no poder absoluto da razão e da ciência neste longo arco temporal que vai da Antiguidade ao Medievo. Ainda nesta última Era, o conceito de ciência é herança da scientia aristotélica e é visto como conhecimento demonstrativo, ou seja, “o conhecimento da causa de um objeto e do por que o objeto não ser diferente do que ele é” (Costa, 2009, p.132).

Está-se perseguindo, ainda que sumariamente, a constituição do conceito de técnica. Viu-se que deriva da ars mechanica medieval incorporada e valorizada pelo pensamento da Ilustração. Quando, na Era Moderna, a técnica encontrou a ciência viu-se o nascimento daquilo que atualmente é denominado de tecnologia. Responsável por fornecer suporte, status e poder à ciência, a tecnologia é, na contemporaneidade, uma técnica que emprega conhecimentos científicos. Corrige o equívoco, demoniza a falha e busca alcançar o grau zero de erro na geração e aplicação do conhecimento. Em outras palavras, afasta e elimina o patológico ao criar a norma. Esta é a utopia da técnica e da tecnologia partilhada pela ciência e pela razão, especialmente por aquela identificada por alguns pensadores como razão-prática.[6] É nesse contexto das divisões e das especializações do conhecimento que tem origem o design.

A emergência do design na Era das “divisões”

Desde seu nascimento, o design traz consigo a marca da inconformidade, da crítica e da atenção ao tempo presente. Já é bem sabido que os historiadores localizaram seu registro de nascimento no contexto da revolução industrial (Heskett, 1998; Cardoso, 2008 e Moraes, 1999). Desse modo, é um saber que nasce no campo da modernidade e por isso contém todas as problemáticas que ela trouxe consigo. Emerge o design moderno como uma crítica ao fazer das máquinas, ao produto em série, percebido como de mau gosto e desumanizado. Alargando um pouco mais o campo de visão, a crítica vai além: não somente o produto, mas também o produtor sofre dos mesmos efeitos desumanizadores do contexto industrial. No século XIX, William Morris, John Ruskin, os pré-rafaelitas e a Escola de Artes e Ofícios apontavam nesta direção e denunciavam o equívoco do exílio imposto ao “belo” pela produção racionalizada. O resgate da estética na produção da cultura material se dá, na proposta desses autores, pela reintrodução do artesanato no fazer do designer. O fazer artesanal será o responsável pelo ingresso clandestino da arte na elaboração dos objetos de uso. Abre-se novamente aí, a discussão sobre as relações entre arte e artesanato.

O gesto introdutor do valor estético, ainda que remetendo ao artesanato, aliado às transformações tecnológicas ocorridas naquele tempo é, por assim dizer, uma tática de guerra desses primeiros designers. Camuflado pelo discurso do retorno ao artesanato, não estão os designers do século XIX propondo reacionariamente uma volta ao passado? Talvez este aspecto não fique suficientemente claro em textos clássicos da história do design, que insistem em sublinhar este tipo de crítica aos proto-designers como Ruskin e Morris e à Escola de Artes e Ofícios. Primeiro porque, justamente, estes precursores do design moderno se opõem vigorosamente aos estilos historicistas; depois, porque ao se referirem ao artesanato, não o concebem apenas como técnica construtiva, tal qual é concebido na modernidade.

O historicismo, que vigorou no século XIX se caracterizou justamente por um retorno acrítico ao passado. O revivalismo do neogótico, do neobarroco, do neorrococó e todos os ecletismos, com seus excessos ornamentais no desenvolvimento de produtos, deixam em evidência a falta de uma linguagem apropriada à Era da Industrialização (Cardoso, 2008). O historicismo ou o ecletismo do século XIX são, por assim dizer, um hiato, uma perplexa pausa no campo da cultura material que se sente atrapalhada, ou até mesmo ultrapassada, pelas transformações ocorridas no mundo da técnica e da tecnologia. É, de certa maneira, este o diagnóstico que fazem os precursores do design: não há um estilo ou mesmo uma forma de produção adequada aos novos tempos. A resposta mais acabada a este questionamento é dada pelo movimento de Artes e Ofícios. Em alguma medida ele preconiza a retomada da experiência do artesanato medieval.

Ao se reportar ao artesanato medieval, buscam lá o antigo significado de ars, não o da ars mechanica, que foi traduzida por técnica, mas o conceito geral de ars, entendido como projeto desenvolvido por diferentes saberes que dialogam entre si. Poder-se-ia ir além, sem o risco de forçar o argumento ou os limites do razoável: a referência à ars medieval, lida stricto sensu pelos “pais fundadores” do design como artesanato, aponta para a necessidade da construção de um campo de saberes; um campo interdisciplinar, tal como ocorria na Idade Média.

Sabe-se que a construção de uma catedral e de todos os seus equipamentos não era obra exclusiva de um arquiteto ou de um engenheiro. Nela estavam conjugados os esforços de escultores, pintores, construtores, pedreiros, marceneiros, vitralistas, ferreiros etc. A catedral medieval é resultado de um projeto coletivo para onde convergiam variados saberes, não sendo possível, também por isso, a assinatura da obra. Não seria digno e nem ético, somente o “arquiteto” (e é sempre bom lembrar que a categoria arquiteto não existia na Era Medieval) ou qualquer outro profissional se apropriar da autoria da obra. Os mestres da forma e dos materiais que organizavam o projeto eram todos possuidores de excelência naquilo que faziam, eram mestres da ars. Não somente dominavam as técnicas de fazeres próximos ao seu, mas também as tecnologias disponíveis a serem aplicadas no projeto. Evidentemente, eram também mestres do diálogo, haja vista a necessidade do trabalho “interdisciplinar”. Era a essas noções que se reportavam os precursores do design quando reivindicavam o retorno ao artesanato medieval.

Seria incoerente e contraditório que após tantas críticas ao revivalismo, o movimento de Artes e Ofícios propusesse um simples retorno ao passado. Observando a produção material do movimento percebe-se o quanto ela está longe de ser uma cópia do modelo medieval, mas, também, o quanto a experiência do medievo lhe foi importante no sentido de acertar o passo com as necessidades impostas pela industrialização. Emerge aí a ideia do projeto como caminho possível para a construção dos objetos numa cultura industrializada.

Outro dado importante para que se questione a ideia de reacionarismo desses primeiros designers, é que, além de propor uma retomada do conceito de ars, eles apontam para os limites da técnica e da tecnologia denunciando seu primado racionalista limitante, corroborando a tese de que estão atentos ao tempo presente. A técnica e a tecnologia, com sua obsessão pelo acerto, pela exatidão, excluíram do saber, a arte e, junto com ela, boa parte do pensamento. São esses atentos designers que, observando a separação, resgatam lá do mundo antigo, as possibilidades de releitura de conceitos e práticas outrora compartilhadas que foram fragmentadas. No mundo moderno, arte, artesanato, engenharia, arquitetura e aquilo que hoje entendemos por design, foram separadas como campos distintos.

O fato é que esta separação não é nova e nem tampouco iniciou no contexto do século XIX. O status de arte maior adquirida pelas artes plásticas em relação à produção artesanal, data da época da Renascença. Ao longo do tempo essa divisão assumiria uma configuração que identifica campos de atuação distintos que foram denominados de belas-artes e artes aplicadas (Dondis, 1997, p. 7-12).

Essa separação identificada e denunciada na aurora do design moderno é, sem sombra de dúvida, uma operação insistentemente realizada no capitalismo: a instauração da lógica das divisões. Alguns autores identificam esse gesto operativo como uma estratégia de exercício de poder, de controle, de subordinação e dominação (Foucault, 1979; 1995 e Machado, 1990) ou de constituição de campo (Bourdieu, 2004). Para se concretizar os efeitos positivos e/ou negativos de disciplinamento e controle, as divisões se mostram eficazes e eficientes. Conforme afirma Perelló:

El desmembramiento de los conceptos naturales para su análisis particular e individualizado que comenzó en el Renacimiento y se extendió a lo largo de toda la época moderna (…) La profundización en el desmembramiento de los conceptos y aprehensión de la naturaleza reforzó también entre filósofos y naturalistas la conciencia de que, a la postre, el problema final del descubrimiento y la investigación de la naturaleza era su análisis, es decir, la adopción de un método analítico, para el cual se hacía cada vez más imprescindible esa fragmentación de sus partes constitutivas (Perelló, 2002, p. 13).

Esquadrinhamento, enquadramento, separação, delimitação e fixação de campo, construção e sujeição de identidades, fazem parte da lógica operativa das tecnologias de controle e poder.[7]

No nascimento do design, no século XIX, o sistema das divisões estava em pleno funcionamento. Arte, arquitetura, ciência, técnica e tecnologia são separadas na modernidade como saberes distintos e independentes. A ciência, particularmente a ciência aplicada, assume grande centralidade no fazer e no pensamento ocidental, gozando de prestígio antes desconhecido. O desenvolvimento e a aplicação de técnicas e tecnologias específicas, funda a notoriedade e garante a autoridade da ciência. De quebra, técnica e tecnologia quando se conjugam, fornecem o suporte que sustenta a falácia da neutralidade do saber científico. Compreende-se, então, porque todo o conhecimento produzido busca afirmar-se como científico: porque, via de regra, é a partir da relação estabelecida com a ciência, que se pode gozar de um status maior ou menor, possibilitando o reposicionamento de determinado saber numa escala hierárquica. Aliando o saber produzido a procedimentos técnicos rigorosos e avançadas tecnologias, constitui-se um campo fortemente blindado à crítica.

Arte, ciência e filosofia, a partir da Era Moderna, ocupam lugares distintos no espaço da produção de saberes. As divisões são realizadas não apenas no espaço de fora, nos grandes conjuntos ou fontes produtoras de saber, mas também internamente, dentro dos próprios campos já constituídos, levando sempre o mais longe possível a especialização do conhecimento. Claro está que o eixo dessas particularizações e parcelamentos se fez, na maior parte dos casos, buscando estabelecer e fortalecer o vínculo com a ciência e, por este motivo, pode ser lido como estratégias de aquisição de status e poder particulares (Foucault, 1979; 2003).

Para ficarmos num exemplo conhecido, ocorre uma separação clássica entre belas-artes – associadas a uma arte maior, a arte propriamente dita – e artes aplicadas – vinculadas à produção de objetos do cotidiano, à decoração pura e simples, também denominada de artes decorativas.

Desse modo, sugere-se neste breve artigo que o design, na maior parte do seu desenvolvimento, se constituiu como campo de produção de conhecimento que se posiciona criticamente à proposta das divisões. Nascido nesse contexto, o design ao longo da sua história tem se debatido com esta problemática. Ora obtendo mais sucesso, ora fraquejando, ora fracassando, a busca por um caminho alternativo está no DNA da profissão. Fala-se atualmente no esgotamento do projeto funcionalista. Certamente o fato do design guardar relação de maior ou menor intimidade com a arte, de se relacionar com o mercado sucumbindo ou não a ele e de manter a postura transgressora, adesista ou ingênua no fazer profissional, são índices que auxiliam a compreender a extensão do reproche dirigido ao funcionalismo (Villas-Boas, 1998).

Considerações finais

O exame dos conceitos de téchne e ars, neste artigo, visava problematizar algumas questões concernentes ao design. Do mesmo modo que traduzi-los por técnica e arte, respectivamente, se mostrou equívoco – dada a complexidade dos seus significados – tomar ou entender o design por desenho industrial, arte, técnica ou tecnologia, é igualmente redutor e limitado. Há equivalência semântica entre aquelas categorias antigas e o design contemporâneo. A polissemia destes conceitos – téchne, ars  e design, caso se lhes entenda como continentes daquilo que é denominado por arte, técnica e tecnologia – permite aproximá-los. Ainda que o design enquanto campo de produção de saber, tenha emergido no contexto da modernidade marcado pela lógica das divisões, subsiste na sua matriz a dificuldade dessa lógica se firmar plenamente, haja vista o espaço fluido e transversal em que se desenvolve a atividade projetual. Por um lado, a geografia pantanosa e permeável do design aquece positivamente a frieza do racionalismo normalizador e normatizador exigido pela técnica e pela tecnologia, quando acentua o valor do pensamento criativo e do desassossego na produção da cultura material. Por outro lado, ao se constituir como paisagem ampla, se abre à possibilidade de cooptação por outros campos e propicia também a ocorrência de ricos diálogos.

As dificuldades pelas quais se passou para firmar o sentido daqueles conceitos do passado – téchne e ars – ressurgem na atualidade com o design. Argumenta-se neste texto que essas dificuldades se instalam justamente porque esses conceitos se apresentam como devir, ou seja, como campo aberto, como espaço agônico, lugar onde se desenrolam combates. São lugares de luta e de resistência às imprecações das tecnologias de poder e de controle. Nesse sentido, conforme sugere Deleuze, por evidenciar e por exibir insistentemente sua dimensão política, o design é máquina de guerra.

* Alexandre Schiavoni é mestre em História pela UFRGS e professor dos cursos de Design e de Arquitetura e Urbanismo na Universidade Feevale (Novo Hamburgo/RS).


Referências

ARANTES, Priscila e ANTONIO, Jorge Luis. “As fronteiras entre o design e a arte”.  In: VALESE, Adriana (et  al.). Faces do design. São Paulo: Rosari, 2003, p.129-143.

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Brasília: UnB, 2001.

BARBOSA, Carlos Alberto. “Tékne e design: uma relação entre o conceito aristotélico de arte e o conceito contemporâneo de design”. In: VALESE, Adriana (et  al.). Faces do design. São Paulo: Rosari, 2003, p.49-72.

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Notas

[1] Veja-se, por exemplo, Moraes (1999); Campos (2003; 2009); Somma Júnior (2009); Arantes; Antonio (2003); Barbosa (2003); Melo (2003) e Dondis (1997).

[2] Maria Regina Candido (2002, p. 28) esclarece no seu trabalho a relação entre magia e téchne no mundo antigo a partir do exame de plaquetas de chumbo – katádesmos – utilizadas para se fazer imprecações contra inimigos. Veja-se, também, o excelente estudo de doutoramento de Dulcileide Virginio Nascimento (2007).

[3] Sobre a ideia de téchne em Aristóteles, consulte-se as excelentes reflexões de Garcia (2011).

[4] As Sete Artes Liberais era o modo como se organizava o pensamento e a produção de conhecimento desde a Antiguidade Clássica até o Medievo. Eram compostas pelo ensinamento do Trivium (Gramática, Retórica e Dialética) e pelo Quadrivium (Aritmética, Geometria, Música e Astronomia) (Costa, 2009, p.134).

[5] A ars mechanica foi olhada com desconfiança até mesmo quando foi incorporada na classificação elaborada por Hugo de São Vitor, que a qualificava como adúltera, explicando que “(…) o verbo grego mèchanaomai (fazer máquinas) foi traduzido em latim para moechari (ser adúltero), para opor as artes mecânicas às artes liberais” (Costa, 2009, p.135).

[6] Pensa-se particularmente nas reflexões desenvolvidas por Habermas (1987a; 1987b e 1987c) e Rouanet (1998).

[7] Para as estratégias elaboradas e praticadas pelas tecnologias do saber-poder, consulte-se Deleuze (1992; 1997) e Foucault (1979; 2003).

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Revista on-line, processos criativos 2die4 | Anna Lúcia dos Santos Vieira e Silva e Vanessa Rodrigues*

Processos e métodos

O que avaliamos não é um tipo de obra, mas um tipo de processo,
uma maneira de relacionar-se; em outras palavras,
o dinamismo ou a dialética interna de uma situação cultural
na qual a obra que estudamos (se ela é de fato o que pensamos ser)
se insere naturalmente, liga-se a um contexto, funciona (Argan, 1993, p. 22).

Em propostas que envolvem criação em seu fundamento, o processo que rege e implica conceber, projetar e realizar algo não é linear. Muitos fatores interferem no percurso processual, que apresenta um ir e vir de estímulos e respostas imprevisíveis que carregam em si a condição intrínseca de possibilidades de transformação. A revista on-line 2die4 não foge dessa lógica, que é aqui analisada em diferentes níveis de processos criativos. Em primeiro lugar, tratamos do nascimento da revista e as peculiaridades de sua linguagem. Em seguida, examinamos o processo de produção coletiva, figurado em cada edição como um único produto. O terceiro nível de análise diz respeito à repercussão que projeta a revista e a transforma a cada edição, com um foco na décima quarta edição, a mais recente.

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Estamos conscientes de que não temos acesso direto ao fenômeno mental que os registros de um processo criativo materializam, mas esses podem ser considerados a forma física através da qual esse fenômeno se manifesta, “são vestígios vistos como testemunho material de uma criação em processo” (Salles, 1998, p. 17). Observar esse fenômeno por um fundamento semiótico permite compreender uma produção sígnica em diversas linguagens vistas em continuidade: ora observando as conexões entre a criação e a realização da revista, ora como um instrumento de avaliação do produto, que é multimídia.

Lúcia Santaella (1996) apresenta três níveis de mensagens das mídias, de acordo com o esquema de Charles Morris. O nível sintático, representado na relação entre os signos, aqui corresponde ao processo de geração da revista, seu nascimento, que pressupõe a coexistência de várias linguagens e sistemas de signos que interagem entre si.

O nível semântico, a relação do signo com seu significado, no caso de uma produção coletiva, implica na observação de cada obra, original e traduzida no processo de edição, mas também no conjunto das obras inter-relacionadas em uma única edição. Afinal, cada edição possui sua característica e significado particular, como o conjunto de peças que forma um mosaico.

A relação do signo com o usuário é analisada pelos efeitos que cada edição repercute, que é o terceiro nível de mensagem, o pragmático. Ainda que esses efeitos sejam imponderáveis em sua abrangência de aferição e julgamento, fazem com que a edição seguinte seja, de certa forma, uma somatória de experiências acumuladas e um novo desafio. Nada é estático no processo, até mesmo quando chegamos à obra, que de algum ponto de vista pode ser tomada como um fim.

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Do quintal (sem categoria) para o mundo (imponderável)

Em janeiro de 2003, dois amigos que se conheceram na faculdade – design e fotografia – começam a se encontrar no quintal dos fundos da casa de um deles. O andar de cima, sobre um depósito “quase loft”, foi o espaço que localizaram, longe dos ruídos urbanos, para confabular e elaborar o que viria a ser um trabalho sem precedentes. Vanessa e Amarilio Junior são os editores da revista on-line www.2die4.com.br, nada mais que isso os identifica. Uma das justificativas é que a proposta da revista é de um trabalho coletivo, ainda que o processo de edição singularize o conjunto de trabalhos dos colaboradores em um único produto, a revista.

Do quintal e on-line, pediram para amigos e conhecidos que enviassem trabalhos de produção pessoal para que fossem publicados on-line, e deixaram claro que haveria modificações dos originais, no mínimo por adequação de linguagem, mas, mais do que esse fator, por um gozo de brincar com a obra alheia, em um processo de recriação e recreação.

Um trecho enviado por e-mail em maio de 2003 a uma das futuras colaboradoras demonstra:

(…) estou te escrevendo pq estou participando do desenvolvimento de uma screen magazine brasileira e gostaria de ter seu trabalho incluso no nosso 1o exemplar, vc pode escolher o q quiser, fotos, as aquarelas que te sustentam (eu adoraria) ou algum texto (curto!) vc q sabe (…) a quantidade fica a seu critério, vc deve ter feito sua visita a tiger magazine e entendido melhor como elas vão ficar, pode ter de 3 (acho que é o mínimo pra expor decentemente…) a X páginas se achar necessário, algumas pessoas vão contribuir periodicamente, se vc quiser ser uma delas (!)… estou enviando uma página vazia pra vc poder visualizar a proporção, pode ser (claro!) pq o meio nos permite (e nos exige!) q a gente desenvolva algumas interferências, como zoom de detalhes (qdo passa o mouse), som, animação, transparências etc, se vc quiser dar ideias ou até não quiser interferências avise, ah! diz o título, se tiver, e seu nome ou pseudônimo e e-mail pra contato, ufa!

Nesse momento ainda existe uma parcela de decisão dos colaboradores mais ativa, a revista não está formatada e o processo está aberto. De certa forma, os editores já demonstram saber o que querem: trabalhos artísticos para uma screen magazine. Entenda-se que a referência inicial é a Tiger e que o critério de “artístico” diz respeito exclusivo à eleição dos colaboradores por parte dos editores, como afirma Vanessa: “Buscamos desenhos escondidos de pessoas próximas que faziam suas obras para elas mesmas”.

Entre os colaboradores fixos há a ideia e a possibilidade de uma linguagem idiossincrática, conferida pela aproximação estética obtida na produção dos mesmos autores em diferentes edições. “A revista é nossa” é dito pelos editores para os colaboradores fixos. O trabalho é coletivo.

Um outro aspecto de decisão inicial é que a revista seria brasileira. A presença do “.br”, entre outros possíveis endereços sem a referência nacional, foi uma escolha enfática e consciente, ainda que o “.com” seja incoerente com a proposta absolutamente não comercial da revista. Mesmo com a atenção em relação à sua brasilidade, houve o cuidado de não desenvolver um estereótipo de Brasil, de modo que não há exclusividade para colaboradores brasileiros, e qualquer pessoa, de qualquer lugar, pode mandar trabalhos, mesmo que os selecionados sejam poucos. Os artistas e obras têm muitas nacionalidades. Não existem traduções para a quase totalidade das obras que utilizam a linguagem verbal, no entanto, como o domínio do artista é universal, a língua de suporte da revista é o inglês.

Em junho de 2003 foi lançada a primeira edição, com dezesseis trabalhos e nove colaboradores. Em três dias já havia mais de mil visitações de diversos países.

Revista on-line, matéria e luz em jogo

Somos fixados na imagem não porque tenhamos perdido a fé na realidade, mas porque as imagens têm agora enorme impacto sobre a realidade, a tal ponto que a antiga oposição imagem-realidade realmente não opera mais (Johnson, 2001, p. 28).

A principal diferença entre uma revista on-line e uma impressa é o meio, o canal. Como Marshall McLuhan (1974) enfatizou, a mensagem não se restringe ao conteúdo, mas está vinculada intrinsecamente ao meio no qual é transmitida.

Em uma plataforma on-line, a publicação parte dos paradigmas desenvolvidos, e já sedimentados, dos primeiros anos de uso da internet, da globalização, da interação e da interatividade. O usuário não possui um objeto-revista em mãos (mesmo que atualmente leve consigo um tablet) que pode livremente folhear, com um conteúdo exclusivamente imagético verbal. On-line, a capacidade de agregar diferentes linguagens possibilita a integração entre elas em um único trabalho, com a somatória das linguagens verbal, visual e sonora em um sistema sígnico híbrido. Cada mídia, devido à sua natureza, apresenta potenciais e limites que lhe são próprios. Esses não são nunca idênticos de uma mídia à outra, de modo que, na rede das mídias, cada uma terá funções diferenciais (Santaella, 1996).

Na 2die4, o usuário, além de um visitante do ciberespaço, é um potencial investigador. O andamento da revista não se restringe ao “clica aqui” frenético para a próxima página. Ele desliza, sinaliza, corre, fica parado. Cada trabalho sugere algum tipo de surpresa a ser revelada pela passagem do mouse na tela ou, outro exemplo, por um tempo específico de exposição da imagem, que a transforma, entre outras possibilidades de interação. O áudio não explica, comunica. O usuário apressado, acostumado com a informação imediata, certamente não apreende a totalidade de experiências que a revista oferece.

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Outro aspecto específico do formato da revista é a maneira de segui-la. Não existem atalhos óbvios além do next-back (próximo-anterior), que também pode ser reinterpretado, já que um trabalho localizado no meio, para ser revisto, necessita da sequência anterior ou posterior a ele. Não há um hiperlink do índice para a obra, crédito ou capa, como atalho direto. Não existe menu, existem caminhos sequenciais, como vemos em um trecho de e-mail, em resposta a um comentário de uma colaboradora, logo depois da primeira edição da revista.

(…) a ideia de mover-se por links na revista ainda está em pauta! … de um lado tem o fato de q não dá pra vc ir direto pra um certo ponto pq ela é digital mesmo (já q na revista impressa eu abro direto no índice e leio as colunas depois os editoriais e nem vejo o resto se eu não quiser) e isso é muito útil, por ex. gosto do fato dos “usuários” passearem pelos desenhos, ilustrações, fotos etc. para então lerem o seu texto… e outras tantas coisas neste sentido; e tem o outro lado q vc citou muito bem de q embaça na hora de rever, e é muuuuito chato… enfim, logo encontraremos um “meio termo do bem”…

As páginas, visualmente, remetem ao livro impresso, mas não funcionam como tal, e sim como moldura do espaço. Não há som nem simulação de página que vira. No espaço, velocidade, tempo e número de páginas variam de acordo com as intenções e sensações de cada obra e da unidade da edição. Nossa época realmente é a da tela. Aliás, é curioso que a mesma palavra se aplique a uma superfície que detém a luz (no cinema) e a uma interface sobre a qual se inscrevem informações (Bourriaud, 2009, p. 92).

Os aspectos materiais e virtuais da revista também se especificam quando examinamos o processo de formulação de uma edição, como veremos a seguir.

We could be begging but we’re robbing

Nos meios de transporte público de São Paulo, não raro, algum cidadão entra e chama a atenção dos demais com um discurso de mendicância ensaiado, no qual, em algum momento e por algum motivo, tornou-se padrão a frase: “a gente podia tá roubando, mas a gente tá pedindo…”.

Nos editoriais da revista, uma inversão apropriada e divertida denota o fundamento do processo criativo que se repete em todas as edições: “nós poderíamos estar pedindo, mas nós estamos roubando”.

A operação tradutora como trânsito criativo de linguagens nada tem a ver com a fidelidade, pois ela cria sua própria verdade e uma relação fortemente tramada entre seus diversos momentos, ou seja, entre presente-passado-futuro, lugar-tempo onde se processa o movimento de transformação de estruturas e eventos (Plaza, 1987, p. 1).

Sim, os editores na verdade não editam; eles se apropriam das obras dos colaboradores em um processo de transcriação. Julio Plaza (1987) compara os três tipos de tradução: a icônica, a indicial e a simbólica. A tradução icônica tende a aumentar a taxa de informação estética. Ocorre que as qualidades formais do resultado farão lembrar as daquele objeto traduzido, despertando sensações análogas, o que produzirá significados sob a forma de qualidades e de aparências entre ela própria e seu original. Será uma transcriação (Plaza, 1987, p. 93).

Os trabalhos originais são oferecidos pelos colaboradores aos editores. Estes traduzem as obras “roubadas” para a plataforma on-line, em um processo duplo de adaptação de linguagem para o suporte – especialmente porque nem todos os trabalhos são digitais – e de apropriação do próprio conteúdo, através de transformações, recriações, combinações e outras ações, não previamente acessíveis nem aos autores da obra original. Isso implica surpresa e expectativa dos próprios colaboradores pelo vir a ser de seus trabalhos.

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Tal processo de apropriação das obras permite que técnicas se explicitem em sua materialidade, uma vez que a tecnologia pode ampliar o suporte material em uma escala invisível a olhos nus. O que entendemos como suporte digital tem o potencial de enfatizar a materialidade da obra ou do modo de produção. A técnica não é mera ferramenta, é fio condutor. Não há separação entre técnica e linguagem. As expressões das técnicas analógicas ou digitais são exploradas ao máximo. O grão da fotografia, o algodão do tecido, o rastro do pincel, velhos amigos dos artistas estão aqui, para todos, em alta resolução.

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Esta combinação de tratamento e técnica se dá também com segundas intenções. Na edição número 6, ainda em tempos de acesso discado, a capa tem a animação de um aquário – peixes ilustrados a partir de fontes – e o usuário desfruta da sensação enquanto baixa os arquivos, sem perceber. A ideia não foi intencional, e só foi percebida quando a reclamação “demora pra carregar”, já esperada, não aconteceu. Nas últimas edições, esse assunto deixou de ser abordado. Bem-vinda, banda larga.

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Na mais recente edição, de número 14, boa parte dos colaboradores fixos enviou seus trabalhos com grande antecedência. Já era sabido pelos editores que, por conta da edição 13 ter levado mais tempo de maturação, muita coisa estava acumulada. Essa edição foi um marco da necessidade de constância do círculo criativo, a troca, que não pode, não deve cessar. Na publicação, o processo de trabalho é tão importante, ou mais, que seu próprio resultado; a participação intensa de todos os envolvidos é alicerce, sustentação.

Dezessete trabalhos de dezesseis colaboradores são selecionados. Ingleses, poloneses, japoneses, italianos, brasileiros de diversos cantos. Individuais, em dupla, em trio. Acrílico, óleo sobre tela, fotografia, textos, ilustrações digitais, caneta sobre camiseta, lomografia (fotografia com as características peculiares de exposição de luz das máquinas russas Lomo), nanquim sobre papel, intervenções no espaço, colagem, técnica mista, silk sobre vegetal e a tipografia das aberturas foram o conjunto técnico da edição. O despertar, as sombras, os quartos, o pedido de ajuda, o jogo das possibilidades, o que restou daquela viagem, a quebra do padrão, o tempo, o pequeno médio grande, a mesma língua, a armadura, a crucificação encarnada, o café, os pontos, de ônibus e de prostituição, são os títulos, os temas, os desabafos da edição.

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O texto de Raphael Gancz foi ilustrado, pós-leitura, em acrílico sobre tela por Andrea Lourenço, e as ilustrações, por sua vez, foram recortadas e animadas; o texto de Maria Ribeiro somado às ilustrações prontas em caneta sobre tecido de Bruno Vespucci foram fracionadas e sequenciadas; as fotografias de Felipe Bertarelli não foram cortadas e ganharam cores de contraponto; as fotografias de Piotr foram editadas, cortadas, legendadas, sequenciadas; as lomografias de Celia Ichinoseki foram animadas e ganharam cor de fundo; a ilustração em nanquim de Juliana Scernea foi recortada, animada, fracionada; as fotografias de celular de Marcy Tagawa foram selecionadas, editadas, numeradas, colorizadas; as ilustrações 3D de Liv Schlaeger foram selecionadas, coradas, animadas e sonorizadas por cortes de Hunter de Björk; a tela em óleo de Lilu foi recortada, montada, sequenciada; as colagens de Rogério Maciel foram editadas, fracionadas e sequenciadas; as fotografias de recortes colados em paredes de Eduardo Verderrame foram editadas, fracionadas, sequenciadas e condensadas em uma imagem final; as ilustrações em caneta sobre camiseta de Bruno Vespucci foram selecionadas, penduradas em cabides, que por sua vez foram pendurados em um ponto de rede na parede, fotografadas, recortadas, animadas e descolorizadas; as fotografias de Ding Musa foram selecionadas, cortadas, sequenciadas, sobrepostas e animadas; as ilustrações digitais de Vanessa foram editadas, animadas e sonorizadas por cortes de Depeche Mode;  a técnica mista de Ernesto Boccara foi desfragmentada, editada, sobreposta e animada; o silk de tipografia sobre papel vegetal de Amanda Oliveira e Vanessa Rodrigues foi recortado e sequenciado.

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As aberturas da edição foram feitas em tipografia pela editora Vanessa Rodrigues e a colaboradora Amanda Oliveira, na oficina da FAU-USP, sob orientação de professores da instituição. As placas com os títulos foram fotografadas, tratadas e editadas.

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Mas nem todas as obras originais são transformadas na edição, ainda que o propósito de mostrar uma produção como reprodução ilustrativa da obra não exista, como nas revistas de arte convencionais. Existem trabalhos que vão para a rede quase como chegaram.

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A unidade | todas as edições

O critério dos editores foi, e ainda é, o de que a produção dos colaboradores seja a mais autêntica possível. Eles conseguem isso ao eleger pessoas que produzem para si mesmas – não para o mundo nem para o mercado da arte nem mesmo para a própria revista.

Além dos editores, participam de todas as edições colaboradores fixos, que variam de cinco a oito. Eles são a estrutura das edições; caracterizam-se por uma manifestação de obras espontâneas e uma produção regida por um impulso pessoal, sem maiores intenções ulteriores. Caminhar pelas edições é também caminhar pela produção desses colaboradores que, assim como a publicação, possuem diversas formas de se expressar, por princípio e por prazer.

A cada edição, novos colaboradores, de diversas nacionalidades, formam e deformam a publicação. Boa parte expõe publicamente pela primeira vez por meio da revista, ou pelo menos pela primeira vez neste formato/plataforma.

As discussões e fluxo de criação gerados pelos colaboradores fixos e flutuantes é fundamental para a manutenção da linguagem e dos critérios de valores estéticos da 2die4. Os trabalhos chegam aos poucos, via troca de e-mails, indicações, acidentes. A preferência é para algo já feito, a que não se deu muita atenção. Aparecem nas conversas, no fundo das gavetas, no supetão. O processo é uma das características mais importantes da 2die4: o mito do artista que não permite que sua obra seja tocada dá lugar ao coletivo, ao transformar, ao compartilhar.

São expostos aspectos de forma, conteúdo, edição, criação, conceitos de autoria e coedição e alguns detalhes do processo aos novos colaboradores. Cada um responde e questiona, limita-se ou invade à sua maneira, mas sempre consciente de que a decisão final e imprevisível será dos editores.

Alguns elementos de linguagem que se repetem ou variam dentro de uma mesma gramática em todas as edições sedimentam uma identidade formal da revista: a imagem das aberturas de cada trabalho, o logo, a imagem da capa.

A imagem das aberturas, produzidas pelos editores e/ou colaboradores em técnicas analógicas ou digitais como bordado, fotografia, aquarela, pirografia, tipografia e pixel, é um ponto fundamental de amarração e identidade das 2die4. Além de conferir unidade, estes itens abrem e intercalam cada conteúdo com imagens sintéticas, poucos elementos, centradas na tipografia e no título de cada trabalho. Formam também um conjunto à parte, numa dimensão paralela de técnicas analógicas e digitais de expressão artística, emolduradas, redimensionadas pela revista. Muitas delas têm grande distância de tempo entre concepção e realização.

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A imagem da capa é sempre a última a ser escolhida, a partir de uma visão do todo. Essa imagem conversa com o logo, que aparece sobre ela. Abrir e fechar a edição é a metáfora dessa imagem. Como se vê na capa da edição 13, o logotipo da publicação foi concebido para funcionar como signo, o título vira símbolo, desenho, imagem. Sobre a capa em transparência, aplicado em uma cor diferente a cada edição, o logotipo representa, simultaneamente, o todo e a parte.

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As edições não têm quantidade de trabalhos definida. As obras chegam, são montadas, fluem algumas ideias entre os editores e colaboradores e, aos poucos, uma nova edição se forma intuitivamente.

Vista e revista, de edição a edição

A primeira edição foi ao ar em junho de 2003, com trabalhos experimentais, tanto em processo como em técnica, sendo a maior parte produzida pelos editores e colaboradores já envolvidos com o processo de criação da publicação. Na primeira, o único trabalho verbal, o texto “Autoria”, indica como esse tema será tratado nas edições seguintes.

Logo depois da segunda edição, Lee Carter, editor do conteúdo da revista Hint Mag – precursora em arte, moda e design na web, com mais de um milhão de cliques mensais – apresenta a 2die4 para o mundo e, em menos de uma semana, a revista brasileira recebe quase dez mil visitas, vindas de mais de sessenta países.

Em seguida, mais precisamente na quarta edição, Ninette Murk, editora e fundadora do projeto de artes visuais on-line Beauty Without Irony (BWI), sediado em Antuérpia, na Bélgica, partilha ideias e ideais com a 2die4. Trocam-se e-mails, trabalhos, inspirações.

Na quinta, a 2die4 surpreende os próprios colaboradores fixos, lançando uma “não-edição” de carnaval, sem trabalhos, apenas com uma imagem e som. Com data prevista para fevereiro, ficou nítido para os editores que os colaboradores brasileiros estavam em “ritmo de carnaval” e que, organicamente, não aconteceria o esperado. Foi então colocada no ar uma ilustração de porta-bandeira e mestre-sala, com a canção “Carnaval desengano” de Chico Buarque, versão instrumental, por Milton Trio Banana, e os dizeres “It’s Carnival”. A edição, desde a publicação e até hoje, é curiosamente a mais visitada.

Entre a quinta e a sexta edição, a fundação Bec Zmiana (em www.bec.art.pl) começa a trocar trabalhos com a 2die4. Instituição criada para o desenvolvimento e o avanço da arte contemporânea na Polônia, seu site foi eleito por três anos seguidos – 2003/2004/2005 – como o melhor de arte independente da Europa. Em uma publicação, comenta: “Você conhece o Brasil do futebol, do carnaval, e da arte contemporânea? A resposta vale 100 pontos e ela se chama 2die4” (Bogna Swiatkowska, Notes Bec Zmiana).

. .

A 2die4 segue sendo um periódico, mas sem período definido. Apenas as primeiras edições seguiram uma lógica bimestral. As edições 6 e 7 ainda mantiveram o período bimestral, com a particularidade da comemoração de um ano. São realizadas oficinas a partir de trabalhos publicados ou mesmo inéditos. Foram nessas oficinas que surgiram as aberturas da sétima edição e a caixa de cartões comemorativos de um ano.

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Na oitava edição, a 2die4 foi convidada para participar de um evento internacional de revistas de tendências em Barcelona, o CMYK. Setenta e duas revistas foram convidadas, uma única participante brasileira.

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Dois anos depois da primeira edição, a 2die4 participa de uma mesa redonda no Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona, durante o 1º Encontro Internacional de Revistas de Tendências, para discutir a publicação on-line, com a particularidade de ser a única sem fins lucrativos. Também em 2005, 2die4 é umas das publicações brasileiras selecionadas para ser exposta no Festival Internacional de Linguagem Eletrônica 2006 (File), que ocorreu no Centro Cultural do Sesi, junto à sede da Fiesp, na Avenida Paulista.

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Com a passagem do tempo e os intervalos cada vez maiores entre as edições, a décima terceira 2die4 aparece depois de dois anos, apresentando-se com o dobro do tamanho na tela mas com a possibilidade de ser carregada no mesmo tempo das anteriores, graças à banda larga. O ciclo de produção volta com a mesma irregularidade, porque poucos meses depois a edição 14 está no ar, com tipos móveis e gigas de boa vontade.

*Anna Lúcia dos Santos Vieira e Silva é doutora em Espacio Público y Regeneración Urbana pela Universidade de Barcelona e professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Ceará (UFC). Vanessa Rodrigues é especialista em Design e Humanidade pela USP e diretora da ADG Brasil desde 2009. É também coordenadora de Estratégia e Branding da Tátil Design de Ideias.


Referências

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BOURRIAUD, Nicolas. Estética relacional. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

JOHNSON, Steven. Cultura da interface: como o computador transforma nossa maneira de criar e comunicar. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

DIEGO, Jesús. Graffiti. La palabra y la imagen. Un estudio de la expresión en las culturas urbanas en el fin del siglo XX. Barcelona: Amelia Romero, 2000.

LÉVY, Pierre. O que é o virtual. São Paulo: Editora 34, 1996.

MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. São Paulo: Cultrix, 1974.

PLAZA, Julio. Tradução intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 1987.

SALLES, Cecília A. Gesto inacabado: processo de criação artística. São Paulo, FAPESP / Annablume, 1998.

SALLES, Cecília A. Crítica genética, uma introdução. São Paulo: Educ, 1992.

SANTAELLA, Lúcia. Cultura das mídias. São Paulo: Experimento, 1996.

Tempo de leitura estimado: 23 minutos

Um estudo sobre temas de História da Arte nos meios digitais | Beatriz Lagoa*

A necessidade de atualizar e reestruturar o conteúdo da disciplina História da Arte, ministrada para alunos de graduação da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) que lidam com projetos de direção de arte, redação, rádio, fotografia e cinema, foi o que motivou a conjugação de alguns temas dessa complexa disciplina aos meios digitais, que disponibilizam textos, gráficos, fotos, sons, vídeos e filmes na rede, todos passíveis de reprodução infinita e disponíveis para diversos aplicativos.

Paralelamente a essa necessidade, a reflexão sobre a construção de narrativas e recepção no ambiente digital, permeada por palestras, congressos e pelo confronto com os projetos dos colegas pesquisadores do Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC), resultou na minha pesquisa de pós-doutoramento desenvolvida no mesmo Programa, junto à UFRJ. Assim, pude aliar os estudos acadêmicos e de ensino voltados para a História da Arte à prática como designer gráfica, considerando o impacto das tecnologias digitais no mundo contemporâneo.

A possibilidade de transformação didática da disciplina – que até recentemente esteve restrita às imagens projetadas das obras, ou aos possíveis vídeos sobre os artistas, ou ainda aos textos de autores indicados em livros, todos em diferentes suportes – hoje ocorre na medida em que todas essas informações são acessíveis na rede a partir de toques na tela (Flusser, 2008). E há que considerar também a capacidade infinita de memória e representação do meio, que autoriza, não só o armazenamento de informações de toda ordem em imagens maleáveis, como também a comunicação constante em tempo real. Ambiente próprio para tratar das narrativas da arte que interrogam sobre os limites da linguagem verbal, oral ou escrita, incumbindo-se de identificar, interpretar e refletir sobre obras, cujo maior impacto diz respeito aos aspectos visuais de apreensão.

Site e construção

A pesquisa resultou na elaboração de um site de apoio à disciplina em sala de aula (www.beatrizlagoa.com.br), aliando a linguagem fragmentada e dinâmica do meio computacional, próxima da simultaneidade dos processamentos que ocorrem no nosso cérebro, a uma temática que envolve o processo histórico igualmente fragmentado e dinâmico, reinterpretado de modo a recuperar uma coerência que não deve ser fixada em um único ponto de vista.

Figura 1: Página principal do <i>site</i> História da Arte e Comunicação (www.beatrizlagoa.com.br)
Figura 1: Página principal do site História da Arte e Comunicação (www.beatrizlagoa.com.br)

Quanto à elaboração técnica do site, ressalto os cuidados com a preservação da clareza, da objetividade e da fluência, características da transmissão oral, facilitadas na rede pelos vários recursos de navegação. Foram consultados dados sobre usabilidade, visando minimizar a notória perda de objetividade inerente aos excessos de informação no meio computacional.

Dentre os dados, cito os parâmetros de interface que abrangem desde o número de toques nos enlaces para a informação desejada até a divisão em blocos de textos, com títulos e subtítulos que auxiliam a navegação quando mantidos constantemente. A importância da qualidade e do peso das imagens tanto remetem à navegação quanto à possibilidade de serem ampliadas e vasculhadas com atenção. Além disso, tipologia, tamanho de letra, posicionamento de menus, linhas divisórias, molduras, textos em coluna, cabeçalhos e rodapés foram planejados de acordo com a compatibilidade de equipamentos e demais adequações temáticas do projeto. A solução para a inclusão no texto de citações, notas e demais interferências, que reeditam a não linearidade dos impressos foi alcançada por meio de guias de leitura ou por superposições de informações nas páginas principais.

Quanto à escolha da linguagem gráfica do site, a opção pela neutralidade e simplicidade projeta principalmente a relevância das obras de arte, já que são elas que definem a problemática de uma época, através dos instrumentos que as tornam visíveis para o espectador. Textos sucintos, abordando cada tema, com links para outros textos, vídeos, filmes e possíveis locais de exposição, oferecem no site caminhos alternativos para um agenciamento dos estudos dos alunos, viabilizando pesquisas em vários níveis. Foram selecionadas imagens das obras de artistas diretamente referidas aos temas em cada página, visando à associação e demais remissões interpretativas de modo imediato.

Em relação aos temas do curso que compõem o conteúdo do site, a primeira dificuldade foi direcionar os estudos de História da Arte, ou seja, apontar caminhos em meio a assuntos tão abrangentes. Por exemplo, dentre as muitas maneiras de proceder a essa narrativa histórica reflito sobre a tradição europeia, que enfatiza a abordagem evolutiva a partir de autores e estilos, favorecendo deste modo a arte ocidental em detrimento de outras culturas. Mesmo sabendo que algumas das referências de espaço e tempo são necessárias à coerência do projeto, traço um conceito de história que ultrapassa o historicismo, podendo abranger um pensamento cultural mais amplo, que privilegia as obras e as ideias que as constituíram.

Segundo Walter Benjamin, nas suas teses sobre o conceito de história, que balizam a construção do projeto:

O historicismo se contenta em estabelecer um nexo causal entre vários momentos da história. Mas nenhum fato, meramente por ser causa, é por isso um fato histórico. Ele se transforma em fato histórico postumamente, graças a acontecimentos que podem estar dele separados por milênios. O historiador consciente disso renuncia a desfiar entre os dedos os acontecimentos, como as contas de um rosário. Ele capta a configuração em que sua própria época entrou em contato com uma época anterior, perfeitamente determinada. Com isso ele funda um conceito de presente como um “agora” no qual se infiltraram estilhaços do messiânico (Benjamin, 1986, p. 232).

De acordo com o autor, a temporalidade crítica remete a conceitos históricos interpretados de acordo com um olhar abrangente que conecta fragmentos, garantindo nova inteligibilidade para as obras. Assim, é permitido à crítica se deslocar das regras estipuladas de uma disciplina para as características das obras propriamente ditas, admitindo diversos modos de encadeamento.

A atualidade do pensamento de Benjamin remete ainda à outra questão. Em um dos seus textos mais famosos, sobre a perda da aura da obra de arte (Benjamin, 1983), o autor percebe a importância das obras irem até o espectador, contraponto positivo à perda da experiência da obra atrelada ao local de exposição. Prerrogativa que cria disponibilidades de comunicação com o público que seria impraticável em tempos anteriores aos da reprodução técnica, expandindo-se ainda mais nos dias de hoje com os meios digitais. Diga-se de passagem, uma das grandes vantagens do acesso à rede digital está na facilidade com que adentramos no cenário que sonhamos visitar, os quais nos transportam para um mundo que antes pertenceria apenas ao espaço da imaginação, como bem menciona Janet Murray (2003).

Abordagens

A minuciosa escolha das imagens no site privilegia as obras que concentram problemas da História da Arte sem se restringirem a uma classificação periódica ou a uma tipologia específica. Por sua vez, os recortes das imagens, muitas vezes desviantes, apontam as relações das obras com o discurso de vários autores ao longo da história. O fundo escuro do site acentua as aberturas para uma possível observação mais detalhada dos componentes físicos visíveis nas imagens das obras, permitindo a observação prolongada e ampliada em zoom do todo que se abre quando o recorte é clicado. São percebidas, neste processo, as camadas de pigmento, as transparências e a espessura da tinta e dos traços nas imagens de boa qualidade. Sem esquecer que as imagens tanto podem ser visualizadas em diferentes aplicativos quanto impressas em papel ou em outro suporte qualquer, o que altera a sua materialidade.

As imagens funcionam como elementos heterogêneos que ativam a memória, pretendendo estimular os espaços de reflexão que ganham sentido nas possibilidades de associação e abstração, atributos humanos que implicam ir além das imagens apresentadas. Com indicações paralelas de fala e texto que visam elucidar as inúmeras questões que as permeiam, podem ser apontados aspectos formais, simbólicos, iconológicos, sociológicos, psicológicos ou históricos, remetendo às indicações no próprio site ou fora dele.

Para mencionar algumas associações das obras e recortes do projeto do site com textos teóricos que proponho em sala de aula, resgato de modo livre a escultura Poseidon, de Artemísio (460 a.C.), apontando na relação com a estética de Hegel o tema da harmonia entre o deus e a forma que o encarna (Hegel, 1985). Mesmo na harmonia do período clássico, Hegel aponta uma falha referente à finitude da forma como encarnação do divino, falha essa que impede a representação da passagem do tempo na ausência das rugas, dentes e olhos das estátuas gregas que não carregam o sentido da ação humana, e muito menos refletem a expressividade só alcançada nas representações da fé cristã, séculos após a criação das estátuas citadas. Como contraponto à aparente frieza fisionômica das esculturas gregas remeto ao hábito dos retratos funerários, pintados pelos mesmos gregos e romanos com a técnica da encáustica sobre madeira, parecendo captar a personalidade nos olhos expressivos que, paradoxalmente, pretendem fixar a presença do espírito na representação do corpo ausente do retratado.

Figura 2: Artemísio,<i> Poseidon </i>(460 a.C.).<i> </i>Detalhe.
Figura 2: Artemísio, Poseidon (460 a.C.). Detalhe.

Outro exemplo da didática aliada ao site remete à imagem do afresco do Êxtase de São Francisco (1297-1330), elaborado por Giotto, tratando da possível interpretação da presença simbólica das nuvens nas obras de arte, em texto de Hubert Damisch (1972). No caso, esse elemento funciona tanto para organizar o espaço da representação emergente em Giotto quanto para apontar o aspecto transcendente da figura do santo destacado no quadro, graças ao recurso pictórico da nuvem que o circunda. Na verdade, Damisch desdobra, em um livro de mais de trezentas páginas, a importância dinâmica, imaginária e indicial das nuvens em várias obras renascentistas. E até mesmo em algumas paisagens holandesas que, para o autor, significam um retorno à natureza, denotando um possível afastamento das questões transcendentais presentes nas obras renascentistas. Tudo isso sem esquecer, no mesmo texto de Damisch, a importância das nuvens nas pinturas chinesas monocromáticas, que oscilam entre o cheio e o vazio em planos sobrepostos que negam o sistema perspectivado da arte ocidental.

Figura 3: Giotto. <i>Êxtase de São Francisco </i>(1297-1330). Detalhe.
Figura 3: Giotto. Êxtase de São Francisco (1297-1330). Detalhe.

Dentre os barrocos, em Las Meninas (1656), de Diego Velázquez, obra analisada em texto homônimo por Michel Foucault (1968), aponto o jogo entre o visível e o invisível que inclui e exclui o espectador no quadro, em sucessivas permutações. Além das imagens dos reis refletidas no espelho, a figura do homem que entra em cena, iluminado pela abertura da porta pintada, faz a passagem entre o mundo interno e o externo na tela de Velázquez. De modo aparentemente alheio às imagens do espelho, o visitante parece fitar o espectador que, por sua vez, está posicionado no mesmo lugar onde estaria o casal real, refletido no espelho do fundo do quadro.

Figura 4: Velázquez. <i>Las Meninas</i> (1656). Detalhe.
Figura 4: Velázquez. Las Meninas (1656). Detalhe.

Ainda quanto às associações, tratando da modernidade de Manet, cito Georges Bataille (1955), que remete ao confronto com os modos vigentes de representação especialmente perceptíveis na composição pictórica sem claro-escuro nem relevo no quadro Picnic na relva (1862), recusado no salão oficial parisiense. À esquerda do quadro, algumas das questões abordadas pelos impressionistas se configuram na cesta de picnic de Manet: as pinceladas, as cores puras e o jogo das complementares. À parte a estranheza da mulher despida em meio aos dois homens vestidos na tela, é a figura etérea no fundo do quadro que chama a atenção, parecendo não pertencer ao mundo representado. Interessante perceber, na tela, as cenas que flutuam em planos, do modo como ocorrem nas já mencionadas paisagens chinesas, contrapondo-se ao sentido representacional da arte ocidental.

Figura 5: Manet. Pic nic na relva (1862). Detalhe.
Figura 5: Manet. Pic nic na relva (1862). Detalhe.

Enfim, os exemplos de obras e as questões sobre a arte que elas apresentam são infindáveis, podendo ser abordados de muitas maneiras. Algumas curiosidades, como as encontradas no quadro Paisagem com caída de Ícaro (1558), de Peter Bruegel, remetem à importância relevante do título do quadro, que dirige o olhar para o detalhe sutil que provavelmente não seria percebido no canto direito inferior da paisagem sem a informação verbal de Bruegel. E ainda, no quadro Tomé o incrédulo (1602-03), de Michelangelo Caravaggio, o dedo na chaga de Cristo chega a doer na carne de quem observa a cena, de um realismo impressionante, visando conjugar a informação do quadro ao impacto causado no espectador/participador.

Tanto as referências que incluem as obras e as legendas quanto os textos contendo as muitas interpretações e comentários críticos em livros e revistas especializadas, teses ou dissertações, todos podem ser apontados em links, ocupando um lugar infinito na rede. A intenção é de que tudo o que esteja citado no site também esteja relacionado em item separado, no menu, no alto à direita. Aí estão: as legendas das imagens, o glossário sobre as técnicas artísticas, as referências metodológicas e bibliográficas para as possíveis interpretações das obras, os endereços dos museus e galerias, além da citação de alguns filmes produzidos sobre artistas e vídeos de interesse no youtube.

Antes do menu explore, a indicação de acesso à página principal, no alto à direita, remete ao resumo do conteúdo do site. Ainda nas indicações da parte superior, a opção para contatos permite comentários dos participadores, incentivando a troca de informações. Na parte inferior do site constam: a ementa do curso com temas e bibliografia, o currículo resumido da professora do curso com links para artigos on-line e demais referências pessoais e, finalmente, o mapa do site, que indica todos os assuntos tratados no projeto de modo esquemático.

No topo, em movimento constante, alguns detalhes das obras remetem às técnicas utilizadas pelos artistas, por vezes anônimos, tornando suas ideias perceptíveis para o espectador. São elas: as pinturas rupestres de Chauvet, os vitrais das catedrais góticas, as incisões das gravuras de Dürer, o impacto da tinta a óleo de Turner nas telas, as manchas matéricas de Pollock, as colagens dadaístas que privilegiam o acaso, as assemblages de Rauschenberg, e as pinturas que reproduzem o processo reticulado nas telas de Lichtenstein.

Temas do curso

Inicio os temas do curso com a análise dos povos ditos “primitivos”, considerados menos importantes pela cultura europeia durante séculos, graças ao desconhecimento preconceituoso da existência milenar e da alta sofisticação artística das culturas alheias ao território europeu. Como optei por incluir obras não ocidentais que geralmente independem de alterações técnicas, de especificações autorais ou progressões lineares, proponho critérios mais maleáveis de abordagem que não se afastam da história das culturas e das ideias. De acordo com esses critérios, as próprias definições de mundo ocidental e não ocidental podem ser problematizadas logo no início da exposição dos temas do curso.

Na primeira chave desse item, cito as pinturas e esculturas pré-históricas, cujas características serão retomadas mais adiante neste texto. Em uma segunda chave, relaciono outras culturas, fazendo referência aos povos africanos, cuja produção tribal data de até 5 mil anos. Neste caso, os documentos históricos, que são textuais, não dão conta da produção artística, carente de maior aproximação com o material antropológico que examina os rituais, entre gravações e demais registros das práticas utilizadas nesse contexto. Alguns dos rituais, disponibilizados em vídeos na rede, podem estar conectados aos textos do site do curso. Longe dos critérios estéticos que balizam o conceito de arte ocidental, incluindo o conceito de gênio e de obra-prima, relacionados hierarquicamente aos meios que valorizam a pintura e a escultura, faz-se necessário, como no caso dos povos africanos, o dimensionamento da relação da arte com a funcionalidade dos objetos e máscaras, apreciados equivocadamente nos museus do Ocidente de acordo com aspectos formais.

Na terceira chave, menciono dois povos do extremo-oriente, chineses e japoneses, e sua produção de 5 mil anos. Com especial destaque refiro-me à escrita caligráfica, impregnada de aspectos éticos e filosóficos que não se dissociam da técnica, dos materiais e do gesto do artista. Próxima da pintura sobre papel ou seda, a caligrafia chinesa e a japonesa consideram a economia dos meios e a simplificação do traço como a mais pura expressão da espiritualidade. É também importante ressaltar, nessas culturas, que uma boa quantidade de imagens, objetos e porcelanas relativas à vida social e religiosa, convive em termos de importância com pinturas, esculturas e projetos de arquitetura, contrariando os critérios ocidentais mais tradicionais que valorizam as “artes maiores” em detrimento das “artes menores”.

Muitos dos parâmetros estéticos que definem a cultura de modo hierárquico foram discutidos e teorizados no Ocidente pelos artistas modernos no início do século XX, justamente a partir da compreensão da importância de outras visões de mundo na experiência artística europeia. A assimilação do valor estético das culturas negra e extremo-oriental pelo pensamento artístico moderno foi denominada “primitivismo”, denotando ainda o preconceito presente nas derivações da palavra primitivo. No caso dos artistas expressionistas do Blaue Reiter (1911-12), o tema se amplia para as crianças, para os loucos, e para todos aqueles que se afastam de um pensamento predominantemente lógico que interpreta a realidade em que vivemos.

O confronto com os textos de historiadores e críticos disponibilizados no ambiente digital, tais como Wilhelm Worringer (1909), Carl Einstein (1915) e Daniel-Henry Kahnweiler (1911), acompanhando de perto as produções de Picasso, Braque e demais artistas modernos, fundamenta os propósitos que anuncia, neste olhar em formação, as confluências culturais que desejo apontar. Vídeos de Picasso desenhando com um traço e animais sobre uma superfície de vidro filmada pelo avesso evidenciam a assimilação do valor estético de outras culturas em algumas das muitas obras que produziu.

Ainda nas primeiras décadas do século XX, é importante mencionar a experiência do cineasta Sergei Eisenstein, que a exemplo do historiador Arnheim (1984) crê enfaticamente no aspecto sensorial das imagens. Nos seus filmes, Eisenstein explora cuidadosamente o modo como o espectador pode ser afetado em termos psicológicos pelas imagens, através do processo de montagem. Trechos dos filmes de Eisenstein podem também estar conectados ao site, com a intenção de elucidar questões conceituais por meio de exemplos visíveis.

Em relação aos “povos primitivos”, retomo aqui o primeiro assunto da chave, relativo às pinturas e esculturas realizadas na era paleolítica. Ressalto a enorme importância das pinturas rupestres, graças ao registro de uma das primeiras narrativas que permite remontar à origem do ser humano e à sua estreita relação com os animais. Dessas imagens originais, misto de dependência, terror e admiração, brotam não só os mitos, como também a arte que remete aos aspectos fundamentais do sentido da vida: sobrevivência, reprodução e morte.

Em destaque, as relativamente recentes descobertas das pinturas de Chauvet (1994), no sul da França, datando de cerca de 32 mil anos. Sobre os registros das cavernas de Chauvet, escondidas durante milênios, o cineasta Werner Herzog produziu um filme em 3-D (2010), que mostra as formas irregulares das cavernas, acentuadas pelas luzes e sombras dos animais com volume e em movimento, curiosamente obedecendo a uma lógica muito próxima àquela dos fotogramas de animação. O filme de Herzog, que remete ao impacto da presença das pinturas e dos sons no reconhecimento de nós mesmos na memória dessas imagens, insere no processo de montagem depoimentos de cientistas e estudiosos, mostrando como pensamento, ciência e arte se relacionam. Entrevistas do diretor sobre a filmagem, e depoimentos sobre o filme propriamente dito, podem ser encontrados na rede e apontados em links no site.

Figura 6: Caverna de Chauvet (32.000 AC). Detalhe
Figura 6: Caverna de Chauvet (32.000 AC). Detalhe

Outro registro das pinturas paleolíticas que merece referência é o das cavernas de Lascaux, em Dordogne (França), produzidas há cerca de 18 mil anos. Em destaque, o uso de cores e materiais nas representações de animais que atestam a percepção da perspectiva e do trompe l’oeil. Como em Chauvet, o aproveitamento das superfícies das paredes acentua os relevos, enquanto que a superposição de animais indica o movimento. A simplificação da forma e a presença do desenho fortemente marcado pelo traço de contorno confirmam a destreza e, provavelmente, a criação compartilhada das pinturas nas paredes, nas quais as incisões com símbolos abstratos em traços, grades, flechas ou pontos poderiam remeter a uma possível forma rudimentar de escrita.

Em relação às interpretações sobre as pinturas de Lascaux, implicações místicas sugerem as projeções mentais dos xamãs, provavelmente envolvidos em alguma espécie de culto. Ritos do gênero podem ser encontrados em outras culturas, tais como a dos aborígenes neozelandeses, ou a dos antigos povos indígenas da América do Norte, também resgatados em algumas imagens e vídeos no ambiente digital.

A indicação de um filme que consta no site da Fundação Bradshaw[1], reconstituindo uma possível visita ao interior das cavernas de Lascaux, impressiona pelo aspecto visceral das imagens que exploram os limites entre o mundo representado e o mundo que sabemos existir de fato na região de Dordogne. Como menciona Roland Barthes (1984), em um texto sobre as imagens perfeitamente adequado ao caso, além do aspecto nostálgico que as imagens contêm, elas nos confrontam com o presente já testemunhado por alguém que um dia já esteve lá.

No filme sobre a visita a Lascaux, as passagens sucessivas pelas imagens do filme que representam as pinturas nos fazem mergulhar no labirinto sinuoso, percebendo texturas, cores, movimentos e sons nas imagens que se alternam, sempre que desejamos. Os comandos aplicados ao vídeo, que permitem a aproximação e a angulação das imagens, também possibilitam a visualização de textos elucidativos nas passagens, através de cliques em etiquetas que vão aparecendo ao longo do trajeto. Nesse processo, imagem e texto se complementam no aprofundamento do exame das pinturas. É interessante pontuar que desde 2008 as visitas às cavernas de Lascaux estão praticamente proibidas, o que torna esse passeio virtual ainda mais estimulante e surpreendente, uma vez que constitui um dos únicos modos de investigarmos hoje, com tanta precisão, a importância dos registros que são considerados patrimônio da humanidade.

Paralelamente aos temas do curso que se desdobram, proponho debates sobre as investigações da imagem, de acordo com o pensamento de William J. T. Mitchell (1987), Gilles Deleuze (1990) e Hans Belting (1990). Curioso perceber como em Lev Manovich as investigações sobre o tema se expandem, a propósito de uma estética relacionada ao processo criativo das imagens digitais (Manovich, 2002). Ao ultrapassar o aspecto tecnológico das imagens, Manovich aposta no paradigma com base no uso das ferramentas que modificam e criam uma nova visualidade, na qual convivem objetos representativos (tridimensionais), abstratos (bidimensionais) e imaginários, acarretando uma mudança cognitiva e afetiva nas pessoas que interagem com o meio digital.

Quanto ao aspecto lúdico que envolve o processo de cortar, colar, inserir e copiar, segundo Manovich, é possível aproximar artistas e designers que utilizam os mesmos recursos técnicos, reforçando as mudanças cognitivas das operações inerentes a este espaço, a mobilidade e o fácil ingresso em um ambiente múltiplo e participativo.

*Beatriz Lagoa é professora da ECO/UFRJ, designer gráfica (PUC-RJ), mestre em História da Arte (EBA-UFRJ) e doutora em História Social da Cultura (PUC-RJ), com pós-doutorado em Cultura e Tecnologia (PACC-UFRJ).


Referências

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BATAILLE, Georges. Manet. New York: Skira. 1955.

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BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução” (1936). In: Walter Benjamin, Max Horkheimer, Theodor W. Adorno, Jürgen Habermas. 2a. ed. São Paulo: Abril Cultural, coleção Os pensadores,1983.

DAMISCH, Hubert. “Théorie du nuage”. Pour une histoire de la peinture. Paris: Seuil, 1972.

FLUSSER, Vilém. “O universo das imagens técnicas”. Elogio da superficialidade. São Paulo: Annablume, 2008.

FOUCAULT, Michel. “Las meninas”. In: As palavras e as coisas. Lisboa: Portugália, 1968.

HEGEL, Georg W. F. “O Belo artístico ou o ideal”. In: HEGEL, vida e obra. 3a. ed. São Paulo: Abril Cultural, coleção Os pensadores1985.

MANOVICH, Lev. The language of new media. Cambridge: Mit Press. 2002.

MURRAY, Janet H. “Hamlet no Holodeck”. O futuro da narrativa no ciberespaço. São Paulo: Itaú Cultural: Unesp, 2003.

Nota

[1] Essa fundação promove a descoberta, a documentação e a preservação das primeiras manifestações artísticas realizadas pelo homem em vários lugares do planeta.

Tempo de leitura estimado: 25 minutos

Laboratório de Tipografia do Agreste: sua pertinência e implicações no contexto da tipografia brasileira | Buggy e Lia Alcântara*

O Laboratório de Tipografia do Agreste (LTA) é um espaço concebido para conjugar atividades de ensino e pesquisa tipográficas no Centro Acadêmico do Agreste (CAA) – o campus da Universidade Federal de Pernambuco, em Caruaru, no interior do estado. Por meio da mobilização de professores e alunos de design envolvidos no processo de interiorização do ensino proposto pelo governo federal, esse laboratório tem trazido para a região discussões sobre desenho de tipos, emprego de fontes e famílias tipográficas, impressão com tipos móveis, produção e encadernação de livros, caligrafia e história da escrita.

Para compreender melhor essa iniciativa e suas implicações no contexto local do ensino superior de design é preciso trazer à luz alguns aspectos que nortearam a sua constituição e outros que dirigem o seu atual funcionamento.

Figura 1: Espaço físico e equipamentos gráficos do LTA. Foto: Buggy.
Figura 1: Espaço físico e equipamentos gráficos do LTA. Foto: Buggy.

Sobre a criação do LTA

Ao atentar para as atividades cotidianas normais com as quais as pessoas ocupam suas vidas hoje, logo se torna evidente que a tipografia é inevitável, quase onipresente (Jury, 2007). Seus níveis de compreensão são parte essencial da cultura do Ocidente e estão intrinsecamente associados ao saber, à literatura e à enorme quantidade de informações alfanuméricas que cercam todos diariamente, ou seja, a história e a civilização (Fontana, 1996).

O surgimento da imprensa é um proeminente marco na trajetória que culmina nesse panorama. A fundição dos tipos móveis e a invenção de todo aparato necessário a seu uso repercutiu de tal maneira na formação do entendimento comum sobre o que é design gráfico que, mesmo hoje, numerosos cursos de design dos mais diversos níveis de aprofundamento não prescindem de disciplinas inteiramente dedicadas à história, ao uso e/ou ao desenho tipográfico em suas grades curriculares.

No âmbito local, a preocupação com a tipografia é percebida de forma peculiar, conectada a esse momento histórico. Três das seis instituições de ensino superior pernambucanas que formam designers gráficos – UFPE, IFPE e AESO – vão além da manutenção de disciplinas e conservam gráficas tipográficas para fins didáticos em seus campi há pelo menos sete anos. Contudo, as duas estruturas mantidas pela UFPE (o espólio de Aloísio Magalhães e a tipografia da Editora Universitária) concentram-se no Campus de Recife, que abriga apenas um dos seus dois cursos de design. Com isso, até 2011, ano de inauguração da tipografia do LTA, o curso instalado no CAA (o campus localizado em Caruaru) permaneceu desprivilegiado, à conta dos cento e vinte quilômetros que separam essas cidades.

Agreste e Sertão são o berço da literatura de cordel, expressão cultural impulsionada pela impressão tipográfica. A esse respeito, Carvalho (2001) destaca a vitalidade dos folhetos populares no Nordeste brasileiro, atrelada ao processo de interiorização das máquinas tipográficas – que se tornavam obsoletas para os grandes centros por volta de 1926. Mais enfático, Lopes afirma: “A literatura de cordel, obviamente, só surgiria após o aparecimento das pequenas tipografias avulsas, espalhadas por várias cidades interioranas” (Lopes, 1994, p. 12).

O movimento de interiorização do ensino superior público realizado em Pernambuco na metade da última década trouxe em 2006 o design para o ambiente acadêmico agrestino. Somente em 2009, com a fundação do LTA, foi proposto aos alunos que experimentavam essa formação uma aproximação direta ao universo tipográfico. A realização de oficinas e exposições estimulou a inserção de disciplinas eletivas na grade do curso da UFPE, em Caruaru.

Dois anos mais tarde, foi possível promover o encontro desse público com a mais legítima expressão gráfica produzida pelo povo nordestino. A inauguração da gráfica tipográfica do LTA tratou, entre outros fatores, de favorecer o estudo de aspectos visuais da identidade de um grupo através da análise e interpretação da linguagem plástica da poesia narrativa popular e impressa disseminada pelo sistema de impressão com tipos móveis.

Essa perspectiva foi alimentada pela convicção de que o processo estruturado de formação profissional pode ser enriquecido pelo estímulo à interação dinâmica e potencial do indivíduo e do grupo trabalhado, bem como do respeito e valorização de diferenças, visando o cultivo de um horizonte mais amplo de produção, no qual haja liberdade para experimentar e errar.

Se por um lado tal proposição fundamentou-se no empirismo, enaltecendo a diversidade, a criatividade e a colaboração, por outro, apoiou-se em teorias que defendem o fato de o ensino do design poder ser percebido como uma instância essencial para a própria existência e renovação do campo.

De acordo com esse ideário, é nos processos de aprendizado que o designer em formação adquire consciência discursiva, capacidade de refletir, pensamento crítico e, consequentemente, capacidade de inovar. E inovação em design não é tanto uma questão de tecnologia ou estética (Longinotti in Ordoñez, 2010, p. 6-7). É uma condição fundamental que estrutura os pilares de sua epistemologia, conforme atenta Bonsiepe: “O design está relacionado à inovação. O ato projetual introduz algo novo no mundo” (1997, p.15).

O pensamento de Lozano (2009) corrobora a importância do ensino do design ressaltando o valor da confluência entre a teoria e a prática nesse processo. Segundo o autor, para formar designers críticos que trabalhem de forma ativa no mercado, interagindo com seus pares, questionando seu trabalho e propondo novos limites, é preciso aproximar essas duas perspectivas. Aproximar-se da prática é ir além do subjetivo e complexo campo teórico da educação, que tem como base de seus princípios uma lógica de construção linear. A prática permite compreender o funcionamento do que se aprende tornando tangível o conhecimento. Com isso, o trabalho de aprender implica entender o teórico com sua aplicação no mundo da prática. Lozano (2009, p. 10) ainda discorre sobre a importância dos aprendizes. Para ele, o ímpeto inovador de um estudante, fresco por excelência, pode outorgar diferentes pontos de solução em relação ao elaborado por um profissional de destaque numa dada matéria.

Aspirando tornar isso possível, o instrumento de manobra escolhido pelo LTA foi a criatividade. Porque o papel do pensamento criativo é de fundamental importância, tendo em vista que a criatividade constitui-se no elemento-chave para que organizações inseridas em cenários marcados por transformações, riscos e incertezas possam propor soluções imediatas e originais diante de problemas novos (Obregon e Vanzin, 2010). E no que tange ao cenário, diga-se de passagem, essa escolha não poderia ser mais adequada.

Figura 2: Principal acesso ao Campus Acadêmico do Agreste (CAA) usado até 2012. Foto: Buggy.
Figura 2: Principal acesso ao Campus Acadêmico do Agreste (CAA) usado até 2012. Foto: Buggy.

O LTA incorpora a ideia de integrar diversas dimensões do pensar tipográfico, ele revê e atualiza a proposta da Escola de Ulm que, segundo Cardoso (2012), incitava seus alunos a refletir sobre o fazer e se aprofundarem em estudos correlatos. O sistema letterpress – tipográfico – é usado como um instrumento de ensino na medida em que se “mostra como um inestimável método de raciocínio visual” (OTSP, 2007), permitindo aos alunos aplicarem os princípios fundamentais da tipografia e, consequentemente, da comunicação visual, unidos às novas tecnologias e, ao fim, obterem um resultado de inquestionável originalidade.

À conta do que foi exposto até o momento, o LTA fez sua aposta no trabalho conjunto de professores e alunos implicados num processo de aprendizagem que sintonizou prática e teoria para colher material mais rico do que o obtido por um trabalho individual que explorasse em separado e/ou dicotomicamente essas duas searas. A experiência de ensino realizada sob a luz dessa confluência para formar profissionais proativos foi abraçada pelo LTA no intuito de valorizar o perfil do designer em processo de formação, conforme proposto por Lozano (2009), integrando-o ao convívio docente em ações de pesquisa e extensão. Por conseguinte, também se pretendeu eliminar o receio do erro apontado por Crisp (2004) e estimular a habilidade de questionar pressupostos, quebrar fronteiras, ultrapassar limites, reconhecer padrões, enxergar em novos ângulos, fazer novas conexões, assumir riscos e aproveitar oportunidades casuais.

Ao fazê-lo, não se deixou de considerar que o medo de transgredir involuntariamente algumas leis tidas como imutáveis no universo da tipografia poderia intimidar a ousadia dos estudantes no desenvolvimento de suas atribuições. Todavia, a convivência com designers mais experientes pôde respaldar ações nas quais essas leis assumiram um caráter mais relativo, já que temas como esses podem tratar de gostos e práticas tradicionalmente aplicadas que podem ser transgredidas ocasionalmente (Crisp, 2004). Mais do que isso, muitas vezes tais práticas devem ser transgredidas – se não para obtenção de uma resposta objetiva e prática, para privilegiar o experimento tão somente como instrumento de aprendizado.

Figura 3: Alunos trabalhando no LTA. Foto: Buggy.
Figura 3: Alunos trabalhando no LTA. Foto: Buggy.

Criado inicialmente como um projeto de extensão, o LTA esteve nos dois primeiros anos dedicado à preservação e à divulgação de tecnologias, geração de novas formas e fontes e apoio a pesquisas vinculadas ao universo tipográfico. Além disso, firmava-se como um espaço experimental com função de atender e estimular demandas relacionadas ao uso e à produção da tipografia em ambientes reais e virtuais, mobilizando docentes, discentes e profissionais da iniciativa privada.

Esse período também foi marcado pela organização do acervo pessoal do professor Leonardo Costa (Buggy) de tipos de metal, madeira e linóleo, além dos primeiros reparos nas prensas tipográficas. Primeiramente atrelado às demonstrações práticas do que era ministrado em disciplinas teóricas, o LTA transformou-se rapidamente em um laboratório de criação e experimentação, onde é possível conjugar aspectos da macro e microtipografia, computadores e prensas e as mais diversas técnicas e materiais de impressão.

Figura 4: Espaço físico e equipamentos gráficos do LTA. Foto: Buggy.
Figura 4: Espaço físico e equipamentos gráficos do LTA. Foto: Buggy.

A estrutura e o funcionamento do LTA

A oficina tipográfica instalada no LTA divide espaço com livros, computadores, scanners e impressoras a laser. Uma convivência harmônica que demanda mais espaço a cada dia que passa, dado o crescimento acelerado do interesse de alunos e professores em participar das atividades.

Figura 5: Detalhe de computador usado no LTA. Foto: Buggy.
Figura 5: Detalhe de computador usado no LTA. Foto: Buggy.
Figura 6: Detalhe de prelo usado no LTA. Foto: Buggy.
Figura 6: Detalhe de prelo usado no LTA. Foto: Buggy.

Esse processo de aquisição se dá graças à relação de comodato estabelecida entre a UFPE e o professor Leonardo Costa (Buggy). Grande parte do acervo pessoal desse pesquisador, formado por compras e doações, encontra-se atualmente nas instalações do Campus do Agreste, emprestado para fins educacionais. Quatro prensas, dois prelos e diversas galés, cavaletes e caixas de tipos possibilitam aos alunos experimentar e produzir artefatos gráficos que envolvem toda a logística e prática do antigo ofício tipográfico.

O espaço reduzido e a diversidade de horários disponíveis dos envolvidos distribui a equipe do Laboratório (atualmente são seis professores e vinte e quatro alunos) em três turnos diários de, em média, quatro horas cada. Cada membro deve cumprir vinte horas semanais, podendo encaixar-se em até dois turnos diários para tanto.

O LTA mobiliza seus participantes em seis grupos de trabalho, compostos por colaboradores, subgerentes e gerentes. Alunos mais experientes ocupam preferencialmente as gerências e subgerências, sempre orientados por professores. Cada grupo dedica-se a uma área de atuação específica de trabalho. A saber:

1 Projetos editoriais. O grupo desenvolve projetos gráficos para publicações que tratam de temas de interesse do LTA e que são de autoria de colaboradores e/ou ex-colaboradores. Ele explora linguagens não convencionais, tanto verbais quanto visuais, para sugerir a integração de diversas tecnologias de impressão na produção de pequenas tiragens de livros, jornais e revistas. Além disso, o grupo gerencia a avaliação dos livros a serem indexados pelo blog Bibliografia Tipográfica (em <http://tiposdoacaso.com.br/bibliografiatipografica/>) e formata os respectivos posts.

2 Impressão e produção gráfica. Esse grupo trata da catalogação e utilização do acervo tipográfico, bem como de sua organização e limpeza. Indica as demandas de restauro ou a necessidade de máquinas, ferramentas, móveis e peças, além de produzir livros, jornais, revistas, cartazes, cartões, panfletos e demais impressos integrando as tecnologias atuais a algumas em desuso comercial.

3 Design de produtos e restauro. Responsável pela restauração e produção de máquinas, ferramentas, móveis e peças tipográficas, além de estabelecer as políticas de uso do Laboratório e de seu aparato analógico e digital. Também propõe e desenvolve produtos a partir do acervo do LTA.

4 Mídias digitais. Desenvolve, edita e atualiza interfaces e conteúdos para sites, multimídias, filmes, animações, créditos e cartelas relacionados às diversas áreas de atuação do Laboratório.

5 Design de tipos. Desenha, gera e edita fontes digitais para atender às demandas do LTA e de outras entidades.

6 Comunicação e gestão. Planeja e executa ações, peças promocionais e eventos on-line ou off-line. Gerencia os prazos dos projetos conduzidos pelos demais grupos.

Figura 7: Sequencia de imagens da Equipe do LTA produzindo, com técnica mista, cartazes para oficina de impressão tipográfica. Fotos: Buggy.
Figura 7: Sequencia de imagens da Equipe do LTA produzindo, com técnica mista, cartazes para oficina de impressão tipográfica. Fotos: Buggy. Figura 7: Sequencia de imagens da Equipe do LTA produzindo, com técnica mista, cartazes para oficina de impressão tipográfica. Fotos: Buggy.

Cada um desses grupos se ocupa de um tema vital ao bom funcionamento dos projetos do laboratório. Nesse contexto, os professores atuam como agentes motivadores dos grupos e como consultores técnicos e organizacionais dos seus coordenadores. A proposição dos projetos a serem desenvolvidos é de responsabilidade de todos os integrantes do LTA, não cabendo nesse ponto distinção entre docentes e discentes.

Assim, os alunos são estimulados a vivenciar perfis diferentes do executor de projetos. Eles passam a propor e/ou gerenciar esses projetos assumindo papéis no universo do design que fogem do habitual posto de diretor de arte. Ao se colocarem em posição diversa daquela para a qual prioritariamente o sistema de ensino o prepara, esses alunos passam a questionar seu perfil, a empregar novas óticas para solução de problemas e a discutir a própria relevância de tais problemas. Com isso, sentem-se mais à vontade para considerar múltiplas ferramentas no seu dia a dia e abrem-se ao experimento, permitindo-se atuar de forma eficiente numa produção coletiva.

Figura 8: Gráfico da dinâmica produtiva aluno/professor no LTA.
Figura 8: Gráfico da dinâmica produtiva aluno/professor no LTA.

O professor propõe, orienta, motiva, reconhece e também interage em projetos, sem contudo se sobrepor à gerência da coordenação de cada grupo – o que constitui um grande desafio ao docente e pressupõe, em certos momentos, uma retração de sua natureza. O aluno, por sua vez, interage, se compromete, reflete, planeja e propõe projetos. Cabe destacar que o entendimento do termo “projeto”, aqui, pode compreender desde uma peça gráfica até uma pesquisa, passando por exposições, oficinas, palestras, ações promocionais, sites, fontes digitais etc.

Para tanto, a verve crítica da equipe é continuamente inflamada por meio de debates internos, treinamentos e leitura. A leitura é uma atribuição permanente de todos os que integram o LTA. E para assegurar essa constante foi criado o citado blog Bibliografia Tipográfica, um canal no qual discentes comentam diversos aspectos de obras ligadas ao universo da tipografia. Nele, o conteúdo, a produção gráfica e o projeto gráfico de livros e periódicos são avaliados pelos seus leitores mais ávidos.

O LTA e o cenário brasileiro da tipografia

Segundo Buggy, Valadares e Vieira (2012), a produção gráfica de Pernambuco é de grande relevância para o Brasil. Impressos e litografias, ainda da fase colonial, atestam a efervescência ideológica e o protagonismo gráfico do Estado. Do mesmo modo, a produção de xilogravuras promoveu a literatura de cordel, firmando-se como um traço da identidade cultural da região. Algumas décadas antes, o sucesso da tecnologia de composição manual, verificado nas oficinas de impressão no interior do Nordeste, já apontava para essa popularização do fazer tipográfico.

O significado e o valor dessa produção são objetos de estudo de pesquisa acadêmica, como os de Edna Lúcia Cunha Lima (1999) sobre a litografia comercial em Pernambuco, que revelam os primórdios de uma relação do mercado de tabaco com a representação visual de costumes da sociedade da época. Da mesma forma, a tese sobre o grupo O Gráfico Amador, de Guilherme Cunha Lima (1997), discorre sobre a experiência da tipografia por um grupo do Recife, em meados dos anos 1950, trazendo esclarecimentos sobre a relação de uma classe intelectual com a produção gráfica. Aliás, esse grupo advogava contundentemente a favor da prática, chamando carinhosamente de “mãos sujas” aqueles que se propunham a trabalhar nos processos de impressão, e de “mãos limpas” aqueles que se dedicavam apenas ao estudo da teoria. Isso com claro favorecimento aos que se propunham à práxis gráfica. Esses são exemplos de trabalhos sobre a história do design pernambucano que respaldam uma tradição que precisa continuar ativa. Na intenção de contribuir para maiores esclarecimentos nesse campo, o LTA se propôs a compreender questões tipográficas e suas relações com identidades culturais da região.

Figura 9: Experimento tipográfico dos alunos do LTA. Foto: Paula Valadares.
Figura 9: Experimento tipográfico dos alunos do LTA. Foto: Paula Valadares.

A tipografia em discussão

A preservação da tipografia, tanto como processo gráfico, quanto como documento relacionado ao entendimento das características da identidade gráfica brasileira, está hoje em sintonia com pesquisas de outras instituições acadêmicas (PUC/RJ, ESDI, Senac/SP) que têm desenvolvido trabalhos com foco no imaginário e na Memória Gráfica Brasileira (MGB). Isso porque os artefatos informacionais, produto da cultura material, são reflexos de tempos e lugares e, dessa forma, retratam características e costumes da sociedade, tornando-se documentos de atestado histórico. Imagem e letra, conforme atestava Ferreira (1994), são expressões gráficas que representam o universo simbólico da cultura e isso é campo de entendimento do design. O resgate e a criação de uma memória gráfica dimensionada para destacar a importância da cultura material e visual ajudam a compor a identidade brasileira.

O conhecimento sobre a tipografia no Brasil está em constante entendimento e transformação. A tecnologia digital alterou a natureza dessa importante área de conhecimento para o design ao torná-la uma prática mais acessível (Jury, 2007).  Como muitas outras áreas do saber, a tipografia, nas últimas décadas, parece atravessar um momento de revisão de valores e redefinição de territórios, conforme atesta Farias (2001). O LTA possibilitou aos alunos e professores experimentar questões do universo tipográfico, mostrando-se em sintonia com essa nova redefinição de valores e territórios. Ainda nesse cenário de interesses, por meio de suas ações, o LTA tem tentado equalizar o diálogo com outras instituições de ensino superior que já exploram temas correlatos, além de aproximar-se do panorama tipográfico nacional e da cultura local.

Pernambuco esteve inserido no roteiro das primeiras discussões sobre tipografia no Brasil, com participação em eventos internacionais (como o Tipos Latinos 2004 e 2008), nacionais (como a Bienal Brasileira de Design Gráfico e o DNA Tipográfico) e locais (como o tyPE: Tipografia em Recife, de 2004 e o TudoTemTipo: Encontro Tipográfico de Salvador, em 2007).

Por volta dos anos 1990, Tony de Marco e Cláudio Rocha produziam e distribuíam suas primeiras fontes, inspirando iniciativas coletivas como a Subvertaipe, no Rio de Janeiro, e a Tipos do aCASO, em Recife. O trabalho desse último grupo era caracterizado por fontes experimentais, ora de caráter desconstrutivista, geométrico, modular ora com traços regionais e vernaculares. Esteves (2010) inclui o grupo pernambucano Tipos do aCASO entre os pioneiros em produção de fontes no Brasil.

Essa mesma tônica experimentalista permeava os diversos coletivos de tipografia que se formavam pelo Brasil, como o Tipopótamo Fontes, de José Lessa e Cláudio Reston (ou Elesbão e Haroldinho), o Fontes Carambola, de Fábio Lopez e outros estudantes cariocas, inspirados pelo Professor Rodolfo Capeto, o Tipos Maléficos de Crystian Cruz, Beto Shibata e Marcus Colete e o Gemada Tipográfica, fundado por Rafael Dietzsch.

Alguns desses grupos se desfizeram, outros permaneceram, mas os que perseveraram amadureceram bastante suas relações com a tipografia. Nos anos 2000, a Tipos do aCASO converte-se em uma unidade de negócios dentro de um escritório de design, chegando a responder por 60% de seu faturamento e realizando projetos como o Manguebats e o Armoribats. Rodolfo Capeto produz a família tipográfica Houaiss para os dicionários Houaiss. Eduardo Omine projeta a família Beret, enquanto Fabio Haag faz a família Foco. Esses são apenas alguns exemplos e refletem alto nível de qualidade e complexidade em projetos tipográficos, que só vêm aumentando – o que se pode observar nas produções mais recentes de Fernando Mello, Eduilson Coan, Marconi Lima, entre outros (Esteves, 2010).

Dois dos participantes da Tipos do aCASO fazem parte do atual grupo de professores do LTA – Marcos Buccini e Leonardo Costa (Buggy) –, endossando os aspectos experimentais e empreendedores do Laboratório. Somam-se a eles professores envolvidos em projetos sobre história do design, semiótica, sinalização e caligrafia, que entendem a tipografia como elemento sine qua non para o design desenvolvido pelos alunos do Campus do Agreste. A multidisciplinaridade encontra terreno fértil no LTA, movida pela impetuosidade e pelo desejo de inovação de seus membros discentes. Apesar do grande volume de equipamentos e fontes ligadas a letterpress, o LTA abraça a tipografia como um todo e contempla projetos de fontes digitais, projetos editoriais em que a tipografia figura como elemento diferencial, além de técnicas de impressão mistas.

O LTA soma-se ao recente universo de estabelecimentos tipográficos brasileiros geridos ou influenciados por designers preocupados em preservar a linguagem visual resultante do sistema de composição e impressão com tipos móveis. Exemplos são o Tipô Tipografia (em Goiânia), o Laboratório de Impressos (Olinda), a Tipografia do CAC/UFPE e a Editora Universitária da UFPE (Recife), a Tipografia do Matias, a Tipografia do Zé e o Núcleo de Estudos da Cultura do Impresso (Belo Horizonte), a Oficina Tipográfica São Paulo / OTSP, a Letterpress Brasil, a Gráfica Fidalga, a Folita Press, a Pergam Press, a QStampa, a Currupiola, o Estúdio Carimbo, o Phatt Design e a Tipografia do Centro Universitário Senac, todos em São Paulo.

O Laboratório mantém contato constante com vários desses estabelecimentos, destacando-se o relacionamento estabelecido entre o LTA e a OTSP, que prevê a transferência de tecnologia e o desenvolvimento de projetos em parceria, como o já iniciado livro Conversas com o tipógrafo J. Borges. Esse projeto promove a troca de conhecimentos entre os designers, não só nos aspectos técnicos, mas também culturais e sociais, favorecendo a imersão em universos criativos por vezes distantes, como São Paulo e Caruaru.

Considerações finais

Após quatro anos de LTA, podemos observar que a proposição da tipografia como perspectiva para o estudo do design no CAA implicou no surgimento de seis novas disciplinas na graduação, nove acordos de cooperação técnica, uma série de livros e numerosos cursos de extensão/palestras com designers brasileiros e estrangeiros.

Figura 10: oficina <i>Latters as Forms II</i> organizada pelo LTA e ministrada pela professora Catherine Dixon. Foto: Buggy
Figura 10: oficina Latters as Forms II organizada pelo LTA e ministrada pela professora Catherine Dixon. Foto: Buggy
Figura 11: Palestra <i>Letras que flutuam</i>, organizada pelo LTA e ministrada pela professora Fernanda Martins. Foto: Buggy.
Figura 11: Palestra Letras que flutuam, organizada pelo LTA e ministrada pela professora Fernanda Martins. Foto: Buggy.

É certo que ainda há muito por fazer, sobretudo no que diz respeito à sustentabilidade a longo prazo dessa iniciativa, visto que os produtos resultantes de tal meio começam a proliferar apenas agora. A repercussão positiva do trabalho do LTA nas redes sociais e na formação dos discentes do CAA apresenta-se como uma estimulante oportunidade de expandir nossa rede de relacionamentos e fomentar um fluxo dinâmico de saberes, vivenciando algo novo, que ainda será projetado, e cujo delineamento nos é simpático em absoluto, pois é certo que aponta para a construção de um fazer coletivo de maior alcance.

À conta disso, a equipe do LTA aposta que a médio prazo sua disposição para geração de produtos/serviços culturais e tecnológicos encontre condições para se desenvolver. Em poucos anos, o Laboratório pretende extravasar seus limites e integrar um ambiente criativo capaz de prover possibilidades reais para propor e viabilizar ações que conjuguem arte e ciência implicando ganho social e econômico. Um ambiente inovador atento às formas de interação que determinam a distribuição de sua população, à seu patrimônio material e imaterial e ao sustento de sua produção.

Valorizando ideias e talentos locais no mesmo passo que se articulando com outras organizações semelhantes, o LTA pretende seguir estimulando um intercâmbio de saberes capaz de ampliar suas fronteiras.

Figura 12: Parte da equipe LTA decorando os espaços do Laboratório. Foto: Buggy.
Figura 12: Parte da equipe LTA decorando os espaços do Laboratório. Foto: Buggy.

*Buggy é mestre em design pela UFPE, professor do curso de Design da UFPE, em Caruaru e da Pós-graduação em Design Estratégico da Unifacs, em Salvador. Fundou a primeira digital type foundry nordestina, a Tipos do aCASO, e os cursos de design gráfico e design de produto da AESO. É coordenador do Laboratório de Tipografia do Agreste e vice-presidente da Comissão Editorial da Serifa Fina. Como músico, participou ativamente do Manguebeat tocando baixo no DMP & os Fulanos; como designer, conquistou prêmios nacionais e internacionais e como autor escreveu três livros – um deles, O MECOTipo, referência no ensino brasileiro de design de tipos. Lia Alcântara é mestre em Design pela UFPE e doutoranda em Design na mesma instituição. Atua no magistério superior desde 2006, tendo assumido o cargo de coordenadora do curso de Design Gráfico na AESO em 2011 e de Design de Produto em 2013. É gerente de produtos da Tipos do aCASO e da Nina Bookbinding e presidente do Conselho Editorial da Serifa Fina.


Referências

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BUGGY, Leonardo; VALADARES, Paula; VIERIA, Rosângela. Laboratório de Tipografia do Agreste (LTA): experiência produção e aprendizagem. In: Anais do X Congresso Brasileiro de Pesquisa e Desenvolvimento em Design, 2012, São Luís. São Luís: EDUFMA, 2012.

CARDOSO, Rafael. Design para um mundo complexo. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

CARVALHO, Gilmar de. Xilogravura: Doze escritos na madeira. Fortaleza: Museu do Ceará e Secretaria de Cultura e Desporto do Ceará, 2001.

CRISP, Denise Gonzales. What I have learned about typography. What I teach. In: HELLER, Steven. The Education of a Typographer. New York: Allworth, 2004.

CUNHA LIMA, Edna Lúcia. “Induzindo ao vício. Os primeiros rótulos e marcas de cigarro brasileiros, criados pelos cigarreiros do Recife no século passado.” Design & Interiores, n. 39, ano 7, 1999, pp. 72-75.

CUNHA LIMA, Guilherme. O Gráfico Amador. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1997.

ESTEVES, Ricardo. O design brasileiro de tipos digitais: a configuração de um campo profissional. São Paulo: Blucher, 2010.

FARIAS, Priscila Lena. Tipografia digital. O impacto das novas tecnologias. Rio de Janeiro: 2AB, 2001.

FERREIRA, Orlando da Costa. Imagem e letra: Introdução à bibliologia brasileira. São Paulo: Edusp, 1994.

FONTANA, Rubens. Pensamiento tipográfico. Buenos Aires: Edicial, 1996.

JURY, David. O que é a tipografia? Barcelona: Gustavo Gili, 2007.

LOPES, José Ribamar (org.). Literatura de cordel: antologia. Fortaleza: Banco do Nordeste do Brasil, 1994.

LOZANO, Diego Pérez. Reflexión y visión sobre enseñanza tipográfica. Cuadernos Del Centro de Estúdios en Diseño y Comunicación [Ensayos]. Buenos Aires, n. 29. p. 10, ago. 2009.

OBREGON, Rosane de Fátima Antunes; VANZIN, Tarcísio. Sistemas interativos de criatividade como potencial gerador de novos conhecimentos. In: ULBRICHT, Vania Ribas; et al. (Org.). Criatividade & conhecimento. Florianópolis: Pandion, 2010. p. 159-173.

ORDOÑEZ, Hernán. Typex: Typography. A Teaching Experience. Barcelona: Index, 2010.

OTSP. Oficina Tipografica São Paulo. Disponível em: <http://www.oficinatipografica.com.br/>. Acesso em 18 de setembro de 2013.

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Padrões cromáticos do design gráfico vernacular | Fernanda de Abreu Cardoso*

Neste artigo apresentamos uma análise dos padrões de uso das cores em peças de design gráfico vernacular, também denominado design gráfico popular. O termo “design gráfico vernacular” refere-se a um campo de produção de bens simbólicos relacionado à produção de material gráfico por indivíduos pertencentes a espaços sociais economicamente desfavorecidos. Trata-se de um campo informal, que se define por exclusão do campo do design institucionalizado, formal e erudito, representando, portanto, o design não oficial.

As diferenças sociais e econômicas entre os grupos sociais produzem diferentes “estilos” de vida, padrões de avaliação e formas de representações visuais. É nesse sentido que a linguagem visual do design gráfico vernacular se distingue da linguagem do campo oficial do design em diversos aspectos. E por considerarmos que a linguagem visual desse tipo de produção é fruto de condições sociais específicas, mesmo se tratando de um campo informal de produção de peças gráficas, é possível identificar alguns padrões de representação bastante característicos desse tipo de produção.

Identificamos o uso das cores nessas peças como um dos aspectos mais distintivos dessa linguagem. As escolhas que resultam nos padrões cromáticos das peças gráficas populares não são movidas pelas regras de representação da norma culta sendo, portanto, bastante distintas da produção do campo institucionalizado do design. Neste texto, apresentamos padrões cromáticos do design gráfico vernacular examinando as possíveis motivações para as escolhas referentes ao uso das cores. Analisamos a aplicação das cores nas peças gráficas observando quais utilizações ocorrem com maior frequência, acabando por se tornar características da linguagem visual do design gráfico vernacular.

Este artigo tem como base os resultados de uma pesquisa de doutorado sobre o universo simbólico do design gráfico vernacular, realizada pela autora. Nessa tese, o enfoque foi dado ao modo como as estruturas sociais operam a criação da dimensão imaginária ou do universo simbólico, que vem a ser o chão das representações sociais. Dessa forma, a produção de bens simbólicos seria reflexo de seu habitus[1], e a linguagem comum utilizada pelos designers populares representa, em última análise, esquemas de percepção, de pensamento e de ação particulares de seu grupo.

Com base no fato de que a linguagem visual característica das peças de design gráfico popular, sejam elas artesanais ou impressas, é reflexo de condições de existência semelhantes entre seus produtores, suas construções formais podem ser vistas como representações de valores sociais. Parte daquela pesquisa resultou em uma análise dos aspectos formais da linguagem do design gráfico vernacular, sendo examinados os padrões mais comuns nesse tipo de representação e caracterizadores dessa linguagem. Consideramos o modo como são utilizadas as cores um elemento básico e fundamental para caracterizar e identificar o estilo de representação visual dessa produção. Por isso, selecionamos o aspecto da linguagem visual do design popular para desenvolver o presente texto.

Na amostra dos objetos analisados incluem-se tanto o design popular artesanal quanto o material gráfico impresso, logo, para este artigo, selecionamos um conjunto de letreiros confeccionados artesanalmente e embalagens de diversos tipos de produtos. Optamos por objetos produzidos de formas bastante distintas para demonstrar que, nesse caso, a linguagem visual das peças é a mesma, independente de ser uma peça artesanal ou impressa industrialmente. Cabe destacar que, na grande maioria das vezes, em ambos os casos, a forma de produção se dá com recursos reduzidos.

A linguagem visual popular

Fruto de um contexto social, cultural e histórico específicos, podemos dizer que uma produção visual tende a se assemelhar em grupos com habitus semelhantes. Para cada campo são criados códigos próprios, de modo formal ou tácito, que se instauram, são reconhecidos e aplicados por seus pares. Se as representações visuais são reflexo de condições sociais específicas, mesmo que não existam regras preestabelecidas, podemos supor que existe uma tendência a uma uniformidade nas representações populares. Mesmo sem regras enunciadas ou formalizadas, verificamos a existência de padrões visuais, já que podemos observar a constância de alguns elementos gráficos, algo em comum que constitui uma linguagem visual do design popular. Como não existe a consciência de campo nem uma escola, tampouco normas a serem seguidas, mas apenas o fato de indivíduos dividirem condições semelhantes de existência e tenderem a se expressar de forma similar, esses padrões não são enunciados ou transmitidos pela academia, como ocorre no campo formal. Mesmo que não haja um padrão institucionalizado de representação, de alguma forma existem semelhanças muito claras entre diferentes produtores.

Bourdieu (2002) aponta que as práticas de agentes da mesma classe possuem afinidade estilística, pois são produtos de transferências de um mesmo esquema de ações. Essa sistematização nos produtos poderia ser explicada pela sistematização de uma estrutura, como a configuração de um campo de produção de bens simbólicos. Ainda conforme o autor, um estilo poderia ser definido como um modo de representação que expressa um modo de percepção próprio de um período, de uma classe ou fração de classe, de um grupo de artistas ou de um artista. Seria, portanto, uma categoria de expressão visual modelada pelo ambiente cultural. Os estilos são criados espontaneamente e se caracterizam por reproduzirem aspectos comuns da forma visual, pois estabelecem tradições e simbolismos próprios, além de combinarem técnicas visuais específicas, que são empregadas por produtores e agentes de um campo, como o do design gráfico vernacular.

Podemos, portanto, identificar convenções, regras e princípios básicos que são seguidos para se reproduzir determinado estilo, mesmo que esse estilo seja criado espontaneamente. Desse modo, podemos considerar a existência de um estilo próprio do design gráfico vernacular como resultado do uso de uma linguagem comum entre os produtores desse campo. É possível identificar formalmente tanto esse estilo popular, bastante característico e marcante, quanto sua reprodução em outros meios que não o seu de origem.

De um modo geral, é possível observar uma forma de representação mais direta e imediata das classes populares, especialmente pelo uso de imagens que fazem referência explícita ao produto ou serviço anunciado: o naturalismo das ilustrações e o uso das cores, que devem chamar atenção do observador. Verificamos que a informação deve ser transmitida de forma muito clara, para que não haja dúvidas em relação ao seu entendimento.

O uso das cores

Os processos de percepção da cor variam também de acordo com o grupo social, uma vez que a percepção seria resultado do processo biológico da visão associado ao entendimento, aos processos cognitivos do cérebro e às demais formas de conhecimento. Assim, a percepção da cor não seria uma ação unicamente física, resultado de um processo físico e químico de visão da cor; ela não seria uma simples reação a estímulos luminosos, que provocam uma série de reações bioquímicas, seguida da transmissão desses estímulos ao cérebro, responsável por processar a informação visual com uma determinada cor. Na realidade, o aspecto cultural seria fundamental nesse processo de percepção ou entendimento da cor.

A forma de perceber e interpretar a cor depende de uma série de fatores, conforme apresenta Frank Manhke (1996) em seu modelo de etapas do processo de construção da percepção das cores. O autor apresenta a cultura, a influência da moda e de tendências, a relação pessoal, os simbolismos e as associações, sem esquecer das reações biológicas aos estímulos da cor, como etapas importantes desse processo. Com isso, podemos entender a construção do gosto ou aceitação de uma determinada cor como um processo em que a cultura, o habitus e o grupo social ao qual pertence um indivíduo influenciam na percepção de tal cor, bem como no seu entendimento e na sua relação com a mesma. Cada grupo social pode atribuir valores, associações, significados às cores ou às suas combinações.

Para Pastoureau (2002), a cor não seria apenas um fenômeno natural, tampouco matéria para estudos biológicos do olho humano ou de suas relações com o cérebro humano. Logo, decorre daí sua emulação apenas com a neurociência ou com a psicologia, tratando-se de uma construção cultural complexa, cuja análise não pode ser generalizada. Na análise de uma cor deve ser levado em consideração o que faz parte do universo simbólico de uma sociedade: o léxico e as denominações, as técnicas, os códigos de vestimenta, o lugar dessa cor na vida cotidiana e na cultura material, enfim, tudo que possa afetá-la.

De acordo com o historiador francês, a cor é definida como um fato de sociedade, isto é, uma verdadeira forma de representação social. É a sociedade quem “faz” a cor, atribuindo-lhe definição e sentido. O meio social constrói seus códigos e valores, organiza suas práticas e determina suas apostas, uma vez que “os problemas da cor são sempre problemas sociais, pois o ser humano não vive só, mas em sociedade” (Pastoureau, 2002, p. 8). Os simbolismos atribuídos às cores variam, dessa forma, em função do valor que lhes é atribuído em cada grupo social. As cores não possuem, portanto, valor em si, mas valores que podem variar de acordo com o contexto geográfico[2], histórico e social. O que pode ser considerado como uma combinação de cores adequada no contexto de produção do campo do design popular pode ser inaceitável para os padrões do campo oficial. A partir disso, nos deteremos na análise de alguns aspectos característicos do design gráfico vernacular em relação ao uso das cores.

Podemos verificar que, de uma maneira geral, existe uma tendência nas representações gráficas populares a utilizar cores fortes, muito saturadas e combinações com bastante contraste. Talvez sejam recursos que permitam uma maior visibilidade da peça gráfica, o que identificamos com o modo característico das representações populares, ou “gosto da necessidade”. Se a função é informar, chamar a atenção para um produto ou local, as cores devem ser chamativas. Em relação aos letreiros pintados à mão e às embalagens, essa seria uma de suas características mais marcantes.

Figura 1: Embalagem de grampos <i>Ki-grampo</i> e embalagem de incenso <i>Quebra olho gordo.</i>
Figura 1: Embalagem de grampos Ki-grampo e embalagem de incenso Quebra olho gordo.

Em grande parte dos letreiros, as cores são vivas e aplicadas em áreas chapadas, não sendo comum o uso de sombras e degradês, exceto em ilustrações que tentam se aproximar de uma representação mais realista. A preferência por cores chapadas poderia ser vista como uma limitação técnica, uma vez que é mais simples pintar dessa forma do que usando degradês, por exemplo. Em relação à cor de base dos letreiros pintados em lona, que geralmente é a do próprio material do suporte, sem pintura, também existe uma preferência por cores mais vivas. Já no caso de letreiros pintados diretamente sobre paredes e muros, costuma-se manter a cor original do fundo.

Figura 2: Letreiros artesanais.
Figura 2: Letreiros artesanais.

A saturação de uma cor, ou cromaticidade, pode ser definida como a vivacidade ou pureza da cor. Portanto, as cores puras seriam consideradas saturadas e as cores misturadas com preto, branco ou cinza, menos saturadas. As cores consideradas “pastéis” seriam cores pouco saturadas. De um modo geral, não é comum o uso dessas cores, assim como daquelas muito claras em peças de design gráfico popular, exceto em algumas filipetas em que são usados papéis coloridos como suporte para impressão.

Em uma pesquisa que buscava examinar as diferenças em relação ao uso das cores em jornais voltados para diferentes públicos (Guimarães, 2000, p. 111), foi observado que os valores cromáticos variavam de acordo com a faixa sociocultural. Em jornais mais populares, foi observado um contraste maior entre as cores, combinações entre complementares e a predominância de cores primárias e secundárias chapadas em 100% (sem atenuações ou degradês), ao passo que nos jornais voltados para as classes A e B, as combinações de cores eram mais sóbrias, com menos contraste e com uso de degradês suaves em boxes e pequenas áreas de fundo.

Em outro estudo, a designer Deborah Sharpe (1974, p. 136-137) também aponta que os grupos socioeconomicos desprivilegiados expressam uma preferência por cores fortes e saturadas e considera tal fato como resultado direto da monotonia (sic) existente em seu entorno. A autora cita o caso de uma cadeia de loja de departamentos que construiu duas filiais utilizando como cores principais o preto e o branco em bairros com perfis bastante distintos. No bairro sofisticado, de classe alta, a loja foi um grande sucesso, mas no bairro proletário, com muitas fábricas e habitado por trabalhadores, foi um fracasso. Além das diferenças sociais e psicológicas entre os dois grupos, a autora atribui o fracasso da filial também ao fato de as cores se misturarem à fuligem, à sujeira e ao tédio generalizado da paisagem local.

Podemos associar o gosto por cores fortes e saturadas a uma preferência característica das camadas populares. A preferência por cores vivas pode ser observada também em outras áreas da prática popular, como, por exemplo, em pinturas naïfs, nos desfiles carnavalescos e na decoração, situações em que podemos identificar padrões de uso de cores bastante distintos daqueles utilizados por grupos economicamente privilegiados.

Além da preferência por cores fortes e muito saturadas, é possível identificar no campo de produção do design gráfico vernacular outros padrões no uso das cores, característicos desse tipo de produção. Muitas vezes esses modelos se estabelecem a partir de uma relação entre cor/tipo de produto ou podem ser determinados pelas limitações dos recursos de produção disponíveis. Em alguns casos, esses modelos podem surgir sem um motivo aparente mas, pelo uso constante e pela reprodução por parte dos criadores instauram-se e se tornam característicos desse tipo de linguagem. Tal análise, porém, não é o escopo deste trabalho, pois não pretendemos identificar o porquê do uso das cores, mas sim verificar quais são seus usos mais frequentes.

Em relação aos letreiros pintados à mão, foi observada a predominância do uso de três cores principais: amarelo, azul e vermelho. Essas cores podem surgir combinadas em tríade, em dupla ou como a cor principal da composição. Pensando em termos de sensações provocadas pelas cores, estas são sempre bem alegres e vibrantes. Não é comum nesses objetos o uso de cores pouco luminosas para grandes áreas, como preto, marrom, azul marinho e cinza escuro, que são mais usadas para a pintura de texto.

Figura 3: Letreiros artesanais.
Figura 3: Letreiros artesanais.

Cabe notar que o vermelho, o azul e o amarelo seriam as três cores primárias para teóricos da cor, como Johannes Itten (2004), que as considerava as cores básicas para a pintura. Por meio da mistura dessas cores, em diferentes proporções e combinações, seria possível produzir quase todas as tonalidades. A combinação dessas três cores também pode ser classificada como uma harmonia de tonalidade, por serem cores muito saturadas ou também como uma harmonia em tríade, uma das combinações de cores mais marcantes, de acordo com Itten.

Conforme pretendemos demonstrar, a identificação de um sistema de cores que apresenta tais combinações como principais carrega um significado simbólico, típico dos letreiros pintados à mão. Essa estrutura de três cores é reproduzida em diversas peças, de diferentes artistas e em diferentes tipos de negócios. As combinações das cores primárias de Itten também são bastante usadas em embalagens e impressos populares. Observamos ainda que essas três cores aparecem com frequência combinadas também aos pares.

Questionamo-nos por que nesses objetos o número de cores é reduzido, uma vez que não existem regras formalizadas para a aplicação de cores nem, aparentemente, restrições em relação ao uso de outras cores. Com a mistura dessas três cores de base seria possível criar várias outras, mas isso raras vezes ocorre. Talvez a solução adotada pelos letristas seja a mais simples, ou seja, usar as cores prontas seguindo padrões de combinações que já funcionam. Consideramos que, nesse campo, tais padrões correspondem aos valores simbólicos que se estabelecem a partir de tradições criadas em relação às suas aplicações.

Em letreiros que não tenham essas cores como principais, o número de cores é reduzido. Exceção a esse padrão é observada em desenhos mais realistas, especialmente de figuras humanas, onde são usados sombreados e cores variadas.

Além do uso predominante das cores primárias nos letreiros pintados à mão, identificamos outras tradições relacionadas ao uso das cores em peças gráficas populares. A cor amarela, por exemplo, é uma das mais utilizadas nessas peças. Usado como fundo, puro ou combinado a outras cores, o amarelo surge em diversas aplicações. Trata-se de uma cor de grande visibilidade e talvez por isso seja frequentemente aplicada nas peças populares, seguindo a estética funcional dessas representações.

Figura 4: Embalagens de pipoca de canjica.
Figura 4: Embalagens de pipoca de canjica.

Algumas cores podem ainda se tornar ícones de determinados produtos, como o rosa das embalagens de pipoca de canjica[3], que é utilizado por várias marcas desse produto. A cor de rosa, que é simbolicamente associada ao sabor doce, apresenta-se sempre em um mesmo tom e com grande saturação em diversas embalagens. Essa cor permite uma rápida identificação do produto, tanto por sua visibilidade quanto pela sua já consagrada associação ao mesmo. Outros elementos permitem relacionar esse produto à classe popular: o uso de outras cores fortes (além do rosa) e as imagens ilustrativas que mantêm uma identificação imediata com o nome da marca. Nesse exemplo foi criada uma tradição no uso dessa cor, que se tornou tão forte que passou a identificar o produto e seu público consumidor. Dessa forma, podemos dizer que tal cor tem um forte significado simbólico para o grupo consumidor.

Outro exemplo seria a embalagem do biscoito Globo, cujo esquema de cores auxilia a identificação dos sabores do produto: sobre o fundo branco do papel, o desenho é estampado em amarelo e vermelho para a versão doce, e em amarelo e verde para a versão salgada. Podemos dizer, então, que as combinações de cores das tradicionais embalagens são facilmente reconhecidas por seu público consumidor, sendo inclusive reproduzidas por uma marca concorrente. O biscoito Extra, que utiliza uma embalagem bastante parecida, segue um esquema de cores semelhante, sendo que em sua versão salgada o verde é substituído pelo azul. Apesar da mudança de uma das cores, o resultado final é bastante parecido. Nesse caso, a última marca se aproveitou do simbolismo das cores já consagrado pela marca mais famosa.

Figura 5: Embalagens de biscoito <i>Globo</i> e biscoito <i>Extra.</i>
Figura 5: Embalagens de biscoito Globo e biscoito Extra.

A combinação de vermelho e amarelo presentes em embalagens de estalinhos pode ser considerada também um exemplo de padrão de utilização de cores. As cores quentes que fazem referência à “explosão” provocada pelo produto foram observadas como principais em todas as marcas encontradas. Cabe observar que as embalagens são bastante semelhantes: crianças brincando com os estalinhos e os nomes das marcas dentro de balões estrelados.

Figura 6: Embalagens de estalinhos <i>Du-mano</i> e <i>Guri.</i>
Figura 6: Embalagens de estalinhos Du-mano e Guri.

Muitas vezes, o uso de cores que identificamos como característico ou típico do design popular é resultado da forma como as peças são produzidas. No caso das peças impressas, podemos dizer que, na maior parte das vezes, são utilizados métodos de impressão econômicos ou recursos que os tornam menos dispendiosos, como o uso de poucas cores. Com isso são criados alguns padrões, como os que identificamos a seguir.

Em embalagens padronizadas de papel para pipocas, churros e produtos de padarias podemos perceber o recurso de imprimir um mesmo desenho em cores variadas, o que indica o aproveitamento da chapa de impressão. Esses exemplos representam uma forma econômica de obter resultados distintos a partir de um mesmo original. Nas embalagens do “pipocão amor”, o mesmo grafismo pode vir impresso nas cores verde, vermelho ou azul. Essas embalagens, que não são produzidas para marcas ou fornecedores específicos e podem ser compradas pelos comerciantes em lojas especializadas, vêm sendo produzidas há muito tempo e em grandes quantidades. Supomos que o processo de impressão utilizado seja a flexografia, cuja matriz é dispendiosa, mas possui grande durabilidade, podendo ser usada por muitos anos. A impressão em cores distintas seria, portanto, uma forma de atualizar essas embalagens, modificando a aparência final de forma econômica.

Figura 7: Embalagens de pipoca impressas a partir da mesma matriz.
Figura 7: Embalagens de pipoca impressas a partir da mesma matriz.

Na grande maioria das embalagens, também observamos o uso de poucas cores, mas que seguem o padrão popular de cores com bastante contraste, como vemos na embalagem de henê Pelúcia impressa com uma única cor. Nesses casos, há o aproveitamento do branco da cor de fundo, ou a transparência que deixa a cor do produto à mostra, como na embalagem do henê, o que visualmente proporciona a sensação de uma segunda cor, mas que não é fisicamente impressa.

Figura 8: Embalagem de henê <i>Pelúcia</i> impressa em uma cor.
Figura 8: Embalagem de henê Pelúcia impressa em uma cor.

Muitas embalagens utilizam ainda duas cores de impressão, mas provocam a sensação de uma terceira cor ao deixar transparecer o branco do fundo. Observamos esse recurso nas embalagens do defumador Quebra mandinga, do perfume da Pomba Gira (Figura 9) e na do incenso Quebra olho gordo (Figura 1), impressas com duas cores. Se, por questões econômicas, muitas vezes nos impressos populares a quantidade de cores de impressão é restrita, a opção por cores muito vivas ou saturadas seria uma forma de criar contrastes que chamem a atenção do consumidor. Algumas combinações poderiam parecer estranhas se usadas pelo campo oficial, como as tonalidades de rosa e azul do incenso Quebra olho gordo, ou o amarelo com preto e branco do defumador Quebra mandinga. Cabe destacar, ainda, que encontramos poucas embalagens impressas em quatro cores.

Figura 9: Embalagem de defumador <i>Quebra mandinga</i> e perfume da <i>Pomba Gira</i> impressas em duas cores.
Figura 9: Embalagem de defumador Quebra mandinga e perfume da Pomba Gira impressas em duas cores.

Observamos por meio dos exemplos apresentados os padrões cromáticos característicos da linguagem do design gráfico vernacular. Destacamos que alguns recursos, como o uso de poucas cores por restrições de ordem econômica, não são exclusivos desse tipo de produção, apesar de bastante comuns nela, e muitas vezes determinam o resultado final da peça. Vimos que é bastante comum o uso da combinação das cores amarelo, vermelho e azul, sendo que essas cores também são as que surgem com mais frequência de forma isolada, especialmente o amarelo. Verificamos ainda que é corriqueira a associação entre determinadas cores e tipos de produtos, sendo certo que algumas cores, ou combinação delas, podem se tornar icônicas para uma categoria de produto. Por último, podemos afirmar que o padrão cromático mais distintivo entre os apresentados parece ser a preferência por cores muito fortes e saturadas, a fim de destacar a informação. Tais padrões parecem ser aplicados de forma espontânea pelos designers populares e, certamente, são um elemento distintivo desse tipo de linguagem visual.

* Fernanda de Abreu Cardoso é doutora em design e professora do curso de Comunicação Visual Design da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (EBA/UFRJ).


Referências

BOURDIEU, Pierre. Distinction –  A social critique of the judgment of taste. Cambridge: Harvard University Press, 2002.

BOURDIEU, Pierre. “O mercado de bens simbólicos”. In: A economia das trocas simbólicas. Organização Sérgio Miceli. São Paulo: Editora Perspectiva, 1974, p.99-181.

CARDOSO, Fernanda de Abreu. Design gráfico vernacular: a arte dos letristas. Dissertação (mestrado em Design). Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/ RJ), 2003.

CARDOSO, Fernanda de Abreu. O universo simbólico do design gráfico vernacular. Tese (doutorado em Design). Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/ RJ), 2010.

GUIMARÃES, Luciano. A cor como informação – a construção biofísica, linguística e cultural da simbologia das cores. São Paulo: Annablume, 2000, p. 111.

ITTEN, Johannes. The art of color: the subjective experience and objective rationale of color. New York: John Wiley & Sons, 2004.

MAHNKE, Frank H. Color, environment and human response. New York: Van Nostrand Reinhold, 1996.

PASTOUREAU, Michel. Bleu – histoire d’une couleur. Paris: Éditions du Seuil, 2002.

SHARPE, Deborah T. The psychology of color and design. Chicago: Nelson-Hall Company, 1974, p. 136-137.

Notas

[1] Pierre Bourdieu relaciona as estruturas dos espaços sociais aos estilos de vida, construindo um modelo de relações que associa as condições econômicas e sociais de um grupo a um universo simbólico próprio, ainda que suas fronteiras sejam difíceis de identificar. Seu conceito de habitus se refere a condições de vida e existência que geram determinadas opções por parte dos pertencentes a um grupo.

[2] Quando pensamos que o meio geográfico pode ser determinante no uso das cores, referimo-nos ao fato de que um grupo social vivendo isoladamente constrói seus padrões e definições para as cores que emprega e não que o meio geográfico em si possa influir na escolha de uma cor. Ainda que possamos dizer que o sol dos trópicos tenha encantado muitos pintores de paisagens mais setentrionais, essa é uma questão não muito clara e fora do escopo deste trabalho.

[3] A pipoca doce, produto tipicamente popular, de preço baixo, é facilmente encontrada à venda em barraquinhas nas ruas ou por vendedores ambulantes.

Tempo de leitura estimado: 35 minutos

Design de interação para aplicativos jornalísticos em tablets: um olhar interdisciplinar | Luiz Agner*

Em uma década, o computador se transformou, de uma tecnologia culturalmente invisível, em um mecanismo fundamental da nossa cultura. Desse modo, a nossa sociedade adicionou uma nova e fundamental dimensão à cultura: o software. Em particular, o software cultural que nos permite acessar, produzir e compartilhar conteúdos. As interfaces (ícones, gestos, folders, sons, animações, cliques e toques) são também softwares culturais intermediando interações entre pessoas e mídias e entre pessoas e pessoas (Manovich, 2010).

Nesse contexto, percebe-se que as interfaces atuais habilitam práticas de leitura mediadas por dispositivos portáteis como os e-book readers, smartphones ou tablets – inseridos e absorvidos rapidamente pelo mercado editorial. São exemplos dessas novas práticas a leitura conectada e a leitura compartilhada. Cabe-nos o desafio de investigar se, e de que forma, essas recentes tecnologias de produção e consumo da informação influenciam a efetividade, a eficiência e a satisfação (leia-se usabilidade) do leitor durante a interação com as novas interfaces, na construção dos significados da leitura (Agner, 2011).

Já existe grande variedade de dispositivos que trabalham no nicho dos e-book readers, a partir de uma diversidade de plataformas, sistemas operacionais ou fabricantes, sendo os mais conhecidos deles o Kindle (da Amazon) e o Ipad (da Apple). Além disso, os chamados tablets podem ser definidos como computadores móveis em formato de tabuletas com telas sensíveis ao toque, interação por gestos e conexão sem fio à internet.

As recentes inovações tecnológicas introduzidas no mercado e a popularização dos tablets em diversos países permite-nos supor que podem estar surgindo novas práticas que pontuam os processos de leitura. Segundo Chartier (2001), as transformações na leitura têm sido notadas em três pontos: primeiro, o leitor agora pode escrever no texto, submetendo-o às suas próprias decisões e introduzindo a sua própria escrita; segundo, pode escrever na biblioteca; e, terceiro, surge a disponibilidade universal do acesso do leitor ao patrimônio textual, anulando a ideia de haver um “lugar” específico para a leitura. Isso fica claro em algumas livrarias virtuais, como a Google e-Book Store, onde o leitor agora pode armazenar sua biblioteca de livros na nuvem, recuperando-os em qualquer lugar na página onde interrompeu a leitura, e fazendo o seu transporte entre diversos dispositivos – do laptop para smartphone, ou do e-reader para o tablet.

Atualmente, a tendência é que as editoras tradicionais percam seu espaço para empresas oriundas do mundo da tecnologia, como a Apple, a Amazon e a Google. O mercado editorial vem sendo sacudido com o fechamento de grandes redes de livrarias como a Borders, a segunda maior dos EUA, e a transformação paulatina de outras, como a Barnes & Nobles, em companhias de software, concentradas na produção de aplicativos para livros digitais (Brigatto, 2011).  Diante das mudanças que se avizinham, a indústria de mídia se reposicionou e o jornalismo procura se reinventar para acompanhar a revolução: é exemplo o jornal The Daily, exclusivamente voltado para o formato Ipad (Figura 1).

Figura 1: Jornal digital <i>The Daily</i>, exclusivo para formato <i>Ipad</i> (2011).
Figura 1: Jornal digital The Daily, exclusivo para formato Ipad (2011).

Transformações na linguagem jornalística

Em um casamento aparentemente perfeito com a informação jornalística, o tablet restitui aos leitores o modelo de interação direta que o mouse lhes havia subtraído: o uso das mãos. Ao empregar os dedos e os gestos para interagir e manipular diretamente a informação – folheando páginas de revistas ou jornais, ativando imagens, links, botões e vídeos – os usuários reencontram a naturalidade de uma interação com base nos gestos. Com maior conforto e comodidade, possivelmente recostado a uma poltrona ou sofá, o leitor é convidado a passar mais tempo interagindo com a interface: verifica-se que, num site de notícias, ele empregará a sua atenção em média dez minutos; ao ler um jornal impresso, cerca de 30 minutos; e num tablet como o Ipad ou um dispositivo Android, até 40 minutos.

Observa-se também que a integridade gráfica da hierarquização visual da informação – uma importante característica do jornalismo impresso – retornou ao primeiro plano nos tablets, retomando um papel proeminente na arquitetura de informação, o que nos remete à força da comunicação visual das revistas impressas. “O “pulo do gato” dos tablets é a experiência de leitura agradável, que traz as vantagens da internet numa interface gráfica bonita e prazerosa, que une o mundo impresso e o digital” – explicou Adriana Barsotti (2012), editora do vespertino O Globo A Mais.

Entretanto, há consistentes críticas quanto aos aplicativos noticiosos para Ipad. Segundo Primo (2011), os periódicos brasileiros não conseguem atingir todas as potencialidades dos novos dispositivos: buscam a simples conversão de páginas impressas para o Ipad, o que causa um retrocesso há tempos superado pelo webdesign.

Na visão de Telio Navega, diagramador de O Globo A Mais, uma parte do problema dos aplicativos noticiosos atuais poderia ser creditada à incompreensão dos jornalistas quanto a mudanças que ocorrem nos hábitos dos leitores mais jovens. Para Navega (2012): “Os leitores de notícias estão na internet, não compram nem assinam mais jornais. Esta é a grande dificuldade dos jornais atuais: as pessoas que trabalham nos jornais são pessoas mais velhas, que estão longe deste público, e não conseguem entender o que acontece.”

“Os aplicativos jornalísticos em tablets já são um fracasso”, afirma Lund (2013), na esteira do fim da experiência comercial do The Daily, descontinuado após 30 milhões de dólares em prejuízos anuais. Segundo o autor, as revistas no formato tablet são completamente invisíveis aos fluxos de informação que governam a internet: quando a publicação jornalística é organizada desta forma, seus artigos não podem ser indexados pelos mecanismos de busca. Mesmo se fossem, clicar no link do Google levaria o internauta a uma loja virtual, não à publicação em si. O resultado é o mesmo na mídia social, onde não se pode tuitar ou colocar links diretos para o artigo, reduzindo dramaticamente a sua audiência. Semelhante restrição também pode ser apontada no uso de aplicativos de curadoria como Flipboard e Zite. Tudo isso contribuiria para elevar a dificuldade de compartilhamento do jornalismo para tablets e a uma consequente diminuição da sua relevância em comparação a outros meios.

Crítico dos esforços das empresas jornalísticas, o designer londrino Chris Stevens – autor do livro Designing for the Ipad (2011) – observou que os atuais aplicativos jornalísticos para tablets estão mimetizando os pesadíssimos CD-Roms de outrora – o que os torna menos úteis e práticos do que a própria web, esta com tecnologias abertas como HTML5 e CSS, muito mais eficientes e igualmente capazes de reproduzir os sofisticados layouts gráficos característicos dos tablets. Tal equívoco, segundo o autor, resultará na definitiva sentença de morte desses periódicos.

Dialogando com visões distintas da interação

Esta pesquisa pretendeu estabelecer um diálogo com diferentes visões teóricas que abordaram a interação entre pessoas e computadores. Por isso, visamos agregar pontos de vista provenientes dos estudos da Cibercultura, da Semiótica, da História das Práticas de Leitura, do Design de Interação e da Arquitetura da Informação para a compreensão da aplicabilidade das interfaces gestuais de publicações jornalísticas digitais.

Na perspectiva da Cibercultura, Primo (2007) lembra que, como o termo “interatividade” nasceu originalmente no seio da indústria de tecnologia, não é surpresa que tenha um forte teor tecnicista. O autor propõe duas grandes categorias para a discussão da interação mediada por computador: a interação reativa e a interação mútua. Nessa perspectiva, a interação reativa representaria um conjunto de formas e tipos de interação em que há predeterminações que condicionam as trocas durante a interação. Ou seja, ela percorre trilhas previsíveis: há relações potenciais de estímulo-resposta impostas por, pelo menos, um dos envolvidos na interação. Nesse caso, se as regras forem ultrapassadas, o sistema interativo é bruscamente interrompido.

Na interação mútua, por outro lado, os interagentes reúnem-se em torno de contínuas problematizações, ou seja, as soluções inventadas são momentâneas e a própria relação entre os interagentes vai se redefinindo por meio de um processo de negociação que ocorre ao mesmo tempo em que acontecem os eventos interativos. Cabe ressaltar que as duas categorias de interação não existem de modo excludente: por exemplo, numa rede social como o Facebook, ao mesmo tempo em que se conversa com outras pessoas, também se interage com a interface, por meio de mouse e teclado, constituindo uma interação ao mesmo tempo reativa e mútua. A mesma interpretação é válida no caso de um leitor que interage com uma publicação jornalística em um tablet, com possibilidade da leitura conectada e discussão via fórum ou chat com demais leitores simultâneos: as duas formas de interação estão presentes.

No âmbito da Ciência da Computação, as abordagens mais conhecidas da interação surgiram a partir da indústria de computadores, nas últimas décadas do século XX, e são conhecidas sob a denominação genérica de Interação Humano-Computador (IHC). De acordo com Carroll (2011), esta representa uma área de pesquisa e de prática que emergiu nos anos 1980. Inicialmente uma especialização da Ciência da Computação, a IHC se expandiu durante três décadas, atraindo profissionais de outras disciplinas e incorporando diferentes conceitos e abordagens teórico-metodológicas, provenientes de diversos campos. A IHC atualmente apresenta um dos melhores exemplos de como epistemologias e paradigmas diferentes podem conviver e conversar de modo conciliado e integrado.

As vertentes predominantes e canônicas da IHC são de base cognitiva (Preece et al., 2002). Suas raízes provêm da psicologia cognitiva, da ciência cognitiva e da inteligência artificial – disciplinas que estudam a cognição (o processo pelo qual se pode adquirir conhecimento). Elas buscam a compreensão das restrições mentais dos usuários durante a sua interação com as interfaces. Além disso, existem também abordagens semióticas da Interação Humano-Computador – que têm como base teórica a Semiótica, a disciplina que estuda os signos, os sistemas semióticos e de comunicação. Essas partem do trabalho de semioticistas consagrados como Charles Peirce, Jakobson e Umberto Eco.

Ao visarmos compreender a aplicabilidade de um sistema, podemos trabalhar tanto com o conceito de usabilidade (proveniente das teorias de base cognitiva) quanto com o de comunicabilidade (um postulado da Engenharia Semiótica). A usabilidade se refere à qualidade da interação de sistemas com os usuários e engloba vários aspectos como a facilidade de aprendizado e de uso, a satisfação do usuário e a produtividade, entre outros. Já a comunicabilidade descreve a propriedade de um sistema para transmitir ao usuário, de modo adequado, as intenções e princípios de interação que guiaram o seu design. Assim, o objetivo da comunicabilidade é permitir que o usuário seja capaz de compreender as premissas, intenções e decisões tomadas pelo projetista durante o processo de design, pois quanto maior for o seu conhecimento e percepção da lógica embutida no sistema, maiores serão as suas chances de fazer uso criativo e produtivo da aplicação (de Souza et al., 1999).

Na visão da Engenharia Semiótica, a interface do sistema é vista como sendo uma mensagem enviada pelo designer ao usuário. O designer é o autor da mensagem transmitida ao usuário e a Interação Humano-Computador reflete um processo de metacomunicação. Assim, o design de interfaces envolve não apenas a concepção intelectual do modelo do sistema, mas também a comunicação deste modelo, de modo a revelar eficazmente para o usuário todo o espectro das possibilidades de uso da aplicação – estabelecendo, durante a interação, um processo de semiose consistente.

Por isso, o objeto de estudo da Engenharia Semiótica (de Souza, 2005) inclui os processos de comunicação designer-usuário que serão ou estão codificados computacionalmente na interface por meio de diferentes representações (signos). Trata-se de uma engenharia de signos: um processo racional de escolha de representações que serão computacionalmente codificadas e interpretadas (pela máquina) e a investigação e construção de estratégias de comunicação únicas. A Engenharia Semiótica contrapõe-se criticamente à Engenharia Cognitiva, esta proposta pelo psicólogo Donald Norman – que se preocupa em otimizar os processos de aprendizado e de cognição, e seus efeitos sobre o design e o uso de artefatos computacionais. A Engenharia Cognitiva é centrada nos usuários. A principal crítica a esta teoria pela Engenharia Semiótica centra-se na sua tendência preditiva e de identificação de princípios universalizantes para a explicação do comportamento humano e para a identificação de requisitos de design.

Outra visão contemplada nesta pesquisa, com a qual buscamos dialogar, é a da Arquitetura de Informação (AI). Trata-se de uma metadisciplina preocupada com o projeto, a implementação e a manutenção de espaços informacionais, como definiu o Journal of the American Society for Information Science and Technology (apud Morrogh, 2003). O foco da AI pretende ser o projeto de estruturas que fornecem aos usuários que buscam informação os recursos necessários para atingir os seus objetivos informacionais com sucesso.

Além disso, a pesquisa foi encontrar no trabalho de Cavallo e Roger Chartier (1998) os fundamentos para compreender como a revolução dos tablets se agrega às alterações das práticas de leitura. Os autores nos alertam que é preciso considerar que as formas produzem sentido e que um texto se reveste de uma significação e de um estatuto inédito quando mudam os suportes que o propõem à leitura. A história das práticas de leitura é, portanto, “uma história dos objetos escritos e das palavras leitoras”. Essa história considera o “mundo do texto” um mundo de objetos, de formas e de rituais, com convenções e disposições específicas que incitam à construção do sentido. Ou seja, não existe texto fora do suporte que permite a sua leitura: os autores não escrevem livros, escrevem textos que se tornam objetos escritos – manuscritos, gravados, impressos ou informatizados – manejados de diferentes formas por leitores de carne e osso. Desse modo, Cavallo e Chartier se colocam contra as representações do senso comum em que o texto existe em si mesmo, separado de sua materialidade.

O paradigma da interação gestual: novos desafios para o design

Os mencionados tablets são dispositivos portáteis, com telas sensíveis ao toque, que consistem em mecanismos de input do novo paradigma da interação por gestos. Segundo Saffer (2009), um gesto pode ser considerado como qualquer movimento físico detectado através de sensores por um sistema digital, que pode responder sem o auxílio de mecanismos tradicionais, como mouses ou canetas. Os gestos originam-se de qualquer movimento ou estado do corpo humano. Desse modo, um movimento de cabeça, um piscar de olhos ou um toque no chão com a ponta do sapato podem ser interpretados como gestos. O reconhecimento de gestos é um tópico específico da Ciência da Computação e da Tecnologia da Linguagem que objetiva decodificar a comunicação corporal humana a partir de algoritmos matemáticos.

O reconhecimento de gestos representa a forma de os computadores começarem a compreender a linguagem do corpo, indo além das interfaces tradicionais, limitadas ao uso do mouse, joystick ou teclados. Atualmente, os estudos dos gestos centram-se no reconhecimento do movimento das mãos e das expressões faciais.

Um momento do cinema conhecido por exemplificar a interação com computadores por meio de interfaces gestuais foi a clássica cena de Tom Cruise no filme Minority Report, de 2002:

Figura 2: Tom Cruise interage com o sistema por meio dos gestos em <i>Minority Report</i>.
Figura 2: Tom Cruise interage com o sistema por meio dos gestos em Minority Report.

Stevens (2011) lembra-nos que as “antigas” interfaces WIMP (windows, icons, mouse, pointer) tiveram sua origem nas décadas de 1960 e 70 nos laboratórios PARC da Xerox. Sistemas desse tipo utilizam o deslocamento do mouse em uma superfície horizontal plana para mover ou selecionar objetos correspondentes na tela. Nos últimos quarenta anos, temos interagido do modo concebido por Douglas Engelbart, Alan Kay, Tim Mott, Larry Tesler, e outros engenheiros e designers da época: através da metáfora do desktop. Mas esses métodos de manipulação indireta estão sendo rapidamente preteridos em função da manipulação direta (conceito seminal proposto por Ben Shneiderman em 1983) e, em poucos anos, os sistemas centrados no mouse provavelmente nos parecerão tão arcaicos como hoje são as interfaces de linha de comando ao estilo MS-DOS.

De acordo com Dan Saffer (2009), as interfaces gestuais podem ser classificadas em touchscreen ou de forma livre. As primeiras pressupõem que o usuário toque diretamente a tela do dispositivo; as de interfaces livres podem requerer controles, luvas especiais, ou ter simplesmente no corpo humano o dispositivo de input.

Saffer elenca as principais características requeridas de um bom design para interface gestual. São elas: (1) detectabilidade: refere-se à importância das affordances, conceito cunhado pelo psicólogo Gibson e popularizado por Don Norman; (2) confiabilidade: a interface deve parecer segura; (3) ser responsiva: fornecer uma resposta instantânea ao usuário (em até 100 milissegundos); (4) adequação: precisa ser adequada ao contexto (dependendo da cultura, há gestos que são ofensivos); (5) significância: ter significado específico para as necessidades do usuário; (6) inteligência: deve realizar eficientemente o trabalho que o ser humano não pode realizar tão bem; (7) sutileza: a capacidade de predizer as necessidades do usuário; (8) divertimento: gerar o engajamento do usuário por meio da diversão; (8) estética: deve ser prazerosa aos sentidos visual, auditivo e háptico (relativo ao tato); (9) ética: não solicitar gestos que façam as pessoas parecerem tolas em público ou que só possam ser executados por jovens e usuários saudáveis.

Apesar de todo o alvoroço mercadológico gerado em torno das possibilidades abertas pelos novos dispositivos, em coluna para a revista Interactions, Donald Norman, pesquisador da Interação Humano-Computador (IHC), apontou que a recente corrida dos engenheiros de software para desenvolver interfaces gestuais tem levado ao esquecimento dos princípios e dos padrões sedimentados do design de interação (Norman e Nielsen, 2010).

As interfaces gestuais têm ignorado princípios essenciais da interação, que são independentes de tecnologias específicas. São eles: a visibilidade (affordances percebidas); o feedback; a consistência (os padrões); as operações não destrutivas (reversibilidade ou undos); a detectabilidade (a qualidade das funções poderem ser descobertas através da exploração de menus); a escalabilidade (funcionar em todos os tamanhos de telas); e a confiabilidade (não aleatoriedade das operações).

Observações sistemáticas de uso

O projeto de pesquisa empregado neste trabalho incluiu duas técnicas de ênfase qualitativa: as entrevistas exploratórias e a técnica de observação de usuários STBI – Scenario and Tasks Based Interviews (Entrevistas Baseadas em Cenários e Tarefas). As entrevistas exploratórias já foram abordadas em outras comunicações científicas (Agner, 2012).

O método de observação centrado nos usuários, denominado STBI, é uma variante do teste de usabilidade no campo, que representou uma alternativa desenvolvida pelo autor em parceria com outros pesquisadores de Interação Humano-Computador.

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Figura 3: Páginas da edição do vespertino digital O Globo A Mais utilizada para ensaios de interação nas Entrevistas Baseadas em Cenários e Tarefas (07 de maio de 2012).

Um dos objetivos foi aplicar o método STBI para testar o aplicativo O Globo A Mais com uma amostra de jovens estudantes de Comunicação para a avaliação do design de suas interfaces gestuais. A amostra de participantes selecionada foi não probabilística e subordinada aos objetivos específicos da pesquisa. Dessa forma, buscamos radiografar o perfil de uma turma de alunos de uma faculdade particular do Rio de Janeiro, com o levantamento da sua experiência quanto ao uso de tablets para a leitura de conteúdos jornalísticos.

Dos que responderam ao questionário de seleção, 50 % são jovens entre 20 e 24 anos; a maioria (77%) ainda não costumava acessar publicações jornalísticas em tablets; e, apesar de serem estudantes de Comunicação Social, a grande maioria (72%) não conhecia o vespertino digital de O Globo, o principal diário do Rio de Janeiro e um dos maiores do Brasil.

Após a aplicação de questionários preliminares, foi selecionado um grupo de seis jovens entre aqueles que se dispuseram a participar na qualidade de usuários. Com relação ao quesito “experiência em leitura de publicações jornalísticas em tablets” foram escolhidos dois alunos que tinham “experiência alta” ou “moderadamente alta”, dois alunos com “alguma experiência” ou “experiência moderada” e mais dois alunos que não possuíam qualquer experiência prévia nesse tipo de leitura. O número de seis jovens escolhidos deveu-se à proximidade do número indicado pelo pesquisador de Interação Humano-Computador, Jakob Nielsen, para a aplicação de testes de usabilidade (Barnum et al, 2012). Nielsen sustenta a tese de que cinco seria um número suficiente de participantes, garantindo a identificação de cerca de 80% dos problemas de uma interface.

Desse modo, a pesquisa iniciou a sua segunda fase com o método de observações sistemáticas de uso STBI (que, como observado, é derivado dos conhecidos testes de usabilidade, amplamente utilizados pelas pesquisas de Interação Humano-Computador).

Figura 3: Páginas da edição do vespertino digital O Globo A Mais utilizada para ensaios de interação nas Entrevistas Baseadas em Cenários e Tarefas (07 de maio de 2012).   A edição do aplicativo O Globo A Mais utilizada para o experimento foi a do dia 7 de maio de 2012 (Figura 3). O experimento ocorreu em uma sala reservada, em sessões individuais, com cerca de uma hora de duração cada. Antes de dar início às sessões, o facilitador forneceu o tablet Ipad pré-carregado com uma edição que foi utilizada para a ambientação prévia do participante. Após a ambientação com a publicação, cada participante preencheu um questionário de pré-teste para identificação de mais detalhes de seu perfil de usuário e de sua experiência com a tecnologia de informação. Em seguida, cada estudante selecionado recebeu uma folha de papel contendo, por escrito, o cenário e oito tarefas a serem realizadas (Tabela 1). Durante as sessões de navegação n’O Globo A Mais – nas quais cada participante procurou realizar as tarefas propostas – empregou-se o protocolo think-aloud (pensamento em voz alta). Ao término das tarefas, o facilitador apresentou dois questionários de pós-teste, além de propor uma entrevista livre para compreensão das estratégias de navegação adotadas.

Cenário Você é um(a) estudante de Comunicação e está no campus da sua faculdade, aguardando durante o intervalo entre as aulas. Um amigo lhe emprestou um tablet e você aproveitou para consultar as notícias no vespertino digital O Globo A Mais.
Tarefas Use o O Globo A Mais para encontrar as seguintes informações:(1) Para um trabalho da faculdade, encontre dados de exportações da indústria automotiva relativos a abril, divulgados pela Associação Nacional de Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea).
(2) Você teve curiosidade de saber que livros foram escritos pelo sociólogo Alain Touraine.
(3) Você quis ver a foto do pênalti cobrado pelo craque francês Zidane sobre o goleiro italiano Buffon.
(4) Você se interessou em saber por quanto pode comprar uma garrafa do vinho Barbeito 3 anos, doce.
(5) Aponte qual é a participação dos gastos públicos no Produto Interno Bruto da França, segundo um economista brasileiro.
(6) Você se interessou em saber a idade do vocalista Joey Tempest, da banda Europe. E aproveitou para assistir ao vídeo The Final Cowntdown, um sucesso de 1986.
(7) Você quer ver a foto de ciclistas disputando a terceira etapa do Giro da Itália, vencida pelo australiano Matthew Goss.
(8) Usando o aplicativo, marque a matéria que mais te interessou para ler depois.

Tabela 1: Cenário e tarefas nas sessões de leitura do vespertino O Globo A Mais.

Resumo das descobertas

Apresentam-se aqui informações reunidas na fase de registro de observações empíricas de uso com o método de Entrevistas Baseadas em Cenários e Tarefas, a partir da revisão das 54 gravações em áudio e vídeo produzidas.

As conclusões refletem como os problemas de usabilidade encontrados foram classificados, segundo as categorias identificadas pelos pesquisadores Jakob Nielsen e Donald Norman para o estudo da interação com interfaces gestuais. A seguir, listam-se exemplos das dificuldades associadas a cada uma das categorias de problemas.

1 Visibilidade de affordances

– Leitores demonstraram dificuldade em perceber a existência de conteúdos adicionais.

– Não há diferenciação visual explícita entre os elementos sensíveis e não sensíveis ao toque (tap).

– Ícones solicitando o toque sobre outros elementos confundem o leitor e o fazem tocar no ícone (e não no elemento dotado de interatividade).

– Na área “Dicas a Mais”, o cabeçalho com destaques visuais para diversos assuntos leva o leitor a pensar que são links mas esta expectativa é frustrada (ou seja, o cabeçalho sinaliza erroneamente affordances para “Ler, Degustar, Assistir, Consumir, Dançar”).

2 Feedback

– Faltam indicações claras da localização do leitor dentro do aplicativo: o leitor não sabe em qual editoria está. Exemplo: a usuária do Teste 1 afirmou que ficou “perdida”. Falta uma barra fixa de localização no cabeçalho ou um caminho de navegação estruturada (breadcrumb) – tal como “capa > política” –, o que poderia resolver este problema.

– Na galeria de fotos, não há feedback sobre quantas fotos existem e quantas foram visualizadas.

3 Consistência: interna e externa

– Há dois conceitos de paginação divergentes dentro do conteúdo. O aplicativo adota o conceito de avançar horizontalmente para navegar entre matérias e, ao mesmo tempo, avançar verticalmente para se aprofundar dentro de uma matéria específica. O modelo duplo rompe com o sentido natural do mundo físico (Figura 4).

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Figura 4: Modelo de navegação rompe com o paradigma da publicação em papel. Passar para a próxima matéria é um gesto horizontal. Dentro de cada matéria, a paginação torna-se um movimento vertical.

– A capa não desempenha o papel de home page, o que contraria a expectativa do leitor imersivo e da Geração Y que cresceu navegando em websites. Tampouco há página de índice na publicação.

– Também relacionada às expectativas comuns de navegação do leitor imersivo e da Geração Y, a capa sugere que há links das chamadas para as respectivas matérias internas (como acontece na web), mas essa expectativa foi frustrada.

– O botão “Voltar” que fica no alto da tela faz o leitor fechar o aplicativo e voltar para a “Banca de Jornais”, quando ele pretende somente retornar para a capa. A “banca” é uma metáfora do mundo físico, mas não parece haver consistência com o modelo de navegação ao qual o leitor já está acostumado na web. O botão “Voltar” na World Wide Web retorna à última página visitada, mas não nesse aplicativo.

– O app não possui uma ferramenta de busca por palavras-chave, conforme o padrão de uso comum na web, embora seja intenção da equipe implementá-la futuramente.

– Faltam funções compatíveis com outras navegações do Ipad – como, por exemplo, a “pinça” com dois dedos para maximizar conteúdos, ou o duplo-tap para ampliar a visualização da tela. Em certos casos, esses recursos fazem falta, pois as letras tornam-se pequenas.

– Há problemas de duplicidade de scrolls (scrolls dentro de scrolls).

– Há formas divergentes de se sugerir a existência de mais conteúdos da mesma matéria. Símbolos graficamente diferentes indicam a mesma função.

– Há emprego inconsistente da linguagem verbal: termos ora em português e ora em inglês para descrever o funcionamento de ferramentas.

4 Reversibilidade de ações (operações não destrutivas)

– O botão “Voltar” gera um problema de navegação, pois interrompe o uso do aplicativo. Uma ação de navegação equivocada não permite reversibilidade à posição anterior (Figura 5).

Figura 5: O botão Voltar gera uma operação que interrompe o uso do aplicativo, causando desorientação ao leitor.
Figura 5: O botão Voltar gera uma operação que interrompe o uso do aplicativo, causando desorientação ao leitor.

5 Detectabilidade de funções

– A barra de navegação desaparece durante grande parte da navegação e não dispõe de rótulos textuais em seus ícones. Devido a isso, o leitor demonstrou ter dificuldades em encontrar a função “Adicionar aos Favoritos”, posicionada na barra de navegação.

6 Escalabilidade em telas diferentes

– Embora a publicação seja dirigida somente ao dispositivo da Apple, o que minimiza esta categoria de problemas, é difícil passar as fotos em modo horizontal, pois a área de swipe diminui; os leitores também se confundem com a passagem dos vídeos.

7 Confiabilidade nas operações

– Uma vez estando na galeria de fotos, o usuário precisará tocar em uma área específica para paginar horizontalmente, ao contrário das outras páginas do vespertino. Ou seja, a galeria parece ter uma resposta aleatória, o que gera insegurança nas operações (Figura 6).

Figura 6: A galeria de fotos pode gerar insegurança nas operações.
Figura 6: A galeria de fotos pode gerar insegurança nas operações.

Lições aprendidas

Nossos estudos e observações empíricas nos levaram a concluir que o conjunto de sete categorias de problemas de usabilidade descobertos por Donald Norman e Jakob Nielsen (2010) durante os seus testes com os tablets fez-se presente também na interação da nossa amostra de leitores com o vespertino digital O Globo A Mais. As categorias de problemas registrados incluíram: (1) visibilidade de affordances, (2) feedback, (3) consistência, (4) reversibilidade de ações, (5) detectabilidade de funções, (6) escalabilidade em telas diferentes, e (7) confiabilidade nas operações (Norman e Nielsen, 2010).

Isso nos fez concordar com os pesquisadores citados quando estes afirmam que os produtos interativos criados para os novos dispositivos estão sendo lançados com grande alvoroço no mercado, mas sem os devidos cuidados com requisitos e padrões sedimentados pelos estudos em Interação Humano-Computador e Design de Interação.

Os problemas observados estão relacionados à própria natureza da interação gestual, ao sistema operacional Apple IOS e ainda ao projeto gráfico do vespertino digital de O Globo. Os problemas causaram dificuldades de navegação ou contratempos aos leitores da Geração Y, que são parte importante do público que o jornal carioca pretende conquistar para aumentar o seu rol de assinantes digitais e garantir a sobrevivência do seu modelo de negócios em um mercado editorial que passa por grandes transformações no país e no mundo.

Há previsões de que os jornais impressos estariam extintos por volta de 2030 em quase todo o mundo. Nesse contexto, os estudos em IHC têm um papel importante, ao procurar fazer com que os novos produtos se adequem de modo mais efetivo às necessidades ergonômicas e ao modelo cognitivo do leitor imersivo.

Esta pesquisa objetivou também oferecer parâmetros para orientar o design visual, a editoração de conteúdos e a criação de interfaces, de forma a melhorar a qualidade da interação gestual com os conteúdos noticiosos em tablets – respeitando-se as possibilidades, limitações e requisitos cognitivos do leitor imersivo. Com base nos dados compilados e analisados, elaboramos a Tabela 2 com requisitos de projeto associados às categorias de problemas:

Categoria associada Requisitos de design Objetivos
Visibilidade de affordances Diferenciar visualmente as áreas sensíveis das não sensíveis ao toque.
Como inexiste o recurso de mouse-over, o código visual deve ser claro, com uso de cores, efeitos visuais e ícones para sinalização de affordances.
Uso cuidadoso dos sistemas de rotulação verbal associado ao icônico.
A aparência visual não deve se basear somente no paradigma da mídia impressa.
Garantir a comunicabilidade das áreas com interação.
Garantir o acesso do leitor aos conteúdos adicionais das matérias.
Feedback Sinalizar claramente cada seção do conteúdo com retrancas apropriadas, como na mídia impressa.
Inserir uma página de índice.
Utilizar numeração de páginas.
Utilizar numeração de fotos na galeria.
Empregar breadcrumb.
Garantir a localização do leitor dentro do conteúdo.
Sinalizar claramente a existência de mais conteúdos.
Apresentar a arquitetura de informação do aplicativo.
Consistência Identificar o modelo mental do público-alvo por meio de testes.
Testar soluções de navegação inovadoras que rompam com modelos consolidados.
Respeitar recursos amplamente utilizados na web como o botão Voltar e buscadores de palavras.
Evitar ícones com duplicidade de funções.
Empregar de modo consistente a linguagem verbal.
Dar à capa ou à página de índice a função de home page.
Respeitar padrões de interação propostos pelo sistema operacional.
Garantir navegação intuitiva dentro do conteúdo.
Evitar erros de navegação.
Evitar a desorientação do leitor.
Adaptar a publicação ao modelo mental do leitor imersivo.
Reversibilidade de ações Implementar uma forma simples de undo.
Implementar uma forma fácil de volta à página de índice ou capa
Garantir fluidez imersiva da leitura.
Evitar ações destrutivas.
Evitar que o leitor se perca dentro do conteúdo.
Detectabilidade de funções Inserir barra de navegação fixa, a exemplo dos websites.
Garantir a sua permanente visibilidade.
Utilizar sistema de rotulação verbal associado ao icônico.
Incentivar a navegação exploratória do leitor.
Tornar as funções do aplicativo permanentemente acessíveis e compreensíveis.
Escalabilidade de telas Realizar testes com leitores nas duas orientações de páginas, visando a visualização de vídeos e fotos em tela cheia. Garantir a performance do aplicativo nas duas orientações (horizontal e vertical).
Confiabilidade nas operações Garantir que o mesmo gesto dispare o mesmo comportamento do aplicativo.
Evitar respostas inusitadas para gestos simples como swipe e tap.
Evitar surpresas.
Aumentar a segurança e a confiança do leitor nas interações.
Melhorar a capacidade de aprendizado das interações.

Tabela 2: Requisitos de design para a produção de conteúdos jornalísticos em tablets.

Outra lição aprendida, e que merece ser destacada, foi a percepção da importância do papel emocional do design visual e da persuasão estética que podem influenciar de modo marcante o resultado de uma pesquisa de Interação Humano-Computador, assim como a disposição dos usuários em superar dificuldades com relação a interfaces e produtos. A maior parte dos questionários respondidos nesta pesquisa evidenciou uma atitude bastante positiva dos leitores com o produto. Os participantes avaliaram positivamente ou razoavelmente uma série de quesitos que lhes foram apresentados: a utilização dos menus, a compreensão dos ícones, a tarefa de virar as páginas com gestos, a visualização de vídeos, a leitura de textos em scroll, o acesso a mais conteúdos, além da avaliação geral de O Globo A Mais.

Esta discrepância entre os problemas encontrados durante os testes empíricos e as opiniões coletadas a partir de questionários é comum nos estudos de IHC. Apesar de todos os problemas de interação enfrentados pelos leitores (em navegações registradas em vídeo durante as observações sistemáticas) ficou claro que a beleza visual e gráfica do projeto, o glamour do jornal impresso emulado nas páginas do aplicativo, o frisson da inovação tecnológica associada ao surgimento dos tablets, assim como a força da marca O Globo foram fatores fundamentais para estimular uma avaliação positiva do vespertino por parte dos respondentes dos questionários. Conclui-se que um design visual elegante contribui decisivamente para engajar e envolver emocionalmente o usuário, inspirando-lhe a vontade de superar as dificuldades inerentes a uma nova forma de interação.

[*] Luiz Agner é doutor em Design pela PUC-Rio e pós-doutor em Estudos Culturais pelo PACC-UFRJ. Professor da Escola de Comunicação Social das Faculdades Reunidas Helio Alonso (Facha, Rio de Janeiro) e tecnologista do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). É autor do livro Ergodesign e arquitetura de informação – trabalhando com o usuário (Rio de Janeiro: Quartet, 2008). Blog: www.agner.com.br


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Nota

Esta pesquisa foi desenvolvida para apresentação ao Programa Avançado de Cultura Contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PACC-UFRJ).

O presente trabalho contou com a colaboração de alunos de graduação em Comunicação Social (Jornalismo/ Publicidade e Propaganda) das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha/RJ) e de alunos do curso de Especialização em Ergodesign de Interfaces, Usabilidade e Arquitetura de Informação, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).

Participaram desta pesquisa os estudantes: Adriana Silva, Andrei Eduardo de Souza Gomes, Alexandre Benitah de Figueiredo, Alice Saraiva de Oliveira, Bernardo Anderson Munro Tausz, Carla Matos Vitorino, Carlos Eduardo Ribeiro, Carlos Valentim Pereira Winter, Caroline de Oliveira Zambon, Denise Souza da Silveira, Fernando Bravo Figueroa, Gabrielle Calixto da Silva, Guilherme Zavam, Henrique de Oliveira Ferreira, João Gabriel Santos Pereira, Juliana de Alencastro Franchin, Leandro da Cunha Soares Monteiro, Letícia Freitas Melo, Leticia Teixeira Brack, Mara Rubia De Oliveira Sampaio, Marina Pontes Macacchero, Monique Tavares de Oliveira, Rachell de Oliveira Menezes de Santana, Raquel Alves Dias dos Santos, Ricardo Lins, Thainá Zanotti Giuberti, Tiago de Souza Mota, Victor Montalvão Andrade da Costa, Wallace de Freitas Andrade, Saulo Monteiro Chaves, Bruno Santiago Roedel, Vitor Amorim (PUC-Rio); e Luis Antonio de Medeiros e Gomes, Talita Alves Aquino, Renata Cunha Romero, Gabriel Rodrigues da Silva, Ana Cristina de Melo, Luanna Santana de Souza, Rodrigo Hang Coutinho (Facha/RJ).

Tempo de leitura estimado: 34 minutos

Capas de Vicente Di Grado na década de 1960 | Márcio Duarte e Mônica Moura*

O resgate da história e da memória do design gráfico brasileiro ainda possui algumas lacunas, pois muitos profissionais, seus projetos e obras não são lembrados ou ainda não foram estudados e registrados, deixando uma lacuna na história gráfico-visual de nosso país. Este artigo pretende contribuir nesse sentido, resgatando as capas de livros projetadas por Vicente Di Grado. Designer gráfico, artista plástico e docente, Di Grado (1922-2005) atuou como principal capista para a Editora Clube do Livro entre as décadas de 1950 e 1970, sendo seu maior período de produção a década de 1960, justamente o objeto deste estudo. Pelo conjunto de seu trabalho, recebeu o Prêmio Jabuti em 1963. Sua obra representa uma grande fonte de elementos e referências gráficas, além de ter marcado a linguagem editorial da Editora Clube do Livro.

Figura 1: Capas de Vicente Di Grado da década de 1960 para o Clube do Livro.Figura 1: Capas de Vicente Di Grado da década de 1960 para o Clube do Livro.Figura 1: Capas de Vicente Di Grado da década de 1960 para o Clube do Livro.

Figura 1: Capas de Vicente Di Grado da década de 1960 para o Clube do Livro.

A Editora Clube do Livro foi um caso singular no mercado editorial, mas sem provocar grandes mudanças. O mesmo podemos dizer de Di Grado, que, em seu estilo, trouxe contribuições quanto à utilização de técnicas artísticas e gráficas associadas aos princípios do design. Sua produção o estabelece como um importante designer no segmento editorial, com características muito produtivas, comprovadas pelo volume de capas desenvolvidas no período estudado (1960 a 1969). Esse período possui relevância histórica no design brasileiro, e especialmente no segmento de livros.

O mercado editorial brasileiro e o desenvolvimento das capas ilustradas dos livros

A produção de livros no Brasil é marcada pela vinda da família real, em 1808, para o Rio de Janeiro, então capital federal. A imprensa oficial é implantada para atender às publicações administrativas e pequenas tiragens de títulos da literatura lusitana e mundial. No início da década de 1820, na Europa, são lançadas as capas ilustradas de livros infantis, impressas em xilogravura. Já na década de 1860, observa-se o uso de fotografias e gravuras nas capas de livros, sendo que os avanços na impressão gráfica, especialmente a litografia, passam a ser incorporados para as imagens tanto nas capas quanto nos próprios miolos.

Essas mudanças no projeto editorial apontam o surgimento dos projetistas gráficos que passam a utilizar ilustrações e elementos vindos das artes visuais, com o uso recorrente de elementos orgânicos a partir das influências e referências da art nouveau. O resultado dessa demanda gerou um mercado propício para artistas gráficos e ilustradores, que passam a ser responsáveis não só pelas capas, mas por toda a publicação.

Hallewell (1985) e Cardoso (2005) apontam o surgimento do design das capas de livros no Brasil a partir de Monteiro Lobato e suas atividades na editora Monteiro Lobato & Cia. A edição do livro Urupês (1918) é apontada como o início do design de capas no Brasil, bem como é um ponto de partida para a reconfiguração dos projetos editoriais de livros de modo geral, incluindo maior atenção à qualidade tipográfica e à diagramação do miolo.

Figura 2: Capa de Urupês, de Monteiro Lobato, ilustrada por José Wasth Rodrigues (1918).
Figura 2: Capa de Urupês, de Monteiro Lobato, ilustrada por José Wasth Rodrigues (1918).

Nas décadas seguintes, há o desenvolvimento da produção editorial no Brasil e principalmente a evolução gráfica das capas. As atuações de Tomaz Santa Rosa nos anos 1930, nas editoras Livraria Schmidt Editora e Livraria José Olympio Editora, demonstram esse diferencial, apostando no acabamento cuidadoso de suas edições, além de iniciar uma cultura de projetar o livro como um todo, detalhando inclusive o miolo em um projeto editorial específico (Paixão, 1995).

O mercado editorial passou por grande mobilização ao iniciar a produção em larga escala de livros didáticos a partir da década de 1930, influenciando o surgimento de novas editoras. O número de casas editoriais em atividade no país cresceu 50% entre 1936 e 1944. Em 1950, o número de títulos publicados era quatro vezes maior do que na década de 1930.

Porém, Melo (2006) observa a pequena presença de fotografias nas capas desse período, mesmo com a técnica já amplamente difundida, o que traz à tona o caráter tradicionalista que o livro possuía. Nesse sentido, a ilustração marca uma transição ousada que insere de forma definitiva a linguagem gráfica nas capas dos livros, gerando uma coleção de obras que destacam internacionalmente o design editorial brasileiro.

A década de 1960 foi decisiva para a expansão do segmento editorial e três editoras merecem destaque: a José Olympio, a Civilização Brasileira e a Editora Clube do Livro. A Civilização Brasileira promoveu o crescimento significativo no número de leitores, determinante com o desenvolvimento dos projetos de capas, destacando-se a figura de Eugênio Hirsch, que alterou os padrões para a composição das mesmas. Por sua vez, a Editora Clube do Livro originou uma nova forma de atuação no mercado de livros.

Editora Clube do Livro

A Editora Clube do Livro, fundada em 1943, em São Paulo, pelo médico e escritor Mário Graciotti, publicou romances, contos e crônicas, recebendo muitas premiações, inclusive da Academia Brasileira de Letras. Tinha como proposta ampliar o número de leitores no país a partir de edições de baixo custo, porém de qualidade, em sistema de assinatura apoiada em uma logística de distribuição de títulos em domicílio. Atuou nesse modelo por mais de 40 anos, sempre com um título de literatura – nacional ou estrangeira –, distribuído mensalmente aos associados. Chegou a distribuir mais de 10 milhões de livros, com edições em patamares expressivos para o mercado brasileiro, como os 35 mil exemplares de Uma lágrima de mulher (1956), de Aluízio Azevedo.

Inicialmente pensada para tiragens em torno de 2 mil exemplares – o que já era algo grandioso, visto que as tiragens naquele momento se davam em torno de 500 a mil exemplares –, a primeira edição dessa editora teve uma tiragem inicial de 10 mil exemplares (O Guarani, de José de Alencar, em julho de 1943), resultado dos 9 mil associados inscritos. Em 1969, a Clube do Livro contava com um quadro de mais de 50 mil sócios, o que garantia manter o fluxo de publicações mensais com porte pago para envio. Na década de 1970, porém, foi sucessivamente transferida para a Editora Revista dos Tribunais e para a Editora Ática, que alterou sua denominação para Estação Liberdade/Clube do Livro, até o encerramento das atividades, em 1989.

Vicente Di Grado

Vicente Di Grado nasceu em 1922, formou-se em Artes Plásticas pela Escola de Belas Artes, instituição privada sediada em São Paulo. Atuou como artista gráfico no setor editorial e de publicidade e também como artista plástico. Sua obra compreende, além de pinturas e esculturas, ilustrações e, a partir da década de 1950, as capas para a Editora Clube do Livro – a partir de um convite de seu proprietário, Graciotti, que percebera a necessidade de livros mais atrativos para ampliar seu mercado.

Paralelamente à sua atividade como artista, ilustrador e designer, Di Grado retorna à Escola de Belas Artes como docente em 1966 e a partir de 1968 passa a integrar a administração escolar da instituição, no cargo de diretor-geral. Nos anos 1970, foi membro da Associação Paulista de Belas Artes, entidade mantenedora da Faculdade Belas Artes (atual Centro Universitário Belas Artes) e do muBA – Museu Belas Artes de São Paulo, pertencente à mesma instituição. Em 1988, foi o responsável pela supervisão editorial da edição brasileira do livro Arte e percepção visual, de Rudolf Arnheim. Faleceu em 14 de abril de 2005, aos 76 anos. Atualmente, uma das galerias do Centro Universitário Belas Artes leva seu nome. No fim de 2010, o muBA realizou uma exposição de seu trabalho para a Editora Clube do Livro.

Evolução gráfica das capas do Clube do Livro

A proposta de manter livros com qualidade baratos e acessíveis determinava que todas as características das edições seguissem definições bastante rígidas, de forma que os custos pudessem ser controlados. Inicialmente, o projeto editorial limitava-se a publicar apenas as obras de domínio público, isentas de custos com direitos autorais. Os volumes publicados sempre seguiram um mesmo padrão de impressão e construção formal: formato de 13 cm x 18 cm e capa impressa em duas cores (normalmente, os elementos tipográficos em preto e a ilustração em cor), na maioria das vezes em papel opaco sem revestimento (apenas na década de 1970, foram utilizadas mais cores e plastificação). A utilização de papéis isentos de impostos garantia também o baixo custo de produção.

As orelhas tinham larguras variadas – inclusive entre si, em uma mesma edição –, utilizadas para divulgação de outros títulos, com pequenas sinopses ou comentários, ou anúncios de ofertas especiais, inclusive de outras editoras, tendo sido retirados do projeto gráfico nos anos 1970. A lombada possuía uma estrela de cinco pontas na parte superior e, abaixo, nome do autor e título da obra, ficando a identificação da editora na base. A estrela e o título – tal como alguns elementos das orelhas – eram impressos com a cor da ilustração da primeira capa (ou com a predominante nela, nos poucos casos nos quais a produção incluiu mais de duas cores).

Figura 3: Capa e orelhas de títulos do Clube do Livro, de fevereiro de 1962, desenvolvida por Vicente Di Grado. É possível perceber o padrão visual da editora.
Figura 3: Capa e orelhas de títulos do Clube do Livro, de fevereiro de 1962, desenvolvida por Vicente Di Grado. É possível perceber o padrão visual da editora.

O projeto adotado pelo Clube do Livro manteve-se por quase toda a existência da editora, mas podemos observar que algumas mudanças marcaram fases de desenvolvimento, advindas de pequenas alterações no perfil editorial e por meio das melhorias tecnológicas. Assim, vê-se que, ao longo de pequenos ciclos, as capas foram ganhando importância. Nesse sentido, podemos identificar seis padrões projetuais, que correspondem a seis fases.

1 Capas essencialmente tipográficas (de 1943 a 1950)

Figura 4: Capa de O Guarani, de José de Alencar (1943).
Figura 4: Capa de O Guarani, de José de Alencar (1943).

Possuíam uma moldura como adorno e impressas em duas cores – normalmente uma para os adornos, que variava conforme a edição, e o preto para o texto. Este era composto em sua maioria por fontes sem serifas, embora em algumas capas se verifique uma combinação de serifa nos caracteres do título e sem serifa nos demais.

2 Capas majoritariamente ilustradas (a partir de 1950)

Marca o início da produção de Di Grado. Uma ilustração ganha destaque, ocupando grande parte da capa junto a tipografias desenhadas. O alinhamento centralizado das informações textuais é mantido; o título tem destaque sobre o nome do autor, em menor dimensão. Porém, a assinatura “Clube do Livro – São Paulo – Ano” passa a ser apresentada no rodapé da capa de maneira linear.

Figura 5: Capa de A teoria da distância, de Aristides Ávila (agosto de 1950).
Figura 5: Capa de A teoria da distância, de Aristides Ávila (agosto de 1950).

3 Inclusão de rodapé padronizado (segunda metade da década de 1950)

É iniciada uma padronização das informações textuais: o nome do autor na parte superior com uma fonte padrão, sem serifas e em caixa-alta e a mesma fonte e tamanho se repete na assinatura, localizados no rodapé, ambos centralizados – na maior parte das vezes em relação ao eixo vertical da capa. As ilustrações ganham a dimensão da capa e os títulos se apresentam desenhados. Impressão em uma cor mais o preto, o que auxilia a identificar os livros dessa editora.

Figura 6: Capa de Uma aventura de Natal, de Charles Dickens (outubro de 1956).
Figura 6: Capa de Uma aventura de Natal, de Charles Dickens (outubro de 1956).

4 Maior interação entre título e ilustração, com uso intensivo de caracteres desenhados (a partir dos anos 1960)

Nessa mudança gráfica nos padrões das capas, podemos perceber uma leve redução nas dimensões das ilustrações, que dialogam mais com os títulos. As cores são utilizadas para criar fundos, compondo inversões, tornando-os parte das ilustrações ou destacando as informações textuais.

Figura 7: Capa de O segredo, de Alfred de Musset (setembro de 1966).
Figura 7: Capa de O segredo, de Alfred de Musset (setembro de 1966).

5 Substituição do rodapé pela marca da editora (final dos anos 1960)

Em 1968, é iniciada a utilização de uma marca para identificar a editora, movendo as informações de data para a quarta capa. A padronização na estrutura visual em função dos avanços do processo de impressão offset é perceptível. A tipografia, de maneira geral no título e no nome do autor, é utilizada com peso constante em sua maior parte, sem redução de tamanho para o nome do autor. Podemos perceber também a utilização de cores fortes e traços simples.

Em julho de 1968, durante a comemoração dos 25 anos do Clube do Livro, se iniciou a utilização de um logotipo para a editora, no lugar da identificação textual habitual “CLUBE DO LIVRO – SÃO PAULO – BRASIL – ANO PUBLICAÇÃO” (Figura 8). Essa foi deslocada para a quarta capa, que passou a trazer também pequenas frases de apresentação da obra e o ícone do mapa do Brasil com o poema de Castro Alves.

Figura 8: Detalhes de capas, respectivamente, de <i>A insídia</i>, de Joan Tenzate (junho de 1968), e de <i>O enfermeiro</i>, de Machado de Assis (julho de 1968), mostrando a mudança de identificação da editora.
Figura 8: Detalhes de capas, respectivamente, de A insídia, de Joan Tenzate (junho de 1968), e de O enfermeiro, de Machado de Assis (julho de 1968), mostrando a mudança de identificação da editora.

6 Alteração completa do padrão: mudança de formato e uso de fotografias (1977)

Figura 9: Capa de <i>A semente</i>, de Marília Fairbanks Maciel (janeiro de 1977).
Figura 9: Capa de A semente, de Marília Fairbanks Maciel (janeiro de 1977).

Em 1977, o padrão gráfico é completamente alterado, o formato do livro foi ampliado, a diagramação interna sofreu mudanças estruturais e o layout das capas passou a usar tanto ilustrações quanto imagens fotográficas. As orelhas foram eliminadas. Provavelmente, a diminuição dos trabalhos de Di Grado na Editora e o fato de ela ter sido integrada ao Grupo Ática proporcionaram essas mudanças.

Metodologia adotada

O escopo teórico da pesquisa foi selecionado a partir da revisão da literatura, com o estabelecimento do quadro teórico para os estudos e análises. Em seguida, foi desenvolvida a pesquisa documental eletrônica, organizando imagens, títulos e datas, compreendendo toda a produção de Vicente Di Grado para a Editora Clube do Livro, entre 1950 e 1976, com um número aproximado de 250 títulos. Esses títulos foram divididos por semelhanças compositivas e também por décadas, quando observamos a diferenciação das capas da década de 1960, estabelecendo, desta forma, o objeto de pesquisa.

Posteriormente desenvolvemos a pesquisa de campo a fim de reunir as edições do período, para contato com as capas originais. Percorremos periodicamente sebos e livrarias, para acesso e coleta do material. Foram recolhidos exemplares de 114 dos 120 volumes pretendidos, e produzidos por Di Grado na década de 1960. Diante da impossibilidade de acesso às seis capas não localizadas, trabalhamos com as 114 encontradas, considerando este número significativo da produção no período estudado.

A análise dessas capas foi realizada considerando os elementos compositivos e expressivos que tinham como objetivo proporcionar aos leitores as primeiras impressões sobre o conteúdo do livro e corporificar as personagens e símbolos aos quais o título se refere a partir da ilustração e composição das capas. Elas atendem ao princípio de informar sucintamente o conteúdo a ser lido, retratando o foco da narrativa, caracterizando o trabalho de Di Grado a partir da rica variação de estilos.

Após a fase de coletas das informações visuais, um estudo analítico foi desenvolvido, estabelecendo um paralelo entre o trabalho de Di Grado e seu período de atuação, visando entender a linguagem característica de sua obra segundo os parâmetros desta pesquisa.

Referencial e fundamentos teóricos

O design de informação foi o enfoque adotado para a análise das capas, tendo como principais referenciais Pettersson (2002), Dürsteler (2000) e Bacelar (2003), além de Dondis (1997) e Löbach (2001) – com especial relevo, nesse último autor, a seu conceito de comunicação estética. Para a instrumentalização da análise gráfica, utilizou-se a “Tricrotomia dos signos”, de Charles William Morris (1970), e os procedimentos analíticos propostos por Villas-Boas (2009).

A partir desses preceitos, as 114 capas foram divididas em grupos menores, e separadas por aproximação dos elementos compositivos. Foram observados:

1 Os conceitos dimensionais de Morris:

a) Dimensão sintática: a descrição do conteúdo e da organização visual dos elementos de sua diagramação, de sua aparência estético-formal – ponto, linha, forma, direção, tom, cor, textura, proporção, dimensão e movimento – e de suas relações compositivas: da disposição das imagens, do título, e dos textos complementares;

b) Dimensão semântica: considerando seu caráter psicológico, expressivo, os simbolismos que remetem aos significados da imagem e sua composição com o título (quando existir);

c) Dimensão pragmática: a configuração geral da capa, seu suporte e qualidades gráficas de tamanho, formato, gramatura, textura, acabamento, cores, tipo de impressão etc. Além de demais características de funcionalidade em termos ergonômicos, de legibilidade, de textos e imagens.

2 A compreensão visual, descrita por Villas-Boas (2009) no processo de análise, partindo de:

a) Elementos técnico-formais: aquilo que o usuário não identifica objetivamente (ou tende a ignorar), mas que está por trás da organização dos elementos estéticos;

b) Elementos estético-formais: o que o leitor efetivamente vê no layout (imagens, letras, cores).

O processo de análise foi então instrumentalizado conforme o quadro a seguir:

Figura 10: Quadro demonstrativo da divisão de elementos de análise gráfica (Villas-Boas, 2009).
Figura 10: Quadro demonstrativo da divisão de elementos de análise gráfica (Villas-Boas, 2009).

É possível perceber as relações entre as duas diretrizes de análise, as quais definem o escopo para a interpretação do objeto de estudo. Por um lado, se verifica as relações signo e significado, enquanto por outro as relações estéticas e técnicas, perpassando pelos princípios do design. Por fim, a análise levou em conta o conjunto de fatores internos – análise descritiva – e externos – análise crítica –, compreendendo o universo ao qual as capas de Vicente Di Grado e da Editora Clube do Livro estavam inseridas.

Partindo do recorte estabelecido, ou seja, as capas publicadas pelo Clube do Livro durante os anos de 1960 a 1969, optou-se por segmentá-las, resultando na observação de cinco grandes aspectos projetuais fortemente expressados pelos projetos. Note-se que esses segmentos não são formados exclusivamente por determinadas capas e com a exclusão de outras: eles se superpõem, com alguns projetos podendo expressar mais de um desses aspectos.

Figura 11: Gráfico de distribuição das características existentes nas 114 capas da amostra.
Figura 11: Gráfico de distribuição das características existentes nas 114 capas da amostra.

Assim, as capas foram segmentadas da seguinte forma:
– Relação entre ilustração e título;
– Profundidade espacial;
– Divisões gráficas e planos visuais;
– Composições tipográficas destacadas;
– Estruturas diferenciadas.

Para que a análise fosse mais consistente e pudesse representar os pontos comuns entre as capas observadas, assim como o estilo pessoal marcante expresso pelo artista em sua obra, em cada grupo foram escolhidas uma ou duas capas, analisadas isoladamente.

As capas de livros criadas e projetadas por Vicente Di Grado na década de 1960

O principal tema utilizado por Di Grado é a figura humana, chegando a 67% das capas analisadas. Nesse conjunto, predomina um alinhamento centralizado, porém, construindo composições variadas. Em algumas, casais são ilustrados e as divisões geométricas os separam, demonstrando uma simetria na composição ou firmando um ponto de ação, como um beijo ou o olhar, com intensidade. Sempre é percebido o sentimento descrito – amor, angústia, dor –, criando uma atmosfera propícia para o desenrolar da narrativa visual, amparada por cores e detalhes que comandam o olhar do leitor. Em outras, as personagens são solitárias, os sentimentos são expressos de maneira direta, por suas expressões e gestos, muitas vezes reforçados pelas cores utilizadas.

A sintaxe formal das capas, nos aspectos da visualidade e textualidade, indica o trabalho de mapeamento e hierarquia das informações presentes e aplicadas, representando de maneira simples o nome do autor e a editora em segundo plano, deixando como elementos centrais a ilustração e o título. Isso torna a mensagem clara e objetiva, mas ao mesmo tempo expressiva e marcante.

A composição da maioria das capas privilegia o equilíbrio assimétrico com as ilustrações e o texto, criando dinamismo e profundidade entre figura e fundo. Os traços são diversos, como é característica do artista, mesclando técnicas de ilustração e pintura. O branco do papel com manchas coloridas constrói, algumas vezes, uma massa cromática maior, chegando a cobrir completamente a área projetual.

Algumas ilustrações ocupam grande parte da mancha, tornando o espaço do título menor, ou mesmo invadido pela imagem, conflitando em relevância, ora chamando a atenção para as características da ilustração, ora para o título da obra. O diálogo que ocorre entre os espaços em branco provocam reflexões entre a narrativa e os elementos constantes da composição, até mesmo sua sobreposição com o texto é um fator compositivo para interpretar as capas.

Algumas vezes o título está na própria ilustração, criando detalhes visuais pertinentes. A tipografia mantém traços retos em sua maioria, a leitura não sofre perdas e a capacidade de compreensão da mensagem não fica comprometida. As cores utilizadas são direcionadas para o ocre e o alaranjado.

O desequilíbrio criado pelas variações no alinhamento do título é reconstituído quando inserido no contexto da composição. A própria construção textual é pensada de maneira a refletir o clima a ser experienciado, ao se contemplar a capa, integrando a narrativa ao seu visual – linhas mais sóbrias e ordenadas das imagens melhor definidas ou conflitos com os textos desalinhados.

Era empregada uma paleta cromática básica – amarelo, azul, vermelho, laranja, verde, marrom – e pequenas variações pelo uso de retícula, por mistura ótica com o preto ou branco – ocre, azul-escuro, rosa, lilás, verde-claro, caramelo. Em algumas poucas vezes, se vê a impressão em mais de uma cor, mas ainda assim sem gradientes ou misturas. Em uma grande porção, podemos observar as capas em fundo branco com cores em áreas “pinceladas” ou em partes do título – letras ou palavras –, além de utilizar a ilustração colorida com o título em preto.

A tipografia característica é composta por letras desenhadas, a maioria sem serifas ou adornos, construída com linhas retas, em sua maioria fornecendo um estilo moderno com peso negritado (bold). As poucas capas que utilizam fontes serifadas também são desenhadas com suas extremidades exibindo pequenas saliências. Poucas vezes se observa a utilização de letras tipográficas, essas ficaram mais comuns na década de 1970.

É utilizada a variação de kerning e ajustes nas entrelinhas e linhas de base, construindo uma movimentação espacial dos caracteres, intensificando sua percepção e significância, mas sem perder a legibilidade e a acuidade das capas, pois se observam detalhes de sua composição, como planos de cenário e detalhes volumétricos nas ilustrações.

Feitas essas observações referentes ao conjunto, seguem-se as análises de cinco aspectos presentes nas capas de Di Grado e que correspondem aos cinco grupos principais nos quais foram divididas as 114 capas que compõem a pesquisa.

Relação entre ilustração e título

Quando a ilustração é expressiva, sua atração visual constrói um diferencial maior que a massa textual. Suas dimensões abrangem grande parte da mancha gráfica e acabam por constituir uma moldura para o título do livro. O fato de ela “cercar” ou mesmo envolver o título é uma construção formal que contribui para reforçar seu apelo, construindo uma tensão direcionada por parte do observador.

Vê-se nesse conjunto de capas a organização textual em função da expressão visual, sendo o título diagramado para estar contido na ilustração, chegando a sofrer variações em sua direção de leitura – vertical ou horizontal – para que possa ocupar somente o interior da imagem. Mudanças de alinhamento fazem com que as combinações de cores e elementos visuais possam ser contrastantes a ponto de causarem estranhamentos em sua leitura, como podemos observar no olho “de rubi” da capa de Os rubis (Figura 12).

Figura 12: <i>Os rubis</i>, de J. M. Forman (junho de 1964).
Figura 12: Os rubis, de J. M. Forman (junho de 1964).

A significância dos elementos é clara e possível de acuidade, provocando uma leitura única e direta da hierarquia de informação. Presa pelo contraste figura e fundo, mesmo quando utiliza uma cor chapada ao fundo, os traços são bem marcados, nem sempre definindo a figura por completo, mas com sua continuidade preservada facilitando a acuidade e a pregnância.

O título muitas vezes já é responsável por atrair a atenção do leitor, mas independentemente disso, algumas capas apresentam o título principal como um bloco, atraindo o olhar, convidando para a leitura. O texto sempre legível é ampliado para prender o olhar, em geral posicionado em uma área de visualização pertinente, seja por estar localizado em uma área de visualização importante, seja por criar um contraste marcante com a imagem. Pouco se percebe de variação no alinhamento da tipografia: essa já sofre uma distorção direta em suas quebras de linha, abruptas em alguns casos.

Figura 13: <i>A muralha da China</i>, de Franz Kafka (março de 1968).
Figura 13: A muralha da China, de Franz Kafka (março de 1968).

A ilustração, por vezes, se mostra no entorno do texto, reforçando a percepção de bloco em que a informação deve ser compreendida de maneira uniforme, conjunta. Texto e imagem se complementam e formam um equilíbrio compositivo capaz de manter a harmonia e a hierarquia das informações, mesmo com um contraste marcante. Fortalecem a divisão do layout de maneira a criar a atmosfera desejada para a obra, e sua narrativa visual proporciona essa união de elementos. Notadamente, as cores são os elementos que proporcionam esse contraste entre figura e fundo, gerando um ritmo visual capaz de nortear o olhar do leitor pelos blocos aparentes. A carga expressiva contida nas capas transfere para o leitor a sensação de participar diretamente da narrativa, oferecendo um convite para a leitura.

Profundidade espacial

Os planos de composição são comuns em imagens fotográficas, mas ao serem apresentados em ilustrações causam um efeito de profundidade, dimensão e contexto. São planos configurando ângulos de visão capazes de intensificar as percepções das capas, criando o ambiente transmissor das mensagens da narrativa.

Assim, Vicente Di Grado apresenta soluções eficientes na construção das ilustrações permeando o fundo com a imagem principal e o título, criando níveis de informações. A hierarquia visual é enriquecida com a perspectiva criada nos planos, pois a profundidade decorrente exerce um caráter de organização para os elementos compositivos.

Figura 14: <i>Os encontros</i>, de Zuzu Ferreira (junho de 1965).
Figura 14: Os encontros, de Zuzu Ferreira (junho de 1965).

Os títulos, normalmente em primeiro plano, ganham destaque com variações de tamanho e direção de leitura – vertical, horizontal ou composto com a imagem – e a ilustração constrói o ritmo das capas. Mesmo representações de passagens são observadas onde se colocam pontos de fuga e perspectivas, contribuindo para o entendimento da mensagem apresentada.

Divisões gráficas e planos visuais

Os elementos gráficos contidos nesse grupo de capas formam divisões visíveis de ordem. Tanto a hierarquia visual dos textos quanto a sequência de relevância imagem-texto são apresentadas de forma a construir uma composição diferenciada, solucionando as questões de acuidade visual da capa como um todo.

Figura 15: <i>A feiticeira</i>, de Massimo D’Azeglio (novembro de 1961).
Figura 15: A feiticeira, de Massimo D’Azeglio (novembro de 1961).

As percepções de dimensões gráficas, oriundas da Gestalt, estão presentes de maneira marcante e percebidas quanto à pregnância formal atribuída pelos elementos. Em sua maioria, existe uma harmonia compositiva, oferecendo um caminho de leitura capaz de satisfazer aos preceitos do design de informação. As divisões não se limitam às zonas de visualização, mas também são integrantes da escolha cromática que contribui para o equilíbrio da capa como um todo. As divisões promovidas pelas massas de texto e imagem formam uma malha construtiva coerente e contrastante com os espaços em branco da capa.

Figura 16: <i>A rainha sem nome</i>, de J. E. Harzenbuch (março de 1964).
Figura 16: A rainha sem nome, de J. E. Harzenbuch (março de 1964).

Percebe-se a divisão gráfica nas capas, e a geometrização dos espaços compositivos formam grids, que direcionam o olhar e a compreensão do leitor. O modo de organizar as informações são funções básicas para a página impressa, construindo uma hierarquia básica.

Composições tipográficas destacadas

As tipografias desenhadas por Di Grado representam o seu domínio das técnicas de ilustração e desenho, com traços simples, capazes de elaborar os títulos de maneira a carregá-los de expressão. Muitas vezes com modificações no alinhamento de base ou mesmo na variação de cores entre as palavras – ou letras –, representam a facilidade comunicativa e a constante preocupação em desenvolver layouts diferenciados para cada capa. Esse é, provavelmente, um dos maiores grupos de análise, considerando o dinamismo presente nos títulos e sua pouca variação – quase como um alfabeto pessoal, desenvolvido para a editora, tão comum no meio editorial jornalístico.

Fontes serifadas também fazem parte do repertório de Vicente Di Grado; uma proposta de tipografia com serifas é utilizada ocasionalmente nas capas, mantendo semelhanças visuais entre si. Com as hastes das letras possuindo uma pequena variação de espessura, são tipografias elegantes e que expressam certo estilo, visto que são aplicadas em títulos referentes ao universo feminino.

A construção visual ganha representatividade com a utilização dos títulos em grandes proporções, alterando ou reduzindo a relevância das ilustrações. A disposição dos títulos tomando toda a extensão gráfica da capa movimenta a leitura visual, criando um sentido próprio para o percurso dos olhos. As quebras – de sílabas ou palavras –, contribuem para esse caminho de leitura e compreensão, no qual as outras informações textuais são apenas informativas.

As imagens sofrem interferência direta, pois são praticamente comprimidas pelo título, além de fazerem parte intrínseca do próprio título enquanto elemento gráfico, interagindo, apoiando ou mesmo criando uma conotação de sensações pessoais. Vê-se no caso da capa de Adolescência (1964), de Máximo Gorki, na qual a ilustração representa todo um peso carregado pela vida, considerando que as palavras estão localizadas nas costas da personagem (Figura 17).

Figura 17: <i>Adolescência</i>, de Máximo Gorki (maio de 1964).
Figura 17: Adolescência, de Máximo Gorki (maio de 1964).
Figura 18: <i>O medalhão</i>, de Machado de Assis (julho de 1965).
Figura 18: O medalhão, de Machado de Assis (julho de 1965).

São interessantes as construções formais que a massa de texto adota em relação às pequenas ilustrações. A composição é trabalhada para que o texto sufoque a ilustração, causando ao leitor uma sensação de angústia ou incerteza. Os alinhamentos são centralizados quando não possuem diagonais bem marcadas, pesando o olhar sobre a ilustração, que, mesmo em proporções reduzidas, ganha sua importância no contexto.

Outra característica utilizada nos textos é a mudança da linha de base da tipografia, que por si só causa desequilíbrio ao olhar, mas quando apresentada em conjunto com as ilustrações faz com que ambas ofereçam uma composição visual e gráfica que devolve o equilíbrio ao layout. O ritmo criado pelas letras por meio da composição com as ilustrações organiza o pensar do leitor quando tenta obter significados sobre o que vê.

Alguns experimentos que utilizam a tipografia de maneira diferenciada também são percebidos no trabalho de Di Grado, principalmente quando há misturas de famílias tipográficas. Várias formas diferenciadas criam uma divertida mescla de elementos que fazem a informação textual – o título – ganhar espaço na composição. Outra característica é a ilustração centralizada e as cores que compõem um plano de fundo mesclado com o branco do papel.

Figura 19: <i>O espião</i>, de P. E. Oppenheim (junho de 1960).
Figura 19: O espião, de P. E. Oppenheim (junho de 1960).

Há outras variações de tipografias desenhadas por Di Grado, algumas com serifas, outras com serifa slab (grossas e quadradas). Elas provocam e atraem o olhar para pontos de atenção primordiais para o entendimento da mensagem narrativa do livro.

Estruturas diferenciadas

Características peculiares, assim são algumas das capas que podem ser classificadas como “únicas”. Percebe-se o estilo de Di Grado nos traços e delimitações espaciais, mas sem que se constituam unidades que as integram aos grupos anteriores.

As divisões geométricas fazem com que haja uma ordem nas composições, responsáveis pela hierarquia, guiando o leitor, com a atenção em pontos predeterminados, ordenando a relevância dos blocos textuais.

Figura 20: <i>O cordão dos milagres</i>, Mário Gracioti (1966).
Figura 20: O cordão dos milagres, Mário Gracioti (1966).

A construção do layout e dos grids compositivos dessas capas fogem da estrutura de traço, muitas vezes por meio de técnicas diferenciadas ou da utilização de materiais diversos, mas sempre vista com soluções estéticas interessantes.

Dessa forma, as imagens criadas por Vicente Di Grado para as capas do Clube do Livro se valem de critérios capazes de ordenar as informações textuais em elementos estéticos, compreendidos e percebidos como formas de comunicação, para que o leitor as interprete de maneira confortável, se valendo do repertório artístico das capas e ampliando seu leque de compreensão pessoal.

Considerações finais

O papel de importância da Editora Clube do Livro vai além de uma sistemática de ação no mercado editorial da época, contribuiu com a disseminação da literatura nacional e internacional, bem como se posiciona como um espaço para a geração de experimentos gráficos e pelo hibridismo de técnicas e estilos, especialmente na coleção e na obra desenvolvida por Vicente Di Grado para essa editora.

A concepção gráfica e visual das capas estudadas e aqui apresentadas nos revelam as diferentes fases da Editora Clube do Livro e reafirmam que o design gráfico acompanha as mudanças culturais, econômicas e tecnológicas.

As capas de livros desenvolvidas por Vicente Di Grado apontam combinações variadas, indicando várias possibilidades de agrupamentos, leituras e análises. Os elementos compositivos geram uma expressividade própria de Di Grado, proporcionando aos leitores as primeiras impressões sobre o conteúdo do livro e as personagens e símbolos aos quais o título se refere. Elas atendem ao princípio de informar sucintamente o conteúdo a ser lido, retratando o foco da narrativa, caracterizando seu trabalho como vigoroso, com uma variação de estilos.

Enquanto artista gráfico, suas capas eram sintéticas – apenas as informações de autor e editora permanecem com alterações na tipografia e posição –, mas é perceptível uma identificação desses volumes como coleção. A capa, em apenas duas cores – sempre o preto junto à outra cor –, serviu ao projeto como riqueza expressiva, além da variação da tipografia e ilustração, que se alteram em destaque, conforme a obra e o enredo da mesma.

Por meio dos traços intensos e da síntese de formas na construção das imagens, não deixa de detalhar aspectos necessários para sua compreensão, em que é perceptível o domínio das linguagens pictóricas, do desenho de imagens e de caracteres e da ilustração presentes na grande quantidade de suas produções, valendo-se de elementos capazes de comunicar de maneira subjetiva e também objetiva. Dessa forma, atende aos princípios da comunicação estética, do design da informação e das relações projetuais, ajudando a constituir o design editorial brasileiro.

* Márcio Duarte é mestre em design pela Faac-Unesp e docente no curso de Moda da Faip, em Marília/SP. Mônica Moura é professora doutora dos cursos de graduação e do Programa de Pós-Graduação em Design da Faac-Unesp, Campus de Bauru/SP, e professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Artes do IA/Unesp, Campus de São Paulo/SP.


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VILLAS-BOAS, André. “Sobre análise gráfica, ou algumas estratégias didáticas para a difusão de um design crítico”. Arcos Design. n. 5. Dez, 2009. p. 2-17.

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O tempo nos livros-imagem de Roger Mello | Thales Estefani e André Villas-Boas*

Diferentemente da espacialidade, a expressão da temporalidade é um paradoxo quando se refere a livros-imagem, por isso exige uma variedade de recursos e técnicas próprios para que possa ser percebida nas histórias narradas. Este trabalho focaliza a expressão do tempo na narrativa visual a partir da análise dos livros-imagem – obras que não utilizam o discurso verbal em suas narrativas – de autoria do premiado ilustrador Roger Mello. Os seis livros-imagem aqui analisados, destinados ao público infantil, demonstram este repertório, que depende da participação ativa do leitor – de sua bagagem estética e de sua experiência de mundo – para que essas estratégias sejam eficazes.

Roger Mello nasceu em Brasília, em 1965, e formou-se em design na Escola Superior de Desenho Industrial (Esdi/Uerj). Já fez ilustrações para mais de cem títulos, sendo que 19 deles têm textos ou roteiros de sua autoria. Também se dedicou à animação, à produção de vinhetas para televisão e à dramaturgia. É considerado hors-concours pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ), tendo obtido cerca de 15 menções “Altamente Recomendável”. Recebeu oito Prêmios Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro (CBL) e foi indicado para o Prêmio Hans Christian Andersen (2010), considerado o mais importante da literatura infanto-juvenil. Foi ainda premiado pelo conjunto da obra pela Academia Brasileira de Letras e pela União Brasileira dos Escritores. Em 2002, recebeu o prêmio internacional de melhor livro de 2002 da Fondation Espace-Enfants, pela obra Meninos do mangue.

A amostra definida para este estudo partiu do minucioso trabalho empreendido por Mendes (2011) que, entre 89 títulos com trabalhos de Mello, identificou 22 com autoria total ou em parceria com autores ou editores – dos quais 18 (cerca de 82%) foram premiados. A autora do estudo dividiu esses 22 títulos em três categorias: livros com ilustração, livros ilustrados e livros-imagem, encontrando cinco títulos nessa última categoria. A eles, para esta pesquisa, somou-se um sexto, publicado após a conclusão daquele trabalho. Assim, tendo como referência as datas das edições tomadas para análise (e não os anos de lançamento das primeiras edições), foram analisados: A flor do lado de lá (2004, Global); O gato Viriato (2002, Ediouro); O próximo dinossauro (1999, FTD); Viriato e o leão (1996, Ediouro); A pipa (2011, Rovelle) e  Selvagem (2010, Global).

Figura 1: Livros-imagem de Roger Mello, organizados por ano de lançamento das primeiras edições.
Figura 1: Livros-imagem de Roger Mello, organizados por ano de lançamento das primeiras edições.

O livro-imagem

O que caracteriza os livros-imagem é que eles possuem uma narrativa construída unicamente por ilustrações – ainda que em geral tenham em sua concepção um roteiro verbal e, quando editados, possam apresentar formas verbais nas partes pré-textuais e pós-textuais (folha de rosto, sumário, dedicatória, colofão, etc.). São relativamente recentes no mercado brasileiro, embora o primeiro deles tenha sido publicado ainda em 1976 (Ida e volta, de Juarez Machado, lançado no ano anterior na Europa, em uma coedição germano-holandesa). Até 1995, haviam sido publicados apenas 113 títulos no país (Camargo, 1995) – total que subiu para 153 em 2001 (Ferraro, 2001). Em 1981, a Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil passou a premiar os melhores livros-imagem de cada ano. O reconhecimento de seu valor para a formação da criança também é demonstrado pela alocação de verba destinada exclusivamente para a aquisição desse tipo de publicação pelo Programa Nacional de Bibliotecas Escolares (PNBE).

Derivado do livro ilustrado e diferenciando-se dele por assumir a imagem como elemento estrutural da narrativa, ele tende a instigar incisivamente o raciocínio e a imaginação do leitor: cabe a ele enunciadamente interpretar, sem a linearidade potencial dos signos convencionais da escrita, o significado de cada ilustração e, principalmente, das lacunas entre elas. O sentido apreendido num texto verbal tende a ser mais controlável do que aquele apreendido por meio de uma imagem: ela, sozinha, incita a uma multiplicidade de leituras, com maior potencialidade de polissemia.

Ao ilustrador, muitas vezes, é oferecida a tarefa árdua de tentar traduzir detalhadamente uma narrativa textual em ilustrações. As pesquisas teóricas e a crítica contemporânea concordam que isso não leva aos melhores resultados. O ilustrador trabalha com a linguagem das formas, das cores, dos espaços, e com diferentes escolhas compositivas ele pode conduzir o olhar do leitor para aquilo que quer mostrar ou ocultar, para um dado sentimento, para a sugestão de um conceito. Porém, por mais admirável que seja o seu trabalho, ele precisa sempre levar em conta o espaço de atuação da imaginação do leitor, capaz de completar os sentidos da história. E, mais do que isso, criar outros sentidos.

Tal como nos projetos de design gráfico, nenhuma ilustração apresenta a releitura perfeita de um texto, nenhum leitor terá exatamente a leitura da imagem pretendida pelo ilustrador e nenhum ilustrador conseguirá prever todas as diferentes leituras possíveis de quem visualiza uma ilustração. A imagem será sempre lida de forma parcial, segmentada e particularizada – ou, como observa Rui de Oliveira, outro ilustrador consagrado, ela funciona como um “ardil para resgatarmos nossa experiência vivida e projetarmos e criarmos sua memória futura” (Oliveira, 2008, p.32).

Embora os livros ilustrados não sejam uma categoria estritamente infantil – e há mesmo livros-imagem destinados a outras faixas etárias –, a maior parte dessa produção visa às crianças. Nesse contexto, um trunfo dos livros-imagem com relação às várias categorias de livros ilustrados infantis reside justamente no fato de não possuírem texto: ele permite uma maior possibilidade da interação direta entre a criança e o livro, sem um contador, um intermediário. No entanto, a ilustradora e também premiadíssima Ciça Fittipaldi observa que o processo de criação de um livro-imagem que respeite o espaço do leitor não prescinde da linguagem verbal:

A narrativa visual, nesse caso, é trabalhada também a partir de uma ferramenta verbal, semelhante a um roteiro, que organiza as sequências de ideias imagéticas a partir de noções consensuais ou de bom senso, tornando possíveis suas várias leituras e compreensões. (…) Não há como apagar contradições advindas de leituras impregnadas pela cultura e vivência, pessoalidade, personalidade e imaginação de cada leitor (Fittipaldi, 2008, p. 117).

Quando o roteiro também é de autoria do ilustrador – como é o caso dos seis livros-imagem aqui analisados –, sua liberdade de composição é maior e, em geral, as formas de apresentação da narrativa são pensadas graficamente desde o início.

O paradoxo do tempo no livro-imagem

Uma narrativa se desenvolve no tempo. Uma imagem, em contrapartida, é um elemento que se desenvolve no espaço, explorando possibilidades de composições com pontos, traços, planos, cores. Manguel (2001) destaca alguns pontos que diferenciam a palavra escrita da imagem e potencializam essa premissa de desenvolvimento no tempo e no espaço.

Segundo o autor, as palavras de um texto fluem livremente por meio das páginas de um livro, mas esse texto nunca existe como um todo indefectível: é possível recordar um trecho de um livro, nunca um romance inteiro. A existência total de um texto está no fluxo de palavras que o encerra, da capa até a contracapa, no tempo reservado à sua leitura.

Já as imagens apresentam-se instantaneamente como um todo, limitado por seus enquadramentos. Com o passar do tempo, é possível aprofundar a percepção sobre a imagem, descobrindo novos detalhes, aplicando outros sentidos. Porém, não importa o tempo reservado para contemplar uma imagem ou as criações imaginárias que isso pode despertar: ela sempre existirá no espaço que ocupa (Manguel, 2001, p. 25).

Na grande maioria das formas de contar uma história, o tempo é um elemento presente e determinado – como na literatura, no teatro, na ópera, na dança. Contar histórias a partir da imagem, porém, é um exercício de sugestão que estimula o leitor a apreender a expressão do espaço e a sensação de tempo decorrido a partir de elementos gráficos, recursos estilísticos e técnicas nascidas dos estudos da percepção e associação.

Quando as imagens em sua espacialidade incorporam a dimensão temporal, seja pela representação de ações e eventos, seja pela articulação de vários quadros ou cenas, em sequências, expondo uma ordem de acontecimentos temporal, são imbuídas da fluência narrativa (Fittipaldi, in Oliveira, 2008, p. 109).

Como a leitura de um livro-imagem é um processo ativo e espontâneo do leitor, é exigido do ilustrador que ele mergulhe de forma crítica e analítica no roteiro do livro. É preciso tentar alcançar as várias leituras possíveis. Depois, investir na produção de imagens que representem não apenas as espaciais, mas também as expressões temporais dos contextos ficcionais pretendidos.

Em geral, o que caracteriza a expressão do tempo nas narrativas são a sucessividade e a linearidade – que comumente não encontramos na imagem fixa. Como observa Linden (2011, p. 102), “nada predispõe uma imagem fixa a expressar o tempo”. Nikolajeva e Scott são mais incisivas:

Há dois aspectos essenciais da narratividade que são impossíveis de expressar de modo conclusivo usando apenas signos visuais: a causalidade e a temporalidade, pois o sistema de signos visuais só pode indicar o tempo por inferência (Nikolajeva e Scott, 2011, p. 195).

O recurso para expressar o tempo numa ilustração é a representação de elementos que se desenvolvam nesse tempo. Isso pode ser feito, a exemplo, por meio da representação de ações e movimentos – elementos que estão naturalmente vinculados a um tempo de execução e assim sugerem duração por meio da projeção do sentido no leitor.

Ao olhar para as ilustrações de um livro-imagem, deve ser possível perceber a ocorrência de uma ação, a representação de uma situação que se desenvolve – aquilo que Ciça Fittipaldi chamou de “personagens em devir” (Fittipaldi, 2008, p. 103). Percebendo esse instante, é possível, para o leitor, imaginar um antes e um depois: a conclusão da ação e a duração no tempo são completadas pela criatividade e pela experiência do leitor.

A percepção desse antes e desse depois pode ocorrer numa mesma ilustração. Mas, além disso, há o recurso das imagens em sequência, típico dos quadrinhos mas também presente em outras mídias, como nos livros-imagem. E, finalmente, a exploração do efeito causado pela própria relação entre as páginas. Assim, temos três categorias de análise: a unidade da ilustração, as imagens sequenciais e as relações entre páginas.

O tempo na unidade da ilustração

Analisar a temporalidade na unidade da ilustração quer dizer analisar os elementos expressivos do tempo em cada ilustração separadamente, ocupando uma página ou página dupla.

Figura 2: Página única e página dupla.
Figura 2: Página única e página dupla.

Linden (2011) reconhece três formas de expressar o tempo na unidade da ilustração: por meio do instante movimento, do instante qualquer ou do instante capital.

O instante movimento é uma das formas mais recorrentes de representação do movimento na narrativa visual, pois está intimamente relacionado com a perspectiva mais comum quando se trata de foco narrativo: a perspectiva objetiva (que tem foco na ação, diferentemente da perspectiva introspectiva, cujo foco está nos sentimentos). Ele é o que se pode chamar de “essência” da ação: a representação na ilustração do momento mais característico de um movimento completo – como se um fotograma fosse pinçado de um rolo de filme de cinema.

Essa ilustração, porém, não deve ser como uma simples imagem congelada, mas sugerir um encadeamento, como se reduzisse o tempo de duração de uma ação a um breve momento fugaz (Figura 3) – cuja eficácia depende do conhecimento anterior do leitor (experiências), que completará a ação mentalmente com um antes e um depois. Por isso, conforme Linden, é preciso escolher momentos específicos para serem representados. Os mais eficientes são aqueles que precedem o ponto culminante da ação (Linden, 2011, p. 104).

Figura 3: Representação do instante movimento em <i>O gato Viriato</i>. O pulo do gato, no susto que ele leva, se dá num instante muito breve e é ao mesmo tempo a essência da ação retratada: o susto.
Figura 3: Representação do instante movimento em O gato Viriato. O pulo do gato, no susto que ele leva, se dá num instante muito breve e é ao mesmo tempo a essência da ação retratada: o susto.
Figura 4: Instante movimento em <i>A flor do lado de lá</i>. O salto da anta é retratado no ponto culminante, anterior ao clímax da ação, ou seja, quando ela está no alto, antes de atingir a água.
Figura 4: Instante movimento em A flor do lado de lá. O salto da anta é retratado no ponto culminante, anterior ao clímax da ação, ou seja, quando ela está no alto, antes de atingir a água.

O instante qualquer também traz a sensação de um instante pinçado num continuum temporal (Linden, 2011, p. 103). Porém, ele traz a ideia de um desenvolvimento temporal lento, propondo mais apresentar uma situação do que sintetizar um movimento. Na Figura 5, Roger Mello não sugere uma ação e sim o tempo de contemplação de uma situação. Essa progressão lenta do tempo é ainda maximizada pela carga emotiva da ilustração.

Figura 5: Tempo dilatado e forte carga de emoção em <i>A pipa</i>.
Figura 5: Tempo dilatado e forte carga de emoção em A pipa.

O instante capital, por sua vez, é obtido por meio da fusão, numa única ilustração, de fragmentos pertencentes a momentos diferentes de um mesmo movimento. É uma representação simultânea de várias etapas envolvidas numa mesma ação. O termo capital se refere a essencial: esse tipo de ilustração busca recompor todas as etapas essenciais da ação. Recorrente no fim do século XIX (Linden, 2011, p. 102), esse recurso é no mais das vezes associado a situações de humor e atualmente é de uso quase restrito ao cartum e aos quadrinhos de massa para o público infantil. É sintomático que não haja qualquer exemplo na amostra estudada.

Outro tipo de recurso é a posição dos personagens na página e a sua expressão corporal e facial, muitas vezes nos indicando uma direção para olhar.

Figura 6: Os olhares de todos os personagens representados direcionam-se para a bola, que descreve um movimento, em <i>O próximo dinossauro</i>.
Figura 6: Os olhares de todos os personagens representados direcionam-se para a bola, que descreve um movimento, em O próximo dinossauro.

As linhas de movimento, presentes nos livros-imagem e amplamente utilizadas nos quadrinhos, também permitem acentuar a velocidade ou delinear a trajetória de um movimento.

Figura 7: A bola arremessada pelo lagarto na cabeça do gato descreve sua trajetória com uma linha de movimento, em <i>O gato Viriato</i>.
Figura 7: A bola arremessada pelo lagarto na cabeça do gato descreve sua trajetória com uma linha de movimento, em O gato Viriato.

A observação do comportamento da fotografia quando a velocidade do obturador é inferior à velocidade do movimento, criando uma imagem que se estende como linhas em um borrão, propiciou maior desenvolvimento da técnica, que alcançou seu ápice nos quadrinhos orientais. A técnica de borrar algumas partes das ilustrações é uma alternativa às linhas de movimento e caracteriza-se igualmente por representar velocidade ou direção de uma ação (Figura 8, mas identificável também na Figura 6). Enquanto as linhas são elementos emprestados dos quadrinhos, os borrões são inspirados diretamente nas fotografias de movimento.

Figura 8: A bola agarrada pelo dinossauro descreve sua trajetória e sugere velocidade com um borrão na imagem, em <i>O próximo dinossauro</i>.
Figura 8: A bola agarrada pelo dinossauro descreve sua trajetória e sugere velocidade com um borrão na imagem, em O próximo dinossauro.

Para além das linhas de movimento e borrões, uma técnica bastante interessante é a replicação de um mesmo personagem, em posições distintas, numa mesma imagem. Essa técnica, denominada sucessão simultânea, também segue a tradição das pesquisas artísticas de representação do tempo por meio de uma única imagem empreendidas por Duchamp (Linden, 2011, p. 105), mas pode ter uma raiz bem mais antiga: Nikolajeva e Scott (2011, p. 196) a identificam em elementos presentes nas hagiografias medievais – pinturas em painéis que narravam as histórias dos santos. A inexistência da sucessão simultânea nos livros-imagem de Roger Mello também parece ter relação com o minimalismo dos elementos de suas ilustrações, centradas no que é essencial à narrativa.

Na leitura das ilustrações, seja qual for o tipo de instante retratado ou a técnica de representação do movimento empregada, a decodificação é comumente feita da esquerda para a direita, seguindo o padrão da leitura verbal da sociedade na qual se insere. Esse movimento narrativo convencional também sugere uma progressão espaço-temporal (Figura 9) e, quando é revertido, ou seja, quando apresenta um fluxo da direita para a esquerda, na maioria das vezes vincula-se a um retorno no tempo ou no espaço. Mas, assim como o leitor é livre para traçar caminhos diversos na observação da imagem, o ilustrador tem também a liberdade de romper com os esquemas convencionais, principalmente quando a intenção narrativa exigir: é o que faz Roger Mello em O próximo dinossauro.

Figura 9: Em <i>A pipa</i>, Roger Mello faz a narrativa avançar para o fim com muitas ilustrações em que o protagonista aparece deslocando-se para a direita.
Figura 9: Em A pipa, Roger Mello faz a narrativa avançar para o fim com muitas ilustrações em que o protagonista aparece deslocando-se para a direita.
Figura 10: Em <i>O próximo dinossauro</i>, Mello parece brincar com a ideia de retratar um passado remoto ilustrando todos os deslocamentos para a esquerda.
Figura 10: Em O próximo dinossauro, Mello parece brincar com a ideia de retratar um passado remoto ilustrando todos os deslocamentos para a esquerda.

A expressão do tempo na unidade da ilustração do livro-imagem ocorre ainda em função da duração temporal percebida na imagem – que nada mais é do que a relação entre o tempo “real” da história e o do discurso. Recorrendo à narratologia própria do discurso verbal, Nikolajeva e Scott explicam:

Ela pode ser mais ou menos idêntica, “isocrômica” [isochronical]; em narratologia esse padrão é chamado de cena. Se o tempo da história é mais longo que o tempo do discurso, estamos diante de um resumo. A forma extrema do resumo é uma elipse: o tempo do discurso é zero. [Mas] (…) o tempo do discurso pode ser mais longo que o tempo da história, como nos casos de descrições (…) [Então,] estamos lidando com uma pausa (Nikolajeva e Scott, 2011, p. 218; grifos nossos).

Quando essas categorias são aplicadas a uma narrativa visual, e não verbal, há particularidades. Nikolajeva e Scott relembram o fato de uma imagem fixa conseguir representar, na maioria das vezes, apenas instantes curtos e, nesse sentido, sugerem que seu tempo de história é mínimo, “enquanto seu tempo de discurso é indefinidamente longo” (Nikolajeva e Scott, 2011, p. 218). Isso porque uma imagem é objeto de um tempo indeterminado de observação, podendo ser apreciada minuciosamente até por horas. O seu discurso se dá na espacialidade, mas quanto mais detalhes houver na imagem (informação), mais longo tende a ser o tempo desse discurso (Figura 11). Nesse sentido, seria possível classificar a duração narrativa de uma imagem como uma pausa (Figura 12).

Figura 11: Mais detalhes na imagem, tempo mais longo do discurso.
Figura 11: Mais detalhes na imagem, tempo mais longo do discurso.
Figura 12: Exemplo arquetípico da narrativa visual como uma relação de <i>pausa</i> entre história e discurso. O conjunto de detalhes e expressões que a imagem apresenta ao leitor permite uma duração maior no discurso de um instante que, na história, é bem mais breve: dois cães correndo atrás de um gato. Do livro <i>Viriato e o leão</i>.
Figura 12: Exemplo arquetípico da narrativa visual como uma relação de pausa entre história e discurso. O conjunto de detalhes e expressões que a imagem apresenta ao leitor permite uma duração maior no discurso de um instante que, na história, é bem mais breve: dois cães correndo atrás de um gato. Do livro Viriato e o leão.

Contudo, existem outras formas de duração possíveis mesmo numa narrativa por imagens. Uma ilustração com sucessão simultânea, por exemplo, pode retratar um tempo de história maior do que um instante e, se o tempo do discurso corresponder ao da história, isso conjugará uma cena. Em outro caso, se o tempo retratado na sucessão simultânea for muito longo, como o passar de dias ou anos, o tempo de história irá superar o tempo do discurso, configurando um resumo. Mais à frente, veremos que a elipse, mais do que também presente, é intrínseca aos livros-imagem.

Esses padrões de duração, mesclados e conjugados na unidade de um livro, dão ritmo à leitura das imagens, acelerando e desacelerando quando se faz necessário para a narrativa.

O tempo nas imagens sequenciais

A sucessividade e a linearidade – dois elementos que comumente não encontramos na unidade da ilustração – podem ser alcançadas na representação da narrativa por meio de quadros sucessivos, podendo ser referidas por um mesmo termo: sequencialidade. O termo imagens sequenciais faz referência aos quadros com ilustrações que podem estar distribuídos na unidade da página ou da página dupla, sem quantidade estipulada (Figura 13).

Figura 13: Imagens sequenciais.
Figura 13: Imagens sequenciais.

Quando essa técnica é utilizada em demasia, a diferenciação entre um livro-imagem e uma história em quadrinhos pode apresentar-se um tanto confusa, porque é um recurso intrínseco à linguagem da segunda. As imagens sequenciais são articuladas plástica e semanticamente e cada quadro expressa uma parte da narrativa, que se realiza durante a sequência. Assim, a sucessão e o próprio fluxo de tempo de leitura entre uma imagem e outra transmitem o fluxo do tempo da narrativa, apesar de os quadros fragmentarem o tempo e o espaço.

Figura 14: O salto do pato, na tentativa de voo entre a primeira e a segunda ilustração desta página, é inferido na sarjeta, no espaço vazio que as separa. Não é possível ver o salto, mas presume-se que ele tenha ocorrido. O ilustrador, nesse caso, conta com o leitor como um cúmplice.
Figura 14: O salto do pato, na tentativa de voo entre a primeira e a segunda ilustração desta página, é inferido na sarjeta, no espaço vazio que as separa. Não é possível ver o salto, mas presume-se que ele tenha ocorrido. O ilustrador, nesse caso, conta com o leitor como um cúmplice.

Linden observa que a progressão do tempo surge a partir da ligação de uma imagem após a outra realizada pelo próprio leitor, que é quem insere a continuidade. A expressão do tempo está vinculada a uma ação que não é sugerida por elementos gráficos como linhas de movimento, mas na imaginação de cada leitor, baseada ainda em seus conhecimentos e experiências.

O lapso temporal não é representado graficamente pelo ilustrador, mas é o elemento essencial das imagens sequenciais: ele está na sarjeta – o termo utilizado em quadrinhos para identificar o espaço entre as imagens sequenciais. É nele que está “grande parte da magia e do mistério que existem na essência dos quadrinhos” (McCloud, 2004, p. 66). É no espaço em branco, área de respiro da mancha gráfica entre os quadros, que a imaginação do leitor pode agir para unir as imagens em uma relação inferida, criando a partir daí uma ideia para a narrativa: a sarjeta funciona como a elipse da narrativa visual. Esse recurso foi amplamente utilizado por Roger Mello em O gato Viriato, que, apesar de não possuir molduras delimitando os quadros, recorre a várias técnicas de composição e expressão plástica dos quadrinhos.

A estrutura de apresentação (diagramação) de uma narrativa visual pode seguir um padrão fixo, como nos livros-imagem que contam toda a história numa sequência de grandes ilustrações de página dupla, ou podem variar as formas das imagens apresentadas. Essa liberdade de apresentação abre espaço para uma utilização pontual dos quadros de imagens sequenciais, que podem representar desde a evolução de um personagem numa ação até o avançar do tempo por meio da representação de elementos como relógios e calendários, nascer e pôr do sol, mudanças de estações do ano etc. (Figura 15). Em Viriato e o leão, Mello mescla ilustrações de página dupla, uma só página e quadros sequenciais.

Figura 15: Passagem da noite para o nascer do sol em <i>Viriato e o leão</i>.
Figura 15: Passagem da noite para o nascer do sol em Viriato e o leão.

Há seis tipos de transições de quadros, conforme McCloud (2004, p. 70-72). Momento-a-momento é quando os quadros apresentam uma diferença muito pequena de instantes. Já as sequências com momentos distintos da ação (dois instantes movimentos, por exemplo) são chamadas de ação-para-ação (Figura 16). Quando os quadros apresentam elementos diferentes uns dos outros, mas a sequência permanece no mesmo contexto, temos progressão tema-a-tema. Já na ocorrência de quadros que levam a uma progressão de distância significativa no tempo ou no espaço, temos a sucessão cena-a-cena (Figura 17). A mudança de enquadramento da imagem de um quadro para o outro caracteriza a transição aspecto-para-aspecto (McCloud, 2004, p. 72). E, quando não há nenhuma sequência lógica entre os quadros, ocorre o que é denominado de non-sequitur.

Figura 17: <i>Cena-a-cena</i> em quadros de <i>O gato Viriato</i>.
Figura 17: Cena-a-cena em quadros de O gato Viriato.
Figura 16: <i>Ação-para-ação</i> em quadros de <i>Viriato e o leão</i>.
Figura 16: Ação-para-ação em quadros de Viriato e o leão.

Essas possibilidades de transição dos quadros, quando conjugadas num livro, vão determinar o ritmo narrativo, pois cada uma delas pretende representar o avançar da história com menor ou maior rapidez. Nos livros de Mello, as formas de sucessão de quadros encontradas são a ação-para-ação, que é a mais comum nas revistas em quadrinhos, e a cena-a-cena.

A expressão da ação e do deslocamento no espaço por meio de quadros tem ainda outras formas. Linden (2011, p. 108) mostra que é comum expressar as etapas de uma ação com a repetição de cenários ou pela ausência deles, a fim de enfatizar a temporalidade, e ainda expressar um deslocamento por meio da evolução da figura e do plano de fundo em conjunto, a fim de enfatizar a mudança no tempo-espaço. Porém, uma maneira não tão comum é a segmentação de um mesmo cenário num conjunto de vários quadros, que mantém suas sarjetas, com cada um dos quadros mostrando o personagem numa etapa da ação. A autora chama a atenção para o fato de que essa técnica auxilia na percepção da continuidade e faz a elipse entre as etapas da ação parecer mais tênue, resultando em uma “impressão de fluidez de movimento e temporalidade” (Linden, 2011, p. 109).

Ainda que a função básica da moldura seja delimitar uma imagem em relação à outra, a organização de uma sequência de imagens com variações de molduras – formas e tamanhos – também pode influenciar no ritmo de leitura de um livro-imagem. A transgressão da moldura também é capaz de expressar movimento. Em Viriato e o leão, Mello utiliza esse recurso por três vezes, sempre como representação de um movimento de entrada ou fuga dos quadros.

Figura 18: Nesta imagem, Viriato desce as escadas olhando para trás, convidando o leão a segui-lo para fora do quadro.
Figura 18: Nesta imagem, Viriato desce as escadas olhando para trás, convidando o leão a segui-lo para fora do quadro.

O tempo nas relações entre páginas

Analisar a temporalidade nas relações entre páginas significa compreender a relação entre as várias ilustrações, considerando a oposição entre elas nas páginas par e ímpar e também o próprio virar das páginas, numa análise do conjunto (Figura 19). As imagens associadas apresentam expressões plásticas e semânticas em conformidade, porém seus significados, ações e representações do tempo são mais distantes do que nas imagens sequenciais.

A continuidade narrativa no virar de páginas do livro-imagem envolve técnicas e recursos que, juntos, permitem que a fluidez temporal da história contada não se perca no simples manuseio de uma folha. É interessante notar que a relação entre as páginas duplas ilustradas com grandes imagens é muito semelhante à relação entre quadros de imagens sequenciais, sendo o lapso da virada da página o correspondente direto para a sarjeta entre os quadros – o virar das páginas, em si mesmo, é uma elipse.

Figura 19: Relações entre páginas.
Figura 19: Relações entre páginas.

Linden (2011, p. 78-79) utiliza o termo montagem para tratar da organização da sucessão de páginas duplas, tarefa que a autora associa ao encadeamento de planos na narrativa audiovisual, que origina o termo. A montagem não pressupõe uma continuidade absoluta de uma página dupla à outra para alcançar o encadeamento narrativo. Para que uma página dupla seja compreendida como sequência daquela que a precede e expresse a progressão do tempo na narrativa, basta que haja uma conformidade plástica, a repetição de personagens ou a manutenção de um tema.

Ela identifica duas formas distintas de montagem: uma delas é a vetorização, que ocorre quando a sucessão de páginas representa o encadeamento de ações ou movimentos (Figura 20); a outra é quando a sucessão de páginas apresenta uma reconfiguração total do espaço da página dupla (Figura 21). Portanto, existe uma distinção entre a montagem que apresenta instantes que se sucedem diretamente, como num movimento, e aquela que desenvolve uma sucessão a partir de imagens com maior variação visual, denotando avanços mais longos no espaço-tempo.

                               
Figura 20: Quarta e quinta páginas duplas de <i>O próximo dinossauro</i>. A montagem segue o encadeamento de uma ação.
Figura 20: Quarta e quinta páginas duplas de O próximo dinossauro. A montagem segue o encadeamento de uma ação.
                               
Figura 21: Segunda e terceira páginas duplas de <i>A pipa</i>. A sucessão de páginas apresenta uma reconfiguração total do espaço.
Figura 21: Segunda e terceira páginas duplas de A pipa.
A sucessão de páginas apresenta uma reconfiguração total do espaço.

Criar continuidade entre a frente e o verso de uma página virada é sempre mais difícil do que criar continuidade entre página par e ímpar na unidade da dupla. É comum que os ilustradores concentrem-se em indicar na página ímpar elementos que estimulem o encadeamento narrativo (Figura 22), pois ela tende a ser a primeira página visualizada pelo leitor durante o folhear de um livro. Dentre os vários recursos utilizados, está a representação parcial (cortada) de personagens ou elementos da página dupla seguinte (Figura 23).

Figura 22: Em <i>A flor do lado de lá</i>, a anta aparece na página ímpar em quase todas as duplas. É um elemento recorrente de continuidade da narrativa.
Figura 22: Em A flor do lado de lá, a anta aparece na página ímpar em quase todas as duplas. É um elemento recorrente de continuidade da narrativa.
Figura 23: Segunda e terceira páginas duplas de <i>O próximo dinossauro</i>. A presença de metade do tricerátopo na dupla anterior anuncia a tomada da bola do tiranossauro, representada logo em seguida.
                               
Figura 23: Segunda e terceira páginas duplas de O próximo dinossauro. A presença de metade do tricerátopo na dupla anterior anuncia a tomada da bola do tiranossauro, representada logo em seguida.

Outra técnica é a manutenção de elementos contínuos na sucessão de páginas duplas, como linhas, rios ou ruas. Também há as referências visuais a elementos no extracampo (ou seja, o espaço sugerido para além da moldura da ilustração ou, nas ilustrações sangradas, para fora da própria página) – como um personagem que aponta para algo que o leitor, consequentemente, não tem como ver. Esses e outros recursos, que criam um efeito de suspense, são o que Nikolajeva e Scott chamam de viradores de páginas: um detalhe visual “que encoraja o espectador a virar a página e descobrir o que acontece a seguir” (Nikolajeva e Scott, 2011, p. 211).

O direcionamento de um movimento da esquerda para a direita também pode ser considerado um virador de página. Conforme foi explicitado anteriormente, um personagem representado em um deslocamento que segue o mesmo direcionamento da leitura tem a ilusão do movimento mais facilmente percebida e a apreensão da progressão do tempo privilegiada. Ao virar as páginas, em uma sucessão de elipses temporais, o leitor tem a impressão de caminhar para um objetivo: o final do livro como ponto de chegada. Então, todo deslocamento de um personagem para a direita é favoravelmente interpretado como uma progressão (Linden, 2011, p. 115).

O encadeamento do livro-imagem em páginas duplas se presta a superar a segmentação tradicional do livro como mídia, em páginas únicas. Porém, nem sempre essa segmentação é indesejada: nas narrativas visuais que se desenvolvem por meio da unidade da página, as relações de temporalidade entre página par e ímpar estão ainda mais próximas das existentes entre quadros de imagens sequenciais (Figura 24).

Figura 24: Páginas 1 e 2 de Viriato e o leão.
Figura 24: Páginas 1 e 2 de Viriato e o leão.

A leitura das ilustrações de um livro-imagem é determinante para a expressão do tempo, não importa se a partir de elementos gráficos sugestivos em uma única imagem, ou do encadeamento de imagens sequenciais, ou dos efeitos da sucessão de páginas. A expressão da temporalidade ocorre de todas essas maneiras em conjunto, pois o livro-imagem, plural em suas formas de representação, tem por objetivo final apenas um: contar uma história. O tempo que tenta, por meio de vários recursos, inscrever-se na imagem fixa, é reforçado pelo tempo da apreensão da imagem. Quando o leitor visualiza a sucessão de imagens de um livro, seu processo de interpretação também requer um tempo, mesmo que breve. E é nesse tempo do leitor que o tempo da história ganha vida.

*André Villas-Boas é doutor em Comunicação e Cultura, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisador associado do Programa Avançado de Cultura Contemporânea (Pacc). É autor de Utopia e disciplina e Identidade e cultura, entre outros livros. Thales Estefani é graduado em Comunicação Social, ilustrador e autor da pesquisa original que deu origem a este artigo.


Referências

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