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QUESTÕES NEGRAS

Quando fomos convidadas por Heloisa Buarque de Hollanda e Beatriz Resende para organizar um número da revista Z Cultural sobre “Questões negras”, pensamos nas diversas dimensões que o tema poderia sugerir. E entendemos que, para além daquilo que afeta direta e especificamente os afro-brasileiros na contemporaneidade, “Questões negras” são também os questionamentos que a “comunidade negra” levanta para gente de todas as cores. Questões de justiça e desigualdade, certamente, mas também questões de produção cultural e valor. Elas são de interesse para brancos e negros, negras e brancas.

Assim, nossas discussões nos levaram a querer fazer uma revista que falasse do trânsito destas questões no cinema, na educação, na filosofia, na música popular, nas cidades. Trânsito de bola de bilhar que muda trajetórias, muda de trajetória. É neste sentido que trazemos textos de grandes pensadores da identidade negra, como Milton Santos, que em entrevista rememorou sua formação inicial, e Stuart Hall, em uma conferência em que investiga por que não conseguimos nos livrar do suposto fundamento biológico de “raça”.

Também estão aqui textos de pessoas que observam a paisagem em que as questões negras aparecem: Renato Noguera, conectando o drible à filosofia; Katia Santos, sobre a negritude do mundo do carnaval; Marcia Contins sobre as religiões afro-brasileiras no Rio de Janeiro e sua trajetória de pesquisa; Maria Carolina Godoy sobre as qualidades da escritora negra Conceição Evaristo; Rosângela Araújo, a Mestre Janja, sobre a epistemologia da capoeira; e uma entrevista com o cineasta Joel Zito Araújo que discute sua experiência com o cinema, o racismo e o gênero. As questões negras nunca são estanques. Embora muitas vezes sua discussão se confina a especialistas, elas extravasam. O mesmo ocorre com questões feministas. Para tirar estas do gueto, publicamos um texto de Angela McRobbie, que conecta gênero e feminismo à raça, pós-colonialidade e valores “pós-feministas”.

Nós, as organizadoras, somos todas pesquisadoras ligadas ao Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC) da UFRJ. Temos interesses, posições e visões diferentes sobre as questões negras. Só uma das quatro é negra. Nossas formações profissionais também não são as mesmas: há uma antropóloga, duas da área de Letras, uma de Comunicação. Mas trabalhamos em harmonia, cada uma fazendo o máximo para publicar textos que possam instigar o público leitor – o que esperamos ter conseguido. As hierarquias acadêmicas não nos serviram para decidir como assinar esta nota editorial, pois cada uma ocupou um papel diferente e fundamental. Por isso, preferimos assinar como se fôssemos um grupo vocal:

As organizadoras
(Liv Sovik, Katia Santos, Maria Carolina Godoy, Patrícia Farias)

Tempo de leitura estimado: 27 minutos

Abrindo a roda: conhecimentos que gingam

Rosângela Costa Araújo*

Um corpo refletido, desbanalizado, aceito, amado. Um corpo que sutura temporalidades recursivas, ancestrais… que olha, escuta, percebe, contempla e a partir disto luta, em si, pelo momento seguinte…pelo amanhã. Um corpo angoleiro!
Um saber de alegre erudição, da escuta, da espera, da construção do desejo, da procura. Um saber saber-se no grupo, no mundo, pertencendo a redes de solidariedades, de conflitos, de transformações. Um saber pela participação, vivenciado. Um saber argumentado na holonomia das individuações, do mistério, da magia. Um saber angoleiro!
Um(a) mestre(a): o(a) mágico(a). O(a) catalisador(a). Um caminho de resignificação mitológica. Organizador do ritual. Elo palpável na cadeia de pertencimento. Um(a) formador(a) de discípulos(as), um(a) discípulo(a). Um(a) educador(a) angoleiro(a)!
O jogo. O mundo. O(a) companheiro(a). O(a) adversário(a). A roda.
Um círculo angoleiro! (Araújo, 1999).

Apresentar os múltiplos sentidos e o alcance da Capoeira Angola é um exercício de articulação dos elementos que a constituem: ancestralidade, corporeidade, processo de aprendizagem, o jogo, a arte, a roda e o mundo. Para satisfazer esse desafio, cabe retratar um campo de conhecimento, detentor de um sistema formativo peculiar e também educacional conhecido por capoeira.

Do lado de cá da capoeira, o(a) educador(a) é reconhecido como mestre(a); sendo que o grupo a que ele pertence — enquanto um espaço de trocas permanentes, dinâmico e maleável — também deve ser percebido enquanto tal. Do lado de cá, o(a) educando(a) é reconhecido enquanto discípulo(a) e, na relação com o(a) mestre(a) e seu grupo, simbioticamente constituem-se capoeiristas. Esse relacionamento, que se inicia com a vontade de aprender seguida pela identificação do(a) mestre(a) com quem se quer aprender, envolve sedução, entrega, confiança, sentimento de pertença e lealdade.

Os(as) que se permitem a essa iniciação, afirmam estar em busca da “filosofia de vida”. E, neste estágio, embora não compreendam todos os elementos que compõem a capoeira, já a reconhecem através da comunidade (grupo de capoeira) escolhida para o seu (des)envolvimento. Para além da filosofia da capoeira, a escolha do(a) mestre(a) e do grupo está atrelada tanto aos rigores disciplinares inerentes a sua prática, quanto aos aspectos relativos ao posicionamento social abrangente, seja na esfera individual, seja na coletiva.

Tendo em foco a relação mestre(a)-discípulo(a), pode-se dizer que nela são encontradas grandes e importantes proposições no campo da educação. Nesse sentido, sai da roda o conhecimento seriado e modular, em face de um processo que prima pelo conhecimento através do autoconhecimento. Compartilhando do pensamento junguiano de que “compreender é compreender-se diante do texto”, a capoeira estabelece e revela relações baseadas na construção e gestão coletiva do conhecimento e na ruptura com conceitos de temporalidade como requisito para sua compreensão.

Sobre essa questão, podemos afirmar que, por se tratar de um espaço de construções coletivas, o processo de aprendizagem de capoeira é permeado por distintas marcações do tempo, muito por conta do aspecto corporal que a compõe. Nele, tem-se consciência de que a relação de troca e de crescimento estabelecida é para a vida toda, não existindo etapa ou graduação que defina o seu término. Assim, em um grupo de capoeira todos aprendem, objetiva e subjetivamente, com um(a) mestre(a) que também ensina aprendendo: “cada qual é cada qual”, diz Vicente Ferreira Pastinha, o Mestre Pastinha (1988-1981).

É com base nesses (e em outros) fundamentos que a capoeira e os(as) capoeiristas definem e apresentam as suas formas de educar. Na roda, são elementares os vários caminhos, além dos limites da capoeira, sejam coletivos ou individuais: o domínio da técnica, que é baseada em uma complexa movimentação corporal, sustentada pelo respeito e pela relação com o outro no jogo; o estudo dos instrumentos essenciais à prática, sua fabricação, uso musical e manutenção; os significados e sentidos histórico-filosóficos da capoeira, que exprimem uma (sua) cosmovisão e sua forma de interagir com outros mundos.

Os estudos sobre capoeira vêm ganhando cada vez mais espaços nas pesquisas independentes e acadêmicas, em diversos países. Essa ampliação acompanha o surgimento e o desenvolvimento de uma “comunidade internacional da capoeira”, que também se manifesta através do que se conceitua como uma economia da capoeiragem, através da qual são ofertados e consumidos livros, revistas, filmes, discos, shows, instrumentos, moda-vestuário, calçados, dietas, adornos, tatuagens e, sobretudo, eventos. A economia da capoeira possibilita e colabora com o trânsito da capoeira no cenário internacional, agora em dimensões transcontinentais.

Apesar da ausência de fonte estatística atualizada, precisa e confiável, estima-se que, no Brasil, existam cerca de oito milhões de praticantes (ou iniciados), estando a capoeira em mais de 160 países, em todos os continentes[1]. A internet é uma ferramenta que demonstra e propagandeia a internacionalização da capoeira através dos milhares de sites, blogues, ou das informações compartilhadas pelas redes sociais. Por meio dela, pesquisas (sejam científicas ou não) tornam-se possíveis, onde os(as) interessados(as) podem encontrar informações sobre os grupos, seus feitos, “estilos” de capoeira[2], artigos, biografias, bibliografias, discografias, entre outras.

Outra importante questão em torno da capoeira diz respeito ao seu (aparente) enquadramento enquanto um novo campo de atuação profissional, no qual formação e trabalho aparecem de modo combinado. Num estudo anterior, questionamos como os estilos de capoeira se constituem enquanto campos de trabalho voltados para um novo tipo de trabalhador(a), nos quais se encontram interligadas, para fins de qualificação profissional, a questão racial, de gênero, o território e a formação escolar, como também questões relacionadas a cada um dos estilos de capoeira (Araújo, 1994). Para melhor dimensionar esse ponto, cabe recordar que a capoeira somente deixou de ser considerada uma contravenção a partir do Código Penal de 1940.

Numa perspectiva fenomenológica — a capoeira, ao ser informada pelos sentidos, sofre transformações nas experiências de consciência — a percepção acerca dos seus diversos sentidos (para além dos significados de cada movimento, de cada toque, de cada canto) e seu alcance vão sendo construídos ao longo do processo de amadurecimento da pessoa como capoeirista. Com isso, desvela-se a possibilidade de se compreender a capoeira enquanto um texto coletivo e público, o qual é escrito e reescrito cotidianamente. Por isso, reconhece-se o sentido da ginga muito além da sua compreensão de um movimento básico da capoeira. Ela é percebida como atitude e escolha diante das problematizações em torno das quais, muitas vezes, se evidencia a própria construção da identidade de ser angoleiro(a), tanto na sua forma narrativa (aceitação, acomodação), quanto no seu conteúdo do mito-poético, corpóreo, ritualizado frente à perspectiva de validação e atualização do mito fundante: a linhagem.

Reconheçamo-la também em sua função educativa, percebendo a capoeira como uma pedagogia articulada às identidades no contexto societário hegemônico. Nesse sentido, é possível identificar a existência de sujeitos que: a) ao se dizerem/perceberem educadores, organizam-se em torno de outros modelos “societais” (identitários) não hegemônicos; b) adotam, enquanto dimensões pedagógicas, a ancestralidade, a organização coletiva e a solidariedade, de modo a instituir e fortalecer o sentimento de pertença ao grupo com o qual se quer crescer; c) apontam para a inoperância do modelo oficial de ensino (redes públicas e particulares), que estigmatiza, silencia, distorce e se mantém apático a práticas excludentes e discriminatórias, fortalecendo, entre outros, o racismo, o sexismo e a homofobia; d) se relacionam com a ancestralidade, de forma a estabelecerem cadeias invisíveis de “presentificação” do passado e do futuro, geridas no trato da espiritualidade ou da espiritualização do cotidiano, em suas múltiplas formas; e) desenvolvem ações formativas baseadas nos debates sobre as representações, não apenas como prática cultural, mas como prática política, possibilitando uma maior visibilidade aos direitos específicos, bem como lutando para o seu cumprimento.

Os(as) mestres(as) de capoeira integram uma categoria de educadores culturais forjada no contexto das relações raciais e sociais mais amplas, que se estabelece sob as bases da (in)formalidade e permeia novas relações de produção, a qual serve para defini-los enquanto mestres(as).

Através de uma razão marginal, projetada nas interfaces das relações de poder, aberta e não contraditória (não isto ou aquilo, mas isto e aquilo), a capoeira institui uma lógica polivalente (ou polilógica) potencializada e inclusiva (Galeffi, 2011), rompendo com a razão fechada, contraditória à própria escolha do gingar.

Sob o paradigma do permanente movimento, a contradição não está na realidade, mas no pensamento sobre ela, indicando, muitas vezes, conflito entre duas proposições que são igualmente demonstráveis. Uma delas diz respeito à realidade, que possui elementos antagônicos e não contraditórios. De causalidade probabilística e não determinista/mecanicista, a própria ginga figura como representação dessa polilogicidade, incorporada através do acolhimento do corpo do outro diante do qual se ginga. Daí faz-se presente a recursividade do espelho que, sempre infiel, vai tecendo os infinitos trânsitos de aceitação e rejeição sobre as imagens projetadas e apreendidas.

Na roda, os(as) angoleiros(as)[3] ainda vivenciam sentimentos também antagônicos na sua relação com o outro — adversário(a) ou companheiro(a)? — e com o próprio jogo: luta-se com ou contra alguém? As respostas aqui produzidas também podem sinalizar para a maneira como pensam e lidam com o surgimento de um outro estilo de capoeira mais recente, conhecida como Capoeira Regional[4].

Para os(as) angoleiros(as), os critérios adotados pela Capoeira Regional produziram o deslocamento das bases de resistência cultural africana para a cultura hegemônica, assegurando à capoeira o status de esporte, como um tipo de luta marcial. Esta concepção está assentada no estabelecimento de um projeto de nacionalização (folclorização) e de embranquecimento cultural, cujas ações políticas mantiveram algumas características do modelo de racismo existente no Brasil, entre elas a cooptação e descaracterização da própria capoeira.

O mito fundante de cada estilo, seja na Capoeira Angola ou na Capoeira Regional, referencia as representações de si (sujeito/grupo), alimentando, no imaginário compartilhado da pertença coletiva, o entendimento sobre essas próprias representações, a despeito de estarem localizadas no domínio da fantasia ou do desenvolvimento intelectual, uma vez que entre um e outro se fixam espaços de recursividades. Isso torna possível, inclusive, a evidência do duelo de valores (colaboração versus competição, coletividade versus individualidade etc.), interno e externo aos estilos e mesmo nas disputas entre estes. A definição estética do próprio jogo evidencia a escolha política sobre tais valores. Esse imaginário, conector dessas representações não lineares da capoeira, é também o espaço de codificação dos dinamismos sociais, em que se pensam relacionados tanto a vida social quanto as manifestações culturais e suas relações de poder. Na Capoeira Angola, a figura e os ensinamentos do Mestre Pastinha têm peso relevante nas escolhas dos signos (e suas ritualizações) entre aqueles que se identificam enquanto seus(suas) seguidores(as), independentemente de o terem conhecido.

Isso mostra como o imaginário subjaz ao sentir, ao agir e ao ser, conduzindo a perenidade mitológica enquanto matriz do sistema filosófico da capoeira. Ao conceber o imaginário como um conjunto de imagens inter-relacionadas (constelações), que definem o “capital pensado”, fica perceptível a sua função organizadora no/do cotidiano, tido como espaço privilegiado de compreensão da sociedade abrangente (Durand, 1989).

Na formação da Capoeira Angola, a pequena roda é definida como local de treino e prática de elementos diversos, que se fazem corporais numa leitura de simultâneos encantamento/desencantamento e rivalidade/aceitação. Essas questões são direcionadas para a grande roda, como sendo o lugar de trânsito desses conhecimentos, suturando, igualmente, a aceitação e a rejeição acerca da realidade vivida. É na pequena roda (grupo) que são aprendidos os elementos da capoeira e na grande roda (sociedade mais ampla) que esses conhecimentos os(as) constituem enquanto capoeiristas.

Como a atuação na pequena roda e na grande roda é orientada pela cosmovisão africana, ou seja, pelo fundamento do dendê, o compartilhamento do espaço de criação coletiva rompe com a lógica da competitividade produtivista, em benefício da celebração da vadiagem. Nesse sentido, a roda não deve ser compreendida tão somente como um espaço de decisões, mas também de riscos, testes e improvisos. E o jogo de capoeira também deve ser compreendido como um jogo infinito, que não acaba. Por se tratar de um “diálogo de corpos”, muitas vezes uma “resposta” a uma “pergunta” corpórea realizada pode levar anos para se concretizar.

Ousar um projeto político que integre qualidade de vida: este é o fio condutor das escolhas das pessoas que optaram pela Capoeira Angola e suas práticas de resistência e filosofia ladina[5].

Muitas das linguagens com as quais se tece o cotidiano da capoeira são marcadas por um alto grau de organicidade e hierarquização, os quais caracterizam seus ensinamentos. Na busca das conexões entre o figurado e o real, percebe-se uma obscuridade que ainda envolve o próprio tema, na medida em que se aproxima do caráter iniciático dessa tradição, sobretudo na relação que se estabelece entre mestre(a) e discípulo(a).

Algumas categorias de análise do cotidiano propostas por Maffesoli (1985), como “grandes formas” que privilegiam a experiência coletiva (sociabilidade), explicam alguns elementos da capoeira através dos quais se manifestam situações habituais que asseguram identidades de base e resistência. Na capoeira, a aceitação da vida conforma-se através da repetição de uma temporalidade circular, que relativiza os acontecimentos e fomenta a permanência no jogo, como busca constante pelo crescimento. Com isso, aprende-se a não fechar o jogo, de modo a não esgotar as possibilidades de “fala” com quem se joga. A espera por um novo momento, com outros capoeiristas e em uma roda diferente pode significar a continuidade do aprendizado em questão.

Pelo viés da duplicidade, consagram-se as máscaras e se posicionam os personagens do jogo. Eles envolvem os elementos importantes no processo da ritualização, da descontinuidade e da aceitação do presente na capoeira, através da teatralidade e do espetáculo, reestruturando uma espécie de jogo social em que se personifica a chamada “identidade de camaleão” (Goffman, 1975).

Na constância dessas reelaborações, o silêncio e a astúcia seguem produzindo as brechas em que novos nichos[6] são firmados como forma de resistência. Neles, os afrontamentos baseiam-se em laços sociais afetivos e na ambiguidade básica da estruturação simbólica, o que permite a coesão do grupo e a partilha fraterna de valores, lugares e ideias.

Agora tornam-se possíveis alguns questionamentos acerca do sistema formativo-educacional que a capoeira constitui: qual o sentido educativo desse sentimento de pertença e que transformações ele opera nos sujeitos capoeiristas? Como é possível a difusão dos aspectos formativos das tradições e dos saberes populares no âmbito dessas unidades sociais dinâmicas, uma vez que as pessoas envolvidas não são, necessariamente, o sujeito negro e pobre da capoeira de outros tempos? Como compreender a capoeira e suas formas de produção, apreensão e apropriação do conhecimento, através da dimensão corpórea dos modelos societais africanos ou afro-brasileiros?

A opção por identificar as insuficiências estruturais diante dos avanços tecnológicos e nos contextos das pluralidades culturais e identitárias pode nos aproximar daquilo que Morin (1996) chamou de “revolução na história do saber”, reconhecendo como insatisfatório tanto o conhecimento do especialista, marcado pela fragmentação e esoterização do conhecimento científico, como o do não-especialista, já que este renuncia, prematuramente, à tarefa de refletir (ou sistematizar sua reflexão) sobre seu mundo e sua vida.

Mestre Pastinha recusava-se a conceituar a Capoeira Angola, comportamento que se justificava frente à sua percepção ampliada sobre seus múltiplos sentidos e seu alcance, visto como incompatíveis com qualquer tipo de enquadramento. Sobre a questão, foi enfático: “Capoeira Angola, capoeira-mãe. Mandinga de escravo em ânsia de libertação. Seu princípio não tem método e o seu fim é inconcebível ao mais sábio capoeirista.”

Por não existir um consenso sobre o uso dado ao termo capoeira, somente ao desbanalizá-lo é que se torna possível percebê-la como uma potência, enquanto um espaço de poder. Seus fundamentos indicam que, tanto a rotina, quanto os acontecimentos são essenciais para a sua criação.

Dessa forma, por trás da recusa por tratá-la através de “outras” epistemologias, busca-se reafirmar saberes como os da capoeira que, ao serem reconhecidos no mundo em que foram formulados, exigem, minimamente, a descolonização das ideologias que incidem sobre a hierarquização destes saberes. A ação dos grupos sociais (a exemplo das organizações de Capoeira Angola) e os debates no interior da Universidade colaboram com esse propósito e necessitam ser ampliados. Carecem, ainda, de uma cumplicidade política em torno do entendimento desses campos formativos que, de acordo com o ensinamento de Paula Carvalho (1990), organizam o real e se constituem em práticas educativas; e, na medida em que a educação aparece como prática basal, promovem a sua interação com as demais práticas simbólicas. É assim que a Capoeira Angola, a partir dos seus elementos histórico-filosóficos, tem o desafio de repensar suas práticas simbólicas pelo prisma do antirracismo e, mais recentemente, também pelo não sexismo.

A ima(r)gem — imagem fora dos traçados hegemônicos (marginal), advinda das matrizes africanas do sujeito-capoeirista — permeia sua própria pertença e os aspectos tradicionais de suas escolhas, mais que distanciando os sujeitos, reposicionando-os em face do caráter subversivo dos valores hegemônicos. Sob esse prisma, o(a) sujeito-capoeirista é envolvido(a) numa perspectiva holonômica, integral, produtora de múltiplas linguagens poéticas, constitutivas de mitos individuais e coletivos e que podem conduzir a novas abordagens do próprio conhecimento científico. Entre elas, destaca-se a valorização da palavra falada (oralidade), que estabelece um complexo sistema de comunicação, transcendente-recursivo aos sentidos biopsíquico e socioculturais.

Na tentativa de inter-relacionar o privilegiado campo da tradição oral afro-brasileira com as áreas da comunicação e da educação, “suspeita-se” que os aspectos iniciáticos dessas tradições constituem o entorno do homo-symbolicus, base de uma hermenêutica criadora. No que tange à capoeira, pode-se afirmar que os cantos e os seus improvisos manifestados na roda, apresentam aspectos relevantes das relações sociais, denunciando desigualdades e apontando a necessidade de sua superação, acentuando sempre o poder e a força do grupo, da organização:

Quem nunca viu, venha ver
Licuri quebrar dendê.
Quem nunca viu, venha ver
Venha ver para aprender.

Na canção acima, exemplo típico do universo metafórico dos cantos da capoeira, observa-se uma tentativa de demonstrar as diversas possibilidades de intervenção sobre as instituições, produzindo-lhes fissuras e estabelecendo novos campos de negociação. De certo modo, essa postura associa novas formas de comunicação à prática dos(as) antigos(as) griôs e griôas africanos(as), presentes em vários registros das culturas africanas[7].

Independentemente do conteúdo real das construções ima(r)ginais narradas nos cantos da capoeira, suas reflexões e concepções transcendem o próprio enquadramento temporal e territorial, alargando-os. Com isso, percebe-se que o conteúdo ensinado é compreendido num universo de significações que é, no tempo/espaço, único para cada sujeito-capoeirista. No que tange às discordâncias entre mestre(as) e discípulos(as), na forma de pensar ou de agir, elas podem ser relegadas a um plano secundário, enquanto existir sentido e interesse na relação instituída. Se a escuta é o início de tudo, também o fim da relação dialógica de aprendizado pode advir por uma fala em momento indevido, o que não se deseja que aconteça:

Menino quem te matou?
Foi a língua meu senhor.
Eu te dava era conselho
Que pensava ser ruim
E eu sempre te dizendo
Inveja matou Caim, camarada…

Nas canções, também estão presentes os meios pelos quais os(as) mestres(as) orientam e apresentam os requisitos para a continuidade da relação com aquele que deseja aprender. No processo, mostra-se fundamental que o(a) discípulo(a) perceba as várias fases do aprendizado e o tempo de cada uma delas, as quais possuem um caráter individualizado, subjetivo, subversivo, misterioso:

Olha lá siri de mangue
Todo o tempo não é um,
A certeza que tu não “guenta”
Com a presa do guaiamum.
Maré de março,
Maré de guaiamum,
Entre grandes e pequenos,
Não me escapa um,
Siri tá se vendo doido
Nas garras do guaiamum, camaradinha…

Partindo da compreensão do mundo ima(r)ginal enquanto corporificação dos espíritos e espiritualização dos corpos, localiza-se, entre o mundo das ideias e o mundo dos sentidos, a iniciação nos fundamentos da capoeira. Nesse processo, suas linguagens contemplam os elementos invariantes do comportamento humano (arquétipos), cujos desdobramento refazem o terreno desses seres capazes de simbolizar os sentidos de suas próprias existências através da vivência e da aceitação, individual e coletiva, de “quem é de dentro da roda”. Muitas vezes, essas construções se fizeram a partir da reapropriação (pelos negros, pelos capoeiras) de conteúdos jocosos e discriminatórios, transformando-os em poderosa arma através do uso de linguagem não disponível a todos e que, por isso, assusta, amedronta e afasta:

Queba la mi cumugê
Ê macá…

Os versos dessa canção espelham como a compreensão acerca da Capoeira Angola e seus enredos somente pode ser perfeitamente alcançada pelos “de dentro” da roda. Nos versos reside uma das estratégias de sustentação do mistério em torno do conhecimento angoleiro: o uso abreviado de palavras da língua portuguesa como forma própria de comunicação. No exemplo, a tradução da letra é “quebra milho como gente, ê macaco…”.

Voltando-se para o senso de sobrevivência dos povos negros no processo civilizatório brasileiro, a constituição de uma alma ladina, ardilosa, evidencia um plano de negociação entre o sujeito-capoeirista e os grupos sociais dominantes (Reis, 1989).

Nos cenários urbanos da sociedade brasileira contemporânea – palco singular de apreensão das margens como sumário de um conflito – onde o desemprego é (re)produzido de maneira implacável, assim como o desalento e a desesperança, frente ao mundo formalizado pelos avanços tecnológicos grande parte dos(as) jovens de extratos sociais mais vulneráveis busca encontrar na vivência em meio às organizações de capoeira não apenas um status que lhe assegure certo tipo de destaque junto às suas comunidades. Mais que isso, esses jovens buscam compartilhar prazeres, crenças, sentimentos, afetos, conquistas e dignidade:

Ó meu Deus, o que é que eu faço
Para viver neste mundo
Se ando limpo, sou malandro
Se ando sujo, sou imundo
Ó que mundo velho e grande
Ó que mundo enganador
Eu digo dessa maneira
Meu mestre que me ensinou
Se não falo, sou calado
Se falo, sou falador, camará…

Mais que afirmar ou negar, ser mestre(a) significa a própria aventura do aprender, transportando as linguagens da pequena roda para a grande roda. Daí, reforça-se uma pré-compreensão ontológica do imaginário, através da percepção da ima(r)ginalidade. Nesse sentido, autoidentificar-se (e também autodistinguir-se) aguça e dá sustentação às diversas oposições constitutivas do(a) capoeirista.

Iê, maior é Deus, pequeno sou eu,
O que eu tenho, foi deus que me deu
Na roda de capoeira
Grande e pequeno sou eu, camará…

Considerando o fato de os(as) mestres(as) atingirem elevada posição de respeito e credibilidade perante seus grupos e, muitas vezes, além dos limites de suas próprias comunidades, ganha relevância uma reflexão acerca dos sentimentos (muitas vezes conflituosos) e das seduções que os acompanham durante a sua trajetória.

Sobre essa questão, é importante considerar que os modelos de resistência dos povos negros no Brasil, os quais primaram pelo estabelecimento de planos de “negociação”, deram às organizações de caráter artístico e/ou religioso papeis de destaque na luta antirracista, alcançando, em sua relação com a sociedade abrangente, aceitação e repulsa. Os sujeitos e as coletividades envolvidos nesses modelos de sociabilidade obtiveram êxito em suas estratégias e conseguiram, a seu modo, desmistificar a existência de uma democracia racial, além de evidenciarem a precariedade da democracia política e a inexistência de uma democracia social no Brasil.

Em que pese todas as questões articuladas em torno da Capoeira Angola, ainda se evidencia a necessidade de sua compreensão para além da dimensão atlético-corporal. É preciso acentuar os aspectos do conhecimento estético dessa vivência e dos processos metodológicos das africanidades no Brasil, de modo a reconhecer no âmbito da sua prática, esse outro campo de conhecimento simbólico, em que também as relações da sociedade abrangente estão representadas, ainda que por outras gingas.

Como um campo de conhecimento, a Capoeira Angola aparece como uma das formas de resistência negra, caracterizada por uma prática inovadora de organização dos grupos, bem como por modelos diferenciados de atração e de garantia da permanência dos indivíduos[8] no processo de “iniciação”. O compartilhamento das tradições que a integram (seja no campo da espiritualidade ou no dos elementos corporais/musicais da sua prática), bem como as reflexões promovidas acerca delas, acentua a importância de se estabelecerem pontes com as inovações da modernidade. “Dendê” e “internet” mostram-se igualmente sedutores e essenciais, constituindo-se como elementos que contribuem com as estratégias de continuidade do sujeito-capoeirista e do próprio grupo, promovendo o fortalecimento de ambos.

Na Capoeira Angola, a ancestralidade e a individuação (ainda no pensar jungiano) ganham contornos mais nítidos, dialogando com a percepção simbólica que o sujeito tem de si, do mundo, de si no mundo, do mundo em si. Tudo isso ganha reforço no próprio corpo do capoeirista, dando-lhe originalidade e erudição.

A vivência da capoeira conforma-se através de um ritual que, ao mesmo tempo em que se caracteriza pela repetição dos fazeres cotidianos, também é marcado pelo desvelar constante de novos significados advindos do que aparenta ser uma mesma ação.

É certo que a cosmovisão africana — principalmente no campo da narrativa mitológica, no qual reside uma constelação de símbolos — possibilitou à capoeira que extrapolasse a condição do rito pelo rito e alcançasse, através do corpo e da corporeidade, múltiplas e polissêmicas linguagens, constituindo uma pedagogia marcada pelo desejo, pelo olhar e pela escuta. Assim é que o suporte corporal, expressado na ginga e nos vários movimentos da capoeira, promove um (re)encantamento das estórias individuais dos capoeiristas e do próprio grupo a que eles integram, em detrimento de aspectos da história hegemônica e da lógica bipolarizada, o que possibilita, no presente, que diversos mitos africanos sejam identificados e revividos, colaborando com o seu resgate e memória (Carvalho, 1980).

Através da capoeira e do seu jogo ainda é possível uma metamorfose do ego, através do processo de individuação (sujeito-capoeirista), acentuado pela sensibilidade mito-poética. Nesse sentido, ao se optar pela Capoeira Angola para os fins desta análise, além da apresentação de seus aspectos sociopolíticos, é demonstrado o seu potencial de esclarecer um mito coletivo que flui e é revelado no imaginário enquanto conjunto das imagens simbólicas, orientadoras da sociabilidade dos grupos.

Adeus, adeus, adeus, ah!
Vou me embora com as ondas do mar,
Vou me embora pelas ondas do mar
Vou me embora mas eu sei que vou voltar…

 


* Professora Adjunta da Universidade Federal da Bahia (UFBA), é mestra fundadora do Instituto Nzinga de Estudos da Capoeira Angola e Tradições Educativas Banto no Brasil (INCAB). Graduada em História pela UFBA, fez mestrado e doutorado em Educação na Universidade de São Paulo (USP). Entre as suas publicações sobre capoeira, encontram-se: Bases filosóficas da “escola” pastiniana (2005); O brasileiro é tão angoleiro quanto eu (2005); A África e a afrodescendência: um debate sobre a cultura e o saber (2003).

[1] Dados estimados a partir dos números produzidos pelo Ministério dos Esportes quando da realização do Congresso Nacional Unitário da Capoeira, São Paulo, 2000.

[2] Refere-se à Capoeira Angola e Capoeira Regional. Particularmente, não reconheço outras denominações sobre os hibridismos a partir das “misturas” desses dois estilos.

[3] Forma de tratamento às pessoas iniciadas tanto na Capoeira Angola quanto no candomblé da nação Angola.

[4] Criada pelo baiano Manuel dos Reis Machado (Mestre Bimba), por volta de 1932.

[5] Termo muito comum na historiografia sobre a escravidão para se referir aos negros libertos, tidos como boçais e espertos.

[6] Espaços de refúgio implicados na existência de uma solidariedade orgânica.

[7] Griôs (do francês griot) e griôas (feminino aportugesado do griô) faz referência a antigos(as) mestres e mestras das tradições africanas e afro-brasileiras que pela oralidade garantem a existência de muitos conhecimentos e práticas desses saberes (Niane, 1982).

[8] Importante considerar que a vivência da capoeira não é mais uma exclusividade de homens e de negros.

Referências:

ARAÚJO, Rosângela C. Tradição e educação entre os angoleiros baianos (Anos 80-90). Dissertação de Mestrado. FEUSP. 1999

ARAÚJO, Rosângela C. Profissões Étnicas: A profissionalização da capoeira em Salvador. In: Bahia, análise & dados. Salvador, CEI/SEPLANTEC, vol. 3, no. 4, pp. 30-32, 1994.

CARVALHO, Paula, et al. Antropologia das organizações e educação: um ensaio holonômico. Rio de Janeiro: Imago, 1990.

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Raça, o significante flutuante

Stuart Hall
Tradução de Liv Sovik, em colaboração com Katia Santos*

Mesmo que alguns considerem um tanto tarde, quero voltar à questão do que queremos dizer, quais são as implicações de dizer — como fiz no título bastante provocador desta palestra — que raça é uma construção discursiva, um significante deslizante. Afirmações desse tipo já têm certo prestígio nos círculos avançados da crítica hoje em dia, mas está claro que críticos e teóricos nem sempre querem dizer a mesma coisa nem tiram as mesmas conclusões dessa afirmação. Além disso, a ideia de que raça possa ser entendida como significante não é, na minha experiência, algo que tenha atingido com profundidade, e nem tenha sido eficaz em desarticular ou desalojar, o que eu chamaria de pressupostos do senso comum e formas cotidianas de falar de raça e de produzir sentido sobre raça na sociedade de hoje. E estou falando, em parte, do mundo grande, bagunçado e sujo no qual raça importa, fora da Academia, e não só da luz que podemos, a partir da Academia, lançar sobre ela.

O mais sério é que não foram adequadamente mapeados ou avaliados os efeitos deslocadores de se pensar raça como significante, sobre o mundo da mobilização política em torno de questões de raça e racismo, ou sobre as estratégias da política e da educação antirracistas.  Bem, talvez vocês não estejam persuadidos ainda, mas essa é minha desculpa por voltar neste momento tardio a esse tópico, mesmo sabendo que muita gente acha que, afinal, tudo de útil que poderia ser dito sobre raça já foi dito.

A rejeição “formal” do racismo biológico

O que quero dizer com “significante flutuante”?  Para falar em termos bem genéricos, raça é um dos principais conceitos que organiza os grandes sistemas classificatórios da diferença que operam em sociedades humanas. E dizer que raça é uma categoria discursiva é reconhecer que todas as tentativas de fundamentar esse conceito na ciência, localizando as diferenças entre as raças no terreno da ciência biológica ou genética, se mostraram insustentáveis. Precisamos, portanto —  diz-se —  substituir a definição biológica de raça pela sócio-histórica ou cultural[1]. Como resumiu o filósofo Anthony Appiah em algum momento: “…É hora do conceito biológico de raça ser afundado sem deixar rastro”. W. E. B. Du Bois, o grande pensador e escritor afro-americano, não tão conhecido no Reino Unido quanto deveria, escreveu sobre essas questões um texto maravilhoso e tocante intitulado As almas da gente negra [2]. Em outro texto, um ensaio intitulado A conservação das raças, fala do que chama de “… as diferenças de cor, cabelo e osso”  que — ainda comentou —, “embora sejam claramente definidas para o olhar de historiadores e sociólogos” —, coisa boa, porque existem muitas coisas que sociólogos não enxergam, mas ele achava que a diferença racial fosse algo que eles mais ou menos conseguiam distinguir —  “… que tais coisas são de maneira geral de baixa correlação com a diferença genética e, por outro lado, impossíveis de serem correlacionadas significativamente com as características culturais, intelectuais ou cognitivas de um povo.” Além da extraordinária variação existente dentro de uma mesma família, principalmente qualquer unidade chamada “família de raças”.

A sobrevivência do pensamento biológico

Quero pontuar quatro coisas simultaneamente, sobre essa posição geral.  Primeiro, ela representa o que já é de senso comum entre cientistas proeminentes nesse campo.

Em segundo lugar, esse fato nunca impediu que estudiosos consagrassem uma atividade intensa, por uma minoria de acadêmicos comprometidos, à tentativa de provar a correlação entre características genéticas vinculadas a racialidades e desempenho cultural. Noutras palavras, não estamos lidando com um campo no qual, digamos, o fato reconhecido científica e racionalmente impede os cientistas de continuarem tentando provar o oposto.

Em terceiro lugar, noto que, embora as implicações racializadas deste trabalho científico permanente sobre o tema, por exemplo, sobre raça e inteligência, sejam clamorosamente condenadas por grande número de pessoas, certamente pela maioria de profissionais liberais e sobretudo por grupos negros de todos os tipos, de fato, grande parte do que é dito por esses mesmos grupos entre si é baseado em premissas desse mesmo tipo, por exemplo, de que um fenômeno social, político ou cultural — como a correção de uma linha política, ou os méritos de uma produção literária ou musical, ou a adequação de uma atitude ou crença — pode ser atribuído ou explicado e sobretudo fixado e garantido em sua verdade pela identidade racial da pessoa envolvida.

Deduzo da intensa atividade de pesquisa a lição incômoda de que posições políticas opostas muitas vezes derivam do mesmo argumento filosófico. E embora a explicação genética do comportamento social e cultural seja frequentemente denunciada como racista, as definições genéticas, biológicas e fisiológicas de raça passam bem, obrigado, nos discursos de senso comum de todos nós. O fato é que a definição biológica, fisiológica e genética de raça, convidada a se retirar pela porta da frente, tende a dar a volta e retornar pela janela.

Esse é o paradoxo que quero explorar e discutir a seguir. Por que é assim?

O distintivo de raça

Em um artigo na revista Crisis de agosto de 1911, Du Bois muda decisivamente seu discurso para escrever sobre “civilizações onde hoje podemos falar de raças”, acrescentando que “mesmo as características físicas, incluindo a cor da pele, são resultado direto, em medida considerável, do ambiente físico e social. Além disso, são indefinidos e fugazes demais”, ele afirma, “para servirem como base para qualquer origem, classificação ou divisão de grupos humanos”. Agora, baseado nesse reconhecimento em Dusk of Dawn, sua autobiografia, o autor abandona a definição científica de raça em prol do fato de que ele escreve sobre africanos, e que africanos e afrodescendentes têm o que chama de ancestralidade racial em comum porque — é importante notá-lo — “têm uma história em comum, sofreram um mesmo desastre e têm uma única e longa memória de desastre”. Porque a cor, embora pouco significativa em si, é importante — Du Bois afirma — “como distintivo da herança social da escravidão, da disseminação e do insulto dessa experiência.”

Um distintivo, uma insígnia, um signo? Aqui está a ideia, preconizada no título de minha conferência, de que raça é um significante, e que o comportamento e a diferença racializados devem ser entendidos como fato discursivo e não necessariamente genético ou biológico.

Raça como linguagem, um “significante flutuante”

Não quero desviar de meu caminho e entediá-los com um longo tratado teórico sobre os termos que estou usando, mas simplesmente lembrá-los que o modelo que está sendo proposto aqui está mais próximo do funcionamento de uma linguagem do que do funcionamento de nossa biologia ou de nossas fisiologias. E que raça se assemelha mais a uma linguagem do que à nossa forma de constituição biológica. Talvez pensem que é uma coisa absurda e ridícula, talvez até estejam olhando em volta para terem certeza de que suas aparências estejam funcionando bem. Garanto que estão. As pessoas são meio esquisitas, algumas marrons, outras bastante pretas, algumas até, com esta luz, repugnantemente rosadas. Mas não há nada de errado com suas aparências. Mesmo assim, quero defender que raça funciona como uma linguagem. E os significantes se referem a sistemas e conceitos da classificação de uma cultura, a suas práticas de produção de sentido. E essas coisas ganham sentido não por causa do que contêm em suas essências, mas por causa das relações mutáveis de diferença que estabelecem com outros conceitos e ideias num campo de significação. Esse sentido, por ser relacional e não essencial, nunca pode ser fixado definitivamente, mas está sujeito a um processo constante de redefinição e apropriação. Está sujeito a um processo de perda de velhos sentidos, apropriação, acúmulo e contração de novos sentidos; a um processo infindável de constante resignificação, no propósito de sinalizar coisas diferentes em diferentes culturas, formações históricas e momentos.

Não é possível fixar o sentido de um significante para sempre ou trans-historicamente.  Ou seja, há sempre um certo deslizamento do sentido, há sempre uma margem ainda não encapsulada na linguagem e no sentido, sempre algo relacionado com raça que permanece não dito, alguém é sempre o lado externo constitutivo, de cuja existência a identidade de raça depende, e que tem como destino certo voltar de sua posição de expelido e abjeto, externo ao campo da significação, para perturbar os sonhos de quem está à vontade do lado de dentro.

Como dar conta da realidade da discriminação e da violência raciais?

Dirijo-me a essa questão diretamente porque acredito que é aqui que os mais céticos entre vocês estão começando a pensar: “Tudo bem, dá para dizer talvez que raça não seja, afinal, uma questão de fatores genéticos, biologia, características fisiológicas, morfologia do corpo, não é uma questão de cor, cabelo e osso”, esse trio pavoroso que Du Bois elenca tantas vezes. Entretanto, talvez digam: “Você está mesmo afirmando que raça é um simples significante, um signo vazio, que não está fixado em sua natureza interna, que seu sentido não pode ser assegurado, que flutua em um mar de diferenças relacionais? É esse o seu argumento? E não seria esta não só errada, mas também uma abordagem leviana[3] e” — ouço a palavra sendo murmurada no público — “idealista de fatos crus da história humana, que afinal de contas deformaram as vidas e aleijaram e constrangeram o potencial de literalmente milhões de despossuídos do mundo? E depois, por que não usar a evidência diante de nossos olhos? Se raça fosse um negócio tão complicado, por que ela estaria evidente de forma tão manifesta aonde quer que olhemos?”

Preciso dizê-lo novamente porque percebo o sentimento de alívio — depois de darmos umas voltas por essas diversas estruturas discursivas — ao chegarmos ao que todos nós sabemos sobre raça: sua realidade. Dá para ver seus efeitos, dá para vê-la nos rostos das pessoas à sua volta, dá para ver as pessoas se remexendo quando pessoas de um outro grupo racial entram na sala. Dá para ver a discriminação racial funcionando nas instituições, e assim por diante. Para que toda essa algazarra acadêmica sobre raça, quando você pode apenas voltar-se para a sua realidade?

Que caminho através da história é mais literalmente marcado pelo sangue e a violência, pelo genocídio da Middle Passage, os horrores da servidão nos engenhos e a forca improvisada?  Um significante, um discurso?  Sim, esse é o meu argumento.

Duas posições: a realista e a textual

Já que não estamos preocupados aqui com a crítica teórica abstrata e sim com uma tentativa de abrir os segredos do funcionamento de sistemas raciais de classificação na história moderna, permitam-me voltar à questão de como observamos esse funcionamento em torno da preocupante questão acerca das diferenças grosseiras de cor, osso e cabelo, que constituem o substrato material, o denominador comum absoluto e final dos sistemas raciais de classificação. Quando todos os demais refinamentos foram apagados, parece haver um resíduo de diferenças que são palpáveis nas pessoas, as quais chamamos de raça. De onde será que vieram, se são simplesmente, o que estou tentando afirmar, discursivas?

Em termos gerais, entendo que há três opções aqui. Primeiro, podemos alegar que as diferenças de tipo fisiológico ou de natureza realmente fornecem base para que classifiquemos as raças humanas em famílias. Quando se comprova que conseguem fazê-lo, podem ser representadas de forma adequada em nossos sistemas de pensamento e linguagem. Essa é uma posição realista: está aí, e só falta refletir de forma adequada sobre o que está lá fora no mundo, nos sistemas de linguagem e conhecimento que utilizamos para conduzir investigações sobre seus efeitos.

Uma segunda possibilidade é a posição chamada muitas vezes de puramente textual ou linguística. Raça é, aqui, um sistema autônomo de referência. Este não pode ser testado contra o mundo efetivo da diversidade humana, só dentro do jogo do texto e do jogo de diferenças que construímos na nossa própria linguagem.

Uma terceira posição: o discursivo

Existe uma terceira posição, à qual me filio. Essa terceira posição é a de que existem diferenças de todo tipo no mundo, e que a diferença é um tipo de existência anômala por aí, uma série randômica de todo tipo de coisa que a gente chama de mundo e não há motivo para negarmos essa realidade ou essa diversidade. Acho que é o que Foucault às vezes, mas nem sempre, chama de extra-discursivo. Mas estou em Goldsmiths e não quero provocar os foucaultianos… Apenas quando essas diferenças foram organizadas dentro da linguagem, dentro do discurso, dentro dos sistemas de sentido, é que podemos dizer que as diferenças adquiriram sentido e se tornaram fatores da cultura humana e da regulação de condutas — essa é a natureza do que estou chamando de conceito discursivo de raça. Não é que as diferenças não existam, mas sim que o que importa são os sistemas que utilizamos para dar sentido a elas, para tornar as sociedades humanas inteligíveis; os sistemas que cotejamos com as diferenças, a forma como organizamos essas diferenças em sistemas de sentido com os quais, de alguma maneira, fazemos com que o mundo nos seja inteligível. E isso nada tem a ver com negar que — como digo, o teste do público — se você olhar ao redor vai descobrir que, realmente, temos aparências diferentes uns dos outros.

Acho que esses sistemas são discursivos porque o jogo entre a representação da diferença racial, a escrita do poder e a produção do conhecimento é crucial para a maneira em que foram gerados e funcionam. E uso a palavra “discursivo” aqui para marcar teoricamente a transição de uma compreensão mais formal da diferença para uma compreensão de como as ideias e conhecimentos da diferença organizam as práticas humanas entre os indivíduos.

Religião: uma primeira tentativa de classificação radical

Os sistemas de classificação racial têm uma história. Sua história moderna emerge onde povos de tipos muito diferentes têm que fazer sentido como povos de uma outra cultura, significativamente diferente. Podemos datar o momento desse encontro histórico. Quando o Velho Mundo encontrou os povos do Novo Mundo, ele colocou uma questão, a famosa questão que Sepúlveda fez a Las Casas no debate no interior da igreja católica, a questão da “natureza dos povos que encontramos no Novo Mundo.” Não disseram, como os mais religiosos entre vocês gostariam de pensar, “São ou não são homens como nós e nossos irmãos? Não são elas mulheres como nós e nossas irmãs?” Não, não disseram isso, demorou muito para isso acontecer — dois ou três séculos antes do movimento abolicionista colocar essa questão. Não, o que disseram foi: “São homens verdadeiros?” Isto é, pertencem à mesma espécie que nós ou nasceram de outra criação? E aqui durante séculos não era a ciência, mas a religião o significante do conhecimento e da verdade, no lugar onde as ciências humanas, e depois a ciência como tal, estava destinada a ficar mais tarde, para fundamentar a verdade da diferença humana e da diversidade em um fato controlável, que definia que o lado deles era lá, e o nosso aqui; eles nos navios e nós no topo da civilização que conquistamos e etc.

Dormir melhor: a função cultural do conhecimento

Organizar pessoas em diversos grupos sociais, de acordo com suas diferenças, é para isso que serve o ato da classificação humana. É isso o que se procura — primeiro através de um discurso religioso, depois antropológico e, finalmente, em um discurso científico. Aqui, cada um desses conhecimentos está funcionando não como provimento da verdade, mas como aquilo que tranquiliza os homens e as mulheres e os deixa dormir melhor. São chupetas, chupetas de conhecimento que se coloca na boca; primeiro coloca-se a chupeta religiosa e espera-se que, no final das contas, Deus tenha criado dois tipos de homens, tenha feito duas tentativas — num fim de semana, depois noutro, e eles estavam lá e nós estávamos cá, e só muito tempo depois a gente acabou topando uns com os outros. Mas não há qualquer ideia de que viemos do mesmo lugar. E essa chupeta não funciona, você a tira e coloca outra: e em termos antropológicos, eles dizem: “Bem, são parecidos conosco, porque todo mundo vem dos macacos mas alguns são mais próximos dos macacos do que a gente” e embora não haja uma diferença absoluta, você sabe que isso é suficiente para encontrar diferenças, nos departamentos universitários, na publicação de artigos etc. E, finalmente, quando a própria antropologia por fim desiste, logo aparece James Clifford, que desiste desse tipo de conhecimento sobre o que a antropologia consegue fazer, separar as ovelhas das cabras. E aí vem a ciência e diz: “Eu consigo, eu sei fazer. Tente a genética.” Você não enxerga a genética, é um sistema maravilhoso, interno, não fazemos ideia do que seja, podemos vê-lo no laboratório — mas os seres humanos não o veem, o que veem são os efeitos da operação do código genético. Assim, é um código maravilhosamente secreto que apenas um número pequeno de pessoas têm ao seu dispor, que faz o que a religião[4] não conseguiu e a antropologia afinal acabou fracassando em fazer. Ele consegue dizer por que essas pessoas não são do mesmo campo, por que são diferentes umas das outras, e por que são realmente de outra espécie. E não seria bom saber que em vez de tentar descobrir se os que são seus amigos são mais próximos de você do que aqueles que não o são, todo aquele mapa complexo de alianças e etc. que constituem as relações humanas — não seria legal se você pudesse dizer algo simples como: “Vou dar um pulo no laboratório e depois lhe digo se eles são próximos ou não.” É isso que a genética consegue fazer.

Fixando a diferença: a função cultural da ciência

A ciência tem uma função, uma função cultural, em nossa sociedade. Vou parar antes que eu vá longe demais. Não estou sugerindo que a ciência não tem substância. Estou falando da função da ciência dentro dos sistemas culturais humanos. Estou falando da função cultural da ciência e que essa função, nas linguagens e discursos do racismo, tem sido precisamente a de dar garantia e certeza da diferença absoluta que nenhum outro sistema de conhecimento até então tinha conseguido prover. É por isso que o traço científico permanece um instrumento tão poderoso no pensamento humano, não só na Academia, mas em toda parte do discurso do senso comum das pessoas.  Durante séculos, se lutou para estabelecer uma diferença binária, entre dois tipos de pessoa. Mas quando chegamos ao Iluminismo, que diz ou reconhece que somos todos de uma mesma espécie, foi preciso encontrar uma maneira de marcar a diferença dentro dessa espécie e não entre duas espécies — porque uma parte da espécie é diferente: mais bárbara, atrasada ou civilizada do que a outra parte. E você se depara com uma marcação diferente da diferença, a diferença que é marcada dentro do sistema. Vejam como Edmund Burke escreveu para o historiador William Robertson em 1777: “Não precisamos mais recorrer à história”, afirmou, “para traçar o conhecimento da natureza humana em todas as suas fases e períodos. Por quê? Porque agora o grande mapa da humanidade está todo na estrada e não há estado ou gradação de barbárie ou modo de refinamento que não esteja simultaneamente sob nossa vista.” Este é o olhar panóptico do Iluminismo: tudo, toda a criação humana está, por assim dizer, sob o olho da ciência. E, neste âmbito, é possível marcar as diferenças que realmente importam. E quais são? “As civilidades muito diferentes da Europa e da China; a barbárie de Tartary e da Arábia; e o estado selvagem da América do Norte e da Nova Zelândia.” Meu argumento não diz respeito à ciência em si, mas ao que estiver no discurso de uma cultura que fundamenta a verdade sobre a diversidade humana, que abre o segredo das relações entre natureza e cultura, que desata o nó enigmático da diferença humana que importa. O que importa não é que contenham a verdade científica sobre a diferença, mas que funcionem como fundamento do discurso sobre a diferença racial. Fixam e estabilizam o que de outra maneira não haveria como ser fixado ou estabilizado. Asseguram e garantem a verdade das diferenças discursivamente construídas.

Natureza = cultura

Então, a relação aqui é que a cultura é feita para ser um ato contínuo da natureza, ela se apoia na natureza para se justificar. A natureza e a cultura operam como metáforas uma para a outra. Operam metonimicamente. É a função do discurso, e de raça como significante, fazer com que ambos os sistemas — natureza e cultura — correspondam um ao outro, de maneira que uma possa ser lida através da outra. Assim, uma vez que se saiba onde uma pessoa cabe na classificação das raças humanas naturais, é possível inferir daí o que provavelmente pensam, o que sentem ou produzem, a qualidade estética de suas produções, e assim por diante. A função de raça como significante é constituir um sistema de equivalências entre natureza e cultura.

Exige-se o traço biológico como sistema discursivo na medida em que os sistemas raciais tenham a função de essencializar, de naturalizar, essa maneira de tirar a diferença racial da história, da cultura, e localizá-la para fora do alcance da mudança.

Ver é crer

No entanto, esse não é, a meu ver, o único motivo pelo qual o raciocínio biológico, enquanto funciona como se fosse largamente falso, ainda permanece na conversa quando falamos de raça. Esse não é o único motivo. O ponto de partida de Du Bois era precisamente as diferenças mais grosseiras de cor, cabelo e osso.

Apesar do fato de que permanecem anômalos às populações, transcendem a definição científica, são os que, afinal, provêm o fundamento das linguagens que usamos no cotidiano para falar sobre raça: os fatos físicos grosseiros, que teimam em existir, de cor, cabelo e osso. Ora, a questão central sobre essas diferenças físicas grosseiras é que elas não estão baseadas na diferenciação genética, mas são claramente visíveis a olho nu. São absolutamente, evidentemente, indisputavelmente presentes. São a diferença visível. São, para o olho não científico, o que faz com que raça seja um assunto que continuamos discutindo. São os fatos brutos, físicos e biológicos que aparecem no campo de visão humano, onde ver é crer.

Frantz Fanon foi arrebatado por essa inscrição da diferença racial na superfície do corpo negro: o que ele chamou de evidência escura e inquestionável de sua própria negritude. Em Pele negra, máscaras brancas (2008[1952]) ele disse: “Sou um escravo não da ideia que outros têm de mim mas de minha própria aparência, sou fixado por ela.” Pois o que pode transfixar as pessoas mais do que aquilo que é poderoso, evidente e concretamente presente? Uma diferença racial que se inscreve indelevelmente na escritura de um corpo? Mesmo assim, quero argumentar que acontece aí um jogo de significantes.

Genética: produzindo sentido com a diferença

De onde surgem esses signos evidentes e visíveis de diferença racial? Cabelo crespo, nariz largo, lábios grossos, traseiros grandes. E, conforme o escritor francês Michel Cournot o expressou com delicadeza, “pênis do tamanho de catedrais”. O que dá origem a tudo isso, claro, é o código genético. Porque essas coisas não estão simplesmente presentes. Já tentaram fazer uma triagem de um conjunto de pessoas que apresentem algumas dessas diferenças, separando-as em dois grupos discretos e opostos? Isso é impossível de ser feito. É impossível. Algumas pessoas ficam em um polo, outras noutro, e depois há um grupo no meio que fica deslizando para dentro e para fora. Não é possível fixá-lo. Assim, embora raça seja claramente o que você vê, o que a fixa é o que todos sabemos, nós da área científica. O que lhe dá respaldo é o código genético, o qual lamentavelmente não se consegue enxergar. Mas é possível inferir sua existência a partir do fato de que algumas pessoas têm traseiros grandes e outras cabelos crespos, e alguns têm narizes largos e alguns, como dizem, têm o pênis do tamanho de uma catedral. Mas não dá para organizar a população — sabe, dizer “abaixe as calças” e lhe digo se você é isto ou aquilo — porque a coisa é anômala demais. Mas se pode ter certeza de que, geneticamente, um pedaço de código deu origem a essas diferenças no nível da superfície das aparências[5]. E nós, pobres mortais, temos que trabalhar com essa superfície das aparências porque não temos acesso ao código genético.

Ler o corpo

“Tudo bem”, vocês devem estar dizendo, “isso pode ser verdade, mas o que você está dizendo, de fato, é que essas coisas que são visíveis também são significantes! Você as está lendo como signos em um código que não dá para ser visto,  presumindo que é o código genético que produz essas diferenças grosseiras de cor, cabelo e osso. E que só por causa disso é que podemos usá-las como uma forma de fazer distinção entre um e outro grupo de pessoas.” Se eu disser, “aconteceu por acaso”, não é a resposta que procuramos. Procuramos entender o fato de que você consegue ler o corpo como se fosse um texto. Ele é um texto. Agora, meus amigos, sei que vocês vão dizer, “Se você me bater, me cortar, eu vou sangrar. Se me atropelar na rua, como acontece frequentemente aqui em New Cross, vou me machucar. Então, não me diga que sou um texto.” Talvez seja verdade, mas na medida em que estamos falando do sistema de classificação de diferenças, o corpo é um texto e somos todos leitores dele. E circulamos, olhando esse texto, inspecionando-o como críticos literários cada vez mais de perto para ver as diferenças mais refinadas, as tão sutis diferenças de metáfora. E quando isso não funciona começamos, como verdadeiros estruturalistas, a fazer uso das combinações. “Bem, com um permanente, sabe, um nariz não tão largo, com cabelos um pouco crespos, e se tenho um traseiro grandinho e sabe Deus mais o quê, talvez eu chegue a uma aproximação.” Somos leitores de raça, isso é o que está rolando. Somos leitores da diferença social. E o cabelo é citado como se fosse definitivo, como se pusesse fim à discussão. “Você diz que raça é um significante, mas não é, não. O pessoal lá é diferente, dá para perceber que são diferentes!” Bem, essa obviedade, a própria obviedade da visibilidade de raça, é o que me convence de que isso funciona, porque isso está significando algo: é um texto que conseguimos ler.

Por que precisamos ir além da “realidade”

E agora, então, essa noção de que até o código genético é impresso em nós através do corpo, e não sobre o corpo, e de que não se pode parar na superfície do próprio corpo negro como se isso desse um fim à discussão. Mas é exatamente por isso que o corpo é invocado no discurso dessa maneira: na esperança de que ele encerre o assunto, de que se você invocar a própria realidade, se você disser, “a pessoa mais preta nesta sala, venha comigo”, como se a possibilidade de apontar essa pessoa destruísse meu argumento. É só olhar: “Olhe, ali!” É exatamente essa a função de invocar o corpo como o último significante transcendental, como se ele fosse o marcador além do qual todos os argumentos são suspensos, toda linguagem cessa; como se todo discurso fosse derrubado diante dessa realidade. Acho que não podemos nos desviar da realidade de raça porque a própria realidade de raça é o obstáculo que nos separa de uma compreensão mais profunda do sentido de dizer que raça é um sistema cultural.

Analisar as histórias do corpo

Já disse que Fanon, no ensaio Pele negra, máscaras brancas, é arrebatado e obcecado pelo trauma de sua própria aparência e do que isso significa. Fica enlouquecido por estar preso e trancado em um corpo que o outro, o outro branco, conhece só de olhar para ele, que esse outro vê através dele ao ler o texto do corpo negro. Está obcecado com esse fato. E, no entanto, como vocês sabem, a potência e importância de Pele negra, máscaras brancas é que Fanon entendeu que por debaixo do que ele chamou de esquemas corpóreos está outro esquema. Um esquema composto de histórias e anedotas e metáforas e imagens que é o que na realidade constrói a relação entre o corpo e seu espaço social e cultural. São essas histórias e não o fato em si. O fato em si é precisamente a cilada da superfície, que nos permite descansar no que é óbvio, no que está presente de forma manifesta, o que nos é oferecido como sintoma da aparência. Aquilo que assume o lugar do que de fato é, um dos sistemas culturais mais profundos e complexos que nos permitem distinguir entre dentro e fora, entre nós e eles, entre quem pertence e quem não pertence.

Esse fato aparentemente simples, óbvio e banal requer a invocação de territórios de saber para que este seja produzido como fato simples, óbvio e banal. Nesse sentido, a diferença racial é mais parecida com a diferença sexual do que outros sistemas de diferença, precisamente porque a anatomia, a fisiologia, parece resolver a questão. O que sabemos e aprendemos, aos poucos, sobre a diferença sexual, isto é, a profundidade das questões por trás da produção dessa distinção, é o que precisamos começar a aprender sobre as  linguagens que usamos para falar de raça.

Por que importa? combatendo o racismo

Embora o conceito de raça não possa desempenhar a função que lhe é solicitada — prover a verdade fixando-a sem sombra da dúvidas — é difícil livrar-se dele porque é muito difícil para as linguagens sobre raça funcionarem sem qualquer tipo de garantia fundacional. O que estou dizendo aqui, sobre essa necessidade, não é um argumento teórico, ou não apenas. É um argumento político, porque tanto a política de raça quanto a de anti-raça estão fundadas na noção de que de alguma maneira, em algum lugar, seja através da biologia, ou da genética, ou da fisiologia, da cor, ou algo que não seja a história e cultura humanas, há uma garantia da verdade e autenticidade das coisas nas quais acreditamos e que queremos fazer. É a busca da garantia, tanto na política antirracista quanto na política racista, que nos vicia na preservação do traço biológico. É difícil abrir mão dele porque, no final das contas, não sabemos como seria tentar conduzir uma política, sobretudo uma política antirracista, sem garantias. Não sabemos como conduzir a política sem garantia.  Queremos de alguma maneira que algo nos diga que as opções políticas contingentes em aberto e usualmente erradas que fazemos podem, no final, ser lidas a partir de uma template mais científico-teórica que, se a tivéssemos conhecido de antemão, nos teria dito o que estava certo ou não. Precisamos de garantia, precisamos, no sono da razão, de algo que nos diga “Sim, façam-no”. Não só por nos dar a sensação de ser, e nos parecer ser, a coisa certa, até onde nossos cálculos alcançam, mas também porque ao final será a coisa certa, existirá algo que a tornará certa. Isso porque as pessoas que defendem as mesmas coisas, afinal, são as pessoas que você conhece, são boas pessoas. Como é que pessoas que se juntaram em torno dessa forma comum de identificação podem estar erradas? Mas a verdade é que podem, como todos os seres humanos comuns. Todos podemos estar errados, e muitas vezes estamos. De fato, normalmente estamos, e dá para afirmar que nossa política quase sempre o é. A única coisa que não somos é detentores de garantias da verdade do que fazemos.

De fato, acredito que sem esse tipo de garantia teríamos que recomeçar[6]. Recomeçar em um outro espaço, com um conjunto diferente de pressupostos para tentar nos perguntar o que é na identificação humana, na prática humana, na construção de alianças humanas que — sem as garantias e certezas da religião, ou da ciência, antropologia, genética, biologia, ou da aparência diante de nossos olhos —, sem qualquer garantia, poderia nos possibilitar a condução de um discurso e de uma prática humanos eticamente responsáveis sobre raça em nossa sociedade. Como seria conduzi-lo, sem ter às nossas costas um toque de certeza, mesmo que parecêssemos estar errados, se tivéssemos acesso ao código, algo que tivesse nos dito o que fazer, desde o início?

E esta é uma verdade incômoda. É incômodo, claro, para os que gostariam de poder invocar os traços biológicos ou genéticos como forma de suspender o debate. Mas também é uma verdade muito difícil de ser encarada pelas pessoas que sentem que a “realidade de raça” dá uma espécie de garantia ou sustentação a seus argumentos políticos, juízos estéticos e crenças sociais e culturais. Quando adentramos a política do fim da definição biológica de raça, mergulhamos de cabeça no único mundo que temos: o abismo do debate e da prática políticos permanentemente contingentes e sem garantias. Uma política crítica contra o racismo, que é sempre uma política da crítica.


* Este texto é uma conferência proferida por Stuart Hall em 1995 em Goldsmiths College — University of London e reproduzida em documentário por Sut Jhally © Media Education Foundation, 1996. Está disponível na íntegra, em inglês, ilustrada por fotos e diagramas, no YouTube. Começa no minuto 6’40” da parte 2 do documentário Race, the Floating Signifier, disponível em: www.youtube.com/watch?v=SIC8RrSLzOs&list=PL9DB8464B43CFAC14

* Stuart Hall, nascido na então colônia da Jamaica em 1932, migrou para a Inglaterra em 1951.  Preocupou-se desde cedo com questões pós-coloniais e questões ligadas ao racismo. Dirigiu o Centre for Contemporary Cultural Studies, da University of Birmingham, e o Departamento de Sociologia, da Open University, até se aposentar em 1997. Presidiu por muitos anos os conselhos do Institute of International Visual Art (www.iniva.org) e Autograph-ABP (anteriormente a Association of Black Photographers) www.autograph-abp.co.uk.

* Liv Sovik é professora da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO-UFRJ) e organizadora da coletânea de Stuart Hall, Da diáspora (Editora UFMG, 2003).

Katia Santos é pesquisadora independente, tradutora, escritora e autora do livro Ivone Lara, a dona da melodia.

[1] Início da parte 3: www.youtube.com/watch?v=BI-CwR8pCcY&list=PL9DB8464B43CFAC14

[2] Du Bois, W.E.B.  As almas da gente negra. Trad. Heloísa Toller Gomes. Rio de Janeiro: Lacerda Ed., 1999.

[3] Início da parte 4: www.youtube.com/watch?v=rYGeqryELXk&list=PL9DB8464B43CFAC14

[4] Início da parte 5: www.youtube.com/watch?v=OVjmbDbnJKo&list=PL9DB8464B43CFAC14

[5] Início da parte 6: www.youtube.com/watch?v=GeD6awgSHGU&list=PL9DB8464B43CFAC14

[6] Início da parte 7: www.youtube.com/watch?v=vRRQ2KSBeyA&list=PL9DB8464B43CFAC14

Tempo de leitura estimado: 58 minutos

Duas entrevistas: Milton Santos e Joel Zito Araújo

Um intelectual brasileiro educado para o mando: uma conversa com Milton Santos

Entrevistadoras: Azoilda Loretto da Trindade e Katia Santos*
Introdução e edição: Katia Santos

No dia 23 de junho de 1998 fui com minha colega Azoilda Loretto da Trindade a São Paulo para entrevistar o intelectual Milton Santos. Queríamos ouvir o que ele teria a dizer sobre educação, pois à época pensávamos em organizar uma publicação sobre a trajetória educacional de pessoas negras famosas no Brasil. Acreditávamos que seria interessante saber como um cidadão tão singular no contexto brasileiro percebia sua própria trajetória educacional até vir a ser o intelectual que se tornara. Nós o encontraríamos na Universidade de São Paulo, seu local de trabalho.

Chegar à USP não foi uma tarefa simples. Aliás, nada que passa pela Rodoviária Novo Rio é simples. Ou melhor, as pessoas que a frequentam são na sua maioria simples, mas o ambiente é um tanto complexo. E assim, enquanto aguardávamos o horário do nosso ônibus, um senhor muito simples sentou-se ao meu lado e logo contou-me sua triste história. Ele estava há dias tentando chegar em casa, em outro município, mas não tinha dinheiro porque o patrão o enganara. Comovida com tão tocante caso, dei-lhe alguns trocados. Mas pensei que certamente ele precisava de mais ajuda. Cutuquei Azoilda, que estava sentada ao meu lado, e fiz com que ela também fizesse algo por aquele homem tão necessitado. Como não concordava com o valor que ela oferecia olhei-a com ar reprovador e a fiz aumentar o valor da ajuda. Até hoje não consigo lembrar do momento em que o homem recebeu a nossa doação. Ele desapareceu tão rápida e faceiramente que não deu nem para vê-lo rindo-se de nós. Duas mulheres simples, que ainda caem no conto do vigário das rodoviárias da vida. Essas mesmas mulheres estavam indo para a Universidade de São Paulo para entrevistar um renomado geógrafo que era também um intelectual consagrado. Conseguimos com isso aumentar nossa ansiedade. E demos boas gargalhadas também, claro.

Ao chegarmos à rodoviária de São Paulo, descobrimos que caíra como uma bomba no local a notícia de que o cantor de música sertaneja Leandro acabara de falecer. Havia muita gente paralisada e comovida diante da TV exposta na rodoviária. As pessoas estavam simplesmente comovidas, tristes. Não tivemos como não nos sentirmos tristes, também. Eram tão de verdade a tristeza e compaixão à nossa volta que acabamos nos deixando levar por aquela dor coletiva.

Mas ao chegarmos à USP percebemos logo que o mundo dos simples havia ficado para trás. Como boas persistentes, enrijecemos nossos estômagos e seguimos adiante. E assim também nos travestimos da couraça necessária à intimidante missão de tentar colher uma entrevista original com uma das pessoas mais entrevistadas do meio intelectual/acadêmico. Falamos primeiro com a secretária e logo em seguida fomos recebidas pelo Dr. Milton Santos. E assim voltamos ao mundo dos simples.

Milton Santos: o importante geógrafo brasileiro sempre conectado à dimensão simples da vida.
Milton Santos: o importante geógrafo brasileiro sempre conectado à dimensão simples da vida.

Ao longo de nossa conversa ficamos totalmente encantadas com o cidadão que nos falava de coisas tão sérias e doloridas de forma articuladamente simples. Foi comovente vê-lo falar, para a minha surpresa, do falecido pai da Azoilda com o afeto dos que falam dos saudosos amigos. Era a tradição familiar afro-baiana se encontrando na USP, e de forma muito inusitada. Parodiando o próprio Milton Santos, poderíamos dizer que era a África, uma vez mais, colorizando a Europa, só que agora por vontade própria e por uma necessidade premente.

Enquanto fazíamos a entrevista, bateu à porta uma senhora negra, bem simples, que tinha vindo esvaziar a lata de lixo. Ela entrou se desculpando por estar interrompendo. É mesmo interessante ouvi-la dizer, na gravação, “com licença, professor, desculpe incomodar, obrigada”; e o professor na sua educação de homem de boas maneiras e admirador das gentes simples responder naturalmente, como quem sabe que aquela mulher negra simples existe, apesar de ser ele uma pessoa importante e que estava sendo entrevistada em seu escritório na USP: “obrigado a você, não é incômodo algum”. Diante de tal quadro, mais uma vez, Azoilda e eu nos tornamos as simples do momento. Empolgamo-nos, emocionamo-nos, e calamo-nos para ouvi-lo. E sem as suas interlocutoras, só lhe restou nos incentivar: “Vamos, perguntem. Desafiem-me, eu gosto de ser desafiado.” Fizemos o melhor que a situação e o tempo permitiam e despedimo-nos do nosso entrevistado como quem se despede de um parente muito querido.

Infelizmente não conseguimos publicar a entrevista enquanto ele ainda vivia – Milton Santos faleceu em 24 de junho de 2001. Ouvir a gravação da entrevista anos depois de sua morte foi voltar àquele dia, àquele escritório, àquele sorriso de Zezé Mota. A sensação de perda foi ainda maior. Só nos restava, então, fazer uma edição do texto transcrito de forma que ficasse retratada a atmosfera do nosso encontro. O tempo dessa entrevista foi totalmente marcado pela presença dos simples, das coisas simples, que podem nos atirar em dilemas bastante complexos. É assim que o apresentamos aqui, em uma conversa amigável, sobre temas complexos, doloridos, polêmicos, e às vezes divertidos, também. Tudo muito simples e estimulante.

Katia Santos – Vamos começar falando de sua história de vida, e a partir daí o senhor conduz como achar melhor.

Azoilda Trindade – Nesta nossa conversa entra um pouco da minha própria história, da história do meu pai que, como o senhor sabe, teve uma morte bruta. E ele é um bom exemplo de que, mesmo tendo êxito, não é fácil ser negro no Brasil. Ele sabia que não era fácil. E ainda assim não aguentou as pressões.
Milton Santos – Você conheceu o Edson Nunes da Silva? O professor Edson Nunes?

Azoilda Trindade – Não.

Milton Santos – É um meu primo longínquo, possivelmente de seu pai também – não sabemos até que ponto somos primos. Ele é dez anos mais velho que eu, era muito amigo do seu pai, Ubaldino, também. E esse é um caso interessante porque é um homem de grande cultura. Foi, talvez, um dos primeiros negros de minha geração a ir com bolsa de estudos para o estrangeiro, mas que nunca decolou. Sempre foi conhecido como homem de valor, respeitado, mas nunca chegou a nenhum cimo. Eu, a essa altura da vida, acho que a história do fracasso é mais importante do que a história do sucesso. Eu dei uma entrevista para a revista da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) que eu lhes recomendo ler. Gostei muito dessa entrevista porque foi muito bem feita, e lá eu falo nisso. Falo sempre para os meus alunos: são os fracassos que conduzem, porque o sucesso entorpece. A gente fica dominado pelo sucesso e imagina que já chegou. E a gente nunca chega. Então, não é a história do fracassado. É a história ao longo da vida do fracasso, como dor.

No meu caso, creio que o fato de ter tido que começar a minha vida várias vezes foi importante. Tive que várias vezes recomeçar, ainda que dentro da mesma coisa, porque a minha vida é essencialmente uma vida de um intelectual, apesar de eu ter sido político um pouquinho, jornalista um pouquinho… Mas o que é central mesmo na minha vida, o que me dá prazer e orgulho, e humildade ao mesmo tempo, é ser intelectual. E eu recomecei várias vezes. E começo todos os dias.

Katia Santos – Pelo que vi nas suas entrevistas, parece que o senhor teve uma situação na infância um pouco atípica para os negros da época. Como foi isso?

Milton Santos – Na Bahia não era tão atípica. E não ouso classificar sociologicamente, como hoje se faz, porque era outro mundo. A Bahia não era um mundo industrial, quando eu era menino jovem. Era uma cidade de comerciantes, de funcionários, e por conseguinte tudo isso girando em torno do mundo agrícola. Não havia essa classificação tão rígida como acontecia em São Paulo na mesma época, que já era o mundo da indústria.

Então, como os meus pais, havia um número razoável de negros que constituía uma espécie de elite negra, que cultivava as letras, que se reunia para recitar, para ouvir música, que se cultivava mutuamente, que se visitava, que ia às festas uns dos outros, que ficava feliz quando o filho de um terminava o ginásio, depois a faculdade, os casamentos, etc. Quer dizer, se você faz uma relação com a sociedade negra em geral, era limitado. Mas se você compara com outras cidades brasileiras, era relativamente melhor. Ou relativamente menos ruim. Com outro aspecto que é o fato de ser uma coisa familiar. Já havia uma descendência. Meus avós maternos, por exemplo, eram professores primários antes da Abolição. Eles eram professores primários diplomados no círculo operário. Ainda não havia sindicatos. Era no círculo operário do Pelourinho. Meus avós do lado do meu pai eram pobres. Eram agricultores urbanos. Tudo isso em Salvador. Então, essa geração nasce já num clima de gosto pela cultura, de obrigação pela cultura, de obrigação de estudar. Que era o caso do seu pai, Azoilda, o Ubaldino Barbosa, cujo pai também era… O pai do Ubaldino era o quê?

O gosto pelo estudo: fruto do ambiente familiar privilegiado na Bahia.
O gosto pelo estudo: fruto do ambiente familiar privilegiado na Bahia.

Azoilda Trindade – O meu avô era alfaiate.

Milton Santos – O alfaiate também fazia parte desses artesãos, que eram a burguesia. Que se frequentavam todos. O alfaiate era um centro porque não havia confecção. A confecção – roupa já feita – chega muito depois.

Katia Santos – Era uma forma de poder, também, ser alfaiate?

Milton Santos – Era forma de relacionamento, e relacionamento é poder.

Azoilda Trindade – E isso de educação era muito forte, porque quando eu era pequena meu pai sempre dizia: “Você vai ser professora”. Era um valor isso.

Milton Santos – Era mesmo um valor, porque o professor era considerado, não era como hoje. No interior o professor era notável. Era um dos notáveis, juntamente com o tabelião, com o juiz, com o promotor…

Katia Santos – Em uma de suas entrevistas, o senhor disse que no colégio que estudava havia judeus, espanhóis, etc. Pensei que de repente podia fazer diferença a sua presença nesse colégio. Mas dentro desse contexto, pelo que estou vendo, não era assim tão diferente para eles, tê-lo como colega de classe.

Milton Santos – Era. Era, porque há uma herança de casa. Quer dizer, tinha os apelidos… A mim chamavam, por exemplo, de “noite ilustrada”, entende? Era o apelido que eu tinha, e devia ter outros. Bem, a gente sabia navegar nesse oceano. Mas como fui interno – porque meus pais ensinavam no interior – então se criavam laços, que eram amplos. Crescemos juntos, de qualquer forma.

Katia Santos – Se frequentavam, apesar de tudo isso.

Milton Santos – Os internos se frequentavam. Não tinha jeito.

Azoilda Trindade – Como era a infância? Como foi o brincar?

Milton Santos – Minha infância foi protegida. Primeiro porque meus pais não me mandaram à escola, à escola primária. Eles me educaram em casa. Então, foi uma infância muito protegida até os dez anos, quando fui para Salvador, para ser interno. Os brinquedos eram em casa, já que os meus pais eram professores primários, então não era difícil ter camaradinhas, que eram alunos dos meus pais e que frequentavam a casa. E que eram, naturalmente, todos brancos. Ou quase, porque a minha infância foi no sul da Bahia, de brancos ou mestiços.

Boas lembranças da infância na casa dos pais, em Salvador, onde Milton Santos recebeu sua educação primária.
Boas lembranças da infância na casa dos pais, em Salvador, onde Milton Santos recebeu sua educação primária.

Azoilda Trindade – E quando o senhor sai dessa infância mais protegida e vai para um colégio interno. Como é essa passagem, como foi a adaptação?

Milton Santos – O dono do colégio, o diretor do colégio, era um colega de meu pai. O meu pai havia trabalhado com ele quando mais jovem. E repito, eu era um bom estudante, um bom aluno, e isso tinha valor. Tinha importância. Criava uma espécie de simpatia, de admiração mesmo. E o fato de a Bahia não ser uma sociedade industrial tem um papel. A cultura é mais valorizada numa sociedade civilizada, como a Bahia sempre foi, e não industrial. Porque a industrialização, a indústria, ela já põe na frente outros valores. Valores culturais são justapostos, eles não são superpostos. Então, a Bahia teve essa grande sorte – para nós negros, também – de entrar no século, e caminhar no século, sem indústria. Acho que isso tem um papel no tipo de sociedade que se estabelece na Bahia. E urbana. São Paulo vira cidade urbana muito depois. A Bahia é urbana desde o século XVII. Tinha uma vida urbana. Isso tem importância.

Katia Santos – Sua infância toda foi na Bahia?

Milton Santos – Toda.

Katia Santos – Adolescência também?

Milton Santos – Adolescência também. Estudei Direito lá.

Katia Santos – Então em 1964, quando o senhor vai para o exílio, o senhor ainda morava na Bahia.

Milton Santos – Em 1964, eu morava na Bahia. Eu já tinha saído antes, para fazer o Doutorado. Fiz o meu Doutorado na França, terminei em 1948.

Azoilda Trindade – Como foi isso? Como se constitui isso para o senhor, essa possibilidade?

Milton Santos – Fui um bom aluno. Eu terminei o primário com oito anos e fiquei dois anos em casa porque não podia entrar no ginásio antes de dez anos. E meu pai era um homem muito bem educado, muito fino. Ele me pôs para estudar francês, álgebra e boas maneiras.

Katia Santos – Boas maneiras?

Milton Santos – É, estudava. E ele mesmo, ele próprio fazia essas coisas.

Katia Santos – Como comer, como sentar-se…

Milton Santos – Como sentar-se, como sair na rua com a senhora, quem cumprimentar antes, o lado em que a senhora anda na calçada…

Doutor em gentileza: o valor das palavras e dos gestos.
Doutor em gentileza: o valor das palavras e dos gestos.

Katia Santos – E isso ficou no senhor? O senhor ainda carrega esses ensinamentos?

Milton Santos – Ah, continua. Continua. Mas as pessoas não entendem mais. As pessoas não sabem mais. Os gestos, que eram muito importantes, hoje, as pessoas não sabem o valor dos gestos. Eu vou lhe contar uma coisa, entre parênteses. Quando eu tinha uns seis anos, ou oito, estávamos eu, uma colega e um jovem. Então caiu uma coisa das mãos da moça, e eu abaixei para pegar. O outro jovem disse à moça: “Caiu o seu lápis”. E eu não sei se ela valorizou o meu gesto. Você veja, as duas coisas: ele não abaixou – e eu acho que tem que abaixar, não importa meus reumatismos, se eu não abaixo, peço desculpas – e ainda disse que caiu. Então não sei se ela entendeu meu gesto. Mas fui educado para o gestual, as palavras, e tudo isso faz parte de uma educação. Os gestos no lugar certo, as palavras no lugar certo…

Katia Santos – Percebe-se mesmo que o senhor é um homem fino. Eu achava que o senhor havia adquirido tais maneiras na França.

Milton Santos – Não, foi com meu pai. Meu pai não aparecia para ninguém sem paletó, em casa. Ele tinha esse gestual. Então, isso tinha um papel. Hoje eu posso dizer “eu quero”, que nada mais vai acontecer. Eu fui educado para mandar. Quer dizer, eu fui educado para o mando. Então, na sociedade dos brancos eu não chocava. A educação para o mando também supõe recato. Você tem um mandão tipo Antônio Carlos Magalhães, mas também tem outras formas de liderança política fina. A educação para o mando é uma característica dessa minha geração, não se aplica só a mim.

Azoilda Trindade – É uma postura.

Milton Santos – É uma postura. Meu pai, por exemplo, me ensinou a nunca olhar para o chão. Sempre assim [ergue a cabeça], a cabeça assim. A cabeça não cai. O corpo não cai para comer. Quem abaixa a cabeça para comer são os porcos.

Katia Santos – E eu acho que essa coisa da cabeça, assim [baixa], é muito a marca do negro brasileiro…

Milton Santos – Talvez seja uma marca não só do negro, mas também dos humilhados, de um modo geral. Tudo isso tem um papel, viu, minha filha. Eu creio. Hoje, olhando para trás. É evidente também que meu pai não discutia comigo a questão do preconceito. Podia aparecer em filigrana, mas não era um tema, e imagino que era uma coisa deliberada, para me dar armas. Quando digo hoje, filosoficamente, que olho para frente, não olho para trás, é possível que a raiz seja esta, de que ele me ensinou, sem me dizer nunca isto, que olhar é para frente, não é para trás. Eu não saberia fazer a interpretação científica, mas sei que tudo isso tem um papel. E o fato de eu ser educado não era ausente da comunidade negra, porque nós tínhamos a comunidade negra nossa (risos).

Azoilda Trindade – O senhor estava falando da entrada no doutorado, dessa influência.

Milton Santos – Fui para a faculdade de Direito, que era a elite. E eu era líder estudantil, também. Frequentava os colegas de famílias prestigiosas. Não os mais ricos, esses eu não frequentava. Mas as relações eram razoáveis. Vão fazer cinquenta anos, agora, da minha formatura.

Azoilda Trindade – De Advocacia?

Milton Santos – É, foi em 1948. E aí comecei a ensinar geografia. Fiz concurso com 22 anos, para um colégio de Ilhéus, e fui ser catedrático do colégio de Ilhéus. Depois fui para Salvador, comecei a trabalhar no jornal A Tarde, depois passei a ensinar na faculdade católica, e depois fui para a França me doutorar em geografia.

Katia Santos – Ser negro na França era muito diferente de ser negro no Brasil?

Milton Santos – É sempre diferente. Sobretudo, porque naquele momento, quando fui fazer doutorado, não havia muitos negros na França. Não havia essa invasão.

Katia Santos – “Agora nós os estamos colorizando” (risos).

Milton Santos – Colorizando. Você vê isso também?

Ideias fora do lugar no pensamento renovador de Milton Santos.
Ideias fora do lugar no pensamento renovador de Milton Santos.

Katia Santos – Eu estava lá no Planetário da Gávea quando o senhor disse isso.

Milton Santos – Nós os estamos colorizando (risos). Quando fui não era assim. Então, você tinha aquele montinho negro, que era identificado com o poder na África. Se você estava ali, era porque seu pai era príncipe, era ministro, era rico ou era culto, já.

Katia Santos – Para ter chegado até lá tinha que pertencer a uma dessas classes?

Milton Santos – No imaginário das pessoas. Enquanto que aqui o imaginário é outro. Há duas semanas, quando estava voltando da França, estava cansado, e então preferi tomar a classe executiva. A aeromoça era oriental, de descendência oriental, japonesa, talvez. Eu não sei. Elas falam apenas para encher a coisa. “O senhor fala português?”, ela disse. “Mas é claro que eu falo português, o que a senhora queria que eu falasse?” E aí ela disse assim: “Mas eu não podia imaginar que o senhor falasse português”. Se eu estava no avião, que já não é tão lugar para negro assim, e se eu estava na classe executiva, eu só podia ser americano (risos).

Sexta-feira, estava dando conferência em Campo Grande e fomos jantar em um restaurante. E o dono do restaurante veio, porque eram todas pessoas conhecidas, aí ele trouxe o menu e disse assim: “Ele fala português?” Quer dizer, é o oposto. A minha experiência lá e as experiências aqui. Naquele momento. Hoje é diferente.

Azoilda Trindade – Mais colorido.

Milton Santos – É, mais colorido (risos).

Azoilda Trindade – Eu quero fazer uma pergunta com relação à educação e à questão de ser negro. Porque a gente sempre ouve críticas justamente às boas maneiras, como sendo um valor europeu. E aí o senhor traz essa questão da educação, das boas maneiras, como um valor positivo. Então, o que o senhor acha, o fato de ter boas maneiras implica na anulação da sua qualidade de ser negro? É uma discussão.

Milton Santos – Talvez a gente tenha que colocar as coisas no tempo e no lugar. Quer dizer, como eu vivi muito, vivi várias épocas e vivi vários lugares. O que eu disse há pouco, primeiro se aplica a um tempo e um lugar, que é a Bahia, nos anos 1910, não é isso? Bom, então vamos por partes. Essas boas maneiras são as boas maneiras europeias que me foram ensinadas. Mas há outras boas maneiras. Há outros códigos. Não há um só. Os ingleses põem a mão debaixo da mesa, os franceses põem aqui, não podem pôr o cotovelo, podem pôr isto, e os ingleses põem aqui [mostra todos os gestos]. Qual é o mal educado? Qual é o bem educado? É relativo. Nesse sentido, pode-se dizer, “bom, seguir as boas maneiras é uma alienação”. Nesse sentido. As boas maneiras do outro. Não é isso? Mas quais são as nossas boas maneiras? Então seriam gestos, palavras, que são indutos da generosidade, da consideração com o outro, do respeito ao outro, e de respeito a mim mesmo. Tudo isso junto. O vestir são boas maneiras. Eu raramente ando sem gravata. Esse conjunto de gestos, palavras e tons de voz – músicas, né? – tem uma inspiração que tanto pode ser puramente formal, “tem que fazer o que eu faço”, mas que também tem um conteúdo íntimo. Aquilo que vem de dentro, e que é o bom, que é o belo. Acho que é isso. Mas a verdade é que as boas maneiras, como são códigos, elas facilitam a vida em comum. Porque elas estabelecem o que eu posso e o que eu não posso fazer. O respeito pelo outro passa pelas boas maneiras. Mas talvez isso é que tenha me ajudado. O fato de que eu sabia até aonde ir, a não invasão do outro. É a certeza do outro de que eu não o iria invadir, que cria, digamos, um diálogo. A possibilidade do diálogo vem também daí.

Outro dia apareceu um rapaz negro aqui, começou me chamando de “você”, que tenho horror, e eu lhe digo porque. Um grande amigo meu me disse há uns 50 anos, “Você será o que você quiser na vida: senador, presidente do Congresso, presidente da República, mas você não vai escapar, na rua, de ser chamado de você”. Me disse esse rapaz branco. E aí isso me marcou. Então, quando alguém me dirige “você” eu digo, “Olha!” É a falta de respeito compulsória, imediata.

Em Campo Grande, apareceu uma moça da televisão e começou a me dizer “você”. Eu disse, “como?”. Ela ficou… Um dia um rapaz da televisão me disse “você”. Eu disse, “Não, o tratamento vai ser senhor”. O Roberto D’Ávila me perguntou, “Como é que eu vou lhe tratar”. Eu lhe disse, “quem sabe, vamos ver…” Ele aí entendeu e disse “não, não é durante a entrevista. Durante a entrevista vou lhe chamar de senhor, mas na nossa relação, quem sabe”. Eu disse, “está bem”. Já imaginou se apareço na televisão com o sujeito me chamando de você? Não tinha o mesmo efeito. Quer dizer, tem essa atitude.

É possível que a minha educação meio francesa também tenha tido um papel nisso, porque na França tem uma gradação. Você chama o outro de vous, e depois de meses, anos, é que se decide, “agora vamos usar tu”. Porque não adianta você ficar dizendo que é íntimo sem ser. A intimidade é um processo. Assim como a amizade. A amizade é um processo, não se dá… Pode se dar à primeira vista. Mas isso não é frequente na vida.

Azoilda Trindade – Isso é importante até para apontar… É que a gente não valoriza essas coisas.

Milton Santos – Mas as pessoas vão dizer, “ele é muito besta, muito pedante”. Mas eu sei o que estou fazendo. Entendeu ? (risos)

Azoilda Trindade – Mas é uma forma de respeito. É importante, sabia, essa coisa? Olhar pro outro e … “Peraí!”

Milton Santos – “Calma!”, né?

Azoilda Trindade – Calma.

Katia Santos – Essa semana eu estava vendo uma entrevista num canal qualquer da TV a cabo, com um negro norte-americano em que ele dizia exatamente isso, que hoje em dia dá briga de quebrar bar, entre negros e brancos nos Estados Unidos, se um homem branco chamar um homem negro de boy.

Milton Santos – “Hey, boy!”

Katia Santos – Porque essa coisa do boy, pelo que entendi da entrevista, é essa questão do “você” que o amigo do senhor especificou.

Milton Santos – Esse homem evidentemente era um brilhante homem, brilhantíssimo. Preguiçoso. Escrevia melhor do que Rubem Braga, mas era preguiçoso. Então não saía nada. Só conversa (risos).

Katia Santos – O senhor tem irmãos?

Milton Santos – Eu tenho uma irmã. Na realidade, considero que tenho duas. Tenho uma que veio morar em casa quando eu tinha oito anos, e que está viva ainda. Tenho uma irmã, que é dez anos mais moça do que eu. E tinha, até janeiro [de 1998], um irmão oito anos mais novo do que eu, que morreu.

Katia Santos – Todos eles passaram pelo mesmo processo educacional que o senhor?

Milton Santos – Meu irmão estudou Direito, também, como eu, e virou meio economista, se tornou uma pessoa muito importante. Foi Secretário de Estado do governo de Miguel Arraes, foi diretor da Sudene com Celso Furtado, viveu vinte anos no estrangeiro. Se exilou também. Foi diretor da Unicef. E minha irmã estudou Medicina, mas não terminou, por razões de saúde.

Azoilda Trindade – Eu tenho uma curiosidade. A questão do trabalho. Como se dá a sua inserção nesse mercado de trabalho?

Milton Santos – Nos mercados. Porque eu passei por vários. Por exemplo, o meu primeiro emprego foi via concurso. Professor catedrático num colégio municipal de Ilhéus. Na escola de Direito, os professores empregavam os filhos deles, mas nos ensinavam que era feio ser funcionário. Então, quando terminei a faculdade o governador me ofereceu emprego. E eu não aceitei. E aí fiz concurso para ser professor porque o professor não era burocrata como ele é hoje. Então eu achava que era a maneira de ser livre. Vim a ser professor mediante concurso. As outras coisas eu conquistei. Na católica fui convidado para ensinar. Fiz o concurso para ser professor da Universidade Federal da Bahia. Depois de brigar, porque não queriam me deixar fazer o concurso. Mas ganhei na Justiça e fiz o concurso. Depois de ter ganho na justiça, decidi buscar o doutoramento, para não ser apenas por vitória judicial. Cheguei com um título que ninguém tinha, que era o título de doutor. Porque na Bahia não havia muita gente saindo para estudar no estrangeiro. Então, foi assim.

Quando eu era jovem não havia falta de emprego para quem terminava a faculdade. O que é uma outra coisa importante a mostrar. Quando conseguia sair da faculdade você estava empregado. Hoje é que o negro deixa a faculdade e não tem… O que é um problema diferente. E tem um papel, eu acho. Os negros se tornaram mais ativos. Porque descobriram que a educação não é a saída. Para nós podiam dizer, “está vendo ele estudou, triunfou”. Hoje os negros sabem que não é bem assim. Que isso não basta. Sobretudo porque você tem diversos tipos de ensino. Os  negros não vão para os melhores ensinos, não têm a melhor educação. Isso acontece muito raramente. Basta ver aqui, a USP, que é um deserto de negros. Então, acho que isso tem um papel na pugnacidade atual dos negros. São muito mais pugnazes, muito mais batalhadores do que nós éramos.

Katia Santos – A própria condição obriga.

Milton Santos – A própria condição, a própria dificuldade de inserção, que é maior.

Katia Santos – Acho que essa situação toda, ao mesmo tempo que obriga o negro a ser mais lutador, também assusta muito uma grande parcela que prefere nem tentar. Eu quero muito estar errada nisso, mas acho que a gente tem muito medo.

Milton Santos – É a pressão. Quando eu era jovem a solidariedade social era maior, e mais possível, do que hoje. Porque não havia tanto consumo. Então a gente podia ser mais ajudado pelos pais, pelos avós, pelos irmãos mais velhos. E ajudar depois. A minha formação intelectual se deve em boa parte ao fato de que minha mãe completava meu orçamento. Mesmo depois do meu primeiro casamento eu não dava muitas aulas. Isso me permitia estudar, ler, comprar livros. Hoje é impossível. Nesse tipo de classe média, quem é que pode ajudar o outro? E isso é um fantasma para todo mundo. O fato de vocês estarem falando comigo, fazendo essas perguntas para mim, é um complicador porque venho de diversos tempos. Vivi diferentes momentos. E agora quando vocês me forçam a reinterpretar, vocês me obrigam a rever, a fazer a teoria do que era simplesmente a vida. Explicar aquilo que era simplesmente vivido. Eu vejo um pouco isso. Quer dizer, para os mais jovens, você não pode ajudar tanto quanto a gente foi ajudado, o quanto os meus pais me ajudaram.

Katia Santos – Entendi. Porque se trata de uma situação bem específica. O senhor já era formado, trabalhava. E hoje estamos falando de pessoas que não conseguem nem chegar a isso.

Milton Santos – Isso. E que também não podem ser ajudadas. E vai ser pior ainda porque com essa coisa de não ter mais aposentadoria… porque não vai ter. Quando eu disse que os negros vão ficar numa situação pior, é isso. E que eles não vão ter acesso à melhor educação. Vão ter uma educação, na sua maioria, medíocre. E essa rede de ajuda vai ficar enfraquecida, porque os velhos não terão aposentadoria, ou terão uma aposentadoria irrisória. É outro mundo, né?

Azoilda Trindade – Essa coisa da perspectiva do futuro, a gente fica pensando… Eu trabalho com crianças e adolescentes em escola pública. É justamente isso. Vai a uma escola particular – não precisa nem ser de uma classe média alta – e vai a uma escola pública. É um choque.

Milton Santos – É sim.

Azoilda Trindade – E aí, o que eu vou propor? Isso me sensibiliza. O que eu, como educadora, como cidadã, posso oferecer para essas crianças?

Milton Santos – O caminho, eu acho, é político. Tem um curso de vestibular lá em Campo Grande que tem meu nome. E eles foram lá me ver, sexta-feira, sábado, e eu estava dizendo a eles, “o negócio é andar para frente”. A cultura negra é importante, ela é um cimento. Olhar para trás nos une, amplia esse amálgama, esse cimento. Mas não é ele que vai melhorar a nossa vida. O que vai melhorar a nossa vida é a política. É por isso que é olhar para frente. Quer dizer, desenhar o futuro e não ficar olhando apenas para trás.

Katia Santos – Ter uma meta, eu acho, é importantíssimo nesse nosso processo. Mas tendo muito claro que a passagem pelo mundo acadêmico, no caso, não nos…

Milton Santos – …abrirá todas as portas. Que tenha a meta e também tenha a consciência de que vai ter tropeços.

Azoilda Trindade – Uma outra pergunta: o pai do senhor foi uma pessoa marcante na sua vida?

Milton Santos – A minha mãe também. Cada um de um jeito.

Azoilda Trindade – Existiriam outras pessoas, assim, importantes que o senhor poderia destacar como influentes na sua trajetória?

Milton Santos – Olhe, eu vou dar um nome, que é Simões Filho. Ele foi Ministro da Educação do Getúlio Vargas e era o dono do jornal no qual trabalhei na Bahia. Ele me tinha muita estima e eu, também, olhava para ele com muita admiração. As maneiras dele, as boas maneiras, a forma de se vestir, que é uma coisa que eu até hoje gosto, de me apresentar bem.

Katia Santos – Aliás, a camisa que o senhor veste na foto do site do cantor Gilberto Gil é muito bonita.

Milton Santos – É uma bordô, né? (risos) Pois é, é a coragem intelectual. Um certo gosto pela ironia, que também vem do meu pai, mas que vem [de Simões Filho], também. E a relativização das coisas, a capacidade de relativizar. Hoje vejo que ele teve uma forte influência na minha vida pública. E o meu professor francês, meu diretor de tese, foi também uma grande influência. Pelo rigor, o gosto pelo trabalho, a filosofia de que o trabalho se faz todos os dias. Nunca o que a gente faz é perfeito. O rigor com os outros e consigo próprio. Tudo isso aprendi com ele. Afora outras pessoas. Você fala de pessoas com as quais eu tive comércio pessoal, não é isso? E não autores.

Azoilda Trindade – Isso. Por exemplo, Amílcar Cabral foi uma influência muito grande na minha vida, na militância.

Milton Santos – Mas é mais distante, né?

Azoilda Trindade – É isso. Mas, enfim, um parêntese: a gente prometeu não falar em militância para o senhor, e agora que eu falei…

Milton Santos – Eu fiz crítica à militância?

Azoilda Trindade – Não, é que lembro que uma vez assisti, pela primeira vez, num encontro de negros em Marília, uma conferência em que o senhor dizia, “eu não gosto dessa coisa de militância, me lembra militar, me lembra uma coisa… prisão…” E aquilo ficou na minha cabeça, me torturou, no sentido de que realmente pode ser uma prisão. O senhor falava agora há pouco da coragem intelectual…

Milton Santos – É incompatível com a militância.

Azoilda Trindade – Isso. Tem que ousar, tem que ser criativo, tem que estar atento.

Milton Santos – Mas as pessoas às vezes não entendem quando eu digo isso. Porque imaginam que sou contra. Eu não sou contra a militância. Tem que ser militante. Tem que ter militância. Mas se não tiver o sujeito livre, você não cria. Porque acho que o problema do Movimento Negro é que a gente tem que criar novos discursos, novas frases, novos slogans… Na entrevista com o Roberto D’Ávila falei no ressentimento de certos grupos brancos contra os negros. Eu não disse o contrário. Quer dizer, é outro discurso que a gente tem que produzir.

Azoilda Trindade – Brilhante. Aquela foi muito boa, sim. Bem, depois de passarmos pelas pessoas que foram influentes na sua vida, há algum outro fato importante ligado a sua história de vida que o senhor gostaria de comentar?

Katia Santos – Só uma curiosidade. O senhor conseguiu sair da Bahia antes de se casar?

Milton Santos – Casar? Não, eu  já estava descasado (risos).

Katia Santos – Então já tinha sido fisgado (risos).

Milton Santos – Já estava descasado. E depois casei de novo, lá no estrangeiro.

Katia Santos – O senhor teve filhos?

Milton Santos – Eu tive dois filhos. Agora só tenho um, o outro morreu há dois anos. Fatos importantes? A formatura, o dia em que recebi o diploma de bacharel em Direito…

Azoilda Trindade – Pode parecer que não mas a nossa formatura tem um peso. A minha, de professora primária, foi um negócio. Eu queria ser aquilo. Sou eu. Meu pai me chamava de professora. Então, a formatura era a conquista disso. Este gosto da profissão. Eu sou professora. Financeiramente é o caos, mas assim… A possibilidade de alguns exercícios…

Milton Santos – Mas havia a coisa simbólica, também. Quando entrei na faculdade, eu subi as escadas carregado. A maior ovação foi para mim. Era um sinal baiano, né? Quer dizer, “tem um negrinho aí, vamos aplaudi-lo”.

Azoilda Trindade –  Podemos tirar uma foto sua?

Milton Santos – Sim, é melhor que seja espontânea. Pelo menos aparentemente espontânea (risos).

Azoilda Trindade – Tem um assunto do qual queremos falar. O racismo no Brasil. Qual a sua opinião sobre essa questão?

Milton Santos – Ele é bem brasileiro, né? É bem brasileiro. Você não pode comparar. Teria que distinguir, talvez, entre discriminação e preconceito. O preconceito vem do fato de que se criam estereótipos, e você vai conviver com esses estereótipos o tempo todo. É aquela coisa que a gente distingue entre o cotidiano e o programado. Cada vez que eu, ou qualquer pessoa, estou em uma atividade programada, o preconceito tende a não se manifestar. A questão é a surpresa do outro.

Katia Santos – A situação que o senhor nos contou, no avião, por exemplo, não foi uma situação programada. Foi do cotidiano.

Milton Santos – É a surpresa do outro, que é o cotidiano. E daí o preconceito. Aí você pergunta, mas o preconceito não é obrigatoriamente uma discriminação? Será uma discriminação? E aí tem toda a questão sociológica. O sujeito que recebe e o sujeito que é alvo. É diferente, não é? Para você é. Para quem é objeto de preconceito, é uma discriminação. O Brasil naturaliza essa relação. Essa relação não é equilibrada. Essa relação…

Azoilda Trindade – É hierárquica.

Milton Santos – É hierárquica, mas não é bem isso, é outra palavra. Ela é naturalizada, é normal. O que é uma das coisas terríveis da sociedade brasileira. Essa rapidez com que a gente naturaliza. Passa a incorporar como um dado natural, e não histórico, o que conduz à ausência de culpa. As pessoas não se sentem culpadas. Eu imagino que os americanos, de alguma forma, alguns deles, se sentem culpados. Basta ver a atitude do presidente Clinton em relação aos negros e a do nosso presidente, Fernando Henrique, que diz que é interessado etc. Acho que é isso. Agora, isso faz com que, acho, ser negro no Brasil seja muito duro. Eu acho. Não vou comparar com outros países. Mas acho que é muito duro porque você não tem como… É muito difícil você exprimir sua indignação, ou esboçar sua defesa, sem ser tomado de forma ridícula.

Katia Santos – Ficamos sempre a um passo disso, né? Nos colocam sempre a um passo disso.

Milton Santos – Do ridículo. Eu creio que muita gente prefere emudecer ou esperar uma outra oportunidade, porque qualquer manifestação – estou generalizando – vem com a certeza de não ter solidariedade.

Katia Santos – A pessoa fica sozinha.

Milton Santos – Acaba sozinha.

Katia Santos – O preconceito é muito perverso, principalmente, quando o negro faz esse deslocamento, como no seu caso. Porque quando ele fica quietinho no lugar designado historicamente para ele na sociedade brasileira, ele não é fustigado por isso tudo. Mas quando ele faz esse deslocamento, aí ele já vira um alvo.

Milton Santos – Exato. Ele aparece como o diferente. O que já é desagradável,  esse negócio. Porque o que todos queremos é sermos iguais a todos. Então quando você é apontado, ou aceito, ou tratado como o diferente, é incômodo.

Azoilda Trindade – Deixa eu só perguntar uma coisa. O senhor estava falando da sua trajetória, fiquei curiosa. Eu, por exemplo, tinha muito medo de me envolver, de me apaixonar, porque queria concluir os meus estudos. E aí fiquei com a curiosidade: o senhor conseguiu isso? Se formou primeiro…

Milton Santos – Sim, consegui, sim (risos).

Azoilda Trindade – Outra coisa: como se davam as relações afetivas na Bahia quando o senhor era rapaz? Como era essa coisa do jovem baiano? Meu pai, por exemplo, era meio mulherengo, né?

Milton Santos – Não sei, não. Não sei disso, não (risos).

Katia Santos – “Não sei, não”, é ótimo (risos). Pode falar. Ele era baiano, ninguém vai estranhar.

Milton Santos – Era, sim (risos).

Katia Santos – É, imagino que sim. O meu pai era baiano também (risos).

 

 

 


Joel Zito Araújo: um cineasta e sua missão

Entrevistadora, introdução e edição: Patrícia Farias*

Nascido em Lajedão, na fronteira de Minas Gerais com a Bahia, formado em Psicologia, com mestrado em Sociologia da Educação, doutorado pela ECA/USP e pós-doutorado pela Universidade de Austin, Texas, onde frequentou tanto os cursos de rádio, cinema e TV como os do departamento de Antropologia (que diz adorar), o cineasta Joel Zito Araújo fez um percurso próprio dentro do audiovisual brasileiro. Diretor e roteirista, autor de 13 filmes na questão racial, além dos livros A negação do Brasil (de 2000, sua tese de doutorado) e O Negro na TV Pública (Org., 2010),  Joel lança este ano o documentário Raça, em parceria com a norte-americana Megan Mylan, no qual acompanha a trajetória de três personagens negros – um político, um artista e uma líder quilombola.

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Raça, 2013

 

Em conversa com Patrícia Farias, Joel Zito Araújo relembra a experiência de viver numa família inter-racial, fala sobre a descoberta de sua negritude, sobre cinema e sobre seus filmes, comenta a presença forte das mulheres em sua obra, celebra a nova geração de ativistas negros e indígenas, declara seu interesse renovado sobre a África, e afirma que seu trabalho tem uma missão: confrontar o racismo à brasileira.

Patrícia Farias – Como foi seu caminho até o cinema?

Joel Zito Araújo – Desde pequeno eu era encantado com cinema. Quando mudamos de Lajedão para Nanuque eu era criança, mas logo comecei a curtir as três salas de cinema que tinha lá. Tinha um tio que era ator de teatro e dono de uma sala de cinema e eu fui mascote da companhia de teatro dele. Lembro de ter visto em Nanuque um monte de filmes importantes para a história do cinema, desde Primeira noite de um homem até a obra de Fellini. É engraçado, porque, já em Belo Horizonte, aos 26 anos, redescobri um diário que mantive quando tinha 13 anos e, quando reli, vi que só tinha anotações dos filmes que tinha visto e pequenas críticas a respeito – nada de amor, angústia ou dramas, como seria de se esperar de um adolescente! Desde que me entendo por gente gosto de cinema.

Patrícia Farias – A preocupação com a questão racial, como surgiu?

Joel Zito Araújo – Minha família paterna é branca; a família materna, negra. Vim de uma família semialfabetizada. Meu pai havia sido saxofonista e dono de um bar clube, mas aos 30 anos desistiu, comprou um caminhão para trabalhar (chegou a ter sete caminhões), vendeu tudo e comprou um sítio. Meus pais se separaram quando eu tinha seis anos e isso me trouxe muito sofrimento. Minha mãe perdeu o que tinha e virou empregada doméstica, lavadeira; meu pai também não tinha muito, mas tinha o valor da educação, então me manteve num bom colégio em Nanuque mesmo, até que nos mudamos para Linhares, no Espírito Santo, e fui para um colégio estadual, fraco.

Na adolescência, eu tinha vergonha da mãe – nada melodramático, nada ostensivo. Era mais uma atitude de ocultá-la para meus amigos, não queria ser visto com ela. Em 1974, quando entrei numa universidade para cursar Psicologia, foi que a preocupação com a questão racial apareceu com força: percebi na universidade que não era somente minha mãe que era negra – eu também era negro. É claro, a angústia estava lá, desde antes, desde sempre, mas foi nesse momento que eu compreendi isso. Cursando a faculdade e fazendo terapia, comecei a resgatar a minha mãe. Até então tinha essa vergonha social, de mostrar a minha origem negra, esse distanciamento com relação a ela. Entendi que só a resgataria completamente se confrontasse o ideal de branqueamento que eu tinha internalizado. Era fundamental assumir minha negritude. E isso trouxe uma descoberta inesperada: foi o momento em que resgatei minha autoestima; perdi a vergonha que a sociedade brasileira internaliza no mulato e no negro. Eu reli minha mãe. Não foi lendo Fanon, nem nada disso – foi um processo pessoal. Uma parede foi rompida e explodiu em afeto; passei até a endeusar minha mãe. E minha postura mudou diante de meus colegas, de meus amigos, em todo lugar. Minha autoestima foi resgatada.

Patrícia FariasA negação do Brasil tem a ver com esse processo, não? Você já disse em entrevistas que esse filme resume sua própria trajetória e suas preocupações com a imagem e a participação dos negros no processo social brasileiro.

Joel Zito Araújo – É, nessa época da faculdade eu trabalhava como bancário e fazia parte do movimento cineclubista mineiro, isso já em Belo Horizonte. Passávamos filmes em bairros operários, tínhamos compromisso político ligado ao cinema. O meu cinema negro começou a ser gestado em 1984, quando fui para São Paulo. Fiz mestrado em Sociologia da Educação na UFMG e depois fui para lá. E foi em São Paulo que conheci muita gente, tive muitas trocas com intelectuais negros: Hédio Silva Jr., Cida Bento, Arnaldo Xavier, poeta concreto negro, Sueli Carneiro, Matilde Ribeiro…. Antes, em Belo Horizonte, eu tinha entrado para o PT, fui integrante do grupo de Criação do PT em Minas, e quando fui para São Paulo fui trabalhar no Dieese, coordenando a parte de audiovisual da entidade.

No meu primeiro trabalho, em 1989, o filme Memórias de classe, sobre o movimento operário paulista, já introduzo o questionamento: e o negro, onde está nesta história? Esse trabalho é um docudrama e já apontava para a participação do negro no movimento operário. Porque a visão que se tinha era que o movimento operário havia sido formado a partir dos imigrantes brancos, dos operários anarquistas vindos da Europa. Mas pesquisando, vendo fotos, eu via que havia líderes negros nas manifestações, atuando com liderança. Então passei a desconfiar dessa história: o resultado é esse docudrama.

Em 1988 deixei de ser militante do PT, queria ser um artista e intelectual independente, e virei sócio da produtora de Renato Tapajós e Olga Futema, a Tapiri Cinema e Vídeo. A partir de então, passei a me dedicar totalmente ao cinema.

Joel Zito: “Meu papel é confrontar o racismo.”
Joel Zito: “Meu papel é confrontar o racismo.”

Meu segundo trabalho, Retrato em preto e branco, foi na verdade produto do impacto de uma viagem que as lideranças negras brasileiras que eu conhecia fizeram aos Estados Unidos. Lá eles encontraram com ativistas negros americanos e voltaram chocados pois viram que os negros de lá achavam que aqui era realmente um grande exemplo de “democracia racial”. Lembro deles me dizendo: “Temos que fazer alguma coisa!”. Em resposta, eu fiz esse filme, que é um documentário com um personagem de ficção, um negro brasileiro que escreve uma carta para um amigo do exterior sobre sua vida, suas reflexões sobre o mito de nossa democracia racial.

Em 2004, ganhei uma bolsa da Fundação MacArthur para estudar a história do negro no cinema e na TV norte-americana, e fui pesquisar nos Estados Unidos. Lá, vi um documentário sobre esse tema, Color Adjusment, e fiquei bastante impressionado. Pensei em fazer o mesmo aqui para o Brasil. Escolhi a telenovela, pelo seu impacto na nossa cultura. De volta à USP, concluindo meu doutorado na ECA com Solange Martins Couceiro como orientadora, mudei o tema para fazer um filme e consegui apoio da Fapesp. Fiz um enorme levantamento sobre a história do negro na telenovela brasileira. Portanto, primeiro veio o projeto do filme, e enquanto eu pesquisava surgiu a ideia de transformar aquilo também na minha tese, o que fiz, e depois virou o meu livro A negação do Brasil.

Patrícia Farias – Você já disse que esse filme é quase que sua proposta de cinema, a de discutir a inserção do negro na sociedade brasileira.

Joel Zito Araújo – Exato. Ali está a plataforma que me orientou nos projetos futuros, já tem as duas questões a que eu sempre volto: discutir a participação do negro na sociedade, confrontando a ideologia do branqueamento, o racismo, o pensamento colonialista; além de estar atento à questão de gênero. Quanto ao lugar do negro sempre foi uma reflexão intencional, racional, e quanto ao gênero, não foi intencional; simplesmente é uma questão que me acompanha. Mesmo no filme Raça tem uma figura feminina forte, uma líder de uma comunidade quilombola. O longa de ficção que realizei, Filhas do vento (2004), é sobre isso, a relação de mães e filhas, de mulheres, assim como outro documentário meu, que tem o mesmo tema: Cinderelas, lobos e um príncipe encantado (2009). Fiz também o documentário Eu, mulher negra, em 1994… E o curta ficcional Vista minha pele em que esse tema também aparece.

Patrícia Farias – Chico Buarque, em entrevista, perguntado pelas suas músicas compostas no feminino, e confrontado com a afirmação de que era um expert na alma feminina, respondeu que pelo contrário: ele escrevia muito sobre isso justamente porque era um ignorante no assunto, porque tinha curiosidade, porque queria saber mais sobre esse outro universo, o universo feminino.

Joel Zito Araújo – Exatamente isso. Tenho filhas, estou rodeado de mulheres, minhas ex-esposas, minha namorada…. Minha mãe, figura fortíssima em minha vida. Acho que vivo a mesma coisa ao retratar esse universo, é uma forma de saber mais sobre ele.

Patrícia Farias – Voltando ao cinema, eu vejo atualmente nos documentários uma oscilação pendular entre um polo, digamos, mais Eduardo Coutinho, mais de compor um retrato, de intervir menos, e outro, tipo Michael Moore, mais histriônico, de uma figura que intervém no que retrata, deixa sua opinião evidente. Como você vê o cenário do documentário hoje, e como você se vê nisso, como você enxerga seu próprio cinema nesse panorama geral?

Joel Zito Araújo – Gosto muito dos dois documentaristas que você citou, principalmente do Coutinho, acho Cabra marcado pra morrer, uma obra-prima. Mas um desses polos, o do Moore, é muito narcísico para meu gosto; e o outro às vezes peca por sacrificar o conteúdo ao método. E para mim o conteúdo é fundamental. O método é puxado pela necessidade narrativa de apresentar o conteúdo.

Viajando com os meus filmes, descobri que tenho um papel, incorporo uma necessidade que ultrapassa o Brasil, que vai além da interpelação sobre a inserção do negro na sociedade brasileira, simplesmente; esse papel é o de confrontar o racismo, a própria ideologia colonialista do branqueamento que é um problema de muitos países. Meus colegas brasileiros estão imobilizados por essas “categorias coloniais” que minimizam a consciência negra em nossa sociedade, essa separação de pretos, mulatos, pardos, mamelucos e etc. Os negros norte-americanos, por exemplo, inverteram a linha de cor, a ideologia racista, com o “black is beautiful”, por exemplo, e isso foi benéfico para eles. Temos uma hierarquia racial que nunca foi questionada. Todos os meus contemporâneos abraçam isso de uma maneira acrítica. Comecei a perceber que esse questionamento e esse conteúdo são mais importantes que o método.

Claro, gosto e tento me atualizar com novas formas narrativas, formas de contar próprias do cinema e do documentário. Por exemplo, no meu filme Raça, agora, o que tento captar é o debate nacional sobre a questão racial que está acontecendo neste momento, eu e a norte-americana Megan Mylan (que conheci num evento, aqui, em 1995) concordamos que a melhor maneira de fazer isso era acompanhar algumas trajetórias no método do cinema direto. Então, cada proposta, cada conteúdo, pede um método e estou ciente disso. Mas não sacrifico o conteúdo pelo método.

Gosto também, por exemplo, de uma outra experiência narrativa diferente dessa, inspirada no método e estilo do Coutinho, que foi a abordagem que fiz em Cinderelas. Para mim, uma das melhores partes é a reunião do cabelereiro e do travesti em que eles se sentiram tão à vontade pelas minhas perguntas e com a minha atenção ao ponto de se mostrarem racistas. Ali, eu como realizador deixava eles à vontade, tinha uma participação como estimulador, ao ponto deles não se constrangerem ao revelar o pior do ser humano.

Patrícia Farias – Vejo você como um tipo de meio termo entre esses dois polos que citei, justamente porque você intervém, dialoga, e no Cinderelas isso fica mais explícito, mas também em A negação do Brasil.

Joel Zito Araújo – Sim, isso acontece em minha carreira. Mas, claro, também me vejo como um cineasta de documentário e de ficção, embora tenha uma visão muito diferente do papel de um e do outro. Quero coisas diferentes de um e de outro. Na ficção acho que devemos mergulhar mais nas emoções, abandonar uma perspectiva mais racional e reflexiva como faço nos documentários.

Acho que o documentário é produto de e para reflexão; embora tenha determinadas regras de dramaturgia, em comum com a ficção, embora também flerte com a emoção, é um produto que deveria criar um distanciamento, que deveria provocar uma reflexão. A ficção, não: acho que devemos buscar mergulhar numa narrativa mais sensorial. Gostaria de fazer mais ficção, certamente farei assim que for possível. Minha questão central, porém, sempre está nos meus filmes, tanto nos documentários como na ficção, que é a busca de uma estética da diversidade brasileira, destacando a experiência de ser negro, rompendo com a invisibilidade dele. Lembro aqui de elementos estéticos que coloquei no Filhas, que nenhum crítico parece ter percebido, e que quero trazer em outras experiências de cinema: a estética e a dramaturgia por trás dos mitos dos orixás, os tipos psicológicos que encontramos no panteão africano e que inspiram a construção dos personagens. Em Filhas tem Oxum, tem Iansã, tem muitos orixás por trás de cada um daqueles personagens. A mitologia dos orixás traz muito das experiências e dramas humanos: sexualidade, amor, intrigas, inveja, ressentimento… Gostaria de explorar mais isso. É um outro olhar, é o que eu chamo de buscar uma estética da diversidade típica de um país multirracial como o nosso, cheio de outras narrativas e povos, além dos europeus.

Patrícia Farias – Você falou de uma história da presença negra na TV, nas novelas, até um determinado momento: o livro e o filme são de 2000. Você vê alguma mudança em relação a hoje?

Joel Zito Araújo – Em termos de novela, estamos vivendo um momento muito interessante: no horário das 18h, a novela Lado a Lado tem temática e estórias onde os negros jogam um papel muito importante. Inclusive com a novidade de se ter a novela conduzida por um casal branco e um casal negro, com espaço praticamente igual. A série Subúrbia tem também um enorme elenco com atores negros e Glória Perez já disse que a inspiração para Salve Jorge, a novela das 20h, vem das mulheres guerreiras das favelas pacificadas pelas UPPs.

Essa quantidade de atores e personagens negros é inédita. Temos que pensar nisso. Isso é fruto de uma luta longa, nossa, dos atores, dos militantes negros, mas também acho que tem um fator novo: a emergência da chamada classe C. Ela quer ver histórias de seu cotidiano, quer ver personagens iguais a ela na TV e está conquistando espaço. A Globo está apostando nisso, não é à toa que Lázaro Ramos vive o protagonista na novela das 18h. Claro que ele é grande ator, muito carismático, mas há um momento muito favorável também. Estou vendo isso como um novo momento, como um novo tempo em que finalmente o povo negro vai fazer parte das imagens do país que a TV representa.

Mas o cinema não está acompanhando isso. Não tenho uma reflexão tão apurada como tenho sobre a telenovela, confesso. Talvez porque minha atenção esteja sempre voltada para a TV como objeto de pesquisa. Mas de uma coisa tenho certeza: o cinema blockbuster brasileiro é fiel à ideologia do branqueamento: são as mesmas categorias calcadas no colonialismo, com os mocinhos e mocinhas quase arianos, não sai daquilo. O cinema de autor, sim, já está sinalizando outra coisa. Há uma nova geração de cineastas que está se descolando disso, que tem mais consciência da questão racial.

Patrícia Farias – Quando você aponta este momento como interessante, me parece que sim, há um “momento interessante” no que diz respeito a atores e personagens. Mas não sei até que ponto isso é verdade no que se refere a realizadores negros, autores, roteiristas…

Joel Zito Araújo – Acho que a iniciativa da ministra da Cultura, Martha Suplicy, de lançar no Dia da Consciência Negra um edital para artistas e criadores negros e com projetos que tematizem a matriz africana é bem interessante nesse sentido. Ela vai criar um grupo de autores e novos cineastas, que poderá ter outro olhar.

O cinema norte-americano que revela os problemas de sua cidade, por exemplo, demonstra um pessimismo em relação à linha de cor que os separam. Eles parecem acreditar que os brancos estão de um lado da linha, os negros de outro, e que não tem como mudar, vai ser sempre desse jeito. Os filmes de Spike Lee por exemplo têm muito disso. Nós, não; nós estamos buscando a diversidade, estamos preocupados em apresentar o Brasil como ele é: branco, negro, indígena, oriental e misturado. Acho, portanto, que essa iniciativa será positiva para a indústria do cinema e da TV como um todo, formando novos realizadores negros, com um novo olhar. Então estou otimista, sim, com este momento na TV, acho que é interessante. Mas você tem razão, faltam diretores, realizadores negros por trás das câmeras, com um olhar diferente, dando visibilidade ao negro como parte deste país tão diverso.

Vou dar um exemplo desta mudança que está se passando no Brasil. Fui ao congresso da Associação dos Pesquisadores e Pesquisadoras Negros e Negras, o Copene; sempre vou. Havia 2.500 pessoas: jovens, universitários, todos preocupados com a questão racial. Aí pensei: “o Brasil vai mudar”. Daqui a dez anos, teremos uma nova geração fora dessa ideologia do branqueamento, do racismo, com uma outra perspectiva sobre a autoestima, sem tanta vergonha de ser o que é. É uma geração que não é a minha. Esse pessoal vai ser o avatar de uma grande mudança. Hoje começo a acreditar que em um futuro não muito distante seremos uma democracia racial (risos) graças ao protagonismo negro.

Ah, e também indígena! Preciso falar disso. No ano passado, comecei a ter contato, descobri um novo foco, uma geração indígena de realizadores, pessoas comprometidas com seus grupos étnicos, que vão para as universidades e passam a dominar as técnicas e os saberes de um olhar de fora sobre eles. E já, já, isso vai gerar um impacto, uma presença. Já temos cidades com educação bilíngue, trilíngue. Estamos tendo essa experiência aqui. Tem um novo Brasil da diversidade sendo construído  por estes antigos atores que estão virando protagonistas, negros e indígenas.

Joel Zito: “Precisamos de filmes e novelas que aproximem Brasil e África.”
Joel Zito: “Precisamos de filmes e novelas que aproximem Brasil e África.”

Patrícia Farias – E como você se coloca nesse contexto que está desenhando?

Joel Zito Araújo – Dentro desse universo, tenho o desejo de que meu cinema seja apreciado e absorvido por militantes, que vejam nele um instrumento que possa ser usado nas universidades, nos sindicatos, nos movimentos, para discutir o papel do negro na sociedade brasileira, o racismo, a discriminação. E também quero falar para os não-militantes, quero tocar essas pessoas, quero convencê-los que viver na diversidade é muito melhor do que debaixo de uma visão colonial.

Patrícia Farias – Seu último filme, Raça, fala sobre três personagens, três trajetórias da chamada “vida real”. Como foi a escolha dessas pessoas? Por que o Netinho, por exemplo?

Joel Zito Araújo – Eu e Megan fizemos um filme não sobre personagens, mas sobre a ação de personagens. Então o Netinho entra pelo projeto dele, a sua tentativa de construir a TV da Gente, a primeira TV negra no Brasil. Foi o impasse desse projeto que o levou à política e eu queria retratar isso. Da mesma forma, o filme não é sobre o Paulo Paim, é sobre a luta dele em aprovar o Estatuto da Igualdade Racial. E também não é sobre a líder quilombola, é sobre o movimento do qual ela faz parte. Isto é o que eu quis mostrar: realidades diferentes, mas o mesmo problema.

Patrícia Farias – Dentro desses movimentos e fluxos transnacionais, vejo que você também tem uma participação e uma conversa com o cinema africano, por exemplo. Você dá cursos de cinema em países africanos de língua portuguesa, é curador de um festival de cinema na África do Sul… O historiador, sociólogo e Dj negro Paul Gilroy fala desses fluxos da diáspora africana, cunhando a expressão “Atlântico negro”. Qual a importância disso para você?

Joel Zito Araújo – Realmente, de uns seis, sete anos para cá, passei a circular nesse universo. Passei a viver um conhecimento ao qual não tinha acesso. Tenho procurado participar cada vez mais. Dei um curso de cinema em Cabo Verde em setembro passado, em julho vou participar de uma associação de realizadores e produtores negros da África e da Diáspora. Sou também amigo dos realizadores africanos de maior visibilidade no período atual, como Zezé Gamboa, de Angola, ou Abdahamane Sissako, do Mali. A África tem três realidades distintas, quando falamos de cinema, o cinema maghrebiano e o subsaariano francófono e anglófono que são muito produtivos. A África do Sul tem uma gramática cinematográfica muito parecida com a do cinema americano, o que é típico do cinema anglófono africano. É um cinema de temática mais urbana, mais preocupado com o desenvolvimento e a manutenção de um mercado interno para o cinema. Já o cinema da área francófona tem mais influência da vanguarda francesa, de um cinema que renega a gramática americana. Mas o cinema africano em geral ainda é muito dependente de recursos de fora, o que tem impedido de surgir narrativas mais originais. Nós temos dinheiro interno, e também temos o mesmo problema.

Patrícia Farias – No cenário afrodiaspórico, como você situa o atual cinema norte-americano?

Joel Zito Araújo – O cinema negro americano, aliás, o norte-americano, é muito autocentrado, então é um pouco distante do resto. Apesar dos meus vínculos com os Estados Unidos, estou muito encantado com a África; penso que uma hora dessas vou começar a fazer filmes por lá. O Brasil é também muito autocentrado, afastado da discussão mais geral do cinema negro, africano, sem projetos de coprodução com África ou Ásia. Então, as agências financiadoras e outros possíveis financiadores dos projetos de cinema não compreendem bem quando proponho filmes que deem visibilidade a esse fluxo tão rico e importante que é o da África e Brasil. Precisamos de filmes e novelas que nos aproximem. Temos de sair da postura de deslumbrados em filmar apenas na Europa ou nos Estados Unidos. Mas eu chego lá.

Patrícia Farias – Uma preocupação da gente na revista também é com a circulação digital, muito presente na vida das pessoas hoje. Nossa revista é on-line. E como estamos pensando esse número sobre o mote de constituir caminhos, de traçar e mapear alguns deles, ficamos com a ideia de perguntar a nossos entrevistados e colaboradores se eles navegam, e por onde. Enfim, por onde você navega?

Joel Zito Araújo – Sou um navegador. Perco tempo com bobagem, com Facebook – para mim é o correio do momento, é o retrato do dia a dia, são amizades virtuais que ultrapassam o espaço físico de uma cidade. É a notícia do primo, a foto do amigo cujo filho nasceu, mas também é a informação do novo amigo de outro canto do país, de outro lugar do mundo. Também sou leitor de jornais e sites, especialmente de Portugal e Espanha. Ah, e para sugerir um link de algo original, acho que tudo mundo deve dar uma olhada no www.buala.org. É uma revista de cultura editada por portuguesas super vinculadas à África e ao Brasil. É de cultura e de arte sobre África e sua diáspora.

Vou muito a Portugal, França e Estados Unidos e me impressiona essa nova geração, de 30, 35 anos, especialmente em Portugal, que é muito cosmopolita. Como as duas Martas editoras da revista Buala, que são muito atentas à África, que já não têm aquela nostalgia colonial, salazarista. Essa geração está fora desse mundinho universitário brasileiro, que infelizmente ainda é muito restrito e estruturado na branquitude, no desejo de parte das turmas de jovens ingleses ou norte-americanos. Já esse site das portuguesas expressa uma geração europeia que rompeu com a estrutura colonialista, que ainda persiste na cabeça de muito brasileiro de classe media que se acha moderno e metropolitano.


Joel Zito Araújo: filmografia negra

Raça (2012)

Cinderelas, lobos e um príncipe encantado (2009) – Menção honrosa no Festival Internacional de Cinema de Brasília (2008), prêmios de melhor filme e melhor diretor (indicação do público) no Festival Ibero-Americano de Sergipe e no III Afro-Festival Film da Bahia (2010).

As filhas do vento (2004) – Prêmios de melhor filme, melhor ator (Milton Gonçalves), melhor diretor, melhor atriz (Ruth de Souza e Léa Garcia), melhor ator coadjuvante (Rocco Pitanga), melhor atriz coadjuvante (Thaís Araújo e Thalma de Freitas) na Mostra de Cinema de Tiradentes (2005).

Vista a minha pele (2003) – curta-metragem.

A negação do Brasil (2000) – Prêmio de melhor filme no Festival É Tudo Verdade (2001); Prêmio de melhor roteiro de documentário no V Festival de Cinema de Recife (2005).

A exceção e a regra (1997) – média metragem.

Ondas brancas nas pupilas negras (1995) – média metragem.

Eu, mulher negra (1994) – média metragem.

Retrato em preto e branco (1993) – média metragem.

Almerinda, uma mulher de trinta (1991) – média metragem.

São Paulo abraça Mandela (1991) – média metragem.

Alma negra da cidade (1990) – média metragem.

Memórias de classe (1989) – média metragem. Prêmio de melhor roteiro no Festival Ford/Anpocs, 1989.

Tempo de leitura estimado: 17 minutos

Recontando histórias em Insubmissas lágrimas de mulheres, de Conceição Evaristo

Maria Carolina de Godoy*

Escritora, professora, ensaísta e pesquisadora, Conceição Evaristo despontou no cenário da Literatura Brasileira com o romance Ponciá Vicêncio (2003) cujo enredo se constitui das experiências vividas pela personagem que dá nome à obra, apresentadas em tempos sobrepostos: passado e presente se misturam nas fissuras da memória e “com habilidade ímpar, o romance entrelaça de forma descontínua vidas passadas e presentes, memória individual e coletiva” (Campos e Duarte, 2011, p. 209). Em Becos da memória (2006) a autora também elege o ponto de vista feminino para o relato, como ocorre no livro Insubmissas lágrimas de mulheres (2011), que se funde às suas experiências de mulher negra e escritora, como ela mesma afirma em entrevista concedida a Eduardo Assis Duarte:

O ponto de vista que atravessa o texto e que o texto sustenta é gerado por alguém. Alguém que é o sujeito autoral, criador/a da obra, o sujeito da criação do texto. E, nesse sentido, afirmo que quando escrevo sou eu, Conceição Evaristo, eu-sujeito a criar um texto e que não me desvencilho de minha condição de cidadã brasileira, negra, mulher, viúva, professora, oriunda das classes populares, mãe de uma especial menina, Ainá etc., condições essas que influenciam na criação de personagens, enredos ou opções de linguagem a partir de uma história, de uma experiência pessoal que é intransferível (Duarte, 2011, p. 115).

A leitura do livro permite o contato não apenas com narrativas das experiências femininas, mas também com as peculiaridades do ouvir e do narrar. Uma voz presente em todas as narrativas alinhava os relatos e constrói a imagem do tecer enredos como quem costura experiências ao posicionar-se como ouvinte e tornar-se responsável por reunir os treze contos, exercendo a liberdade ficcional da contadora dos relatos coletados.

Desde sua infância, a autora diz ouvir histórias e a esse fato atribui seu gosto pela narrativa e conta sobre seu contato com a literatura, como nesta entrevista de Eduardo de Assis Duarte:

Como foram os seus primeiros contatos com a literatura?
Conceição Evaristo – Primeiro, foi com a literatura oral vivida no seio da família, nasci cercada de palavras. Cresci escutando histórias narradas por minha mãe, tias e tios. Histórias da escravidão, de princesas, de assombrações e outras. Os causos sobravam pelos cantos de minha casa (Duarte, 2011, p. 103-104).

Ela acrescenta, em outro momento da entrevista, comentários sobre sua relação com o conto e a poesia:

Sim, navego pelas águas do conto e da poesia e, apesar de ter um público leitor que aprecia meus versos e de ser mais conhecida como poetisa, gosto muito da prosa. Prefiro os meus contos aos meus poemas. Gosto de contar e de ouvir casos (Duarte, 2011, p. 108).

Desde o início dos relatos, é possível a identificação dessa relação entre as mulheres negras: a primeira, no presente da narração é caracterizada como ouvinte; a segunda, protagonista da história narrada, assume a narração de sua experiência em momentos especiais do conto. Na página de abertura do livro, encontra-se a exposição do processo de elaboração artística da autora, que fornece pistas quanto ao modo de organização das narrativas:

Gosto de ouvir, mas não sei se sou a hábil conselheira. Ouço muito. Da voz outra, faço a minha, as histórias também. E, no quase gozo da escuta, seco os olhos. Não os meus, mas de quem conta. […] Desafio alguém a relatar fielmente algo que aconteceu. Entre o acontecimento e a narração do fato, alguma coisa se perde e por isso se acrescenta. O real vivido fica comprometido. E, quando se escreve, o comprometimento (ou o não comprometimento) entre o vivido e o escrito aprofunda mais o fosso. Entretanto, afirmo que, ao registrar estas histórias, continuo no premeditado ato de traçar uma escrevivência (Evaristo, 2011, p. 9).

Ao relatar dores e alegrias simultâneas, as protagonistas rememoram descobertas da feminilidade e da maternidade, atos violentos contra seus corpos, reencontro com suas origens na infância ou na arte, ações permeadas por conflitos gerados em condições adversas da pobreza, do preconceito e do ser mulher e negra. Ao lado desses temas, a tentativa de preservação da memória é perceptível em uma narradora preocupada em ouvir e colher experiências a fim de registrá-las no texto escrito. Os treze contos do livro Insubmissas lágrimas de mulheres (2011), em sua breve extensão, possibilita o entrecruzamento de vozes e resgata o narrador-ouvinte que, além de ceder a voz à experiência de personagens, esclarece de que maneira teceu os discursos das narradoras, como mostra o conto “Aramides Florença”: “Quando cheguei à casa de Aramides Florença, a minha igual estava assentada em uma pequena cadeira de balanço e trazia, no colo, um bebê que tinha a aparência de quase um ano” (Evaristo, 2011, p. 11).

Mudar o rumo de uma história de vida que parecia definida configura-se como eixo temático comum entre os relatos do livro em cujo título se encontra a pista para essa interpretação: “insubmissas lágrimas”. As mulheres dos contos de Conceição Evaristo negam o modelo do século XIX que se formulou a partir do século XVIII:

O discurso sobre a “natureza feminina”, que se formulou a partir do século XVIII e se impôs à sociedade burguesa em ascensão, definiu a mulher, quando maternal e delicada, como força do bem, mas, quando “usurpadora” de atividades que não lhe eram culturalmente atribuídas, como potência do mal. Esse discurso que naturalizou o feminino, colocou-o além ou aquém da cultura. Por esse mesmo caminho, a criação foi definida como prerrogativa dos homens, cabendo às mulheres apenas a reprodução da espécie e sua nutrição (Telles, 2004, p. 403, grifos da autora).

Foto: Katia Santos
Conceição Evaristo em encontro no Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC/ UFRJ).
Conceição Evaristo em encontro no Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC/ UFRJ).

Em seus contos, Conceição Evaristo não apenas coloca em evidência temas caros à condição feminina, como também preserva em sua forma resquícios da tradição africana, isto é, recria histórias como conhecedora de sua tradição de mulher negra.

Ouvir e contar são posturas narrativas que retomam os griots, guardiões das histórias orais de um povo que as transmitem ao longo do tempo. Para que haja essa troca quase ritualística entre a ouvinte e a narradora ocorre, inicialmente, a identificação e a empatia entre mulheres negras, como mostra o conto “Isaltina Campo Belo”:

Campo Belo, como gostava de ser chamada, dentre outros detalhes, tinha uma idade indefinida, a meu ver. Se os cabelos curtos, à moda black-power, estavam profundamente marcados por chumaços brancos, denunciando que a sua juventude já tinha ficado há um bom tempo para trás, seu rosto negro, sem qualquer vestígio de rugas, brincava de ser o de uma mulher que no máximo teria quarenta anos (Evaristo, 2011, p. 49).

Ou na narrativa de Mary Benedita:

Não imaginei, entretanto, que ela [Mary Benedita], mal sabendo que uma ouvinte de histórias de suas semelhantes havia chegado à cidade, tivesse vindo tão rapidamente à minha procura, para atender o meu afã de escuta. Tímida, porém determinada, foi logo dizendo que precisava me contar algo de sua vida. Viera para me oferecer o seu corpo/história (Evaristo, 2011, p. 59).

No conto contemporâneo, o simulacro do contar histórias nos moldes da tradição oral é uma de suas principais características:

Não é o narrador oral quem persiste no conto, mas a sombra daquele que o escuta. […] A presença de quem escuta o relato é uma espécie de estranho arcaísmo, mas o conto como forma sobrevive porque levou em consideração essa figura que vem do passado. […] Há um resquício da tradição oral nesse jogo com um interlocutor implícito; a situação de enunciação persiste cifrada e é o final que revela sua existência (Piglia, 2004, p. 101).

Além da recuperação da tradição oral, há presença dos mitos afro como a identificação entre a personagem Adelha Santana Limoeiro e Nanã, a sábia senhora dos primórdios:

Adelha Santana Limoeiro, negra, poderia sim, relembrar a santa branca, a Santana, pois a avó de Jesus aparece sincretizada com Nanã, mito nagô. Misturando a fé, fiz o amálgama possível. Pisei nos dois terrenos, já que Nanã é também velha. Adelha Santana Limoeiro é Nanã, aquela que conhece o limo, a lama, o lodo onde estão os mortos. Santana, Nanã, Limo (eiro). E depois desse reconhecimento, já é possível recontar a história que Santana me contou (Evaristo, 2011, p. 33).

O marido, que procurava constantemente outras mulheres, sentiu-se mal em uma dessas aventuras e precisou ser socorrido pela esposa. Adelha, em virtude do agravamento da saúde do esposo, resolve ficar morando na mesma casa onde ele passara mal até sua morte. Ela faz o inusitado ao se mudar para o lugar em que ele foi encontrado, atribuindo tal atitude à sabedoria advinda da velhice, como mostra o fragmento abaixo:

Eu quero viver a grandeza da minha velhice e estou conseguindo sem mentiras, sem falsos remédios. Não quero me iludir com a cruel promessa da devolução de um tempo que já passou. E assim fiquei com ele algumas semanas, na casa, do outro lado do córrego. Ele, as jovens mulheres e eu. Nos primeiros dias, envergonhado, ele não quis voltar para casa. Depois, o médico da cidade, que atendia ao meu chamado toda vez que ele desfalecia, achou melhor ficarmos por ali mesmo. […] Seu último gesto foi tentar levar as mãos no entremeio de suas pernas. Assim a história dele terminou – não a minha –, enfatizou Santana, no final desse relato (Evaristo, 2011, p. 37).

No conto intitulado “Aramides Florença” há intervenções da narradora-ouvinte que expõe suas impressões de observadora dos acontecimentos que narra, identificando-se com a mulher descrita:

Eu percebi intrigada que, tanto pelos sons, como pela expressão de rosto e movimentação de corpo do menininho, o melodioso balbucio infantil se assemelhava a uma alegre canção. Teria a criança, tão novinha – pensei mais tarde, quando ouvi a história de Aramides Florença – rejubilado também com a partida do pai? Só a mãe, só a mulher sozinha, lhe bastava?” (Evaristo, 2011, p. 12).

A protagonista conta ter planejado primeiro ter um filho e, depois, a escolha do pai, o que mostra o exercício da liberdade feminina no final do século XX: “Ter um filho havia sido uma escolha que ela fizera desde mocinha, mas que vinha adiando sempre. Vivia à espera de um encontro, em que o homem certo lhe chegaria, para ser o seu companheiro e pai de seu filho” (Evaristo, 2011, p. 13). Procurou realizar seus sonhos em condições econômicas satisfatórias.

A narradora, apesar do distanciamento temporal dos fatos, torna-se empática à experiência da gestação da personagem e procura transferir ao discurso a emoção da espera do primeiro filho: “E, durante os nove meses, vivenciaram as excitações dos parentes e amigos em seus prognósticos. […] Enquanto isso, a criança, exímia nadadora, bulia incessantemente na bolha d´água materna” (Evaristo, 2011, p. 13-14). O ato de violência sexual do marido contra Aramides, entretanto, é narrado pela própria protagonista:

Estava eu amamentando o meu filho – me disse Aramides, enfatizando o sentido da frase, ao pronunciar pausadamente cada palavra – quando o pai de Emildes chegou. […] Numa sucessão de gestos violentos, ele me jogou sobre nossa cama, rasgando minhas roupas e tocando violentamente com a boca um dos meus seios que já estava descoberto, no ato de amamentação de meu filho. E, dessa forma, o pai de Emildes me violentou. […]  E, inexplicavelmente, esse era o homem. Aquele que eu havia escolhido para ser meu e com quem eu havia compartilhado sonhos, desejos, segredos, prazeres… (Evaristo, 2011, p. 17-18).

Nesse momento, os tempos da narração e da história se entrecruzam sutilmente e a cena trazida do passado, pela voz daquela que viveu o acontecimento nuclear da narrativa, confere ao relato não apenas maior impressão de veracidade, como também é o modo pelo qual a narradora assinala a importância de ceder o espaço àquela voz que precisa realmente ser ouvida.

Outra narrativa que põe em evidência a violência masculina é a de Shirley Paixão: “Foi assim – me contou Shirley Paixão – quando vi caído o corpo ensanguentado daquele que tinha sido meu homem, nenhuma compaixão tive” (Evaristo, 2011, p. 25). Predomina a narração comovente da protagonista a partir da qual se conhece sua história e de suas cinco filhas: três do marido, concebidas em outra relação, e duas de sua relação com outro homem. Seni sofre abusos do pai e conta com o amor e a proteção de Shirley que, ao descobrir a violência contra a menina, agride o companheiro deixando-o quase morto: “Naquela noite, o animal estava tão furioso – afirma Shirley chorando – que Seni, para a sua salvação, fez do medo, do pavor, coragem. E se irrompeu em prantos e gritos” (Evaristo, 2011, p. 29).

As personagens passam a ser (re)criadoras de sua trajetória, ao negarem imposições características dessa construção histórica patriarcal em que seu espaço foi definido pelo outro. Nos contos, as protagonistas deslocam-se, transitam, mudam de lugar para se encontrarem com a realização de seus anseios. A negação de uma história e a afirmação de outra são marcas dessas narrativas e, simbolicamente, ao ceder voz às personagens, a narradora permite que elas sejam, pelo breve espaço de um conto, participantes da criação artística:

Tanto na vida quanto na arte, a mulher no século passado aprendia a ser tola, a se adequar a um retrato do qual não era a autora. As representações literárias não são neutras, são encarnações “textuais” da cultura que as gera. […] Para poder tornar-se criadora, a mulher teria de matar o anjo do lar, a doce criatura que segura o espelho de aumento, e teria de enfrentar a sombra, o outro lado do anjo, o monstro da rebeldia ou da desobediência. O processo de matar o anjo ou o monstro refere-se à percepção das prescrições culturais e das imagens literárias que de tão ubíquas acabam também aparecendo no texto das escritoras (Telles, 2004, p. 408).

A relevância adquirida pela posição da ouvinte nas narrativas desses contos demonstra respeito à voz e à experiência alheias, aliadas à identificação com as dores vividas no corpo de mulher negra. Ao mesmo tempo, representa peculiaridades da construção narrativa de alguém que conhece suas tradições e traz a singularidade do encontro de duas histórias: a da ouvinte griot, desejosa de conhecer o relato, e da vivência da protagonista, ansiosa por compartilhar sua trajetória. Ambas condensadas na escrevivência de Conceição Evaristo.

A presença da mesma narradora que se dispõe a ouvir os relatos de mulheres e posiciona-se no papel de condutora, como um fio de Ariadne, possibilita o entrecruzamento de todas as vozes nos labirintos dessas lembranças revividas pelo narrar. As impressões da narradora e a perspectiva de análise do passado realizada pela protagonista ao assumir o relato e a história nuclear desencadeadora da curiosidade da ouvinte estão presentes, por exemplo, no conto “Maria do Rosário Imaculada dos Santos”:

O sorriso dela foi tão encantador e respondeu ao meu boa tarde, de uma maneira tão efusiva, que, para quem busca histórias, aquela atitude afiançava o desejo dela de conversar comigo. E quando, embora brincando, revelou o seu descontentamento com o próprio nome, me lembrei da mulher que havia criado um nome para si própria. Tive vontade de contar a história de Natalina Soledad [outro conto do livro], mas, naquele momento, o meu prazer era o da escuta. Insistindo sempre que de imaculada nada tinha, Maria do Rosário, ainda fazendo troça, pediu licença à outra, a santa, e começou a narração de um pouco de sua vida (Evaristo, 2011, p. 39).

A estreita relação entre o saber ouvir e a memorização de experiências do outro, tão bem caracterizada por Benjamin como marca dos narradores orais, é resgatada nesses contos em que a narradora cede constantemente a palavra às personagens. Desse modo, adquire relevância o contar, a voz de quem viveu a experiência:

Nada facilita mais a memorização das narrativas que aquela sóbria concisão que as salva da análise psicológica. Quanto maior a naturalidade com que o narrador renuncia às sutilezas psicológicas, mais facilmente a história se gravará na memória do ouvinte, mais completamente ela se assimilará à sua própria experiência e mais irresistivelmente ele cederá à inclinação de recontá-la um dia. Esse processo de assimilação se dá em camadas muito profundas e exige um estado de distensão que se torna cada vez mais raro (Benjamin, 1994, p. 204).

Em sua escrevivência, literatura e vida de mulheres negras se fundem numa voz que conta e canta, poeticamente, as experiências únicas e intransferíveis, registradas no espaço da escrita, da arte de outras vidas:

Asseguro que a minha condição étnica e de gênero, ainda acrescida de outras marcas identitárias, me permite uma experiência diferenciada do homem branco, da mulher branca e mesmo do homem negro. A minha experiência pessoal influencia a minha escrita conduzindo o ponto de vista, a perspectiva, o olhar que habita meu texto (Conceição Evaristo in Duarte, 2011, p. 115).


* Doutora em Estudos Literários pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2007) e professora adjunta da Universidade Estadual de Londrina (UEL) no Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas.

Referências:

BENJAMIN, W.  O narrador. In:_____. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 197-221.

CAMPOS, M. C. C. C. e DUARTE, E. A. Conceição Evaristo. In: DUARTE, E. A. (org.) Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica. Belo Horizonte: UFMG, 2011. p. 207-226.

CORTÁZAR, J. Alguns aspectos do conto. In:____. Valise de cronópio. Tradução Davi Arrigucci Jr. e João Alexandre Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 1974. p. 147-163.

DUARTE, E. A. e FONSECA, M. N. (org.) Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica. Belo Horizonte: UFMG, 2011. p. 103-116.

EVARISTO, C. Insubmissas lágrimas de mulheres. Belo Horizonte: Nandyala, 2011.

PIGLIA, R. Formas breves. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

TELLES, N. Escritoras, escritas, escrituras. In: PRIORE, M. D. (org.) História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2004. p. 401-442.

Tempo de leitura estimado: 12 minutos

O povo negro do samba: invisibilidade e protagonismo

Katia Santos*

…de noite, vai ter cantoria
e está chegando o povo do samba
é a Vila, chão da poesia, celeiro de bamba
Vila, chão da poesia, celeiro de bamba…

Unidos de Vila Isabel, Carnaval 2013.

Sambódromo, Rio de Janeiro, primeiras horas da manhã do dia 12 de fevereiro. O dia começa a clarear. Há menos de uma hora terminou o desfile da última escola de samba da noite, no segundo dia de desfiles, a Unidos de Vila Isabel. A escola fez um desfile primoroso, beneficiada pelo samba enredo eleito pelos experts no assunto como o melhor da safra de 2013, composição de Martilho da Vila, Arlindo Cruz, Leonel, André Diniz e Tunico da Vila.

Carro alegórico da São Clemente: A TV no desfile de carnaval de 2013.
Carro alegórico da São Clemente: A TV no desfile de carnaval de 2013.

Começávamos a nos retirar da avenida, depois de passarmos exatas 12 horas instalados no duro concreto do setor 10, de onde podíamos acompanhar o recuo de cada bateria das escolas de samba da noite – R$ 200, redondos, foi o que pagamos pelo espetáculo. Prudentes, deixamos que a maioria afoita, formada por turistas nacionais e internacionais, se retirasse no primeiro segundo do fim do desfile da Vila Isabel e nos demoramos um pouco mais na arquibancada. Cantávamos ainda o contagiante samba. Acompanhávamos o carro de som que serviu à Vila, e que retornava à avenida tendo ainda três integrantes da escola no alto, sendo Arlindo Cruz uma delas. De longe, tínhamos a impressão de que eles foram esquecidos ali no alto. Mas tudo indicava que o carro com o equipamento que os traria ao chão não acompanhou a escola e, assim, o carro de som teve que voltar, vindo ao encontro do carro auxiliar. Gritamos “Arlindo”, berramos “é campeã!” e, enfim, decidimos nos retirar, de verdade dessa vez.

Quando descíamos a avenida em direção à Presidente Vargas, parecia que éramos os últimos. Mas logo, não lembro bem em que momento, estávamos andando ao lado de um pequeno grupo de integrantes da Vila Isabel. Apenas as duas mulheres do grupo não estavam com as cores e identificação da escola. Quando percebemos que eles conversavam sobre o fiasco da Mangueira, nem pedimos licença, juntamo-nos ao grupo nos comentários, enquanto todos andávamos na mesma direção. Além das mulheres, havia dois homens e seis rapazes, todos adolescentes e com jeito de profissionais do samba, da arte de cantar samba na avenida, talvez. Cheguei a interagir com um deles que me disse ali, com muita segurança, depois de saber que falava com uma das mangueirenses do grupo, quantos pontos/décimos a Mangueira perderia por ter utilizando seis minutos além do máximo permitido em seu desfile.

Tinga levantou a Sapucaí e se consagrou como o grande intérprete do Carnaval 2013.
Tinga levantou a Sapucaí e se consagrou como o grande intérprete do Carnaval 2013.

Não pareciam ter pressa, estavam mais interessados no debate, no qual nos metemos e do qual participamos ativamente. Enquanto isso, alguém gritou de longe: “Tinga! Hei, Tinga! Parabéns, cara! Vai dar Vila, tem que ser, foi 10!” E assim nos demos conta de que estávamos proseando com aquele que viria a ser o grande intérprete do Carnaval de 2013 – o grande porque vencedor do ano: Tinga (Anderson Antonio dos Santos), o intérprete da Escola de Samba Unidos de Vila Isabel.

O grupo de Tinga parou por alguns minutos para falar com o outro grupo e nós seguimos, alguns de nós afirmando saber de antemão que conversávamos com o puxador Tinga, e outros assumíamos que não sabíamos se tratar de Tinga. E assim seguimos em frente e eles vieram depois, ficaram a uma pequena distância de nós. Nosso grupo se dispersou na altura da Central do Brasil, mas enquanto pudemos tentamos acompanhar à distância a caminhada do principal intérprete da Vila Isabel. Eles seguiam andando e conversando entre eles. Creio que foram além do ponto em que nos dispersamos, em direção talvez a algum estacionamento.

Comentávamos o fato de termos uma pessoa tão importante para a escola, provável campeã daquela noite, ali entre nós, naquela longa caminhada depois de uma noite tão glamourosa e exaustiva para ele. Evidentemente, logo passamos a teorizar sobre o lugar do “povo do samba” no espetáculo que virou o desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro. No curto percurso – para tão complexa discussão – que nos restava até nossos destinos finais falamos da invisibilidade e fundamental presença e participação dos integrantes das comunidades de origem das escolas no corpo das escolas de samba, principalmente em dia de desfile. Falamos ainda da não coincidência de serem os negros, como Tinga e seu grupo, os “invisíveis e fundamentais” da questão.

E neste mesmo período de Carnaval carioca de 2013 houve um outro evento que despertou minha atenção. Aconteceu três dias depois do encontro com Tinga, na sexta-feira, quando já sabíamos que a Vila Isabel era a grande campeã.

Peguei o ônibus 348, Praça XV, no último ponto de Jacarepaguá antes que este siga pela Linha Amarela. É o ponto de ônibus na Estrada do Gabinal, em frente ao conjunto de apartamentos da Cidade de Deus. Quando entrei, uma senhora estava se posicionando em um assento próximo à porta, provavelmente por ter pego o ônibus um ponto antes de mim – no último ponto do conjunto de casas da Cidade de Deus, também. Reparei logo nesta senhora porque ela trazia no pescoço um pesado colar de contas azuis que davam um contraste interessante com o seu tom de pele tão negro. Fiquei tentando adivinhar qual seria o orixá representado por aquele colar. Minutos depois sentei-me próxima a esta senhora só que do lado oposto ao dela. E quando o ônibus ficou mais vazio ela começou a resmungar olhando ao redor: “Sempre que a gente está atrasado tudo acontece! Olha esse engarrafamento! E ainda com um motorista ruim desse…”

Sorri para ela solidária com sua queixa e me predispondo a uma interação qualquer. Ela então prosseguiu reclamando do trânsito, do motorista, do calor, da empresa de ônibus… E não sei bem em que momento, começou também a reclamar da colocação de sua escola de samba na apuração do carnaval, a Mocidade Unida de Jacarepaguá. Disse-me – parecia pensar em voz alta – que sua escola, do grupo de acesso D, ficara em quarto lugar, e que a culpa era de alguém que não entendi bem quem seria. De qualquer forma, tudo era culpa dessa pessoa. Eu estava sentada à sua direita, do outro lado do corredor, na mesma direção, mas ela falava olhando para a frente e gesticulando muito, olhando-me apenas de vez em quando. Mas o melhor de sua fala aconteceu quando ela parecia ainda mais irada, e falava alto, olhando para as mãos, para a frente, para fora do ônibus e quase nunca para mim: “E ela ainda vem me dizer, ‘tem que escolher, ou a nossa escola ou a Mangueira’. Quem é ela?! Quem é ela pra querer me fazer escolher. Ela fica lá, ocupando a quadra com funk. Nunca vi isso. E ainda quer ser campeã e me dizer o que fazer. Quem é ela?! Enquanto eu já desfilei em mais de vinte escolas, já fui Estandarte de Ouro pela escola tal, já fiquei em segundo com a escola tal, já dei campeonato a três escolas, já…” E aí tive que interrompe-la para saber em que setor dessas escolas ela desfilava: ala das baianas. E tentando dar sequência à conversa comentei que o Bloco Coroado de Jacarepaguá, bloco vizinho a sua escola, tinha ficado em segundo lugar, e ela foi rápida: “Não interessa! O Coroado é bloco, não é escola. Nós somos escola!” Resolvi, então, apenas ouvi-la.

Disse-me depois que estava indo para um evento pós-Carnaval na Cidade do Samba, “fazer apresentação pros gringos e ganhar um dim-dim”. E que, inclusive, ia também para assinar um certo documento que confirmaria sua ida à Argentina este ano para apresentações de Carnaval. Mostrei-me impressionada e ela logo adiantou que sempre vai nessas apresentações na Argentina – falou bem orgulhosa e ainda mais alto.

De repente seu celular começou a tocar, eram as amigas. Orientou-as: “Se vocês chegarem antes de mim, pedem ao pessoal da Império da Tijuca [escola primeira colocada do grupo de acesso] pra colocar vocês pra dentro, diz que vocês são baianas novas”. Quando acabou a ligação, olhou para mim, deu uma piscadela e emendou, “Chamei umas amigas. Não vou comer sozinha, né. Quem come sozinho só come uma vez.” Concordei, e o telefone dela tocou outra vez. Como já estava perto de seu destino, despediu-se de mim enquanto estava ainda atendendo a ligação, e foi-se. Fiquei para trás pensando: qual seria a ligação entre a baiana viajada e o intérprete Tinga e seus meninos – descobri depois – puxadores mirins? Isto porque o encontro com esta senhora, no mesmo instante, trouxe-me à lembrança o encontro e diálogo, na madrugada do desfile do grupo especial das escolas de samba, com o intérprete Tinga. E este interesse e link têm um contexto, evidentemente.

Terreirão do samba no raiar do dia
Terreirão do samba no raiar do dia

Em 2004, quando comecei a conversar com a sambista Dona Ivone Lara[1] sobre o samba em sua vida, foi quando descobri que existe no Rio de Janeiro uma cidade paralela à cidade oficial. Um tipo de Cidade do Samba que só existe na memória e na narrativa das pessoas. E essa cidade do povo do samba é pulsante, forte, movimentada, festeira e negra, sim. Desde então, passei a olhar o Carnaval carioca e as comunidades de samba com outros olhos. Aprendi a enxergar as várias camadas que formam a população que todo ano invade a Marquês de Sapucaí, tanto na avenida quanto nas arquibancadas, camarotes, frisas, cadeiras etc. Logo, não haveria melhor lugar para conduzir, como desejava, uma pesquisa sobre as dinâmicas culturais dos negros no Rio de Janeiro desde o período pós-abolição[2]. Apesar de o desfile das escolas do Rio ser, sim, tudo o que sabemos dele (covardemente excludente, caro, um tanto repetitivo, plástico demais etc.) há ainda um povo negro do samba que acredita de coração na sua escola, na escola de sua comunidade, nas cores que defende. Acreditam que “samba é coisa de preto”, que “se não tiver crioulo não tem samba”, que “quem faz aquilo lá é a gente!” – todas declarações feitas nas entrevistas que venho conduzindo. O compositor Altay Veloso vai mais longe. Na canção “Rio Nilo”, sobre a comunidade de samba da Escola de Samba Beija-Flor de Nilópolis, ele permite que a cantora Leny Andrade nos informe:

Quem ajuda esse povo a cruzar o deserto é o samba
Quem faz esse povo virar bailarino é o samba
Nas margens do Nilo quem
tira os meninos da rua é o samba…
Pois esse é o primeiro dos dez
mandamentos do samba…
Abre o mar que eu vou passar
Com uma procissão de passistas da Beija-Flor

Assim, a partir de entrevistas com pessoas que vivem e/ou viveram o samba, fui levada a uma outra esfera cultural da cidade, um lugar idílico, onde sambistas, sambas, passistas, compositores, canções, mães de santo, terreiros, malandros, cantoras, cantores, puxadores de samba, carnavalescos, governantes, patronos e artistas de outra linha possuem sólidas histórias de vida. Estas podem variar um pouco na sua gênese – dependendo do narrador – mas a memória que as abriga é sólida, fiel e reverenciadora, na grande maioria das vezes. A cada nova conversa, sou apresentada a um personagem, um evento, uma canção, que habitam quase que tão somente as memórias (afetivas, muitas vezes) comum a essas pessoas. Nesse lugar preservado e de preservação, de cuidado, há dinastias familiares, versadores imaculados, compositores reverenciados, patronos temidos, mulheres e homens de belezas incontestes, passistas, dançarinas e dançarinos de grande prestígio, cozinheiras “de mão cheia”, e músicos e letristas que, uma vez ali, jamais morrerão. E na fala das pessoas toda essa dinâmica apresenta-se indubitavelmente como um relato de um mundo negro, de ontem e de hoje, sem apologéticas – o que não acontece na avenida.

São questões negras que temos que ver de perto. O que assistimos na TV e vemos na superfície da avenida em dia de desfile – ou até mesmo nas quadras de algumas escolas – não é o único retrato fidedigno do Carnaval da avenida. Aproximando-nos, vemos as outras camadas, aquelas que na grande maioria das vezes não atraem as câmeras de televisão ou qualquer outra mídia. Mas que nem por isso deixam de estar por lá, com legitimidade e pertencimento e bastante protagonismo, ainda que emboladas pelas pernas congeladas do gringo de ocasião.

Devemos evocar todos os saberes e memórias que habitam esta Cidade Negra do Samba para que venham nos ensinar como retirar a negritude local, brasileira, das sombras do olimpo da cultura oficial e estabelecê-la aqui, em terra firme, em todas as avenidas do país. Seria um ato quase reparador do último país do planeta a abolir a escravidão. E este mesmo Brasil seria, assim, o modelo de preservação, multiplicação e expertise do legado cultural dos indivíduos que formam a produtiva e inventiva Diáspora Negra.

E em caso dúvidas acerca deste legado, Brasil, “pergunte ao criador / quem pintou essa aquarela”.

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description=”Samba enredo da Vila Isabel 2013.”
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/] Samba enredo da Vila Isabel 2013.

* Katia Santos é pesquisadora independente, tradutora, escritora e autora do livro Ivone Lara, a dona da melodia.

[1] Nossas conversas resultaram no livro Ivone Lara, a dona da melodia, publicado em 2010.

[2] Pesquisa em andamento.

Tempo de leitura estimado: 30 minutos

As religiões afro-brasileiras e a cidade

Marcia Contins*

Comparando experiências religiosas

As imagens da cidade não somente permitem como suscitam um trânsito e trocas intensas entre seguidores de diferentes religiões e segmentos sociais. O fluxo e o diálogo entre fronteiras religiosas e étnicas permitem novas representações em termos de categorias espaciais e sociais. Este artigo pretende refletir sobre a presença das religiões afro-brasileiras no espaço urbano contemporâneo. As estreitas, tensas e ambíguas relações entre a igreja católica, os neopentecostais e as religiões afro-brasileiras, tais como o candomblé e a umbanda no Rio de Janeiro, tornam possível uma rica discussão. Minha pesquisa atualmente está voltada para descrever as diversas formas de enquadramentos religiosos no espaço urbano realizados por diferentes grupos religiosos, especialmente aqueles relacionados às religiões afro-brasileiras. Darei ênfase, principalmente, às mudanças na forma de viver a religião na contemporaneidade e à maneira como essas mudanças se expressam nesses diversos universos religiosos.

O foco dessas reflexões são as relações entre religião e contexto urbano, analisando o fato de que determinados grupos religiosos distinguem-se a partir de sua modalidade de inserção no espaço da grande cidade moderna, no caso a cidade do Rio de Janeiro. Exploro os vínculos de natureza social e cultural na experiência desses grupos, sobretudo nos processos de apropriação do espaço da cidade, assim como os vínculos de natureza cosmológica expressos por categorias mágico-religiosas, valorizando, desse modo, o ponto de vista nativo para o entendimento de suas experiências (Contins, 2005, 2009; Contins e Gomes, 2007, 2008).

Este último aspecto desempenha papel relevante na comparação entre essas experiências religiosas, principalmente no que se refere às religiões afro-brasileiras e à relação de oposição entre estas e os grupos pentecostais e carismáticos católicos. Localizados em diversos pontos da cidade do Rio de Janeiro e associados a distintas identidades religiosas, esses grupos partilham a experiência de terem suas práticas e representações moldadas pela sua participação em determinados circuitos religiosos e de sociabilidade.

Tais grupos elaboram representações dessa experiência em função mesmo de estarem inseridos em distintas tradições religiosas e étnicas. Nesse sentido, ofereceram um campo metodologicamente privilegiado para a comparação. É importante destacar as relações sociais a partir das quais são construídas essas concepções enquanto matrizes de identidades socioculturais e étnicas, centrando a atenção nas funções sociais e simbólicas que desempenham essas representações nos processos de construção de distintas modalidades de autoconsciência individual e coletiva. As discussões sobre as relações e as experiências desses grupos religiosos passam, necessariamente, pelo  seu permanente deslocamento e circulação no espaço da grande cidade e pelo aprofundamento da noção de “circuitos urbanos”[1]. Esses estudos também exploram as repercussões que tais deslocamentos e circulação exercem sobre as autorrepresentações desses grupos.

Antes de analisar essas experiências, com alguns exemplos do meu trabalho de campo atual, gostaria de tratar aqui da minha trajetória como pesquisadora dessa área de estudos e como cheguei a trabalhar com a discussão sobre religiões afro-brasileiras e a cidade. Exploro também as transformações dentro desse campo de estudo.

As religiões afro-brasileiras e o espaço da cidade na década de 1970 e 1980: o trabalho de campo do antropólogo

Durante as décadas de 1970 e 1980, realizei pesquisas sobre umbanda e candomblé no Rio de Janeiro, especificamente na Baixada Fluminense. Naquele tempo eram poucas as igrejas pentecostais existentes naquela área e por outro lado havia inúmeros terreiros de umbanda e candomblé. Eram todos terreiros locais, ou seja, com clientela basicamente do próprio bairro, apesar de receberem eventualmente pessoas de outros locais.

O lugar desses centros de umbanda para a vida do bairro foi analisado em um artigo que produzimos na época, “Gueto cultural ou a umbanda como modo de vida” (Maggie e Contins, 1980). Naquela ocasião realizávamos um trabalho de campo em locais considerados mais distantes do centro da cidade. Quanto mais distante socialmente e geograficamente de nós pesquisadores, mais “autêntico” o campo. Em geral eram locais menos urbanizados, com ruas sem asfalto e também com poucos meios de transporte. O trajeto para esses locais da Baixada Fluminense passava necessariamente pela Via Dutra e depois por caminhos estreitos, geralmente de terra, até chegarmos nas casas que abrigavam os terreiros. Era frequente dormirmos nos locais de pesquisa, já que as sessões de umbanda e candomblé duravam a noite toda e só pela manhã terminavam. Pensávamos, naquele tempo, que havia uma distância social e psicológica significativa entre nós e o grupo que iríamos estudar.

A experiência de campo era muito marcante e toda a interpretação que construímos parecia diminuir e simplificar a realidade vivida pelas pessoas. O importante, naquele momento, era trabalhar a partir do ponto de vista nativo, ou seja, perceber o significado da religião para suas vidas como um todo. Percebemos que, nesse tipo de situação religiosa, na umbanda principalmente, havia uma relação profundamente estreita e imbricada entre o cotidiano e o universo ou domínio religioso.

Esses terreiros funcionavam como um centro criador de relações simbólicas, sociais e econômicas. Tratar a umbanda apenas como uma religião seria deixar de perceber uma dimensão mais ampla desse fenômeno, já que toda a vida das pessoas do bairro estava relacionada com o que se passava e se formava a partir dos terreiros. Chamamos de “modo de vida da umbanda” esse tipo específico de relação social, econômica e ideológica criada a partir dos terreiros (Maggie e Contins, 1980).

A Baixada Fluminense, naquele momento, e o bairro que estudamos em particular, viviam uma situação de isolamento social e espacial. Partimos de um estudo de caso a partir da descrição do bairro, da história do terreiro, de sua organização social e econômica. O terreiro, neste caso estudado, era o centro de onde era gerada grande parte das relações sociais, econômicas e simbólicas vividas pelo grupo. Enquanto “guetos culturais”, esses terreiros estavam distantes dos centros de decisão, de emprego, do poder público e centralizavam a produção cultural desses grupos.

O trabalho de campo e as análises  realizadas em situações específicas, em um único terreiro ou grupo, durante as década de 1970 e 1980, faziam um contraste significativo com relação às análises de desenvolvimento econômico e social realizadas nas décadas anteriores, estudos estes com enfoque mais generalizantes. Havia um debate também, nesse momento, com os autores que trataram a umbanda como sintoma de um processo de urbanização da cidade.

O livro Guerra de Orixá: um estudo de ritual e conflito, por exemplo, inaugura essa mudança no fazer antropológico, escrito, segundo a autora, “em meio a um turbilhão de mudanças no país e na antropologia brasileira” (Maggie, 2001, p. 7). Ainda de acordo com ela, a sua geração, que ficou impedida de se expressar por meios políticos nas décadas de 1960 e 1970, tentou por meios menos ortodoxos uma outra descrição do país. Em termos da antropologia das religiões afro-brasileiras, os enfoques ficaram mais centrados em campos específicos, em estudos de caso, e dessa forma rompem com os estudos sobre a busca da origem dessas religiões, relacionada a uma autenticidade africana. O lugar da África estava agora nos próprios terreiros.

Na década de 1980, vários autores discutiam o papel da autoridade etnográfica e as pesquisas buscaram trabalhar com narrativas dos próprios “informantes”, agora também como autores. Pesquisando comparativamente os negros pentecostais norte-americanos e brasileiros na década de 1980 e no começo de 1990 (Contins, 1995), tentei não privilegiar apenas a minha interpretação e análise dos grupos estudados, mas iluminar o fato de que a minha voz era apenas uma das muitas vozes que iriam aparecer na pesquisa.

As minhas dúvidas com relação ao modo tradicional de interpretação etnográfica foram surgindo a partir do momento em que eu não estava mais satisfeita com a discussão antropológica de olhar o “nativo” como um “outro”, separado do etnógrafo e principalmente possuidor de uma verdade intrínseca que precisava ser desvendada por mim ou por outros pesquisadores. Minhas interpretações só foram possíveis a partir do momento em que eles também, não apenas enquanto objetos de estudo, mas enquanto interlocutores num diálogo, possibilitaram diversas interpretações de suas vidas e de suas crenças religiosas.

Os chamados “nativos” não estão lá apenas para serem observados e analisados; se fazem presentes enquanto participantes ativos que falam sobre si mesmos e são, até certo ponto, coautores do texto final. Essas questões, colocadas por alguns antropólogos norte-americanos na década de 1980, levam em conta as condições de coleta de dados de campo que envolvem dimensões intersubjetivas, jogando luz nas relações de poder que se estabelecem entre antropólogos e o grupo pesquisado, afetando assim as interpretações elaboradas no texto etnográfico.

Silva (2005) aponta para o que chama de “diálogo etnográfico”. Ele relatou, a partir de sua própria experiência de campo como pesquisador, como adepto do candomblé, e por meio das entrevistas com os outros pesquisadores, a relação de diálogo mantida com os observados. Nesse sentido, o entendimento da observação participante vai muito além de uma simples técnica ou de um procedimento metodológico adotado pelo pesquisador para conhecer a comunidade estudada.

O livro discute, na perspectiva do diálogo etnográfico, a participação ativa dos antropólogos nos rituais de iniciação das religiões afro-brasileiras e, em alguns casos mais extremos, a própria conversão destes a essas religiões. É possível, do ponto de vista do antropólogo, ter acesso ao grupo religioso apenas como observador ou é preciso observar de dentro, tornando-se nativo? O autor não traz, enfim, uma discussão ingênua da problemática do trabalho de campo, mas situa essa discussão dentro da questão do diálogo que o etnógrafo mantém com os seus pesquisados.

Esses estudos levam em conta a perspectiva dos observados, a maneira pela qual os grupos religiosos se apropriam tanto do texto escrito pelos antropólogos, quanto dos possíveis resultados da pesquisa para a comunidade estudada. Nessa perspectiva, os diálogos entre observados e etnógrafo são intensos. Os próprios pesquisados descrevem o processo de pesquisa do qual participaram, centrando a atenção na presença do antropólogo no grupo religioso, na relação que este mantém com eles e suas participações nos resultados da pesquisa.

As religiões afro-brasileiras e os movimentos sociais: diálogo entre a academia e o movimento negro

Desde a década de 1970 e principalmente a partir de 1988, a relação das religiões afro-brasileiras com a sociedade foi intensificada e diversificada a partir dos vários movimentos e de suas redes sociais. Diversos pesquisadores analisaram em alguns artigos os efeitos dessas redes para a realização de diferentes eventos relacionados aos 100 anos da abolição da escravatura. Em 1988 se realizou um estudo desenvolvido a partir da Coordenação Interdisciplinar de Estudos Culturais (ECO/UFRJ) em conjunto com o Núcleo da Cor da UFRJ, com apoio da Fundação Ford. Esse estudo foi realizado a partir de um mapeamento das muitas visões da abolição, tendo como perspectiva surpreender as relações raciais no Brasil cem anos depois da abolição (Contins, Strozenberg e Maggie, 1997).

Um dos resultados desse levantamento foi a produção de uma valiosa coleção de documentos a respeito de tudo o que se fez no ano do centenário. O interessante desse trabalho foi o diálogo entre os discursos produzidos pela academia e aqueles produzidos por militantes dos movimentos negros e também por pessoas que não estavam engajadas em nenhum dos dois mundos. Militantes e acadêmicos, mesmo ocupando posições diferenciadas quanto ao engajamento na luta contra a discriminação, conversam entre si e compartilham visões semelhantes de nação, de indivíduo e de cidadania.

Ainda repercutindo as comemorações dos cem anos da abolição, em 1988, meu livro Lideranças negras (Contins, 2005) voltava-se para aqueles que foram os promotores de parte significativa daqueles eventos. Nosso propósito era ouvir lideranças femininas e masculinas dos movimentos negros no Rio de Janeiro, principalmente sobre sua experiência de militância na década de 1970. Esses anos foram bastante significativos, na medida em que os movimentos negros intensificaram sua luta contra a discriminação tanto de cor quanto social.

Vale ressaltar ainda que os depoimentos reunidos apresentam um caráter que ultrapassa o aspecto propriamente político ou doutrinário dos movimentos negros. As entrevistas trazem uma notável riqueza existencial percebida através das diversas narrativas que enquadram as experiências biográficas e políticas dos entrevistados. São histórias de vida de indivíduos, de famílias, de relações de parentesco, de experiências religiosas, de vizinhança em diversos lugares do Brasil mas principalmente na cidade do Rio de Janeiro. Essas narrativas desempenham um papel fundamental nos processos de construção de imagens da experiência de ser negro no Brasil em uma determinada época.

Outros estudos também foram realizados durante as décadas de 1990 e 2000 sobre a circulação e os efeitos de noções como as de “ação afirmativa”. Aproximadamente com trinta anos de diferença em relação às primeiras iniciativas de ação afirmativa nos Estados Unidos, essa discussão pode ser vista em parte como um dos resultados do chamado “ressurgimento do movimento negro no Brasil”, que se verifica a partir da década de 1970, para movimentos negros no Rio de Janeiro e em São Paulo. As organizações que discutem a questão racial desenvolveram um trabalho significativo, pondo em perspectiva as desigualdades existentes entre brancos e negros. Apesar das diversas tentativas de conscientização da sociedade para o problema, propostas mais eficazes que atendessem à população negra se mostraram pouco aceitas. Assim, o movimento negro chegou na década de 1990 buscando reformular suas iniciativas, também no que se refere à relação entre militância e academia.

Setores desses movimentos concluem que é necessário garantir a realização de políticas públicas, governamentais ou não, que atendam à população negra. Posições contra e a favor da ação afirmativa, nas suas diversas modalidades – política de cotas, ação compensatória e outras estratégias visando favorecer um maior acesso dos grupos discriminados à educação e ao mercado de trabalho –  integram uma discussão atual e revitalizada no centro dos movimentos negros. Esses debates levam em conta a conjuntura nacional e internacional, a situação da população negra brasileira, os mecanismos de discriminação e a política da “democracia racial” para avaliar a eficácia da ação afirmativa como instrumento de combate à discriminação. As religiões afro-brasileiras são citadas como peça fundamental para esses movimentos sociais, especificamente para os movimentos negros. Elas emergem, nesse momento, como personagens no espaço público. Se antes as religiões afro-brasileiras estavam restritas a espaços privados, elas agora adquirem visibilidade no espaço público. Isso se realiza principalmente por meio do discurso e das práticas dos movimentos negros. Nesse momento, para parte dos movimentos negros, “ser negro” é uma categoria definida primordialmente pelas religiões de origem africana. É preciso assinalar, no entanto, que esse quadro merece uma qualificação. Para muitos esse vínculo religioso não é exclusivamente mediado pelas religiões africanas. Muitos assinalam a presença significativa de negros nas religiões evangélicas.

Registro dos terreiros de umbanda como patrimônio cultural: a relação com as outras religiões na cidade

As pesquisas voltam-se também, neste momento, para a discussão sobre o espaço da cidade. O trânsito entre as religiões configura um novo espaço em que os pesquisadores realizam suas pesquisas. A presença atual de pesquisadores e de entidades oficiais que procuram esses grupos para realizarem o registro de seus terreiros como “patrimônio imaterial” também intensifica o diálogo. “Virar patrimônio” já faz parte de seus horizontes (Bitar, 2011). Do ponto de vista desses grupos, essa experiência não necessariamente os congela como algo do passado, mas permite que sejam reconhecidos publicamente como grupos atuantes e com possibilidades de mudança.

Nas últimas décadas, como vários autores já vêm assinalando, o espaço religioso vem se modificando no contexto das grandes cidades (Maggie e Contins, 1980; Silva, 1992, 2005; Mariz e Machado, 1998; Contins, 2003; Contins e Gomes, 2007, 2008). Uma das características desse processo é o crescimento e a visibilidade alcançados pelas denominações evangélicas pentecostais, em especial das chamadas neopentecostais, além do aumento de igrejas católicas com características carismáticas como o Movimento de Renovação Carismática Católica (MRCC). Ressalte-se que as mudanças não se dão apenas externamente na relação que estabelecem com e no espaço público, mas também internamente às confissões religiosas envolvidas. Os terreiros de umbanda e candomblé tiveram que dividir seu espaço, nessas áreas, com as igrejas pentecostais e neopentecostais. O ponto que quero frisar é como esses grupos afro-brasileiros se colocam diante do fato do crescimento dessas religiões na cidade.

Enquanto as igrejas evangélicas mais antigas, que já atuavam em locais onde havia predominância da Igreja Católica e de terreiros de Candomblé e Umbanda (como na Baixada Fluminense), privilegiam atividades religiosas voltadas à congregação e à população local, as igrejas neopentecostais apresentam características distintas. Essas são igrejas voltadas para receber um grande público, diferente das igrejas pentecostais mais tradicionais, como a Assembleia de Deus, além de disporem de um público fixo, investindo em uma clientela difusa e móvel.

Sua arquitetura também se distingue das construções das pequenas igrejas de bairro, que ainda existiam nas décadas de 1970 e começo de 1980. Uma das características importantes está em sua localização, geralmente no entroncamento de grandes avenidas, expostas aos permanentes deslocamentos da população. O grupo reconhecido como  “renovação carismática”, apesar de atuar na esfera da própria Igreja Católica, também realiza missas e eventos voltados para um grande público. Essa característica reflete-se na escolha do local que será utilizado para a realização dos eventos e na própria relação que se estabelece com o espaço da cidade. Os grupos afro-brasileiros tiveram que conviver com o aumento do número de igrejas neopentecostais e carismáticas e também com a arquitetura monumental de suas igrejas, possibilitando receber, de uma só vez, uma quantidade enorme de fiéis. No espaço da cidade, desenha-se um contexto de pluralidade em que a prática religiosa tem sido mais transitiva, e a procura por novas experiências ultrapassa seus espaços originais. Um dos pontos relevantes que percebemos a partir dessa nova configuração religiosa no espaço urbano, foi o lugar das religiões afro-brasileiras.

Os terreiros voltados para o grande público

Verifiquei, em pesquisas recentes, algumas iniciativas ligadas às casas de candomblé e umbanda voltadas para o grande público: uma aproximação com a mídia, por meio de programas em rádios locais e na televisão e a produção de cursos sobre história da África realizados em barracões de candomblé na Baixada Fluminense, além de cursos de línguas africanas, produção e divulgação de CDs e vídeos sobre seus rituais, tendo em vista diferentes entidades do candomblé. É uma espécie de diálogo que se estabelece com o grande público, que não fica mais restrito às pequenas casas ou terreiros situados na Baixada Fluminense. O que se observa hoje são as diferentes casas de candomblé e umbanda no Rio de Janeiro que privilegiam a relação com o mercado, com a universidade e com os movimentos negros.

Comparamos alguns grupos relacionados às religiões afro-brasileiras no subúrbio e na zona Oeste do Rio de Janeiro como exemplo de diferentes grupos afro-brasileiros que inovaram seus rituais, com a construção de terreiros maiores e que têm como meta aproximar-se de um público mais amplo. São eles um barracão de candomblé localizado em Vila Valqueire, um em Irajá e um terceiro em Anchieta. Analisamos, a partir da discussão sobre ritual e performance, a importância desses barracões para a comunidade local e também para além desses bairros. Comparando os dois primeiros terreiros, que possuem uma importância local bastante forte, ou seja, durante os rituais há uma enorme troca e participação de diversos terreiros da região, com o barracão de Anchieta, verificamos que a diferença com relação aos dois primeiros estava justamente na forma de “espetáculo” que este último assumia durante os seus rituais.

As festas realizadas no barracão de Anchieta para as entidades do candomblé eram feitas em um grande salão com a participação de uma grande audiência de fora do bairro. Os rituais são filmados e gravados em CDs que depois são vendidos no Mercadão de Madureira. Esse pai de santo tem um programa semanal numa rádio e se apresenta em programas de televisão. Ao mesmo tempo, percebemos que os rituais internos (só para as pessoas do próprio candomblé) tem importância fundamental para a continuidade desse barracão, enquanto que o ritual como espetáculo, no entanto, faz parte dessa relação com o grande público. A sua forma arquitetônica é também bastante significativa na relação que se estabelece entre as religiões afro-brasileiras e as outras religiões, já que ela se aproxima da forma de arquitetura das igreja neopentecostais. Em lugar de ser um terreiro tradicional, a casa onde fica o terreiro se assemelha a uma igreja com três andares. No primeiro andar fica o salão onde o ritual para as entidades são realizados. Neste salão, pessoas de diversas partes da cidade comparecem. Um membro da comunidade filma o espetáculo e depois esse CD é colocado à venda. Ao lado da casa há uma entrada para a parte de baixo do terreiro, onde ficam as obrigações de santo, e é também o local onde os membros do terreiro se vestem e se preparam para os rituais. É uma espécie de bastidor da casa, onde somente as pessoas de dentro podem ficar; os convidados assistem tudo no salão que tem a forma de um teatro, com bancos ao redor do palco. Atualmente, o pai de santo de Anchieta já produziu mais de 20 CDs das suas festas, cada uma dedicada a uma entidade específica. A circulação desse objeto material religioso, que não se restringe a apenas um CD de vídeo, fica exposto no Mercadão de Madureira em várias prateleiras das lojas. A questão da autenticidade relacionada à africanidade dos terreiros baianos, neste caso, é construída a partir das imagens que são distribuídas nos mercados pelo próprio autor. Esse pai de santo e alguns membros do terreiro elaboram um ritual específico para uma plateia, ensaiam os participantes, filmam em DVD e os distribuem no mercado para venda.

Em outro estudo de caso, destaco a questão da crescente importância das procissões religiosas de umbanda realizadas pelo Centro Espírita São Miguel Arcanjo em Magé, na Baixada Fluminense. O Centro Espírita São Miguel Arcanjo fica localizado no centro de uma área correspondente a três terrenos de aproximadamente 360 m2, cada um. O terreiro tem a denominação do santo que é o protetor do líder religioso, São Miguel Arcanjo, e Ogum-Megê como Orixá chefe da Casa. O centro espírita conta com aproximadamente 300 integrantes. No entanto, contando aqueles que já passaram pela casa de culto, tendo agora os seus próprios centros espíritas, tem-se um número maior ainda, de mais ou menos três mil integrantes.

Existem, estimativamente, 70 terreiros filiados ao Cesma, oriundos de filhos, filhas, netos e netas, bisnetos e bisnetas-de-santo. A maioria dos centros fica localizada no Estado do Rio de Janeiro, havendo um em Brasília e outro em São Vicente, São Paulo, e um em fase de abertura no Rio Grande do Sul; todos foram espalhados a partir do Cesma. Os médiuns ou filhos e filhas-de-santos e frequentadores, consulentes, são de vários bairros, cidades, inclusive de outros estados, também de camadas sociais diversas da população e de diferentes grupos étnicos, desde empregadas domésticas, donas de casa, garis, até promotores de justiça, prefeitos e políticos locais.

A procissão de São Miguel Arcanjo, ou de Ogum Megê, é realizada sempre no mês de setembro, no qual todos os filhos de santo participam, além dos terreiros filiados com os seus filhos e filhas de santo, netos e netas de santo. A procissão percorre todo o centro do município de Magé, com saída e retorno ao centro, cantando músicas em homenagem ao seu padroeiro e o Hino da umbanda, alternados. Nas ruas por onde a procissão passa, as pessoas aguardam em seus portões ou janelas, com velas acesas e copos de água; na praça principal, um aglomerado de pessoas a espera.

A procissão, ao mesmo tempo em que é um ato religioso, além dos limites do seu terreiro, é um ato social. Faz parte não só do calendário religioso, como também do profano, já que a cidade fica receptiva a sua passagem. Há uma relação direta com o calendário religioso católico. As pessoas que assistem à procissão não necessariamente são umbandistas e na passagem pelas igrejas pentecostais e mesmo católicas não há nenhuma restrição, pelo menos mais recentemente. Segundo o pai de santo, no início, quando começou a realizar a procissão, eles não eram bem recebidos pela igreja católica e muito menos pelos pentecostais.

No depoimento que o pai de santo nos deu, ele descreveu a mudança do comportamento das outras religiões com relação à procissão. Antes, havia muita reclamação e disputa, as igrejas neopentecostais fechavam as suas portas e eram contra a procissão. A igreja católica local também mantinha as portas fechadas nesse dia. Atualmente, há uma clara receptividade da igreja católica e as pentecostais não se manifestam. Isso, no entanto, não quer dizer que não haja, no dia a dia, disputas em torno da eficácia de cada religião e na administração do espaço de cada uma. Uma entrevistada, também filha de santo desse centro e com seu próprio terreiro bem próximo do dele, disse que montou seu terreiro na própria casa.

Há também, nesse contexto da Baixada Fluminense, um forte trânsito religioso entre os membros pertencentes a várias religiões. Entrevistando essa mesma filha de santo, soube que por questões de família e doença deixou de se filiar ao centro espírita de umbanda e se tornou evangélica. Durante alguns anos passou a frequentar uma igreja neopentecostal, e mais tarde voltou a procurar o pai de santo. Agora tem seu próprio terreiro.

No final, depois de darem a volta por toda a cidade e serem vistos por todos que estão à espera da procissão, os participantes retornam ao centro espírita. Na procissão, o centro espírita traz para a rua seus objetos rituais, suas crenças, e a relação com a cidade se torna mais visível e mais próxima.

Considerações finais

No trabalho de campo que venho realizando com esses grupos religiosos, percebi a enorme proximidade social e cultural entre eles. Há um grande fluxo entre pessoas que saem das religiões afro-brasileiras e se tornam evangélicas, geralmente para igrejas próximas ao seu terreiro de origem ou para locais que já conheciam, perto de suas casas. Do mesmo modo, existe também um trânsito religioso de pessoas que retornam às religiões afro-brasileiras. Foi fundamental perceber, nos relatos biográficos dos entrevistados, de suas histórias de vida pessoal e religiosa, as interpretações que realizam sobre suas experiências religiosas, sobre os objetos e rituais religiosos e de que maneira convivem com distintas interpretações, ora pela umbanda e pelo candomblé, ora pelo neopentecostalismo.

O momento de crise em suas vidas religiosa e pessoal possibilita a mudança de religião. Nesse sentido, na medida em que esse acesso ao sagrado se dá no universo de uma grande metrópole moderna (Rio de Janeiro), essas práticas tendem a assumir, além de sua forma ritual, o caráter de “espetáculos”, em razão mesmo de atender a uma clientela que se caracteriza por seu elevado índice demográfico. As narrativas sobre a memória coletiva também são fundamentais  para entender as formas de apropriação dos espaços e dos objetos nas construções de identidades individuais e coletivas. As diferentes narrativas sobre subjetividade, encontradas nos grupos acima selecionados, apontam para a importância das  religiões afro-brasileiras no contexto da grande cidade.

O movimento permanente de incorporação e diferenciação de estilos de vida e visões de mundo distintas é característico da grande cidade (Simmel 1971, 1968; Velho, 1980, 1994, 2010). No mesmo sentido, a vida cosmopolita oferece possibilidades e alternativas ao indivíduo por meio das redes de pertencimento, sistemas de troca, mediações e trocas contínuas inscritas no contexto da cidade. O fluxo entre fronteiras religiosas e reinterpretações das orientações institucionais admitem novas representações em termos de categorias espaciais, sociais e étnicas. A utilização do espaço da cidade pelas diferentes religiões proporciona novas formas de percepção sobre o fenômeno religioso, redefinindo as diversas formas de apropriação desse espaço por meio da experiência religiosa.

Os atores sociais estabelecem múltiplos vínculos e elaboram diferentes e criativos arranjos coletivos nos usos da cidade. Terreiros que antes pareciam muito distantes, hoje parecem bem próximos. No trabalho de campo que realizávamos na década de 1970 e 1980 havia uma distância muito grande entre pesquisadores e pesquisados, distância física e social. Hoje, a ida a algum terreiro da Baixada Fluminense não parece tão distante. A cidade era imaginada como espacialmente distante e diversa. A questão da autenticidade estava nesse “outro” distante. Mas hoje talvez ela não esteja precisamente em lugar algum. A fonte da autenticidade pode estar ligada aos registros dos terreiros; mas pode ser construída também pelos próprios participantes das religiões e de sua rede de sociabilidade.

Como procurei demonstrar, as diferenças entre as várias religiões na cidade podem ser percebidas tanto no aspecto da arquitetura de suas igrejas, templos ou terreiros, quanto no aspecto de suas performances e rituais, e nas formas de autorrepresentação desses grupos. As imagens que cada grupo religioso tem de si mesmo e dos outros acompanham as transformações da cidade.


* Marcia Contins é professora associada de Antropologia do PPCIS/Uerj e pesquisadora do CNPq. Doutora em Comunicação e Cultura (UFRJ), mestre em Antropologia Social (MN/UFRJ), publicou Lideranças negras (Aeroplano, 2005) e “O caso da pomba gira: reflexões sobre crime, possessão e imagem feminina” (Ideias e Letras, 2009).

[1] Aproximo a definição de “circuitos urbanos”  da noção de “fluxos” em Hannerz (1980), e com isso  pretendo destacar os aspectos de permanente deslocamento e circulação desses indivíduos e grupos.

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Tempo de leitura estimado: 26 minutos

O conceito de drible e o drible do conceito: analogias entre a história do negro no futebol brasileiro e do epistemicídio na filosofia

Renato Noguera*

Em quase toda a produção sobre a história do futebol brasileiro encontram-se três momentos narrativos integrados ou amalgamados que falam da chegada do futebol inglês e elitista ao Brasil, da sua popularização e do papel central do negro nesse processo. O primeiro momento narra a chegada do futebol e enfatiza a segregação dos negros e dos pobres, o segundo relata suas lutas e resistências e o terceiro descreve a democratização, ascensão e afirmação do negro no futebol (Soares, 1999, p.119).

Pré-jogo: apresentando o problema

Convido leitoras e leitores para um ensaio. Ou ainda, para um treino numa alusão explícita ao futebol. Por meio de uma genealogia do drible, este trabalho vai apresentar as linhas mestras da filosofia afroperspectivista. Em outras palavras, a relevância do conceito de drible para habilitar a legitimidade da produção filosófica africana e afrodiaspórica  a partir de uma genealogia do drible no futebol brasileiro. Na história do futebol brasileiro os jogadores negros sofreram inúmeras restrições por parte dos clubes, das regras de jogo e das associações oficiais de futebol, o que teria, segundo diversas hipóteses, gerado o drible brasileiro. Por outro lado, nos manuais e compêndios de história da filosofia, a produção fora do que se denomina Ocidente tem tido pouco ou nenhum reconhecimento. Com efeito, para uma significativa parcela de historiadores(as) da filosofia, a produção filosófica africana praticamente inexiste. Ou ainda, os povos negro-africanos sequer seriam capazes de filosofar. O filósofo alemão Hegel é, entre outros, tais como Kant, um exemplo dessa mentalidade racialista do século XIX:

A principal característica dos negros é que sua consciência ainda não atingiu a intuição de qualquer objetividade fixa, como Deus, como leis […] negro representa, como já foi dito, o homem natural, selvagem e indomável […]. Neles, nada evoca a ideia do caráter humano […]. Entre os negros, os sentimentos morais são totalmente fracos — ou, para ser mais exato, inexistentes (Hegel, 1999, p. 83-84).

A epígrafe de Antônio Jorge Soares afirma que a literatura acadêmica e jornalística, assim como a oralitura[1], sobre a história do futebol convergem para a ideia de que jogadores negros (pretos e pardos)[2] não tinham espaço nos times de futebol até a década de 1930 e, mesmo quando foram “aceitos”, a arbitragem tinha regras diferentes de tratamento para negros e brancos. Uma fonte maravilhosa de piso antropológico, sociológico e histórico da situação de jogadores negros é o livro O negro no futebol brasileiro, de Mário Filho. Esse vigoroso trabalho foi publicado pela primeira vez em 1947 e recebeu mais dois capítulos em 1964. Existem outros trabalhos a respeito e todos parecem concordar com um aspecto: os árbitros não marcavam faltas de jogadores brancos em jogadores negros, mas o inverso era rigorosamente punido. “Quando começaram a jogar o futebol por aqui, os negros não podiam derrubar, empurrar, ou mesmo esbarrar nos adversários brancos, sob pena de severa punição: os outros jogadores e até os policiais podiam bater no infrator” (Soares, 1999, p. 134-135). Pois bem, diante desse cenário a hipótese que se popularizou foi simples, jogadores negros precisaram encontrar novos espaços e maneiras de conduzir a bola que evitassem que eles esbarrassem nos brancos e fossem punidos. Como os jogadores negros não podiam tocar nos jogadores brancos, a hipótese foi o surgimento do drible como alternativa para que os jogadores negros pudessem se movimentar em campo. O drible, neste caso, é uma invenção negra. No entendimento de Mário Prata (1998), o drible é uma determinada transposição dos passes e ginga do samba para o interior das quatro linhas do jogo de futebol.

Ronaldinho foi considerado o melhor jogador do mundo em duas ocasiões vestindo a camisa do Barcelona com dribles incríveis.
Ronaldinho foi considerado o melhor jogador do mundo em duas ocasiões vestindo a camisa do Barcelona com dribles incríveis.
Neymar foi revelado pelo mesmo Santos do maior jogador de todos os tempos, Pelé. Santos que também revelou Robinho, autor das pedaladas.
Neymar foi revelado pelo mesmo Santos do maior jogador de todos os tempos, Pelé. Santos que também revelou Robinho, autor das pedaladas.
Robinho pedalando para cima dos adversários.
Robinho pedalando para cima dos adversários.

A primeira partida de futebol em terras brasileiras data de 1874, o jogo foi uma exibição para a Princesa Isabel. Em 1916, começa a efetiva profissionalização com a criação da Confederação Brasileira de Desportos (CBD) e a respectiva filiação à Confederação Sul-Americana de Futebol (Comembol) e à Fifa (Federação Internacional de Futebol). Nessa ocasião, apenas sócios de clubes, ou seja, membros da alta sociedade podiam jogar, o que fazia do futebol um esporte muito elitista. Gordon Jr. (1995) comenta que até 1918 era formalmente vedada pela Federação Brasileira de Sports a inscrição de negros nos clubes de futebol.

O caso de homens brancos de classe média e classe popular era bem diferente dos negros. Caso aqueles tivessem um “padrinho” o acesso ao clube era possível porque bastaria seguir as normas do clube, passando-se como um homem de “boa família”. Isso era impossível para os negros interessados em jogar nos clubes de futebol. Somente a partir de 1919 e 1920, alguns clubes começaram a aceitar jogadores negros. As restrições impostas aos jogadores negros diferiam muito das que eram colocadas aos brancos pobres. Com efeito, brancos trajados com uniformes não tinham nada que atestasse suas origens, o que conferia sua aceitação era o fenótipo étnico-racial. Sem dúvida, os sócios em geral não aceitavam negros no time de futebol, muito menos circulando livremente pelos clubes. Isso foi uma das motivações dos sócios (brancos) para profissionalizar o esporte na década de 1930 nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo, pois era mais confortável pagar salários e torná-los funcionários.

O 1º tempo do jogo: a genealogia do drible no futebol brasileiro

Na década de 1920, as restrições impostas aos jogadores negros eram maiores nos clubes mais elitistas. Por exemplo, o Fluminense no Rio de Janeiro aceitou o jogador Carlos Alberto com a condição de que a maquiagem o tornasse “branco”; no Rio Grande do Sul, o Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense, fundado em 1903, só aceitou um jogador negro em 1952, com a entrada do consagrado Tesourinha, ex-jogador do Vasco da Gama e do Internacional. Não são raras as notícias referentes às maquiagens que procuravam embranquecer os jogadores negros. Por outro lado, a popularidade de clubes como o Bangu, o Vasco da Gama e o Botafogo, todos do Rio de Janeiro, fortaleceu-se pela inclusão de jogadores negros. Na década de 1920, o Vasco da Gama se notabilizou por ter sido vitorioso num campeonato no qual o seu elenco era assumidamente multiétnico e plurirracial.

O clube do Vasco da Gama foi o primeiro time campeão com jogadores negros. Negrito e Cleuci — dois jogadores negros — marcaram os gols na final do Campeonato de 1923. Para Mário Filho (1964), a conquista vascaína do campeonato da cidade do Rio de Janeiro de 1923 foi um motivo decisivo para o seu desligamento do clube da Liga de Futebol. Existem outros exemplos de restrições de cunho racial. Em 13 de maio de 1914, num jogo entre o Fluminense e o América, Carlos Alberto Fonseca, ex-jogador do América, estava no elenco do tricolor. As restrições aos jogadores negros era regra no Fluminense. Por isso, Carlos Alberto passava um bom tempo fazendo uma maquiagem que servia de disfarce para deixá-lo “branco”; mas, como era de se esperar, no decorrer da partida o suor fazia a maquiagem ceder e ele aparecia como era: negro. O que fez a torcida do América gritar em tom provocativo que o referido jogador era pó de arroz!

Arthur Friedenreich é outro bom exemplo dos disfarces que todos os afrodescendentes empreendiam dentro dos clubes na década de 1910. Friedenreich era paulistano, filho de uma mulher negra brasileira e um estrangeiro branco alemão, jogou em vários clubes de São Paulo, no Flamengo e fez 23 partidas pela seleção brasileira. O seu ritual incluía alisar o cabelo, além de fazer uma maquiagem que contava com muito pó de arroz. Com efeito, todas essas situações, a desfiliação do Vasco, a restrição do Grêmio aos jogadores negros até 1952, a maquiagem dos jogadores Carlos Alberto e Friedenreich, são exemplos de um ideal dos clubes em manter o futebol como “coisa de branco”.

Arthur Friedendreich (1892-1969)
Arthur Friedendreich (1892-1969)

Conforme Mário Filho, as décadas de 1930 e 1940 foram o início da “naturalização” da inclusão de jogadores negros nos clubes brasileiros, embora por acordo tácito, a arbitragem continuasse usando “dois pesos e duas medidas”. O racismo, que antes impedia que negros jogassem e que depois já “aceitava” jogadores negros desde que parecessem brancos, nas duas décadas seguintes se organizou mais em torno da arbitragem. As faltas dos brancos em negros não eram punidas, enquanto as faltas de negros em brancos recebiam sanções severas. Pois bem, aqui surge o momento para dar curso à nossa articulação chave. O que consta na oralitura sobre futebol e relações étnico-raciais, tal como os relatos gravados de Domingos da Guia[3], e se tornou objeto de pesquisa do documentarista moçambicano Victor Lopes, é que a restrição informal imposta aos jogadores negros provocou os usos dos passes do samba dentro de campo. O documentarista retoma e explicita a hipótese que teria começado com Mário Filho.

A defesa aqui impetrada não recusa que o drible existisse fora do Brasil; mas reivindica que a invenção do drible no Brasil inaugura um modo distinto de driblar, o que pode ser entendido como a efetiva “invenção do drible”, e que isso se deve à regra informal dentro de campo que retratava as restrições étnico-raciais da sociedade brasileira. A hipótese é de que o drible rateado, a mudança de ritmos com que a bola é conduzida “presa” e volta a ser colocada em movimento, foi uma invenção de jogadores negros brasileiros. É interessante notar que existem duas perspectivas acerca da etimologia da palavra “drible”. Por um lado, dribble, que em inglês significa babar e por extensão gotejar ou pingar, já aparecia no futebol em 1863. Ao mesmo tempo, existe a palavra dibo que na língua kikongo significa tanto o nome de uma planta quanto um tipo de dança, ou ainda, radical da palavra “dibotar”, que significa discursar, palavrear. A minha interpretação é que o drible derivado de dibo tem vários sentidos, tanto dançar quanto palavrear. Sendo assim, podemos interpretar que o sentido de discursar em Kikongo remete a dançar com as palavras, rodopiar com as letras ou ter molejo com o que se diz para conduzir quem ouve para onde se deseja.

Num programa feito pelo jornalista Pedro Bial[4], o filme de Victor Lopes foi contestado por vários jornalistas. A tese mais corrente é de que o drible teria nascido com o próprio futebol. Conforme vários relatos, o jogador Charles Miller já driblava na Inglaterra. Mas uma reportagem da imprensa na Copa do Mundo realizada na França em 1938 parece reforçar a hipótese de Victor Lopes. O jornal Le Miroir de Sports disse que os jogadores brasileiros pareciam malabaristas; sobre Leônidas da Silva foram elencadas uma série de expressões como: “diabo preto”, “acrobata”, “dado a fazer piruetas”, capaz de “plantar bananeira”, capaz de “saltar como carpa”. Todo esse repertório se referia aos dribles de Leônidas, também conhecido como Diamante Negro, o inventor da “bicicleta”[5]. Ou seja, ainda que o drible existisse no futebol, um jogador negro brasileiro  surpreendia. Nós acreditamos que a surpresa se deve ao tipo de drible made in Black Brazil.

Com efeito, nossa defesa é que o drible no Brasil feito pelos jogadores negros nasceu com uma singularidade, ainda que o jogador branco brasileiro Charles Miller também driblasse, devido à regra informal que permitia punição aos jogadores negros que cometessem faltas contra os jogadores brancos e, por isso, tornava importante não tocá-los. Domingos da Guia, exímio jogador da seleção brasileira de 1938, foi eleito o melhor zagueiro da competição naquele ano e numa entrevista foi categórico. Conforme arquivos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)[6], Domingos disse que tinha medo de jogar futebol porque assistia aos jogadores negros serem agredidos por faltas ostensivas dos brancos sem restrições da arbitragem. O relato de Domingos que segue elucida bastante o cenário do futebol nesse período:

Ainda garoto eu tinha medo de jogar futebol, porque vi muitas vezes jogador negro, lá em Bangu, apanhar em campo, só porque fazia uma falta, nem isso às vezes (…) Meu irmão mais velho me dizia: “Malandro é o gato que sempre cai de pé… Tu não é bom de baile?” Eu era bom de baile mesmo, e isso me ajudou em campo… Eu gingava muito… O tal do drible curto eu inventei imitando o miudinho, aquele tipo de samba (Domingos da Guia, vídeo Núcleo/UERJ, 1995).

Domingos da Guia (1912-2000)
Domingos da Guia (1912-2000)

O ex-zagueiro da seleção disse que levou o samba miudinho para dentro de campo, relatando que seus dribles eram a transposição dos passos de sambista para dentro de campo. Em outras palavras, o corpo passou a ser usado integralmente nas jogadas. Mesmo que a palavra tenha origem na língua inglesa, o drible cunhado pelos pés (negros) brasileiros é mais herdeiro do dibo do que do dribble.

Vale a pena recapitular os dois aspectos gerais da genealogia do drible no Brasil. O primeiro é a regra informal, tácita e não registrada que foi a bússola da arbitragem. O segundo aspecto, os usos dos passes do samba e quiçá da capoeira dentro de campo como forma de finta, defesa e, ao mesmo tempo, tática de ataque diante das limitações impostas pelas regras do futebol.

O 2º tempo: o conceito de drible na filosofia afroperspectivista

Cheik Anta Diop foi um pesquisador brilhante que atuou em diversas áreas: filosofia, história, antropologia, física etc. Sempre ocupado com a reabilitação dos povos negro-africanos diante do racismo epistêmico, deu visibilidade para material escrito por africanos com datação anterior aos textos gregos que são tratados de filosofia.
Cheik Anta Diop foi um pesquisador brilhante que atuou em diversas áreas: filosofia, história, antropologia, física etc. Sempre ocupado com a reabilitação dos povos negro-africanos diante do racismo epistêmico, deu visibilidade para material escrito por africanos com datação anterior aos textos gregos que são tratados de filosofia.
Molefi Asante tem uma pesquisa muito elucidativa que se transformou no livro <em>The Egyptian philosophers: ancient African voices from Imhotepto Akhenaten</em>. É um grande catálogo sistematizado de filósofos egípcios com textos que antecedem os primeiros filósofos gregos.
Molefi Asante tem uma pesquisa muito elucidativa que se transformou no livro <em>The Egyptian philosophers: ancient African voices from Imhotepto Akhenaten</em>. É um grande catálogo sistematizado de filósofos egípcios com textos que antecedem os primeiros filósofos gregos.

A parte final deste trabalho é a transposição do drible como quesito do futebol para um terreno filosófico. Por que razões tomar o conceito de drible emprestado? Cabe explicitar de início o que entendemos por filosofia afroperspectivista. A expressão conceitual — filosofia afroperspectivista — surgiu a partir da dinâmica de pesquisa do Grupo de Estudos de Filosofia Africana que integra o Grupo de Pesquisa Afroperspectivas, Saberes e Interseções (Afrosin), registrado no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq e sediado na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Desde 2010, esse grupo tem se reunido para realizar pesquisas que buscam recensear, conhecer e dar visibilidade às produções filosóficas africanas e afrodiaspóricas no cenário mundial. O termo afroperspectivista funciona de dois modos: 1) Um conceito guarda-chuva que indica o conjunto de trabalhos realizados por filósofas(os) africanas(os) e afrodiaspóricas(os), sobretudo, pesquisas que partem dos universos culturais africanos ou têm esses universos como referências-chave; 2) Um projeto de pesquisa na grande área de conhecimento da filosofia, que opera de modo intercultural e é organizado por princípios que levam em conta a riqueza cultural e a herança dos povos africanos no Brasil e no mundo da afrodiáspora. Nessa segunda definição surge um trabalho de pesquisa que tem operado com algumas questões específicas, entre elas, a do surgimento da filosofia.

Angela Davis é uma filósofa afro-americana que tem feito um notável trabalho de crítica das relações culturais e da <em>hegemonia</em> política, examinando os conceitos de classe, raça e gênero dentro do que chamamos filosofia afroperspectivista.
Angela Davis é uma filósofa afro-americana que tem feito um notável trabalho de crítica das relações culturais e da <em>hegemonia</em> política, examinando os conceitos de classe, raça e gênero dentro do que chamamos filosofia afroperspectivista.

A orientação deste trabalho está na comparação das restrições sofridas pelos jogadores negros dentro do futebol brasileiro nas primeiras décadas do século XX com a postura da historiografia filosófica “oficial” — dos manuais e compêndios — que desconsidera a produção negro-africana. Nesse sentido, a filosofia afroperspectivista é uma crítica à colonialidade do poder[7], ao epistemicídio[8], ao processo de invisibilidade das vozes que não são ocidentais. O drible é o exercício de encontrar canais para a visibilidade do pensamento filosófico africano, assim como da filosofia afrodiaspórica. Um traço do drible é desvincular a filosofia dos seus modos de preservação e transmissão. Omorogme recomenda: “nós devemos distinguir entre filosofia e os modos de transmiti-la e preservá-la. Reflexões filosóficas podem ser preservadas e transmitidas de diversas maneiras” (Omoregbe, 1998, p. 70). O drible é um modo de encontrar saídas, alternativas para a interdição de espaço. É, nesse caso, a possibilidade de adentrarmos no exercício filosófico, encontrando e legitimando a existência de modos de circulação de ideias filosóficas africanas:

Nós temos fragmentos de suas reflexões filosóficas e suas perspectivas foram preservadas e transmitidas por meio de outros registros como mitos, aforismos, máximas de sabedoria, provérbios tradicionais, contos e, especialmente, através da religião […] Além das mitologias, máximas de sabedoria e visões de mundo, o conhecimento (filosófico) também pode ser preservado e reconhecido na organização político-social elaborada por um povo (Omoregbe, 1998, p. 74).

Ao invés de submeter o pensamento filosófico africano, assim como o afrodiaspórico, as mesmas formas da filosofia ocidental, podemos operar com outras plataformas. Dito de outro modo, se antes entendíamos que a filosofia só pode ser reconhecida em textos que obedecem a uma determinada estrutura, diante das estratégias do drible é plausível considerar que a filosofia pode estar registrada em formas diferentes que não se organizam pelas normas de um texto de filosofia ocidental.

Entre os escritos do Ptah-Hotep foram preservadas 37 máximas de sabedoria de vida disponíveis no Papiro Prisse, além de outros dois papiros com fragmentos atribuídos ao mesmo autor. Conforme os estudos de vários egiptólogos, o material foi escrito aproximadamente 2.200 anos Antes da Era Comum. As máximas foram organizadas primeiro por Christian Jacq, no livro <em>Les Maximes de Ptah-Hotep, l’enseignement d’un sage au temps des pyramides</em> (2004).
Entre os escritos do Ptah-Hotep foram preservadas 37 máximas de sabedoria de vida disponíveis no Papiro Prisse, além de outros dois papiros com fragmentos atribuídos ao mesmo autor. Conforme os estudos de vários egiptólogos, o material foi escrito aproximadamente 2.200 anos Antes da Era Comum. As máximas foram organizadas primeiro por Christian Jacq, no livro <em>Les Maximes de Ptah-Hotep, l’enseignement d’un sage au temps des pyramides</em> (2004).

Pois bem, qual seria o primeiro argumento de uma filósofa ou filósofo ocidental que acredita que a filosofia nasceu na Grécia? Sem dúvida, diria: então por que chamar esse pensamento de filosofia? Aqui outro aspecto do drible. Numa sociedade marcada pela colonialidade, a recusa da filosofia a alguns povos precisa ser revisitada criticamente. Nós estamos de acordo com o filósofo sul-africano Mogobe Ramose: a dúvida sobre a filosofia africana “é, fundamentalmente, um questionamento sobre o estatuto ontológico acerca do estatuto ontológico da humanidade de africanos” (Ramose, 2011, p.8). Para Ramose (2011), a escravização negro-africana foi o resultado de um imperativo prático que passou a satisfazer “logicamente” as necessidades psicológicas e materiais dos colonizadores europeus. Em outros termos, a humanidade negro-africana seria menor, inferior, inclusive (ou, sobretudo?), porque os africanos não seriam capazes de produzir filosofia. Afinal, o filósofo ganense Anthony Kwame Appiah acerta em suas considerações ao dizer que: “‘Filosofia’ é o rótulo de maior status no humanismo ocidental. Pretender-se com direito à filosofia é reivindicar o que há de mais importante, mais difícil e mais fundamental na tradição do Ocidente” (Appiah, 1997, p. 131).

Na historiografia filosófica hegemônica da antiguidade, os trabalhos africanos são terminantemente desconhecidos ou “esquecidos”. Então, se faz necessário um esforço de ruptura com esse esquecimento. O drible é a problematização da filosofia como uma atividade exclusivamente ocidental, um exercício de justificação da filosofia como atividade pluriversal. Vale explicitar melhor o que denominamos, na esteira do filósofo sul-africano Mogobe Ramose, de pluriversal. Para Ramose (2011), o conceito de universo coube na ciência moderna, a saber: um paradigma que tinha como referencial o cosmos dotado de um centro e periferias. Em seu ensaio ele diz: “optamos por adotar esta mudança de paradigma e falar de pluriverso, ao invés de universo” (2011, p. 10). Afinal, se a pluriversalidade (Ramose, 2011) rompe com a dicotomia, podemos compreender que o universalismo (europeu) não dá conta de todas as formas de fazer filosofia, tal como nós não podemos reduzir a música enquanto expressão pluriversal a um gênero como o jazz, a música erudita ou o samba. Em suma, o pluriversal é um paradigma que inclui o universal, entendendo-o como um sistema local entre outros. O pluriversal é a reunião das universalidades, dos sistemas locais que se pretendem únicos, mas coabitam e coexistem com outros. É equívoco tomar a filosofia como sinônimo de sua versão ocidental.

O conceito de drible, por sua vez, é uma objeção com caráter propositivo. Primeiro, objeta e recusa a invisibilidade da filosofia afroperspectivista — africana e afrodiaspórica — e propõe o reconhecimento de outras plataformas para formulação e circulação da filosofia. Se, por um lado, o futebol foi um palco de restrições aos jogadores negros no início do século XX, por outro, o mundo acadêmico, o circuito em rede de produção de conhecimento (filosófico) tem permanecido blindado, seja em maior ou menor grau, para o que não é ocidental. A filosofia afroperspectivista tem sido negada pela história oficial da filosofia. O passe do miudinho foi tirado das rodas de samba por Domingos da Guia para evitar a violência consentida que jogadores negros sofriam. Do mesmo modo, a violência do racismo epistêmico pode ser driblada através do reconhecimento das máximas africanas de sabedoria de vida que existem há aproximadamente 3.000, 4.000 anos como enunciados filosóficos que em nada devem às formulações ocidentais.

Como exemplo e conclusão, trazemos um trecho das Máximas de Ptah-Hotep compiladas por Jacq (2004). O filósofo egípcio, ignorado pelos manuais e compêndios de filosofia, viveu por volta de 2200 anos antes da Era Comum e deixou, antes dos primeiros filósofos gregos, um conjunto de máximas filosóficas pouco conhecidas. Ele se ocupava de temas como a liberdade e definia o coração como lugar dos pensamentos e das emoções, como o filósofo Epicuro de Samos (314 a.E.C – 270 a.E.C) se ocupava de reflexões sobre a arte de uma vida feliz e deixou a Carta a Meneceu também chamada de Carta sobre a felicidade. Disse Ptah-Hotep: “As palavras sábias são mais raras do que as pedras preciosas e podem provir até de jovens escravas” (Jacq, 2004, p. 53). Reconhece que a sabedoria, a capacidade de pensar adequadamente é rara; mas, acessível a todas as pessoas. O mesmo foi dito séculos mais tarde no Mênon de Platão, quando Sócrates demonstra que um escravo consegue resolver um teorema. O ligeiro exemplo está longe de solucionar o debate, mas dá inicio a um novo encaminhamento.

Por fim, num futuro próximo, em outros jogos, novas jogadas aparecerão. O esquema tático do jogo permanecerá sendo considerar a pluriversalidade e os dribles que são inerentes à atividade filosófica. Ptah-Hotep e outros filósofos antigos surgirão detidamente comentados.


* Renato Noguera é doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professor de Filosofia do Departamento de Educação e Sociedade (DES) e do Colegiado de Filosofia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e pesquisador do Laboratório de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (Leafro) e do Laboratório “Práxis filosófica” de Análise e Produção de Recursos Didáticos e Paradidáticos para o Ensino de Filosofia da UFRRJ.

[1] Conforme Juan José Prat Ferrer, “o conceito de oralitura se contrapõe ao de literatura ao se referir a expressão oral (recitação, dramatização ou atuação) das produções artísticas verbais” (FERRER, 2010, p. 26). As primeiras pessoas a trabalharem com o conceito de oratura ou oralitura foram o linguista ugandense Pio Zirimu, além de uma dupla nascida no Quênia, o escritor keniano Ng?g? Wa Thiong, professor de literatura comparada da Universidade da Califórnia, e a professora de Artes Micere Mugo. “Se a escrita é a ação e efeito de escrever, a oralidade é ação e efeito de falar, se a literatura é a arte e a teoria da composição escrita assim como o conjunto de obras produzidas de acordo com esta arte, a oralitura é a arte e teoria da composição oral assim como o repertório de obras produzidas de acordo com esta arte” (Ferrer, 2010, p. 27).

[2] O IBGE aplica estas duas categorias em suas pesquisas (pretos e pardos), o conceito negro é usado como a soma de pretos e pardos. Para fins de elucidação, a “distinção” entre pretos e pardos é a pigmentação, ambos são afrodescentes. Esta explicação é necessária para que leitoras e leitores entendam que não usamos aqui termos como mestiços e mulatos. Essas categorias (mulatos e mestiços) aparecem em muitas referências bibliográficas sobre o assunto. Porém, a nossa opção teórica e metodológica faz uso de três categorias: pardos (negros menos pigmentados), pretos (negros mais pigmentados) e negros — o somatório de pretos e pardos. Pretos e pardos são as categorias oficiais do Estado. Negros é uma categoria que foi construída politicamente pelos movimentos sociais e pesquisas acadêmicas antirracistas. Por isso, por jogadores negros se deve entender a soma de pretos e pardos — as duas categorias oficiais do Estado brasileiro.

[3] Domingos da Guia nasceu em 19 de novembro de 1912 e faleceu em 18 de maio de 2000. Revelado pelo Bangu — seu nome integra o hino do Clube —, ele jogou em times como Vasco, Nacional (Uruguai), Boca Juniors (Argentina), Flamengo e foi zagueiro da Seleção Brasileira de Futebol. O relato foi recolhido em um trabalho feito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), disponível em www.ludopedio.com.br/rc/upload/files/052346_1233.pdf / www.youtube.com/watch?v=7pmIlxf7Hdc acessado em 31 de outubro de 2011.

[4] http://globotv.globo.com/globo-news/globo-news/v/qual-a-origem-do-drible-no-futebol/1278014/ acessado em 20 de julho de 2012.

[5] Bicicleta no futebol é uma jogada em que o atleta fica de costas para o gol adversário, gira o corpo e chuta a bola por cima da cabeça.

[6] www.youtube.com/watch?v=7pmIlxf7Hdc acessado em 31 de outubro de 2011.

[7] A colonialidade do poder é o eixo que organizou e continua organizando a diferença colonial, a periferia como natureza e a cultura ocidental, o capitalismo e os seus dispositivos como “civilização” normativa e centro.

[8] Epistemicídio aqui é entendido como injustiça cognitiva que destrói territórios epistêmicos não hegemônicos.

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Tempo de leitura estimado: 28 minutos

Quatro tecnologias da identidade juvenil feminina

Angela McRobbie*
Tradução: Liv Sovik*
Revisão: Patrícia Farias e Eneida Leal Cunha

O patriarcado ressurgente e o cerceamento de gênero

Um novo contrato sexual mais cultural do que jurídico está disponível para mulheres jovens, sobretudo no Ocidente, que as incentiva a assumirem um lugar e a aproveitarem oportunidades de trabalho, de qualificação, de controle da fertilidade e de renda para participarem da cultura de consumo que, por sua vez, torna-se uma definidora dos modos contemporâneos de cidadania feminina. Uma série de tecnologias é ativada para que esses incentivos surtam efeito. Essas tecnologias incluem diversas práticas sociais e culturais que se caracterizam pela experiência de movimento combinada com a exposição da jovem subjetividade feminina aos holofotes, tornando-a visível de uma forma específica. Por isso, utilizo o termo “luminosidade”, de Deleuze. A ideia de um holofote móvel é adequada porque reflete algo do panóptico de Foucault, mas em lugar da vigilância produz-se um efeito teatral ou cinematográfico. Utilizo o termo “espaços de atenção” para examinar como essas luminosidades operam na vida cotidiana.

A partir daí, pergunto: como dar conta da gama de transformações sociais, culturais e econômicas que trouxeram à tona novas categorias de feminilidade jovem? Considerando que tais mudanças se consolidaram no Reino Unido (e em outros lugares) nos últimos dez ou quinze anos, como devemos interpretar as implicações desse decisivo reposicionamento das jovens mulheres? Tais transformações tendem a ser vistas como positivas. Da esquerda à direita, os aparentes ganhos das jovens mulheres são interpretados como indicações saudáveis de democracia. Mas a perspectiva feminista que apresento aqui está consciente dos perigos que surgem quando um conjunto de valores e ideais feministas parece estar inscrito em uma tentativa mais profunda e deliberada de remodelar noções de feminilidade, empreendida por uma série de forças políticas e culturais,  para que estas se adequem a arranjos sociais e econômicos novos ou emergentes (neo-liberalizantes).

A menina ou jovem mulher emerge em uma gama de espaços sociais e culturais como um sujeito em que vale a pena investir. Dentro da linguagem do governo britânico do New Labour (Novo Trabalhismo), essa menina, que se beneficiou da igualdade de oportunidades hoje disponível, pode ser mobilizada como a própria personificação [embodiment] dos valores da nova meritocracia. Este termo se tornou uma expressão abreviada dos valores individualistas e competitivos promovidos pelo New Labour, sobretudo no âmbito da educação. Hoje, o sucesso da jovem mulher parece lhe prometer uma prosperidade proporcional a seu entusiasmo pelo trabalho e a carreira. A liberdade e o sucesso atribuídos às jovens assumem formas diversas, que atravessam as fronteiras de classe social, etnia e sexualidade, produzindo uma gama de configurações de feminilidade jovem marcadas pelo enredamento de raça e classe. Depois de se postular que seu destino deveria ser o casamento, a maternidade e a participação econômica limitada, a esta menina hoje é atribuída potencialidade econômica. Mulheres jovens de origens étnicas e sociais diferentes, cada vez mais instruídas, atualmente enfrentam a exigência e a responsabilidade de um desempenho econômico ativo. São convidadas a se reconhecerem como sujeitos privilegiados de transformação social; talvez se espere delas até que sintam gratidão pelo que receberam. A mulher jovem negra, branca ou asiática, agradável, viva e capaz, é hoje um sinal atraente da transformação social.

Examino o novo estatuto da nova mulher considerando quatro “espaços de atenção”, cada um deles funcionando para sustentar e revitalizar o que Butler chamou a “matriz heterossexual”, que simultaneamente estabelece e confirma, sutilmente, tanto normas de hierarquia racial, quanto divisões de classe reconfiguradas, as quais assumem formas mais autônomas das dimensão de gênero. Definindo tais “espaços de atenção” como luminosidades, proponho que consistam, primeiro, do complexo de moda e beleza, do qual emerge a mascarada[1] pós-feminista como modalidade distinta de agência feminina. Em segundo lugar, há o espaço luminoso da educação e do emprego, dentro do qual se encontra a figura da working girl. Terceiro, o espaço hipervisível da sexualidade, fertilidade e reprodução, do qual emerge a garota fálica. O quarto é o espaço da globalização e especialmente a produção de feminilidades comerciais no mundo em desenvolvimento. O contrato sexual no palco global é claramente delineado nas edições mundiais de revistas de moda para jovens como Elle, Marie Claire, Grazia e Vogue, de cujas páginas emerge a menina global amigável, nada ameaçadora, linda e maleável, ansiosa por agradar e nem um pouco rancorosa.

Brilhando na luz: a mascarada pós-feminista

Jovens mulheres têm sido alocadas no contexto de uma gama ampla de mudanças sociais, políticas e econômicas, nas quais elas parecem ser protagonistas. (Isso também marca uma mudança: as mulheres figuram agora no discurso governamental tanto pelas suas capacidades produtivas quanto reprodutivas.) Elas são, assim, um sujeito intensamente monitorado pelas práticas biopolíticas pós-feministas da nova governamentabilidade, atentas às questões de gênero. Como entender essa atenção? Deleuze, quando escreveu sobre o que Foucault quis dizer com “visibilidades”, sugeriu que estas não são “formas ou objetos, nem mesmo formas que aparecem sob a luz, mas formas de luminosidade criadas pela própria luz e que permitem que a coisa ou objeto exista somente como um lampejo, cintilação ou reflexo” (Deleuze, 1986, p. 52). Essa luminosidade captura como as jovens mulheres estão se tornando visíveis hoje. O poder que elas parecem possuir coletivamente “é criado pela própria luz”. Essas luminosidades insinuam uma igualdade pós-feminista ao mesmo tempo em que definem e circunscrevem as condições desse status. São nuvens de luz que dão às jovens mulheres uma presença resplandescente, delimitam o terreno do que é perfeitamente feminino e, por isso mesmo, tranquilizador. Essa luminosidade funciona baseada na ilusão de movimento e de protagonismo; assim parece que as jovens mulheres estão se destacando por escolha e porque todos os impedimentos foram retirados. A luz identifica e traça esses movimentos enquanto os dota de um efeito cinematográfico espetacular.

Judith Butler já sugeriu que o poder patriarcal (ou o Simbólico) foi confrontado em anos recentes pelo feminismo enquanto antagonismo político (Butler, 2000).  A análise de Butler pode ser usada para afirmar que o confronto feminista forçou alguns ajustes no Simbólico. A questão é que o trabalho e a capacidade de ganho chegam a dominar, ao invés de estarem subordinados à identidade das mulheres, e isso reverberou dentro do campo do poder. O Simbólico enfrenta o problema de manter a dominância do falocentrismo quando a lógica do capitalismo global é a de desamarrar as mulheres de seus papéis antes prescritos e lhes dar diferentes graus de independência econômica.

O Simbólico, portanto, enfrenta uma dupla ameaça: primeiro, a de um feminismo ultrapassado e por isso meramente espectral; e, segundo, a do reposicionamente agressivo de mulheres através de processos econômicos de individualização feminina. As luminosidades da feminilidade proporcionam espaços para o renovado exercício de autoridade. O Simbólico repassa suas demandas para o domínio comercial (beleza, moda, revistas, cultura do corpo etc.), que se torna a fonte de autoridade e julgamento para as jovens mulheres. Já que o domínio comercial é hoje tão dominante e como as instituições sociais têm uma esfera de influência reduzida, podemos detectar uma intensificação das suas demandas disciplinadoras e também perceber novas dinâmicas de agressão, violência e autopunição. Proponho que uma estratégia-chave de contenção, de parte do Simbólico, é a de delegar boa parte de seu poder ao complexo de moda e beleza onde, como “grande luminosidade”, uma mascarada pós-feminista emerge como novo dominante cultural. A mascarada, conforme foi definida primeiro por Riviere em 1929, à qual Butler recorre em Gender Trouble (1999), reaparece como meio altamente autoconsciente de incentivar as jovens mulheres a colaborarem com a re-estabilização de normas de gênero, de tal forma a desfazer os ganhos do feminismo e a se desassociarem dessa identidade política agora desautorizada. O famoso ensaio de 1929 de Riviere é um texto ao qual feministas voltam com frequência. Como psicanalista, Riviere se interessa em como “mulheres que desejam a masculinidade podem vestir uma máscara de feminilidade para evitar a ansiedade e a retribuição temida dos homens” (Riviere apud Butler, 1999, p. 65). Riviere entende que a feminilidade e a máscara são indistinguíveis, e que não há uma mulher naturalmente feminina à espreita, atrás da máscara.

Quero apresentar a mascarada pós-feminista como reordenamento da matriz heterossexual para assegurar, mais uma vez, a existência da lei patriarcal e a hegemonia masculina. Existe um deslizamento útil no relato de Riviere entre a atualidade da mascarada como fenômeno reconhecível, que ela percebe em suas pacientes mulheres e seus encontros, e as imagens da feminilidade encontradas no âmbito da cultura. Essa interseção entre os estilos de feminilidade observados por Riviere na vida cotidiana e aqueles retratados na cultura de massa feminina me permite aqui propor que a mascarada pós-feminista é um modo de inscrição feminina. Como refrão de feminilidade, atravessa a superfície do corpo feminino enquanto dispositivo interpelativo, trabalha e é visibilíssima no âmbito comercial como feminilidade familiar (até saudosista ou “retrô”) e alegre. Recentemente este “refrão” foi reinstituído ironicamente no repertório da feminilidade. Ele sinaliza que a hiperfeminilidade da mascarada, que parece devolver as mulheres aos termos das hierarquias tradicionais de gênero, ao fazer com que ela vista sapatos salto agulha e saias tubo, por exemplo, não significa de fato que ela está presa (como as feministas teriam entendido, no passado), já que hoje isto é questão de escolha, e não uma imposição.

Esta nova mascarada se refere sempre a seus artifícios, ela é adotada pelas próprias mulheres como uma atitude consciente, um statement: as mulheres fantasiadas estão afirmando que escolheram livremente um look. A mascarada pós-feminista não teme a desforra masculina. Ao invés disso, é a estrutura de reprimenda do sistema de moda e beleza que funciona como regime de autoridade. (Daí o aparente desprezo da aprovação masculina, sobretudo se o traje e look forem amplamente admirados no meio da moda. Este é um tema recorrente na série de televisão Sex and the City, por exemplo.) Essa mascarada resgata as mulheres da ameaça dessas configurações ao reinstituir triunfalmente o espetáculo da feminilidade excessiva (baseada na condição de assalariada independente), enquanto reforça a masculinidade hegemônica, ao endossar a feminilidade pública que parece minar, ou pelo menos estorvar, o novo poder que as mulheres acumulam com base em sua capacidade econômica.

Existem muitas variantes da mascarada pós-feminista, mas essencialmente ela consiste no reordenamento da feminilidade, para que os estilos antigos (regras sobre chapéus, bolsas, sapatos etc.), que sinalizavam a submissão a uma autoridade invisível ou a um conjunto opaco de instruções, sejam reinstituídos. (Por exemplo, a minissaia de Bridget Jones, seu hábito de flertar no local de trabalho e suas autorreprimendas.)

A mascarada pós-feminista resgata a mocinha como um retorno ao passado e ela adota esse estilo (assumindo, por exemplo, uma cara de “tola e sem noção” – Riviere, ibid. p. 29) para ajudá-la a navegar no terreno da masculinidade hegemônica sem colocar em perigo sua identidade sexual que, já que está inserida legitimamente no mundo institucional do trabalho do qual foi excluída ou teve acesso restrito, pode se tornar um locus de vulnerabilidade. Ou simplesmente ela teme ser considerada agressivamente antifeminina ao se destacar como mulher poderosa, e passa a adotar o ar de distração, meio afobada, de uma menina supercarregada de bolsas, sapatos, pulseiras e outros itens decorativos que precisam de atenção constante. O chapéu bobinho, a saia curta demais, os saltos altíssimos são todas formas de enfatizar, como o faziam as comédias hollywoodianas, a vulnerabilidade, a fragilidade, a incerteza e a ansiedade da mulher acerca da possibilidade de sua condição lhe custar o desejo masculino.

Ambas, Riviere e Butler, se referem à agressão sublimada dirigida à masculinidade e à dominação masculina na forma da mascarada. Riviere utiliza palavras como triunfo, supremacia e hostilidade para descrever a cólera feminina que escora a fachada de excesso de adornos femininos; aponta a fúria das mulheres profissionais que percebem sua própria subjugação ao comportamento de seus pares homens. Tudo isso é transformado de forma grotesca em uma máscara de maquiagem e um look estilizadíssimo.

Essa estratégia reaparece hoje em circunstâncias muito variadas. As mulheres habitam rotineiramente as esferas masculinas e competem com homens cotidianamente. Assumem seus lugares ao lado de homens graças a políticas antidiscriminatórias e mais recentemente devido a sistemas de recompensa meritocráticos propostos pelo governo New Labour. A mulher fantasiada deseja ter uma posição como “sujeito na linguagem”, isto é, participar na vida pública, em lugar de existir simplesmente como “mulher como signo” (Butler, 1999).

É precisamente porque as mulheres hoje são capazes de funcionar como sujeitos na linguagem (isto é, elas participam da vida do trabalho) que a nova mascarada existe, para gerenciar o campo de antagonismos sexuais e reconstituir a mulher como signo. A mascarada funciona para tranquilizar as estruturas masculinas do poder, ao neutralizar a presença e as ações agressivas e competitivas de mulheres quando ocupam posições de autoridade. Ela re-estabiliza as relações de gênero e a matriz heterossexual, conforme definida por Butler, ao interpelar as mulheres reiterada e ritualisticamente, e trazê-las para dentro dos termos de uma feminilidade sagaz, autorreflexiva e altamente estilizada. A mascarada pós-feminista age em nome do Simbólico, prevenindo eventuais distúrbios apresentados pelo novo regime de gênero. Ela opera em um movimento duplo – sua estrutura voluntarista oculta o fato de que o patriarcado ainda é vigente, enquanto as demandas do sistema de beleza e moda garantem que as mulheres ainda sejam sujeitos medrosos, impulsionados pela necessidade de “perfeição completa” (Riviere, 1986 p. 42).

A educação e o emprego como locais de capacidade: a visibilidade da working girl instruída

As luminosidades da mascarada pós-feminista e as nuvens de luz que recaem na figura da mulher jovem pelo sistema de moda e beleza se equiparam, quando não são superadas (e frequentemente atravessadas), às visibilidades que produzem a jovem mulher instruída ou trabalhadora. Grandes investimentos governamentais são feitos para preparar a jovem mulher para o trabalho e esses estímulos instam a jovem mulher ao protagonismo através de uma ampla gama de talentos e habilidades (Rose, 1999).

A mulher jovem passa a ser entendida como portadora em potencial de qualificações; ela é um sujeito ativo das aspirações do sistema educacional e incorpora o sucesso dos novos valores que o governo New Labour tem procurado instituir nas escolas. Esse reposicionamento é um fator decisivo no novo contrato sexual. A aquisição (ou não) de qualificações começa a funcionar como marca da nova divisão de gênero. As mulheres jovens são ranqueadas de acordo com sua capacidade de ganhar as qualificações, que é o que lhes dará uma identidade como sujeitos femininos capazes. (Neste sentido, podem, por exemplo, ser obcecadas por obterem as melhores notas.)

A jovem mulher se apresenta como alguém capaz de transcender barreiras de sexo, raça e classe. Destaca-se como jovem negra ou asiática exemplar, com base em seu entusiasmo pelo aprendizado, gosto pelo trabalho duro e desejo de perseguir recompensa econômica. As mulheres jovens que não realizam seu potencial ou não têm a motivação e ambição de se aprimorarem em grau suficiente são condenadas mais enfaticamente do que teriam sido no passado, por sua falta de status e outras falhas.

No entanto, existe um deslocamento na transição para o trabalho, no sentido de que o movimento de avanço dessas jovens se defronta com a ideia da harmonização ou compromisso social. E aí o trabalho dos “espaços de atenção” é o de administrar processos de negociação e compromisso. Utilizo o termo “compromisso social” para dar conta da forma com que o novo contrato social funciona no local de trabalho, estabelecendo limites nos padrões de participação e igualdade de gênero (as formas de cerceamento) (Crompton, 1982).

Rosemary Crompton focaliza em sua análise as mulheres que também são mães e sua volta ao mercado de trabalho, depois do nascimento de seus filhos. A pertinência de seu trabalho para a discussão que desenvolvo se refere ao abandono implícito da crítica à hegemonia masculina, em favor do compromisso. Jovens mães trabalhadoras, ao que parece, recuam de qualquer ideia de um debate sobre a desigualdade em casa e procuram formas, com a ajuda do governo, de administrar sua dupla responsabilidade.

Isso se conecta à questão anterior, a da mascarada pós-feminista, como sendo uma estratégia de retrocesso, de reconfiguração da feminilidade normativa, neste caso incorporando a maternidade de tal maneira a não perturbar o masculino. Nesse compromisso social, existe mais uma vez um processo de re-estabilização de gênero. […] Tal compromisso requer que as mulheres desempenhem um duplo papel, que atuem no local de trabalho e também como responsáveis principais pelos filhos e a vida doméstica (Crompton, 2002). Em lugar de questionar a expectativa tradicional de que as mulheres assumam a responsabilidade principal pela casa, há um movimento de abandono da crítica ao patriarcado e a tentativa heróica de “fazer tudo”, enquanto se espera apoio do governo nessa tarefa hercúlea. A transição para esse modo feminino de atividade se realiza através de uma série de luminosidades (a mãe glamourosa que trabalha, a mãe sexy, yummy mummy”, a mulher que transita nos altos escalões e ainda é mãe etc.), imagens e textos que são acompanhados por formas de ficção populares, inclusive best-sellers como Não sei como ela consegue, de Allison Pearson (2004).

O governo do Reino Unido assume o lugar da feminista, desloca seu vocabulário e intervém para ajudar as mães trabalhadoras que avançam e evitar a possibilidade de uma crítica, por parte das mulheres, de sua dupla responsabilidade e, portanto, de uma possível crise na matriz heterossexual. O governo, ao apoiar as mulheres em seu duplo papel, atua para proteger a hegemonia masculina, enquanto a cultura popular massiva tenta reglamourizar as esposas e mães trabalhadoras através de estilos pós-feministas de autoajuda, hipersexualidade e capacidade. Esse aspecto do novo contrato sexual requer compromisso no trabalho e em casa. Apesar da retórica do heroísmo que combina a responsabilidade primária pelos filhos com a carreira profissional, na prática, a ênfase, por parte de vários órgãos governamentais cujo público alvo são as jovens mulheres trabalhadoras, está na diminuição da escala da ambição em favor de um discurso sobre a administração das dificuldades com o advento da maternidade. À luz dessas novas responsabilidades, a mulher jovem é aconselhada a solicitar flexibilidade de seu empregador. O governo britânico não está estimulando as mulheres a voltarem para casa depois de ter filhos. O novo contrato sexual oferece apoio e conselhos para que a volta ao emprego (muitas vezes em tempo parcial) seja facilitada na forma de um equilíbrio trabalho/vida. […] Esse equilíbrio, para as mulheres, tem sustentação hoje na forma de melhores salvaguardas legais para trabalhadores de tempo parcial e direitos à aposentadoria. Ao mesmo tempo, o Estado possibilita, através dessas disposições, que o marido continue na sua carreira sem reclamações femininas […].

Garotas fálicas: sexo recreativo, sexo reprodutivo

A mascarada pós-feminista e a figura da jovem mulher trabalhadora são dois dos meios pelos quais o novo contrato sexual é disponibilizado às jovens mulheres. Aqui introduzo uma terceira figura, a garota fálica, e na seção final, a garotal global. Butler imagina a “lésbica fálica” como figura política que extrai algo do todo-poderoso Simbólico. Em uma entrevista, perguntam a Butler se as mulheres heterossexuais também poderiam assumir o falo dessa maneira, e ela responde que talvez seja importante fazê-lo (Butler et al, 1996).  Mas agora, mais recentemente, e no terreno da cultura ocidental pós-feminista, o Simbólico reage rapidamente ao antagonismo que não só o feminismo, mas também o falo lésbico de Butler e a teoria queer em si apresentam, ao fornecer previamente às mulheres jovens a capacidade de se tornarem portadoras de falos, em uma espécie de mimese autorizada de sua contraparte masculina. Isso impede qualquer rearranjo radical das hierarquias de gênero apesar ou até por causa dessa “pretensa” igualdade, que permite espetáculos de agressão e comportamentos antifemininos por parte das mulheres jovens, aparentemente sem levar às punições de praxe.

A garota fálica dá a impressão de haver conquistado a igualdade com os homens, ao se assemelhar a seus parceiros. Mas na adoção do falo não há crítica à hegemonia masculina. Essa menina é uma jovem mulher para quem as liberdades associadas aos prazeres sexuais masculinos não estão só disponíveis, são estimulados e festejados. A ela se solicita estar de acordo com a definição do sexo como um prazer alegre, uma atividade recreativa, como hedonismo, esporte, recompensa e status. A luminosidade recai sobre a menina que adota os hábitos associados à masculinidade, inclusive beber muito, falar palavrão, fumar, se envolver em brigas, participar de sexo casual, ser detida pela polícia, consumir pornografia e ir a boates com shows eróticos etc., mas sem abrir mão de ser desejável para os homens; de fato, essa aparente masculinidade potencializa o desejo por ela na economia visual da heterossexualidade […].

O falicismo feminino é uma alternativa mais assertiva do que a da mascarada, mas faz o mesmo serviço de re-estabilizar as relações de gênero. Temerosa da ameaça à heterossexualidade dominante, constituída pelo enfraquecimento dos vínculos de dependência através do acesso ao trabalho e ao emprego, a garota fálica que parece quebrar tabus emerge também como um desafio não só à feminista mas também à lésbica repudiadas. Capaz de assumir alguns dos instrumentos da masculinidade, a menina embriagada, que fala palavrão, olha lubricamente e não tem aversão a fazer sexo com outras meninas, demonstra que dentro do domínio da autoridade Simbólica, tudo parece possível. A cultura de consumo, a imprensa marrom, o setor de revistas de meninas e mulheres, as revistas masculinas e também a televisão popularesca, todos estimulam as jovens mulheres, pretensamente em nome da igualdade sexual, a reverterem os antigos costumes e imitarem os estilos de sexualidade assertivos e hedonistas dos homens jovens. A presunção do falicismo também dá vazão a novas dimensões do pânico moral e excitação voyeurista na forma do espetáculo noticioso e do entretenimento.

Sob essa pretensa igualdade promovida pela cultura de consumo, esse falicismo feminino é de fato uma provocação ao feminismo, um gesto triunfante de parte do patriarcado ressurgente. A violência que sustenta o reconhecimento da liberdade da garota fálica demanda uma análise mais detalhada. Ao emergir e se mostrar “sempre disposta”, a garota fálica como luminosidade permite certos modos de retrocesso do que se tornou senso comum feminista, e que se torna então objeto de revisão. Assim, seu comportamento antifeminino permite a volta aos debates sobre a violência sexual e o estupro, quando se tratar, por exemplo, de uma garota que estava tão bêbada que não tem ideia do que realmente aconteceu, ou de outra que concordou em ter sexo com vários homens, mas não esperava ser tratada com violência ou brutalidade. Ao endossar normas de conduta masculinas no campo da sexualidade, ela remove qualquer obrigação, por parte dos homens, de refletir sobre seu próprio comportamento e sobre o tratamento dado às mulheres. A garota fálica por exemplo, a modelo glamourosa que está envelhecendo –, deve aguentar a hostilidade masculina, agora que já não é tão desejável. A hostilidade do homem jovem para com as mulheres reaparece sem reprovação, sobretudo na comédia e na cultura de massa.

A menina global

As figurações da mascarada pós-feminista e da garota fálica também desenham, por meios sutis, processos de exclusão e recolonização. Existem padrões de cerceamento racializados, embutidos nesses espaços reconfigurados de feminilidade. A primeira faz isso ao enaltecer as virtudes da fraqueza feminina disfarçada e a fragilidade. Ao se voltar para a tradição dessa maneira, adotando um estilo de feminilidade que convida mais uma vez a demonstrações de cavalheirismo, galanteios, poder e controle masculinos, revivifica normas de heterossexualidade branca das quais mulheres e homens negros foram histórica e violentamente excluídos.

A mascarada pós-feminista como estratégia cultural para re-estabilizar as relações de gênero dentro da hegemonia heterossexual produz uma nova interface entre a vida de trabalho e a sexualidade que é implicitamente branca, e que presume normas de parentesco associadas com a família nuclear ocidental. Em acordo com o novo ethos de assimilação e integração, ao invés do multiculturalismo aparentemente fracassado dos anos 1980 e 1990, as jovens mulheres negras são convidadas, como leitoras de revistas como Grazia, ou espectadoras de programas de televisão como Friends, ou filmes como Diário de Bridget Jones, a emular esse modelo, a se inscrever nesses roteiros, sem modificação e sem a opção de questionar ou contestá-los.

A menina global emerge, sobretudo, nas imagens de empresas de moda como a Benetton, e também nas diversas edições de revistas como Elle, Marie Claire, Vogue e Grazia, adaptadas para cada país, como emblemáticas do poder e sucesso do multiculturalismo empresarial. Este encara as jovens mulheres, sobretudo as de países do Terceiro Mundo, como entusiastas da participação e do pertencimento a uma espécie de feminilidade global. A modernidade da menina global manifesta-se em suas novas liberdades, capacidade de ganho, a forma com que desfruta e está imersa na cultura da beleza e de massa. Ela é graciosa e bonita e não porta ironicamente sua feminilidade através de seus acessórios, como a jovem que se integra à mascarada pós-feminista ocidental, nem apresenta a mesma agressão e bravata sexual que as garotas fálicas. As meninas globais são a construção fantasiosa de uma masculinidade ocidental ameaçada. Combinam o natural e o autêntico com um gosto – expressamente feminino – por se enfeitar, a sedução lúdica com a inocência, de forma a sugerir uma sexualidade que é juvenil, latente e à espera de ser liberada.

Não há nada de novo nessa fantasia racial, mas essas jovens hoje são vistas como mais ativas do que passivas, e isso marca um reposicionamento sutil, uma reelaboração da hierarquia racial dentro do campo da feminilidade normativa. A ideia de um contrato sexual como convergência de atenções, atravessando uma gama de atividades corporais e permitindo modos de avanço sob a condição de que o resíduo da política sexual se esvaneça, é também uma formulação ocidental dirigida àquelas que se presumem terem direito à plena cidadania e o direito de permanecerem no país de residência. Nesse contrato, a atividade econômica está em foco e a política é empurrada para as margens, para favorecer uma cidadania do consumo.

As mulheres excluídas do modelo de liberdade baseado na educação estatal, seguido da participação em cursos de formação e no mercado de trabalho, são sujeitas a modalidades diferentes de preocupação, que levam ao desenvolvimento de tecnologias mais convencionais de vigilância. O espaço de atenção que dá vazão à nova figura da menina global espera que ela “compre” estilos ocidentais de feminilidade espetacular como forma de potencializar sua posição na divisão internacional de trabalho e mostrar sua vontade de ter sucesso, que é acrítica e “sem rancor”. Poderíamos dizer que a jovem solteira originária de uma parte empobrecida do mundo tem se tornado, nos últimos vinte anos, um sujeito redesenhado através do que Spivak chama de “planejamento de gênero”, como tendo capacidade de trabalho maior ainda do que no passado. Por isso, presta-se uma atenção crescente a sua educação e treinamento que, Spivak nota também, hoje envolve diversas versões da pedagogia neoliberal de influência americana baseada na ideia do empreendedorismo […].

Concluindo, mapeei aqui o processo pelo qual o feminismo foi dissolvido através de altos níveis de intervenção e atenção dirigidas à mulher jovem, cujo significado em termos de capacidade de ganho não pode ser desprezado. Um novo contrato sexual é oferecido a essas jovens, que estimula sua atuação na educação e no emprego de forma a assegurar altas taxas de participação no mercado de trabalho, na cultura de consumo e na esfera da sexualidade. Nesse processo de emergência das jovens mulheres, no entanto, oculta-se a inquietação do governo com um eventual protagonismo das mulheres na esfera política. Isso se compensa com a ideia de cidadania do consumo.

Essas diversas luminosidades têm uma espécie de efeito teatral, comunicam a impressão de que as jovens mulheres hoje podem emergir desimpedidas e fazer escolhas sobre como querem viver suas vidas; fazem parecer que as jovens mulheres têm de fato poder. As culturas de consumo que sustentam o vocabulário da “escolha” permitem o eclipse e a fragmentação do campo social. Esse efeito teatral festeja o apetite da jovem pelo trabalho e estimula o consumo espetacular, justificado pela ideia de que ela trabalhou para merecer essas recompensas. Há uma re-estabilização de papéis de gênero nessa orquestração de luminosidades. As jovens mulheres podem se destacar, mas sob a condição de que a política feminista se esvaneça e de que a ilusão de movimento e sucesso mascare a reinstalação sutil – e nem tão sutil – de hierarquias sexuais.


* Texto original: “Four Technologies of Young Womanhood”. Palestra proferida em 31 de outubro de 2006, no Zentrum fur Interdisziplinare Frauen und Geschlecterforschung em Berlim.

* Angela McRobbie é professora de Comunicação em Goldsmiths College – University of London e autora de obras sobre feminismo, moda e arte. Entre seus livros se destacam Postmodernism and Popular Culture (1994), In the Culture Society: Art, Fashion and Popular Music (1999) e The Aftermath of Feminism: Gender, Culture and Social Change (2009).

* Liv Sovik é professora da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO-UFRJ) e autora de Aqui ninguém é branco (Aeroplano, 2009), sobre representações de relações raciais e de gênero no Brasil.

[1] O termo “mascarade” que traduzi por “mascarada” significa, no contexto da teoria feminista, uma forma de encenação.

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