entrevista
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Daniel Miller: "A Antropologia Digital é o melhor caminho para entender a sociedade moderna"

Pauta e edição: Patrícia Farias, Ilana Strozenberg e Monica Machado
Entrevista: Monica Machado
Tradução: Pérola F. Pedro
Revisão da tradução: Patrícia Farias

Das diferenças entre a selfie em Trinidad e na Inglaterra à importância da Antropologia contemporânea para pensar um mundo crescentemente mediado por tecnologias digitais, o antropólogo Daniel Miller, professor da Universidade College London (UCL), no Reino Unido, condensa suas ideias e explica seu trabalho nesta entrevista. Referência obrigatória para qualquer pesquisa ou pesquisador de cultura material e Antropologia do Consumo, Miller participa da ideia de que as sociedades podem ser mais bem compreendidas a partir da análise de seus aspectos materiais, suas materialidades. Mais recentemente, incluiu em suas preocupações e pesquisas nessa área os significados e práticas dos diversos grupos sociais sobre os meios de comunicação digitais, dedicando-se aos estudos em Antropologia Digital. O criador do conceito de polymedia coordena hoje um ambicioso projeto de pesquisa sobre as tecnologias digitais e seus significados culturais em vários países do mundo, de Trinidad e Singapura ao Brasil. Aliás, Miller tem interesse especial no Brasil, que já visitou em algumas ocasiões, a trabalho, e onde tem um público crescentemente estimulado por seus estudos. Já publicou 38 livros, sendo suas mais recentes publicações Tales from Facebook (2011), Digital Anthropology (editado com Heather Horst, 2012) e Webcam (em parceria com Jolynna Sinanan, 2013). No Brasil, contamos apenas, por enquanto, com dois de seus livros disponíveis em português: Teoria das compras (2002) e Trecos, troços e coisas (2012). Mas esse quadro deve mudar, e rápido. Em conversa com a pesquisadora Monica Machado, Miller reafirma seu interesse em estreitar os laços com colaboradores brasileiros. Promete também um ano de muito trabalho com o projeto What they post (O que eles postam) que inclui a confecção de filmes curtas, plataformas interativas, cursos e atividades online, tudo sobre os usos dos meios digitais em vários lugares do mundo.

Daniel Miller

 Daniel Miller (Foto: divulgação)

 O que levou você e Heather A. Horst a propor o conceito de Antropologia Digital como uma nova subdisciplina e quais são as principais características dessa perspectiva, comparada a outras abordagens teóricas sobre as tecnologias digitais no campo de ciências sociais?

Daniel Miller Há dois elementos nessa questão. O primeiro é o que difere Antropologia Digital de outros estudos do digital e, o segundo, o que difere a Antropologia Digital de outros estudos na Antropologia. Eu, pessoalmente, fico um tanto ou quanto chocado do quão nossos estudos são diferentes da vasta maioria de outros estudos sobre a cultura digital. Recentemente li uma coletânea editada por uma das grandes instituições que se dedicam a estudos sobre a internet no Reino Unido, uma instituição que realmente respeito e considero academicamente séria e importante. Porém achei difícil fazer quaisquer anotações naquele livro que pudessem me ser úteis. A razão é que o livro consistia de muitas afirmações sobre “a internet” ou “o Twitter”,  ou então questões sobre orçamentos ou dados quantitativos. Mas toda vez que lia algo, ficava pensando: mas isso se mantém igual tanto para chineses quanto para brasileiros? Essa “internet” é a mesma para mulheres e homens, pessoas mais velhas e mais novas? Basicamente, quase toda afirmação do livro era uma generalização que eu não podia imaginar que fosse verdadeira. Esses estudos tendem a emular as pesquisas feitas pelas ciências naturais, como, por exemplo, em estudos da internet que procuram observar quantos amigos uma pessoa tem que ter numa rede social para ser considerada muito popular pelos outros. E, então, eles extrapolam disso para uma declaração geral sobre a amizade no Facebook. Mas eu sei que esse experimento daria um resultado diferente para qualquer outra população. Então, quase todos os estudos recorrentes sobre o uso de tecnologias digitais falham em mostrar o que nós sabemos sobre o uso da internet.

Por outro lado, há também diferenças entre nossos estudos em relação aos estudos antropológicos tradicionais. Uma das mais importantes é ideológica. Na Antropologia, frequentemente encontramos pesquisas onde há a romantização do “outro”, passando a vê-lo, assim como a suas sociedades, como mais autênticas, como comunidades, enquanto que há a caracterização de sociedades como aquela em que vivo como uma perda. Então o mundo online é visto como virtual, e o amigo do Facebook  não é visto como um amigo de verdade. Para mim é muito importante que a Antropologia trate  todas as sociedades como iguais. Para mim, Londres é tão autêntica quanto a Amazônia, e seus relacionamentos sociais tão significativos quanto. Fazer coisas online é parte e parcela do dia a dia. Nós não consideramos uma ligação telefônica como “virtual” só porque acontece por telefone. Em segundo lugar, os estudos tradicionais são frequentemente fixados em uma população particular e local. Mas quando estudei, por exemplo, a relação entre mães e filhos filipinos, uma das unidades de análise foram as conexões digitais transnacionais entre eles.

Porém esses são os pontos negativos. A força de nosso livro Antropologia Digital é que ele não duela com essas diferenças e sim se concentra em pensar adiante sobre elas, em como podemos teorizar esses novos ambientes digitais. Propomos seis perspectivas teóricas em nossa introdução para esse volume. Por exemplo, o jeito que o digital abrange tanto o particularismo quanto a universalidade da vida moderna; o modo com que definimos o digital usando o reducionismo do código binário; e como podemos refutar esta ideia de separação entre esses dois polos, mantendo nosso holismo metodológico.

Seu campo de estudo está cada vez mais voltado para os ambientes digitais. Quais são as maiores contribuições da pesquisa antropológica para entender a significação cultural desse comportamento e seus impactos individuais e sociais?

Daniel Miller O sexto conceito de nossos quadros teóricos na introdução de Antropologia Digital ocupa-se da materialidade de ambientes digitais. Insistindo que o digital é material, e não imaterial, podemos ver continuidades com os estudos da cultura material, que eram o foco anterior de meu trabalho, e cujo resumo pode ser encontrado no livro recentemente traduzido e agora publicado no Brasil, Trecos, troços e coisas (Zahar, 2014). Dentro desses estudos de cultura material, exploramos as muitas formas pelas quais a Antropologia pode ser positivamente empregada para o estudo do nosso mundo contemporâneo, incluindo ideias teóricas como a objetificação, mas também contendo as qualidades de nossa tradição etnográfica, e equilibrando o trabalho teórico com o humanismo de relatos etnográficos, descritos de forma suficientemente clara para nos ajudar a ver como a tecnologia digital está integrada no dia a dia de pessoas comuns, com as quais nos relacionamos e temos empatia em nosso trabalho.

Agora voltemos aos três termos a que você se referiu em sua primeira pergunta e ao triângulo dentro do qual a Antropologia funciona: o relacionamento entre o individual e o social, e a contínua importância da norma cultural. Nossos estudos sugerem que as características tradicionais do trabalho antropológico mantêm sua importância no estudo do digital. Por exemplo, estudos sociológicos implicam que o uso da internet tem levado a uma abordagem da rede mais focada no ego, e, ao mesmo tempo, com forças de estado e superestado cada vez mais poderosas, que constituem a nova infraestrutura digital. Essas questões são encontradas na escrita de pessoas como Castells e Wellman. Mas, em nossos estudos, descobrimos que a comunicação digital frequentemente ainda tem base nas unidades dos estudos da Antropologia mais tradicional. Assim, em nosso estudo na Índia, mostramos que a casta é central na forma como a rede social é usada, enquanto nos estudos na Turquia ela é mais tribal e, em outros estudos, tem mais base na família. Todos esses estudos antropológicos ligam o individual ao social em vez de vê-los como duas categorias opostas na vida.

O mesmo ocorre com a questão do significado cultural dos comportamentos. As tradições antropológicas sugerem que essa vida cultural é considerada como normativa, querendo dizer que as pessoas julgam umas às outras o tempo inteiro, sobre se um comportamento é adequado ou inadequado socialmente. Levando as pessoas a prestarem atenção ao fato de que seu comportamento será julgado socialmente, mantemos nossas próprias especificidades culturais; assim, algo que pode ser totalmente aceitável para uma família brasileira pode ser inaceitável para uma família turca. Os novos meios digitais não fazem nada para atenuar essa ênfase na norma. Na verdade, em alguns aspectos acentua esse processo. Nesse sentido, algo que notamos é que, nas redes sociais, muito de nosso comportamento fica mais visível e registrável, e é mais fácil fazer comentários explícitos sobre isso. Então, antes de qualquer coisa, as pessoas estão mais atentas do que nunca a respeito de suas ações e se são aceitáveis ou não, podendo isso ser julgado pela família, casta e comunidade.

No momento, você está trabalhando com um grupo de pesquisadores em Antropologia Digital que está fazendo etnografias em países diferentes como Índia, China, Brasil, Turquia, Trinidad, Filipinas e Inglaterra. Você percebe diferenças expressivas no trabalho de campo de tais pesquisadores referindo-se ao uso das redes sociais e ao modo com que as pessoas se engajam nessas redes? E similaridades? Você pode dizer, nesse ponto de sua pesquisa, que há um jeitinho brasileiro de lidar com as redes sociais?

Daniel Miller O argumento central do livro Tales from Facebook (Contos do Facebook) foi realmente demonstrar que não há uma coisa chamada “o” Facebook, assim como não há uma coisa como “a” internet. O Facebook tornou-se diferente em cada lugar que foi usado. Nesse livro, eu, na maior parte, usei histórias para demonstrar uma teoria. Mas, atualmente, estou finalizando com Jolyanna Sinanan um novo livro chamado What they post (O que eles postam). Enquanto Tales from Facebook não possuía nenhuma ilustração visual, esse livro tem foco na apresentação direta da iconografia, do componente visual do Facebook, em geral fotos e memes. Então podemos comparar diretamente o que as pessoas de fato postam, de tópicos que variam de cachorros e gatos a religião e festas. Também fizemos contas sistemáticas sobre quantas fotos de diferentes tópicos são achados em uma amostra de 50 perfis de Facebook de cada site. Isso nos permite mostrar muito claramente que o Facebook é de fato extremamente diferente, em se tratando, por exemplo, de posts ingleses e posts trinidadianos. E essas diferenças chegam muito perto do que se poderia considerar uma etnografia tradicional. Assim, os posts em inglês se alinham ao meio termo discreto, e evitam os extremos tanto em assuntos sérios como religião e política quanto nos transgressores, como o sexual. Em contraste, o foco dos Trinidadianos é um pouco como o retrato de Jorge Amado em Dona Flor e seus dois maridos, com muitos posts relacionados à sexualidade e ao carnaval, e muitos que são relacionados à política e à religião, mas muito pouco no meio termo. Então, sim, pode-se dizer que há diversos “jeitinhos brasileiros”, que mostram que a Bahia é muito mais como Trinidad do que como os posts ingleses.

O conceito de polymedia é uma importante contribuição teórica para o estudo de comunicação e mídias sociais. Você poderia, por favor, explicar o significado desse conceito e em quais contextos pode ser aplicado?

Daniel Miller Muitos dos meus estudos anteriores eram apenas sobre um novo meio, como o Facebook e a webcam. Mas cada vez mais eu percebi que isso falhava em se envolver com o núcleo abrangente da mídia digital moderna, o que nos traz de volta a nossas tradições holistas e estruturais. O uso e o significado de qualquer mídia tende a ser definido pelos contrastes e complementaridades com outras mídias. Então o Twitter torna-se classificado como informacional e associado com homens, enquanto o Instagram torna-se dominado por questões de visual e estilo, mais associadas com mulheres. O Snapchat é transitório, em oposição ao uso de longo termo do Facebook.

A chave para se pensar isso são as mudanças nas sociedades mais influentes. Antes, a razão das pessoas usarem essa ou outra mídia poderia ser traduzida por questões tais como custo ou acesso. Mas com pacotes de internet e smartphone, o custo foi relegado à infraestrutura. Assim, a decisão de qual mídia usar, se uma mensagem do Facebook, uma chamada pela webcam, um e-mail ou uma chamada de voz agora representa uma razão pessoal, algo que deve ser pensado e decidido. Então a escolha de mídia tornou-se parte da interação social em si mesma. Por conseguinte, isso implica uma ressocialização da própria mídia, já que agora a escolha da mídia é vista como uma ação social e moral. Eu acho que isso é verdade em todo lugar onde o custo é relegado à infraestrutura. No presente, isso não é verdade para a classe trabalhadora do Brasil, mas é para a classe média.

Em Tales from Facebook, você argumenta que o desempenho dos habitantes de Trinidad na mídia social revela muitos dos aspectos do seu contexto social e cultural. Em que medida, em seu ponto de vista, o uso da tecnologia digital contribuiu para as tensões entre culturas global e local?

Daniel Miller Deixe-me responder isso com apenas um exemplo fundamental. Eu acho que, de todos os novos gêneros digitais, o que as pessoas mais consideram como sinal de globalização instantânea talvez seja a selfie. Porque a selfie parece, a princípio, ser um exemplo extremamente claro de homogeneização global rápida. Em pouco espaço de tempo seguindo a expansão do smartphone, a selfie transformou-se numa imagem instantaneamente reconhecida pelo mundo. Eu não vejo razão para contrariar isso, no nível de que um objeto genérico chamado selfie mostra como quase instantaneamente um novo gênero pode ser global. Mas a Antropologia deve também sempre notar que o mesmo fenômeno geralmente fala ao outro lado dessa equação.  Voltando ao contraste entre a Inglaterra e Trinidad. A selfie mostra-se extremamente diferente em ambos os contextos. Por exemplo, a maior parte das selfies em nosso site britânico é de grupos de pessoas, enquanto em Trinidad são individuais. Em nossa amostra sistemática, 557 das amostras de Trinidad são individuais, enquanto apenas 138 das amostras inglesas apresentam o mesmo formato. Em contrapartida, 474 das amostras inglesas são de várias pessoas juntas, enquanto o mesmo acontece apenas com 116 das amostras de Trinidad. Na verdade, gêneros inteiros de selfie, como as selfie-sem-maquiagem e selfie-falsa-lésbica, são importantes na Inglaterra, mas inexistentes em Trinidad. Então não é realmente uma questão de mais global ou mais local, mas, como observei acima, nosso ponto teórico sobre tecnologias digitais é de que elas simultaneamente ampliam a possibilidade não só da universalidade como da particularidade.

ucl

Página do grupo Global Social Media Impact Study no site da UCL

 Por fim, você poderia nos dizer algo sobre seus novos projetos de pesquisa?

Daniel Miller Temos planos bem ambiciosos para nossa pesquisa atual em Mídia Social. Graças ao financiamento do Conselho Europeu de Pesquisa, tivemos financiamento para oito etnografias simultâneas, enquanto a Pontificia Universidad Catolica de Chile adicionou uma nona. Todas as pesquisas durarão 15 meses. Percebemos que o tema “Rede social” é potencialmente de grande interesse popular e poderia desempenhar um papel importante também em popularizar a disciplina de Antropologia social. Já estamos coordenando um blog no  http://blogs.ucl.ac.uk/global-social-media/ que tem vários seguidores e até, num determinado caso, tornou-se parte das notícias internacionais (em uma matéria sobre como os jovens não estão usando mais o Facebook).

Então queremos tentar criar um novo exemplo de Antropologia popular. Vemos isso como um site de três camadas, ou níveis. A camada de baixo é constituída de onze livros que já estamos escrevendo e que mostra nossos achados de pesquisa. A camada do meio será um curso universitário online. Pretendemos que tudo isso tenha acesso aberto e online, com avaliação grátis para todos. A camada de cima será aquela dirigida a um público maior, incluindo mais de cem curta-metragens que já fizemos, e um resumo de muitas das percepções e achados de nossos estudos que esperamos apresentar de forma infográfica e em animação, se conseguirmos arrecadar dinheiro. Haverá também outras formas dirigidas ao púbico em geral e possivelmente interativas. A intenção é que todo o material dessa camada seja traduzido para todas as línguas de nosso projeto, incluindo português, para o público brasileiro. Na verdade, estamos procurando por pessoas interessadas em nos ajudar com essas traduções e visualizações. Esperamos que tudo esteja preparado para ser ativado em um novo site chamado “Why they post” (Por que eles postam) em janeiro de 2016.

Sua primeiríssima pergunta foi sobre o que faz a Antropologia Digital diferente. Mas meu ponto central é que ela não só é diferente como também importante. Que ela é um caminho melhor do que os outros para entender a sociedade moderna. E se esse é o caso, e se isso é uma demonstração da força e significância da Antropologia por si só, então nós queremos proclamar isso alto o suficiente pelo mundo inteiro, tanto para a audiência não acadêmica quando para a acadêmica. Sentimos que não há razão que impeça a Antropologia de ser vista como instrumento chave em nossa autoeducação. Isso é o que esperamos realizar com nosso site. Mas há muito trabalho que precisará ser feito ao longo do ano para poder corresponder a tais expectativas.

 

Entrevista
Tempo de leitura estimado: 10 minutos

Os 10 anos da revista Vibrant por seu editor, Peter Fry

Entrevistadora: Patrícia Silveira de Farias*

Em 2004, quando as tecnologias digitais apenas começavam a virar febre no Brasil, a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) fez uma aposta ousada: lançou uma revista exclusivamente virtual. Era um outro caminho; na época, as revistas científicas seguiam a trilha mais confortável de criar uma versão digital para periódicos que seguiam sendo impressos. A ideia da então diretoria da ABA era fazer o conhecimento circular mais rápida e amplamente. Por isso mesmo, os editores optaram também por uma revista “poliglota”: artigos em português, inglês e francês de e sobre o Brasil. Hoje, com recém-completados 10 anos, a Vibrant (Virtual Brazilian Anthropology) acaba de lançar na rede mais um número, tem a mais alta avaliação dos periódicos da área e segue divulgando ensaios e estudos com temática brasileira – mas seus organizadores querem mais. Um de seus idealizadores e atual editor, o antropólogo Peter Fry, professor emérito da UFRJ, afirma que quer expandi-la ainda mais. Em conversa, Fry, autor de vários livros sobre sexualidade, relações raciais e estudos africanos, conta um pouco da trajetória da Vibrant e de suas conexões com o mundo digital, desde a importância do financiamento estatal para os periódicos brasileiros até o desafio que o excesso de informações acessíveis na rede apresenta para a investigação e disseminação do saber científico: “Em última instância, a confiança em relação a essas informações vai depender de fatores sociais”.

Peter Fry

Selfie de Peter Fry

A Vibrant comemorou 10 anos em 2014. Como foi a construção dessa iniciativa? Por que a aposta numa revista totalmente virtual?

Peter Fry Na verdade quem começou tudo foi Gustavo Lins Ribeiro, então presidente da ABA, especialista nos meandros da globalização e militante na concatenação das diversas antropologias nacionais. Não me lembro quem criou o nome, mas a ideia principal era poder compartilhar com o mundo não falante de português as pesquisas e o estado da arte da Antropologia brasileira, através de uma revista poliglota. E que isso fosse possível de ser desenvolvido e mantido dentro de uma realidade de poucos recursos. Não haveria como manter uma revista que fosse muito cara! Enfim, conversamos sobre essa ideia, e chegamos à conclusão de que uma revista virtual facilitaria o acesso e ao mesmo tempo baratearia os custos.

A Vibrant depende de financiamento do CNPq e eventuais contribuições da ABA, mas também conta com a ajuda de muitos sócios da Associação, sobretudo aqueles que assumem o papel de editores dos dossiês.  Nos primeiros números da revista, que foram editados por Omar Ribeiro Thomaz, dependemos de artigos de colegas convidados. Em seguida, publicamos textos recebidos em fluxo contínuo. Mas mesmo assim recebemos menos submissões do que imaginávamos. Além disso, eram sobre assuntos muito díspares. A partir do número 3, então, publicamos, além de textos recebidos em fluxo contínuo, dossiês aprovados pelo Conselho Editorial da revista.

Sendo uma revista da ABA, ela tem que necessariamente abraçar a diversidade de perspectivas e campos de estudos inerentes à Antropologia. As pessoas em geral me falam que estão satisfeitas com a revista do jeito que ela é, mas….eu não. Nem tanto. Eu queria que ela circulasse ainda mais internacionalmente. Ela precisa se inserir em mais redes, precisamos ir ainda mais longe. Torná-la mais conhecida, mais lida.

As novas tecnologias lançaram desafios para a Antropologia, assim como para todos os campos e pessoas, grupos. Uma das formas de lidar com elas é realmente usá-las para ampliar o acesso à informação, claro. Mas, na verdade, há uma série de meios envolvidos nisso, desde a webcam às redes sociais. Pensando em todo esse universo, o antropólogo Daniel Miller propõe o conceito de polymedia, para indicar a forma como estamos imersos e usamos vários meios de comunicação, ao mesmo tempo. E como eles participam da nossa vida diária. Então, não se trataria de como usamos a rede social, a internet, a webcam, mas como isso tudo faz parte do cenário. Como você lida com isso, pessoal e profissionalmente?

Peter Fry As redes sociais… eu tive muito pé atrás. Por exemplo, entrei, participei, depois me retirei… daí me coloquei de novo. Particularmente não gosto; acho muita exposição, estranho muito.

Sim, exposição e privacidade são um duo que estão em questão nas redes sociais. Fico pensando bastante no que falava Goffman sobre o gerenciamento da própria imagem; ao mesmo tempo em que você pode manipular esse self, controlá-lo mais que em outras formas de interação no tal tempo real, por exemplo, ao telefone, editando conversas e mostrando só o que deseja, você também está exposto a muito mais gente, formas de pensar etc.

Peter Fry Mas, profissionalmente, tenho grande curiosidade; examinei uma tese, na área da sexualidade, sobre o universo virtual gay. Foi um trabalho de Gilbran Teixeira, chamado Não sou nem curto prazer e conflito no universo do homoerotismo virtual. Claro, é um exemplo entre vários outros. Mas é muito interessante observar como um meio como esse, dos chamados “sites de relacionamentos”, tem um impacto na sociabilidade dos grupos – ou não. É preciso estudar mais por aí. Porque estamos habituados a pesquisar do ponto de vista dos grupos, mas é possível também investigar mais essas outras formas de interação, se e como elas mudam essas sociabilidades. Temos ainda muito o que saber por aí.

Em relação à Vibrant, novamente, como você a analisa dentro desse novo contexto da aposta na virtualidade como forma de interação entre pares?

Peter Fry A Vibrant ainda é “careta” em termos do mundo digital. Ela tem links, por exemplo, mas não permite comentários, o que não a torna muito interativa, pelo menos não em tempo real. Mas, enfim, isso também é um limite que é dado pelos próprios órgãos financiadores brasileiros. Você não pode fazer uma revista com comentários, que permita “interferências” por parte de seus leitores. E sua avaliação?

Bom, na verdade, também, ela não tem esse formato. Não é uma revista de comentários, não é um blog. Mas podemos explorar outras possibilidades de virtualidade. Tivemos um número, por exemplo, em que a “capa” era um vídeo etnográfico – muito bonito, por sinal. Também publicamos material audiovisual. Todos esses materiais, bem como os textos, são avaliados por pareceristas – enfim, nesse sentido é uma revista bem tradicional.

E ela não está mais só na virtualidade. Temos outras revistas de Antropologia, seguindo esse mesmo caminho. Ainda bem, eu acho.

O que imagina para o futuro da Vibrant e da Antropologia, a partir dessa inserção crescente do virtual nas nossas vidas?

Peter Fry Quando cheguei aqui, nos anos 1970, as bibliotecas eram poucas e fracas; apenas as pessoas mais abastadas tinham acesso aos livros e periódicos recentes. A informação circulava muito, muito pouco. Isto é, havia uma concentração do conhecimento. E isso muda muito nesse novo contexto. Já mudou. Foi uma revolução democrática, acho.

O futuro da comunicação acadêmica é virtual. Já é, de fato, mesmo se as grandes revistas estrangeiras ainda cobrem caro para o acesso. A política brasileira de apoiar revistas de acesso livre e aberto (Creative Commons) é da maior importância nesse sentido, pois aqui não se paga nada para ler toda a produção acadêmica em revistas nacionais. Tanto é que os produtores de revistas em papel acumulam estoques imensos que atraem poeira e estantes cada vez mais abarrotadas, inclusive.

Agora, claro, você tem acesso rápido à informação, o que não quer dizer necessariamente à informação útil; você na verdade tem acesso a todo tipo de informação. É realmente uma tabula rasa. Como selecionar?

Muito antes da popularização da internet, em 1965, Ely Devons e Max Gluckman organizaram uma genial coletânea, Closed systems and open minds: the limits of naïvety in Social Anthropology, na qual vários autores debateram sobre como lidar com as informações a que se tem acesso, principalmente em relação aos seus campos de pesquisa. Qual o limite entre o que você pode verificar, fazer, conhecer, por si mesmo, pelo trabalho de campo, por exemplo. E o que você vai ter de incorporar dessas novas informações que chegam de todo lado, realmente.

A confiança em relação a esse volume de informações vai depender de uma série de fatores sociais, que conferem autoridade de uma forma não randômica. E, em última instância, escapará da impessoalidade da internet, e até dos sofisticados sistemas de avaliação quantitativos, recaindo sobre as recomendações interpessoais. Talvez seja por isso que todas as revistas fazem questão de recrutar as personalidades mais reconhecidas em seu campo para compor os seus conselhos. A Vibrant não é exceção.

Mas, no fundo, somos apenas peças num mercado acadêmico cada vez maior e mais disperso.  Sobreviveremos se conseguirmos criar o que os marqueteiros chamam de fidelidade! A Vibrant escolheu como “nicho” a Antropologia brasileira em inglês e francês, sobretudo, na vã esperança de atingir os professores, alunos e pesquisadores interessados no Brasil que se encontram espalhados por todo o mundo; assim, ela está também criando e fomentando a nossa própria razão de existir. Mas não é assim com todas as mercadorias?

A diferença agora é que há um sistema centralizado de aferição das revistas onde a qualidade é medida quantitativamente através da computação do número de acessos e downloads, a frequência de citações etc. Além disso, grupos de sábios classificam as revistas (o sistema Qualis) que vai determinar o peso atribuído às publicações na hora de avaliar os programas de pós-graduação. Atualmente, a Vibrant é muito bem avaliada, com Qualis A internacional, é uma das mais lidas nacional e internacionalmente, em se tratando dessa área de conhecimento. Mas isso me preocupa bastante, porque o sistema centralizado adotado tende a criar uma hierarquia conservadora e permanente. Você vai me perdoar mais uma referência a um trabalho pioneiro publicado bem antes da invenção da internet. É um exemplo muito claro do “efeito de São Mateus”, identificado, descrito e analisado por Robert King Merton tantos anos atrás (no artigo “The Matthew effect in science”, publicado na edição 159 da revista Science, em 1968). Em Mateus 13: 12, lemos que Jesus falou as seguintes palavras: “Porque àquele que tem, se dará, e terá em abundância; mas àquele que não tem, até aquilo que tem lhe será tirado”.

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*Patrícia Silveira de Farias é antropóloga e professora adjunta da Escola de Serviço Social da UFRJ.