A canção popular brasileira, ao longo do século XX, consolidou-se como manifestação cultural de elevado valor estético e de evidente força política. Além disso, tornou-se fonte preciosa de representações e reflexões em torno da realidade social do país, em suas mais diversas peculiaridades e contradições. Desde os anos 1960, as discussões que conduziram da bossa nova ao tropicalismo geraram farto acompanhamento crítico-teórico por parte do jornalismo especializado, mas também do empenho intelectual dos próprios artistas e, por fim, dos estudos acadêmicos.
Por se tratar de um objeto híbrido, a canção popular passou a ser estudada no âmbito da literatura, da música e das ciências sociais, abrindo caminho para um campo teórico específico e transdisciplinar, do qual se ocuparam nomes como Augusto de Campos, Luiz Tatit, Santuza Cambraia Naves e José Miguel Wisnik. A partir daí, começaram a proliferar trabalhos acadêmicos sobre os gêneros musicais e sobre os grandes cancionistas do século XX, gerando um consistente arcabouço teórico para os estudos da canção.
No entanto, neste momento, é fundamental que nossos olhos também se voltem para o cancioneiro do século XXI. Nesse sentido, é preciso refletir sobre a complexidade do cenário atual: os novos meios de produção, propagação, legitimação e circulação do objeto canção; o estabelecimento de um novo cânone de cancionistas populares a partir das contemporâneas discussões estéticas e identitárias; o retorno dos álbuns, dos vinis, dos EPs e dos singles como objetos estéticos íntegros; a inserção da canção contemporânea no contexto das novas (e das velhas) tensões políticas e sociais; e, por fim, a própria produção recente dos artistas que se consagraram ainda no século passado.
Pensando nisso, o Núcleo da Canção do Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC-UFRJ) vem desenvolvendo, desde 2016, o projeto Escuta, que recebe na universidade artistas contemporâneos, escuta seus discos e conversa sobre questões importantes da canção popular do Brasil, principalmente, em nossos tempos. Para essa coletânea, escolhemos justamente a edição especial de fechamento do primeiro ano de entrevistas (em setembro de 2017), na qual ouvimos um álbum de Bruno Cosentino, que além de artista, é também um pesquisador da canção e um dos idealizadores do projeto. A conversa foi conduzida por mim (Rafael Julião) e pelo professor e poeta Eucanaã Ferraz e serve de exemplo (com alguma dose de metalinguagem) dessa atividade que temos desenvolvido no PACC.
A primeira entrevista do ciclo me deu a oportunidade de conhecer a obra de Luís Capucho, de discos como Cinema Íris e Poeta maldito. Desde então, venho mantendo interesse por seu trabalho e, neste contexto, achei cabível publicar algumas reflexões sobre sua obra musical (e também literária). A questão da voz, central para a compreensão de Capucho, é também tema de Leonardo Davino, em seu texto revelador sobre a vocoperformance de Juçara Marçal. O artigo é um exemplo claro de como o pensador da canção deve deslizar entre zonas diferentes do conhecimento, como a filosofia, a literatura, a estética, a música, a história, e também circular com naturalidade entre diversos estratos da cultura, indo do erudito ao popular, do cult ao pop, circulando por todas essas áreas, desfazendo suas hierarquias e harmonizando suas particularidades.
Esse trabalho crítico podemos observar também no artigo de Carlos Gomes sobre o compositor pernambucano Siba, que nos leva ao maracatu e à cultura do Nordeste do país, revelando sua qualidade poética e, especialmente, sua força política. A canção como conjugação de vetores estéticos e políticos é também assunto de Vanubia Close e Samile Cunha, que refletem sobre a Elza Soares do século XXI e a narrativa que faz de si e da música, ao ser intérprete e curadora das canções que canta. Nesse texto, o lugar de onde se fala e que narrativa produzimos sobre nós é um bom convite à reflexão. Do “Rap da felicidade” de Elza, vamos ao rap de Mano Brown, que Marcos Lacerda nos aponta como um mestre da composição, em sua inventividade formal, e também em seu lugar de pensador da cultura brasileira. A voz do artista vem de um espaço singular de visão, trazendo miradas muitas vezes desconcertantes sobre a realidade do país, sempre postas em sua dicção particular.
A questão das narrativas sobre a canção popular (e suas implicações políticas e culturais) é o assunto de Gustavo Mouro, que pensa na linha de tensão entre a tendência pós-moderna de problematização das narrativas e as interfaces dessas narrativas com o mundo real, por seu poder de retratá-lo, mas também por sua potência de fecundá-lo. Já Augusto Cavalcanti nos convida a pensar a produção de Cazuza e Arnaldo Antunes, paradigmática do rock nacional surgida nos anos 1980, tanto a partir de sua inserção no desenvolvimento da canção popular de massas ao longo da segunda metade do século XX, mas também sob o influxo das recentes discussões estéticas e políticas. Assim, a pós-modernidade não atua só sobre os artistas do presente, mas também sobre os olhos que miram os artistas do passado.
Enfim, a coletânea deseja ser um chamado de atenção para a força presente da canção popular do Brasil, e o que ela nos revela de gesto estético e de dimensão política, apresentando-se como objeto necessário e complexo, que carece de muitos lugares de olhar. Trata-se, antes de tudo, de um convite para a escuta das vozes que permanecem transformando em som e lançando luz sobre a vida deste país e de todos nós.
Rafael Julião (PACC/UFRJ) e Bruno Cosentino (PACC/UFRJ) Organizadores
Resumo: Jean-Luc Nancy começa o livro À escuta, perguntando-se se “é a escuta
uma coisa de que a filosofia seja capaz?”. A resposta a essa pergunta vem sendo
desenvolvida por alguns pensadores. Para Paul Zumthor e Adriana Cavarero, o
ensurdecimento da filosofia, isto é, da reflexão sobre os poderes da voz, é
tema central e precisa ser efetivamente compreendido por quem pesquisa a
palavra cantada, a palavra vocalizada, a vocoperformance. Este trabalho
enfrenta a questão, a partir da mitologia vocalizada na voz da cantora Juçara
Marçal. Posto que nessa revocalização do mito e do logos, Juçara cria um mundo
sonoro constituidor e contestador da realidade: “devolve o hematoma”.
Abstract: Jean-Luc Nancy begins the book À l’écoute, wondering if “l’écoute, est-ce une affaire dont la
philosophie soit capable?”. The answer to this question has been developed by
some thinkers. For Paul Zumthor and Adriana Cavarero, the deafening of
philosophy, that is, reflection on the powers of the voice, is a central theme
and must be effectively understood by those who search for the word sung, the
word vocalized, vocoperformance. This work faces the question, from the voiced
mythology in the voice of the singer Juçara Marçal. Since in this revocation of
the myth and the logos, Juçara creates a sonorous world that constitutes and
contests reality: “it returns the hematoma”.
Keywords: Juçara Marçal; vocoperformance; myth.
1.
Pro mensageiro passar. Para Augusto
de Campos (1978),
segundo ensina Moles, a informação é função direta de sua imprevisibilidade, mas o receptor, o ouvinte, é um organismo que possui um conjunto de conhecimentos, formando o que se chama de ‘código’, geralmente de natureza probabilista, em relação à mensagem a ser recebida. É, pois, o conjunto de conhecimento a priori que determina, em grande parte, a previsibilidade global da mensagem.
E
completa que
assim, a mensagem transmite uma informação que é função inversa dos conhecimentos que o ouvinte possui sobre ela. O rendimento máximo da mensagem seria atingido se ela fosse perfeitamente original, totalmente imprevisível, isto é, se ela não obedecesse a nenhuma regra conhecida do ouvinte. Lamentavelmente, nessas condições, a densidade de informação ultrapassaria a ‘capacidade de apreensão’ do receptor.
Conclui:
nenhuma mensagem pode, portanto, transmitir uma ‘informação máxima’, ou seja, possuir uma originalidade perfeita, no sentido da teoria das probabilidades, e, mais precisamente ainda, a mensagem estética deve possuir uma certa ‘redundância’ (o inverso da ‘informação’) que a torne acessível ao ouvinte. Reciprocamente, a transmissão de elementos demasiados previsíveis é ‘banal’ aos ouvidos do receptor, que não encontra neles um coeficiente de variedade capaz de interessá-lo.
Assim,
“para que haja informação estética, deve haver sempre alguma ruptura com o
código apriorístico do ouvinte, ou pelo menos, um alargamento imprevisto do
repertório desse código” (p. 180-181). Por sua vez, Jean-Luc Nancy começa o
livro À escuta (2014), perguntando-se
se “é a escuta uma coisa de que a filosofia seja capaz?” (p. 11). A resposta a
essa pergunta vem sendo desenvolvida por alguns pensadores. Nancy, inclusive. Para
Paul Zumthor (2007) e Adriana Cavarero (2011), o ensurdecimento da filosofia, isto
é, da reflexão sobre os poderes da voz, é tema central e precisa ser
efetivamente compreendido por quem pesquisa a palavra cantada, a palavra
vocalizada, a vocoperformance. O pesquisador dessas poéticas já percebeu que
escutar é saber. Ou que “só podemos atender ao mundo orecular”, como Oswald de
Andrade anota no Manifesto Antropófago.
Ao neutralizar a escuta, o filósofo deixa de perceber que “o sonoro arrebata a
forma”. Isso porque o sonoro “não dissolve [a forma], alarga-a antes, dá-lhe
uma amplidão, uma espessura e uma vibração ou uma ondulação que o desenho mais
não faz do que aproximar” (Nancy, 2014, p. 12). Por isso mesmo, ao justapor as
palavras de Augusto de Campos sobre a transmissão de uma mensagem estética e as
de Jean-Luc Nancy sobre a escuta, estranhamos quando este sugere que podemos escutar o que vemos, mas não podemos
ver o que escutamos. Ora, o que faz o sujeito cancional, aquele que canta
por trás da voz audível, aquilo que antigamente chamávamos de alma [da canção],
senão plasmar imagens?
2.
Pesar a consciência do plantão. Ao
dizer que “quer-se aqui apurar o
ouvido filosófico: puxar a orelha do filósofo para a inclinar para aquilo que
solicitou ou representou sempre menos o saber filosófico do que o que se
apresenta à vista e que se eleva antes no sotaque, no tom, no timbre, na
ressonância e no barulho”, Nancy (2014, p. 13) aponta em direção àquilo que
temos chamado de sujeito cancional. A saber: a entidade que só se permite ouvir no instante-já da
canção e que amalgama a voz do compositor, a voz do sujeito da canção (a voz que
“fala” a mensagem da letra da canção) e a voz do desejo do ouvinte. E, importante
destacar, descola-se de todos estes quando permite a fruição, bem
como a possível significação, pessoal e intransferível. Mais do que a confissão
auricular, o sujeito cancional é a alma do sujeito da canção, daquilo que em
teoria da literatura chamou-se de eu-lírico. O barulho visual engendrado por
esse sujeito foi peremptoriamente silenciado. Isso porque, grosso modo, esse
barulho é mais sonoridade e menos mensagem, mais experiência e menos
decodificação. É estar e ser à escuta, como defende Nancy. Ou seja, para um ser
dado à escuta, formado pelo e no orecular (ouvinte, ouvidor, auditor,
auscultador, escutador), caberia “uma intensificação e um cuidado, uma
curiosidade ou uma inquietude” (Nancy, 2014, p. 16), já que “escutar é estar
inclinado para um sentido possível, e consequentemente não imediatamente
acessível” (p. 17). Essa abertura é trabalhada, por exemplo, em
“Padê
onã”, de Douglas Germano, na voz de Juçara Marçal. É a
preparação do encerramento dos trabalhos do disco Convoque seu Buda, de Criolo (2014). A canção é saudação e canto a
Exu, mensageiro da travessia e do destino, orixá da comunicação, dos contatos. Junto
à canção “Fio de prumo” – instrumento da construção civil e bastão de Exu –,
“Padê onã” canta que a ideia não substitui o sensível. Se “a poesia existe nos
fatos”, como Oswald de Andrade escreveu, é o sujeito cancional em Juçara Marçal que, coincidido com o estado do
ouvinte naquele momento de execução
da canção, quem faz o convite para o canto compartilhado. “O modo
como o leitor ou ouvinte pode fundamentalmente contribuir para a inspiração
poética ou para o desvelamento do Ser acontecer é por meio de sua abertura
atenta para o Ser e para a imaginação quando eles ainda não mostraram (e pode
ser que nunca se mostrem)”, escreve Gumbrecht (2016, p. 101). O ouvinte não conhece o sujeito, mas tem nele
um cúmplice. Há re-conhecimento e há presentificação. O sujeito cancional apresenta em som (tensão entre corpo e alma – “Aço ,
peito, flecha, caminho / Magma, lava, inveja, vizinho”) algo que até então o ouvinte e o próprio
compositor só tinham uma vaga ideia do que seria: a coisa em si – tão fluida e
fugidia quanto a própria canção que (não) morre no ar. E aqui está o drama do
sujeito cancional: “voa tão leve / mas tem a vida breve / precisa que haja
vento sem parar”, como cantou Vinicius de Moraes.
3. Sua
boca, seu dente e o encarnado. Encarnar é tirar sarro, é avermelhar
(sangrar – vermelho de Matisse), é ter um corpo, é ser no mundo. É sagrar um
eu. A raiz da palmeira juçara (Euterpe
edulis), típica da Mata Atlântica, é grossa e vermelha. “Uma esperança
morta”, “uma ferida aberta”, “um carnaval onírico”. Elementos da alquimia
(instalação) sonora engendrada pelos três amigos (para matar): Juçara Marçal,
Thiago França e Kiko Dinucci – a alma tríplice do Metá Metá: “um carmim, um
fim, um dó / um agogô, um pus, um som”. Esses e outros versos do disco MM3 (2016) refazem os caminhos do trio,
de “um canto perdido na voz incomum”, canto que é “marca da felina sonsa que
tem asa”. Felina que é orixá sirênico urbano, é “escultura quebrada, falo
partido, presságio infeliz”. É ainda Paul Zumthor quem observa que é
preciso se concentrar “nos efeitos da voz humana, independentemente dos
condicionamentos culturais particulares” (Zumthor, 2007, p. 12). E reclama do
silêncio profundo que nos cerca quando lidamos com as canções hoje
trabalhadas “apenas” como escrita. Ao mesmo tempo, Zumthor anota que os meios eletrônicos “abolem a
presença de quem traz a voz” e que “os media tendem a apagar as referências
espaciais da voz viva”. Por sua vez, como temos defendido, o sujeito cancional chama para si a
responsabilidade de sustentar o mito, o arcaico vocal (entroncamento do rural e
do urbano) em tempos de reprodução técnica da voz. Prismático, o sujeito
cancional é permanência (da certeza de que uma voz de alguém de carne e osso
emitiu algo) e fluidez (instante de compartilhamento de experiências). Assim,
“a experiência, a percepção, não se torna possível a partir da imediatez do
real, mas sim a partir da relação de contiguidade com esse lugar ou espaço
intermediário onde o real se torna sensível, perceptível”, diz Coccia (2010, p.
20). Por
nossa vez, acreditamos que a intertextualidade entre as letras
das canções de MM3 – versos,
expressões e temas des-dobrados – afirma a permanência de um canto trágico e
lírico da vida nua, crua, épica singular que sobrevive à finalidade comercial
da canção. “Meu amor, eu acho que se a gente for pensar / de repente nem dá tempo
de se imaginar”, canta a tríade Metá Metá. Nesse sentido, pensar MM3 como uma instalação não será um erro
grave. A autonomia da obra é estabelecida nas dobras dos elementos que
retornam. Esses retornos não deixam o pensamento travar e fazem o ouvinte
pensar a obra a partir da obra. Além de permitirem a experiência de um mundo
criado, inventado, cantado. Ou seja, esse re-tornar (sinônimo de sonar, tonar e
ecoar) restaura o desconhecimento de mundo do ouvinte. E presentifica um mundo
novo, cujo saber vem do embate com a obra-tribo de “uma beleza disforme, sem
rosto, sem nome, sem moderação”. Se “de repente nem dá tempo de imaginar”, o
disco MM3 é “circular dentro de si”:
esculturaliza o corpo vão, faz o certo virar errado e o vazio virar semente,
pó. Assim, engolir o mundo e regurgitar é gesto próprio dessa “boca funil”
in-carnada por Juçara Marçal que “faz o torto voltar a ser regra”. Boca cujo
som danado – da calunga ao calundu – é a amálgama da voz humana demasiado
humana, da guitarra e do sax da trindade artística. Lembremos que “a cor do
pecado é rouge carmim”, no canto de Alceu Valença; “eu não consigo evitar /
desejo esse seu corpo / cheiro de carmim”, canta Benito di Paula; “me suja de
carmim / me põe na boca o mel”, pede Wando; “uma ponta de cigarro / manchada de
carmim / foi a única lembrança / que ficou pra mim”, canta Ary Barroso; “guardo
o lencinho branco / que esqueceste ao me abandonar / manchado assim pelo carmim
que / tirei dos meus lábios quando te beijei”, canta Dalva de Oliveira; “Eu
quero, quero, quero, é claro que sim / iluminar o escuro com meu bustiê carmim
/ mesmo quando choro e adivinho que é esse o meu fim”, afirma Maria Bethânia; “mamã
mamãe, eu quero sim / quero ser mandarim / cheirando gasolina / na fina flor do
meu jardim / assim como carmim / da boca das meninas / que a vida arrasa e
contamina / o gás que embala o balancê” canta Moraes Moreira. E os exemplos
continuam e se condensam no tom da “esperança morta”, da “ferida aberta”, do “carnaval
onírico” do Metá Metá. Vermelho, vermelhaço, vermelhusco, vermelhante,
vermelhão. Se, como diz Riobaldo, “o sertão está em toda parte, o sertão está
dentro da gente. Levo o sertão dentro de mim e o mundo no qual vivo é também o
sertão”, a cor vermelha [o encarnado] tinge a escultura sonora erguida no tripé
Metá Metá. E evoca os sertões narradores, da “barra do dia foi avermelhando o
céu” (O quinze, de Rachel de
Queiroz), à “catinga [que] estendia-se, de um vermelho indeciso salpicado de
manchas brancas que eram ossadas” (Vidas
secas, de Graciliano Ramos).
4.
Na pele moura ela ferve em foco invertido.
A canção “A imagem do amor”, de Kiko Dinucci e Rodrigo Campos, oferece matéria
para a reflexão sobre a questão trans: trans-sexual, trans-e, trans-formar,
trans-piração. O canto do nascimento de “uma menina tardia dos guias de luz” é
ambíguo e metafórico (como toda linguagem artística deveria ser) e tematiza um
corpo trans-formado, uma “escultura quebrada” a ferir os “olhos desleais”. “O
sonoro arrebata a forma” (Nancy, 2014, p. 12). Sendo a dissonância a única
possibilidade de acesso à verdade, o som do Metá Metá se rebela contra as
aparências da arte que se declara insuficiente para si mesma. Daí que, se a
obra é autônoma, ela não é independente. No caso, os arquétipos e seus
ensinamentos ancestrais – a afirmação da desterritorialidade (antropofágica?)
da potência afro. O mito da democracia racial aparece em contraponto à histórica
distorção doméstica da ancestralidade. A razão canônica versus a filosofia
orecular. A antropofagia é anterior ao conceito. A coerência de um mundo antes
de nós é ilusória. Daí o pedido-motriz: “me diz de onde é que vem a sede de
cantar, a seiva da canção no sangue tom carmim?”, da canção “Angolana”,
assinada pelo trio. Todo o trabalho da voz de Juçara Marçal, da voz e da
guitarra de Kiko Dinucci, do sax de Thiago França, do baixo de Marcelo Cabral e
da bateria de Sergio Machado é uma investigação disso. A Angolana do título é
musa evocada e cujo canto tríplice é traduzido no som dado ao ouvinte. A Angolana
é anterior à antropofagia. “Só podemos atender ao mundo orecular”, lembremos.
Orecular é fazer do ouvido oráculo, é estar e ser à escuta. E aqui a Angolana é
o oráculo a ser consultado, é “Angoulême” – bússola e desorientação, que “grita
um verso a quem passar”. O enigma é mantido, pois os caracteres enigmáticos da
Angolana provem do gesto de produzi-la na efemeridade do canto, da canção.
Contra o messianismo sem messias do capitalismo, a Angolana está preservada em
sua indeterminação matriarcal, no esforço artificialmente frustrado de cantar
sua forma. Sua questão é apontar que o cuidado
de si corre o risco de ser tão negativamente disciplinar e controlador
quanto o sistema da ética somática e do biopoder. Sobre o matriarcado, Roberta
Barros (2016) observa que “no Manifesto [antropófago] a antropofagia é arquetípica, relacionada a uma imagem do homem
primitivo que vive em meio ao sol, cobra grande, jaboti, Jacy e Guaracy, desfrutando do mito de pleno
ócio, festa e livre comunhão amorosa, longe da dimensão abjetual daquela mulher-mãe que lambuza o peito de sangue” (p. 56).
Isso reforça a positividade da ideia de miscigenação e escamoteia o mito da
tolerância racial e sexual. Angolana fala como as sereias nas
mitologias: uma fala em ruidoso silêncio e que se aproxima do ouvinte através da
circularidade do ordinário: “Pra o onde quer que eu vá / vou ao redor de mim”,
diz o sujeito. “O silêncio deve entender-se aqui não como uma privação mas como
uma disposição de ressonância: um pouco como, numa condição de silêncio
perfeito, se ouve ressoar o próprio corpo, a sua respiração, o seu coração e
toda a sua caverna ressonante” (Nancy, 2014, p. 41). Tomemos como exemplo desses
retornos (dramáticos) internos que miram “a sina de correr ao redor de mim (de
si)” a cor vermelha, o encarnado, a carnação da canção que a Angolana é, o carmim
espraiado em todo o disco. “Tem um carmim, um fim, um dó”; “pele tatuada, carne
mutilada, o seu dente sangra”, “o bisturi, a toalha”; “no sangue tom carmim”; “o
vermelho do vinho”; “o be ri omon”. “(Quem dera) respirar / no peito um novo ar
/ me perder por um caminho enfim”, canta o sujeito de “Angolana”.
Localizamo-nos na platibanda de onde o sentinela Mano Légua mira e nos ensina a
caminhar na trinca e pede: vamos lá, meu bem, experimente a terceira margem.
Desse modo, os versos “a imagem do amor / não é pra qualquer / fere os olhos
desleais / impele os imortais” são a síntese dos tempos de hoje, quando
experimentar ainda é a única trans-perspectiva possível para quem deseja o axé
das folhas (“l’ase ewe o”) e “se embrenhar no oco do vulcão / e acender o fogo
do estopim: explodir, cantarolar”.
5.
Yia omo ejá. No poema “Iemanjá” (1943),
Maria Martins escreve que
Iemanjá poderia ter vivido no Mediterrâneo, no Oceano Índico, em qualquer lugar de que gostasse, mas escolheu o Brasil. Ela passa os seus dias oscilando da Bahia ao Amazonas. (…) O vagaroso subir e descer das ondas é a sutil cadência do corpo sensual de Iemanjá, a sua magia poderosa. O despertar prateado das águas sob os raios da lua é o cabelo brilhante de Iemanjá, a alga de todos os oceanos. Para possuí-la, para chegar até ela mais rápido, para tocar os seus seios, pesados com o amor proibido, quantos pescadores, quantos marinheiros atiraram-se ao mar, excitados por um desejo inimaginável!
No
poema “Mãe dos filhos peixes” (1996), Waly Salomão escreve que Iemanjá é “mãe
sexualizada / mãe gozosa / mãe incestuosa // que reina no mar revolto e na maré
mansa / e se adona do remanso e do abissal”. No discurso “Do ler e escrever”
do livro Assim falou Zaratustra,
Nietzsche (2011, p. 41) escreve:
(…) parece-me que borboletas e bolhas de sabão, e o que há de sua espécie entre os homens, são quem mais entende de felicidade. / Ver esvoejar essas alminhas ligeiras, tolas, encantadoras e volúveis leva Zaratustra às lágrimas e ao canto. / Eu acreditaria somente num deus que soubesse dançar. / (…) / Aprendi a andar: desde então corro. Aprendi a voar: desde então, não quero ser empurrado para sair do lugar. / Agora sou leve, agora voo, agora me vejo abaixo de mim, agora dança um deus através de mim.
Despreocupado
com as noções canônicas de identidade, ou tentando expandi-las num gesto arquevocálico,
assim como a Iracema alencariana, o Zarastustra nietzschiano refere-se a si em
terceira pessoa. Muito citado, o trecho oferece importantes recursos para se
pensar sobre canção e sobre as corporalidades sonoras brasileiras que tem no
canto mítico de Iemanjá bonita síntese. Poderíamos divagar sobre a simbologia
da mutante-frágil-volátil borboleta, mas queremos nos ater à bolha de sabão – metáfora
reutilizada por outros filósofos no que se refere ao viver como uma constante
configuração de esferas sutis e complexas. Obviamente, estamos falando da Teoria
das Esferas de Peter Sloterdijk. Entre outras questões, Sloterdijk (2016)
escreve sobre a polivalência do mundo, a experiência primária do espaço (cita o
útero materno como ponto de partida), as relações de dependência e apresenta
uma teoria da intimidade. Para ele, viver é criar esferas imunológicas. É por
viver – sentir-se – ameaçado pelo mundo ao redor, que o indivíduo desenvolve a
busca do luxo individual, objetivando
a abundância perdida desde a saída do útero. E é aqui que ajustamos nosso foco:
na necessidade humana de canção, do canto da fama (re-conhecimento). A arte
apresenta um outro mundo possível, aplaca a saudade das esferas explodidas,
muito embora exploda outras: as canções induzem o indivíduo a sair para o
mundo. O indivíduo moderno-contemporâneo fora do quarto cheio d’água (materno)
está solto. Ele é bolha de sabão. E são muitos os motivos que levam à
arrebentação das esferas: a morte de Deus, o fim da verdade e o fato do homem
não estar pronto para não ser o centro do universo, por exemplo. Resguardadas
dos conceitos de bem e de mal, as culturas africanas embaçam a visão cristã do
indivíduo essencialmente bom ou essencialmente mal. “Na verdade, os maus
impulsos são tão apropriados ao fim, conservadores da espécie e indispensáveis
quanto os bons: – apenas é diferente a sua função”. “A decisão cristã de achar
o mundo feio e ruim tornou o mundo feio e ruim”, escreve ainda Nietzsche em A gaia ciência (2001, p. 57 e p. 151). Além
do bem e do mal, há os elementos da natureza, cujos guardiões na mitologia Iorubá
são os orixás. Essa mitologia não é inventora de fábulas, pois não conhece a
diferença entre história e ficção. É com o sincretismo entre África e Europa,
por imposição e tirania cultural desta, no Brasil e em outras colônias
europeias, que teremos representações em imagens dos orixás, até então
cultuados como forças da natureza. Nesse sentido, Metal Metal (2012),
disco do Metá Metá é uma tempestade solar que explode qualquer tentativa de
imunização. Porque tropical e universal (tradição e cosmopolitismo), através
das misturas engendradas no turbilhão das camadas de histórias, o trio formado por
Juçara Marçal, Kiko Dinucci e Thiago França faz a matriz africana ganhar novos
vetores de apreciação: grávidos de riscos, sem concessões. Um singular exemplo
do modo como a tribo bebe o sangue (a poética) de uma língua do Brasil matriarcal
está disposta em “Rainha das cabeças”, canção de Douglas Germano e Kiko
Dinucci. O vigor vocal contestador punk, os rituais de terreiro e os miasmas
urbanos compõem uma vibração para além de quaisquer pré-teses: tudo soa íntimo,
mas estranho, porque imbricado de forma inovadora. A letra da canção em si já
detona o incômodo estético: repleta de palavras e/ou expressões íntimas
culturalmente e estranhas ao nosso cotidiano urbano. A letra presentifica signos
em rotação no imaginário do ouvinte: “Awoió ori dori re / Iyemanjá cuidou /
Ade, ala, beijou / E encheu o ori de mar”. A primeira estrofe cantada com a
nervura já destacada aqui indicia que não estamos – nós, ouvintes comuns, não
iniciados – em lugar cômodo. A força sonora e rítmica, aliada ao timbre – essa
comunicação do incomunicável –, o estilo e a assinatura de Juçara Marçal, por
vezes não deixa o ouvinte entender, de pronto, a mensagem da canção. Mais
partilha e menos transmissão. Pescamos retalhos. Para entrar nela mesmo,
precisamos ouvir com o texto sob os olhos. Mas isso não impede de sermos
arrebatados pela potência ali dançante, já que “o ritmo é uma coação; ele gera
um invencível desejo de aderir, de ceder; não somente os pés, a própria alma
segue o compasso” (Nietzsche, 2001, p. 112): ritmo “que não é outra coisa senão
o tempo do tempo, a desestabilização do próprio tempo no batimento de um
presente que o apresenta disjuntando-o dele mesmo, desembaraçando-o da sua
simples estância para a fazer escansão e cadência” (Nancy, 2014, p. 34). Há que
se atentar sobre isso, aliás: várias canções interpretadas por Juçara Marçal apresentam
textos muito densos e bonitos, mas também, por vezes, difíceis de captar só
pelo ouvido, principalmente quando articulados com uma melodia muito recortada
ou acelerada. Seria este objeto, plenamente, uma canção? Ou seria uma forma híbrida
de poesia-para-ser-cantada (diferente da canção-para-ser-ouvida)?. Seja como
for, “Rainha das cabeças” promove a dança da intuição do ouvinte. Através do
Ori (Orixá pessoal) em contato com o som da canção, o ouvinte entra em
estado-de-poesia, de lugar sonoro, na medida em que o som aí ressoa: não
importa muito decodificar as palavras, mas entrar no movimento de pertencimento
que elas, ditas daquele modo e com aquele ritmo, promovem – com o objetivo de
reorganizar o sistema pessoal do ouvinte: a bolha de sabão e seu alfinete
altamente explosivo. Iemanjá-Awoió cuida do cantor-ouvinte, enche a cabeça
(ori) dele de mar (no horizonte do infinito) e faz dele ouvinte-cantor: dança
nele. E o tabu vira totem: “tupi or not tupi”, é a pergunta. “Iya olori / Mojuba
Olodumaré // Ela é filha de Olokun / É iya kekerê”, diz o refrão. Se, como
Nietzsche anotou, “o grau do senso histórico de uma época pode ser avaliado
pela maneira como ela faz traduções e procura absorver épocas e livros do
passado” (2001, p. 110), o Metá Metá orienta-nos na direção de que, como canta
Gilberto Gil:
quando, hoje, alguns preferem condenar / o sincretismo e a miscigenação / parece que o fazem por ignorar / os modos caprichosos da paixão // paixão, que habita o coração da natureza-mãe / e que desloca a história em suas mutações / que explica o fato da Branca de Neve amar / não a um, mas a todos os sete anões.
Voltamos
à discussão de Nancy sobre o ser e estar à escuta. Ou melhor, como escrever
sobre o canto de uma artista que é muito mais escuta e menos escrita? Eis a
encruzilhada posta na voz de Juçara Marçal.
O desafio de um trabalho sobre os sentidos e sobre as qualidades sensíveis é necessariamente o de um empirismo pelo qual se tenta uma conversão da experiência em condição a priori de possibilidade… da própria experiência, correndo embora o risco de um relativismo cultural e individual, se todos os ‘sentidos’ e todas as ‘artes’ não têm sempre e por todo o lado as mesmas distribuições nem as mesmas qualidades,
responderia
Nancy (2014, p. 25-26).
6.
Cobre o amor na mortalha. O horror
fisiológico de um filho abortado tem muito em comum com o risco de viver. Seja
a vida urbana, ou a do interior de nossa sociedade feia e desencantada.
Partimos dessa afirmação radical para pensar o plano interditado, a esperança
morta, a violência de estar vivo e ser obrigados a se defender sorrindo de
nossas frustradas revoluções individuais e coletivas presentes [em imanência]
no disco Encarnado (2014), de Juçara Marçal.
Dos
primeiros versos – “Não diga que estamos morrendo / hoje não / pois tenho essa
chaga comendo a razão” – até os derradeiros – “E o que era belo / agora espanta
/ e nome dele hoje é João Carranca”, a performance vocal de Juçara Marçal confirma
que Encarnado é um disco fundador, que rompe com o conforto
dominical, que diz ao ouvinte que este não tem mais o direito de ser ingênuo num
mundo violado e violento. A isso, uma cama sonora composta de rock sujo, ruídos, zumbidos de um mundo
interno dilacerado conjuga conteúdo de verdade.
Não é à toa que “Ciranda do aborto”, de Kiko Dinucci, aparece plugada
sonoramente à anterior “Odoya”, de Juçara Marçal. A tópica da maternidade
conecta as duas canções. Se nesta o sujeito da canção pede a bença à “mãe cujos
filhos são peixes”, naquela temos a mãe cobrindo o amor na mortalha. O sujeito
cancional passa de filho à mãe. “A ferida se abriu / Nunca mais estancou / Pra
você se espalhar / Laceado”, canta o sujeito cancional criado por Juçara – cuja
voz dá visibilidade à pulsão de morte – ninando o agouro. A plasticidade
destrutiva está em jogo aqui. Após “Ciranda do aborto” temos “Canção pra ninar
Oxum”, de Douglas Germano. Afinal, depois da tragédia narrada, só resta ao
sujeito cancional pedir: “Chora não, Oxum / De que chorar? / Sonha viu, Oxum /
Sem lágrima”. Este percurso – de filha à mãe, de mãe à cantora da mãe – é
singularmente percebido nas gestualidades vocais – sangue, água e sal –
encarnadas e deslocadas por Juçara. Cada sujeito-personagem tem alma própria,
almas vindas de uma mesma voz urdida na experiência de quem tem uma carreira de
mais de vinte anos, desde o grupo Vésper até o Metá Metá, passando pelo grupo A
BARCA. Em todos, desenvolvendo trabalhos de pesquisa e experimentação no campo
vocal, investigando formas de interditar a violência existencial. O quinteto
Vésper Vocal – Ilka Cintra, Nenê Cintra, Mazé Cintra, Juçara Marçal e Mônica
Thiele – desde 1992 se dedica à interpretação da música brasileira – Chiquinha
Gonzaga, Adoniran Barbosa, Itamar Assumpção, Luiz Tatit, Rita Lee – no formato
a capela. Os arranjos feitos somente para vozes é espaço profícuo de
experimentação da voz humana. Já o grupo A BARCA desde 1998 pesquisa e
documenta a cultura sonora e vocal do Brasil, tendo Mário de Andrade, o autor
de “O turista aprendiz” como guia de viagem. Aliás, com o projeto intitulado Turista Aprendiz o grupo registrou cerca
de 40 comunidades e/ou artistas da tradição popular, em quilombos, aldeias
indígenas, periferias de grandes capitais, pequenas cidades ribeirinhas,
litorâneas e sertanejas. Professora de canto e de língua portuguesa, formada em
Jornalismo e em Letras, com dissertação de mestrado defendida em 2000 sobre o
autor de Baú de ossos – com o título Morte e Memória. Elementos para uma análise
do ponto de vista narrativo em Pedro Nava – vemos, portanto, que a voz de
Juçara se alimenta de raízes profundas e áreas. Sem esquecer sua participação como
integrante na percussão do Ilu Oba de Min, desde 2004. Por tudo isso, a
performance vocal de Juçara restitui conscientemente certa fealdade arcaica.
Recriam-se as máscaras mítico-canibais que foram despotencializadas no
despertar do sujeito romântico e na hegemonia da escrita (do logos científico e filosófico
desvocalizado). O sujeito em Juçara Marçal não tem medo de cantar aquilo que
Adorno (2012) chamou de “excedente grosseiro da materialidade”, ao defender que
o belo vem do feio. No feio encarnado no belo, Juçara denuncia o mundo. Essa pseuda
contradição é posta sem filtros na canção “Ciranda do aborto”. O belo guarda e
expõe o feio. Cabe ao ouvinte desembaraçar a memória historiográfica individual
e coletiva para fruir e entender a cantada e girar na ciranda. Poderíamos ouvir
“Ciranda do aborto” como uma “Canção desnaturada n.º 2”. Aquilo que na canção
de Chico Buarque aparece como recusa – “Tornar azeite o leite do peito que
mirraste / no chão que engatinhaste, salpicar mil cacos de vidro” –, na canção
de Dinucci cantada por Juçara aparece como afirmação: “Vem despedaçado / vem,
meu bem querer / vem aqui pra fora / vem me conhecer”. Nas duas canções
identificamos a renúncia ao conhecimento racional e um elogio ao canto do
sensível. A ênfase na objetividade das emoções psicológicas do instante
abortivo confere a “Ciranda do aborto” outra zona sociologicamente crítica: o
compadecimento do ouvinte. Não mais a mãe tirana, e sim a mãe saudosa do filho
que ainda não veio. “Ciranda do aborto” gera um sentimento não excitado. E vem
daí a sua beleza inquietante:
espantamo-nos diante daquilo que até então intuíamos como sendo terrível. “Eu
tiro da dor um benefício: sem parar ela me chama a atenção. (…) A dor me
assedia e eu devo pensar para me distrair. É o inverso de Descartes. Eu existo,
logo penso. Sem a dor eu não existiria”, escreve Jean Cocteau, em A dificuldade de ser (2015, p. 100-101)
A aparição do abortado que conhece a não-mãe – a cantora cuja voz não soa, como
no livro O natimorto, de Lourenço
Mutarelli – promove uma ciranda de sensações (todas) torturantes. “Assim /
saudades sim / simples / como um brinco tupiniquim / um coco de roda / cirandas
voltas de tu em mim”, como aparece no poema “Saudades”, de Amador Ribeiro Neto.
No caso do sujeito cancional criado por Juçara, saudades de um não-filho: “O
agouro da morte / a se revelar / a vida sem endereço / e sem lugar pra ficar”.
Essa desterritorialidade da dor, do luto, do trauma é marca dos sujeitos cancionais
criados por Juçara Marçal – autora vocal consciente de que não há obra de arte
que não mutile o vivo; a arte crítica é o reflexo da possibilidade do existente
violentado epistemologicamente; a obra de arte recorta o vivo e encontra o
inumano para mostrar o humano perdido: “sua boca, seu dente / e o encarnado /
que corta e desmente / meu samba armado”.
7.
Colho os prantos sem deixar nenhum. Juntemos
aqui uma imagem comentada ao de leve: gravura de Kiko Dinucci, Osun 28 cm x 35.5 cm. É dado a ver uma
sereia mirando-se, ou usando o espelho para ver o ouvinte? Essa visão ambígua –
aliás, o rabo de peixe completa o corpo humano ou a cabeça de peixe? – desdobra
a metáfora poética. O ouvinte ressoa na boca/espelho da sereia. E não é
igualmente da ressonância do seu instrumento que a sereia – felina sonsa que tem asa – está à
escuta? Cantora e ouvinte abrem-se um ao outro no espelho – esse paradigma da
medialidade, do encontrarmo-nos sendo uma pura imagem: algo que não vive, mas é
perfeitamente cognoscível, sensível. Nessa gravura de Dinucci, o berço dourado
é a habitação: colo e útero – a voz de Juçara Marçal. Chuva que só troveja, mas
não cai.
8.
Respondeu-me como assombração. Se
ouvir é compreender, escutar é sensibilizar-se num sentido presente para além
do som. “Estar à escuta é sempre estar à beira do sentido, ou num sentido de
borda e de extremidade, como se o som não fosse precisamente nada de outro que
não este bordo, esta franja ou esta margem”, escreve Nancy (2014, p. 19). Por
isso falamos do estado de reciprocidade sonora necessário ao surgimento do
sujeito cancional. É preciso que haja um reenvio da mensagem ouvida, pois é
nesse retorno – como um tambor que ressoa – que o sujeito cancional se
apresenta em imagem. O sujeito cancional é sentido ressoante, é
sentir-se-sentir do ouvinte no mundo. Nancy (2014, p. 22-23) escreve que
um sujeito sente-se: é a propriedade e a sua definição. Quer dizer que ele se ouve, se vê, se toca, se saboreia, etc., e que se pensa ou se representa, se aproxima e se afasta de si, e sempre assim se sente sentir um ‘si’ que se escapa ou que se entrincheira, tanto quanto retine algures como um si, num mundo e noutrem.
Ouvir
Juçara Marçal é estar-se à espreita desses sujeitos imaginários mais empíricos
e menos teóricos. Sujeitos que nos convidam à participação, à acusma, à “escuta
fabuladora”, como tem pensado o pesquisador Fred Coelho. A presença de si
imposta nos sujeitos cantados por Juçara é convite ao enfretamento do risco do
elemento vivencial direto. Não se trata de um ente-presente, ou de um em vista
de, mas de um ente-imaginado-presente: ressoante. Em presença da voz de Juçara
o ouvinte se conecta ao tempo sonoro, que é diferente do tempo presente datado.
O Tempo se ergue como Orixá: ramifica, contamina, espraia: “não enxergo o final/
interrompo o tempo aqui / em você”. Escutar é entrar nesta espacialidade onde
penetro e sou penetrado, posto que escuto ao
mesmo tempo que o evento sonoro ocorre. Não há tempo a perder. Esse som antro-entre, essa arqui-sonoridade convoca
à vida sensível. Para Coccia: “a
vida sensível é a capacidade de fazer as imagens viverem fora de si e, de algum
modo, liberar-se delas, de perdê-las sem receio. Na medida em que somos capazes
de experiência, já vivemos sempre em outro lugar em relação a nosso corpo
orgânico. (…). A experiência confere um corpo puramente mundano ao vivente.
Ela é aquilo que dá concretude ao vivente, como também o que o liga ao mundo, a
esse mundo, tal qual ele é aqui e agora, mas também a um mundo tal qual ele
poderia ser em outro lugar e em outro tempo” (2010, p. 69-70). Por exemplo, avessa
à docilidade dos corpos, Iemanjá é som corporificado, carnação de timbres que
experimenta novas tecnologias da carne – do corpo não simbolizado.
9.
Grita e berra como louca. No aforismo
216 de A gaia ciência, Nietzsche
anota sobre o Perigo na voz: – “com
uma voz muito alta na garganta, quase não temos condições de pensar coisas
sutis” (Nietzsche, 2001, p. 175). Há uma vitalidade intrínseca que diferencia a
palavra falada da palavra cantada. E essa vitalidade está manifesta na voz: é
representada pelo sopro de ar que atravessa o corpo e se encorpa na garganta.
Obviamente, os níveis de aproximação entre um ponto e outro são tênues e
frágeis. Ou seja, pode haver, e muitas vezes há, conteúdo no canto, assim como
pode haver expressão na leitura. É fincado na paixão que o leitor e/ou o cantor
investem mais ou menos vitalidade à palavra que seus pulmões lançam no ar
depois de tocar (e ser tocada por) sua garganta, úvula e impregnar-se de
saliva, na boca. A voz imprime unicidade à pessoa. Há aqui uma constatação da
voz e sua autoafirmação – aquilo que nos resgata do abandono profundo. Por trás
da voz (ficcional) do sujeito da canção há a voz de uma pessoa: uma garganta.
“Uma voz significa isto: existe uma pessoa viva, garganta, tórax, sentimentos,
que pressiona no ar essa voz diferente de todas as outras vozes. Uma voz que
põe em jogo a úvula, a saliva” (Calvino, 1995 apud Cavarero, 2011, p. 18). E assim, “a função despersonalizante
do pronome eu (…) é anulada pela unicidade inconfundível da voz. O som vence
a generalidade do pronome” (Cavarero, 2011 p. 205). Posto que “a voz pertence
ao vivente, comunica a presença de um existente em carne e osso, assinala uma
garganta, um corpo particular” (p. 207). “É com nosso sopro que nos dirigimos a tudo, com a voz que o frágil
fole da garganta emite, com o hálito que carrega nossas enzimas, é com o
pequeno vento de nossa língua que chamamos o vento verdadeiro”, escreve o
narrador de Ó
(Ramos, 2008, p. 20). EXERCÍCIO: Escutar o
disco Anganga (2015) de Juçara Marçal
e Cadu Tenório até perceber que “a escuta está à escuta de outra coisa que não
do sentido no seu sentido significante” (Nancy, 2014, p. 56).
10.
Como uma boca com fome. Ser e estar à
escuta é abrir-se em direção à potência-ó do humano
trans-escrito (coincidindo bios e ethos), tendo em vista que “a filosofia
frequentemente esqueceu que todo homem vive no meio da experiência sensível e
que pode sobreviver apenas graças às sensações” (Coccia, 2010, p. 9) e que “o primeiro passo para liberar a voz de seu
gendarme noético, o primeiro gesto contra os cânones desvocalizantes da
filosofia, passa por uma tematização privilegiada do falar” (Cavarero,
2011, p. 203). “A partilha do
sensível faz ver quem pode tomar parte no comum em função daquilo que faz, do
tempo e do espaço em que essa atividade se exerce”, diz Rancière (2014, p. 16).
“O sensível (o ser daquilo que chamamos aqui de imagem em sentido amplo) é
aquilo pelo qual vivemos indiferentemente
à nossa diferença específica de animais racionais”, diz Coccia (2010, p.10). O
sujeito cancional é essa imagem plasmada por trás dos olhos de quem ouve. A voz que canta passa a carregar a mitologia do ouvinte,
que, por sua vez, se reconhece plasmado no modo
sirênico (das Sereias) de dizer do cancionista. É
graças a este que o ouvinte pode ouvir-se, perceber-se e interagir com outras
imagens de si. O cancionista é o meio que fabrica a relação de continuidade
entre alma e corpo, espírito e realidade, ficção e real. Portanto, o
cancionista é eficaz em sua função quando engendra o sujeito cancional, a
entidade imagética que nos possibilita vivenciar nas coisas e nos outros. O
cancionista transforma as coisas em espírito ao mesmo tempo em que torna as
coisas mundanas, isto é, mais próximas da percepção e da apropriação criativa
do ouvinte. Mundana, a existência se expande. “O sensível, o contato com o
sensível, faz o homem viver em um corpo ulterior, no qual não somos mais
separáveis de tudo aquilo que vivemos, nem do fato de ver ou sentir” (Coccia, 2010, p. 68).
11. Queimando
em silêncio. No aforismo 196, de A
gaia ciência, Nietzsche escreve sobre os Limites de nossa escuta: – “Ouvimos apenas as questões para as
quais somos capazes de encontrar resposta” (Nietzsche, 2001, p. 171). E é
Octavio Paz quem escreve sobre o caráter de revelação da poesia. Paz, para quem
“a sociedade revolucionária é inseparável da sociedade baseada na palavra
poética” (2012, p. 242), observa que “a missão do poeta é restabelecer a
palavra original, distorcida pelos sacerdotes e pelos filósofos” (p. 243). Se
concordamos com o autor de O arco e a
lira, e acreditamos que “a experiência poética, como a religiosa, é um
salto-mortal: uma mudança de natureza que é também uma volta à nossa natureza
original” (p. 144), somos levamos a pensar que os sujeitos cancionais criados
por Juçara Marçal revelam, por serem vozes de uma religiosidade que não casou
com o capital e por não precisarem de autoridade divina, esse isso que somos: seres à margem da
linguagem. Duvidar das construções discursivas e afirmar uma falta que esteticamente
se revelação e se preenche na presença imagética do sujeito cancional
mitificado é o projeto da felina sonsa
que tem asa assinada por Juçara Marçal. Aquilo que na palavra religiosa é
interpretação, na palavra poética vocoperformativizada por Juçara é
possibilidade. “Vida e morte num único instante de incandescência”, na bela
expressão de Octavio Paz (2012, p. 163). Aquilo que Catherine Malabou (2014)
chama de “plasticidade destrutiva” é o motor da vida sensível (ser das imagens)
erguida na voz danada de Juçara Marçal, em seus mais diversos e variados
trabalhos: seja em projetos individuais, seja em coletivos: “um personagem
irreconhecível, cujo presente não provém de nenhum passado, cujo futuro não tem
porvir, uma improvisação existencial absoluta” (Malabou, 2014, p. 11). Esse
desengate com o antes só é possível porque Juçara Marçal é uma pesquisadora de
sonoridades. Para atentar contra o passado é preciso conhecê-lo, re-visitá-lo.
“A destruição tem seus cinzéis de escultor”, afirma Malabou (p. 13).
12.
Apenas uma navalha. No atual
momento de descentralização das produções culturais, paralelo às reconstruções
de fronteiras, os complexos mecanismos de legitimação do artístico não passam
mais pelos caducos sistemas. E os sistemas se ressentem disso. Dar conta da
criação em torno da canção brasileira é tarefa sisífica. É bem mais fácil negar
tudo e dizer que a música chegou ao fim. Assim faz a TV, por exemplo, com suas
trilhas sonoras repletas de “roupas novas” para “canções velhas”, canções já
devidamente testadas e aprovadas pelo consumidor. O rádio segue o mesmo ritmo –
é somente requentar e usar. A questão é que não há mais UMA ideologia a ser
musicada. Se é que já existiu. As ideias de horizontalidade e polifonia
(finalmente) caracterizam nossa nacionalidade. E a canção popular mediatizada
continua a ser a linha de frente do debate cultural. Porém, encontrando-se com
parceiras de outras linguagens, agregadas a ela pelo menos desde a Tropicália,
passando pelo Manguebeat, pelo Funk carioca e Rap paulista, além do Tecnobrega
paraense (para ficar no exemplo de alguns dos grandes movimentos), a música não
é mais (apenas) grito de alerta: “o grito nascendo, a nascença do grito – apelo
ou queixa, canto, fricção de si, e até ao último murmúrio” (Nancy, 2014, p. 48).
A música é coletivizada, é colaborativa. Basta ir a qualquer atividade “de rua”
para ver e ouvir: a música está lá – quente, ritmando, forjando-se. “Ouça como
canta louve como conta prove como dança”, sugeriu Haroldo de Campos em suas Galáxias. A música aceitou o desafio. E
a canção também. Querer uma música (ou uma canção) que represente o nacional no
atual estado das subjetividades é uma atitude ingênua e/ou fascista. “O
pressuposto substancialista é o companheiro de estrada da metamorfose
ocidental. A forma se transforma, a substância permanece” (Malabou, 2014, p.
15). Então: como distinguir a margem do centro hoje? Margem é quem vende pouco?
É quem não aparece na TV? Centro é quem vende muito? Quem é privilegiado pelo
mercado e pela crítica? Quem lota estádios? Portanto, mantemos a perspectiva do
mercado para pensar a arte e os afetos? É por aí que passa a construção do
espaço social hoje. Parece que a música entendeu muito bem que uma reconciliação
das populações como uma “identidade nacional” é inviável. “Brasil, braseiro de
rosas”, escreveu Sousândrade. Passamos de povo à multidão. E a multidão é a
aglomeração (barulhenta) de individualidades que resistem ao mercado. A voz de
Juçara Marçal é parte significativa daquilo que Flora Sussekind (2013) chamou
de “coros dissonantes”:
Antes mesmo da eclosão das jornadas de junho, e das manifestações ainda em curso no país, um conjunto significativo de textos parece ter posto em primeiro plano uma série de experiências corais, marcadas por operações de escuta, e pela constituição de uma espécie de câmara de ecos na qual ressoa o rumor (à primeira vista inclassificável, simultâneo) de uma multiplicidade de vozes, elementos não verbais, e de uma sobreposição de registros e de modos expressivos diversos. Coralidades nas quais se observa, igualmente, um tensionamento propositado de gêneros, repertório e categorias basilares à inclusão textual em terreno reconhecidamente literário [e sonoro], fazendo dessas encruzilhadas meio desfocadas de falas e ruídos uma forma de interrogação simultânea tanto da hora histórica, quanto do campo mesmo da literatura. E que não à toa conectam este campo a outras áreas da produção cultural.
Nega-se a
ideia de massa e do apagamento das diferentes em benefício de uma insustentável
ideia de univocidade. A rua é espaço do cartaz pessoal e intransferível e do choque
multicolorido das diferenças. Ao preservar as especificidades micro-coletivas
internas à multidão, a atual música brasileira dá vigor à diversidade
macro-coletiva do povo novo. Bem como à nossa imagem de país, de sociedade e de
afetos. Grande parte dos cancionistas contemporâneos é ouvinte-leitora dos
mestres da questão de nacionalidade. Cabe lembrar que o próprio Mário de
Andrade preferia trabalhar o termo “entidade”, no lugar de “identidade”, para
pensar o país das vozes polimorfas inclassificáveis. Ouça quem tiver ouvidos
para ouvir. Estão lá, na música atual: as culturas marginais (folclóricas?) e a
pesquisa instrumental. Coralidades presentes na fratria – de manos, manas, minas, monas – do rap nacional.
Reconheço semelhante gesto em alguns rappers brasileiros, a saber, entre
outros: Sabotage, Mano Brown, Criolo, Emicida, Rico Dalasam,… Karol Conká. Mas
está tudo tão devidamente e esteticamente (antropofagicamente?) trabalhado e
disseminado que dá mesmo muito trabalho
perceber, exige esforço desajuizado. E a crítica que se pretende ouvinte
limita-se ao hegemônico. Dos jogos sonoros aos elementos da sociedade do
espetáculo, passando por referências religiosas e pelas formas coreográficas da
vida comum, nos exemplos a seguir, podemos identificar os alicerces
contraditórios, e, por isso, brasileiros, da cultura – aforismática, compilada,
revisitada, coral – trabalhada por Criolo no disco Convoque seu Buda: “Nin-Jitsu, Oxalá, Capoeira, Jiu-Jitsu / Shiva, Ganesh,
Zé Pilintra e Equilíbrio” (“Convoque seu Buda”); “Rap é forte, pode crer, Oui
monsieur / Perrenoud, Piaget, Sabotá, enchanted” (“Esquiva da esgrima”) “Temos
de galão Dom Perignon / Veuve Clicquot pra lavar suas mãos / E pra seu cachorro
de estimação / Garantimos um potinho com pouco de Chandon” (“Cartão de
visita”); “Alô, Foucault, cê quer saber o que é loucura? / É ver Hobsbawm na
mão dos boy, Maquiavel nessa leitura” (“Duas de cinco”); “Fetiche de playboy é
colar com Barrabás” (“Fio de prumo”). “Dobra a força dos braços
que eu vou só”, canta Juçara Marçal, fazendo a síntese.
13.
A ferida secou. Como ser e estar no
mundo da gentrificação do ouvido, sendo um intelectual orecular? E fazer da
obra um arquivativista de mundivivências? Reterritorializando o tempo?
Manifestando-se contra o fascismo da linguagem sonora e diluindo fronteiras?
Produzindo presença e reinventando as noções de autoria? Rompendo com a
tradição tirânica do mercado? Inventando uma sonoridade exigente? “O mais
simples é se voltar para a lógica dos povos primitivos, das crianças e dos
loucos, essa lógica que supera as oposições, a lógica da semelhença, da magia
simpatética”, escreve Öyvind Fahlström (2016, p. 19-20), em seu Manifesto para a poesia concreta, de
1953. A mitologia vocalizada na voz de Juçara Marçal é um ato político: “mira
no meio da cara / dá com pé, com pau, com vara / bate até virar a cara da nação”.
Nessa revocalização do mito, cria-se um mundo sonoro constituidor e contestador
da realidade: “e devolve o hematoma”. Se nega a interpretação científica e o
consolo dominical é porque foca a compreensão auricular e o risco: “desvio teu
riso e me antecipo”. Assim como o quadro (a pintura) não esquadra mais o mundo,
a canção (o cantar) não canta mais o mundo. A canção quer ser o mundo, não
representante, nem representado. Urge liberar a voz das fáceis frequências do
conhecimento. “Inspiração poética como desvelamento do Ser, então, é um
potencial existencialmente agressivo, ao qual expomos a nós mesmos e as nossas
atenções, porque apreciamos a intensidade que pode produzir – com a atenção
para o perigo, e com o entendimento de ser essa a precondição para sua
intensidade” (Gumbrecht, 2016, p. 102). Por isso é preciso insistir na unidade
(de contrários) forma e conteúdo. A forma (a plasticidade) é o antibárbaro da
arte, sua transfiguração, livrando-se da utilidade – “sai de pau no bate boca /
rasga a roupa / grita e berra como louca”. A obra evoca a liberdade: “quero
morrer num dia breve / quero morrer num dia azul / quero morrer na América do
Sul”. Malabou observa que “a única saída possível para a impossibilidade de
fugir parece ser a constituição de uma forma de fuga. (…) A plasticidade
destrutiva torna possível a aparição ou a formação da alteridade lá o outro
fala absolutamente. A plasticidade é a forma da alteridade lá onde não há
nenhuma transcendência, de fuga ou de evasão” (2014, p. 17). Por sua vez, Nancy
escreve que “o começo do sentido, a sua possibilidade e a sua enviadela, o seu
endereçamento, não tem talvez lugar em nenhum outro lugar senão num ataque
sonoro” (2014, p. 48). A forma de cantar, as escolhas da cancionista, os
malabarismos vocálicos, o controle da melodia e das alturas timbrísticas, a
concentração de tensividade, a reiteração dos temas, a narratividade quebrada, a
gesticulação das maneiras de dizer sempre declinam para evitar o idêntico, o
reconhecível vulgar, a identidade: “tenho essa chaga comendo a razão”. A arte é
o mundo uma vez mais tanto semelhante, quanto diferente. E o canto de Juçara
exige saber. Quem não sabe o que é dissonância não escuta sua música, por
exemplo. Sua arte dispensa a ingenuidade: “de quase isso / de quase nada / é
séria é bruta / dissimulada / de nada serve / sem ombro amigo / com febre e
confusa / e um precipício”. A canção não quer ser canção, quer a superação dos
gêneros, o limite da experiência e a trans-identificação de um mundo livre de
ditaduras e injustiças: “Sangue e suor pelo vão / sentir mais a dor, vingar /
ver respingar o pavor / quem bateu, levar”. Entre a subjetividade universal e a
objetividade particular, toda obra é uma crítica, uma compreensão. E é isso que
Juçara Marçal nos oferece: seu entendimento de mundo – “eu que falo / aquela é
minha voz / que fala sobre nós / a voz ali é”.
Bônus.
Essa chaga comendo a razão. – O
que é canção para você? De onde vem a canção? Para que cantar? Juçara Marçal: Juro que tentei, mas
não tenho respostas pras suas perguntas. Pra todas elas só me vem o verbo
VIVER. É pouco e é tudo o que tenho pra dizer sobre isso aqui. – Cite 3
artistas que são referências para o seu trabalho. Por que estes? A das
referências é a mais difícil de todas. São muitas. Música brasileira, música
africana, música norte-americana, música latina… E por aí vai. Referência é
algo que nos alimenta artisticamente e tudo que me chega de todos os lados
serve de referência pra mim. Citar alguém reduziria o caminho, reduziria a
própria referência, portanto, é tudo isso aí e mais um pouco.
*
Leonardo Davino de Oliveira é professor
adjunto de Literatura Brasileira na Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ). É doutor em Literatura Comparada, especialista e mestre em Literatura
Brasileira. É autor do blog Lendo canção
(lendocancao.blogspot.com) e dos livros Canção:
a musa híbrida de Caetano Veloso (Ibis Libris, 2012); Palavra cantada: estudos e Poesia
contemporânea: crítica e transdisciplinaridade.
Referências
ADORNO, Theodor W. Teoria estética. Lisboa: Ed. 70, 2012.
ANDRADE, Oswald de. A utopia antropofágica. São Paulo: Globo, 2011.
BARROS, Roberta. Elogio ao toque ou como falar de arte feminina à brasileira. Rio de
Janeiro: Ed. do Autor, 2016.
CAMPOS, Augusto. Balanço da bossa e outras bossas. São Paulo: Perspectiva, 1978.
CAVARERO, Adriana. Vozes plurais: filosofia da expressão vocal. Trad. Flavio Terrigno
Barbeitas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.
COCCIA, Emanuele. A vida sensível. Trad. Diego Cervelin. Desterro: Cultura e
Barbárie, 2010.
COCTEAU, Jean. A dificuldade de ser. Trad. Wellington Júnio Costa. Belo Horizonte:
Autêntica, 2015.
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Resumo: Este artigo se propõe a analisar a dimensão política da música do cantor e compositor Siba através dos discos que o músico produziu com a Fuloresta do Samba (2002; 2007), o mestre Barachinha (2003), e os discos Avante (2012) e De baile solto (2015). A nossa análise exercerá uma espécie de metacrítica ao repensarmos no próprio (inter)texto modos distintos de nos aproximarmos do objeto artístico analisado e do próprio artista, exercendo com ele um diálogo crítico.
Palavras-chave: Música brasileira; estética e política; Siba.
Abstract: This article proposes to analyze the political dimension of the music of the singer and composer Siba through the discs that the musician produced with the Fuloresta do Samba (2002; 2007), mestre Barachinha (2003), and the albuns Avante (2012) and De baile solto (2015). Our analysis will exercise a kind of metacritical when we rethink in the (inter)text itself different ways of approaching the artistic object analyzed and the artist own, exercising with him a critical dialogue.
Keywords: Brazilian music; aesthetics and politics; Siba.
I – Olinda
A risada quase invisível do Mestre Nico repercute no salão repleto de ritmos e sons e corpos: o uivo de sua voz – quase gargalhada, quase manifesto – anuncia a chegada de uma Mini Desorquestrade Baile Solto e Rimas. A música se torna paisagem na guia de sua percussão. Os demais músicos se contagiam dessa energia, desdobrando-se com ele através de seus toques. O salão[1] localizado à margem do mar de Olinda agrupa essa música que é de muito longe, de um longe-norte, de um onde os homens e mulheres dançam sob a noite, entre batuques, adereços e poesia, até o amanhecer. Por essa estética reside uma resistência, uma linguagem que incorporada pela festa marca um território, estabelece sua trincheira, pois é preciso continuamente lutar por essa voz.
Sob a condução da Desorquestra, o músico Siba. Sem origem? Sem gênero? A música. O músico. Por que não? As alcunhas de poeta, mestre, cantor, compositor, guitarrista, rabequeiro, maracatuzeiro ou artista, que se incorporam à sua persona, são reveladoras dos estados de transe e transitoriedade com os quais o artista dialoga.A música percorre um caminho de inquietação e reverência à palavra e aos sons delirantes das ruas. No entanto, é preciso estar atento às relações de poder que podem contaminar os espaços com o desejo explícito de segregar o que não cabe no gesto, nas cercas ou nas noções de normalidade. A rua é viva e sem centro. Ainda assim, torná-la marginalizada com ares de política cultural é uma das maiores violências que se pode tentar cometer contra ela.
Os mais recentes discos “solo” Avante (2012) e De baile solto (2015) são criações ainda em movimento. É preciso ouvir o passado, distender o presente, investigar conexões, poéticas. O disco não pode ser lugar de origem nem de chegada, mas de passagem. As canções e sonoridades seguem em trânsito, políticas, em marcha, bailando, soltas, macias, cantando-dançando-delirando:
Sai! A gente brinca, a gente dança Corta e recorta, trança e retrança A gente é purapontadelança Estrondo, Marcha Macia![2]
Com essas conexões em vista, pretendo neste (inter)texto fronteiriço entre ensaio, artigo e crônica, escrever sobre a dimensão política da música de Siba através dos discos com a Fuloresta do Samba (2002; 2007), o mestre Barachinha (2003), e os já citados Avante (2012) e De baile solto (2015); nelas, a música de rua é desterriorializada estética e politicamente e se desfaz dos lugares estanques das categorias de “cultura popular”, “folclore” ou “manifestação popular”. Para produzir esta narrativa, outros textos de minha autoria sobre o artista, trechos de entrevistas com o músico, passagens e leituras de documentários, fotografias e canções serão incorporadas na reescrita sobre a obra, com o intuito de provocar uma fricção entre a trajetória do artista e a do crítico que o acompanha, como processo contínuo, de diálogo.
II – Poeta sambador
Primeiro corte
O maracatu é meu rock and roll. Biu Roque canta que se ouve a uma légua. Cosmo Antônio cortou cana por mais de cinquenta anos. Muitos caboclos morreram na frente da capela. Outros tempos. Somente voz, um eco que mantém a melodia, é Cosmo cantando histórias. Em Nazaré só tem músico e policial. É que aqui tem duas bandas de música e um quartel. Pela Fuloresta eu deixava até o meu trabalho. É um negócio de alegria mesmo. Mané Roque, a bicicleta, sua voz no canto, a paisagem, o cinema, a fotografia. Paris-Recife. É na rua, é no palco. Onde nasci vou morrer.[3]
Na entrecrítica[4] sobre o artista, escrita pelo pesquisador Bernardo Oliveira, do Rio de Janeiro, é possível vislumbrarmos uma espécie de síntese do modo como o músico Siba lida com a música da Zona da Mata de Pernambuco:
[…] um olhar descolonizado sobre o calor da rua, das manifestações populares do Nordeste, sobretudo o Maracatu e a Sambada que habitam a Zona da Mata de Pernambuco. Abolir as categorias generalizantes e os processos de petrificação operados pelos centros de produção intelectual, substituindo-os por uma imagem vibrante e afirmativa calcada sobre procedimentos de captação, síntese e invenção. Descolonizar também implica em atravessar fronteiras, oscilar entre diversos pontos de vista, desestabilizar visões categóricas do global e do local, promover interseções entre aspectos atuais e virtuais (Oliveira, p. 58-61, 2015).
A partir dessa síntese, percebemos como a imagem estática de uma representação cultural não se vincula ao gesto artístico de Siba, mais conectado ao deslocamento como estética, às “desestabilizações do global e local”, como aponta o pesquisador Oliveira.
Depois de doze anos no grupo Mestre Ambrósio e após sete anos vivendo em São Paulo, o músico retorna a Pernambuco em 2002 para desenvolver a “Fuloresta do Samba” com artistas de Nazaré da Mata, cidade de aproximadamente 3 mil habitantes, na Mata Norte de Pernambuco. Os músicos Biu Roque e Mané Roque compõem o coro da Fuloresta no disco de 2002. Em 2007, o álbum Toda vez que eu dou um passo o mundo sai do lugar vinha à tona com a presença de Cosmo Antônio entre as vozes. Entre esses dois álbuns, Siba ainda lançaria No baque solto somente, com o mestre Barachinha, em 2003, com composições da dupla. Os três álbuns foram produzidos por Beto Villares e Siba. Ainda se dividiram entre as formações do grupo os músicos Biu Neguinho, Dyogenes Santos, Galego do Trombone, Manoel Martins, Maurício Muniz, Roberto Manoel, João Minuto e André Tubista, entre os metais e elementos percussivos.
“[…] eu digo sem medo/ Sou poeta sambador”, canta Siba em sua voz como “grito”[5], pois ao poeta sambador a palavra se desdobra em dança, música e resistência. A canção mimetiza uma paisagem, é repleta de silêncios que explodem no final de cada estrofe. O coro, o apito como condução impõe sua palavra sonora, em diálogo com os versos, marcam o território desse poeta que pode afirmar sem medo: “sou”. Com a Fuloresta, o músico construiu uma trajetória artística que se diferencia do que se costuma chamar de “influência”. Suas composições parecem ter sido escritas por outras vozes, outras paisagens, que não as personificadas em sua figura, mesmo que assinando como Siba, soam como se já existissem; era preciso “apenas” dar-lhes batismos. As narrativas, métricas, ritmos, temáticas e sonoridades se impõem como canções coletivas; a cana-de-açúcar deu verso, a rua, o cheiro do lugar, o vento, o traje, o azougue também deram verso.
O brincante deu canto, o estilhaço da noite, o adereço, os joelhos no chão, o corpo que se move, as cadeiras de balanço na calçada, os sons que se movem, os velhos e crianças, o alto falante, a multidão, o desafio, os feixes de luz dos postes que mal iluminam a rua e casas, o tempo que passa, a barra do dia, pitú, all star, chinelo, chão, mãos dadas, a camisa estampada, o berro que não ouço, essas fotografias[6], o sol que nasce erguendo a gente com as mãos, os homens que parecem lutar-dançar; entre eles, mulheres se descolam com suas armas e presenças-resistências-outras.
O trabalhador de cana virou brincante. E o brincante buscou respostas às suas gritantes limitações econômicas e sociais através da arte. Parido no seio de um contexto de dificuldades extremas, o Maracatu Rural impressiona pela visceralidade que esbanja uma complexidade criativa incomum, num misto de beleza e violência intrínsecas, nascida no mesmo berço turbulento da zona canavieira. […] O Maracatu Rural que conhecemos hoje foi domesticado, apesar do cenário de violência social pouco ter se modificado na zona canavieira. É da força criativa e realizadora da arte que vem um grito violento que se quer se fazer ouvir, se fazer presente e ser reconhecido socialmente (Marcondes; Lima; Rocha, 2014).
As canções da Fuloresta do Samba se alimentam dessa “visceralidade” e “força criativa”, mas não se apresentam como mimetização da música que ocorre nas sambadas. A sonoridade reflete uma tentativa de expressar o gesto artístico do Maracatu Rural, mas no ambiente novo, esse refletido por um grupo musical criando arranjos para a gravação de um disco em conexão com qualquer outro projeto musical, que consequentemente o colocaria em palcos dos mais diversos, não só em Pernambuco, mas no mundo todo.
Desse modo, enquanto o disco Fuloresta do samba diz “sou”, No baque solto somente diz “nós somos”, e Toda vez que eu dou um passo o mundo sai do lugar diz “De manhã escuto o mundo/ Gritando pra me acordar”[7], e rediz como coro que o vento facilmente leva: “Toda vez que eu dou um passo/ O mundo sai do lugar”.
Segundo corte
A estrada que sempre volta. 12 anos com o Mestre Ambrósio. Guitarras. Rabeca. Cavalo marinho. Maracatus. Cortejos de carnaval. Eu não sou instrumentista. A poesia, a dança, a música. Agreste-Recife. A presença da pessoa no mundo. Os poetas da Mata Norte iluminam 5 horas de improviso sem a presença de palcos. Chão, onde só cabe a palavra. Eu tentei imitar o Mestre Barachinha na construção dos versos. Avante. Quem sou eu? O poeta, a pessoa. Romper barreiras. A guitarra e a ciranda têm lugares diferentes hierarquicamente. Um edifício de rima. A poesia tem um valor em si. Conquistar uma linguagem como poeta em Nazaré. Pôr-se pra fora nos versos, deslocar-se da Mata Norte em busca de uma coisa nova, o que não significaria uma coisa “moderna”. Trânsito. Linguagem. Paisagem. Rima-métrica-oração. De uma poesia do cotidiano para uma mais pessoal. Era preciso expor-se. Tocar viola de forma particular. Caminhos passam pelas guitarras da música congolesa. Explorar a linguagem (expandi-la) sem os limites da tradição. A força do maracatu não está na ancestralidade, mas na hora que acontece. Rememorações. Mestre Ambrósio-ruptura-Fuloresta. A poesia ficou dormente. Não me sinto completo em nenhum lugar. A casa está vazia[8].
Avante é um disco repleto de passagens/paisagens. As canções constroem narrativas tanto poéticas quanto musicais, visto que os arranjos e sonoridade do álbum dão à presença da guitarra um chão estável para que as letras de Siba possam percorrer. A voz do autor mantém essa estabilidade e revela em sua poesia uma capacidade maior para contar histórias. Por entre as frestas dessas histórias é possível eleger a memória e o tempo com temáticas primordiais das canções. Esteticamente, há um balanço e ironia presentes no diálogo entre arranjos e letras, na sua condução rítmica. A música “Canoa furada” revela esse momento de tensão, “A canoa furada/ Já tá perto de afundar”, mas com arranjo que revela na presença da flauta de Teco Cardoso um ar mais burlesco, que soa como irônico diante do “socorro”, do “me acuda”, do “tubarão”, “da dentada”; elementos que surgem na canção e são recortados pelo arranjo que contempla um diálogo mais próximo entre a tuba de Léo Gervázio e a voz (narrativa) de Siba.
Essa canção (a sexta de Avante) se revela como corte entre dois momentos do disco. O primeiro é preenchido por “escombros”, “pó”, “fumaça”, “brasas”, de “Preparando o salto”; por “tempestade”, “ventania”, por uma “brisa […] carinhosa”, mas que “tem castigado”, de “Brisa”; e pelas “dores”, “cansaços”, “pedaços” e outros “escombros” de “Ariana”. As músicas “A bagaceira” e “Cantando ciranda na beira do mar” se juntam a essas canções com sua verve mais festiva e contemplativa. Enquanto a primeira discorre de um tempo de agora, mais vertical, de um instante que precisa ser cantado até o fim, a segunda canção é de alguém que vê o tempo e a paisagem de modo mais amplo, horizontal. Essas canções compõem um conjunto, um retrato que abre a narrativa de Avante para outros falares e poéticas, como se se desenhasse uma passagem mais visível, mais fácil de penetrar, apesar das frestas, das “armadilhas” presentes nas letras das canções.
“Mute” é quase um suspiro, um quase silêncio. É esse segundo momento, onde o mapa já está disposto, os caminhos mais ou menos traçados, em que é possível abrir-se mais, ser menos o tempo e a memória como marcas de um traço coletivo e voltar-se mais para dentro, ser o poema e a canção como indivíduos, libertar-se desse quase silêncio. “Um verso preso” (a faixa seguinte) é essa poética que quer explodir, quer revelar-se diante de todos. A voz de Lirinha ecoada pela de Siba e pelo arranjo que rodeia a estética das violas do Nordeste brasileiro é uma camada importantíssima para a compressão do disco Avante, ou melhor, sobre a própria pujança da música de Siba, sua dimensão política, pois arrasta para dentro toda uma cultura (popular) muitas vezes marginalizada ou tratada como menor, e devolve esse outro grito, outro silêncio, como possibilidade inventiva do presente.
Um verso preso é um tiro Que a arma não disparou Pois o gatilho emperrou E o tambor não deu o giro Se escuta só o suspiro De alguém que escapa assombrado E o atirador, frustrado Remói a raiva no dente Sentindo o mesmo que sente Alguém que foi baleado[9]
A faixa “Avante” é especialmente importante quando se manifesta após esses silêncios, com sua dicção acelerada “Desata o nó das entranhas” e berra: “avante!”. Nela, o vibrafone de Antônio Loureiro tem presença constante ao redor do canto de Siba. O solo final em diálogo com a guitarra constrói e desconstrói a rítmica da canção até a faixa seguinte, “Qasida”, como um outro corpo poético para a construção de Avante. Entre a cadência quebrada e a dança, a voz “canto abandonado”, como fala, declamação, lamento e memória, abre espaço amplo para o guitarrista e co-produtor do disco, Fernando Catatau, distender um solo pungente entre os arranjos da banda que fora os já citados nesse texto-corte, ainda conta com a bateria de Samuca Fraga. Se “Qasida” fala de um tempo passado, de suas ruínas, a faixa “Bravura e brilho” é luminosa e repleta de sonhos que se realizam na fantasia e na presença de um filho que cresce entre naves, dragões e ciclopes. Avante se comporta, portanto, como o movimento de uma catapulta, ergue o peso para trás e arremessa a sua energia para mais longe, provavelmente um outro longe-norte.
O músico Siba conversa com policiais militares durante uma noite de ensaio do Maracatu Estrela Brilhante de Nazaré da Mata, do qual o artista faz parte, na tentativa de convencê-los a seguir com a festa até o amanhecer, como sempre fazem, tradicionalmente, as sambadas dos maracatus, já que a intenção da polícia era a de interromper os ensaios às 2h da madrugada. Apesar de conseguirem ir até o sol nascer nessa ocasião, outros grupos da região não estavam mais conseguindo seguir com a festa. Assim relatou o músico em fevereiro de 2014:
Estrela Dourada de Buenos Aires, Leão Misterioso, Cambinda Brasileira de Nazaré da Mata, e quase todos, tiveram seus ensaios interrompidos às duas da manhã. Curiosamente, noites de maracatu promovidas pelas prefeituras ou por projetos culturais com patrocínio estadual ou federal tem acontecido sem limite de tempo. Conversando com os mais velhos, cuja memória ‘alcança’ os anos 60, não consegui nenhuma lembrança de proibição similar no passado.[11]
Após a repercussão dos artistas e sociedade civil, posteriormente, em uma reunião convocada pelo Ministério Público, ficou decidido o fim da restrição de horário às sambadas na Mata Norte de Pernambuco. No entanto, as feridas que se impõem aos artistas e artes oriundas desta região sangram há muito tempo. O que este caso nos revela é o modo como essas expressões, não menos contemporâneas que outras, vivas, instigantes, criativas, continuam ainda restringidas a um segundo plano, sobretudo por uma política cultural engessante e folclorizada da música de rua.
O texto “Pernambuco, Maracatu de Baque Solto e a Cobertura da Lei”, de Siba, no qual essa denúncia foi feita, pode dialogar com outros textos críticos sobre o tratamento dado a determinados artistas e expressões culturais, como em “Quanto vale a música tradicional?”[12], do músico Rodrigo Caçapa, em que reflete: “Qual o valor simbólico que a música tradicional do Nordeste representa para grande parte da população de classe média e para a elite econômica das grandes cidades da região e do país?”, e em “Realidades do Maracatu Rural para além do marketing cultural”, do tarolzeiro de maracatu rural, artista plástico e arquiteto Lula Marcondes, sobre as condições precárias que passam os Maracatus durante o período do Carnaval Pernambucano. Assim denuncia em seu artigo: “[…] um maracatu com mais de 80 componentes, que viaja quilômetros com um elenco formado de brincantes das mais variadas idades entre crianças e idosos, chega a receber entre R$ 200,00 e R$ 300,00 por apresentação”[13].
Com De baile solto, Siba põe todas essas questões em evidência. No entanto, não o faz de modo panfletário, como “música de protesto”, datada, com prazo de validade. Suas canções são críticas e políticas porque carregam em suas poéticas e sonoridades a voz e os sons que ecoam dessas e de outras expressões artísticas. Ou como ele mesmo afirma:
[…] expressar a grandeza absoluta de uma ave de rapina ante a arrogância dos senhores que se arrastam pela terra, exaltar a potência criativa e social de formas de expressão forjadas coletivamente por pessoas marginalizadas e excluídas, reafirmar a crença tola na embriaguez do verso.[14]
É de modo poético que o compositor destrincha suas críticas. É curioso perceber que no texto-denúncia de Siba algumas das afirmações ali relatadas apareceram em suas canções. Com isso, intuímos o quanto o processo criativo do músico esteja imbuído dessa reflexão, em como essas novas canções jogam de volta aos seus interlocutores as falácias que no fundo querem manter estáveis as forças de poder já estabelecidas. Assim, nova ordem está na boca do policial militar e nos versos de “Marcha Macia”, canção que abre o disco. Já em Progresso com mais ordem?[15], na pergunta irônica do músico naquele texto, surge não menos irônica e contundente nos versos da mesma canção, que diz: “Progrediremos juntos, muito em paz”. Na condução da guitarra-narrativa em diálogo com a voz de Siba até a profusão de sons e ritmos que invadem a canção.
Muito mais do que essas relações entre crítica e criação, a música oriunda da invenção que é a Mini Desorquestra de Baile Solto e Rimas, formada por Siba, Mestre Nico, Lello Bezerra, Antônio Loureiro e Leandro Gervázio, delirando sob uma poesia imagética, é ela mesma uma desordem, nem nova nem velha, mas espacial, como a ave de rapina, o gavião, o balão que voa; uma música que experimenta o seu próprio vocabulário, sua própria corrente de invenção.
Carlos Gomes: Em 2003 a música “Marcha macia” encerrava o disco No baque soltosomente, lançado por você e pelo Mestre Barachinha. No mais recente De baile solto, uma outra “Marcha macia” surge transformada sonora, política e poeticamente na abertura do álbum. Na inclusão da letra, de uma poética crítica, que mantém em seu cerne a estética pela qual sua música é reconhecida, mesmo ainda no período do Mestre Ambrósio, ou seja, na desterritorialização da música de rua de seus lugares normalmente marginalizados ou folclorizados. O que essas “marchas” têm em comum para você, como poéticas, ou mesmo se é possível fazer um diálogo entre esses dois momentos de sua trajetória, entre essas duas “marchas macias”?
Siba: A autonomia estética do Maracatu de Baque Solto é assombrosa. Tudo nesta tradição me parece afirmar com muita intensidade uma noção de distinção, uma consciência de diferença. Falando, cantando, tocando, dançando e também no modo de vestir, o maracatuzeiro parece estar sempre dizendo “eu sou quem eu sou, e não outra coisa”. Eu não nasci na Mata Norte. Como um típico cidadão classe média, nem deveria gostar de Maracatu, mas fui abduzido pela força expressiva do Baque Solto no meu primeiro encontro mais profundo com a tradição. Desde então, sempre me vi numa situação intermediária, onde faço parte de uma cultura marginalizada e isolada pelo preconceito folclorizante e ao mesmo tempo tenho constantemente oportunidades de intermediar canais de comunicação e encontros, da Mata Norte para o mundo e vice-versa. Nesta posição, sempre nutri uma crença, talvez ingênua, na força da beleza. Sempre acreditei que qualquer pessoa que se aproximasse minimamente do Maracatu e dos Maracatuzeiros seria passível de algum tipo de iluminação similar a que eu mesmo tive vinte e tantos anos atrás. Assim, boa parte do que produzi como artista até antes do De baile solto está repleto deste sentimento. Porém, com o tempo fui aprendendo a enxergar de modo mais concreto as reais barreiras para um entendimento livre de preconceitos para as culturas orais no Brasil. Por aqui, qualquer traço de matriz africana e indígena, qualquer sombra de sobrevivência ibérica pré-industrial tem que se adaptar ao lugar de Folclore, suas formas de expressão se tornam “Manifestações” de um passado distante e seus representantes serão sempre prisioneiros deste tempo antigo, de onde é muito difícil levantar voz ativa no presente. Não é à toa que essa Babel que chamamos genericamente de “cultura popular” está sempre refém do Coronelismo e suas versões similares, raramente conseguindo elaborar um discurso mais afirmativo de enfrentamento. As estratégias da Cultura Popular são, quase sempre, adaptação e reformulação. As duas marchas macias são mesmo uma só e afirmam uma mesma coisa, que está contida no refrão da versão mais recente.
Carlos Gomes: De baile solto foi lido majoritariamente pela crítica como um disco político, pois nascido diante dos embates contra a política segregadora do Estado, sobretudo pelos episódios envolvendo a restrição de horário das Sambadas de Maracatu, em Pernambuco, mas que simbolicamente abrange para questões políticas e culturais discutidas e vivenciadas em muitas das capitais brasileiras, sob o prisma capitalista, vide as reflexões sobre as cidades levantadas pelo Ocupe Estelita, por exemplo. No entanto, uma canção como “Será”, dos versos “Será que ainda vai chegar o dia de se pagar até a respiração?/ Pela direção que o mundo está tomando eu vou viver pagando o ar de meu pulmão”, lançada anos antes, já continha essa mirada crítica. Você percebeu uma diferença de tratamento – ou de recepção – entre as canções dos discos anteriores e as do novo álbum?
Siba: Trocar a guitarra por uma rabeca em 1990, formar coletivamente o Mestre Ambrósio e inverter na música o jogo de forças entre a cultura popular e música pop, deixar São Paulo no auge da visibilidade e ir cantar Ciranda e Maracatu no interior de Pernambuco… Foram sempre posições políticas para mim. O De baile solto é apenas mais politicamente explícito e consciente, tem um tom mais duro e afirmativo, mas eu acho que tenho feito sempre a mesma coisa, a vida inteira…
* Carlos Gomes é pesquisador e crítico. Mestre em Comunicação pela UFPE, com estudo comparado do tropicalismo e manguebeat. É editor dos projetos de crítica cultural dos Outros Críticos, no Recife/PE, responsável pela produção de livros, revistas e debates. Lançou em 2018 os livros Canções iluminadas de sol: entre tropicalismos e manguebeats, e O outro é uma queda (Vários autores).
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FULORESTA DO SAMBA. Toda vez que eu dou um passo o mundo sai do lugar. Recife: Produção Independente, 2007.
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SIBA. De baile solto. São Paulo/Recife: Yb Music/Fina Produção/Mata Norte ,2015.
SIBA. Avante. São Paulo/Recife: Fina Produção/Mata Norte, 2012.
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PINHEIRO, Marcelo. Fuloresta do samba. Luni Produções, Recife: 2004.
Notas
[1] A apresentação musical ocorreu no bar Manny Deck, no Carmo, em Olinda, no dia 27 de janeiro de 2017.
[2] In: SIBA. De baile solto. São Paulo/Recife: Yb Music/Fina Produção/Mata Norte, 2015.
[3] Narrativas do documentário Fuloresta do samba (2004), dirigido por Marcelo Pinheiro.
[4]Entrecrítica é uma crítica construída sobre uma conversa entre o crítico e o artista.
[5] “A voz, por não ser macia/ Prefiro chamar de grito/ Mas canto imitando o dia/ Por isso eu acho bonito”, na faixa “Poeta sambador”, de Siba, no álbum Fuloresta do samba (2002).
[6] Narrativas sobre as fotografias de José de Holanda na I Festa da Alvorada com Siba, Maciel Salú e Mestre Barachinha, em Nazaré da Mata – PE, 2015.
[7] Da faixa “Toda vez que eu dou um passo o mundo sai do lugar”, de Siba, do álbum homônimo de 2007.
[8] Narrativas do documentário Siba – Nos balés da tormenta (2012), dirigido por Caio Jobim e Pablo Francischelli.
[9] In: SIBA. Avante. São Paulo/Recife: Fina Produção/Mata Norte, 2012.
[10] Esse tópico foi publicado originalmente no site Outros Críticos, em 10 de dezembro de 2015, com o título “Siba: de baile solto, como ave de rapina”.
Resumo:
Este ensaio é a materialização de
muitos pensamentos, algumas reflexões, conversas de corredor, reboladas entre uma
festa ou um baile e ideias que surgiram entre “uma mão no joelho e outra na
consciência”[1].
Objetiva pensar sobre a performance de Elza Soares para o “Rap da felicidade”,
originalmente cantado por Cidinha e Doca, e de que forma essa canção em sua voz
é um manifesto de resistência de uma mulher que representa várias outras que
como ela são negras, pobres, faveladas. E que de um certo modo, em alguma parte
de qualquer comunidade carioca clamam por ser felizes na favela onde nasceram,
querem se orgulhar e ter consciência que pobre tem seu lugar. Reafirmar que o funk
é um manifesto, uma arte que é efêmera, mas que consegue deixar pontuais
legados que veiculam mensagens, descrições e reflexos da condição social da
favela, que são atemporais.
Abstract: This essay is the materialization of many thoughts, reflections, conversations on hall’s, rolling between a party or a dance and ideas that suggest between “one hand on the knee and one on the conscience”, thinking about Elza Soares’ performance for “Rap da Felicidade” by Cidinha and Doca and how this song in her voice is a manifest of resistance of a woman who represents several others that like her are black, poor, faveladas and that in some way, in any part of any community in Rio claim to be happy in the favela where they were born, who want to be proud and aware that poor people have their place, showing that Funk is a manifesto, an art that is ephemeral but that can leave punctual legacies that have messages, descriptions and reflections of the condition favela that are timeless.
Keywords: Samba song; favela; Elza Soares; music.
Elza (de Moça Bonita) Soares
Comecei a pensar, após a apresentação de um dos trabalhos no I Minervacon, em como uma mulher negra com tamanha força política como Elza Soares poderia embranquecer um funk, conforme foi afirmado em uma das apresentações na última mesa do evento. Me deparei com a biografia dela: uma mulher negra, nascida e criada na favela Moça Bonita, atualmente conhecida como Vila Vintém, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, que se casou cedo, pois no século passado parecia a pais pobres uma honra casar suas filhas ainda moças com homem de mais experiência; maternidade precoce, que velou dois filhos e o marido com meros 21 anos; aventurou-se no meio artístico em meio a tantas tristezas na vida, vítima do entrelugar em que a mulher negra está fadada a viver[2]; era antes apontada como “a amante que acabou com o casamento de Garrincha”[3] e, recentemente, era muito noticiada ou sempre comentada como a mulher com excesso de plásticas. Como poderia uma mulher negra, com tamanha vivência, tamanha biografia e trajetória de vida, ser uma força de “embranquecimento” do funk? Apesar de não gostar da palavra, esta que foi utilizada.
Ela foi uma mulher sofrida, como muitas nessa sociedade machista, patriarcal e estruturalmente racista são, e, durante seu casamento extremamente conturbado de quase 20 anos com Garrincha, sofreu dos mais cotidianos males que as mulheres sofrem: a violência doméstica. Para além das marcas físicas que as agressões constantes lhe deixaram (segundo ela em várias entrevistas), há também as dores da alma, o psicológico das agressões que ficam como marca para uma vida, angústias que ela só expôs anos depois, quando a coragem foi suficiente e a cicatriz já não lhe torturava. Assim, lançou a canção “Maria da Vila Matilde”[4], presente no álbum A mulher do fim do mundo[5], em que fala abertamente sobre uma agressão doméstica à mulher, no caso a ela mesma, além de denunciar uma série de abusos que acontecem com as suas irmãs de cor, outras mulheres negras que são extremamente silenciadas, como elucida Sueli Carneiro:
Fazemos parte de um contingente de mulheres com identidade objeto. Ontem, a serviço das frágeis sinhazinhas e de senhores de engenho tarados. […] Hoje, empregadas domésticas de mulheres liberadas e dondocas, ou de mulatas tipo exportação (Carneiro, 2003, p. 50).
Não pude crer que Elza, que se tornou símbolo de uma série de discussões com seu álbum intitulado Deus é mulher poderia desmerecer a canção. Resolvi debruçar-me sobre o DVD Beba-me e proponho um caminho de deliciosas músicas para chegar ao “Rap (de Elza) da felicidade”.
Beba-me (ou engula-me) – o DVD de Elza Soares
Em
março de 2007, Elza da Conceição Soares subiu ao Palco do Sesc Vila Mariana
para gravar o que seria seu primeiro DVD ao vivo. Das 22 faixas escolhidas para
o repertório, voltarei a uma faixa em específico, presente tanto no CD quanto
no DVD, em ambos os casos como última faixa/ faixa bônus. O que mais me chama
atenção são as particularidades nela presentes – que aqui serão apontadas –
tais como o arranjo, a citação musical que nela é feita e como isso de certa
maneira articula com a realidade que é vivida nas favelas.
Tratarei
da faixa “Rap da felicidade”, funk originalmente cantado por Cidinha e Doca,
lançado em 1995, que Elza regrava, 12 anos depois, com um arranjo reorganizado,
leves alterações na letra original em uma roupagem que, minuciosamente pensada,
parece ser algo tão contemporâneo e atemporal que no Brasil de 2018, me é
difícil acreditar que já se passou tanto tempo desde a primeira execução do
“Rap da felicidade” nas rádios. Levanto aqui duas motivações principais: tentar
explicar que não há um “embranquecimento” desse funk (como ouvi há um tempo em
um evento na academia) e, principalmente, como essa gravação de Elza parece tão
Brasil 2018 pós-desfile da Paraíso do Tuiuti[6], embora existam pequenos rastros
deixados, tão mínimos, mas que na pressa pelo instantâneo, nesse perturbado
contemporâneo, não estimasse tempo suficiente para dar conta de alguma reflexão.
A
composição da performance: o show pelo show
Ora, isso me faz repensar
o sentido da performance do show, o sentido do próprio show e da composição
performática que se dá com o figurino, a escolha das canções e, talvez
intuitivamente, com a ordem em que elas estão dispostas ao longo do show.
Apesar das mudanças na ordem das canções do CD para o DVD, proponho um olhar
sobre o DVD, que contém o show completo e segue a seguinte ordem, conforme
contracapa:
1 – Meu guri 2 – Dura na queda 3 – Estatutos da gafieira 4 – Cartão de visita 5 – Pra que discutir com madame 6 – O neguinho e a senhorita 7 – Exagero 8 – Dor de cotovelo 9 – Volta por cima/ Fadas 10 – Flores horizontais 11 – Pranto livre 12 – Palmas no portão 13 – Lata d’água 14 – A carne 15 – Telecoteco 16 – Telecoteco n°2 17 – Contas 18 – Se acaso você chegasse 19 – Malandro 20 – Beija-me (Beba-me) 21 – Salve a Mocidade 22 – Rap da felicidade (Faixa bônus) (Faixas obtidas junto a uma cópia original do DVD do show, lançado em 2007 pela gravadora Biscoito Fino).
Existe um diálogo entre
as faixas desde a primeira, “Meu guri”, na qual ecoa a voz de uma mãe pobre sobre
seu filho, à última, “Salve a Mocidade”, referência à sua paixão, a Escola de
Samba Mocidade Independente de Padre Miguel, nascida nas proximidades de onde
Elza é “cria”. Esse diálogo se confirma na faixa bônus, última do show, o “Rap
da felicidade”, que sintetiza a luta e o grito desta mulher negra, pobre, da
favela, da luta e de sonhos. Mas posso dizer que há mais que isso: há uma voz
que fala por um povo. Diferentemente do que é defendido por Spivak em seu Pode o subalterno falar (2010), em que o
subalterno tem sempre sua fala mediada por outra voz, Elza, graças a sua
exposição midiática e grande repercussão de sua figura, parece deslocada do
contexto de subalternidade. Ela é a própria subalterna que fala pelos subalternos
e, na sua posição ainda mais periférica de mulher subalterna e mais ainda de
mulher negra subalterna, fala por sua própria voz, sem precisar de mediação.
Outro fator importante no
entrelaçamento e no diálogo que as canções estabelecem entre si, ela expõe
outro grande problema social pelo qual a mulher negra passa, como a violência
singular que sofre em uma sociedade estruturalmente racista. Muitas vezes, pela
condição social à qual é submetida, como a falta de acesso à educação, saúde de
baixa qualidade, pouca ou nenhuma qualificação profissional, elas se veem
obrigadas, com muita frequência, a ocupar postos como os de empregada
doméstica, funcionárias da limpeza, vendedoras ambulantes e demais funções que
ficam sempre à margem e por muitos não são olhadas e nem vistas no dia a dia da
correria. Elza expõe isso na canção “Pra que discutir com madame”. Também há uma
reflexão sobre a mulher negra como corpo-objeto, a serviço do homem. Um trecho
do livro Mulheres, cultura e política (2017),
de Angela Davis, nos ajuda a ter uma luz sobre o pensamento que entrelaça um
conjunto de faixa cantadas por Elza em sequência:
Estupro, intimidação sexual, espancamento, estupro conjugal, abuso sexual de crianças e incesto são algumas das muitas formas de violência sexual explícita sofrida por milhões de mulheres neste país. […] O fato de que praticamente todas nós podemos recuperar episódios similares em nossas memórias de infância é a prova do grau em que a violência misógina condiciona a experiência feminina em sociedades como as nossas (Davis, 2017, p. 41-43).
Após essa leitura breve
de um trecho do capítulo “Nós não consentimos: a violência contra as mulheres
em uma sociedade racista”, posso refletir, fundamentalmente, sobre algumas
alusões presentes no show, das quais considero a mais capital, como caminho que
levará às canções “Salve a Mocidade” e, propriamente, ao “Rap da felicidade”.
Sem desconsiderar as
faixas iniciais do show, das quais as mais singulares já foram mencionadas,
penso que esse caminho se inicia na faixa de número 12, “Palmas no portão”, trilhado
em algumas melodias e letras, os tons melancólicos e destaque para a grande voz
de Elza, uma espécie de autocanto de uma realidade outrora vivida e que é
revisitada pela sua arte.
Já na primeira faixa mencionada, “Palmas no portão”, há um claro exemplo sobre a solidão da mulher negra, que na canção chora por não ser visitada por seu amado, mostrando o abandono pelo qual muitas dessas mulheres passam. Seguindo para “Lata d’água”, em que uma mulher sofre vivendo em uma comunidade, temos uma transição temporal: em pleno 2018, além da falta de saneamento básico em muitas comunidades, há também a evidência de uma força de trabalho dupla, não só a de carregar água, mas a de ser mãe solteira, realidade muito comum na população brasileira. Em se tratando de mulheres negras, a situação é ainda mais grave: ou elas são abandonadas por seus companheiros por diversos motivos, ou são vítimas da violência e têm seus maridos, também negros, assassinados pelas forças que deveriam dar segurança, mas confundem guarda-chuvas com armas de fogo[8] e assassinam pais de família como Rodrigo Alexandre da Silva Serrano, alvejado em um dia de chuva, 17 de setembro, deixando para trás mais uma mulher negra com sua vida dilacerada e mãe solteira.
Em “A carne”[9],
Elza faz o apogeu do show, expondo a negligência do Estado com os corpos
negros, com a violência por eles sofrida, com os assassinatos que ficam sem
solução, pelas associações ao que é ruim e diretamente feitas ao povo negro,
pelo que acontece diariamente e não vemos ou fingimos não ver. Há um lamento de
Elza ao dizer que “a carne mais barata do mercado é a carne negra”, porque de
fato é.[10]
É o corpo que pouco importa, a carne que sofre, que é marginalizada, foi
escrava, é jogada ao relento e por fim acaba esquecida, jogada em valas ou
simplesmente é um corpo que some, pois afinal “Onde está o Amarildo?” ou mesmo
“Quem matou Marielle?”[11].
Em “Teleco-teco”[12],
volta-se à situação do corpo-objeto da mulher negra. Nessa canção há um jogo,
uma citação a duas outras canções: a primeira, “Praça Onze”[13],
de Herivelto Martins, conta a história do fim da Praça Onze, reduto das escolas
de samba no início do século XX. Essa música mostra uma profunda tristeza pelo
provável fim das escolas de samba, dizendo que, para além do choro dos
instrumentos que não serão mais utilizados, há também o choro da favela. Há a
memória, as recordações. É o fim de algo que foi bom, que deixará lembranças, a
esperança de uma nova praça e um passado que será cantado.
A segunda citação, “foi
pra mim”, refere-se à música “Samba feito pra mim”[14],
que se justifica pela presença da citação dos versos: “Amei alguém, fui só de
alguém, o mundo não procurou me compreender”. Há como referência dessas duas
canções, um sujeito que está triste, pois vai deixar algo para trás, um amor,
uma grande paixão, seja metaforicamente na figura da Praça Onze na primeira
música, seja literalmente se pensarmos na segunda música. Algo que ele deixa
por não ser compreendido, algo que ele deixa por não poder mais levar isso adiante,
algo que ele espera que um dia volte para cantar o tempo de saudade e celebre a
felicidade de um novo tempo. Com a construção dessas metáforas podemos entender
que ele deixará a mulher, já que na segunda parte da música: “Você é um homem
casado, não tem o direito de fazer carnaval”. Ora, entende-se aqui que a
metáfora do carnaval nada mais é que ter relações sexuais com ela.
Há uma clara mensagem
nessa canção em específico, um sofrimento de uma mulher que, para além de
passar “a noite inteira acordada e a minha bronquite assim comecei”, um rancor,
uma mágoa de se sentir usada por um homem que é casado, provavelmente, mente
para ela e usa de charme e canções do conhecimento popular para criar uma
atmosfera de descontração com essa mulher, com o objetivo de pressioná-la para
conseguir o seu perdão. É evidente aqui a relação de poder (com o “jeitinho”) e
de abuso que a mulher negra sofre. A mulher que se sente só por sua condição
social massacrante, que é diferente da mulher branca, que é cortejada e se
sente pressionada a dar o perdão. Parece muito simples, mas só a mulher e
principalmente a mulher negra que passou por semelhantes situações sabe a
quantidade de significados que esse “jeitinho” tem na relação de manipulação e
tentativa de dominação do psicológico para que o homem consiga aquilo que quer.
Em “Teleco-teco n° 2”, há
uma continuidade para além do título, uma espécie de justificativa do lamento
da primeira música. É possível pensar que o verso “samba nasce em qualquer
lugar” seja uma resposta à desculpa que o homem dera para lhe deixar, uma
coerente e inteligente explicação de que quando se quer, dá-se um jeito, e que
poderia ser encontrada uma maneira para que ele conciliasse a vida com ela e a
amante.
Na faixa “Contas”[15],
o lamento da mulher, chefe de família. Contas a pagar, pouco dinheiro, da
mulher que convive diariamente com o dilema de trabalhar ou cuidar dos próprios
filhos, isso porque muitas delas cuidam mais dos filhos das patroas que dos
próprios. E, por mais que ela pense elucidar seu dilema pedindo demissão de seu
trabalho para dar “conta das contas do lar”, muito lhe faz recuar quando o
pensamento dessa mulher negra é o de que sem trabalho não há dinheiro para as
contas, mas com trabalho não lhe sobra tempo para dar conta do lar. E assim
segue a vida…
“Se acaso você chegasse”
dá início ao último bloco do show, seguido de “Malandro”, “Beija-me”, de
Roberto Martins e Mário Rossi, a maior brincadeira do show, que merece um olhar
especial, pois durante a performance, Elza altera várias vezes o verso
“Beija-me” por “Beba-me”. Nessa canção ela sintetiza o martírio de seu tempo na
favela, do tempo de qualquer morador de uma favela, em versos que sugerem que
ela seja engolida, algo difícil para quem não gosta dela e não a aceita pelo
sucesso que conquistou.
Por fim, antes do
encerramento do show, há uma declaração do seu amor pelo Samba, a grande paixão
da menina Elza, “Salve a Mocidade” Independente de Padre Miguel, escola de samba
que nasce em Padre Miguel, território que antes era a favela de Moça Bonita,
onde ela nasceu. Amor tão grande que a fez se declarar apaixonada e sambista
por inúmeras vezes, desfilar pela escola e até cantar um trecho do samba-enredo
de 2019 na gravação oficial do CD do Sambas de Enredo de 2019.
A sutileza para mandar a
grande mensagem do que é esse show fica notável, uma síntese de sua carreira,
sem negar de onde ela veio – a favela –, o que ela é – uma mulher negra que
luta, que está na luta – e, além disso, uma favelada que quer paz, quer
tranquilidade, que não deseja mais ser marginalizada pelo que é e sim
respeitada pela luta diária de sua vida. É assim que o show termina com a faixa
bônus, com o “Rap da felicidade” coroando a Rainha Elza. Parece que este show,
que marcaria uma pausa em sua carreira, já que Elza o lança em CD e DVD em 2007
e só retorna com um álbum novo em 2015, seria a grande virada em sua carreira,
despontando-a como símbolo de uma série de discussões contemporâneas.
O
Rap
A música “Rap da
felicidade” tem uma letra melódica, um ritmo menos acelerado e marcado por uma
sequência única de batidas, bem diferente do que conhecemos hoje em pleno 2018
por funk, seja nas comunidades, com o acelerado ritmo em 150BPMs (batidas por
minuto), seja pelo funk mais comercial que chega às rádios com 130/135BPMs. Ela
ainda carrega o “rap” no nome – já que historicamente, no Brasil, o funk começa
com o movimento dos “melôs”, assim como nos EUA, onde o ritmo nasce da mistura
de ritmos afro-americanos, depois caminha no sentido de se nomearem “raps”, até
que, por fim, os movimentos de antropofagia nas favelas consolidam o que temos
hoje pelo nosso único e mundialmente reconhecido funk. E parece que crítica
social é mesmo receita de bolo em determinadas épocas. Fosse na música, nas
artes ou no carnaval, o final da década de 1990 foi propício às críticas, que
obtiveram muito sucesso, e com o “Rap da felicidade” não seria diferente.
Com uma estrondosa repercussão
nas rádios, nos milhares de discos vendidos e na participação em diversos
programas de TV, Cidinha e Doca se tornaram conhecidos nacionalmente pela
música que tinha um singelo pedido, mas que talvez fizesse sucesso, no cenário político
da época: a grande parte da população brasileira, a grande consumidora dos
meios de massa com rádio e televisão, que se via representada na súplica que a
canção entoava “Ser feliz na favela onde EU nasci…”. Esse “eu”, marca de
primeira pessoa, com referência indeterminada, um sujeito que não se
identifica, mas que pode ser qualquer morador de uma comunidade que é assolada
pela violência, é para que cada um que cantasse a música, que tocava
exaustivamente nas rádios ou estava em todos os programas exibidos na TV, fosse
em uma favela carioca, na periferia de São Paulo, no Nordeste, imensamente
esquecido em diversos aspectos, ou por qualquer um que sentisse que aquela fala
era sua também.
Não se pode negar o grande
sucesso que essa música teve e a atemporalidade que essa espécie de “súplica”
das favelas ganhou, o que a fez se tornar trilha sonora do filme Tropa de Elite em 2007 e regravação no
DVD de Elza Soares no mesmo ano. Talvez essa música seja um daqueles fenômenos
que não conseguimos dizer como se deu, mas é de extrema importância reconhecer
essa produção como um manifesto político, uma marca histórica do início do
movimento funk no Brasil, que passaria por várias mudanças em sua trajetória, mas
nunca perdendo sua essência.
Por
dentro do “Rap de Elza”
E para encerrar seu show
e DVD, Elza traz a sua versão do “Rap da felicidade”, com uma “citação musical”, uma espécie de abertura que se faz
antes da faixa principal, onde um cantor geralmente cita outra canção com a
qual ele pensa estabelecer um diálogo (o que aqui realmente se dá), pois a
citação escolhida é a cantiga popular “Se essa rua fosse minha”, com uma letra repleta
de metáforas que estabelecem uma conexão fortíssima com o “Rap da felicidade”.
Apreciemos um trecho da cantiga[16]:
Se essa rua Se essa rua fosse minha Eu mandava Eu mandava ladrilhar Com pedrinhas Com pedrinhas de brilhante Para o meu Para o meu amor passar (Cantiga popular)
É notável neste trecho
apreciado uma certa melancolia, há na simplicidade de uma canção infantil um
gesto muito mais simbólico que o simples arranjo que antecede a canção
apresentada por Elza; se ligada ao “Rap da felicidade”, uma simples cantiga
popular pode dizer mais que as simples palavras ali expressas.
A citação musical faz uma
síntese de tudo que já foi visto no show anteriormente, os personagens citados
nas canções, o sofrimento das mulheres e o lamento das mães solteiras, o
caminhar de cada morador na singularidade, não só dos seus problemas, mas na
coletividade, já que todos que passam por esses problemas encontram um ponto em
comum: a rua, essa rua, a rua que pode ser de cada um. E não é difícil repensar
a realidade de uma favela carioca quando lemos sobre elas diariamente nos
jornais. Claro que muitos têm um olhar de fora, do espectador, não de quem
mora, mas com um mínimo de empatia, há que se ter uma mínima noção, uma vez que
nem todos moram nas favelas e nem todos as frequentam, muitas vezes por medo. E
mesmo com essa luz que a mídia lança sobre essas comunidades, mostrando a
violência ou muitas vezes um recorte que interessa ser mostrado, remarcar que
cada um tem o seu ideal de lugar de onde vem e o seu pertencimento, uma particularidade
que une o indivíduo àquele lugar, e, mais uma vez, a rua é o ponto comum que
une a todos.
Insisto nisto, na ideia
de que a RUA aqui é decisiva para entender o desfecho do show, direcionando o
pensamento a dois casos específicos do retrato das favelas do Rio de Janeiro, apontando
sua relação com a rua. O primeiro, de Marcos Vinicius Silva, morto durante um
confronto entre policiais e traficantes no conjunto de favelas da Maré[17],
quando o menino ia para a escola. A criança foi baleada na rua. Em entrevista à impressa, a mãe declarou[18]:
Quando cheguei na UPA ele estava com vida. Ele falou ‘mãe eu sei quem atirou em mim, eu vi quem atirou em mim’. Eu falei ‘meu filho, quem foi que atirou em você?’. ‘Foi o blindado, mãe. Ele não me viu com a roupa de escola” (Trecho da entrevista de Bruna da Silva, mãe de Marcos Vinícius, concedida ao G1).
O segundo caso é a imagem,
capa de diversos jornais no Brasil e no mundo, que chocou ao mostrar crianças
vendando crianças mais novas, ao passarem por corpos mutilados e ensanguentados
pelo chão, em uma rua na favela da Rocinha[19].
Essas narrativas trágicas têm como pano de fundo a rua, que é um lugar de convívio, de passagem, mas que traz
consigo uma tragédia particular, um sentimento de revolta, de dor, particular
de cada um.
Por essa razão, os versos
“Eu só quero é ser feliz, andar tranquilamente na favela onde eu nasci”, precisavam
aqui, expostos por uma mulher negra que sofreu na favela, ser antecedidos pela
simples citação musical de “Se essa rua fosse minha”. Mas, e se realmente ela
fosse, será que a mãe de Marcos teria o filho nela baleado, uniformizado a
caminho da escola? Será que as mães e os pais de cada uma daquelas crianças que
passaram por aqueles corpos ensanguentados não gostariam que nela seus filhos
tivessem que caminhar por outras ruas que não fossem aquelas com marcas de
morte, da violência e de sangue? Elza dá a cada um o poder de ter a rua, de se
apropriar dela, para que dela façam um caminho melhor por onde possam passar.
Quando Elza gravou o DVD Beba-me, em 2007, já se tinha um
panorama da violência, que só cresceu desde então, e do descaso com as comunidades
cariocas. Já se tinha um retrato triste do que era a vida em uma comunidade,
mas a imortalidade da obra é tão emblemática que, em 2018, 11 anos depois da
gravação, a canção e as reflexões sobre todas as escolhas são tão simbólicas e
tão comunicativas, que a intencionalidade ao ser produzida parece ter a vontade
de se comunicar com um público específico, o que realmente quer “ter a
consciência que o pobre tem seu lugar”.
Ela traz luz à ideia da
rua e cria uma noção de diálogo dessa mesma rua, que pode ser de qualquer um,
para não ser lugar de tragédia, com os movimentos da música, trazidos pelos
verbos de ação. Quando a canção evoca o verbo de primeira conjugação “andar”, o
sujeito da canção anda por essa rua, que se fosse dele, mandaria ladrilhar de
brilhantes, apagando assim as marcas de sangue de inocentes que sequer têm seus
nomes conhecidos, dos Marcos Vinicius da vida, que morrem todos os dias a
caminho da escola, a caminho do futebol com os amigos. De Amarildo que não tem
corpo, que não tem o lugar físico da memória do homem que deixou a família; de
Marielle e de Anderson, que têm seus corpos atravessados por tiros, um caso
ainda sem solução.[20]
Trazer essa canção com
esse arranjo é mais que um manifesto, é a própria Elza que aqui é o subalterno
que tem fala, é aquela que fala por uma realidade que é sua, a do medo, da dor,
de quem mora na favela, que é desrespeitado, que pede paz, pede justiça, que
não aceita mais que sua carne seja a mais barata, que não quer mais seu corpo
tratado como objeto. Aqui temos um fim anunciado da missão desse show: fazer
descer goela abaixo a hipocrisia e a intolerância que por anos criticaram essa
mulher, a realidade e o lugar de onde ela vem, que ela quer cantar, que ela
suplica que mude. É Elza por Elza manifestando por um povo, seu povo, o povo
negro, favelado, sofredor.
O
lugar teórico de Beba-me e a
singularidade do “Rap de Elza”
Para além do que já foi
dito, há também para se pensar uma memória de Elza na narrativa desse DVD, não
a memória vista, mas uma memória no imaginário. Reflito junto a Hugo Achugar,
em seus “Planetas sem boca”, na memória imaterial:
Refiro-me ao lugar teórico a partir de onde se fala, que está configurado, entre muitos outros elementos, pela memória. Uma memória que é local ainda que atravessada pelo nacional, o regional e o internacional. Ou seja, falo a partir de um lugar contaminado pela memória e povoado de monumentos que nem sempre têm a materialidade do mármore, do bronze ou da escrita (Achugar, 2006, p. 179).
Ora, ao pensar acerca disso
em um dos ensaios que compõem os “planetas sem boca”, Achugar nos mostra a
perspectiva de fala a partir de um lugar que existe apenas na memória, que, ou
nunca existiu ou deixou de existir. É muito lúdico pensar que é isso que Elza
faz quando refletimos que cada personagem cantado ao logo das 22 faixas
representa uma parte do conturbado cotidiano de Elza na favela Moça Bonita.
Local do qual Elza fala, e nos fala, nesse DVD. Mas principalmente é pensar em
um lugar que agora fica apenas no imaginário de Elza, já que, para além da
configuração do espaço e do tempo serem diferentes, a favela agora possui outro
nome. E parece pouco possuir apenas outro nome, mesmo que o lugar fosse o
mesmo, mas o nome é a primeira parte da nossa construção de identidade, e é
assim que vemos Elza, a mulher de Moça Bonita. Ao receber outro nome, além de
ser outra favela, da demanda de tempo que os moradores levam para se adequar ao
novo nome, a nova identidade, que muitas vezes muitos renegam. Como o caso dos
moradores da Vila do João, que tiveram os nomes de suas ruas trocadas pelo
então prefeito da cidade do Rio de Janeiro[21],
Marcelo Crivella, que, em 2017, seu primeiro ano de mandato, trocou o nome das ruas
da comunidade por nomes que sequer a população conhecia. Nome é emblemático, é
uma marca, a primeira construção de identidade. A troca do nome da favela de
Moça Bonita, leva as memórias de Elza de um lugar material para apenas o lugar
memorial que habitam em seu pensamento.
Por
um reflexivo desejo: poder se orgulhar
Com tantos pensamentos em
diálogo não só com a realidade de 2007, mas com o atual cenário que vivemos em
2018, é categórico afirmar que Elza Soares manifesta toda sua vida e suas memórias
de vivência na favela nesse show. Aqui ela saltará de um hiato que dura de 2007
a 2015 para uma grande voz das discussões contemporâneas, do pensamento das
mulheres, voz de denúncia que fala por si e por milhares como ela.
A narrativa performática
que se desenha no show resgata não só a sua carreira, mas reinventa a Elza que já
era aclamada, consolidando-a como a grande artista que ela é, mas também revela
diante do público sua vida forte e estilhaçada por uma trajetória em condições
mínimas.
Elza Soares afirma nesse
DVD sua negritude, seu grito de resistência, de luta, de força e de garra como
mulher negra, representante cultural, como voz subalterna de outras subalternas
que precisam ter luz jogada sobre suas dores. Ela é essa luz, e mostra com graça,
leveza, sutileza e um charme em cada detalhe do show, desde a simples
cenografia à singularidade de seu figurino, uma realidade que muitas vezes é
jogada para debaixo do tapete, que passa despercebida no cotidiano de pessoas
que não vivem naquele lugar que é a favela. Ela reafirma que é preciso ter
consciência de classe, reconhecer-se pertencente àquele lugar, orgulhar-se e
lutar para ter orgulho dele.
Finaliza o show saudando
a Mocidade, sua escola de samba do coração, e a mocidade, a juventude, a esperança dessa luta, semente que aqui ela
planta e cujos frutos vemos hoje, seja os que ela plantou, seja de outras
mulheres que vêm da mesma luta que ela, mas que são os frutos do progresso.
Enaltecer é preciso. Assim,
deixa-se ao fim não o final definitivo, mas ao fim desta página um salve a
todas as mulheres negras, cis e trans que lutam todos os dias por
sobrevivência, por um mundo mais justo e que muito me enchem de orgulho. Salve
a arte, viva a Favela, evoé Elza, Elza de Moça Bonita Soares.
Vanubia Close,
No 29° dia do mês de setembro do ano de 2018,
O dia em que o Brasil uniu forças e disse #EleNão
(E que essa escrita tenha sido lida por você, em um Brasil onde o ódio não venceu).
Samile Cunha,
No 10° dia do mês de dezembro do ano de 2018,
Ele venceu, mas nós resistiremos,
pois “Vai sair, de dentro de cada um, a Mulher vai sair”.
*
Heterônimo in persona de Artur Vinicius A. Santos. Vanubia Close é travesti, ativista
política de direitos LGBT, escritora, dançarina, psicóloga das ruas, leitora
assídua, amante de músicas populares como samba e funk. Esta criação parte de
uma série de recortes e referências de Artur em um processo de antropofagia que
resulta em Vanubia, este ser que se apresenta como pessoa e divide a identidade
com o próprio citado e leva as ruas à academia e a academia às ruas.
**
Samile Cunha é a persona que Samuel Abrantes, professor doutor da
Escola de Belas Artes da UFRJ assume. Samile nasce como Dalva Garça Dourada, em
uma brincadeira para o Carnaval de 2004 da G.R.E.S. São Clemente, no enredo
“Boi Voador sobre o Recife – Cordel da Galhofa Nacional”, interpretando uma
chacrete, a convite do então carnavalesco da Escola Milton Cunha. Dois anos
mais tarde adota o nome de Samile e o sobrenome Cunha em homenagem a Milton. Assim,
Samile desfila em diversas escolas todos os anos e toma a academia quando, em
2014, Samuel lança o livro Transconexões,
memória e heterodoxia, no qual faz um resgate biográfico de Samile. Desde
então, apenas Samile é convidada à academia, o que faz da Travesti do Samba,
uma intelectual.
Referências
ACHUGAR, Hugo. Planetas sem boca: escritos efêmeros sobre
arte, cultura e literatura. Tradução de Lyslei Nascimento. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2006.
BHABHA,
Homi K. O local da cultura [1949]. Tradução
de Myriam Ávila, Eliana Lourenço Reis, Gláucia Renate Gonçalves. 2ª ed. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2013.
CARNEIRO,
Sueli.Enegrecer o feminismo: a
situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de
gênero. In: ASHOKA EMPREENDEDORES
SOCIAIS; TAKANO CIDADANIA (Orgs.). Racismos
contemporâneos. Rio de Janeiro: Takano Editora, 2003.
DAVIS, Angela. Mulheres, cultura e política [1994]. Tradução
de Heci Regina Candiani. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, 2017.
RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte:
Letramento; Justificando, 2017.
SPIVAK, Gayatri
Chakravotry. Pode o subalterno falar?
[1942]. Tradução de Sandra Regina Goulart Almeida, Marcos Pereira Feitosa e
André Pereira Feitosa. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
Beba-me (CD)
– Elza Soares: Gravadora Biscoito Fino; gravado em março de 2007 no Sesc Vila
Mariana (SP) em parceria com o Canal Brasil. Tiragem AB2500. 15 Faixas.
Beba-me
(DVD) – Elza Soares: Gravadora Biscoito Fino; gravado em março de 2007 no Sesc
Vila Mariana (SP) em parceria com o Canal Brasil. Tiragem AA3500. 22 Faixas.
Documentário – O Gingado da Nega – Canal Bis: Exibido
em 07 jan 2014.
[1] Frase dita por Vanubia Close
(heterônimo in persona), durante a
apresentação do trabalho “O som de Preto que conquistou o mundo: a antropofagia
da favela nas letras e no baile funk” no I Minervacon: Encontro de Estudos
Interdisciplinares de Linguagens, Mídia e a Cultura Pop, realizado no dia 06 de
junho de 2018 na Faculdade de Letras da UFRJ na Ilha do Fundão.
[2]Este que é apontado por Sueli Carneiro no artigo “A situação da mulher
negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero”.
[3] Quando Elza Soares e Garrincha
começaram seu relacionamento ele ainda era casado com sua ex-mulher e Elza
estava em seu início de carreira. Muitos da mídia mais conservadora a apontavam
como “destruidora de lares”.
[4] Lançado em 11 de agosto de 2015
como primeiro single do álbum A mulher do fim do mundo.
[5] Lançado em 3 de outubro de 2015
pelo selo Circus Produções, com 11 canções.
[6] GRES Paraíso do Tuiuti é uma
agremiação do Rio de Janeiro que desfilou em 2018 pelo Grupo Especial das
Escolas de Samba com o enredo “Meu Deus, meu Deus, está extinta a escravidão?”.
A escola arrebatou a Marquês de Sapucaí em um desfile comovente que lembrava a
escravidão chegando até a reforma trabalhista. Com isso, ela que era cotada
para ser rebaixada, já que a agremiação com menor pontuação desfila no ano
seguindo em um grupo inferior, alcançou o 2° lugar da classificação geral.
[7] Alusão a um trecho do “Rap da felicidade”
que diz: “Eu só quero é ser feliz”.
[10] Refiro-me aqui, em apenas uma
frase, a todo um caminho refletido por Achille Mbembe em seu Crítica da razão negra.
[11] Na presente data de revisão deste
artigo, aos 10 dias do mês de dezembro de 2018, o crime ainda não havia tido
solução. Nesta mesma data, Marielle Franco foi homenageada na ALERJ com a
medalha Tiradentes, recebida pelas mãos de seu pai, no dia dos Direitos
Humanos.
Resumo: Mano
Brown é uma das referências centrais para a música popular brasileira nas
últimas décadas, especialmente através das suas canções com o grupo Racionais
MCs. A excelência e o nível de inventividade formal da sua poética o coloca na
condição de um dos principais poetas da canção brasileira, talvez o último dos
grandes mestres da composição em canção popular.
Palavras-chave: Música; invenção; poesia.
Abstract: Mano Brown is one of the
central references for Brazilian popular music in the last decades, especially
through his songs with the group Racionais MCs. The excellence and level of
formal inventiveness of his poetry puts him in the condition of one of the main
poets of the Brazilian song, perhaps the last of the great masters of the
composition in popular song.
Keywords: Music; invention; poetry.
Mano
Brown é, certamente, um dos artistas mais importantes da música popular
brasileira em todos os tempos. E não só. A sua inteligência poética o coloca na
condição de um pensador da cultura, aquele que aponta balizas, orienta o
caminho, persuade, redimensiona o debate público, através de entrevistas ou
mesmo falas em meio aos shows. Ele ocupa hoje um papel análogo ao de artistas
da canção como Tom Jobim, Caetano Veloso, Chico Buarque, Milton Nascimento,
Raul Seixas e, numa dimensão menor, Cazuza, Renato Russo e Chico Science. Mano
Brown é um artista que criou uma linhagem própria na música popular brasileira,
no mesmo nível dos nossos maiores artistas e pensadores da cultura. O fato de
ser oriundo das classes trabalhadoras precarizadas, diferentemente de todos
estes artistas, diz muito da sua importância histórica, ao lado da excelência
da sua obra artística. Nela, há um senso de totalidade e não de fragmentação.
Não se trata de uma perspectiva específica, associada a uma realidade
específica, como erroneamente é apresentada em muitas análises, mas de um olhar
artístico e crítico totalizante, do lugar do Brasil no espírito do mundo e do
espírito do mundo para além do Brasil, tendo a arte – com sua autonomia
relativa em relação à sociedade e à política – como mediadora complexa, através
de um refinado trabalho estético-formal.
*
O
pensamento acompanha a poesia da canção. Ambos potentes e afiados. A maturidade
poética e a forma complexa e lúcida com que delineia a relação entre estética e
política vem desde o primeiro momento, ainda nas primeiras canções e
entrevistas. Holocausto urbano, o
primeiro álbum do Racionais Mcs, já era radicalmente inovador dentro do
ambiente da canção popular de início da década de 1990, com o ocaso das bandas
do chamado “Rock Nacional” e do movimento punk e pós-punk; a emersão de novas
movimentações profundas da música popular brasileira com o advento da
axé-music; a nacionalização da música sertaneja; o fenômeno dos grupos de
pagode romântico e o desenvolvimento ainda regional do funk carioca. O Hip Hop
brasileiro nasce neste contexto. Sua complexidade e força derivam daí. Os
álbuns posteriores, Escolha seu caminho
(1992), Raio X do Brasil (1993), Sobrevivendo no inferno (1997), Nada como um dia após um outro dia
(2002) e Cores e valores (2014),
deram sempre um passo à frente no contexto poético e musical em que foram
lançados. A relação com a MPB dos artistas de classe média da década de 1960 é
apenas lateral e só posteriormente vem gerar algumas sugestões de aproximações,
com o muito culto Criolo. Em outras palavras, o mais importante da sua grande
obra é a relação com um processo histórico e social associado a um contexto em
que a inteligência e a vitalidade da música popular brasileira se deslocam para
a criação feita pela e para as classes trabalhadoras precarizadas. Ela não é
devedora, nem deriva, em nenhum aspecto, das grandes obras e movimentações
culturais da classe média da década de 1960, porque abre uma nova fenda, como
um clarão, complexo, denso, vigoroso, consistente, cuja potência e força
artística começa a ser medida e pensada. E também cria grandes obras, como a do
Racionais MCs, de KL Jay, Edy Rock, Ice Blue e Mano Brown.
*
Sobrevivendo no inferno é um clássico e representa a maturação
estético-formal de uma ruptura ainda sem precedentes na história recente da música
popular feita no Brasil. Representa aqueles momentos em que a arte feita no
Brasil concentra as tensões formais, sociais e políticas do momento, e consegue
ser, pelo alcance artístico, atemporais. O espanto diante da audição de Sobrevivendo no inferno dentro da sua
obra só é comparável à audição de Cores e
Valores, a misteriosa suíte poético-sonora lançada em 2014. Entre os dois
álbuns, algumas das melhores canções feitas em língua portuguesa, como
“Racistas otários” e “Pânico na zona sul” (Holocausto
urbano, 1990) “Homem na estrada”, “Fim de semana no parque” e “Mano na
porta do bar” (Raio X do Brasil), “Capítulo
4 versículo 3”, “Fórmula mágica da paz”, “Diário de um detento” (Sobrevivendo no inferno, 1997), “Jesus
chorou”, “Vida Loka II”, “Eu sou 157”, “Da ponte pra cá” e “Negro drama” (Nada como um dia após um outro dia,
2002). E, em alguma área imprecisa, “Mil Faces de um homem-leal” (Carlos
Mariguela) (2012) – mediadora entre a extensão narrativa complexa de “To
ouvindo alguém me chamar” (Sobrevivendo
no inferno, 1997) e as experimentações de síntese em “Finado Neguin” (Cores e valores, 2014).
A
capa de Cores e valores é pedra bruta.
A arte é terrível, cruel e difícil. A imagem de símbolos que remetem ao modo
como filmes de terror fazem parte do imaginário cultural popular; a figura do
palhaço que se parece aqui com um sátiro zombeteiro de algum lugar perdido nas
ilhas de Samos, Lesbos, imerso ainda num caos originário de pulsão difusa e
potência ameaçadora, na aurora da razão; a roupa de gari; a metáfora do assalto
que se relaciona com a mesma imagem do clipe da obra-prima “Mil faces de
um homem leal”, no qual o Racionais MCs, ao lado do imenso Dexter, tomam
de assalto a rádio nacional (a música popular brasileira) para cantar uma
poesia afiada, pesada e estranha, com inteligência formal e capacidade de fazer
soar o som de palavras e sílabas recheadas de vertigens e quebras súbitas de
sentido. “Mil faces de um homem leal” é uma canção que vale por muitos discos
de canção.
*
O
labirinto de figuras de linguagem atravessa e molda as canções de Mano Brown. O
domínio formal é impecável e profundamente inventivo. A poesia que chega ao
coração da linguagem e nasce do espaço impreciso do som das palavras que ainda
não ganharam sentido, que ainda não se embrenharam na trama do significado. O
labirinto das formas chama para a decifração do enigma que nunca se apresenta
na sua totalidade. O som das palavras, a junção entre som e sentido, a palavra
como canção, a música das esferas. A aproximação do enigma. Cola-se a boca na
borda do Ser.
*
Uma
obra de depuração formal da linguagem da canção. Depuração que exige um
trabalho permanente, como a confecção demorada de um belo afresco, com suas
delicadezas não reveladas explicitamente, que exigem do apreciador o tempo da
percepção, da contemplação, da audição repetida, extensa, que vai fazendo
aparecer camadas de sentido, tramas sonoras, jogos entre palavras e sílabas,
movimentações lancinantes do som em intervalos mínimos de silêncio. Da
lapidação sonora e orientação clara da narrativa em “Homem na estrada” para a
explosão de narrativas dispersas que se agrupam como estilhaços, sem uma ordem
prévia, nem um molde claro, de “Finado Neguin”, a sua obra vai se constituindo
fibra a fibra, de ponta a ponta. “Amor distante” e “Boa noite SP”, já sob uma
ambiência sonora mais orgânica, misturam ordenações narrativas extensas com
variações dispersas de palavras e sons.
*
Além
do contexto e da estrutura formal, é interessante delimitar também o quadro de referência
cultural e artístico do Racionais Mcs e de Mano Brown. Ele é bem diferente do
quadro de referência dos artistas da MPB culta da década de 1960. Os principais
artistas, intelectuais e lideranças políticas são outros como Malcolm X, Mariguela, 2Pac, Jorge Ben, Guilherme Arantes,
Spike Lee, Tim Maia, Arlindo Cruz, Cassiano, geram uma nova ambiência estética,
cuja força vem de um outro lugar e é nela que reside a sua sofisticação,
complexidade, densidade, inteligência e potência. Ela criou uma linhagem
própria, com seus mitos, suas legendas e selecionou, de forma consciente, as
suas afinidades eletivas.
*
Como
artista-pensador Mano Brown também se aproxima de pensadores do Brasil, ou
melhor, da sociedade brasileira na sua dimensão concreta, imanente,
terra-a-terra. Há na sua poética e nas entrevistas que vêm fazendo
constantemente uma preocupação e um senso de responsabilidade sobre o destino
do país, em especial, das classes trabalhadoras precarizadas. Longe do
universalismo postiço da pequena-burguesia culta, que se acredita detentora de
um ethos universal, Mano Brown traz
para o campo do pensamento crítico uma outra dimensão, mais complexa e real.
Não há mistificação pequeno-burguesa. Não há esteticismo superficial, tentando
se passar por alta cultura de vanguarda. Há um pensamento afiado que enovela
afirmações e negações, e não nega a dúvida.
*
A
música popular brasileira bambeia, desde que a canção é canção, entre dois polos.
O primeiro é o da contradição sem conflitos, que resulta numa lógica de
conciliação de classes; o segundo é o da explicitação dos conflitos, que conduz
a uma negação de qualquer forma de conciliação, abre uma fenda e traz à tona
singularidades inconciliáveis. A canção e o pensamento de Mano Brown estão no
segundo polo. E avançam, arrastando o primeiro. Boogie Naipe, seu álbum solo, é a ponte que sintetiza
provisoriamente os dois polos. Cores e valores
abre um novo caminho, radicalmente experimental, com sílabas quebradas, traços
sonoros, vozes anônimas, como sátiros delirantes vagando no crepúsculo do
Ocidente. As figurações que se constroem na sua poética em geral são
ameaçadoras e indefinidas, de feições nietzschianas: “Talvez eu seja um sádico,
anjo ou mágico, juiz ou réu, um bandido do céu, malandro ou otário, padre sanguinário,
franco atirador se for necessário, revolucionário, insano, ou marginal, antigo
e moderno, imortal, fronteira do céu com inferno.”
*
Na
origem não era o samba. Na origem era a multiplicidade de gêneros e subgêneros.
Não há linha evolutiva, nunca houve. Há linhagens paralelas que, ora convergem
entre si, ora divergem radicalmente. Quando divergem, se sobrepõem. Quando
convergem animam modulações. O tropicalismo foi uma procura por convergência,
com um centro balizador: o próprio tropicalismo. Transformou-se rapidamente num
parâmetro a um só tempo importante, inevitável, mas também profundamente
dogmático e datado. O Clube da Esquina realizou a divergência como convergência
e, por isso, superou o tropicalismo. Belchior trouxe à canção mais inventiva a
materialidade e a beleza de veludo da vida real, muito além dos delírios e
virtuosismos autorreferentes das vanguardas pequeno-burguesas. O rapaz
latino-americano da sua canção é o mesmo da canção “Capítulo 4 versículo 3”: Sons, palavras são navalhas.ALira paulistana foi uma afirmação da divergência radical, por isso gerou
inovações formais profundas e abriu uma fenda. Clara Crocodilo e Black Navalha
descendo a ladeira da memória até o vale do anhangabaú. O Hip Hop do Racionais
MCs ampliou essa fenda.
*
Existe
uma fortuna crítica sobre os Racionas Mcs. Um tanto irregular, com certas
exceções. Entre elas, podemos destacar aqui o trabalho de Walter Garcia e de
Francisco Bosco. No primeiro, a canção do Racionais representa não só um apuro
formal com o uso complexo de figuras de linguagem, como na alta poesia, ou a intenção
de apresentar uma perspectiva política, social e estético-formal do jovem negro
das periferias; mas sobretudo uma visão estruturante da violência – em diversos
níveis – como expressão da sociedade brasileira, com alto nível de
reflexividade e articulação, e a capacidade de aliar tema e expressão. No
segundo, o caminho é praticamente o mesmo: o Racionais representa o último
grande acontecimento da cultura brasileira na medida em que expressa a voz de
trovão anticordial que coloca no primeiro plano da sua sofisticada poética a
negatividade da experiência estética e política da sociedade brasileira.
*
Marcos Lacerda é doutor em
Sociologia, foi diretor do Centro de Música da Funarte e publicou em livro o
volume de “Música” da coleção Ensaios brasileiros
contemporâneos, uma antologia com alguns dos melhores ensaios sobre canção
e música no Brasil, com autores como Roberto Schwarz, José Miguel Wisnik, Luiz
Tatit e Cacá Machado, entre outros.
Referências
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Francisco. A voz e a música do Racionais MCS. Revista Cult: Dossiê 25 anos de Racionais MCs. No 192, 2014.
GARCIA,
Walter. “Ouvindo Racionais MC’s”. Teresa,
revista de Literatura Brasileira. No 4/5. São Paulo, 2004. p. 166-180.
GARCIA,
Walter. “Diário de um detento’: uma interpretação”. In: NESTROVSKI, A. (org). Lendo música. São Paulo: Publifolha,
2007. p. 179-216.
GARCIA,
Walter. “Elementos para a crítica da estética do Racionais
MC’S (1990-2006)”. Ideias, 7, 2013, p. 81-110.
KEHL,
Maria Rita. “A fratria órfã: o esforço civilizatório do rap na periferia de São
Paulo”. In: KEHL. M. R. (org.). Função
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KEHL,
Maria Rita. “O lamento de Mano Brown”. Reportagem.
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Teperman, Ricardo. Se liga no som:
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ZENI,
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Paulo, 2004. p. 225 241.
Referências
discográficas
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urbano. São Paulo: Zimbabwe, 1990.
Racionais MC’s. Escolha
seu caminho. São Paulo: Zimbabwe, 1992.
Racionais MC’s. Raio-X
do Brasil. São Paulo: Zimbabwe, 1993.
Racionais MC’s. Sobrevivendo
no inferno. São Paulo: Cosa Nostra, 1997.
Racionais MC’s. Nada
como um dia após outro dia. São Paulo: Cosa Nostra, 2002.
Racionais MC’s. Cores
e valores. São Paulo: Cosa Nostra / Boogie Naipe / X-File Records, 2014.
Resumo: O
objetivo deste trabalho é problematizar parte do pensamento crítico contemporâneo
que tende a qualificar como falsa qualquer narrativa em que haja um
procedimento de síntese histórica. A partir
de um mergulho empírico no clássico de Lima Barreto Triste fim de Policarpo Quaresma e da investigação de meu objeto
primordial de estudo, que é a Música Popular Brasileira, procuro demonstrar que
tal procedimento – quando exercido de modo pouco rigoroso – serve aos que negam
o valor cultural das especificidades do desenvolvimento histórico brasileiro,
em prol de um pretenso “alto saber universal”. Narrativas não são mentiras; são
produção de discursos simbólicos que, quando verdadeiramente amparados em
processos sociais legítimos, constroem o peso de um passado real com o qual temos
de aprender a lidar.
Palavras-chave: Narrativas;
música Popular Brasileira; Lima Barreto; canção; tradição.
Abstract: The
objective of this work is to problematize part of the contemporary critical
thinking that tends to qualify as false any narrative in which there is a
procedure of historical synthesis. From
an empirical digging into the classic of the Brazilian writer Lima Barreto Triste Fim de Policarpo Quaresma and the
investigation of my primary object of study, which is the Brazilian popular
music, I try to demonstrate that this procedure – when exercised in a very
strict way – serves just to encourage those who deny the cultural value of the
specificities of Brazilian historical development, in favor of an alleged
“high universal knowledge”. Narratives are not lies. They are the
production of symbolic discourses that, when truly supported in legitimate
social processes, build the weight of a real past which we must learn to cope.
Keywords: Narratives;
Brazilian popular music; Lima Barreto; songs; tradition.
A tentativa de implantação da cultura europeia em extenso território, dotado de condições naturais, se não adversas, largamente estranhas à sua tradição milenar, é, nas origens da sociedade brasileira, o fato dominante e mais rico em consequências. Trazendo de países distantes nossas formas de convívio, nossas instituições, nossas ideias, e timbrando em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra. Podemos construir obras excelentes, enriquecer nossa humanidade de aspectos novos e imprevistos, elevar à perfeição o tipo de civilização que representamos: o certo é que todo o fruto de nosso trabalho ou de nossa preguiça parece participar de um sistema de evolução próprio de outro clima e de outra paisagem.
(Sergio Buarque de Holanda)
Léguas
de ser um projeto que eleve à perfeição o tipo de civilização que representamos
(se é que representamos alguma fora esta), o processo de desenvolvimento da
música popular no Brasil – sobretudo aquele que gira em torno à estranha
amálgama a que chamamos canção – provavelmente foi o mais próximo que
conseguimos chegar no campo da cultura – ao menos no século XX – de uma “contribuição
original”, como diria Caetano Veloso, que enriqueça nossa humanidade de aspectos
novos e imprevistos. Embora cada vez menos, apesar da dor, eu vislumbre uma
trilha clara para o meu Brasil, tampouco creio que, por causa disso, “devamos
tapar o próprio sol com uma peneira rasgada” desconstruindo, seja por vaidade
intelectual, seja por necessidade de marcarmos nosso espaço no campo das reflexões
críticas, o fato de que a canção no Brasil foi, senão a melhor, uma das
melhores, mais contínuas e mais sólidas construções artísticas que conseguimos
levar a cabo até hoje, no país.
Se
fosse apenas isso, já estaria bom, mas não é. A música popular, seu entorno e
seu processo histórico, sobretudo seu desenvolvimento dentro das engrenagens
industriais do século XX, pode nos ajudar a entender, um pouco melhor, questões
referentes à sociedade brasileira, às formas como interagimos uns com os outros
e com as estruturas institucionais, assim como nossas potências, aspirações e
fraquezas. Do mesmo modo, a derrocada mercadológica gradativa, intensificada na
transição do século XX para o XXI, de um braço da canção – em alguns momentos
dominante, todavia sempre presente – que se enxergava (ou melhor, se escutava)
como linguagem artística questionadora, sociológica, experimental (sem abrir
mão dos privilégios de produto de massa) também é documento vivo para
refletirmos sobre o século XXI e a crise dos processos conciliatórios via
social democracia que, de forma tácita, sempre pairou sobre as cabeças
criadoras e criativas dos artífices da cultura brasileira.
Sei
que muitas direções poderiam ser tomadas para refletirmos sobre nós mesmos
utilizando como lente a música popular, contudo me aterei especialmente à observação
privilegiada de um aspecto que me interessa sobremaneira: as disputas
narrativas por um protagonismo simbólico de “representação do nacional”,
presente em nossa canção desde antes da fixação do rádio como meio de
comunicação de massas. Sem entrar no mérito de qual narrativa possui
legitimidade e qual não, quero demonstrar tão somente que esta disputa vem de
priscas eras e só abandona a canção em fins do século passado, quando a própria
ideia de nacional é violentamente recalcada e reprimida na consciência social
coletiva, vindo a tornar-se potência latente no imaginário político, que a
ativa e a faz retornar nos tempos atuais sob a égide de preceitos morais
extremamente duvidosos.
Assim
– ora identificada com regimes autoritários, ora identificada com a resistência
e a liberdade de existir enquanto especificidade cultural – a luta pela imagem
de símbolo cultural representativo da identidade brasileira (com tudo que isso
apresenta de problemático) já é debatida na música popular muito antes da
proposição de Sérgio Buarque de Holanda a respeito de uma inadequação entre
aquilo que “nas origens da sociedade brasileira” programaticamente aspirávamos a
ser e as possibilidades reais, materiais, geográficas daquilo que, de fato,
poderíamos ser.
Em
Triste fim de Policarpo Quaresma,
Lima Barreto nos dá a prova cabal dessa imbricação entre construção da
identidade nacional e música popular, viva desde os primórdios da República.
Materializada na figura do compositor, cantor e violonista Ricardo Coração dos
Outros, personagem documentadamente inspirado no consagrado artista Catulo da
Paixão Cearense, as virtudes e contradições de um projeto cultural aos moldes
do que mais tarde virá a ser conhecido como nacional-popular são habilmente
exploradas pelo escritor, num movimento pendular que inclina-se tanto para o
lado de desqualificar a empreitada de Ricardo (problematizando-a quase a ponto
de torná-la ridícula), quanto se deixando enredar pelo charme e afeto do
músico-artífice (quase a ponto de se deixar cooptar).
No
livro de Lima, Coração-dos-Outros é um artista absolutamente apaixonado pelo
gênero denominado “Modinha”. O estilo musical, que mobiliza por inteiro a força
de seus afetos, impulsiona-o rumo a um ideal claro e transparente: dar forma à
alma brasileira ou, nas palavras do Major Policarpo, refletir “a mais genuína
expressão da poesia nacional”. Sarcasmos
à parte, não cairei neste artigo na tentação de repetir a operação que – com
muito mais perícia e carinho do que a imensa maioria de trabalhos sobre este
livro que já me deparei em minhas leituras – o escritor levou a termo: a
denúncia do quanto de histriônico existe no recorte do nacional; do tanto de
voluntarismo presente no desejo de apontar o autóctone; ou da falta de
critérios para julgarmos quando um processo histórico pode definir a
solidificação de manifestações artísticas sempre moventes. Prefiro, em vez
disso, focar minha atenção na investigação dos processos sociais que legitimam
tais narrativas, nas estratégias discursivas que as sustentam e nos argumentos
de ordem estética que fundamentam tais escolhas.
Portanto,
ao invés de me colocar em contrapelo a essa ou àquela narrativa, desejo
investigar de que modo acontecem esses recortes, pois acredito que, boa parte
das vezes, dentro do contexto histórico da música popular e da canção, não foi
apenas por veleidade oportunista de um punhado de “formadores de opinião” que
as narrativas culturais nasceram, cresceram e ganharam fôlego. A bem da verdade,
muitas das narrativas sedimentadas na descrição histórica da música popular
(por exemplo: a que coloca o choro como uma das matrizes fundadoras da música
popular brasileira ou atribui ao samba a capacidade de “encarnar” o Brasil
urbano-popular) recuperam processos históricos reais, profundos e legítimos,
cuja deslegitimação, embora em um primeiro momento possa ter parecido
democratizante, quando não vem acompanhada de rigor histórico, serve apenas
para emprestar fôlego a um elã universalizante e conservador, para quem toda
especificidade do desenvolvimento cultural e artístico do Brasil não passaria
de um delírio sociológico (ou pior, um recorte folclorista), cujo objetivo
precípuo seria, em última análise, disfarçar nossa suposta mediocridade perante
o concerto das nações.
Obviamente,
não estou sustentando aqui que qualquer revisão histórica está eivada de
intenções imperialistas (ou fascistas), mas afirmo sim que o revisionismo
histórico baseado somente em voluntarismos, opiniões de gosto ou em um desejo
mal disfarçado de criar um contracampo no qual o acadêmico contracampista assoma-se
como figura de relevo serve aos piores interesses daqueles que, diferentemente
de Sérgio Buarque de Holanda, parecem somente desejar “participar de um sistema
de evolução próprio de outro clima e de outra paisagem”. Dito de outro modo, o
que defendo sem tergiversação é que o ato de denunciar as arbitrariedades de
tais narrativas sem apontar suas fragilidades – escorando-se tão somente no
fato de tais narrativas haverem sido inventadas, como se alguma narrativa
fundadora aqui ou em alhures não fosse uma construção social – é uma forma
farsesca de transformar em mentira algo que, na medida do truísmo humano
(baseado em evidências históricas impossíveis de serem provadas
cientificamente), mostra-se verdadeiro. O que ocorre na realidade é que muitos
dos acontecimentos históricos que se fixaram como narrativa na música popular brasileira
não pagam tributo a uma operação metafísica que possa ser explicada pela
remissão abstrata a algum marco fundador universal (como acontece em inúmeros
discursos filosóficos e nos discursos artísticos ligados ao conceito fascista
de “alta cultura”), eles são evidências de um embate de forças e vetores
oriundos de um processo histórico ativo de sujeitos sociais os quais, mesmo em
condição subalternizada, foram capazes de agenciar socialmente suas
manifestações e fazê-las valer como símbolo de uma nação, seja pela sua força
estética, seja pela resiliência combativa com que moldaram suas inserções
culturais. Por certo que tais vitórias foram moldadas com alianças, cooptações,
sincretismos e todas as modalidades estratégicas que constituem qualquer
movimento político (mesmo que cultural), mas o fato é que tais empreitadas –
contínuas e por vezes heroicas – acabaram por sedimentar no tecido social
aquela costura inconsútil que, por falta de uma palavra melhor, chamamos de tradição.
Ao
me colocar claramente em favor daqueles que reivindicam certos marcos
fundadores na tradição da música brasileira, não nego que tais marcos fundadores constituam narrativas específicas
criadas por determinados grupos sociais; o que rechaço é que se desautorize
tais narrativas pelo simples fato de serem narrativas, como se qualquer
atribuição de sentido, mesmo embasada no estudo de longos períodos de
desenvolvimento histórico, fosse em si uma desonestidade intelectual. Defendo exatamente
o oposto: há um alto grau de desonestidade intelectual em muitos discursos
retóricos que, aparentemente, pretendem desconstruir narrativas embasadas em
dinâmicas coletivas reais, a partir do argumento falacioso de que são discursos
inventados: são discursos inventados apenas na medida em que qualquer discurso
é uma construção; contudo, para vários desses mesmos acusadores basta haver um
deslocamento espacial e geográfico (e passarmos a falar de Europa ou mesmo dos
Estados Unidos) para ninguém duvidar de premissas como as de que o Blues e o
Jazz são marcos fundadores do ethos
musical norte-americano ou que certas modalidades de música de orquestra representam
pilares artísticos próprios da cultura alemã, francesa, russa etc.
Bem
aqui neste ponto, gostaria de propor uma digressão do debate teórico puramente
conceitual para retornar ao mergulho empírico no clássico de Lima Barreto Triste fim de Policarpo Quaresma. Minha
insistência no reexame dessa obra, escrita no início do século passado, mas
cuja trama se desenrola no final do retrasado (no período seguinte à
proclamação da República), deve-se ao fato de que já estavam colocadas ali, em
formato de romance, muitas das questões que ainda hoje debatemos nas
humanidades, o que leva a supor que, já em fins do século XIX, havia uma
pulsante reflexão, ao menos em determinados setores da sociedade, a respeito do
valor ou desvalia da ideia de brasilidade, identidade nacional, cultura local,
música popular, cultura brasileira etc. Tal inferência denota, por conseguinte,
que os espaços de poder concernentes a tais narrativas também já se encontravam
em disputa. Daí, serem tantos os trechos do livro a demonstrar que o nacional-simbólico
e a música popular já andavam de braços dados por esta época.
Para
fins de exemplificação, começarei amalgamando alguns diálogos em que a
importância da música popular na formação cultural do Brasil é reconhecida tanto
pelos personagens principais (embora, por vezes, com distanciamento irônico do
narrador), quanto questionadas pelos secundários. No exemplo inicial, vemos Adelaide,
irmã do major Quaresma, questionando-o em razão de sua decisão de tomar lições
de violão, o que, na visão dela, caracterizaria uma conduta moral duvidável. Em
seguida, temos a resposta do major que, refutando tal acusação, defenderá a importância
do instrumento e da modinha ancorando-se para tanto em seus valores
nacionalistas:
– Policarpo, você precisa tomar juízo. Um homem de idade, com posição, respeitável, como você é, andar metido com esse seresteiro, um quase capadócio – não é bonito!
– É preconceito supor-se que todo homem que toca violão é um desclassificado. A modinha é a mais genuína expressão da poesia nacional e o violão é o instrumento que ela pede. Nós é que temos abandonado o gênero, mas ele já esteve em honra, em Lisboa, no século passado, com o Padre Caldas que teve um auditório de fidalgas. Beckford, um inglês, muito o elogia (grifos nossos) (Barreto, 1911, p. 11-12).
O
trecho acima é uma condensação das questões fundamentais apresentadas nesse
texto; explico por quê. Primeiramente, Policarpo associa um gênero de música, a
modinha, ao conceito de “genuinidade”, que difere um pouco do conceito de
“autenticidade”, pois enquanto autenticidade está ligada a ideia de
originalidade – algo que é único, singular, raro – “genuinidade” aproxima-se da
ideia de “tradição” – algo que, por meio de um processo de maturação social e
cultural, passa a reunir os atributos necessários para simbolizar no imaginário
uma projeção que guarda relação direta com o real. Embora ambas tragam em si a
vontade de definir uma verdade objetiva, a diferença principal consiste no fato
de que dizer que algo é genuíno implica necessariamente justificar historicamente
o porquê. E é exatamente por essa razão que o major, logo em seguida a sua
proposição a respeito do caráter genuíno da modinha, fará uma curta afirmação
que traz em si o anteparo de uma pesquisa musicológica, etnográfica ou coisa
que o valha. Domingos Caldas Barbosa, o “Padre Caldas”, foi de fato um
personagem histórico do século XVIII. Cantor de modinhas, empunhava com sua
viola de arame, trovas improvisadas que aproximavam o lundu da moda portuguesa
e mesmo fundiam-nas, numa amálgama que foi muito apreciada pela corte
portuguesa. Filho de um branco português com uma negra angolana, possuía formação
acadêmica, tendo se sagrado mestre de Artes no Colégio dos Jesuítas, no Rio de
Janeiro, e posteriormente mestre em Leis e Cânones pela Universidade de
Coimbra. Boêmio inveterado gozou de vasta popularidade nas terras lusitanas,
ajudando a disseminar o gênero em variadas camadas sociais, tornando-se, pois,
o primeiro artista brasileiro a alcançar fama internacional e, ao mesmo tempo,
um artífice inconteste e documento vivo do poder da tal gaia-ciência da canção
de que nos fala José Miguel Wisnik, em seu livro Sem receita: ensaios e canções.
Dito
de outro modo, Policarpo não escolhe o gênero que lhe dá na veneta para
designar como genuíno: escolhe a historicizada, antropofagicizada e longeva
modinha. O personagem escolhe como seu arquétipo de brasilidade um tipo de
música que, nas palavras de Mozart do Araújo, deixou “aos poucos a luz dos
candelabros, para se expandir sob o céu das noites enluaradas. E desprezava o
contraponto do cravo, pelo contracanto dos baixos melódicos dos violões
seresteiros”. Se pensarmos que esse “aos poucos” foi um período de dois séculos,
durante o qual a modinha – que recebe esse nome, aliás, na Bahia – conseguiu,
em meio a tantas influências (a moda portuguesa e o lundu principalmente, mas
também a ópera italiana e até a valsa) se estabilizar como gênero; concluiremos
que não há nada de absurdo, aleatório ou arbitrário na reivindicação de
Quaresma. O que parece haver, já naquele momento, é uma disputa pela
narratividade mais adequada a este ou aquele projeto de Brasil, que precisará, exatamente
como estratégia de poder, deslegitimar outras narrativas para então
substituí-las no campo das ideias. Assim, se há alguma contradição a ser
apontada no pensamento de Policarpo não é certamente o recorte que ele faz da
modinha como um gênero nacional, e sim sua hesitação em aceitar o valor
estético da modinha em sua especificidade, sem precisar recorrer a “valores
pretensamente universais” para legitimá-la. Senão, vejamos:
Quaresma estivera muito tempo a meditar qual seria a expressão poético-musical característica da alma nacional. Consultou historiadores, cronistas e filósofos e adquiriu certeza que era a modinha acompanhada pelo violão. Seguro dessa verdade, não teve dúvidas: tratou de aprender o instrumento genuinamente brasileiro e entrar nos segredos da modinha. Estava nisso tudo a quo, mas procurou saber quem era o primeiro executor e cantor da cidade e tomou lições com ele. O seu fim era disciplinar a modinha e tirar dela um forte motivo original de arte (grifos nossos) (Barreto, 1911, p. 31).
Aqui
sim, vemos um Quaresma colonizado (talvez um Lima colonizado?) que nos remete à
citação de Sérgio Buarque de Holanda, na epígrafe deste trabalho. Disciplinar a
modinha não seria, pois, aplicá-la no positivismo branco de Comte, tão em voga
em fins do século XIX, subtraindo-a de seu componente mais negro,
“deslundunizando-a”, tornando-a mais branca, mais europeia novamente? Será que
neste momento nosso herói nacionalista não está exatamente querendo adequar o
gênero, que se abrasileirou na fusão de modalidades musicais díspares, em “um
forte motivo original de arte” (leia-se arte europeia)? Mais uma vez meu
pensamento reafirma uma das forças propulsoras deste trabalho: a atitude
contraditória do major reafirma a potência de verdade da narrativa histórica
que reconhece a modinha como um gênero nacional, um marco fundador, pois é
justamente porque nos sentimos uns “desterrados em nossa terra”, que não
conseguimos aceitar quando algo que fazemos coletivamente, ao longo do tempo,
adquire uma singularidade que parece não
“participar de um sistema de evolução próprio de outro clima e de outra
paisagem”.
Ao
me propor a escrever o texto que ora redijo, afastando-me um pouco do meu mote
de estudo principal que gira sobretudo e com imenso prazer em torno da voz, da
vocalidade, da interface música e palavra etc. é porque me incomoda sobremaneira
o fato de ainda termos dificuldade para aceitar a responsabilidade de
convivermos com um passado histórico, uma tradição. Muitas vezes me deparo com
textos que, sem uma pesquisa robusta ou um argumento concreto, desejam, simplesmente
por veleidade do autor (ou por uma paradoxal iconoclastia conservadora)
derrubar, desconstruir, deslegitimar processos que representaram no plano
individual lutas pessoais de vida ou morte; nas dinâmicas coletivas agenciamentos
extremamente custosos; no contexto de um país racista como somos dificuldades
transpostas a duras penas. O Choro Negro (saravá Paulinho da Viola) do maestro
Anacleto de Medeiros, do virtuoso Irineu de Almeida, do mestre dos mestres
Pixinguinha não pode, de uma hora para outra, numa canetada e sem maiores
explicações, ser transformada em música branca por brancos que não gostam de
fixar raízes, porque se sentem aprisionados por dinâmicas sociais que lhes
ultrapassam. Do mesmo modo, o samba como identidade nacional não deve virar,
somente em razão de uma autoadulação intelectual, um projeto modernista,
abraçado politicamente por Getúlio Vargas. O que proponho ao longo deste texto
é uma operação intelectual inversa: pensarmos se não foi a negritude do choro
que domesticou a música branca. Se não foi a força estética do samba e a
capacidade de seus artífices de fazerem valer suas estratégias de inserção que
motivaram os modernistas e intelectuais a posteriormente escolher o samba como
objeto privilegiado de seus projetos de construção de Brasil.
Ao
contrário do que possa parecer, não estou discutindo essas coisas por achar que
devamos andar por aí “cultivando tradição embalsamada”, como diria Tom Zé. A
razão pela qual me remonto ao período-chave do início da República e do século
XX é que nesta janela de duas décadas as contradições de se inventar um país
pós-colonial e periférico aparecem com toda força. O livro de Lima é um meta-livro
no sentido de, ainda no olho do furacão e em meio ao processo de construção de
uma identidade nacional, lançar-se em uma reflexão ferina sobre o próprio
processo em andamento. Contudo, a ambiguidade reflexiva presente no livro foi
completamente abandonada no imaginário de nós leitores: Triste fim de Policarpo Quaresma aparece sempre apenas em sua
primeira faceta, como crítica a um nacionalismo ingênuo (o que de fato é) mas
nunca em sua segunda faceta, como denúncia das mazelas, fraqueza e desmandos
que impedem, no plano do real, a sólida fixação de uma imagem simbólica de país
com a qual possamos lidar de maneira menos traumática e mais bem resolvida.
Daí
a razão de ser deste artigo, sua principal motivação: contribuir para um debate
acerca dessa dificuldade do intelectual brasileiro (e quiçá também do não
intelectual) em se olhar no espelho da história e ser capaz de lidar com o
próprio reflexo. Tal dificuldade acaba provocando o desejo incontrolável,
maníaco e incessante de trocar (ou quebrar) o vidro do espelho apenas para não
ter de lidar com a imagem refletida. Seria desnecessário dizer, mas digo, que a
imagem no espelho não é o verdadeiro ser refletido; porém tampouco a quebra do
espelho (ou sua troca por outro menos acurado) resolverá o incômodo mental do
sujeito que, narciso às avessas, não suporta perceber-se a si enquanto imagem (ainda
que projeção), porque não tolera a dinâmica do real que o antecede.
Importa-me,
pois, esse debate, embora não seja o meu foco principal nos estudos da canção –
como pontuei acima, meu projeto principal é um estudo sincrônico das
vocalidades na canção, seja no Brasil ou em qualquer outro país em que os
atributos vocais me chamem atenção –, porque percebo que entramos
definitivamente no século XXI e no terceiro milênio (não apenas
cronologicamente mas de modo definitivo e irrevogável nas formas de se relacionar,
consumir e se dispor do corpo, no mundo do trabalho e do lazer). No campo da
cultura, após quase duas décadas de muito revisionismo, histeria retrô e uma quase obsessão por passar a
limpo o século XX (materializada de muitas maneiras no campo cultural), parece-me
que as experiências com as novas formas de sociabilidade (não tão novas para o
tempo tecnológico, mas novas do ponto de vista histórico) finalmente estão se
impondo de modo definitivo, inviabilizando antigos paradigmas para construir outros
(nem de todo bons, nem de todo maus, contudo, diversos).
Hoje,
as informações culturais encontram-se na web à disposição de quem delas quiser
dispor, em quantidade quase ilimitada, mas a forma de procurá-las na rede
mundial e o interesse que despertam (e, portanto, a relevância que possuem) não
são simplesmente franqueadas a um ser-humano-tábula-rasa, que faz escolhas
livres e conscientes, a partir de um grande cardápio de bens culturais que lhe
é oferecido. A coisa é bem mais complexa. Mais uma vez as narrativas disputam
espaços de forma estratégica impulsionando conteúdos simbólicos que representam
determinadas matrizes culturais mais do que outras e não me parece justo nem
honesto afirmar que há um equilíbrio de culturas na produção e difusão de tais
conteúdos (isso para não entrar no debate acerca das origens nacionais das
plataformas digitais mais acessadas do mundo). A influência dos algoritmos
sobre as escolhas estéticas e os modos de transitar na rede já são parte vital
de nossa vida cotidiana e ninguém mais que seja minimamente informado pode
negar sua importância ou apostar em uma suposta aleatoriedade/neutralidade
digital. A aceleração do fluxo de informações e seus novos regimes de
distribuição são parte de um enorme processo de mudanças sociais genericamente
(e um tanto esmaecidamente) denominado globalização, que interfere tanto nas
relações individuais quanto nas construções culturais (o que implica dizer que
estamos a reconstruir de maneira radical a nossa imagem simbólica para trás e
para frente). Nesse contexto, em que as referências culturais tradicionais,
sobretudo as periféricas se enfraquecem e se diluem, perdidas num mar de
informações que, longe de boiar no éden, são agenciadas algoritmicamente por
superempresas como a Google, o Facebook, a Amazon etc., a especificidade
cultural da canção popular no Brasil e o manancial de conhecimento (e sedução)
que elas evocam/provocam representam uma possibilidade (sutil mas existente) de
desafinar o cybercoro dos neocontentes, matizando outras paisagens com tons
randomizados que não fazem parte da palheta das cores eleitas.
Assim,
do mesmo modo que está “léguas de ser um projeto que eleve à perfeição o tipo
de civilização que representamos (se é que representamos alguma fora esta)”, este
exemplo multifacetado de desenvolvimento cultural repleto de especificidades,
que alcunhamos com o signo “música popular brasileira”, também está longe de
ser um projeto cultural irrelevante, ou mesmo tão somente um patrimônio nacional
confinado ao século XX, que possamos seguir brincando de desconstruir,
relativizar e em última instância “deixar pra lá”, como se nenhuma contribuição
oferecesse para a cultura mundial. A
música popular brasileira é tanto uma matriz de conhecimentos individuais
agenciados social e economicamente, quanto a contribuição cultural de uma
miríade de artistas, pensadores e público para um projeto coletivo de país.
Elaborada
em sua concretude pelos músicos, ouvintes, produtores, empresários que, mesmo
em constante embate e tensão, conseguiram alcançar um ponto de equilíbrio que
tornou possível, cerca de 40 anos apenas após a abolição da escravatura no
Brasil, viabilizar um complexo sistema de comunicação e arte que reuniu
indústria fonográfica e radiodifusão, a música popular brasileira esteve,
continuamente e sem jamais perder sua força, atrelada, durante todo o desenvolvimento
da república, à ideia de construção de uma identidade (ou de identidades)
nacional(ais) repleta(s) de especificidade.
Empreendedores
como Frederico Figner, fundador das casas Edison (loja de venda de discos,
partituras, artigos eletrônicos e primeira gravadora da América Latina) e mais tarde
da Odeon, primeira fábrica de discos do país, deram o pontapé inicial para o
surgimento do negócio fonográfico ainda na primeira década do século XX. Se
pensarmos que o Brasil daquela época não era mais que um grande exportador de
café e que o fonógrafo havia sido patenteado por Thomas Edison somente em 1878,
perceberemos que não era uma consequência óbvia de nosso desenvolvimento
econômico darmos início a um processo industrial de veiculação musical. É mais
curioso ainda, se atentamos para o fato de que que as primeiras gravações
fonográficas no Brasil optaram pela produção local, não apenas com músicos
locais (o que por si só poderia indicar mais falta de mão-de-obra qualificada
do que interesse em privilegiar o autóctone), mas com composições locais. O
que, para leitores desinformados pode parecer um mero acidente, em meu
entendimento demonstra o “aproveitamento ótimo” de um emaranhado cultural que
contava com uma teia já bastante avançada de músicos profissionais e
semiprofissionais; e de um público que os prestigiava nos cafés, saraus, festas
populares e concertos.
Conquanto
eivada de contradições, apropriações e disputas, podemos, ainda assim, perceber
na própria estrutura do mercado musical brasileiro e seu desenvolvimento uma
porosidade que, mesmo léguas de ser justa e irrestrita, foi durante décadas
mais permeável às classes populares do que a imensa outra gama de atividades
econômicas (se citarmos as culturais então, como o cinema, a literatura, as
artes plásticas nem se fala) que se desenvolveram no Brasil. Desde muito cedo
essa porosidade foi percebida por músicos populares e artistas como Donga, João
da Baiana, Pixinguinha e uma boa parte dos sambistas e chorões pertencentes às
classes média-baixa e classes pobres (mas não miseráveis) que se tornaram
sujeitos ativos, como percebido por Muniz Sodré, de uma movimentação
estratégica (se é que não poderíamos chamar de movimento) de inserção no
mercado nascente. A anedota verídica envolvendo o pandeiro de João da Baiana
(autografado pelo senador-general Pinheiro Machado, evitando assim o confisco
do instrumento nas constantes batidas policiais), a batalha em torno da autoria
de “Pelo telefone”, a busca incessante de Pixinguinha e de muitos outros
compositores e arranjadores em alcançar formatos de regionais e formas de
arranjo que se coadunassem com o espaço radiofônico mostram que o campo de
trabalho para a música popular permitiu, em dado momento, que grupos subalternizados
agenciassem uma ocupação de espaço, até então inédita, no tecido cultural
brasileiro.
Sem
querer me arvorar (mesmo porque seria ridículo) a dar uma “palavra final” sobre
um processo histórico-cultural complexo e, portanto, sempre vulnerável à
construção de narrativas múltiplas, ponho minha “cara a tapa”, como se diz
popularmente, para desafiar os pares que ainda se dedicam ao tema a se deixar
transpassar pelo afeto e pela vontade de construir narrativas responsáveis no
campo dos estudos da canção, que sirvam de inspiração para as novas
gerações. Não há motivo para taparmos o
próprio sol com uma peneira rasgada: a canção no Brasil foi, digo e repito, senão
a melhor, uma das melhores, mais contínuas e mais sólidas construções
artísticas que conseguimos levar a cabo até hoje. E continua a ser, em pleno
século XXI, uma contribuição original (e de fôlego) ao caótico (des)concerto
das nações.
*
Formado em Comunicação pela UFRJ, Gustavo
Sant’Anna (Mouro) é cancionista e doutorando em Literatura, Cultura e
Contemporaneidade pela PUC-Rio. Mestre em Letras, também pela PUC-Rio, sua
dissertação de mestrado A insurreição da voz
tem lançamento em formato livro previsto para março de 2019. Em sua pesquisa, o
autor/compositor investiga os elementos não-lexicais, todavia produtores de
sentido dentro do campo da canção.
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Resumo: Este artigo[1] tem como intuito analisar como duas figuras paradigmáticas do rock no Brasil – Cazuza e Arnaldo Antunes – constroem suas identidades artísticas em consonância com certas categorias simbólicas do assim chamado “rock brasileiro”. Tendo como pano de fundo a discussão da canção popular em contexto brasileiro pós-moderno, pretendemos observar como, no caso do “rock brasileiro”, também a canção popular tende a articular e mediar as culturas letrada e oral em uma perspectiva crítica de assimilação e reflexão da arte e da cultura.
Abstract: This study aims to analize how two paradigmatic
rock-and-roll Brazilian characters – Cazuza and Arnaldo Antunes – have built
their artistic identities based on some symbolic categories of the “Brazilian
rock”. Relating this “brazilian rock”, we also intend to observe how the urban
popular songs tend to articulate and mediate literary and oral cultures in a
critical perspective of assimilation and reflection of art and culture.
O rock and roll não é somente um estilo de
música, como também uma forma ativa que solicita de seus ouvintes certas formas
de ser, estar e enxergar o mundo. Catarse urbana a expulsar, irremediavelmente,
toda previsibilidade cotidiana, o rock transmuta seus berros primitivos em uma
língua própria compartilhada por alguma multidão eletrificada. Por ser um
gênero musical urbano e um ritmo universal, em sua construção, o rock trabalha
com o amálgama de ritmos, gêneros e meios. Nesse sentido, muito da miscelânea
do rock and roll vem da miscigenação
do blues, das músicas de trabalho (a kind of blue), do beebop, do hardbop, do cooljazz, do rockabilly até chegar a esta música urbana capaz de expandir e
ampliar novos elementos numa forma nova de perspectivar o mundo. O folclore urbano
do rock se comunica com as cidades e suas tecnologias modernas, impondo sua
estranheza em qualquer lugar por onde ressoe; nos espaços por onde os homens
dialogam com os deuses e constroem seus destinos.
Devido ao seu
alcance mundial, gerado “quase sem origem” e conquistado através de uma gíria
universal, o rock pode ser referido como uma música do planeta Terra. Nesse
sentido, Augusto de Campos (1968, p. 142) realça a intercomunicabilidade universal do rock and roll como a representação de um movimento artístico
internacional. Como exemplo de tal incorporação,
Campos afirma que, no caso do rock, foram os Beatles os primeiros a realizar a
fusão entre o erudito e o popular, sendo que, ao mesmo tempo em que estavam nos
meios de massa, também se comunicavam com músicos de vanguarda (como John Cage
e Stockhausen), através das orquestrações de Georges Martin, unindo produção e
consumo, laboratório e auditório, numa espécie própria de produssumo. Corroborando com leitura tal, o rock, fenômeno
cosmopolita e mundial, deveria ser incorporado de maneira crítica à cultura
brasileira, de modo estratégico contra a estreiteza dos exclusivismos
nacionais.
Em vista disso,
possivelmente uma leitura mais potencializadora do rock seja a que consiga
vislumbrar nesta música um campo de trocas simbólicas não cristalizáveis por
representações monológicas. Partindo de tal perspectiva crítica, este artigo
tem como objeto de estudo a análise de certas narrativas remetentes ao universo
brasileiro do rock and roll no século
XX. Tendo como pano de fundo a discussão da canção popular em contexto
brasileiro moderno e pós-moderno, pretendemos analisar certas narrativas
paradigmáticas do rock and roll no
Brasil até os anos de 1980. Sendo uma particularidade brasileira o amálgama
entre alta e baixa culturas, no caso do rock
brasileiro, também a canção popular tende a articular e mediar culturas
letrada e oral.
Com suas blue notes, o rock and roll surge do blues
rural adaptado pelas guitarras das cidades, fruto da decadência da canção
popular norte-americana dos anos de 1950. O termo “rock and roll” foi utilizado
pela primeira vez no blues “My baby
she rocks me with a steady roll”, cantada por Big Joe Turner em 1922. Todavia,
somente nomeado como gênero em 1952 (pelo disc-jóquei
Alan Freed, em um programa radiofônico de Cleveland), o rock and roll principalmente se popularizou a partir de Elvis
Presley que, com sua dança dionisíaca, sua voz negra e sua aparência branca,
reuniu em suas primeiras apresentações o rythm
and blues e o country and western,
consolidando midiaticamente o estilo musical. Em sua
primeira aparição televisiva, os pés e quadris de Elvis chocaram tanto o
puritanismo norte-americano que as câmeras só focalizaram a parte de cima de
seu corpo durante apresentação no programa de auditório de Ed Sulivan, em Nova
Iorque, no dia 9 de setembro de 1956.
Tendo sido a
trilha sonora da contracultura, o rock
and roll dialoga com um novo tipo de dicção universal. Como observa Eric
Hobsbawn (1996, p. 15), uma distinção crucial entre o jazz e o rock and roll é
que o rock jamais foi uma música de minorias. Pelo seu caráter potencialmente
internacional, ao ser assimilado por cada contexto cultural específico, o
universo simbólico do rock tem por predisposição o diálogo entre meios
culturais diversos. Multiplicado pela oralidade do blues, o rock pode ser lido como uma
poética apropriativa de identidades que se fixam e se desfazem:
Rather than a cycle of authentic and coopted music, rock and roll exists as a fractured unity within differences of authenticity and cooptation that are defined in the construction of affective alliances and networks of affiliation. These alliances are always multiple and contradictory. […]. the history of rock and roll is read as a cycle of cooptation and renaissance in which rock and roll constantly protests against its own cooptation (Grossberg, 1997, p. 486-493).
Tendo isso em
vista, levando em conta as múltiplas variações
do termo rock and roll apontadas por
Lawrence Grossberg (1997), parece inverossímil discorrer sobre uma sóideologia do rock. Mais auspicioso
alude ser o caminho indicado por Júlio Barroso (1991) ao narrar o rock como uma
música capaz de reunir fragmentos dispersos do cotidiano, antropofagizando-os em
novas estratégias de reinvenção da liberdade:
Matriz da cultura e da arte, do samba e do rock, a árvore África não cessa de dar frutos. Lá se faz, hoje, um som violento e único, multifacetado e uno, raiz eterna projetada no futuro. […] Elvis, na verdade, era uma encarnação televisiva de Chuck Berry, que adentrou a sala de jantar da cultura ocidental, com seu gingado insolente que mudou os costumes de todas as futuras gerações. […] Suas raízes cada vez mais fincadas no solo compelem a humanidade em direção ao espaço interior e o exterior na busca dos arquétipos fundamentais, de onde a cultura viva emana, como um ato de testemunho da eternidade, a arte do agora. […] O rock é uma proposição de liberdade. Ele é a trilha sonora de uma época de mudanças globais, contestação a todo um sistema de valores, etc. Lógico: tudo sobre a década de 70 já foi dito, dez anos nos quais toda a experiência da humanidade foi repensada, da postura do corpo à alimentação, ideologia, religião, ciência. E tudo sobre o saudável signo da antropofagia e seu rebento máximo, o rock (Barroso, 1991, p. 92-135).
No Brasil, Nora Ney foi a primeira
intérprete de “Rock around the clock”, mas o primeiro rock composto
originalmente em português foi “Rock and roll em Copacabana”, cantado por Cauby
Peixoto, em 1957. A seguir, surgiram os irmãos Tony e Celly Campello, com suas
versões em português de rocks italianos.
Por sua vez, os roqueiros da jovem guarda
(também
conhecida como iê-iê-iê),
liderados por Wanderléia, Erasmo e Roberto Carlos, primeiramente cantaram versões
traduzidas do inglês, até começarem a escrever músicas próprias para o gênero, apresentando-as
no programa da TV Record com o nome homônimo de Jovem Guarda. Em tal época, as canções jovem-guardistas tratavam de
temáticas juvenis. Será somente no fim dos anos 60 que, a partir de Raul
Seixas, Os Mutantes e Secos e Molhados, surge uma tradição especificamente
roqueira no Brasil. Tais manifestações do rock no Brasil serão potencializadas
nos anos de 1980 através de um diálogo ampliado entre a literatura e a música
popular. Como observado por Arthur Dapieve (em entrevista que me concedeu em
2004), o rock que se desenvolveu no país ao longo da década de 80 foi catalisador
de diversas linguagens – entre elas, marcadamente a literária:
Assim como afirma Cazuza, o rock só deixou de ser subproduto quando outros públicos perceberam que o rock dos anos 80 não era um decalque do rock inglês e americano. Não se tratava de uma música feita por adolescentes inconsequentes, mas sim de um movimento que possuía identidade própria. Quem ouvia Arnaldo Antunes e Renato Russo, podia notar ali um grande interesse pelo trabalho da palavra escrita. Que mesmo sem misturar com samba, este rock era música brasileira, devido às letras em português. […]. O BRock foi um movimento político e intelectual. Essa injeção de intelectualidade permitiu que o rock de qualidade não mais fosse feito isoladamente, como era o caso do Raul Seixas e Mutantes, mas que possuísse uma integridade. Foi excludente de um lado, mas positivo do outro. Positivo porque possuía conteúdo intelectual, como o concretismo de Arnaldo Antunes, as influências beatniks de Cazuza, ou a admiração que Renato Russo possuía por Carlos Drummond. E virou popular ao atingir veiculação nos meios de massa. […]. Quando eu primeiro me utilizei da sigla em matéria, no Jornal do Brasil, não pensava em Mutantes ou Raul Seixas. Mas sim, no rock que começou a ser feito a partir do Júlio Barroso e a Gang 90, e depois com a Blitz. Essas foram as duas bandas que iniciaram o BRock. […]. Quando utilizei esse termo, tinha em mente uma afeição gráfica, em que o BRock significaria: ‘O rock é nosso’. Assim como a Petrobrás possui o slogan: ‘O petróleo é nosso’ (Dapieve apud Cavalcanti, 2010, p. 10).
Para Arthur
Dapieve (1995), o rock brasileiro (ou
BRock), enquanto movimento estético, terminou
no dia da morte de seu maior protagonista, Cazuza:
Cazuza reunia todos os principais traços do roqueiro brasileiro da década de 80, os traços que definiram o próprio movimento […]. O que era então esse tal de BRock personificado em Agenor de Miranda Araújo Neto? Era o reflexo retardado no Brasil menos da música do que da atitude do movimento punk anglo-americano: do-it-yourself, faça-você-mesmo, ainda que não saiba tocar, ainda que não saiba cantar, pois o rock não é virtuoso. Era um novo rock brasileiro, curado da purple-haze psicodélica-progressiva dos anos 70, livre de letras metafóricas e do instrumental state-of-the-art, falando em português claro de coisas comuns ao pessoal de sua própria geração (Dapieve, 1995, p. 195).
Tendo no rock and roll um meio de dinamismo vital e existencial, Cazuza considerava
esta expressão musical como um afluente de manifestações culturais de sentido
ritualístico e transgressor:
O rock é a ideia da eterna juventude. Quando descobri o rock, descobri também que podia desbundar. O rock foi a maneira de eu me impor às pessoas sem ser o ‘gauche’ […]. O rock para mim não é só música, é atitude mesmo, é o novo! Quer coisa mais nova que o rock? O rock fervilha é uma coisa que nunca pode parar. O rock não é uma lagoa, é um rio. O rock é a vingança dos escravos. É porque não é para ser ouvido, é para ser dançado, é uma coisa tribal (Cazuza apud Araújo, 1997, p. 361).
Por outro lado,
para Arnaldo Antunes (outro protagonista do BRock),
o rock pode ser lido como uma presentidade que beira
as margens do inclassificável:
É muito difícil definir o rock hoje. Qualquer generalização classificatória parece insuficiente. O rock é um rio de muitos afluentes. Heavy rockabilly punk tecno hardcore pop rhythm and blues progressivo new wave psicodélico ye ye ye black metal and roll. Muitos grupos que se formam e/ou se extinguem diariamente. Fusões com reggae funk blues soul samba jazz. Nada disso satisfaz. Só uma coisa permanece e permite que continuemos chamando-o de. Uma coisa que não está no som. Está na sede. O rock tem urgência de agora. Presentidade. Vitalidade que assassina a memória. Por isso é tão difícil catalogar. Dicionarizar. Compartimentar. Ao mesmo tempo em que essa impossibilidade se exibe, sentimos que há uma tradição a não passar impune. Onde o passado vale por manter vivo o eterno presente. Só queremos que se faça uma cultura de rock no Brasil se for assim. Não para sedimentar, mas para clarear. Uma cultura que se mova com a mesma agilidade do seu objeto. […]. Não pelo poder paralisador da história, mas pela diversidade simultânea de seus agoras. Não pelo caminho em linha reta, mas pelo registro de seus desvios e fragmentos. Tentativa de fazer o possível, uma vez que o impossível é responsabilidade do som (Antunes, 2000, p. 40).
Utilizando linguagens heterogêneas, entre
elas a roqueira, Arnaldo Antunes e Cazuza atuam como intérpretes que se
distanciam de um modelo usual de compositor popular, remetendo à um
diálogo intertextual entre poesia e música produzido no Brasil, especialmente a partir do
disco-manifesto Tropicáliaou Panis et circensis (1968). De modo
experimental e difuso, os integrantes da Tropicália
eram divergentes à oposição entre o rock e a moderna música popular brasileira,
operando em ambas as frentes. Enquanto coletivo programático, o tropicalismo foi enterrado simbolicamente pela banda Os Mutantes
no programa televisivo Divino Maravilhoso,
da TV Tupi, apresentado por Caetano Veloso e Gilberto Gil, na véspera do natal
de 1968. Todavia, seus procedimentos continuaram influenciando certas
representações da música popular brasileira e do rock produzidono Brasil.
Como aponta Celso Favaretto (1979,
p. 18), o tropicalismo foi responsável por efetuar na cultura brasileira a
autonomia da canção, realizando a síntese de música e poesia, relação que vinha
se fazendo desde o modernismo, embora raramente conseguida, pois a ênfase
recaía ora sobre o texto, ora sobre a melodia. Rompendo com certa noção
tradicional de canção, os tropicalistas passaram a incorporar o happening e a performance dentro do
formato cancioneiro através da inserção corporal do artista como uma espécie de
escultura viva capaz de assumir radicalmente o palco através de máscaras diversas.
Por ser inseparavelmente musical e verbal – como não é poema musicado, o texto
não pode ser examinado em si, independente da melodia –, a canção tropicalista
pode ser referida como uma espécie arquetípica de intertextualidade extrema.
Como observa Santuza Cambraia Naves (2001, p. 51), os tropicalistas
levam a intertextualidade – a prática de aludir em suas canções a outros textos
poéticos ou musicais – às últimas consequências, transformando-a em fundamento
de um projeto estético. Nas
letras fragmentadas e polifônicas tropicalistas, a ausência de um discurso
principal e linear é substituído por impressões e colagens que filtram o país
em fragmentos alegóricos e simultâneos. Com indumentária roqueira, os
tropicalistas buscam ressignificar termos como “autêntico” e “nacional”, indo
contra uma busca por raízes populares de uma arte militante representada pela sigla MMPB (“Moderna Música Popular Brasileira”).Transitando da paródia ao pastiche, certa atitude tropicalista passa a permear o
universo da música popular brasileira desde 1968. Como
sugere Luiz Tatit (2007, p. 131), através de uma visão de mundo tropicalista, o modo de ser do cantor e
do compositor e sua circunstância de produção passam a ter tanta ou mais
importância que a própria canção.
Em paralelo, no âmbito do rock, cada
música é irredutível à sua melodia e à sua letra. Potencialmente performático e
intertextual, o rock trabalha com amálgamas de estranhamentos, mesclando outras
linguagens à sua. Partindo dos Estados
Unidos dos anos de 1960, através do folk
eletrificado de Bob Dylan, a música popular passa a articular e mediar
o erudito e o letrado na cultura de massa. Apropriando-se do
nome do poeta gaulês Dylan Thomas, Bob Dylan se
inscreve numa tradição trovadoresca de ênfase na palavra cantada e
entoada. Nutrindo-se da indústria cultural, ao mesmo tempo em que sorri sobre o
cadáver desta, o canto dylanesco pode ser aludido
como uma espécie de reconquista da poesia para além dos significados estritos
de suas letras. Não por acaso, o poeta beat Lawrence Ferlinghetti tenha certa
vez comparado as canções dylanescas com extensas colagens surrealistas (Sounes,
2006, p. 140).
Contra a
ideia de um público imparcial e de uma plateia desinteressada, o universo
simbólico do rock and roll é marcado
por uma premissa basilar de estranhamento ritual. Invariavelmente
performativo, o universo roqueiro pode ser aproximado de uma esfera provocativa
teatral análoga ao Teatro da Crueldade de Antonin Artaud, como propõe
Arnaldo Antunes numa entrevista:
Eu acho que tem uma coisa do Artaud do Teatro da Crueldade de uma certa potência associada a você provocar o público, de certa forma procurar empatia com uma postura invocada, eu acho que o rock and roll tem um pouco a ver com isso. Bob Dylan fez muito isso, tem aquela coisa de ele fazer canções com violão em uma linha mais folk de música de protesto e de repente ele pegou a guitarra, aquilo era uma agressão. Tinha um show dele em que ele tocava metade do show no violão e depois pegava a guitarra e o público antigo que gostava das canções no violão vaiava no meio do show a segunda parte, era uma provocação. […]. Acho que o rock é uma linguagem de muita urgência, muita intensidade… (Abujamra, 2008).
A propósito da ligação entre o rock
e o teatro, é relevante observar que Jim Morrison, antes do The Doors, teve
formação teatral em sua graduação na UCLA, concluída em 1965. Através de afãs
dionisíacos e selvagens, Morrison construiu seu personagem agressivo e
libertário dentro do palco através de releituras e reapropriações das
adaptações do grupo Living Theatre do Teatro da Crueldade de Antonin Artaud. Sobre
a ligação entre o universo da poesia e a linguagem roqueira, sendo a esfera
performática que permeia o rock convergente com um teatro artaudiano da crueldade,
é interessante observar que significação a crueldadetem para Artaud e como tal termo pode ser relacionado com o
universo performático e corpóreo do rock:
Não se trata, nessa Crueldade, nem de sadismo, nem de sangue, pelo menos de modo exclusivo. Não cultivo sistematicamente o horror. A palavra crueldade deve ser considerada num sentido amplo e não no sentido material e rapace que geralmente lhe é atribuído. […]. Do ponto de vista do espírito, a crueldade significa rigor, aplicação e decisão implacáveis, determinação irreversível, absoluta. […]. crueldade não é sinônimo de sangue derramado, de carne martirizada, de inimigo crucificado […]. A crueldade é antes de mais nada lúcida, é uma espécie de direção rígida, submissão à necessidade. Não há crueldade sem consciência, sem uma espécie de consciência aplicada. É a consciência que dá ao exercício de todo ato da vida sua cor de sangue, sua nuance cruel, pois está claro que a vida é sempre a morte de alguém. […]. Uso a palavra crueldade no sentido de apetite de vida, de rigor cósmico e de necessidade implacável, no sentido gnóstico de turbilhão de vida que devora as trevas (Artaud, 2006, p.117-119).
Nesse sentido, em
acepção próxima à idealizado por Artaud, é possível pensar numa relação de
inevitabilidade performática do rock and
roll com certa urgência de mundo. Idealizador da crueldade como técnica teatral, o que Artaud propõe é um tipo de
teatro plástico capaz de buscar sua própria magia através da participação ativa
do espectador na cena que observa. Diante de desafio tal, Artaud visa construir
um teatro primitivo que contenha o drama essencial da linguagem e questione,
assim, o lugar poético do homem moderno na realidade que o circunda. Propondo a continuidade entre a vida e o teatro, sua
definição vital passa por uma concepção antiformalista capaz de reunir
espírito e corpo, exigindo que o homem moderno assuma uma posição de ator, não mais
sendo mero objeto de sua cultura. Seguindo
perspectiva tal, Arnaldo Antunes aponta a importância de uma simbologia
ágil roqueira capaz de por sempre reivindicar novas definições. Tal simbologia
pode ser aludida através de Jimi Hendrix colocando fogo em sua guitarra:
O rock (considerado no sentido mais amplo do termo) não é música para ser apenas ouvida. É música associada à dança, cena, atitude, performance, comportamento. Hendrix punha fogo na guitarra. […]. O rock assim como as manifestações artísticas que efetivam a interação de códigos, parece nos remeter, dentro do mundo tecnologizado, a um estado mais primitivo. Como nas tribos, onde a música, associada à dança, cumpre sempre uma função vital-religiosa, curativa, guerreira, de iniciação ou para chamar chuva. Essa inocência já foi perdida (o tempo do homem criou a música para ser ouvida, as artes plásticas para serem vistas, a arte para representar a vida). Mas temos outras. Hendrix punha fogo na guitarra. Esse fogo está solto (Antunes, 2006, p. 46-47).
Tal provocação de Arnaldo Antunes
possui referências intertextuais com certa leitura do artista plástico Hélio
Oiticica sobre o rock como uma linguagem de seu tempo que, mais do que um
gênero musical, pode ser associada à um ritmo de vida e uma forma sempre atual
e corpórea de percepção do mundo:
A meu ver só existe rock. Tudo é o ritmo, a música. Eu acho que a música não é uma das artes. A música é a maneira de você ver o mundo, de você abordá-lo. É a única maneira que eu entendo, e isso diz respeito a toda uma fase de descobertas minhas […] o ROCK p. ex. se tornou o mais importante para minha posta em xeque dos problemas-chave da criação […] o ROCK é a síntese planetário-fenomenal dessa descoberta do corpo q se sintetiza no novo conceito de MÚSICA como totalidade-mundo criativa em emergência hoje: JIMI HENDRIX DYLAN e os STONES são mais importantes para a compreensão plástica dacriação do q qualquer pintor depois de POLLOCK! (Hollanda, 1980, p. 68).
NÃO SERIA ESSA SÍNTESE MÚSICA TOTALIDADE PLÁSTICA A Q TERIAM CONDUZIDO EXPERIÊNCIAS TÃO DIVERSAS E RADICALMENTE RICAS NA ARTE DA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO QUANTO AS DE MALEVITCH KLEE MONDRIAN BRANCUSI?: e porque é q a experiência de HENDRIX é tão próxima e faz pensar tanto em ARTAUD? (Braga, 2007, p. 193).
De modo análogo ao
sugerido por Oiticica, também é possível pensar que o teatro universal do rock and roll visa a sensibilidade
fisiológica de seu público. Sendo o rocktão
norte-americano quanto africano, é possível pensar numa estranheza selvagem e
bárbara que perpassa a simbologia universal roqueira. Se a
África pode ser aludida como o berço de toda cultura do rock, a transculturalidade
é o seu princípio condutor de aproximação com uma linguagem dimensionada para
além das línguas e dos conceitos. Não por força ideológica, mas por
razão de vida, para Paul Gilroy
(2001), a África pode ser referida como um manancial de ficções, uma figura de
linguagem capaz de convocar todos os povos
desprivilegiados da terra e todos os malditos do planeta. Partindo da noção
de que a música negra não pode ser reduzida a uma comunidade racial imutável, a
África de Gilroy é ficcional – disposta
como uma questão, mas não uma questão em si – e simbolicamente reconstruída em embate
com os mercados das conveniências ontológicas.
Entendida não como uma identidade fixa e essencialista, mas, antes, como um
conceito sempre em reconstrução, passa a ser possível pensar numa analogia da
África distante da imutabilidade de uma essência.
De modo análogo, também o etnógrafo e o poeta
surrealista Michel Leiris, em África
fantasma (2007 [1934]), produz uma leitura espectral da África como um
continente ficcional e fantasma, potencialmente avesso a qualquer território
ontológico. Em paralelo, próxima da África
de Leris e Gilroy, propomos neste artigo pensar, através de Cazuza e Arnaldo
Antunes, numa perspectiva crítica de leitura do rock and roll não como um conceito essencialista, mas, antes, como
um novo método de vitalidade sobre a cultura. Nesse sentido, propomos
dimensionar o universo simbólico do rock brasileiro
como uma espécie própria de bricolagem,
ampliando, assim, a discussão proposta por Lawrence Grossberg (1997) ao argumentar que o rock n’ roll em muito se aproxima de uma bricolagem pós-moderna
descontínua e fragmentária:
Rock and roll is a particular form of bricolage, a uniquely capitalist and post-modern practice. It functions in a constant play of incorporation and excorporation (both always occurring simultaneously), a contradictory cultural practice… […]. It plays with the very practice that the dominant culture uses to resist its resistance: incorporation and excorporation in a continuous dialectic that reproduces the very boundary of existence. […]. It celebrates the life of the refugee, the immigrant with no roots except those they can construct for themselves at the moment, constructions which will inevitably collapse around them. Rock and roll celebrates play – even despairing play – as the only possibility for survival […]. Both the future and the past appear increasingly irrelevant; history has collapsed into the present. […]. Rock and roll’s resistance – its politics – is neither a direct rejection of the dominant culture nor a utopian negation (fantasy) of structure of power. […]. Rock and roll emerges from and functions within the lives of those generations that have grown up in this post-war, post-modern context. It does not simply represent and respond to the experience of teenagers, not those of a particular class. It is not merely a music of the generation gap. It draws a line through that context by marking one particular historical appearance of the generation gap as a permanent one. […]. Unlike other forms of popular culture, the ‘post-modern politics’ of rock and roll undermines its claims to produce a stable affective formation. Rather, it participates in the production of temporary ‘affective alliances’ which celebrate their own instability (Grossberg, 1997, p. 478-486).
Tendo em vista tal
potencialidade crítica do rock and roll
como uma forma intrínseca e extrínseca de bricolagem inventiva, é importante
dimensionar a etimologia do termo que nos interessa incorporar à esta
discussão. O pensamento selvagem do bricoleur
foi primeiramente caracterizado por Claude Lévi-Strauss (1989) como aquele que
trabalha com a colagem de tradições já existentes. Em confrontação ao engenheiro moderno que articula
percepção e conceito de modo a criar a partir de uma nova ideia um novo mundo (qual
um demiurgo que erguesse algo a partir de um marco zero), o bricoleur opera com signos não
subordinados a um só projeto de base. Como propõe Lévi-Strauss:
…a arte se insere a meio caminho entre o conhecimento científico e o pensamento mítico ou mágico, pois todo mundo sabe que o artista tem, ao mesmo tempo, algo do cientista e do bricoleur: com meios artesanais, ele elabora um objeto material que é também um objeto de conhecimento. O cientista cria fatos através de estruturas e o bricoleur cria estruturas através de fatos (Lévi-Strauss, 1989, p. 38).
Aproximada de tal perspectiva
crítica, em analogia a tal paradigma de pensamento selvagem narrado por
Lévis-Strauss através da figura do bricoleur,
é possível observar em Cazuza e em Arnaldo Antunes uma predominância do
pensamento nômade do bricoleurao engenheiro moderno que controla todos os seus
meios expressivos de produção; embora, em ambos, experimentalidade e apuro
formal estejam presentes. Neles e através deles, o rock no Brasil ressoa como uma ebulição poética e selvática de contornos
narrativos performáticos efetuados nas entrelinhas da cultura. Ambos suscitados
pela dessacralização da obra de arte em época pós-moderna, Cazuza e Antunes,
cada um à sua maneira, ampliam as tradições vivas do rock.
Tendo em vista que, para Merleau
Ponty (2002), cada corpo representa um projeto sobre o mundo e cada movimento é
imediatamente um conhecimento prático – uma teoria viva aberta para o mundo –, é
relevante observar que o corpo de Arnaldo Antunes no palco se constrói como um catalisador
de vários códigos, tais como poesia visual, prosa, letras de canções,
performances e ensaios. Cantor, compositor, poeta e artista plástico, o
condutor de sua obra é a palavra, muitas vezes sob um caráter primitivo e aproximativo
de um olhar selvagem e iniciático. Buscando restituir as palavras às coisas, sua
produção poética possui algo de um passado pré-babélico, primitivo e tribal que
parte de uma relação que foi perdida pela civilização ocidental de um mundo
dicionarizado.
Graduado em Linguística pela USP, músico, poeta e artista visual, Arnaldo Antunes integrou a banda Titãs de 1982 a 1992. Com uma formação atípica para uma banda de rock, com a maioria dos integrantes se revezando nos vocais, o Titãs trouxe para o rock no Brasil uma concepção de grupo que mais remete a um coletivo teatral do que a uma banda de rock. Em vista disso, não por acaso, o guitarrista Marcelo Fromer chegou a se referir ao Titãs não como um grupo de rock, mas como um “fenômeno de outra ordem sociológica” (Trotta, 1995, p. 5). A gênese formal do Titãs do Iê-Iê deu-se através das intersecções musicais provenientes da união de integrantes de três bandas distintas: Trio Mamão, Aguilar e Banda Performática e Os Camarões.[2]
Assumindo uma atitude
que poderíamos designar de tropicalista,
no sentido de confundir registros e incorporar os meios de massa em seus
discursos, em sua formação inicial, o Titãs do Iê-Iê assumia para si a
importância dos programas televisivos de auditório, bem como a valorização do kitsch em sua formação cultural. Sobre
um prisma tropicalista, seus
integrantes dialogam com a indústria televisiva no sentido de atrelar certas vinhetas
de humor paródico à certa agressividade do punk.
Potencializando a relação do rock
brasileiro com o teatro, em seus primeiros álbuns, Titãs [1984] e Televisão
[1985], o Titãs conciliava artifícios tropicalistas aos da new wave, indo do punk
até o iê-iê-iê. Tal miscelânea de gêneros, somada à formação atípica para uma
banda de rock, trazia ao grupo um senso de performance
no palco que articulava métodos/procedimentos tropicalistas de incorporação de
elementos estrangeiros com o Manifesto Antropófago (1928) de Oswald
de Andrade,no sentido de pensar o
“popularesco” e o “estrangeiro” como elementos constitutivos da cultura
brasileira. Sendo a antropofagia defendida
no manifesto oswaldiano como um método ameríndio de ingerir e devorar somente
os inimigos mais inteligentes e os melhores combatentes, a fim de obter seus
poderes em um processamento cultural que canibaliza o elemento estranho, Oswald
sugere a ideia da identidade brasileira como fruto do amálgama de uma “boa”
digestão, tal como a ocorrida através do ato inaugural de deglutição do Bispo
Sardinha pelos índios.
Com o vigor
vital de quem questiona todas as oposições lógicas de uma tradição, no
terceiro disco da banda – Cabeça
Dinossauro [1986] –, há uma combinação do elemento
primitivo ao tecnológico, a começar, pela mistura de um elemento técnico da modernidade
presente na palavra “Cabeça”, com um elemento pré-histórico e bárbaro presente
em “Dinossauro”. Partindo de uma mistura do primitivo com o tecnológico à
maneira anunciada por Oswald de Andrade (1978) no Manifesto da Poesia Pau-Brasil [1924] – principalmente na
afirmação: “A poesia existe nos fatos” –, o
Titãs realiza uma espécie própria de bricolagem sonoro-semântica de letras
inconformistas e iconoclastas alusivas ao universo de despretensão estética do punk, mas que não rejeitam o apuro formal
da canção.[3]
Por sua vez, no penúltimo álbum do Titãs com a
participação de Arnaldo Antunes, Õ Blesq
Blom [1989], o grupo retornou à aproximação tropicalista de narrativas fragmentárias
relativas à incorporação da cultura popular ao universo estrangeiro do rock. A começar pela sua capa, Õ Blesq Blom foi composto através de bricolagens sonoras e urbanas,
com a inclusão de vinhetas do casal de repentistas pernambucanos Mauro e
Quitéria, descobertos pela banda na praia de Boa Viagem, em Recife, nos anos 1980;
mesma cidade em que em menos de meia década depois ocorreriam as fusões
rítmicas do Manguebeat (movimento musical recifense idealizado
por Chico Science, Fred 04 e Jorge do Peixe no
manifesto
“Caranguejos sem cérebro” [1992], a partir de referência ao romance de Josué de
Castro, Homens e Caranguejos [1967]).
Vinculada ao álbum
Õ Blesq Blom,a música “O pulso” (composição de
Arnaldo Antunes) trabalha com a quebra atonal de um círculo e de uma repetição
propagada, estabelecendo o isomorfismo[4] entre
música e letra, fundo e forma, dentro da esfera de uma canção roqueira
produzida no Brasil. Tendo por busca desenvolver os conteúdos potenciais de uma
dimensão verbivocovisual[5] da
linguagem, “O pulso” faz alusão ao poema “Pulsar” de Augusto de Campos, musicado por Caetano Veloso no álbum Velô [1984]. Ao
combinar certas doenças do corpo com
certas doenças da alma, a letra de Arnaldo Antunes acaba por produzir um espaço
sonoro em que o batimento interior de um corpo se correlaciona com o pulsar
exterior de uma matéria.
De modo análogo, no
mesmo Õ Blesq Blom, a letra da faixa
“Palavras” (creditada a Sérgio Britto e Marcelo Fromer) foi construída a partir de outra
referência concretista: os versos “palavras são sombras / as sombras viram
jogos”, que remetem à certa técnica combinatória elogiada por Haroldo de
Campos, do livro Constelações [1953]
de Eugen Gomringer: “palavras são sombras/ sombras tornam-se palavras. //
palavras são jogos/ palavras tornam-se sombras. palavras são sombras / jogos
tornam-se palavras. palavras são jogos/ sombras tornam-se palavras” (Campos
& Pignatari, 2006, p. 203).
Operando com o
artesanato da canção e pensando a cultura em termos de consumo midiático, é
possível observar em certas letras de Arnaldo Antunes uma associação
tropicalista de dissolução das fronteiras hierárquicas presentes em distinções
culturais de termos como o erudito e opopular:
Tem essas diferentes vertentes que no caso de muitas pessoas se opõem, mas na minha formação elas se conjugaram e se atritaram de modo a criar curtos-circuitos que para mim são férteis. Um poeta que talvez fosse claro nesse sentido foi o Paulo Leminski, que chegava a minha casa de casaco de couro para ouvir um disco de rock do The Clash, mas era um sujeito que tinha uma cultura dos clássicos enorme. Era leitor de Homero, Dante, Camões, tinha um conhecimento da cultura oriental impressionante, dos poetas da antiguidade chinesa, dos haikais, da tradição da cultura zen ao mesmo tempo em que era faixa preta de judô. Ao mesmo tempo essa cultura clássica convivia e excitava nele o convívio com toda a contracultura, com toda a atitude comportamental irreverente, com a paixão pelo rock e tudo que cercava o universo do rock and roll, eu me sinto muito identificado com ele, nesse sentido (Antunes, 2008).
Para Antunes
(2008), a seleção entre o fino e o grosso da cultura representa mais um ato
de escolha do que somente uma mistura estratégica de fortalecimento identitário:
Isso de estudar literatura e fazer música, essas coisas andaram juntas desde muito cedo, de forma que essa divisão entre alta e baixa cultura não faz sentido para mim. […]. Claro, que eu não compactuo, nem um pouco, com a ideia de que poesia é diferente de letra de música por uma questão de valor estético. Que é como as pessoas mais preconceituosas querem separar as duas: uma linguagem mais pobre, ligada à cultura de massas; e outras de uma área mais intelectualizada, que é a área literária. Ao mesmo tempo, eu acho que são diferentes, sim. […] acho que existe essa questão da adequação a cada linguagem. Você criar uma peça para ser ouvida no rádio é uma coisa, para ser lida num livro é outra. É outro tempo, outra forma de absorção. […]. Há tempos atrás a poesia era mais veiculada ao cotidiano das pessoas e de certa forma a música popular herdou um pouco da tradição que a poesia tinha na antiguidade. Os poetas gregos e provençais, por exemplo, cantavam seus versos, aquilo era música também. Era uma poesia cantada, que hoje em dia a gente tem essas poesias nos livros e perde um pouco essa noção. De certa forma a canção popular passou a ser uma veiculação da palavra cantada e tomou esse papel de popularizar o convívio de algum trabalho poético cantado, mas a poesia dos livros foi se tornando muito minoritária no sentido de ter um público muito reduzido. Isso acho que não só no Brasil, mas em qualquer lugar do mundo. Tiveram aí vários fatores como a entrada avassaladora dos meios audiovisuais e inclusive a poesia se vale às vezes deles também.
Por sua vez, Cazuza não se considerava um poeta no sentido tradicional do termo, uma vez que sua aproximação com a literatura se dava principalmente através dos escritores beats, que buscavam promover a reintegração da poesia à fala. Crescendo em um contexto de efervescência cultural carioca, Cazuza teve como sua primeira atividade artística a prática de ator de uma oficina no Parque Lage do grupo teatral Asdrúbal Trouxe o Trombone[6], e, depois, no Circo Voador sob a direção de Perfeito Fortuna. O canto de Cazuza começa, portanto, incorporado à técnica teatral.
Primeiro cantor integrante da banda
Barão Vermelho, Cazuza assume certa postura combativa do rock em suas
performances vocais. Combinando rebeldia com boemia, nas narrativas de suas letras, o cantor propõe observar os bares do
Baixo Leblon como um cronista faria em sua tribo. Inscrevendo-se, de
certa forma, em certas tradições culturais subversivas, tais como a beat e a do rock and roll, Cazuzatoma
de empréstimo certa noção romântica de um artista à margem do mundo, noturno e noir, para quem a
noite conflui com a hora do artista:
Acho que o poeta é um insatisfeito. Então a noite, a vida noturna, a vida boêmia, da farra, são geralmente frequentadas por pessoas insatisfeitas… Acho que é a própria insatisfação do artista que o leva a ter uma vida desregrada… Você diz que eu sou poeta, mas eu me considero um letrista, gosto de falar que sou letrista, porque eu acho que tem uma distância entre poesia e música popular… […]. Eu tenho vários lados. O lado escuro é um lado muito forte, porque sou muito boêmio, vivo muito de noite. Gosto muito da noite, acho que ela é um espaço, um território livre para tudo. Não sei… a noite é muito dramática, muito bonita. As pessoas que saem na noite, procuram algo que na verdade não vão encontrar, mas elas curtem a procura […]. Tudo de noite é mais interessante. […]. Os marginais estão mais perto de Deus. Toda ovelha desgarrada ama mais, odeia mais, sente tudo mais intensamente, embora eu mesmo não me sinta assim. Talvez eu seja mais burguês do que transmito em minhas músicas. Eu convivo com essas pessoas e o que faço é uma espécie de defesa deles. Quando a Brasiliense começou a lançar as obras de Kerouac, Ginsberg, Burroughs, eu quase fiquei pirado, porque eu fazia algo ligado a eles e não sabia. Penso que os anos 50 têm muito a ver com os anos 80. Era uma época de repressão que se soltou lá pela década de 60 como agora (Cazuza apud Araújo, 2007, p. 363-96).
Misturando Lupicínio Rodrigues com
a melancolia do blues, Cazuza se
apropria do kitsch e associa os
conteúdos passionais das letras com interpretações viscerais e muitas vezes
irônicas daquilo que canta. Para Cazuza construir sua persona na esfera, a influência de Dolores
Duran é tão importante, por exemplo, quanto ade Allen Ginsberg. Em algumas das letras de Cazuza (como “Vem
comigo”, “Completamente blue”, “Ponto fraco”, “Dolorosa” e “Meu cúmplice”), o
bar é tratado como lugar do trânsito e da alta madrugada, espaço em que o poeta
espera resgatar algum amor perdido.
Como descreve Benedito Nunes, os românticos são homens do mundo com uma sensibilidade capaz de reunir pensamento e sentimento em seu agir (Guinsburg, 1978). Insatisfeitos com a impessoalidade de uma razão positivista e com a clareza iluminista do dia, a sensibilidade romântica alemã elege a noite e a sombra como extensões de seus pensamentos errantes. Se, a partir do romantismo, passa a ser possível pensar na figura dramática do artista moderno como um herói noturno e incompreendido, as fronteiras identitárias dos poetas beats são construídas por meio de certo elogio neorromântico dos marginais e dos drop-outs da sociedade. A sensibilidade beat[7] radicaliza tal proposição romântica, transformando a noite em um valor positivo da vida e da arte. Para o poeta beat, “pessoa” e persona são indissociáveis.
Em paralelo aos poetas beats, a temática do artista transgressor
é estabelecida singularmente por Cazuza, por exemplo, em “Só as mães são
felizes”, penúltima música do álbum Exagerado
[1985]. Composta a partir de frase homônima do escritor norte-americano Jack
Kerouac (do livro Scattered Poems [1971]),
a sua letra é desenvolvida a partir de citações imaginativas de poetas e
músicos malditos que percorrem um
submundo ficcional carioca. Na letra de Cazuza são mencionados Arthur Rimbaud,
Lou Reed, Allen Ginsberg e Luiz Melodia, vagando pela noite do Rio de Janeiro e
atualizando a categoria do poeta maldito através
de autores que o cantor admira, como exemplificou Cazuza numa entrevista, em fevereiro de 1986, para o Jornal da Bahia:
Essa música foi feita a partir de um verso do Jack Kerouac, uma frase de um poema dele que me deixou muito intrigado. A frase é muito radical: ‘Só as mães são felizes’. Dita desse modo parece que ninguém mais é. Eu usei a frase como brincadeira porque na verdade a música é uma homenagem a todos os poetas malditos. As pessoas que, de certa forma, vivem o lado escuro da vida, o outro lado da meia-noite. Eu quis fazer uma homenagem a esse tipo de poeta, de cantor, aos loucos da vida. Gente que barbariza, que é santo e demônio ao mesmo tempo. Então ficou como uma homenagem a esses caras. Minha citação de Kerouac é igual como quando cito Allen Ginsberg, Melodia, Lou Reed e outros […]. Mostrar esses poetas é sofisticado, o grande público talvez nem entenda, mas quem curte esse tipo de poesia vai sacar (Araújo, 1997, p. 203-204).
Mais do que uma homenagem, em “Só as mães felizes”, tal sugere ser
o curta-metragem de Cazuza no submundo carioca: “Rimbaud traficando escravas brancas”, “Lou Reed walking on the wild side”, Allen Ginsberg fazendo “michê na (galeria) Alaska” [8]. Em tal supracitada canção, Cazuza transita pelo submundo da noite com auxílio de seus “poetas”, tal como fez Dante Alighieri na Divina
Comédia [1321], ao ser guiado no “Inferno” e no “Purgatório” pelo poeta Virgílio. Também, ao invocar tais artistas transgressores em algumas de suas imagens, Cazuza aciona certos traços arquetípicos do rock and roll como música potencialmente subversiva, maldita e marginal.[9]
Em analogia, sobre o artista que interliga intrinsecamente vida e arte, é possível traçar uma linha de diálogo entre as personas do poeta maldito Arthur Rimbaud e de certos roqueiros como Jim Morrison. Com o interesse pelo lado escuro e trágico da vida, a inquietude, a inadequação e a embriaguez dionisíaca, ambos encarnam um mito do artista boêmio, vagante e exilado como um anti-herói moderno[10]. Nesse sentido, Wallace Fowlie (2005) discorre sobre a atração que Rimbaud exerce sobre o universo do rock:
O uso que Rimbaud faz da palavra ‘anjo’ em toda sua obra após o poema de 1870 caiu no gosto dos cantores de rock e dos jovens que cercavam os músicos, a quem chamávamos de flower children. Eles viam em Rimbaud um homem (na verdade, um adolescente) purificado da corrupção do mundo. Esse é o significado da palavra ‘rebelde’ que eles atribuíam a Rimbaud, e mais tarde, a Morrison. Bob Dylan foi um dos primeiros cantores a falar de Rimbaud em suas músicas, a recomendá-lo e a exaltá-lo. Na primeira canção de seu álbum Blood on the Tracks [1975], ele canta: ‘Relationships have all been bad, / Mine’ve been like Verlaine’s an Rimbaud’. A Rolling Stone recentemente reeditou uma entrevista que Bob Dylan concedeu a Allen Ginsberg. Depois de algumas indagações bastante relevantes, Ginsberg finalmente pergunta: ‘Tem algum poeta pelo qual você se interesse de verdade?’. ‘Só dois’, foi a resposta de Dylan: ‘Emily Dickinson e Arthur Rimbaud’ (Fowlie, 2005, p. 30).
Leitura análoga tem Paulo Leminski
(2001) na crônica intitulada “Poeta roqueiro”, em que compara Rimbaud a um
roqueiro marginal e transgressor:
Aí vem o primeiro marginal. Vivesse hoje, Rimbaud seria músico de rock. Drogado como o guitarrista Jimi Hendrix, bissexual como Mick Jagger, dos Rolling Stones. ‘Na estrada’, como toda uma geração de roqueiros. Nenhum poeta francês do século passado teve vida tão ‘contemporânea’ quanto o gatão e ‘vidente’ Arthur Rimbaud. Pasmou os contemporâneos com uma precocidade poética extraordinária – obras-primas entre os 15 e 18 anos. De repente largou tudo, Europa, civilização ocidental-cristã, literatura, e cometa se mandou para a Abissínia na África. Lá, longe da Europa branca e burguesa que odiava, levou a vida do mercador árabe, traficando armas, virando desertos nunca antes pisados, vivendo a grande aventura infantil, pré figurada em nome de seu rei lendário. […]. Enfim, como diz o próprio poeta: ‘Eu é um outro’. A melhor poesia de Rimbaud esteve, porém, em seu gesto final: a recusa do ‘sucesso’, a escolha do ‘fracasso’, a derrota da literatura, inimiga da poesia, para que esta triunfasse (Leminski, 2001, p. 110-111).
Por sua vez, em Uma temporada no inferno [1873], Arthur Rimbaud afirmou não ser o poeta prisioneiro de sua razão, sendo somente através de um extenso desregramento dos sentidos que o poeta poderia se tornar vidente[11]. Sobre Rimbaud e o universo do rock, é ainda importante mencionar uma litografia do poeta de antepassados gauleses feita por Pablo Picasso, em 1960, em que a figura do poeta foi representada com uma juventude vigorosa, com seu cabelo assumindo o aspecto boêmio e inconformista dos punks.
Dessa forma, como procuramos discutir neste artigo, Cazuza e Arnaldo Antunes articulam, cada um à sua maneira, o constructo do rock and roll dentro da cultura brasileira, realizando, assim, certa renovação formal do rock no Brasil. Ampliam, assim, certa aptidão brasileira moderna de íntima articulação entre a canção popular e a linguagem literária, que, além de um modo particular de expressão, vem a ser, também, umas das formas próprias de reflexão da arte e da cultura. Tal é, segundo José Miguel Wisnik (2004), a perspectiva relacional brasileira de correlação entre a canção popular e a literatura, a partir do disco Tropicália: não uma aproximação exterior pela qual as melodias servem de suporte às inquietações cultas e letradas, mas, antes, a demanda interior de uma canção aproximada a um estado musical da palavra, perguntando à língua o que ela pode, e o que ela quer. Partindo de uma multiplicidade tropicalista catalisadora de novas dicções, nos anos de 1980, certo rock produzido no Brasil seguiu certa tradição intertextual da música popular brasileira e a potencializou, como é possível observar particularmente no caso de Arnaldo Antunes e Cazuza.
* Augusto de Guimaraens Cavalcanti é doutor pelo Departamento de
Ciências Sociais da PUC-Rio e, atualmente, pós-doutorando no programa do
PACC-Letras da UFRJ, sob orientação de Beatriz Resende. Em 2015 defendeu a tese
“Surrealismo no Brasil: a origem
animal de deus, O púcaro búlgaro e Invenção de Orfeu: Flávio de Carvalho,
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Notas
[1] Este
artigo é um desdobramento da dissertação Arte
e vida: Lobão, Arnaldo Antunes e Cazuza, por mim defendida em 30 de abril
de 2010, sob orientação de Santuza Cambraia Naves, sendo, também, uma homenagem
à memória de Santuza, que veio a falecer em 2012.
[2] A
formação inicial da banda paulistana tinha nove integrantes: Arnaldo Antunes,
Branco Mello, Marcelo Fromer, Nando Reis, Paulo Miklos, Sérgio Britto, Tony Bellotto,
Ciro Pessoa e André Jung, contando também com participações do artista plástico
Nuno Ramos nas primeiras apresentações da banda. Do Trio Mamão faziam parte Tony Bellotto, Marcelo Fromer
e Branco Mello. Tal coletivo musical chegou a abrir alguns shows de Jorge
Mautner em São Paulo e se inspirava numa certa visão de mundo tropicalista, com roupas multicoloridas
e araras decorando o palco. O grupo Os Camarões, por sua vez, do qual
participava Nando Reis, tinha um som próximo ao de Bob Marley e Jorge Ben Jor.
Já da Banda Performática do Aguilar faziam parte Arnaldo Antunes e Paulo
Miklos. Influenciados pelas experimentações de John Cage, este coletivo
performático acompanhava o artista plástico José Roberto Aguilar, realizando
apresentações teatrais e criando paródias que remetiam às artes visuais, como a
música “Monsieur Duchamp” (de Paulo Miklos e Aguilar), que relatava a chegada
do dadaísta francês ao aeroporto do Galeão.
[3] Todavia,
tal leitura não é aceita da mesma maneira por todos os integrantes da banda.
Nando Reis, por exemplo, opõe-se à associação oswaldiana que fazem com suas músicas, afirmando ser “muito mais
barroco” do que Arnaldo Antunes e, também, declarando, a propósito: “Eu não sou
um manifesto Pau-Brasil. A carnavalização esconde a eterna visão do
colonizador” (Reis apud Trotta, 1995,
p. 100 & Reis apud Leoni, 1995,
p. 261).
[4] O isomorfismo é
um termo matemático utilizado para designar o caso de abstração em que duas
classes apresentam as mesmas propriedades. Tal termo foi utilizado pelos poetas
concretos primeiramente no Manifesto da Poesia Concreta [1958].
[5] Como explicita Augusto de Campos no manifesto Poesia Concreta [1955], verbivocovisual é um termo criado por
James Joyce para designar “palavras dúcteis, moldáveis, amalgamáveis, à disposição
do poema”. (Campos & Pignatari 2006, p.56).
[6] Dirigido por Hamilton Vaz Pereira, o Asdrúbal Trouxe o
Trombone influenciou, de certa forma, a linguagem do rock
carioca do início dos anos de 1980, uma vez que também Evandro Mesquita foi
ator da companhia teatral antes de formar a Blitz. Não por acaso, Nelson Motta
(2000, p. 328) descreve o grupo performático como mais se assemelhando a uma
banda de rock do que a uma companhia teatral. Em contexto carioca do início dos
anos 80, contribuiu também para o entrelaçamento entre música e teatro o espaço
físico da lona cultural do Circo Voador, onde peças de teatro eram intercaladas
por apresentações de bandas e happenings
de poesia.
[7] O próprio termo beat,
em inglês, provém de beated, isto é:
“golpeado”, “derrotado” e “batido”. Por seu turno, o termo beatnik foi criado pela mídia
norte-americana no final da década de 1950 para designar um fenômeno coletivo
de uma geração derrotista que rimava com Sputnik.
Indo contra tal acepção, Jack Kerouac, em entrevista de 1959, propôs que o
termo beat fosse ressignificado como
“beatitude” de uma poesia à margem da literatura. (Willer, 2009, p. 81).
[8] Nome em referência à Galeria Alaska, ponto gay famoso da Copacabana dos anos 80. Na
letra de “Só as mães são felizes”, há ainda uma menção à discoteca Barbarella, casa de strip-tease na zona
de prostituição da rua Prado Júnior, também em Copacabana. Ainda, na
letra de “Só as mães são felizes”, Cazuza afirma, ironicamente, que já bebeu
cicuta (veneno que Sócrates tomou para morrer) misturada com champanhe. No ano de 1986, “Só as mães são felizes” chegou a ter sua
execução pública proibida pela Censura Federal, devido a alguns versos
considerados escatológicos e alusivos ao incesto.
[9] Sobre as
categorias marginal e maldito, é
importante ressaltar suas diferenças. O termo maldito foi criado por Paul Verlaine em ocasião da antologia Poètes maudits [1884],em resposta ao ato de Anatole France
ter recusado um poema de Stéphane Mallarmé e um soneto do próprio Verlaine para
uma antologia publicada no terceiro volume da revista Parnasse contemporain [1876]. De outra maneira, o termo marginal remete a uma geração poética brasileira dos anos de 1970
que visou trabalhar a linguagem coloquial na literatura, postulando uma
proximidade entre poesia e vida, e incorporando, assim, as conversas do
dia-a-dia ao poema. Em período militar, a poesia marginal buscou sobreviver distante do mundo institucionalizado,
politizando o cotidiano e misturando certa marginalidade de conteúdo com certa
marginalidade ideológica naquilo que versava (Hollanda, 1998 & Pereira,
1981).
[10] Como
aponta Wallace Fowlie (2005, p. 134), Arthur Rimbaud teria influenciado de tal
maneira Jim Morrison que este teria passado a declarar em seus dois últimos
anos de vida que, quando morresse, preferia ser lembrado como poeta e não como
cantor de rock. Quatro meses antes de sua morte, o cantor norte-americano se
mudou para Paris com o intuito de virar escritor e morar na mesma área em que
Baudelaire vivera como um dândi. Através de uma trajetória de vida extremada e
transgressora, Morrison se vestia de preto e era contra o flower power dos hippies.
[11] De
outra forma, através do eu lírico do poema “O homem justo”, Arthur Rimbaud
(1994, p. 173-175) expõe: “Sabes que sou maldito! E louco, e ébrio, e lívido.
(…) Ventos noturnos, vinde ao maldito!”. Já nos versos de “A orgia Parisiense (ou) Paris se repovoa”, o
poeta de ancestrais gauleses realiza um outro tipo de elegia dos malditos como motivo de poesia: “Eis que
o Poeta vos diz: ‘Covardes, sede loucos!’ (…). Sifilíticos, reis, loucos,
bufões, ventríloquos, / Que lhe importa, a Paris-puta, os vossos corpos, /
Vossas almas, e mais vosso veneno e andrajos? (…). O Poeta irá tomar o pranto
dos Infames, / Os ódios do Forçado, as queixas dos Malditos:/ E as Mulheres serão flageladas de amor. /
Seus versos saltarão: Ei-los! Ei-los! Bandidos! (p. 157-159).
Resumo:
Luís
Capucho é uma voz singular da literatura e da música brasileira das últimas
décadas. Este artigo busca apresentar algumas questões centrais de suas canções
e de seus livros, observando elementos temáticos, como o universo maldito e a
representação dos cinemas pornográficos, da masculinidade, do homoerotismo e da
figura materna, bem como os procedimentos formais de transfiguração do real
realizados em sua obra. Assim, refletiremos sobre a relação entre o sagrado e o
profano, e o arco luminoso que o artista constrói com suas palavras.
Palavras-chave:
Luís
Capucho; Cinema Orly; canção popular;
literatura LGBT.
Abstract: Luís
Capucho is a unique voice of literature and Brazilian music of the last
decades. This article aims to present some central questions of his songs and
books, observing thematic elements, such as the cursed universe and the representation of the pornographic cinemas,
masculinity, homoeroticism and the maternal figure, as well as the formal
procedures of transfiguration of the real in his work. Thus, we will reflect on
the relationship between the sacred and the profane, and the luminous arc that
the artist constructs with his words.
Keywords:
Luís
Capucho; Cinema Orly; popular song; LGBTliterature.
“Qual costuma pintar Íris teu arco/ No dilatado Céu, quando aos Solares Raios se opõem os líquidos chuveiros:/ Nele brilham mil cores diferentes,/ Mas não podem os olhos enganados/ Discernir onde as cores se terminam:/ Parecem na união, que elas são uma;/ Porém têm (não sei qual) certa diferença,/ Quanto mais vão buscando as tênues orlas,/ Cambiando-se as tintas”(Ovídio)
Primeira luz: a
voz capucho
Em 2016, o artista e pesquisador Bruno Cosentino me convidou
para fazermos juntos um projeto de audição e entrevistas com artistas da cena musical brasileira contemporânea. Surgiu, assim, a série Escuta, que passou a ser realizada no Núcleo da Canção do PACC[1] da UFRJ. Para a primeira edição, Cosentino sugeriu o nome de Luís Capucho, que eu não conhecia até aquele momento. Na ocasião, escutamos seu álbum Poema maldito.
Luís Capucho aceitou participar do Escuta, mas ficou reticente de como seria se colocar naquela
situação, de fazer uma entrevista longa, gravada e com público. Capucho pediu,
então, que eu enviasse as perguntas antes, para que ele se preparasse, alegando
sempre um receio de não conseguir organizar as ideias com fluidez no improviso.
Atendi ao pedido e enviei o roteiro que eu e Isabela Bosi havíamos organizado.
Pouco depois, Capucho me enviou uma mensagem, dizendo que
não havia compreendido uma das perguntas. Acontece que o disco começava por uma
canção chamada “La nave va”. Convicto de que estava fazendo uma questão
inteligentíssima, perguntei da relação do compositor com o cinema de Fellini,
já que o álbum se iniciava com uma nítida
intertextualidade com o filme homônimo do diretor italiano, de 1983. O fato é
que ele desconhecia em absoluto o tal filme. A letra não era dele, mas de
Manoel de Barros, segundo me explicou.
Minha amizade com Capucho creio que nasceu desse equívoco. Na
entrevista, ele quis falar sobre o filme (que não viu) e de como a sinopse que
contei a ele era reveladora de uma coisa do disco. A entrevista, porém, não foi
fácil. Lembro-me das longas pausas que ele fazia em diversos momentos e das reiteradas
vezes em que se queixou sobre a dificuldade em ordenar o pensamento. Em muitas
perguntas que eu formulei, acreditando estar sendo profundo, recebi respostas
lacônicas. Em outras, aparentemente banais, obtive respostas bonitas e
imprevistas. Em uma delas, eu perguntava sobre a questão da marginalidade, do
que representava estar “na beirinha” (como diz a “Música de sábado”) e ele me
respondeu que as palavras são essa beira, esse estar no limite da possibilidade
de expressão, de comunicação. Essa resposta lançou grande luz sobre a própria
entrevista, mas também sobre sua obra e, por fim, sobre sua enigmática figura.
* * *
Luís Capucho é um daqueles artistas cuja história de vida é fundamental para compreender a obra. O artista nasceu em Cachoeiro do Itapemirim no Espírito Santo (tal como Roberto Carlos), em março de 1962. Filho único, foi criado apenas pela mãe, com quem se mudou em 1974 para Niterói, no estado do Rio de Janeiro[2].
Lá se graduou em Letras na UFF nos anos 1980.
Sua produção musical, no entanto, começou a ser registrada somente a partir da década de 1990, com o álbum Antigo, que apesar de gravado ao vivo no Café Laranjeiras no Rio em 1995, só foi lançado em 2013. O disco apresenta canções emblemáticas como “Máquina de escrever”, “Mamãe me adora”, “O amor é sacanagem” e “Maluca”. Desse trabalho, saíram algumas gravações de artistas de visibilidade, como a versão de Cássia Eller para “Maluca” (no álbum Com você … meu mundo ficaria completo,de 1999), e a de Pedro Luís e a Parede para “Máquina de escrever” (em Astronauta tupy, de 2004).
Vale registrar também que Pedro Luís e Rodrigo Campello produziram em 1996 o álbum coletivo Ovo – novíssimos, que contava com a gravação prévia de “O amor é sacanagem” de Luís Capucho, além de reunir outros compositores, alguns dos quais parceiros do artista, como Marcos Sacramento e Suely Mesquita. Após esse momento embrionário, vieram mais três discos autorais: Lua singela, em 2003 (que traz a canção homônima, além de gravações inéditas de “Sucesso com o sexo” e “A vida é livre”, bem como as regravações de “Máquina de escrever” e “Maluca”); Cinema Íris, em 2012 (com outras tantas canções significativas, como “A música do sábado”, “Cinema Íris”, “Eu quero ser sua mãe” e “A expressão da boca”) e, por fim, Poema maldito, em 2014 (que conta com músicas como “Poema maldito”, “Mais uma canção de sábado”, “Meu bem” e “Cavalos”).
Cabe pontuar, neste momento, que um
dado biográfico é de extrema relevância para a compreensão da trajetória e da
estética do compositor. Em 1996, Luís Capucho foi acometido por uma
neurotoxoplasmose, que se desenvolveu em função da baixa imunidade decorrente
do vírus HIV. Com isso, Capucho ficou em coma durante um mês, e o quadro teve
consequências significativas em sua coordenação motora e em sua fala. Essas
sequelas impactaram, portanto, diretamente o exercício da composição e do canto
do artista. Sua voz tornou-se mais grave e áspera, o que não deixa de ter
consequências estéticas (e existenciais) relevantes, na medida em que os traços
particulares de sua nova dicção acabaram gerando uma consonância com o espírito
“marginal” que caracteriza sua produção artística.
Note-se ainda que o episódio permite dividir sua produção musical, de modo que apenas o álbum Antigo (gravado em 1995) apresenta o registro de sua voz antiga, mais lisa e fluida, enquanto os discos Lua singela (2003), Cinema Íris (2012) e Poema maldito (2014) já apresentam sua nova dicção, áspera, esforçada e, sobretudo, mais densa que a anterior. Em seu programa A voz humana,da Rádio Batuta (em 2016), Eucanaã Ferraz incluiu a canção “Poema maldito” de Luís Capucho no episódio “A voz dos marginais”[3]. No texto de introdução, o apresentador cita um fragmento do livro Mamãe me adora, em que Capucho explica:
Minha voz é muito estranha, por causa da minha incoordenação motora. Tenho dificuldade para pronunciar os fonemas e a força que preciso fazer para dizê-los, incham-me as veias do pescoço. Também para que elas saiam é necessária muita concentração e, desse modo, as palavras ficam lentas, explicadas, com a pronúncia exagerada pelo esforço em dizê-las. E embora saiam explodidas, altas, roucas e arranhadas, são sempre minuciosas em sua pronúncia.
Em seguida, Eucanaã conclui:
A voz de Capucho casa-se exemplarmente com sua música, como se não houvesse sequer separação entre elas. Pode-se pensar em roucos, como Tom Waits ou Leonard Cohen. Penso em Nelson Cavaquinho, na sua aspereza pungente, que como em Capucho, faz inseparáveis canto, composição, instrumento, palavra e vida.[4]
A observação acima faz lembrar os versos de “A expressão da boca”, nos
quais Luís Capucho afirma que “a expressão da boca define a pessoa”, “conduz
aos outros movimentos dela”, “dá sentido para os olhos”, “centraliza o
sentimento”, “revela a pessoa no momento/ e também revela a pessoa mais
completamente/ a pessoa fora do momento” e conclui: “é onde sopra o espírito”. A
palavra emite-se, portanto, na confluência entre a vida e a voz, encontra no
instrumento musical seu suporte, ganha integridade e revela um corpo e um
espírito. Arco entre o mundo interior e o mundo exterior, a voz também se
desenha em um lugar na beira, e é elemento relevante do processo de
transfiguração do real empreendido por muitas de suas canções.
* * *
Além das canções, Luís Capucho também é autor de livros em prosa. Note-se, em primeiro lugar, que as consequências motoras do coma impuseram, incialmente, uma dificuldade para o exercício de composição musical. É justamente neste momento que Capucho migra para a literatura, lançando o livro Cinema Orly (em 1999). Só em 2003 (sete anos após o incidente), ele retornou à música, com Lua singela. O disco seguinte, nove anos depois, foi Cinema Íris, de 2012, curiosamente, um álbum diretamente vinculado ao universo de seu livro de estreia. Nesse intervalo, continuou a desenvolver sua obra literária, com Rato (em 2007) e Mamãe me adora (em 2012). Encerram a linha cronológica o álbum Poema maldito,em 2014, e o livro Diário da piscina,em 2017, consolidando sua dupla inclinação à literatura e à canção popular.
É importante também ressaltar que os livros herdam do universo de sua
canção uma proximidade muito estreita entre a arte e a vida, buscando, em
microcosmos cotidianos, um espaço onde se encenam as questões humanas (do
desejo, do amor, do sexo, da angústia, da doença e da morte), bem como a
estranheza do mundo (e do estar no mundo). Isso se relaciona diretamente a uma
espécie de pulsão do olhar, que
parece à vontade no exercício de transfigurar a vida banal, acentuando seu
estranhamento, desdobrando as imagens, dotando-as de uma força paradoxal de
materialidade sublime. Na mesma esteira, sua poética (nos livros e nas canções)
dá protagonismo a corpos e a espaços, que se projetam e se contaminam
reciprocamente.
A partir disso, podemos compreender melhor os quatro livros publicados
pelo autor. O primeiro, Cinema Orly (1999), é uma espécie de registro
autobiográfico, que oferece um retrato dos cinemas pornográficos do centro do
Rio e dos personagens que o frequentavam. Em seguida, publicou Rato (2007), livro ficcional (mas com
evidentes traços autobiográficos) que conta a história de um rapaz e sua mãe em
uma espécie de casa de cômodos, em que se alugam vagas para rapazes. O
terceiro, Mamãe me adora (2012),
conta uma viagem entre Rio de Janeiro e Aparecida do Norte em que, mais uma
vez, aparecem elementos da vida do autor – a homossexualidade, a recuperação do
corpo, a presença da mãe e seu processo de decadência física e morte. Por fim, Diário
da piscina (2017) conta o funcionamento cotidiano das aulas de
natação nas quais o autor-narrador buscava se recuperar das sequelas motoras do
já citado incidente.
Por fim, vale notar que a aproximação entre a arte e a vida, para além
de seu lastro romântico e de sua vizinhança com a literatura beat e com
os poetas malditos da modernidade, também encontra ressonância no cenário pós-moderno,
no qual o rompimento das fronteiras entre o público e o privado, a valorização
das narrativas à margem, a centralidade do lugar de fala e das questões
identitárias e, por fim, a consciência do corpo como espaço político dão o tom
das discussões estéticas, sociais e políticas. Por isso, o sempre tensionamento
entre o autobiográfico e o ficcional (que atravessa toda sua produção
literária) e o protagonismo da questão do corpo (e, com ela, do desejo, da
homossexualidade e, com grande ênfase, da masculinidade) formam traços notáveis
de suas obras.
Segunda
luz: o cinema pornô
A
produção literária e musical de Luís Capucho aparece profundamente marcada pela
sua experiência nos cinemas pornográficos do centro da cidade do Rio de
Janeiro, com destaque para o Cinema Orly, o Cinema Írise, em menor escala, o Cine Rex.
Na verdade, podemos localizá-los temporalmente na esteira do processo de
crise dos cinemas de rua; nos anos 1980, diante da retração do mercado, muitos
deles aderiram à programação pornográfica (que era mais barata) e aos shows de strip-tease, atraindo um público
majoritariamente masculino e popular. Esses espaços também ficaram conhecidos
como “cinema de pegação”, nos quais as experiências homoeróticas, a presença
das travestis e da prostituição encontravam espaço, na penumbra das salas e do
mundo social, para se manifestar.
O
Cinema Orly, como muitos outros cinemas do tipo (incluindo o Cine Rex), fica na
Cinelândia, nas proximidades de onde atualmente está o Teatro Rival, o Bar Amarelinho
e a Câmara dos Vereadores. O cinema é de 1934, mas recebeu o nome de Orly
apenas em 1974, estreando sua programação pornográfica, como se disse, nos anos
1980, tal como ocorreu ao Cine Theatro Íris, que fica na rua da Carioca (em
frente ao extinto Cine Ideal), próximo à Praça Tiradentes. O Íris é ainda mais
antigo, de 1909, mas só recebeu este nome após uma reforma em 1921, que lhe deu
sua ornamentação art nouveau.
O
nome Cine Íris vem do fato de que havia um painel da deusa homônima em sua
entrada. Íris, na mitologia grega, é a mensageira de Hera (e comunicação entre
os deuses e os mortais, ligando o céu à terra) e personificação do arco-íris (em
função do rastro multicolorido que deixava ao cruzar os céus). As luzes e as
cores do cinema, bem como sua natureza comunicativa, ajudam a dar sentido à relação
(para além de os filmes fazerem a ligação entre o olimpo dos astros e estrelas
do cinema e a plateia de mortais). Vale lembrar que, posteriormente, na virada
dos anos 1970 para 1980, o arco-íris se consolidou como símbolo dos movimentos
LGBTs, acrescentando mais uma camada de sentido na interseção entre o cinema e
a entidade.
Esses dois cinemas, em especial, vão inspirar
duas obras-irmãs: o livro Cinema Orly (1999) e o disco Cinema Íris (2012),
que, tomados em conjunto, permitem algumas miradas esclarecedoras sobre a obra
de Luís Capucho. Em especial, podem revelar os ambientes underground que
permeiam o universo do compositor “maldito”, e atravessam alguns de seus temas
mais recorrentes, mas também alguns de seus recursos estéticos, como a pulsão
do olhar, a transfiguração da realidade e a aproximação entre o sagrado e o
profano, o sublime e o vulgar, enfim, o céu e a terra, cindidos e ligados por
sua expressão luminosa.
Cinema Orly – que
ganhou em 2005 o Prêmio Arco-Íris de Direitos Humanos –é uma espécie de livro de memórias sobre a experiência do narrador
enquanto frequentador do Cinema Orly. O caráter autobiográfico do livro se confirma
segundo o conceito de “pacto autobiográfico” proposto por Philippe Lejeune:
observamos uma identidade explícita entre autor e narrador, que é marcada de
diversas formas. Nesse sentido, sabemos que o enunciador é um cantor e
compositor (são citadas oito composições suas, vinculadas à experiência do
cinema, entre elas “O amor é sacanagem”, “Cinema Orly”, “Íncubos” e
“Savannah”), que foi criado só pela mãe e que não conheceu seu pai, e que, no
momento da escrita, encontrava-se “claudicante, impossibilitado de tocar violão
e com a voz do homem elefante”, em evidente referência às sequelas motoras do
coma.
Na narrativa, o Orly é descrito como um espaço de culto, pertencimento e
autodescoberta, onde as regras de interação social e os valores morais aparecem
em registro bem diverso do mundo exterior. Em outro aspecto, trata-se de um
microcosmos onde se projeta determinado ciclo social, pertinente a determinado
tempo e espaço histórico, com descrições férteis para miradas de ordem
sociológica ou antropológica, mas também para reflexões acerca da formação das
subjetividades, das identidades de gênero e dos comportamentos sexuais.
Esse ambiente, em que a sexualidade (e, em especial, o homoerotismo)
pode ser exercida de modo mais livre, apresenta-se como espaço do possível, onde
se dá a realização consciente de fantasias eróticas e de desejos
inconfessáveis. Por outro lado, interessa notar que nesse espaço projetam-se
corpos entre as poltronas, que diante da pouca luz e do anonimato, e das
conversas muito furtivas, transformam-se todos em imagens, virtualizam-se em
pleno terreno do real. A materialidade inconteste dos corpos em exibição e fruição
sexual é justamente o que dá uma dimensão transcendente aos seres, que existem
para além de se pensarem.
Há ainda mais uma camada de interesse que se vincula ao fato de que há
também nesse narrador uma ideia fixa, paralela à da realização do desejo
homoerótico. Trata-se da projeção de um namorado, isto é, da possibilidade de
dar fim à solidão, que também atravessa todo o livro. Esse desejo aparece aqui
como marca subjetiva do narrador e como questão humana, mas também como resultado
de uma questão contextual, uma vez que a perseguição contra os afetos gays incide
diretamente sobre a dificuldade de relação desses sujeitos.
O livro apresenta uma introdução e seis capítulos, sempre com títulos
alternativos: 1) “Os répteis ou O parquinho ou Paus pra toda obra”; 2)
“Desconcerto para edipiano e orquestra ou Evolução de amor no trapézio ou O
namorado”; 3) “Hotel para cavalheiros ou Traíra ou A festa em que ganhei
cestinhas”; 4) “Ainda o namorado ou Os eliminados ou O fugidio périplo da bicha
baleira em dia de folga”; 5) “No meu bairro ou O matador ou Renan”; 6) “O
templo não para ou A lei do eterno retorno ou Parte final”.
A variação de títulos, que remete vagamente ao exercício clariceano de
“A quinta história” ou de A hora da estrela, é, antes de tudo, um
procedimento de iluminação. A realidade transfigura-se conforme a incidência
maior de luz sobre um fato ou outro. Veja-se, por exemplo, que o primeiro
título começa com a evocação dos répteis (animais rastejantes e algo
repugnantes), remetendo a um processo de animalização dos frequentadores do
cinema; muda logo para o título algo infantil “o parquinho” (metáfora-eufemismo
para espaços de “diversão”) e, por fim, termina com o trocadilho malicioso,
oriundo da expressão popular “paus pra toda obra”, evocando o objeto de desejo
mais adorado ao longo do livro. O exercício se repete nos outros títulos,
sempre obscurecendo o elo que dá sentido ao conjunto de nomeações. Observam-se
neles a reiteração da procura pelo “namorado”, questões de amor e sexualidade,
espaços de entorno e, por fim, a jornada cíclica do narrador no Orly.
O
primeiro capítulo do livro começa com dois fragmentos bastante ilustrativos. O
primeiro diz:
Há muito que não vou ao Orly assistir a um filme pornô e pagar um boquete. Ver na tela homens jovens nus com paus grandes, pernas abertas, muito grandes e gostosas, e sacos onde se pressente a umidade e o odor, deixando o nosso peito incandescido e a respiração inflamada. […] Sacos peludos sobre a pele gordurosa, que continuavam em paus engordados pela excitação, que ao invés de me trazerem à lembrança a imagem silvestre de um animal, de um sátiro, faziam com que eu tivesse reminiscências provocadas pelos meus sonhos mais românticos, de quando ainda eram pueris e eu achava possível que meu corpo voasse (Capucho, 1999, p. 17).
O livro
começa, portanto, marcando um distanciamento temporal entre o momento da
enunciação e os fatos narrados, transferindo a narrativa para o espaço da
memória. A forma crua e sem pudor com que se narram, em detalhes, as práticas
homoeróticas, com especial ênfase no sexo oral e na masturbação, é um tipo de
registro que atravessa todo o livro. O cinema e o sexo, dentro ou fora da tela,
apresentam-se como espetáculo de imagens, odores e sensações, que se
representam tanto em sua beleza erótica, como também em sua atmosfera grotesca
de suor, fumaça e sujeira, formando um conjunto obsceno em que o horror e a maravilha conjugam-se em vez de se
dividirem. Do mesmo modo, a aproximação entre o universo pornográfico e os
sonhos românticos também impede que se delimitem as cores da pureza e da
promiscuidade. Na sequência, o narrador afirma:
No Orly sente-se que somos répteis milenares, e então, a vida na penumbra do porão, do cinema, com sua camada de concupiscência em torno de tudo, é mais espessa: a luminosidade, o movimento, o oxigênio, o odor, tudo é mais espesso, porque os sentidos se aguçam (Capucho, p. 17).
O segundo
parágrafo apresenta “a vida na penumbra do porão”, apontando não só para a
questão da baixa luminosidade, como também para o fato de o Cinema Orly ser
numa espécie de subsolo e, portanto, literalmente um underground, um mundo escondido que serve de exílio para os que o
frequentam. Isso reforça também uma atmosfera de realidade paralela, provocada
não só pela antítese em relação ao “mundo lá fora”, mas também pelo próprio
aguçamento dos sentidos, que dá “espessura” ao ambiente. No conjunto da
descrição, o Cinema Orly aparece como ambiente marcado pela luz dos filmes moderando
a escuridão da sala, acentuada pela neblina de fumaça, que torna mais denso o
cheiro abafado de suor, sexo e cigarro.
Assim, o
livro que se abre falando sobre as cenas na tela, imediatamente se volta para
seu assunto principal, isto é, o que se passa na contratela, entre as poltronas
do cinema. Aqui, o sexo geralmente heterossexual da pornografia (em que homens
másculos performam uma sexualidade viril) refrata-se na plateia a partir da
experiência homoerótica, que não deixa de carregar em si o culto narcísico e
falocêntrico da masculinidade, que é um dos assuntos centrais do livro, e
também tema de destaque nas canções de Luís Capucho.
Logo no segundo
parágrafo, o ambiente espesso, habitado por répteis, já nos conduz a uma
transfiguração, que nos põe diante de uma realidade alternativa, em que o
espaço promove a metamorfose das criaturas, envoltas em uma atmosfera de
pertencimento. A escolha dos répteis reforça o ambiente pegajoso e os olhos
dilatados, em corpos que se arrastam, escalam e se esfregam entre as poltronas.
Vale lembrar que nessa classificação biológica se enquadram as serpentes (tão
simbólicas do universo do pecado original) quanto os lagartos e as lagartixas,
com seus corpos adaptáveis à temperatura do ambiente, sem falar nos camelões,
símbolos máximos, no reino animal, da capacidade de transformação adaptativa.
De resto, o adjetivo “milenares” também funciona como chave de interseção entre
os sentidos abertos pela sexualidade (tanto em seu caráter homoerótico, como em
seu exercício promíscuo), que se apresenta tão pré-histórica quanto os
dinossauros. O “parquinho” do título é também um parque jurássico, escondido em
sua realidade fantástica.
A
narrativa se segue sempre em exercício cíclico do “eterno retorno” ao Cinema
Orly, numa busca incessante de prazer sexual e de transitividade amorosa
(conjugados na reiterada procura de “um namorado”). A cada volta, novas
descrições acrescentam camadas de complexidade ao texto, que segue essa
espiral, apresentando um mosaico de personagens que definem e são definidos
pelo ambiente. Em dado momento, o narrador condensa essa profusão de corpos de
homens:
Havia homens muito velhos, mancos, com uma das pernas decepadas, muito gordos com barrigas enormes, homens maravilhosamente altos e magros. Muitos masculinos, muitos femininos, jovem com carisma, com charme, com cara de hospício, homens de bigode, de barba, imberbes, antipáticos, nojentos com cara de idiotas, louros, morenos, negros, mulatos, cabeludos, carecas, homens banguelas, fedidos, com nariz grande, homens robustos, mignons etc. (Capucho, 1999, p. 23).
Esse fragmento é especial, sobretudo,
porque faz o vínculo mais literal entre o livro Cinema Orly e a faixa-título do disco Cinema Íris. A letra divide-se em dois focos, começando pela “moça
que faz strip-tease no Cinema Íris” e depois, voltando-se para a plateia, onde focaliza
o mosaico de homens, claramente transposto do fragmento supracitado do livro.
Assim, temos uma primeira parte que diz: “A moça que faz strip-tease no Cinema
Íris/ sabe deixar o tempo pra trás/ ela avança o corpo nu/ e o tempo escoa na
beira do rio/ seus movimentos voltam-se suspensos no som/ enquanto homens
masturbam-se na neblina do cinema”. Esse último verso permite a transição do
foco para os homens:
Homens sentados assistem, Velhos mancos com uma das pernas decepadas Homens muito gordos, com barrigas enormes Homens maravilhosamente magros e altos Muitos masculinos Muitos femininos Jovens com carisma, com charme Com pernas muito gostosas abertas Aqueles tinham caras de veados Homens com caras cabeludos Homens com caras de bigode Homens com caras travestidos Homens com caras de hospício Homens com caras de mal
A semelhança entre as passagens da
letra e do livro gera uma confluência entre os dois cinemas que, a despeito de
suas particularidades, fundem-se em sua ambiência de neblina e sexualidade,
contemplada tanto em relação ao espetáculo do palco (ou da tela), como
principalmente, o espetáculo das poltronas. Mais uma vez, a coordenação entre
homens belos e horrendos, masculinos e femininos, formam um conjunto imagético
aprazível em sua diversidade, unificada pela captura simultânea.
Vale lembrar também que a imagem da
dançarina também aparece em outras canções de Luís Capucho, desde antes do
disco Cinema Íris. Curiosamente, a
primeira gravação do disco Antigo,de Luís Capucho, já fala sobre o universo dos cinemas pornográficos
do centro da cidade, dando centralidade à atriz e stripper Savannah, que veio a se suicidar em 1994, um ano antes do
show que deu origem ao CD. No livro Cinema Orly, a letra é citada na
íntegra, pouco após um comentário sobre a dançarina.
Na canção, seu nome é repetido a todo momento no início dos versos,
jogando luz sobre a dançarina, chamando atenção para si e para sua história. Ao
longo da letra, as roupas são dados fundamentais da composição da personagem
(“luva justa, preta ou branca, ou de cetim”, “dança sobre os saltos/ bico fino
de cristal”, que culmina com “capa anágua sutiã baby doll”). Curiosamente, são
justamente as roupas a serem tiradas que ajudam a compor o corpo sedutor que
promete se revelar.
O corpo, aliás, é revelado também em seu ágil movimento, que se imprime
na forma ligeira de cantar os verbos coordenados (“Savannah gira, abre, fecha,
cresce, dança, diminui”), reproduzindo o exato movimento da stripper. Há também um misto sagrado-profano em
sua adjetivação como “deusa” e “coquete”, seguido imediatamente por um registro
privado, íntimo, que transfigura a dançarina e a humaniza, posta em seu estado
de solidão, de desejo de transcendência afetiva. A rápida transição da dança
pública ao sentimento privado desenha a personagem entre a luz e a sombra, do
cinema e da vida, projetando-lhe a dualidade das criaturas marginais. A
melancolia do desfecho trágico (“imagina tudo acabado”) parece não enfraquecer
a dança mas sublinhar a própria precariedade da juventude, da beleza e da vida,
o que, contraditoriamente, torna-a mais bela.
No mesmo disco há ainda a canção “Romena” (parceria com Suely Mesquita)
em que aparece nova referência a uma dançarina: “Eu vi uma menina romena
dançando break/ deliciosa uma mínima romena dançando break”, ao que se segue o
refrão “Eu quero ter as maravilhas do mundo/ quero viver nas maravilhas do
mundo/ quero comer as maravilhas do mundo/ eu quero ser as maravilhas do
mundo”.
As repetições do final das estruturas
“romena dançando break” e “maravilhas do mundo” encerram os versos, encontrando
na repetição do movimento final de cada verso o movimento da dançarina. Seu
corpo se constrói, para além do break,
pelo adjetivo “deliciosa” e pelo adjetivo “mínima”, que reverbera no
substantivo “menina”, acentuando-lhe o traço de juventude e de beleza. Veja-se
também a variação e a gradação entre “ter as maravilhas”, “viver nas
maravilhas”, “comer as maravilhas” e “ser as maravilhas do mundo”. Assim,
começamos no desejo de acesso às maravilhas do mundo, que passam a ser um
espaço onde se vive e também uma coisa que se come, o que aqui se desdobra
entre o sentido sugestivamente sexual e a própria ideia de ingestão, de
introjeção por meio do olhar que devora a juventude e a beleza. Por fim, o ser
que tem, está e come as maravilhas contamina-se e torna-se ele próprio as
maravilhas do mundo.
Terceira luz: as imagens e o sagrado
Ainda sobre o Cinema Orly, penso que seja importante destacar agora três outros
elementos, de algum modo, relacionados: a virtualidade, a masculinidade e o
sublime. Em primeiro lugar, há uma recorrência no livro em afirmar que, dentro
do cinema, todos se transformavam apenas em imagens. Em dado fragmento, uma
batida policial faz com que se acendam as luzes do cinema:
Mesmo porque os veados nada mais são do que abstrações de homens. Um veado é apenas um nome social para um homem que prefere outro homem na cama. Assustados com o corte repentino no nosso ambiente de sexo, estávamos concretamente homens. Com o cinema em funcionamento, éramos outra vez abstratos, e o pau comia (Capucho, 1999, p. 24).
Veja-se que, se os “veados” são apenas
“abstrações” de homens, não é a condição concreta do sexo biológico que revela
a sexualidade, mas o abstrato desejo de se relacionar com outros homens.
Curioso também pensar que aqui, a homossexualidade aparece enquanto performance, tal qual as imagens na
tela, e o acender das luzes encerra o espetáculo e devolve ao mundo “real”. Em
outras passagens, afirma-se: “[no Orly] Todos poderíamos ser apenas uma imagem,
sem alma.” (p. 63) e, páginas depois, “No Orly, éramos todos anônimos, nem
mesmo a vendedora de balas tinha um nome pra mim. Éramos apenas uma imagem e
estava descobrindo como isso era bom” (p. 73). Nesses dois fragmentos, o interessante é
pensar como, no Orly, sem nomes e sem histórias, em meio a conversas curtas, os
frequentadores do cinema estavam protegidos enquanto imagens – era isso que
lhes garantia a liberdade necessária para concretizarem o que desejavam ser.
Para além dessa questão da
virtualidade, temos também que pensar sobre o problema da masculinidade que
atravessa todo o livro. Nos parágrafos finais, o narrador relata que, quando
criança, observava um rapaz lindo de vinte anos, sobre o qual afirma: “Para mim
esse rapaz era o símbolo da virilidade adulta e sonhava ansioso que eu
completasse vinte anos para, enfim, estar possuído da graça de ser um homem”. E
conclui:
Pois o Orly trouxe-me, antes do tempo pensado, essa masculinidade adulta tão esperada, embora não passasse de uma bicha. […] No Orly, não era uma bicha feminina nem masculina. Para mim, esse nada que eu era, a ausência de formação de imagens sensuais no meu espírito era a masculinidade, contribuía para ela meu corpo, minhas roupas, meus pelos, minha voz (Capucho, 1999, p. 140-141).
Se pensarmos o romance (tal como
Lukács), como uma trajetória em que o herói existe para conquistar sua essência,
é fundamental pensar que a masculinidade se revela, nesse fragmento, como ponto
de chegada dessa conquista. O livro Cinema Orly refere-se, portanto, a uma
representação da homossexualidade masculina e, sobretudo, da masculinidade
homossexual, impulsionada também por um processo de identificação narcísica. E
esse exercício só se torna possível exatamente no espaço em que os homens podem
se converter em imagens abstratas sob uma forma masculina (“corpo”, “roupas”,
“pelos” e “voz”).
Por fim, esse momento sublime de
realização do desejo de ter e de ser a coisa desejada (as maravilhas do mundo),
aparece em vários momentos do Cinema Orly,
não raro ganhando contornos sagrados. Vejam-se as duas citações:
A masculinidade, representada por um caralho, era tudo que eu queria possuir, que eu invejava, que achava bonito, como se eu fosse uma mulher, como se eu fosse uma criança, um anjo, um bicho, uma ave e do que mais gostava era ir ao cinema Orly e, sendo tudo isso, ver minha imagem refletida em sua lagoa, como na história de Narciso, ou de Eros e Psiquê de Fernando Pessoa” (Capucho, 1999, p. 20).
Essa superioridade masculina, a violência e a rudeza com que os homens fodiam, fazia-me pensar no que há de mais delicado, exatamente, como a força violenta das águas produz eletricidade e a eletricidade produz luz, que não é um objeto, mas faz parte do mundo das coisas delicadas e nos é difícil saber de que material é feito seu corpo (Capucho, 1999, p. 96).
O primeiro fragmento reforça a ideia de
projeção entre o desejo e a coisa desejada, tanto na referência ao mito de
Narciso, como também no “Eros e Psiquê” de Fernando Pessoa, onde a princesa
adormecida espera o infante que a despertaria e, no final, descobre que “ele
mesmo era a princesa que dormia”. No segundo fragmento, a idealização de uma
“superioridade masculina”, marcada pela virilidade, é representada pela
violência das águas, que produz eletricidade (em algumas passagens do livro, o
prazer do homem que recebe o sexo oral é descrito como um corpo eletrificado
pelas sensações) e esta, por sua vez, produz a luz, a luminosidade, a
iluminação. Da sombra à luz, do partido ao pleno, do profano ao sagrado, o
texto de Capucho vai representando, sob o signo de Narciso, a fruição livre do
prazer que conduz o sujeito à sua emancipação, à sua essência.
Por isso, vale pensar também em
fragmentos em que o narrador comenta a dimensão divina da experiência
homoerótica: “Antes de beijar um homem, achava que vê-lo nu, aberto, os pelos
amaciando a atmosfera, saco e pau escancarados junto ao tufo de pentelhos era
encontrar Deus” (p. 73). Não por acaso, há muitas referências ao longo do texto
que aproximam o cinema Orly a uma igreja ou um templo. Na própria letra de
“Cinema Orly”, citada no livro, afirma-se: “o Cinema Orly/ de terça a terça/ de
dez às dez/ abre as portas para os fiéis/ seja uma igreja seja um cinema/ o
Orly me beija”.
Essa aproximação entre o prazer e o
sagrado, que se reforça pela posição de joelhos na qual se reza ou se realiza o
sexo oral (já explorada imageticamente pela Madonna de “Like a prayer”),
percorre todo o livro por meio de uma espécie de culto falocêntrico, que
aparece também em algumas letras de Capucho como “São flores” (“que inferno e
que céu/ que diabo de tesão doido em mim/ que tudo são deuses/ os rapazes são
deuses pra mim/ que tudo são flores/ os caralhos são flores pra mim/ os deuses
com flores/ são flores pra mim/ que horrores-maravilhas”).
Tal arco luminoso entre o divino e o
humano, o narrador nos comunica em outra passagem do livro:
Isso me faz pensar nas pinturas renascentistas católicas, onde Cristo, Maria, Maria Madalena, Verônica, ou os anjos, os apóstolos, todos têm cara de prazer ou desejo sexual que se parece muito com a expressão de dor. Tem uma pintura que chama a atenção, porque Cristo, deposto da cruz no chão, com sangrentas feridas sob a coroa de espinhos, nas mãos, nos pés, tem a fisionomia de alguém que, numa cama, sofre de amor ou de prazer. Cristo está lindo nos braços de Maria que também sofre, olhando para o seu pau escondido sob aquela fralda branca. Maria também está linda (Capucho, 1999, p. 100).
Impressiona
no fragmento a capacidade descritiva do autor, que praticamente pinta a imagem com
palavras. Capucho, por meio da palavra “pau”, tão obscena à referência de
Cristo (ainda mais diante da piedade de Maria), devolve ao supliciado seu corpo
sensível e humano, escondido por trás da manta (aqui despida por meio da
palavra “fralda”). Cristo e Maria estão lindos no que revelam de sagrado e de
profano que reside nos corpos que gozam e penam. Isso tudo faz pensar tanto na
definição de Mathilda Kóvac sobre o livro de Capucho (“O Cinema Orly é sua via crucis do corpo e do espírito num
templo da Cinelândia”), como também em George Bataille, refletindo sobre o
erotismo por meio do Êxtase de Santa
Teresa ou da expressão de gozo na fotografia do supliciado chinês. A dor e
o prazer como expressões dos corpos conectam-nos a todos a nossa dimensão mais
humana e, portanto, mais sagrada.
Quarta luz: a transfiguração do real
Convém agora refletir mais detidamente
sobre os procedimentos estéticos que permitem a Luís Capucho promover a isso
que venho chamando de “transfiguração do real”. Comecemos pela canção
“Poltrona”:
Não digo que é só sonhar Mas nessa poltrona Me sinto assim um astronauta Um tapuia e uma princesa Eu fico assim meio sereia Meio reumático, paralítico Assim, meu corpo na poltrona Enquanto voam passarinhos Enquanto flores morrem na janela
E a poltrona Como a cama, como a nave, como o altar Como o trono, como o mar Oh, poltrona! Oh, poltrona! Oh, poltrona!
Eu não sei viver, não sei viver Sem teu calor Eu não sei sonhar, não sei sonhar Sem ter você Minha cabeça no seu braço E meu corpo no seu regaço Alto do chão
A poltrona que dá título à canção remete a um espaço de inércia, no qual
descansamos e, por vezes, assistimos a alguma coisa. A partir desse espaço “parado”
é que o sujeito sonha, ou seja, move-se em meio a uma realidade alterada. Vale
notar como a ideia da viagem para além, anuncia-se desde o signo do
“astronauta”, que é coordenado ao “tapuia”, à “princesa” e, depois, à “sereia”,
conduzindo-nos a personagens do imaginário infantil, que, além de se fixarem
como imagens, projetam também seus correspondentes cenários de fantasia. A
poltrona, por fim, também se transmuta, tornando-se “cama” (espaço do sono e do
sonho), “nave” (espaço celeste onde viaja o astronauta), “altar” (símbolo do
rito sagrado e da experiência mística), “trono” (que se vincula à princesa) e
“mar” (onde vivem as sereias).
Cabe sinalizar que a “poltrona” apresenta também uma interseção com o
universo do próprio cinema. Os versos finais da letra permitem essa leitura, na
medida em que o sonho precisa de outro sujeito que o dispare. Veja-se que
“minha cabeça no seu braço/ e meu corpo no seu regaço/ alto do chão”
possibilitam o deslocamento para o universo capuchiano dos cinemas
pornográficos e da transfiguração do real que neles se consubstancia. Do chão
ao alto, do repouso do colo físico à experiência sonhada, Capucho volta a
realizar seu processo de transformação.
Esse processo pode ser encontrado em uma série de outras canções do
autor. “La nave va” que abre O poema maldito, embora tenha letra de
Manoel Gomes, também se comunica com esse processo. O título, que poderia se
traduzir do italiano como “o navio vai” (e que curiosamente toca a proximidade
etimológica entre nave e navio ao aparecer em uma canção em português) dá
centralidade à janela como esse ponto de deslocamento da realidade por meio das
imagens: “eu olho a nave pela janela voando/ e eu parado olhando a nave voando/
nave bela sofisticada e que me leva a outros mundos”.
A janela aqui, tal como a poltrona na canção anterior, permite o
processo de viagem para outros lugares, ainda que o sujeito se afirme parado.
Vale pensar como a janela é justamente um espaço de beira, de limite, entre o
sujeito que olha e o objeto olhado; e a canção é o veículo da viagem, as
palavras também postas à beira. Na letra, o deslocamento da nave para a janela,
aparece nos versos “janela, objeto comum vulgar/ que não me leva a lugar
nenhum/ mas é por causa dela que eu viajo na nave/ é ela que me leva/ é ela que
é bela/ eu aprendi a amá-la através dos anos”.
A canção reverbera também em “Parado aqui” (“O céu estava azul/ o sol
tão brilhante/ e eu aqui parado penso, onde vai minha cena”). A letra vai sendo
construída em um crescente, em que sujeito pensa “onde vai a semana com tanto
acontecimento, com o homem, com a mulher, com a árvore na calçada, com a sombra
da árvore na casa…”. Outra vez, o eu-lírico inerte vai capturando o real em
movimento. A letra segue anaforicamente: “o céu estava azul, o sol tão
brilhante,/ o beija-flor voar/ o céu das janelas abrir/ o céu da árvore crescer
da sombra da árvore”. O paralelismo sintático é atravessado por uma
transfiguração do céu, que passa a ser um para o beija-flor, outro para a
janela e outro para a árvore. Trata-se de uma poesia do olhar, mas de um olhar
pensante, que usa a organização sintático-semântica para variar focos e
transformar o real no exato momento de sua captura.
Assim, poderíamos elencar como recursos formais recorrentes na obra de
Capucho: a centralidade de verbos vinculados aos sentidos (especialmente,
“olho”, “vejo”, “ouço” e “escuto”), o registro pictórico de um ambiente no
exato momento de sua metamorfose, a coordenação sintática de substantivos ou
adjetivos (produzidos não raro por uma sequência de símiles ou metáforas que
vão se testando diante do ouvinte), rupturas semânticas ou mesmo sintáticas que
deslocam o real e, por fim, um apurado controle da captura das cenas (que se
expressa por meio de aproximações ou distanciamentos de foco, variações de
iluminação, dualidade entre a inércia e o movimento).
Na representação das cidades, podemos pensar em exemplos, como “Lua
singela” e “A vida é livre”, ambas de Lua
singela. Na primeira, uma espécie de vampiro se anuncia na primeira
estrofe, buscando sangue para se alimentar. Então, afirma, “vocês estão muito
mais lindos/ pelas ruas da cidade/ subindo pra os apartamentos/ indo pras suas
casas”, enquanto a voz poética reclama: “eu não tenho nada pra comer/ eu vou
morrer de fome/ eu não tenho onde morar/…/ Vou andar sem destino/ dormir sob
as marquises”. Esse olhar desejante e desabrigado se lança sobre os homens na
cidade e, no final, conclui a paisagem: “no céu negro de estrelas/ a lua enorme
caindo atrás da cidade/ ê, lua singela!”. A montagem da cena cria, portanto,
três núcleos imagéticos: o vampiro desabrigado (na rua), os homens se dirigindo
para suas casas (os apartamentos) e, em apenas três versos, um céu negro e
estrelado envolve o cenário urbano em uma operação vangoghiana. A lua que era “enorme” atrás da cidade, torna-se
singela em seu movimento poente, contaminando toda a cena a partir desse olhar
desabrigado.
Em “A vida é livre”, é a vez do mar ser pintado em verso por Capucho: “a
vida é livre/ as ondas batendo na praia/ elas vêm com força/ parece que empurram
a cidade pro alto/ parece que querem isso”. A imagem potente das águas
empurrando a cidade pro alto (note-se como o caráter verticalizante da cidade
ganha sentido aqui a partir de um impulso da natureza), torna-se representativa
da própria liberdade da natureza, e portanto, da própria vida. Na sequência,
céu, vento, mar, montanhas, luz, aves voando, peixes mergulhando, enfim, o
espetáculo da imanência de tudo, da liberdade de tudo, levam ao verso “a vida
não para de chegar/ e eu já não tenho medo”. O sujeito, incluso no movimento
das coisas, partícipe da beleza das coisas, se integra ao cenário que observa e
transforma, atribuindo sentido à vida que chega pela contemplação natureza.
Por fim, valeria indicar como essa pulsão do olhar atua na emblemática
canção “Maluca”, que se abre exatamente com um convite para olhar, em uma cena
matizada pela chuva e pela tristeza: “num dia triste de chuva/ foi minha irmã
que me chamou pra ver/ era um caminhão, era um caminhão/ carregado de botões de
rosa/ eu fiquei maluca/ por flor tenho loucura, eu fiquei maluca”. O gesto de
olhar (e o encanto com a beleza) provoca a ruptura do dia triste (mas não da
chuva, que continua a incidir sobre o dia). A canção se completa:
Saí E quando voltei molhada Com mais de dúzias de botão Botei botão na sala, na mesa, na tv, no sofá Na cama, no quarto, no chão, na penteadeira Na cozinha, na geladeira, na varanda E na janela era grande o barulho da chuva Da chuva Eu fiquei maluca Eu fiquei maluca
O interessante é perceber o próprio sujeito lírico feminino capturado
entre a chuva e a as rosas (vale também observar a ambiguidade da oração
“quando voltei molhada”, que evoca o registro feminino da excitação). Sujeito e
ação se fundem pela proximidade fonética entre “botei” e “botão”, que abrem uma
sequência de termos coordenados que transfigura o espaço caseiro convencional
que os substantivos evocam – a cama, o quarto, o chão, a penteadeira, a
cozinha, a varanda e a janela (ao que vale observar também a mudança de
cômodos, intensificando o espalhamento da beleza). A janela é agora o elo para
o fechamento do ciclo, retornando à imagem (e, especialmente, ao som) da chuva
e da iluminação dessa personagem que ficou “maluca” (e não mais triste em meio
a um dia chuvoso). É bonito notar também como é justamente a expressão poética
o veículo da transformação: é o compositor Capucho que distribui, com a voz,
flores em uma casa num dia chuvoso – as flores, a casa e a chuva, todas feitas
de palavras.
Quinta luz: Mamãe me adora
Outro aspecto importante para compreender a obra de Luís Capucho é a
representação da mãe em seus livros e canções. Como já disse, a figura da mãe aparece
nos romances Rato (em que o rapaz se
muda com a mãe) e Mamãe me adora (que
conta a viagem com a mãe para Aparecida do Norte). Antes de tudo, a mãe aparece
aqui como interseção entre romance e vida, dado autobiográfico e representação
literária. Para além disso, a figura materna, estritamente ligada ao feminino, surge
como fonte rica de representações, não apenas sobre o gênero, mas sobre a
própria experiência da vida e do tempo, da decadência física e da morte. Nas
canções, além das referências em “Música de sábado” (“eu ando com mamãe na lua
cheia”) e “Mais uma canção de sábado” (“agora que não tem mais mamãe para me
proteger”), a imagem da mãe ganha centralidade em “Mamãe me adora” e “Sua mãe”
(de Antigo) e, por fim, em “Eu quero
ser sua mãe” (de Cinema Íris).
Em “Mamãe me adora”, a letra joga com as relações edipianas desde os
primeiros versos: “mamãe me adora/ profundamente ela me quer/ mais do que quis
outros homens/ que ela também amava/ que ela também devorava”. Na segunda parte,
o espelhamento com a figura materna, começa por “eu também sou feliz com
homens/ como os que amou mamãe” e segue por uma lista de “homens que são/
cheios de tesão/ como diabos/ homens que são/ como aparição/ como nossa
senhora/ homens que são belos e bons/ sentados, homens em pé/ fortes, feios,
gordos, galantes, machos, motoristas, rudes, ruins/ delicados, generosos,
gentis/ bravos, brutos, crespos,/ lisos, presos, soltos/ suaves, sofisticados,
simples/ soldados, ciganos, pedreiros, patrões… mamãe me adora”.
No
canto, Capucho enfatiza mais lentamente o verso reiterado “homens que são…”,
enquanto desliza pelos predicativos, formando novamente uma coordenação de
imagens masculinas muito semelhante àquela que já discutimos ao relacionar o
fragmento de Cinema Orly à canção
“Cinema Íris”. Assim, a discussão sobre a homossexualidade e a masculinidade
aparecem já aqui, antes das duas obras, projetando a figura materna como dado
importante da formação dessa subjetividade e de seus desejos.
Em “Eu queria ser sua mãe”, novamente as coordenações
sintáticas e as anáforas vão desenhando a figura materna, na qual o sujeito se
projeta (“eu quero ser sua mãe/ feito ela ser tão bom/ feito ela ser macio/
feito mamãe ser o seu prumo”). A mãe surge aqui como aquela que cuida,
veste, arruma, zela, protege (“te fazer vestir a camisa”, “te fazer calçar os
chinelos”, “e não esquecer o guarda-chuva”, “pentear os seus cabelos”, “cortar
as suas unhas”). A subida do tom em “quero te pegar no colo” (junto ao
crescente do desejo), aterrissa em “te colocar na cama”, permitindo a virada
para um universo de ambiguidade mais claramente incestuosa – “brincar no seu
corpo pelado” e, por fim, “te lambuzar com o meu doce”.
O
processo de transfiguração da relação com contornos homoeróticos (que é um dado
externo à canção, mas que lhe é pertinente enquanto peça de um conjunto de
produções de Capucho) chega ao auge nos versos finais, quando o próprio doce do
sujeito contamina seu parceiro, que passa a ser alvo iminente do perigo, da
degradação, da destruição (“e ficar matando as baratas (as formigas) que venham
te comer”. Assim, o sujeito (projetado na mãe), para que o lar se mantenha em
ordem, cumpre seu ciclo de doçura, ameaça e proteção.
Sexta luz: Poema maldito
Em 2009, Ney
Matogrosso gravou o álbum Beijo bandido,
que se tornou DVD em 2011.Aparentemente, o adjetivo do título desencadeou um processo reflexivo no
intérprete, que, nesse mesmo ano, anunciou seu desejo de fazer um disco só com
compositores “malditos”, entre os quais destacava Itamar Assumpção, Jards
Macalé, Jorge Mautner e Luís Capucho. Do nosso autor, chegaram a Ney as canções
“Céu” e “Cinema Íris” como possibilidades. Note-se que, em 2011, os discos Cinema
íris e Poema maldito ainda não haviam sido lançados. Em fevereiro de
2011, o jornal O Globo publicou a reportagem “O ‘lendário’ e ‘maldito’
Luís Capucho lança disco e livro e é gravado por Ney Matogrosso”, ajudando a
reforçar a imagem de maldito a Capucho, e dando visibilidade ao disco Cinema
íris e ao livro Mamãe me adora, ambos lançados, como se sabe, no ano
seguinte.
O fato é que Ney desistiu da ideia do disco, conforme registrado na
imprensa a partir do final de 2016. No entanto, seu aval ajudou a trazer Luís
Capucho para um espaço de maior visibilidade e, ao mesmo tempo, acabou
sugerindo um viés de leitura de sua obra por meio do predicativo de marginal. O
próprio Capucho se apropriou desse gancho, quando em 2014 lançou o disco Poema
maldito, curiosamente transfundido do poeta para o poema a condição
maldita.
Os termos “maldito” e “marginal” são férteis no sentido de
compreendermos melhor tanto aspectos contextuais como também estéticos que se
vinculam diretamente a esses termos. Em primeiro lugar, vale observar como a
origem das palavras nos ajuda a inferir os sentidos primários desses termos. Assim,
“maldito” é aquele vinculado ao maldizer, isto é, aquele sobre quem se fala
mal, aquele a quem se desaprova a forma de existir e a forma de se expressar.
Já “marginal” é aquele que se encontra à margem, isto é, aquele que não flui o
caminho tradicional e que, por isso, é posto à parte. O termo, evidentemente,
pode ser vinculado também àqueles artistas que estão à margem da produção mainstream,
da visibilidade das grandes mídias, que estão postos para fora da cena, obscenos
que são.
A ideia do poeta maldito também pode ser vista a partir de sua conotação
romântica, especialmente na virada do século XVIII para o XIX, quando o culto à
subjetividade e a auratização do “gênio” levaram à idealização dos poetas como
visionários, assinalados e amaldiçoados, que conseguem ver e sentir além,
tornando-se incompreendidos. O poeta desviante num universo de vida intensa,
degradação física, loucura, entorpecimento, idealização da morte, e até numa
certa atmosfera satânica, iriam contribuir para essa formulação. No final do
século XIX, a poesia moderna francesa revisitou o mito do poeta maldito,
especialmente em torno de poetas como Baudelaire, Rimbaud, Verlaine e Mallarmé.[5]
Já o termo marginal pode ser mais bem compreendido na linha histórica da
virada dos anos 1960 para os 1970, ao que evidentemente contribui a algo
esdrúxula contemporaneidade entre o apogeu da ditadura civil-militar e o auge
do influxo dos movimentos contraculturais no país. Nesse contexto, Frederico
Coelho nos chama atenção para a profusão do rótulo no Brasil da época, quando
se começa a falar em “imprensa marginal”, “poesia marginal”, “cinema marginal”
e, por fim, em compositores marginais, isto é, os músicos “malditos”, como
Jards Macalé e Luiz Melodia.
É também de grande importância pensar que a marginália apresenta
vínculos estreitos com a tropicália, compondo um dos intercruzamentos
mais férteis para a cultura brasileira na virada dos anos 1960 para os 1970. A
incorporação da marginalidade urbana, do desbunde, das posturas libertárias em
relação ao sexo e às drogas, a valorização da juventude e do narcisismo e a
centralidade do corpo e das lutas identitárias seriam refletidas também nas
buscas estéticas do período. Vale lembrar que Luís Capucho se mudou para
Niterói, ainda adolescente, exatamente nos anos 1970, tendo vivido direta ou
indiretamente os influxos desse momento histórico e estético. Convém também
lembrar do disco coletivo Ovo,de 1996, que se pretendeu associado a uma ideia de “retropicalismo”.
Talvez, a inclusão de Capucho nesse conjunto sinalize menos uma associação
direta com o universo tropicalista do que uma relação estreita com o universo
marginal que lhe faz interseção.
A obra de Capucho dialoga com esses sentidos, não apenas ao representar
o espaço underground dos cinemas
pornô do centro, mas também as criaturas marginais, que carregam consigo a
tensão entre o sagrado e o profano, a luminosidade e a escuridão. Além disso, o
signo do poeta maldito (ou marginal) parece sempre abrir seus sentidos no tempo
(em um processo de ancestralidade de personagens malditos) e no espaço (em um
processo de mitificação de lugares alternativos onde vivem, se encontram, gozam
e se exilam os marginais). Em canções como “Música de sábado”, “Mais uma canção
do sábado” e, evidentemente, “Poema maldito”, encontramos exemplos desse
conjunto simbólico.
A “Música de sábado”, que abre o disco Cinema Íris, é uma
parceria com a artista Kali C, e trata de um sujeito que se afirma “na
beirinha”:
Poucos fazem como eu faço Que estou sempre na beirinha Daqui pra lá não existe mais fundo Daqui pra lá não existe meu mundo Daqui pra lá é o fim
É a maluquice Eu ando com mamãe na lua cheia, na noite vazia Uma jovem bicha triste Mendiga um trocado pra comer biscoito Penso um pouco Olhando para o mar, olho pro vazio, olho para mim Olho pro rapaz sentado esperando Olho para o fim
O sujeito da canção já começa se colocando em um espaço de exceção –
fazer o que poucos fazem, estar sempre na beira ou, se preferirmos, à margem. A
palavra “beira” parece ser ainda mais interessante, não apenas porque demarca
um espaço fundo e limítrofe, que encerra os limites do mundo daquele indivíduo.
Assim, o sujeito à beira torna-se também um sujeito sempre em perigo, sempre
próximo ao fim, ao risco de perder seu mundo. Esse misto de gauchismo e
precariedade acabam por defini-lo. A maluquice, evidentemente, reverbera à
imagem da “beira” (vale lembrar a célebre frase de Estamira – “Eu sou a beira
do mundo”).
A imagem da mãe (e da lua) volta a aparecer em “Eu ando com a mamãe na
lua cheia, na noite vazia”, ao que se segue o verso “uma jovem bicha triste”. É
curioso como esse verso “uma jovem bicha triste” é cantando logo na sequência
do verso anterior, dando impressão que se trata de um predicativo do sujeito da
canção. No entanto, a sequência nos leva a entendê-lo sintaticamente como
sujeito do verbo “mendiga” no verso seguinte. A confusão, permitida pela
oralidade da canção e pela construção da palavra cantada, não deixa de
funcionar como registro empático entre o sujeito e a bicha triste que mendiga
para comer.
Nota-se também na mesma canção a pulsão do olhar, que tanto caracteriza
a expressão de Capucho, o que se observa na reiteração dos verbos “olho” (como
em “olho pro rapaz sentado esperando”), “vejo” (como em “vejo calças arriadas
no banheiro do Rex”, em nova alusão ao universo dos cinemas). Nos versos “tomo
os remédios e continuo/ da beirada vê-se o céu aberto”, a margem abre-se também
no sentido da enfermidade e, portanto, da beira da vida, isto é, da experiência
da própria precariedade da vida. Apesar de conseguir ver o céu aberto, é
notável também que o limite é tênue para aqueles que vivem (e ainda mais para
aqueles que vivem à margem). A música completa um arco de caminhada que termina
em sua própria casa – “ando até minha casa/ a música do sábado à noite/ me
derrete sozinho na cama”.
Assim, a solidão encerra a canção configurando-se como um último
registro da beira – o inclinar-se para fora no arriscado desejo da
transitividade amorosa. Interessante por fim, registrar a ambiguidade do verbo
“derreter”, tão afeito às experiências de sexo (evocando o suor), das drogas
(do entorpecimento) e da música (vinculada ao sábado, dia do ócio e do prazer),
em contrapartida à solidão da cama, isto é, um gesto de derreter-se que
pressupõe a dissolução do sujeito, seu risco de desaparecimento, seu estado à
beira.
Essa canção é bom preâmbulo para compreendermos a chegada do disco Poema
maldito em 2014, que condensa alguns vetores da obra de Luís Capucho. Vale
começar chamando a atenção para a escolha da capa, produzida por Felipe Castro
a partir de sugestão do jornalista João Santos. Na fotografia, Capucho aparece
deitado no chão, de olhos fechados, de braços abertos, com o violão sobre si. A
referência é nitidamente o estandarte de Hélio Oiticica de 1968, que traz a
imagem do bandido Cara de Cavalo, amigo do artista, que foi morto pela polícia
à época. Completa a obra a inscrição “seja marginal seja herói”, reforçando a
relação daquela geração com o universo da marginalidade urbana e com a
auratização dos personagens à margem do sistema.
Gonzalo Aguilar, ao comentar o estandarte de Oiticica, nos chama atenção
também para a proximidade entre a posição de Cara de Cavalo e o apóstolo Pedro,
crucificado de cabeça para baixo, na representação de Michelangelo no século
XVI, o que reforça ainda mais a santidade maldita do personagem em sacrifício e
redenção, bem como as aproximações entre o sagrado e profano que tratamos.
Vale, por fim, observar a curiosa inversão dos braços de Capucho e do bandido –
enquanto este apresenta os braços para baixo (mais próximos dos de Pedro) e que
parecem mais rígidos e presos, aquele os apresenta mais para cima (mais
próximos dos de Cristo), e parecem mais frouxos e relaxados, como quem entrega
o corpo à cama, livre e despojado.
O disco apresenta duas canções que são pertinentes a nossas reflexões e
que, curiosamente, não têm letras originais de Luís Capucho, embora tenham sido
compostas em proposital sintonia com seu universo. A primeira delas é a “Mais
uma canção de sábado” de Alexandre Magno, que inventa uma espécie de
continuidade da “Música de sábado” de Capucho, como também de alguns de seus
temas e procedimentos construtivos. A música começa na cama, com o sujeito
acordando “babado” e “tarado” de saudade (vale lembrar que a “Música de sábado”
termina com o sujeito que “derrete sozinho na cama”). A mãe que aparece na
primeira canção (“eu ando com mamãe na lua cheia, na noite vazia”) agora já se
configura como ausência (“agora que não há mais mamãe pra me proteger”). Mais
uma vez também a janela aparece como núcleo de observação de um real
transfigurado – “as coisas belas não sabem onde se esconder”, como se quisessem
ou devessem fazê-lo. Assim, as coisas belas tornam-se “frágeis”, “corajosas” e
“nuas”, expondo-se sem medo de sua beleza. A descrição subsequente da segunda
parte continua a ilustrar processos construtivos semelhantes, nos quais
“móveis”, “facas”, “livros” e “plantas” completam o cenário, vendo e sendo
vistas pelo sujeito.
A letra se segue com a reiteração dos versos “vagando pelas ruas e
avenidas/ você não pode mais se esconder de mim/ você está em todo lugar”.
Veja-se que, se a primeira canção começa em movimento na rua e vai até a cama
parada; aqui fazemos o caminho inverso – da cama para a sala e desta para a
cidade. A transfiguração do real também presentifica o objeto do desejo amoroso
(motor da saudade), que surge como todas as coisas belas que não podem se
esconder. A crescente batida do violão e o canto visceral de Capucho nesses
momentos de refrão condensam o tom desesperado e assertivo com que se busca, no
campo do real, uma beleza que está mais que presente no campo imaginário.
O caráter marginal aqui se sustenta mais claramente pela relação direta
com a canção anterior, ainda que se possam encontrar algumas referências nesta
própria letra, como o sujeito desejante e solitário que vaga pelas ruas, a
cabeça consumida por uma ideia totalizante, que se espalha por todo lugar.
Aqui, é impressionante tanto a congruência da letra com o universo capuchiano
como a apropriação que Capucho faz dessa letra, tornando-a sua, como faz com
tudo que canta.
A música que dá título ao disco Poema maldito tem letra de Tive,
mas é inspirada em uma história vivida por Capucho em uma praia de Icaraí.
Convém citar a letra inteira:
Estou na praia com um sujeito aleijado Que busca intimidade comigo Ele tem os braços atrofiados E isso faz com que ele se pareça um louva-deus sagrado Estamos conversando Ele me diz que vive só E que prefere assim Porque gosta de se deitar no sofá A ver filme pornô
Eu disse: sou o Luís Capucho e escrevi o Cinema Orly E tenho namorado Em todo caso ele me chama pra beber E ver filme pornô na sua sala Então, se aproxima e trata de sentar-se do meu lado Mas não sei como aconteceu Ele caiu no chão Ele caiu no chão Com movimentos estranhos que não entendo Fico um tempo a reparar que não vai se levantar sozinho E vou embora dali E o abandono em sua agonia de inseto moribundo
É curioso pensar que essa letra toda se passa no
solar espaço da praia. No entanto, os dois personagens ali postos, tal como o
diálogo que travam entre si parece contaminar o cenário e, portanto, mais uma
vez transfigurá-lo. Primeiramente, o “sujeito aleijado” e solitário que gosta
de ver filme pornô já se apresenta como encontro inusitado. A letra, porém,
observa seus “braços atrofiados” e o aproxima da imagem de um “louva-deus
sagrado”. O inseto acaba por concentrar o paradoxo entre a estranheza de sua forma
(para além de sua precariedade) com o caráter sagrado que adquire ao
aproximar-se do louva-deus e de seu gesto.
O convite para ver o filme pornô (e o próprio
flerte homoerótico), aliás, evoca o universo dos cinemas pornográficos e,
assim, as obras-irmãs Cinema Orly e Cinema Íris, devidamente
conectadas discursivamente ao presente álbum, condensando o caráter
marginal-maldito do compositor. Dessa vez, porém, o verso “E tenho namorado”
abre-se em dois sentidos – a
negativa da intimidade buscada pelo sujeito, e a própria evocação redundante da
busca de um namorado que atravessa todo o Cinema Orly. Com isso, o poeta,
de fato, aparece aqui menos maldito que o poema, dando sentido ao deslocamento
do título. Já o outro personagem insiste no jogo da sedução, mas acaba se
desequilibrando e caindo (o que é repetido na canção), de modo inesperado para
o sujeito lírico que, outra vez, observa a cena.
O mais curioso é o esvaziamento de qualquer
sensibilidade piedosa por parte do enunciador. Onde esperamos uma oferta de
ajuda, um gesto solidário de socorro, encontramos uma indiferença crua, que
simplesmente assiste à queda e à impossibilidade de se levantar (tal como se vemos
insetos caírem invertidos e não conseguirem se recolocar). A agonia do sujeito
aleijado parece realçar, em seu sacrifício, seu caráter sagrado. E a aparente
indiferença que poderia nos chocar na cena é facilmente explicada: tal como os
répteis do Orly, o personagem havia se convertido em imagem.
Sétima
luz: Homens flores
Bruno
Cosentino, que me apresentou Luís Capucho, é um importante intérprete de sua
obra, tendo gravado belamente as canções “Homens flores” no disco Babies,de 2016, e “Eu quero ser sua mãe” em Corpos são feitos pra encaixar e depois morrer,de 2017. Nos últimos anos, assisti muitas vezes a shows dos dois
juntos ou ao menos fazendo participações um no show do outro. Neste ano de
2018, Cosentino fez um espetáculo com canções de Ney Matogrosso e incluiu no
repertório “Cinema Íris”, como forma de provocação-homenagem. Ney e Capucho
estavam na plateia.
Seria
necessário outro trabalho para abordar as relações entre o universo desses dois
artistas, embora pareça claro que a questão do corpo seja central para as duas
obras. Nos dois últimos álbuns, Bruno Cosentino também explora o jogo entre o
masculino e o feminino, em frequentes deslizamentos que aparecem nas letras, no
canto, nos figurinos e também na postura cênica do artista. Conversamos muitas
vezes sobre a questão da masculinidade e como ela aparece na obra de Capucho, e
como ela poderia ser levada também para outros lugares. Tais elementos se
consolidaram, afinal, como vetor importante no conjunto dos artistas da música
brasileira contemporânea que exploram a questão do gênero e da sexualidade em
suas múltiplas conjugações.
Quando conversávamos sobre isso, Bruno Cosentino pensava um nome novo para seu show, que abarcaria majoritariamente as canções de Babies e Corpos…, que são também uma espécie de obras-irmãs no conjunto de sua produção. Eu sugeri Homens flores, que é o título da parceria de Marcos Sacramento com Luís Capucho, que começa dizendo: “os mundos são mais belos/ quando olhados pela janela/ e as colinas estão repletas de homens fortes”. Na sequência, versos paralelos se atravessam de modo especular, alternando o pronome coesivo e interferindo na imagem: “e eu olho pra elas [eles] porque elas [eles] são o mundo inteiro/ e eu olho pra elas [eles] porque elas [eles] são meu terreno/ onde eu vou plantar/ homens flores, flores homens”.
A
letra me parece uma chave de leitura poderosa para compreender a obra de Luís
Capucho. Novamente vemos aqui as janelas, os homens e as flores. E, sobretudo,
o exercício de transfiguração do real que tratamos aqui. A imagem quase
classicista de uma colina “repleta de homens fortes” dá centralidade aos corpos
masculinos em sua fusão com o cenário. A pulsão do olhar também aparece aqui e
é um deslizamento que provoca a subversão da cena – ora as colinas são o mundo
inteiro, ora os homens são o mundo inteiro, o que faz confluir o humano e o
natural em uma imagem totalizante. Na sequência, os homens e as colinas passam
a ser um terreno, onde é possível plantar flores homens e homens flores.
O
terreno misto de natureza e humanidade é justamente aquele que permite o
híbrido entre as flores e os homens (vale lembrar o verso “caralhos são flores”
da outra canção). A flor, curiosamente, em geral, é representada como signo do
feminino, muito embora sua forma, seu caule, e a forma que se projeta no espaço
poderia também ser vista sob a chave do masculino. De todo modo, o embaçamento
entre esses signos permite o nascimento de uma coisa outra, que é homem e flor,
e que reflete esse espelhamento na própria inversão dos termos, fazendo das
duas palavras, ora substância (substantivo) ora característica (adjetivo). Além
disso, é comovente a imagem que transforma os homens em uma coisa (bela e
delicada) a se plantar (e a se colher com os olhos). É desse modo que Luís
Capucho, homem-flor, nos revela a beleza e traça seu arco iluminado, que sai de
sua palavra-voz, a vida.
* Rafael
Julião é professor substituto de Literatura Brasileira na UFRJ, onde fez
seu mestrado sobre Cazuza e o doutorado sobre o livro Verdade tropical de Caetano Veloso. É também coordenador do Núcleo
de Estudos da Canção do PACC e autor do livro Infinitivamente pessoal – Caetano Veloso e sua verdade tropical (2017).
Referências
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Paulo: Edusp, 2005.
BATAILLE, George. O
erotismo. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.
CAPUCHO, Luís. Cinema
Orly. Rio de Janeiro: Interlúdio, 1999.
CAPUCHO, Luís. Mamãe
me adora. Rio de Janeiro: Edições da Madrugada, 2002.
CAPUCHO, Luís. Rato.
Rio de Janeiro: Rocco, 2007.
COELHO, Frederico. Eu brasileiro confesso minha culpa meu degredo – cultura marginal no
Brasil das décadas de 1960 e 1970. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2010.
HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Impressões de viagem. São Paulo: Brasiliense, 1980.
FERRAZ, Eucanaã (org). Poesia marginal – palavra e livro. São Paulo: IMS, 2013.
LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico – De Rosseau à internet. B.H.:
Editora UFMG, 2008.
LUCÁKS, Georg. A
teoria do romance: um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande
épica. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2009.
PEREIRA, Carlos Alberto M. O que é Contracultura. São Paulo: Brasiliense, 1983.
PEREIRA, Carlos Alberto M. Retrato de época: poesia marginal anos 70. Rio de Janeiro: FUNARTE,
1981.
ROSAI, Nathália. Sou
o sol: uma investigação heliotrópica da experiência extática em Georges
Bataille. Revista Nures, ano III, número 21, maio-agosto de 2013.
SKYLAB, Rogério. O
sublime na obra de Luís Capucho. Disponível em: http://godardcity.blogspot.com/2015/04/o-sublime-na-obra-de-luis-capucho.html.
Acesso em dez 2018.
[1] Programa Avançado de Cultura Contemporânea, que
funciona na Faculdade de Letras da UFRJ.
[2] Em dada passagem de seu livro Cinema Orly, Capucho afirma: “Na mesa de
bar, contei-lhe também a minha história. Tinha uma boa história, quer dizer, eu
gostava dela e ele comprazia-se em ouvir-me contar que não tinha conhecido meu
pai, era filho único, fora criado sozinho com minha mãe com quem vivia até
então numa casa com quintal, cachorros, gatos, bicicleta, televisão, sofá e um
pé de carambola” (CAPUCHO, 1999, p. 39).
[3] Os outros artistas que compõem o
programa “A voz dos marginais” são Bingo Gazingo, Daniel Jandek, Shooby Taylor,
Åke Sandin e Bob Vido.
Em 21 de setembro de 2017, Bruno Cosentino, um dos idealizadores do Núcleo de Estudos da Canção do PACC, da Faculdade de Letras da UFRJ, foi convidado a fechar o ciclo do primeiro ano de audições de discos de canção brasileira contemporânea, com seu álbum Corpos são feitos pra encaixar e depois morrer (2017). Na ocasião, conversamos sobre sua trajetória artística, os elementos estéticos e temáticos do disco, e também sobre questões como a natureza da canção, as questões do corpo e da sexualidade, as influências musicais, os problemas da criação artística e a inserção do artista no contexto musical contemporâneo.
Para
a escuta:
Bloco
1 – O corpo
Escuta: 1. “É claro que eu queria” (Bruno Cosentino)
Rafael Julião: Bruno
Cosentino é cantor e compositor. Tem quatro discos: o primeiro, de 2012, é com
a banda Isadora e se chama A eletrônica e
musical figuração das coisas; depois Amarelo,
de 2015; Babies, de 2016; e o que é
assunto nosso hoje, Corpos são feitos pra
encaixar e depois morrer, de 2017. Mas eu queria começar falando do
percurso que levou você até o Corpos…
Então, brevemente, eu queria que você voltasse à banda Isadora e me contasse
como você foi parar nisso de gravar disco, de fazer banda, de cantar, enfim, de
se descobrir como cantor.
Bruno Cosentino: Então, eu nunca tive banda. Muita gente
começa a tocar porque tem banda. Eu sempre toquei sozinho, voz e violão. Só
que, depois de um certo tempo, eu decidi ter uma banda, porque queria de fato
assumir que queria fazer um trabalho assim. Aí, eu chamei uns amigos pra fazer
uma banda, mas isso era mais velho, sabe, já tinha passado da época de ter
banda. E foi uma grande descoberta fazer, tocar com banda. Achei difícil,
porque eu e violão, eu tinha muito domínio. Porque era só eu ali e o violão.
Até hoje, eu tenho um domínio muito maior, quando sou eu e o violão só. E foi
muito prazeroso, foi uma descoberta tocar com banda. E foi essa banda que teve,
gente que entrou, saiu e tal. Mas que a gente lançou esse disco. Chama-se A eletrônica e musical figuração das coisas;
que é o meu primeiro disco, considero meu primeiro disco, meu mesmo também,
porque eu fiz muita coisa desse disco.
RJ: E, aí, você passa e faz uma sequência bem anual: Amarelo, Babies,Corpos. Queria
que você falasse do Amarelo. Enquanto
primeiro trabalho solo. Você ficou três anos sem gravar disco, é isso?
Bruno Cosentino: Ah, então, aí, eu fiquei com a banda.
Aí, eu fazia o disco, fiz o trabalho com a banda e aí a banda é complicado. Aí
eu falei, vou fazer minha coisa sozinho. E também eu tinha vergonha, na época,
de botar meu nome na cara. E, por isso, Isadora, era um nome que ficava na
minha frente. E tinha medo, tinha vergonha também de botar minha cara na
vitrine. E foi um movimento também pra isso… pra isso acontecer, assim…
terapêutico, tipo, botar meu nome na cara e me mostrar mais mesmo.
RJ: É uma produção grande, Amarelo, Babies e Corpos, um por
ano, e dá para ver, teoricamente, uma linha entre eles. Uma linha geral de
coisas que se repetem, eu digo, de coisas que são suas. O Amarelo, teoricamente, tem uma coisa do amor, que paira em todos
eles, como é comum no trabalho da canção popular… Mas o Amarelo, teoricamente, viria de uma ótica mais espiritual e
haveria uma ótica do amor mais sublime. Não sei se sublime é a palavra. Você
tem que dar a palavra. E o Babies você
aterrissou e tem uma coisa mais de um amor mais visceral, terreno.
Bruno Cosentino: É, eu vejo assim: que o Amarelo é, tipo, assim, “estou querendo
fazer e não fiz”. O Babies é “fiz”. E
o Corpos é “fiz e, aí, o que que eu
achei?”. Entendeu? O Amarelo é mais sublimado. O Babies
é menos. E o Corpos é menos ainda, eu
acho. Mas uma coisa que eu percebi, quando eu
fiz o Amarelo, antes da Isadora, no Amarelo, eu me dei conta de que eu
queria fazer as letras e as músicas, assim, mesmo que piores. Porque até aí, eu
musicava muitos poemas. Por exemplo, no Isadora tem dois poemas do Eucanaã. E
são canções lindas. Tem um do Paulo Henriques Britto. Eu musicava muitos
poemas, eu não fazia letra, assim, pá… eu queria realmente fazer letra. E,
aí, foi uma experiência muito boa. Tanto é que agora tem letras que eu acho que
eu não gosto nada, do Amarelo. E na
época eu já também não gostava. Achava, assim, meio irregular, meio assim… Só
que, ao mesmo tempo, eu precisei bancar isso, porque foi a primeira vez que eu
escrevi coisas que de fato eu sentia. Por mais que isso pudesse ser precário e
por mais que eu soubesse que ainda não tava, que ainda podia ser melhor, mas era
eu fazendo. Mas sempre foi sincero. As letras que eu musiquei, os poemas que eu
musiquei, em tudo ali existe uma identificação profunda. Mas com o Amarelo, foi como assim, mais do que
identificação, eu sentia muito aquilo e, às vezes, eu não sabia nem explicar,
mas eu sentia. Porque foi a partir de uma experiência pessoal muito intensa que
foi, tipo, três, quatro anos depois que eu me casei. Então, foi uma mudança na
minha vida muito grande, assim, emocional. Então, ele é fruto disso, na
verdade.
RJ: É, e logo depois, isso era uma coisa
que eu ia comentar. Você tem uma produção anual de disco. Você já tem 2015,
2016, 2017, você já está pensando em fazer um para 2018 ou é um momento de
produtividade ou é pressa de expor?
Bruno Cosentino: Os dois. Ah, é pressa porque, em algum
momento, eu sou mais da contenção, e eu gosto de ir contrariando o que eu sou.
E eu era mais da contenção de só publicar aquilo que eu achava muito legal e
tal. Depois, tentando fazer parte do meu tempo, em que tudo você publica muito
rapidamente, tudo se esgota e tal, de forma muito rápida também… eu fui
tendendo mais a uma produção de quantidade, sabendo que isso poderia me trazer
qualidade também. E é assim que eu acho que acontece comigo, a cada disco que
eu faço, eu sinto que eu estou melhor, que eu faço as coisas melhor. Eu vou
ganhando experiência. Então, gravar disco pra mim é assim, eu sinto que é uma
evolução artística. Por isso que eu gravo muito disco. E também porque eu
descobri que eu posso cantar músicas de outros compositores. Não que eu já não
soubesse disso antes, mas eu sempre fui cantor. De início, eu era só cantor.
Até que, na época, quando eu era bem menininho, tipo, o Serginho Natureza, que
é um compositor, Elis Regina já gravou música dele e tal. Tem umas canções bem
conhecidas, ele é amigo da minha família e produziu um show meu. Escolheu um
repertório superbacana, mas que não tinha nada a ver comigo. Foi um fiasco pra
mim fazer aquele show. Eu nessa época já cantava bem. Era o que eu sabia fazer.
Não compunha. Eu não gostei nada desse show, nunca mais fiz, porque eu queria
mesmo compor. Então, essa coisa de gravar disco também, eu já consigo compor e
gostar, mais ou menos, do que estou fazendo. Agora, eu posso cantar as músicas
que têm a ver com meu universo… o Amarelo
tem uma música só, que não é minha, é do Otto, e eu gosto muito. No Babies tem muitas de outras pessoas. E
nesse aí, último, tem menos, mas é um pouco mais variado. Tem de colegas de
profissão da minha geração que vocês talvez não conheçam, porque não tá na
televisão. Então, essa coisa de gravar disco, é isso. Eu sinto que eu melhoro
muito. E eu gosto de gravar disco, pensar sonoridades, composições, e é mais
fácil gravar disco do que era, então, por causa disso também.
RJ: E o Corpos,
quando você estava no show do Babies,
as músicas do Corpos já existiam? É
com a mesma banda, não é isso?
Bruno Cosentino: Esse disco, meu segundo disco Babies, eu gravei… e, em algum momento
ali, quando fiz o show de lançamento, eu já sabia, eu já tinha ganhado um
edital pra fazer um disco. Eu tinha prazo pra fazer esse disco. Então, fiz show
de lançamento do Babies em maio e
tinha que gravar esse disco até o final do ano. Então, não pude fazer shows do Babies. Eu tive que gravar esse disco. O
tempo que eu tinha era pra ensaiar e gravar. Aí, eu gravei e agora estou
fazendo um show que se chama Homens
Flores, que é o nome de uma música do Luís Capucho e do Marcos Sacramento,
que eu gravei no Babies e é um show
que reúne o repertório dos dois discos anteriores.
RJ: O disco abre com uma citação que diz: “Como
siempre, la duda es, que hacer com el cuerpo?” De
onde você tirou isso, o que é isso?
Bruno Cosentino: Tem uma música no Isadora, no meu
primeiro disco, que se chama “Milagros de um Dios menor”,
que é um poema que eu musiquei de um colombiano, um poeta colombiano. Não nesse
poema, mas no livro tem um outro poema que, em algum momento, diz assim: “como
siempre, la duda es, que hacer com el cuerpo?”. Só que, na verdade, no
poema é literal. Existe um crime, matam a pessoa e, aí, tem a pergunta sobre o
que faz com o corpo morto, com o defunto. Só que eu acho que destacado assim
ganha uma outra dimensão, eu acho que bem mais bonita… [risos] porque, como
sempre, a dúvida é o que que você vai fazer, o que que a gente faz com o corpo.
E, aí, uma amiga minha equatoriana, ela gravou esse trecho, vários trechinhos
desse poema e a gente inseriu nessa música lá do disco Isadora. Aí, eu lembrei
e abri esse disco com essa frase, pedi pra ela regravar e botei.
RJ: Talvez, seja muito bom começar daí,
porque me parece que o corpo tem uma centralidade grande no seu trabalho. Chega
a se usar um termo no release que eu
li de “poética do corpo”. Bom, no Amarelo,
a capa é o dorso dele, nu, o dorso só. E, no show, você recita, entre outras
coisas, o “Soneto do olho do cu”. No Babies,
você começa o disco com uma música chamada “Eletric Fish” que tem um peixe
elétrico nadando na boca. E, você tem versos como “corpos são azuis e nascemos
nus e podemos dançar mar adentro”. No Homens
Flores, que você citou, tem “as colinas repletas de homens fortes”. Em Babies tem – abro aspas e cito – “se eu
não sou mais que um caralho duro, fiquei sabendo que ele é a flor e o fruto,
toda pureza de meu coração de homem mau”. No Corpos tem “eu quero morrer em outros corpos”, “corpos são feitos
pra encaixar e depois morrer”. Eu queria que você comentasse essa centralidade
do corpo.
Bruno Cosentino: É porque eu acho que o que existe de
tensão mesmo é o que nosso corpo pede e o que nossa cabeça freia nosso corpo,
que freia a todo momento…
RJ: Essa presença acintosa do corpo talvez seja uma
espinha dorsal do seu trabalho de forma geral. Mas sempre de formas diferentes.
Talvez esse seja um caminho. Esse corpo não se comportou igual ao longo desses
discos, né?
Bruno Cosentino: É. Não. Então… no Amarelo eu acho que era um corpo mais
retraído, assim, sabe? As coisas que tão aí me seduzindo no mundo. O que é que
eu faço com isso? Não que isso tenha tido reflexo na minha vida pessoal. Eu estou
falando assim no disco. Porque no disco eu posso fazer o que eu quiser. Essa é
a grande liberdade, porque na vida real a gente não pode fazer o que quiser e
eu não tenho vocação pra ser marginal. Embora eu transgrida as regras, as
convenções, eu gosto de transgredir, mas sem fazer alarde. Então, nas músicas,
eu falo o que eu quiser, eu faço o que eu quiser. E isso é uma grande liberdade
pra mim, falar o que eu quiser, e fazer o que eu quiser ali dentro.
Essa coisa do corpo é basicamente isso.
A atração sexual, o não entendimento das coisas, sabe? Porque o corpo também é
o não entendimento. Tipo, o movimento em direção ao que o corpo pede é você não
entender o que você está fazendo. Então, eu quero muito não entender o que eu
estou fazendo e quero muito tentar descobrir alguma zona mais hermética, mas
que vibre. Que seja um hermetismo que fique vibrando, assim, como alguma zona
de mistério. Aí, se descolar, se livrar da sintaxe, sabe, porque canção não tem
nada a ver com sintaxe no fim das contas. É muito sensação. Então, ir mais para
a sensação e sair do intelectual. Tem sido um trajeto que eu tenho feito. Por
estar na outra ponta e quero ir pra essa ponta agora do não entendimento…
Bloco 2 –
Bicho, homem, mulher
Escuta: 2. “Sou frágil” (Bruno Cosentino); 3. “Tem que ser você” (Caetano Veloso).
RJ: O Bruno pesquisa Vinicius de Moraes
aqui na casa. E eu fico pensando se “eu quero morrer em outros corpos” é parente
de algum grau do verso “é que um dia em teu corpo, de repente, hei de morrer de
amar mais do que pude”. O amor na sua obra tem algum parentesco com o amor a
Vinicius?
Bruno Cosentino: Não, não sei nem explicar porque
agora eu estou lendo muito Vinicius. O cara… não sei, não sei… eu vejo
semelhanças não. Bom, entre mim e Vinicius há coisas parecidas e coisas muito
diferentes… Então, se eu for falar sobre isso, é uma coisa que não tá nada
elaborada. Eu não sei. Eu estudo Vinicius, estou lendo, estou pensando ainda as
coisas.
RJ: Até uma das coisas que eu tinha
colocado do Vinicius é daquela entrevista que a gente gosta, do Vinicius com a
Clarice, em que ele fala que tem ciúme de bicho. E eu tinha pontuado aqui, se o
ciúme aparece na sua obra ou se o ciúme é uma questão pra você…
Bruno Cosentino: Não era muito, não. Mas, agora, eu me lembrei
disso. Você falou da entrevista. A Clarice fala assim: ah, você ama o amor ou
você ama as mulheres? Que ele já se separou várias vezes e tal. Ele falou
assim: ah, eu amo o amor, é verdade que eu amo o amor, mas eu amo também as mulheres.
E eu fiquei pensando muito. Eu não amo nada o amor. Eu amo realmente as pessoas.
Tanto é que eu não amo o amor… eu estudo isso, né [riso] mas eu detesto!
Estudar o amor é muito sem sentido, na verdade. Eu descobri isso numa aula que
eu fiz, e li teorias sobre o amor. É uma coisa que, claro, é teorizável e é
teorizado e gosto de ler. Você teorizar a falta de sentido que há numa relação
amorosa, quase isso. Você não consegue chegar lá, porque, no limite, é caso a
caso, sabe? E cada caso é um caso. Então, é inútil ficar falando sobre isso.
Por isso que eu não gosto nada do amor. Eu gosto, realmente, das pessoas. Gosto
de amar as pessoas.
E essa coisa de amar o amor, parece que
vem de Santo Agostinho. E tem aquela coisa com Camões, que o amante se
transforma na coisa amada…. porque
amar o amor, há um tanto de egoísmo e eu sou muito pouco egoísta quando o
assunto é esse. Se eu amo uma pessoa, eu me importo muito com as pessoas que eu
amo, muito mesmo. Então, eu vivo essa tensão muito constante entre o que que eu
posso, até onde eu posso alimentar o meu egoísmo e não magoar as outras
pessoas, entendeu?
RJ: Você tem versos como “o cheiro no meu dedo ainda é
muito forte/ enlouquece minha cabeça de mulher”, a própria questão do “Sou frágil”,
“Eu quero a mão do meu homem e o mel da mulher, meu desejo brilha no escuro”.
No realese do Corpos diz que além da “poética do corpo”, há uma proposta de uma
nova masculinidade. E você faz deslizamentos, nesse sentido, entre o masculino
e o feminino. Eu queria que você comentasse isso…
Bruno Cosentino: O que está para além, o que tá numa zona de mistério é o que me
interessa, sabe? O que eu consiga entender me interessa muito pouco. Embora eu
tenha prazer, seja capaz de ter prazer intelectual, e muito. O cheiro é um
negócio que te tira a razão. Então, por isso que eu botei isso lá. A coisa da
fragilidade, eu vi isso agora, recentemente, na minha filha, que tem quarenta
dias que ela nasceu. E é assim, é muito diferente do filho que eu tenho de três
anos. E ela já fica emanando uma espécie de feminilidade.
E eu acho que, de certa forma, é uma
característica feminina, uma coisa que é fragilidade e força, como se fosse uma
coisa só. Ao mesmo tempo que é frágil, é forte. Como se isso fosse a mesma
coisa. E eu gosto disso. Eu fiz essa música muito antes, antes da minha filha nascer.
É um elogio à fragilidade, é um elogio a você assumir que é frágil, assumir as
suas fragilidades. Porque é assim que você é forte; sendo frágil, você é forte.
Então, é quase que contra essa ideia norte-americana, patológica do vencedor,
que você tem que ser o vencedor, então, a pessoa nunca assume suas fraquezas,
nunca assume suas fragilidades. E fica sempre passando por cima disso e se
ferrando, porque depois vai se ferrar assim, não entende nada, né. Então,
a questão da fragilidade é essa.
A nova masculinidade seria um homem
menos machão, um homem que entenda a mulher. E a mulher também que entenda o
homem. Um homem menos…. um homem… homens flores, como a música do Capucho.
Outro dia, eu vi um filme, um documentário no Netflix, mas que falava disso,
como é opressor com a criancinha, os meninos desde que nascem. Então, assim: “não
chore, chorar é coisa de menina”. E faz isso. E faz aquilo. Aí, eles vão sendo
treinados a serem homens. Isso, assim, é um horror… E você vai virando um
homenzinho, como a sociedade quer. Eu lembro de um menino que, quando era
adolescente, usava boina, ele era todo bonitinho, meu amigo. E, aí, a partir de
um certo momento, virou um marombeiro. E eu vi isso no filme. Vários meninos
que não aguentam ser chamados de bichas, de qualquer coisa e, aí, vão tentar
prestar contas à sociedade. Aí, vira um marombeiro, um zé mané. Um garoto
superbonito, sabe? Gostava de fazer o que ele queria. Então, é muito opressor.
Essa história de que você tem que ser homem é muito opressora. A nova
masculinidade nada mais é do que você poder ser o que você deve ser. E era para
ser assim também com as mulheres. É muito difícil a gente poder ser o que a
gente quer ser…
RJ: É que tem a própria macheza e tem a
coisa da heteronormatividade também, né? Porque junto é um combo, ser um macho
e ser um heterossexual, e se permite pouco deslizamento entre as categorias
definidas, da heterossexualidade. A paixão e o amor na sua obra deslizam muito
nesse território da sexualidade também…
Bruno Cosentino: É, os homens têm que se tocar mais,
entendeu? Então, assim, o meu pai sempre me agarrou muito. E, aí, eu acho que
hoje, nunca percebi isso, mas vendo de hoje, eu acho que eu tenho uma
sexualidade bem resolvida, muito por causa disso. Meu pai sempre me abraçou,
meu pai nunca me cobrou que eu fosse macho.
RJ: É, eu acho que é um preço por ser “homens flor”. Há um preço para bancar
a liberdade dos corpos…
Bruno Cosentino: Eu acho que ser gay, socialmente, tem
mais preço, paga mais caro do que ser “homem flor”. O Luís Capucho, que é gay,
a gente foi fazer um show, ele falou assim: “ah, adoro como você não tem medo”…
Nesse show, eu tava me maquiando. “Você não tem medo de que fiquem te chamando
de bichinha”… Eu falei assim: não. Justamente, porque eu não sou, eu acho.
Porque ele que é, sabe, ele sente no corpo o que é ser. Eu, não.
RJ: E é engraçado no disco, você emenda uma
música super deslizante com uma música do Caetano, “tem que ser você, tem que
ser mulher”. E, ainda, fala a coisa do “e homens, o amor mentira pode ser tão
bonito”.
Bruno Cosentino: Um pouco dessa canção do Caetano, é que
ele canta essa música no grave, assim, “tem que ser você”, tipo, ele faz uma
voz de machão caricata, pra cantar essa letra que tem um pouco de caricatura
também: “tem que ser mulher”. Então,
ele ironiza a própria canção dele ao cantar no grave. Eu botei essa música no
disco, depois, porque eu percebi que eu cantava várias músicas no eu-lírico
feminino, “a minha cabeça de mulher”, e a outra que eu fiz pra minha amiga, que
eu falo, assim, “sou homem, bicho, mulher” e, depois, fala no feminino também.
Aí, eu falei, tá, essa confusão é interessante, porque também alguém já tinha
me dito que minha voz, ela fica num registro no meio, ela não é nem grave nem
muito aguda, então, é uma coisa meio andrógina, o registro da minha voz. Eu
falei, tá bom, então, eu vou colocar essa música do Caetano que eu adoro. E não
vou cantar no machão, não vou cantar no gravão. Vou cantar como se fosse uma
mulher, porque aí é uma mulher dizendo pra uma mulher, essa confusão, uma
mulher dizendo que tem que ser mulher. E, ainda, botei no falsete, botei mais
agudo ainda. Cantei na minha região normal que seria e dobrei uma oitava acima,
que fica mais agudo ainda. E fica muito diferente da dele que fica no machão.
Aí, a coisa do amor-mentira, eu acho
que, ele gosta muito daquele ensaio do Thomas Mann, que em português foi
traduzido como “O casamento em transição” e que no filme dele [do Caetano] é o
Cícero que lê. O Antônio Cícero lê esse trecho, porque o Thomas Mann defende
que o amor, o casamento homossexual é o amor puro, porque as pessoas, os dois
homens ou as duas mulheres, estão de fato se relacionando contra as convenções
porque se amam. Mas ele faz uma espécie de ressalva, um comentário de que a
relação homossexual tende a uma estetização.
Eucanaã Ferraz: Deixa eu fazer uma pergunta sobre a
canção do Caetano. Esse arranjo é muito bom, da canção do Caetano… queria que
você falasse um pouco dos arranjos, do pessoal que toca, falar um pouco do som
do disco.
Bruno Cosentino: São os meninos que têm uma banda que se
chama Exército de Bebês. Eles têm na casa dos seus vinte e cinco anos e eles
são muito bons músicos. Têm seu trabalho autoral também e acompanham muitas
outras pessoas. Eles tocam comigo desde o disco anterior, que é o Babies. Eu gosto muito desse disco, Babies. É eu e a banda só. E eles acompanham muitas pessoas, muitos artistas também,
porque são ótimos, são muito bons de groove.
E eu gosto muito de groove (de
suingue). E, aí, eu gosto muito de ritmo e gosto muito de dançar. Esse arranjo
do Caetano, eu falei para fazer uma coisa groovada,
porque tudo eu quero fazer groovado
com eles.
E quando eu fiz até esse Babies, você perguntou a coisa do corpo
e tal, chegou um momento em que eu achava que as palavras, em música, faziam
tão pouco sentido, na verdade, porque tudo que interessava era dançar,
entendeu? Eu acho que, assim, a verdadeira poesia na música é, se fez você
dançar, aí, você atingiu o nível máximo da poesia universal. Se você ouvir uma
música e falar assim, que não precisa nem de letra… eu acho mesmo, porque,
aí, você vai pro Matisse, “a alegria de viver”. É o auge, é o ponto máximo. E,
aí, não precisa de letra.
E, pra quem gosta de estudar letra na Faculdade
de Letras [risos], letra de música sozinha não importa. O que importa é a
canção. É a letra com a melodia. E a letra, muitas vezes, importa menos ainda.
É, eu estou sendo radical também, porque tem algumas que são assim. Aí, a letra
interessa mais, mas nunca é a letra sozinha. Então, não faz o menor sentido
você olhar a letra sozinha, assim, não quer dizer nada. Quer dizer a letra na
canção, sabe? Mas tem alguns casos que, não, é puro dançar. Porque eu descobri
que o que eu gosto mesmo é disso, eu gosto de ritmo, porque isso pra mim é o
que mais interessa. Aí, a banda é muito boa de ritmo. Eu adoro essa banda, por
causa disso.
EF: Mas como chegou ao desenho dos
arranjos?
Bruno Cosentino: Ah, tipo, eles da banda também são
muito bons, você passa, assim, e sai tocando e já fica bom. É muito assim. Eu
tenho ouvido um disco, até no Spotify, chama-se Negro Prision Blues and Songs. Um cara gravou aquelas canções de
trabalho, de blues. Então, é assim: “Ainhenhaêiai PÁ”… e dá uma martelada no
chão… Então essas balizas rítmicas, elas tão sempre ali. Todo canto é o
ritmo do canto, a melodia tem um ritmo, que é condicionado por aquelas balizas.
Então, o pulso está sempre lá. E, quando o meu filho tava na barriga da mãe,
tinha o tamanho de um gergelim, ele já era um coração batendo. Já tinha pulso.
Já tinha ritmo. Então, se a gente é do tamanho de um gergelim e já é pulso, é
porque a gente é puro pulso. E, aí, tudo é decorrência de ser pulso.
Eu gosto muito do The Last Poets…eu
tenho gostado muito de rap, coisa que eu nem gostava muito, mas hoje eu amo.
Porque rap é isso. Você vai num flow,
que o pessoal chama. Otávio Paz chama de fluxo poético. Mas os rappers chamam de flow, e tá lá a batida. Eles são incapazes de compor alguma coisa
se não tiver ritmo. Então, eles vão e as palavras vão vindo. Isso eu percebi no
Amarelo também, de como se você vai
no flow, as palavras vêm, as rimas
vêm. E as palavras que vêm são surpreendentes. Isso tem a ver com o corpo
também.
Bloco 3 –
Tudo é circular
Escuta: 4. “Obs.” (Bruno Cosentino/ Pedro Dias Carneiro); 5. “Eu quero ser sua mãe” (Luís Capucho)
Bruno Cosentino: Essa é a segunda música que eu gravei
do Luís Capucho. A “Homens flores” eu gravei no disco anterior e essa se chama “Eu
quero ser sua mãe”.
RJ: Em várias conversas
nossas, você disse que o fato de você ter tido filhos mudou a sua percepção
sobre o tempo, e eu acho que isso paira aqui, em algum lugar.
Bruno Cosentino: Mudou que fica tudo mais embaralhado. Como
se ligasse as pontas. Aí, eu me ligo a meu pai. Me ligo ao que eu era
pequenininho, a quando eu era criança. Então, vou ligando as pontas, mas é
muito confuso, na minha cabeça. Ficou tudo mais indistinto, não consigo mais
ter muita clareza de nada, da vida mesmo. E a vida ficou mais sem sentido depois
que eu tive meus filhos. Dizem que fica com mais sentido, né. Mas ficou sem
sentido, porque aí que eu passei a entender nada mesmo [risos]. É só que as
coisas se confundem. Agora, eu sou pai e tenho o meu pai, e já fui filho, sou
filho, sou pai. Tudo fica muito confuso, em suma.
O que isso pode me ajudar é que eu acho
que o estado de criação artística é um estado de confusão também, que você
tenta canalizar. Então, isso me ajuda. De forma muito arbitrária e aleatória.
Aí, isso me ajuda. De juntar tudo de uma forma muito livre, isso me ajuda.
Não tem nada a ver com essas canções
que passaram. A primeira, que eu fiz em parceria com Pedro Carneiro, eu fiz a
letra e ele fez a música. Eu tava lendo o Mircea Eliade, que ele falava dos
ritos de androgenização, e fui vendo como nada faz sentido mesmo. Aí, você volta,
aí, tem tudo é circular. Aí, sim, é completamente edipiano. Tipo, o desejo
sexual masculino ele quer entrar no buraco de onde ele saiu, da mãe. Isso tem a
ver com o Vinicius também que lendo aquele poema da Ariana, ele vai pro ventre da
terra… tem muito esse lance nele também. Aí, eu fui… entrei numa… num loop. Gente, nada faz sentido mesmo [risos].
RJ: Eu queria que você falasse desses dois parceiros,
o Pedro Dias Carneiro e o Luís Capucho, inclusive, você já fez apresentação com
os dois. São dois personagens importantes no seu trabalho, de um modo geral. Eu
queria que você falasse dos dois, particularmente.
Bruno Cosentino: Eu tenho uma parceria com o Pedro
Carneiro que é essa que a gente ouviu antes, pequenininha. E ele que produziu
meu disco anterior, o Babies. Eu
gosto muito dele, é um puta compositor, muito sério, muito bom. Gosto, assim,
como colega e como artista. Como amigo e como artista. E admiro muito ele.
E o Luís Capucho, eu amo total. Acho
que todos vocês poderiam procurar ouvir o Luís Capucho. Ele tem uma voz
superestranha. Não saiam correndo. Fica ouvindo… Tem um disco, que é o Poema Maldito, que é o último, que é
maravilhoso. Os outros também são ótimos. E, aí, ele eu amo. Me identifico
muito com a poética dele, com a maneira que ele diz, com as melodias, com o
canto dele, acho que ele canta lindo. É um puta intérprete. É uma grande
presença, assim. É um dos maiores compositores, pra mim. “Homens flores”
é maravilhosa, é linda. É uma obra-prima. E essa “Eu quero ser sua mãe” também,
é uma coisa linda. É dele, é do Luís Capucho também. “Homens flores” é, assim,
uma pérola de linda que é!
EF: Essa canção do Capucho, “Eu quero ser
sua mãe”, eu gostei muito da opção que vocês fizeram com um arranjo
aparentemente muito convencional, muito adocicado, aquela balada bem “eu quero
ser sua mãe”, bem macia. E a canção vai toda nessa direção e tem aquele final
surpreendente, que é te lambuzar com o meu doce e até que vem depois “e ficar
matando as baratas que venham te comer”. Porque se você vai lambuzar alguém com
doce, vem barata pra comer a pessoa [risos]. E se você é a mãe, você vai ficar
matando as baratas. Então, é uma coisa esquisitíssima, surrealista, louca e
muito violenta. É uma canção que tem uma violência incrível, disfarçada de
balada de amor de mãe pra filho, que não é pra filho, que eu quero ser sua mãe,
não é a sua mãe. Tem uma coisa erótica, sexualizada. E tem essa coisa muito
violenta e disfarçada num canto e numa letra e num arranjo tudo muito
adocicado. E, assim, eu gosto muito da sequência que a canção anterior, ao
contrário, ele é esquisitíssima, eu
amo essa anterior, que é atonal, você não entende direito, tá na cara que ela é
violenta e essa finge que não é. Então, acho essa sequência muito bonita…
Bruno Cosentino: O que caracteriza bem o Capucho é isso,
é uma mistura de ternura e violência de uma forma muito fluida. E isso que é
muito fascinante em várias coisas que ele faz. É muito estranho, você unir
ternura e violência. Então, é, isso deixa várias coisas que ele faz bonitas assim.
RJ: A coisa da relação de um desejo de
experimentar e um desejo de ser também audível ou de ser também canção numa
forma mais palatável, numa forma mais popular, isso também é um problema pra
quem faz canção, né. Um problema do cara que compõe e quer experimentar, mas
que também quer comunicar. Esse disco mais comunica do que “esquisita”, embora “esquisite”
também, não é?
Bruno Cosentino: Claro, se você experimenta muito, você
paga um preço de não comunicar. Inclusive, a maré tá baixa pra experimentação.
Se você quer que aquilo seja um pouco mais divulgado, claro, que depende muito
de dinheiro mesmo, basicamente. É, depende também de você ficar cada vez mais
careta. E não foi sempre assim, né. Assim, na década de 1960, tinha muito
mais… dentro do esquema musical das gravadoras, você tinha muito mais margem
pra experimentação, dentro de um esquema. Hoje você tem muito experimentação
fora do esquema total. Ou num esqueminha em que ninguém consegue sobreviver do
que faz de música.
A experimentação foi colocada num nicho
de mercado. E não consegue mais ter a penetração social e cultural que já teve
com esses nossos ídolos, sei lá, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque,
João Bosco. Todas essas pessoas são altamente experimentais. Djavan, todo
mundo. Aliavam experimentação com sucesso artístico mesmo, com comunicação. Então,
essas baladas, por exemplo, Luís Capucho é uma balada. A intenção foi essa
mesmo. Agora, eu sou cada vez mais pela comunicação, acho que a experimentação
pela experimentação, eu sei que isso foi bom, mas eu gostava mais de
experimentar. Hoje em dia, experimentar na superfície me seduz pouco. Aquela
música anterior que é mais experimental, é porque o Pedro Carneiro é super mais
experimental que eu. E gosta de loucurinhas. Eu sou cada vez menos pelas
loucurinhas. E mais pelo que vai mais fundo, enraíza mais. Mas, aí, eu posso
mudar isso também a qualquer momento… eu já estou mudando… [risos].
RJ: Eu vi numa entrevista você dizer que
descobriu, recentemente, que é um cantor romântico…
Bruno Cosentino: É porque eu descobri que meu tema é
esse, de canção de amor. Eu vou fazendo esses discos e vou me conhecendo, eu
descobri que é isso mesmo. Isso vem desde o primeiro disco. Quando eu tava
fazendo o primeiro disco, meu só, o Amarelo,
eu tava ouvindo muito Marvin Gaye. E, eu falei, cara, é isso. É isso, tipo,
porque é o ritmo, é soul. Porque eu descobri o ritmo, essa coisa, né, do
gergelim, do ritmo, e que tudo é ritmo. E tem uma passagem do Otavio Paz no
“Arco e a lira” linda sobre o ritmo. Fala que o ritmo sempre aponta para algum
lugar do desejo. O ritmo sempre suscita alguma coisa que está por vir. E,
aí, a coisa rítmica era uma coisa. E a outra é a melodia, eu sempre gostei de
melodia.
Então, o que eu gosto é de R&B, de ritmo e poesia e melodia e
tal. E aí eu fui descobrindo também que a coisa da melodia, o Marvin Gaye, ele
fala coisas banais, assim: “Te amo, meu amor”, “I love you baby”, só que ele
vai falando dentro daquele fluxo. E é maravilhoso. É tipo Tim Maia. Não importa
o que você está dizendo, importa muito a maneira como você está dizendo, a sua
voz, a sinceridade com que você está cantando; a magia, a poesia tá muito ali e
não na letra. Tá naquele balanço “I love you”, ah, aí dá um gemidinho, sabe?
E eu fui descobrindo que o que eu gosto
mesmo é disso. E isso é uma descoberta minha. E agora tá ficando mais maduro
isso no som. No Amarelo, não era tão
maduro. Agora, nesse último, tem músicas que eu já acho mais bem resolvidas.
Essa última, passei já o que eu queria pra banda. E essa banda faz bem e eles
gostam disso também, de fazer esse tipo de som que eu gosto. Eles gostam e eu
gosto. A gente combinou e a gente fez. Por isso que eu gosto tanto dessa banda.
RJ: O pop também te interessa, né…
Bruno Cosentino: O pop super me interessa, é o que mais
me interessa. O pop e a canção romântica. Eu acho que tem um apelo
emocional… Aí, eu regravei “Fui fiel”,
do Pablo. Que é um hit, que o Gustavo
Lima gravou também. Eu não pude botar no disco por problema de direito autoral,
mas tem no Youtube. E essa música é muito linda. Pois é, uma música simples… E,
aí, o que me interessa é isso. Esse arrebatamento emocional extremo, assim,
você corta os pulsos, se chegar lá, com uma letra banal, não tem invenção. Tem
invenção, mas não tem essa invenção que a gente diz, você não percebe a
invenção. Invenção porque o cara chegou num ponto que poucos chegam. Então, tem
muita invenção, mas o propósito não é esse. O propósito é a expressão da
música.
RJ: E o que você tem ouvido?
Bruno Cosentino: Agora, eu estou ouvindo Otto. Estou
ouvindo um garoto da Bahia que é muito bom, Giovane Cidreira, maravilhoso! Ouço
Luís Capucho demais. Ouço muito Al Green. Essa galera de soul americana é,
assim, piração. Tipo, Marvin Gaye, Al Green… Al Green, peguei tudo e não paro
de ouvir. Já faz mais de um ano que eu ouço direto. Amo! E a canção romântica,
né. Al Green. É isso, a canção romântica, Roberto Carlos. Tipo, Roberto Carlos
mais suingado, mais preto. É isso que eu ouço.
RJ: Existem clipes vinculados a esse
trabalho?
Bruno Cosentino: Vai ter um clipe, agora, da primeira música, “É claro que eu queria”, muito
em breve. Até a diretora me mandou mensagem, que ficou pronto. Eu não ouvi
ainda. E “Eu quero ser sua mãe”, do Luís Capucho, tem um clipe.
RJ: Em “Anti-história”, você fala sobre
“…a curva decadente da humanidade”, “a democracia ocidental produz tiranos
magnatas”… Eu queria saber se política é uma coisa que te interessa.
Bruno Cosentino: Política me interessa muito, mas me
interessa onde eu consiga atuar. E eu consigo atuar no meio, na micropolítica
da música. Aí, eu consigo atuar e eu atuo muito. Agora, na política
institucional, é um registro em que eu não consigo operar, porque é um registro
de cinismo, é uma lógica de cinismo tão grande, que eu não consigo. O riso que
não reconcilia é o cinismo, né. Isso aí acho que é uma frase do Adorno, que eu
peguei de segunda mão também, de um ensaio que eu li. E é o cinismo que impera
na política institucional.
RJ: Você acha que a música está mais
democrática?
Bruno Cosentino: Em princípio, teoricamente, tá à
disposição de todo mundo. Mas só na teoria, porque não tá. Porque só chega a
você o que tem muito, um modelo muito bem já estruturado, que faz chegar em
você. Aqui, não. Aqui, a gente tá trazendo pessoas que não tão dentro de uma
coisa. Porque a universidade ainda é um espaço em que você pode respirar. Eu
acredito que você pode furar, mas cada vez é mais difícil furar. Cada vez é mais
difícil. Eu acho que já foi mais possível. O projeto tropicalista foi esse.
Agora, hoje em dia, acreditar nisso, eu acho ingênuo. Porque, depois de neoliberalismo,
depois de Breton Woods, depois de tanta coisa que aconteceu na história,
acreditar que você pode furar o sistema, eu acho de uma ingenuidade muito
grande. Mas era a passagem, a tensão era muito maior, existe uma tensão. Que
podia existir, porque eram outros tempos. Agora… década de 60, 70, e, depois,
foi piorando cada vez mais 80, 90, aí, ó, já foi. A racionalidade econômica foi
de tal forma minando o espaço de criação. Hoje em dia, existe os I-Tunes, eles
não põem um puto de grana pra cobrir, pra fazer o seu CD e são uns magnatas,
uns super atravessadores do I-Tunes, Spotify… a gente tá tocando aqui no Spotify.
Eu estou tocando o disco no Spotify. Os caras não põem um puto na criação do
disco, eu gasto do meu dinheiro, todo mundo gasta do seu dinheiro, os
caras não fazem nada pra música e ganham dinheiro em cima de você. As
gravadoras faziam.
Então, a margem de manobra do artista é
muito menor do que já foi. Ela existe? Existe. Mas é pequeniníssima. É disso
que eu estou falando. Eu acho que cindiu. Talvez, seja melhor cindir. Que, aí,
cada um dá nome aos bois. O problema é a falta de pluralidade, a falta de
diversificar.
RJ: Mas suas
canções poderiam estar no mainstream,
né?
Bruno Cosentino: Elas podiam estar tocando, mas não
tocam. E eu conheço todo mundo das rádios, conheço todo mundo! E não toca. Não
toca porque, sei lá, não estou fazendo acordo, não tenho dinheiro. E o espaço
que tenho de atuar, os jornais tão acabando. A gente tá numa transição e já tá
indo pra algum lugar, já tá se definindo um outro lugar, talvez. Ou não se
defina. Mas eu acho bom também.
Eu estou construindo uma carreira
fonográfica, eu estou gravando meus discos, entendeu? Agora, o gargalo mudou de
lugar. Antes, o gargalo, pra você gravar um disco, era caro, você tinha que
entrar numa gravadora. Você entrava ali. Ali era o filtro. Agora o filtro é
fazer show… É muito difícil fazer show. Se você não tem um empresário, alguém
que vai vender você pro circuito de shows. Então, o gargalo só mudou de lugar.
Nada ficou mais democrático, nem nada, não. Ficou mais difícil ganhar dinheiro,
agora, você ganha dinheiro com shows, porque você não vende mais CD. Porque os
caras te dão um centavo por clique, aí. Inclusive é uma briga da classe
artística…
EF: Sobre esses serviços de stream, mesmo os medalhões que são muito
ouvidos, estão ganhando uma coisa, tipo, 150 reais … 150 reais se for um megassucesso,
se estourou!
Bruno Cosentino: Uma miséria! Uma miséria! Eles ganham
uma miséria! Por isso… por isso é que eles estão lutando. E eles têm algum
poder de barganha. É um mal, assim. Tipo, a Amazon. A Amazon vende desde
batedeira a livro. A Amazon, que vende livros, não gosta de livros. Ela gosta
de vender, gosta de ganhar dinheiro. Quer dizer, esses super atravessadores, o
Spotify não gosta de música, o I-Tunes não gosta de música. Eles gostam, o
objeto deles é o dinheiro, é como se fosse a bolsa de valores. O objeto deles é
o dinheiro, não é a música. O objeto da gravadora era a música. Já foi um dia.
O objeto das editoras e livrarias é o livro. Então, assim, a Amazon, se ela
vender livro ou batedeira, dá no mesmo pra ela. Ela não tem o menor compromisso
com livro.
RJ: É… eu queria que você comentasse essa
última canção, “Três (Toque pra nascer)”, especificamente. Na verdade, eu
queria que você comentasse isso em relação à coisa ritualística que tem na
canção mesmo.
Bruno Cosentino: Essa última música é porque minha
mulher gravou meu filho, quando ele era bem pequenininho, cantando essa
melodia. E eu gostei da melodia. Melodia de quem não sabe nem falar ainda. Aí,
eu fiquei decorando essa melodia, porque eu achei que ela é estranha, porque é de
alguém que ainda não domina o sistema tonal. Não sabe o que é uma melodia
dentro de um sistema que já existe. E esse toque aí é o toque pra Exu. Eu tava
lendo aquele livro Os Nagô e a morte,
que é um clássico, um livro de estudos sobre candomblé. E eu me identifico
muito com a figura do Exu. Que é, assim, dentro da mitologia nagô ou iorubá, é
o primeiro nascido. E ele é filho da mãe e do pai primordiais. Mas, então, ele
é o andrógino, porque ele carrega um pouco do feminino e um pouco do masculino.
E ele também é representado pelo número 3. É o nome da música 3, que se chama “Toque
pra nascer”. É a última do disco. Tem uma depois, que é um bônus, que eu botei,
mas pra mim o disco acaba aí. E eu me identifico muito porque também é o
elemento sexual, é o que atravessa, é um elemento de individuação, de
individualidade, de singularidade. Eu coloquei isso aí no disco porque é muito
uma coisa minha mesmo também. De fazer sentido pra mim. É um canto do meu filho.
Foi uma opção muito pessoal mesmo, que fazia sentido pra mim. E, claro, sempre
quero que faça sentido pros outros também, porque não quero ficar explicando
também, porque se não, quando você explica, tudo faz sentido, né, você acha
lindo.
RJ: É por isso até que a gente ouve
primeiro. Me parece que é muito bonito, antes de saber… Eu não sabia de nada
disso…
Bruno Cosentino: É, claro, eu só ponho porque eu também
acho que vai fazer sentido pros outros. Que nem a outra música lá, a “Certeza triste”,
que a gente ouviu antes. É uma música também que minha mulher acordou cantando
aquilo. E ela não é compositora, é bióloga. E ela cantou aquilo. Eu achei muito
bonito o negócio da certeza triste. E ela foi cantando com essas palavras,
assim. E com melodia já: “não quero ter contigo uma certeza triste”. Não foi
pra mim, não. Ela acordou cantando aquilo. Aí, eu até fiz um arranjo e
complementei uma parte da letra, mas fiz mal. Mas quis botar num fluxo de
banda. Eu não gosto tanto, mas muita gente diz que gosta, então, eu acho que a
coisa da certeza triste bate em muita gente, muito mais de uma pessoa me disse
que gosta dessa música, inclusive você.
* Rafael Julião é professor substituto de Literatura Brasileira na UFRJ, onde fez seu mestrado sobre Cazuza e o doutorado sobre o livro Verdade tropical de Caetano Veloso. É também coordenador do Núcleo de Estudos da Canção do PACC e autor do livro Infinitivamente pessoal – Caetano Veloso e sua verdade tropical (2017).
** Eucanaã Ferraz publicou livros de poesia, como Desassombro (2002), Rua do mundo (2004), Cinemateca (2008, Prêmio Jabuti), Sentimental (2012, Prêmio Portugal Telecom de Poesia) e Escuta (2015). Organizou vários livros, como Letra só (2003) e O mundo não é chato (2005), ambos de Caetano Veloso; a Poesia completa e prosa de Vinicius de Moraes (2004) e a coletânea de letras de Adriana Calcanhoto Para que serve uma canção como essa? (2016). É professor de Literatura Brasileira na Faculdade de Letras da UFRJ e atua, desde 2010, como consultor de literatura do Instituo Moreira Salles (IMS).
Resumo: Este texto busca refletir sobre as novas criações teatrais das subjetividades das margens e a sua dramaturgia que entrecruza real e ficção na cena contemporânea carioca. Busca também uma reflexão do teatro enquanto interdisciplinaridade e enquanto cena expandida no momento em que propõe uma revisão ética, estética e política da sociedade brasileira. Os espetáculos analisados são de companhias formadas por atores que vivem na favela da Maré ou nas periferias cariocas, revelando a urgência de falar de sua realidade, da violência, da exclusão e de partilhar um teatro como potência de afetar e transformar as questões sociais. Os espetáculos são Eles não usam tênis naique, da Cia Marginal, e Cidade Correria, do Coletivo Bonobando.
Palavras-chave: Subjetividade;
teatro político; Cia Marginal; Coletivo Bonobando.
Abstract: The aim of this paper is to analize recent theatrical productions
about the subjectivity of the marginal communities and the mix of reality and
fiction in their dramaturgy, in Rio de Janeiro’s contemporary scene. It also
reflects on the interdisciplinarity of theatre and its expanded scene that
proposes an ethical, aesthetic and political review of Brazilian society. The
plays analyzed were produced by companies from the Maré slum and other
communities on the outskirts of Rio de Janeiro, demonstrating the urgent need
to speak about their reality, violence, and social exclusion, as well as to
share the theatrical experience as a way to affect and transform society. The examined plays are Eles não usam tênis Nike (They don’t wear Nike sneakers) by Cia
Marginal, and Cidade Correria (City Rush) by Coletivo Bonobando.
Keywords: Subjectivity; political theatre; Cia
Marginal; Coletivo Bonobando.
Introdução
Nota-se, nos palcos cariocas, uma grande emergência de
espetáculos que falam sobre a condição de vida marginal. Os espetáculos,
criados a partir de textos ficcionais e processos de criação coletiva,
apresentam momentos das próprias histórias dos atores de violência e de
discriminação na sua comunidade, porém não se trata de espetáculos
autoficcionais, visto que partem de textos ficcionais (um escrito pela
dramaturga Marcia Zanellato, e outro, por meio de um processo coletivo de
criação). No entanto, é visível o cruzamento com o real por meio dos
depoimentos e testemunhos dos próprios atores em determinados momentos.
Assim como na literatura marginal, conforme explicitou
Silviano Santiago (2015, p. 10), a cena marginal contemporânea surge com o
desejo de abalar, perturbar, instigar e desequilibrar as previsões modernas e
bem assentadas da história social, política e econômica do Brasil. A cena
marginal trata de uma fatia do Brasil que foi ocultada, que não faz parte do
futuro, que não tem futuro.
Conforme afirma Santiago:
A negligência dos periféricos em sua relação aos arriscados e temerosos projetos alternativos de futuro teve e tem fundamento no fato de que, por nestas e noutras terras, a expressão livre do pensamento da margem e da ação intempestiva apenas denota – aos olhos dos donos do poder […] – o despreparo e o desplante de quem fala (Santiago, 2015, p. 10-11).
De acordo com Santiago, a gradativa conquista do
direito à fala, à escrita e à arte propõe novas opções de direito à cidadania
plena. Dessa forma, perturbar o coro dos contentes é um modo de liquidar o
passado para, em seguida, reinventar o futuro. Reinventar o passado para que se
possa inventar um futuro alternativo da nação que se esvaziou do conteúdo dado
pela modernidade, isso porque o presente só tem sido razão para negligência e
recusa dos atores sociais marginais.
Sendo assim, ao fazer circular espetáculos realizados
por atores que vivem nessas margens, com suas histórias de vida dentro de um
teatro considerado contemporâneo, inaugura-se a possibilidade de uma cena que
valoriza o empoderamento dessas subjetividades. O sujeito marginal deixa de ser
um objeto representado (sociologicamente pelo intelectual letrado da primeira
metade do séc. XX) e passa a se autorrepresentar, como acontece na literatura
com autores que narram histórias sobre a sua própria realidade, estabelecendo
uma estética que vai predominar no cinema, na literatura e na TV no séc. XXI
como, por exemplo: Cidade de Deus, de
Paulo Lins, e MV Bill, que retratam a experiência do surgimento de uma das maiores
favelas do Rio de Janeiro na literatura e na música, respectivamente, e ainda
Ferréz com Capão Pecado, relatando a
violência ocorrida num dos bairros mais violentos de São Paulo, Capão Redondo.
Faz parte da cena contemporânea o reconhecimento de novas
subjetividades, seja por meio da criação de uma companhia, seja de coletivos,
que se engajam em uma determinada pesquisa com o propósito de realizar uma
produção teatral. Essa produção normalmente parte de um processo coletivo que
engloba um olhar ético, estético e político das vozes dessas subjetividades no
seu território, ampliando a noção de teatro documentário na cena contemporânea,
na qual se apresentam as próprias histórias de vida dos atores e sua relação
com a comunidade em que vivem. Este teatro realiza um trabalho dramatúrgico de
criação embasado em textos ficcionais e nas próprias vivências dos atores,
apresentando um cruzamento entre real e ficção, além de um estudo etnográfico
ao relatar a experiência de vida e a violência nas comunidades.
Esta cena se
aproxima da noção de etnografia pós-moderna, conforme apontou Clifford, como um
rompimento do paradigma da representação:
Torna-se necessário conceber a etnografia não como
a experiência e a interpretação de uma outra realidade circunscrita, mas sim como uma negação construtiva envolvendo pelo menos dois, e muitas vezes mais, sujeitos conscientes e politicamente significativos. Paradigmas de experiência e interpretação estão dando lugar a paradigmas discursivos de diálogo e polifonia […]. Um modelo discursivo de prática etnográfica traz para o centro da cena a intersubjetividade de toda a fala, juntamente com seu contexto performativo imediato (Clifford, 1998, p. 43).
Longe de
pretender a representação de um Outro essencializado, como na antropologia
tradicional, em que o sujeito é o produtor de conhecimento em relação ao
objeto, a etnografia busca ser uma escrita coerente com a perspectiva dialógica
e polifônica, produzindo uma visão compartilhada da realidade. O diálogo e a
intersubjetividade são relevantes quando se pensa em como colocar em cena as
novas subjetividades de forma a valorizar a sua experiência e performatividade.
Dessa forma, os atores buscaram um diálogo da sua própria realidade com a
ficção e, a partir daí, uma forma de potencializar a sua voz ao incorporar a
sua dor e sofrimento de uma forma poética, revelando a performatividade própria
de seus corpos.
O fato de esses atores terem a
oportunidade de ver seus projetos contemplados por editais de teatro e de realizar
seus espetáculos em teatros dentro da cidade do Rio de Janeiro que são
referência da cena contemporânea (como Sergio Porto, Glauce Rocha e a rede Sesc
de teatro), permite que eles deixem de ser enquadrados como “atores da favela”
e possam realizar uma carreira como qualquer outro ator, criando-se, assim, a
oportunidade de um futuro inclusivo para esses atores.
A cena marginal propõe trazer o olhar de quem vive
dentro da comunidade com suas implicações, tais como: a convivência diária com
a violência, o preconceito racial, social e econômico, buscando não somente a
valorização de sua cultura e identidade por meio da linguagem, do rap, da
corporalidade, da dança e da música do funk, mas também um processo de reflexão
e de transformação dessa realidade e desses sujeitos. Essa cena parte de uma
nova linhagem na cultura contemporânea brasileira ao abordar os seus
territórios de pobreza urbana com implicações éticas de falar em nome ou no
lugar dos que sofrem ou, até mesmo, por ser o próprio sujeito dessas experiências,
assumindo o ponto de vista de quem fala de dentro da violência.
De acordo com Beatriz Resende, em Possibilidades da nova escrita literária no Brasil (2014, p. 10),
os representantes da periferia das grandes cidades se tornaram expressões de
novas subjetividades que se afirmam no quadro de produção artística inaugurando
um novo contexto que se configura não apenas político, mas ético e também
estético. Essa configuração democrática e cultural se aproxima das reflexões do
antropólogo indiano Arjun Appadurai, ao se referir à condição global do
terceiro mundo em seu livro The future as
cultural fact (O futuro enquanto fato
cultural). O futuro de que fala o autor não é um futuro neutro ou vazio,
mas sim construído por afeto e sensações, propriedades humanas que o formatam.
O futuro que se organiza pela sensibilidade é o que ele chama de ética da
possibilidade em oposição à ética da probabilidade construída unicamente por
números. O autor afirma:
Por ética da possibilidade quero dizer de modos de pensar, sentir e agir que aumentam os horizontes de esperança, que expandem o campo da imaginação, que produzem uma maior equidade no que chamei de capacidade de aspirar e que alargam o campo de cidadania informada, criativa e crítica (Appadurai apud Resende, 2014, p. 11).
Vejo, assim como na reflexão de Beatriz Resende, a
possibilidade de pensar a arte como um encontro entre a ética e a política
ainda a ser buscado. Essas novas subjetividades das margens têm muito a
contribuir com suas falas e com sua visão de mundo ao buscar um olhar ético de
nossa realidade e uma estética baseada no precário e no cotidiano, valorizando
a criatividade na produção cultural nesses territórios de pobreza. Busca ainda
refletir sobre a questão das políticas emergentes, como a exclusão e a execução
da população negra e marginal da cidade, e de um olhar transformador sobre o
Outro.
Sendo assim, a emergência da cena das subjetividades
marginais atua como possibilidade de inserção dessas vozes na cena
contemporânea brasileira, levando em conta a diversidade social e econômica do
Brasil. A cena marginal revela o desejo de reconhecimento desses sujeitos
dentro da sociedade, as suas dificuldades, o preconceito e a luta contra as
condições desumanas a que são submetidos, proporcionando um novo olhar sobre
essa realidade e uma transformação política no nível dos afetos.
Eles não usam tênis naique:
a poética da violência
Com dez anos de formação, a Cia Marginal nasceu na
Favela da Maré e já realizou quatro espetáculos: Você faz parte de uma guerra? (2005); Qual é a nossa cara? (2007); Ô, Lili (2011) e In trânsito (2013). Situada na Zona Norte do Rio
de Janeiro, com aproximadamente 130 mil moradores, numa faixa entre a Avenida
Brasil e a Baía de Guanabara, cortada pela Linha Vermelha e pela Linha Amarela,
a ocupação do território da Maré começou na década de 1940. Durante a década de
1960, recebeu famílias removidas de outras áreas da cidade e, com o seu
crescimento, aproximou-se de antigas habitações de pescadores. O Morro do
Timbau é o único local seco, uma vez que toda a área ocupada pela Maré foi um
imenso manguezal.
O
espetáculo Eles não usam
tênis naique, dirigido por Isabel
Penoni, interessa ao debate público como amostra da violência que se
instalou no cotidiano da cidade. O texto de Marcia Zanellato foi resultado de
uma pesquisa sobre a linguagem dos moradores de comunidades e começa com uma
narração: “Então, irmão, eu vou contar a história do retorno de Jedai. Mas o
Jedai é o Santo, tá ligado? Então eu vou contar a história do retorno do Santo.
Aconteceu no dia de operação. Tava rolando uma megaoperação (…)” (Zanelatto,
2004). O narrador passa a enumerar todos os envolvidos na operação para tomar o
morro: Exército, PM, Bope, civil, marinha, armas. A história a ser dramatizada
trata do reencontro de Roseli e Santo (seu pai) após 20 anos da ausência
paterna.
O
título da peça sugere uma aproximação com Eles
não usam black-tie (1958), de Gianfrancesco Guarnieri, cujo tema principal
era a luta dos operários por melhores condições de trabalho. O conflito é entre
o pai e o filho que resolve não aderir à greve dos seus companheiros da fábrica
por uma questão pessoal, de que vai ter um filho e não pode correr o risco de
perder o seu emprego. Zanelatto aborda a mesma questão de conflito de gerações
dentro de uma classe social empobrecida das favelas e que luta por uma vida
mais digna. O tema deixa de ser o operário e passa a ser a subjetividade
marginal.
O
espetáculo começa com um ator, com o rosto escondido com uma camiseta, dando um
depoimento sobre o que se passa na favela. A sua voz é alterada pelo microfone
aparentando uma coisa monstruosa. A sua fala contém relatos reais misturados
com a ficção retratando, de uma forma irônica, a sua realidade. A autora
oferece explicações relacionadas a um processo social de reflexão sobre a
realidade dos próprios personagens, criando um distanciamento ao mesmo tempo em
que ocorre um envolvimento com as suas histórias. A cena começa com um diálogo
sobre Seu Jaca, um
possível benfeitor da favela, quando ainda não era o tráfico a dominar a vida
dos moradores, um longo diálogo que deixa em evidência o ponto de vista do
grupo sobre a situação de crianças abandonadas, quando elas roubam e se tornam
uma questão de “segurança” e ainda com a inserção de relatos pessoais.
O
pai, Santo, fugiu da favela para encontrar a paz no interior, ingressando na
religião evangélica e, quando retorna, encontra a filha revoltada com a
condição violenta de vida à qual é submetida dia a dia. Santo tenta mostrar
para Rosa que existe uma vida melhor por meio da crença na religião evangélica,
mas Rosa não acredita em Deus e sim no embate da vida, e não admite a fuga do
pai. A questão que se evidencia é uma reflexão sobre até que ponto o ser humano
pode ser afetado pela violência e pelo medo e até que ponto se é capaz de viver
nessas condições.
A
peça é realizada com quatro atores e um músico, que toca os instrumentos ao
vivo, dando o clima das cenas. As atuações
transitam entre ternura e agressão e estão presentes nos gestos que aproximam
e, ao mesmo tempo, distanciam os atores. Os personagens se confrontam
com pensamentos diferentes, acusações, culpas, se batem e também brincam, mas a
própria brincadeira também é violenta.
O
jogo corporal dos atores é muito intenso, principalmente na cena com as
cadeiras, no momento em que eles mudam de lugar rapidamente, jogando as
cadeiras um para o outro ou quando sobem em cima delas andando em desequilíbrio,
criando uma tensão também em relação ao texto, o que potencializa a performance
dos atores. Há um momento em que Rosa fala do chefe do tráfico, Litinho, que
mata rindo, e os atores cantam e dançam um funk com gestos violentos, conotação
sexual e agressiva com as cadeiras presas em partes do corpo. O funk ajuda a
criar a musicalidade das palavras e cria uma poética nas falas dos atores que,
junto com o músico, dão o clima da realidade em que vivem.
Percebe-se
uma revolta e uma aceitação da condição de vida dos personagens que se encaixam
plenamente dentro da realidade desses atores, tornando a cena ainda mais
próxima da realidade. A cena que melhor
representa esse real se dá pelos relatos pessoais quando os atores se viram
para a plateia e se perguntam se gostariam de continuar a viver na Maré. São
relatos de perda, de violência e de dor que retratam a esperança de uma vida
melhor, seja dentro ou fora da Maré. Como se pode observar no relato da atriz
que representa a personagem Rosa:
A minha militância é na Maré. Tudo o que eu tenho de mais importante na minha vida tá ali naquele espaço. E eu nunca pensei em sair dali. Eu penso cada vez mais em me enraizar naquele lugar. Eu penso em construir família ali. Eu penso em viver na Maré para sempre (Zanelatto, 2004).
Atriz e personagem se entrelaçam nesse relato, real e
ficção se misturam na performance potente da atriz que, de certa forma, está
falando de sua própria experiência de vida na Maré. Os relatos pessoais projetam para o futuro a vida dos
atores e assumem uma reflexão ética diante da possibilidade de construir uma
vida digna, mesmo que em um ambiente precário.
Cidade Correria: a cidade marginal
O coletivo Bonobando foi criado em 2014 em residência artística no
Teatro da Laje, na Arena Carioca Dicró, na Penha, e a peça Cidade Correria ficou em cartaz no mês de maio de 2016, no Espaço
Cultural Sergio Porto, e em maio de 2017 no Teatro Ipanema. A peça trata da
relação das pessoas que vivem nas comunidades pobres do Rio de Janeiro com o
preconceito e a violência na cidade. O espetáculo foi feito em forma de
esquetes, ironizando situações vividas pelos próprios atores do espetáculo,
deixando a teatralidade visível na forma de compor o cenário, os objetos, o
figurino e a música tocada pelos próprios atores com instrumentos de samba.
Trata-se de um processo coletivo de criação iniciado em 2014 quando o
Teatro da Laje ganhou o edital da Prefeitura do Rio de Janeiro para realizar
uma pesquisa sobre o território na Arena Dicró, na Penha. Adriana Schneider e
Lucas Oradovschi dividem a direção do espetáculo, composto por atores que já
tinham uma experiência em teatro nas comunidades. Foram realizadas diversas
oficinas, como as de máscaras, palhaçaria, performance, objetos em deriva para
estimular o treinamento do grupo e criar uma poética com elementos que vieram a
compor uma dramaturgia.
Em 2015, eles ganharam novamente um edital para realizar uma montagem
com esse material sobre a cidade e, assim, começou o processo de montagem que
utilizou a ficção, partindo de contos latino-americanos e africanos a fim de
estabelecer os dispositivos que estruturassem o processo de criação dos atores.
O método dramatúrgico, organizado pela diretora Schneider, partiu dos contos
ficcionais e da experimentação dos atores por meio de suas próprias vivências e
histórias no dia a dia na cidade. No entanto, havia uma preocupação de que o
espetáculo não fosse autobiográfico, pois eles não queriam ser enquadrados como
os atores da favela, falando somente de sua realidade, mas queriam aproveitar a
oportunidade para mostrar a sua criação poética por meio da cultura popular e
de técnicas aprendidas durante o processo, inserindo-se, assim, na cena
contemporânea.
Ainda que as experiências pessoais tenham servido de matéria-prima na estruturação desse trabalho, a montagem não pode ser considerada uma autoficção, pois não parte de uma linha confessional das histórias dos atores, mas pode-se dizer que se baseia em fatos reais. Concebida em criação coletiva a partir dos textos “O bebê de tarlatana rosa”, de João do Rio, “A última chuva do prisioneiro”, de Mia Couto, “O duelo entre a criança que diz sim e a cidade que diz não”, de Thiago Rosa, “Banzeiro”, de Ricardo Cotrim, “Cidade Correria 1”, de Thiago Florencio e “Cidade Correria 2”, de Daniel Guimarães, a dramaturgia mescla obra literária e a escrita urgente que visa à cena, às esferas do real e do poético.
Dessa forma, o espetáculo começa satirizando o que seria uma cena
autobiográfica com um ator sentado num sofá velho falando de sua vida, da
relação conflituosa dos pais e do desejo de sua mãe de que ele se torne um
homem importante trabalhando numa grande empresa como Mc Donald’s, Burger King
ou KFC, mas ele revela que o seu sonho era ser ator de teatro. Nesse momento,
entram outros atores, que se juntam a ele, para pensar qual a cena de teatro que
gostariam de montar, revelando a estrutura de um processo coletivo de criação, embasado
nos depoimentos dos atores que podem ser reais ou não. Eles encontram uma caixa
com elementos cênicos e vão se fantasiando e, com seus corpos, criam um grande
barco que os leva para uma viagem de texto e ritmo, para uma cidade caos, cidade
contradição, cidade impedida, inventada, cidade revolução, cidade correria, que
é o Rio de Janeiro.
Os atores dividem o palco com fitas amarelas em pequenas áreas. Os
espaços se tornam compartimentados e os territórios, minados, apresentando uma
cidade cindida, na qual as regiões mais valorizadas (Zona Sul e Centro)
concentram grande parte das atenções, e as demais ficam condenadas ao quase
esquecimento. A questão da gentrificação, a ironia com as propostas do governo
em transformar o Rio numa cidade modelo para os jogos olímpicos, o processo de
exclusão dos negros e pobres, com o aumento do preço da passagem, a questão da
UPP que, ao invés de resolver, muitas vezes piora o conflito na favela, são
alguns dos temas abordados.
Alguns espectadores são convidados a participar de uma cena conduzida
por um apresentador de TV suburbano. A cena traz à tona a dinâmica territorial
da favela (ruas ou vielas), enquanto participantes do público dão as mãos em
diferentes posições formando barreiras e acessos, e um ator negro passa por
entre eles perseguido por setores da sociedade, como a diretora de uma escola,
uma ONG, uma apresentadora de TV, até ser pego pela polícia e enquadrado como
marginal. Nesse momento, o personagem perseguido diz que é ator e o policial pede
para ele mostrar o que faz. Ele, então, começa um show de striptease, no ritmo de funk, revelando uma roupa embaixo da outra,
representando os estereótipos que o negro e o pobre assumem na sociedade, como
lixeiro e doméstica, até ficar somente com uma sunga oferecendo seu corpo para
o policial.
Esta cena foi baseada em um fato real que aconteceu com um ator que foi
pego pela polícia e teve que provar que era ator de teatro. Os relatos se
misturam com a ficção, deixando claro que o tema principal é a exclusão do
negro e o preconceito com as pessoas que vivem nas favelas. Durante as
Olimpíadas, a cidade foi reformada para se enquadrar no esquema de uma cidade
modelo e, dessa forma, os atores simulam uma operação plástica, colocando
próteses e enfeitando uma atriz, que representa a cidade e, depois, a colocam
de pé como uma boneca falando francês. Os contrastes se intensificam na Cidade
Maravilhosa, ao tentar maquiar e esconder os podres, violências, injustiças e
descasos, excluindo ainda mais a sociedade marginal para produção de uma cidade
olímpica.
O espetáculo apresenta cenas de extrema violência, porém sem perder o
humor e a intensa teatralidade, como na cena em que uma atriz de pijama faz o
papel de uma menina brincando com suas bonecas e reproduz o que escuta no mundo
dos adultos: a violência do estupro, do bandido perseguido pelo camburão, do
assassinato e morte de sua família, concluindo com a sua própria morte. A voz
infantilizada da criança narrando os episódios que acontecem na vida real
demonstra o quanto essas pessoas são submetidas a uma violência cruel no dia a
dia.
No final da cena, meninos entram soltando pipas
coloridas, um ator dança capoeira e uma atriz entra vestida e dançando como
Oxum, a orixá das águas, que vai molhando e limpando todo o sangue derramado,
para que o amanhã possa renascer com esperança.
A atriz que representa a cidade vai se desfazendo de toda roupa,
maquiagem e próteses que foram colocadas, ao mesmo tempo em que um poema é
recitado em off, mostrando a sua
revolta de tentar parecer com aquilo que não é. A beleza da cidade está na sua
contradição, nas suas misturas e hibridismos culturais que, por vezes, se
revelam de forma surpreendente, tal como nos mostra o texto final da Cidade:
Eu sou a Cidade Correria! Sou um fosso, sou um fóssil de um povo que nunca existiu, que nunca existiu? Sei não, sei que sou vil, sei que sou vão, sei que sou a cidade e que nela sou a faísca e sou também a isca na minha armadilha, já fui o fogo, já fui a cinza, sou um cheiro, serei meu chão, minha comida, meu miojo, meu pão, sou a feira no feriado, sou a fruta, sou o resto varrido da fruta, a alegria dos pássaros, o pedágio dos ratos, sou céu, enterrado no chão, sou o sol correndo, o coração batendo, na minha alegria, na minha fuga [Nesse momento os atores que haviam deixado o palco, voltam um a um, com pipas presas em bambu, compondo com relação à figura da Cidade] sou rápida, sou rasa como uma lâmina, era faca? era asa? ou era fome? Ontem me mataram, hoje esqueci meu nome, ontem era pássaro, hoje meu fóssil, sem nome sem data, rasga a calçada e vai passando, circulando, circulando, tenho hora, não tenho dinheiro, mas sou rápida, rápida e rapace como um rato, como carro voando baixo, sou chumbo grosso, metal pesado, sou trânsito, sou trabalho, trabalho, trabalho! Sou a Cidade Correria, sou a dor, a ferida, cimento, cinza, cinza, cinza, (Thiago leva uma bacia de água para Cidade, que se lava) tumor aberto, sinal fechado, corpo fechado, corpo riscado no chão, sou a Cidade Correria, sou a fuga do labirinto, sou meus passos sumindo, sou a multidão, esbarrão sem som, búzios sem relação, o tempo é corrente, meu tempo é corrente, chave e portão, sou a Cidade Correria, sou a flor bonita nascendo, os apesares da minha sorte, sou a beleza chorando no sangue bebido da Terra, Terra velha, terra assombrada, ai os fantasmas da minha terra, sou as histórias das minhas velhas, sou as histórias espalhadas dos meus velhos e das minhas velhas, morrendo de pé como nasceram, apertadas, lugar travesti, foi assim que nasci, maltratada, maquiada, sorriso nos olhos, revolta na mão! (Coletivo Bonobando, 2014).
Conclusão
As cenas das subjetividades que vivem à margem vêm despontando no
contexto do teatro contemporâneo brasileiro com o surgimento de novos grupos
teatrais, coletivos e artistas que aderem às opções estéticas, linguagens, suas
experiências de vida e suas vivências de mundo. Esta cena urgente coloca em
foco o debate das políticas identitárias referentes aos contextos locais
mostrando que é preciso problematizar a cena contemporânea por meio de
dramaturgias que correspondam, por potência, a atores negros e marginais. Dessa
forma, esses espetáculos refletem sobre o pertencimento dessas subjetividades
na cidade e dentro da produção artística hegemônica. Reflete também sobre a
questão da violência e da exclusão das pessoas que vivem nas favelas, sobre o
espaço precário oferecido para a diversidade cultural, sobre o teatro como
forma de ativismo e transformação da realidade e, enfim, como potencialização
do espaço afetivo de encontro ao outro.
* Andréa Stelzer foi professora substituta na ECO/UFRJ (2017-2018), é pós-doutora em
Literatura Comparada pelo PACC/UFRJ, doutora em Artes Cênicas pela UNIRIO com
bolsa sanduiche da CAPES na Université Sorbonne Nouvelle – Paris 3, autora do
livro A escritura corporal do ator
contemporâneo (Confraria do Vento, 2010), além de diversos artigos
acadêmicos.
Referências
APPADURAI, Arjun.
“The future as global fact”. In: The
future as global condition. London\NY: Verso: 2013.
CLIFFORD, James. “Sobre a autoridade etnográfica”. In:
SANTOS, José Reginaldo (Org.). A
experiência etnográfica. A antropologia e literatura no séc. XX. Rio de
Janeiro: UFRJ, 1998.
COLETIVO BONOBANDO.
Cidade Correria. Texto não publicado,
cedido pela diretora do espetáculo Adriana Schneider, 2014.
RESENDE, Beatriz. Possibilidades
da nova escrita literária no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 2014.
SANTIAGO, Silviano. “Crítica de mutirão”. In: Modos da margem: figurações da marginalidade na literatura brasileira.
Rio de Janeiro: Aeroplano, 2015.
ZANELLATTO,
Márcia. Eles não usam tênis naique. Texto
não publicado, cedido pela diretora do espetáculo Isabel Penoni, 2004.
Desde o início de meus estudos acadêmicos, venho pesquisando literatura contemporânea, com foco na literatura brasileira, especialmente os temas que tratam da violência, das tramas criminosas e das escritas de si. Meu foco está mais nas narrativas-depoimento de escritoras mulheres que traçam relatos da vida na marginalidade. Ou seja, mulheres que viveram à margem do acesso e usufruto das riquezas e benefícios disponíveis, o que lhes confere o status de subalternas. Através da escrita, essas mulheres invocam a periferia, relatando em seus livros as memórias de como elas sobreviveram ao mundo do tráfico.
É marginal quem está do lado oprimido, excluído e desvalido. As escritoras entrevistadas Raquel de Oliveira e Fabiana Escobar relatam suas experiências de dentro do seu território: a favela da Rocinha. Traços comuns entre os romances A número um, de Oliveira, e Perigosa, de Escobar, são identificados pela problemática da violência, da resistência, da condição feminina em espaços urbanos, especificamente, a rua e a favela.
Raquel de Oliveira nasceu no Rio de Janeiro em 1961. Vive na Favela da Rocinha. Descobriu-se poeta dentro de uma clínica para recuperação de dependentes químicos. É pedagoga, professora e romancista. Aos 54 anos, em 2015, publicou pela FLUPP seu primeiro romance, A número um. O livro nos indica desde a apresentação que se trata de uma história baseada em fatos reais, ou seja, uma obra autobiográfica. Como observam Aline Deyques e Beatriz Resende, trata-se de um romance que dá voz a uma mulher que vive na periferia, sendo ex-traficante[1]. Raquel de Oliveira foi mulher de Naldo, chefe do tráfico da Rocinha. A escritora herdou o comando quando Naldo foi morto pela polícia.
Fabiana Escobar, atualmente com 36 anos, foi nascida e criada no bairro Rio Comprido, Zona Norte do Rio de Janeiro. Cursou Serviço Social na UFRJ. Atualmente, com três obras publicadas é blogueira e escreve artigos para sites e notícias da favela da Rocinha. No romance Perigosa, lançamento exclusivo da Novo Século, Fabiana Escobar narra o dia a dia do mundo do crime nas favelas do Rio de Janeiro, refletindo sobre os motivos que levam muitas pessoas a fazer parte dessa triste realidade, sobretudo mulheres e meninas. Em seus relatos, Fabiana Escobar vai descrevendo em detalhes a sua inserção no mundo do tráfico. Descreve as ações empreendidas por ela, o avanço das sofisticações das armas, estratégias de comando e as suas variadas formas de defesa e sobrevivência. Fabiana conta em seu livro sobre seu envolvimento com o traficante Saulo de Sá da Silva, com quem foi casada por 11 anos.
Como Raquel de Oliveira, Fabiana Escobar também conseguiu mudar e reconstruir sua vida após o envolvimento com o crime.
Entrevista com Raquel de Oliveira
Rachel Nunes: Partindo da constatação de que você escreveu um livro com base em suas memórias e vivências, é possível afirmar que você construiu uma personagem literária a partir de si mesma? Quem é a “Bonitona”?
Raquel de Oliveira: Contar essa história foi muito difícil e eu achei no romance literário um jeito de sofrer menos revivendo a Bonitona. Encontrei no estilo “Colcha de Retalhos’ eternizado e contemporizado por Mário de Andrade, do qual sou fã, a ferramenta necessária para criar literatura a partir de mim mesma. Mostrar-me como personagem através de um estilo literário foi vital para essa realização. Em sendo assim, pude manter uma certa distância e executar com êxito o livro, pude pegar imagens de mim mesma, partir de mim mesma, encontrar comigo mesma 30 anos mais nova e realçar os traços de personalidade mais fortes e dignos de uma obra literária de qualidade que a história merecia, centralizando no caso de amor e paixão dos protagonistas. A Bonitona sou eu! Em verdade e de verdade! Eu construí uma obra literária dessa época da minha vida, e reviver a Bonitona me fez aceitar, perdoar e deixar o passado no passado, pois sofria muito com essas lembranças. Foi como uma terapia. Tirei alguns fantasmas do armário! Concentrei no A Número Um minha eterna gratidão à literatura e à minha paixão pelo gênero romance.
RN: Se a personagem é criada pela autora, mas é ao mesmo tempo invenção, você acha que a personagem mostra algum traço que na vida real a autora esconde? O que a Bonitona faz que você não faria?
Raquel de Oliveira: A personagem não é uma invenção. A ficção se deu em reproduzir diálogos e falas ditas há muito tempo e não seria possível reproduzi-las, de fato. Também optei por escrever um romance e não uma autobiografia porque não seria ético para minha carreira como escritora nem recomendável para o mercado literário, já que não sou uma celebridade ou uma pessoa famosa. Além disso, há a questão dos nomes que são todos fictícios. Tudo o que a Bonitona fez foi o que ela sabia fazer. Foi o que aprendeu ao longo de uma vida dentro da criminalidade. Foi o que aprendeu sendo criada no meio do crime. Foi o que aprendeu sendo brutalizada e violentada desde muito criança. Em verdade ela só reproduziu o sistema em que viveu desde os seis anos de idade. Hoje sou outra pessoa. Com pensamento e sentimentos diferentes. Mais louváveis e mais humanizados, mas guardo dentro de mim essa mulher que, criança ainda, muito novinha mesmo, aprendeu a se defender e a sobreviver em um mundo tão cruel, sem possibilidades e oportunidades legais e favoráveis para se desenvolver como pessoa. Em verdade, até hoje, a força e a vontade dessa mulher de viver intensamente o seu amor me ajudam a superar as minhas misérias pessoais.
RN: Olhando pelo retrovisor da sua própria história de vida, você acha que essa vida teria sido diferente sem a literatura, sem a escrita do livro? O que representa a literatura para você, hoje?
Raquel de Oliveira: Sempre digo que a literatura me salvou! Me deu um fôlego de vida que eu desconhecia e foi na Poesia que descobri que poderia sobreviver à minha dependência química, uma doença progressiva, incurável e de determinação fatal, e prosseguir. Foi através da escrita sobre mim mesma, e meus dias confinada para a recuperação das drogas, que eu me descobri como pessoa, com sonhos e vontade de vencer as minhas próprias limitações, tão destrutivas. Não conseguia falar de mim, nem chorar ou sentir culpa, ou dizer não às minhas compulsões e obsessões, às substâncias psicoativas ilícitas, e por isso as terapias não funcionavam. Não sentia nada! Vivia anestesiada! Então passei a escrever sobre o dia e tudo o que se passava comigo, e foi assim que achei meu dom como poetisa. Então, sem a escrita não teria conseguido superar a doença e foi através dessa poesia que fui parar na Festa Literária das Periferias (FLUPP), fui reconhecida e publicada como poetisa, voltei à escola, fiz o ENEM, ganhei a bolsa para a faculdade de Pedagogia, e várias publicações como contista; e também publiquei um livro solo de poemas. Por fim, mas não o final, escrevi o romance A Número Um. Sem a literatura, acho que eu estaria morta; talvez como um zumbi, vazia por dentro e inutilizada para uma vida útil, com certeza! E, hoje, a literatura é minha melhor parte! A mais forte, e o que me move em relação a todos os aspectos de minha vida. Sou escritora! Amo escrever! E tenho ainda muito a dizer!
RN: Quais são seus planos de futuro? Vai escrever outros livros?
Raquel de Oliveira: Sim. Estou nas publicações desse ano nos livros da FLUPP. Em Poesia, com quatro dos meus poemas, e em Narrativas Curtas, com dois contos. Também estou terminando um segundo romance, o Vozes da noite. Tenho planos de publicar mais um livro solo de poemas e um de poemas para crianças. Quero fazer um mestrado e depois um doutorado em Educação e Saúde. Quero trabalhar com pesquisas em torno da Síndrome Alcoólica Fetal (SAF).
Entrevista com Fabiana Escobar
Rachel Nunes: O que você escreveu antes de escrever este livro? E o que a literatura representa para você?
Fabiana Escobar: Em 2001 eu comecei a escrever uma história que eu definia como sendo uma novela, mas só a minha família que lia. Já em 2011, escrevi a minha história em um blogue e, posteriormente, aquilo que eu havia escrito em 2001, eu atualizei no formato web novela. Depois publiquei os dois em formato de livro. A literatura inicialmente foi uma forma encontrada para mostrar para o mundo toda a minha verdade e, de certa forma, era também uma defesa. Depois percebi que tinha muita importância, tendo em vista que as pessoas se reconheciam no que eu escrevia.
RN: Você pode contar um pouco do que você leu desde sua infância? Que livros marcaram sua trajetória?
Fabiana Escobar: Na infância eu lia os livros tradicionais que recomendavam na escola. Não teve nenhum supermarcante dessa época. Mas sempre fui curiosa. Lia livro de São Cipriano, livros espíritas, e muito gibi. Mas não tenho nenhum livro para falar que esse marcou a minha vida.
RN: Como foi para você a experiência de preparar e publicar Perigosa? Ele foi importante para você no que diz respeito ao seu destino?
Fabiana Escobar: Apesar de ter sido pessoalmente muito angustiante relembrar algumas coisas para escrever o livro Perigosa, essa foi a parte mais fácil. Quando comecei a preparar o livro, me vi sozinha sem nenhum tipo de suporte que não estivesse ligado a dinheiro. Eu não tinha dinheiro, então tive que fazer tudo sem nenhum aporte material. O livro começou a ser vendido de forma independente por 47 reais, mas desses eu só recebia 5. Extremamente caro, pois no fim eu mesma não ganhava quase nada. O mercado literário brasileiro é muito cruel com os escritores. Me parece que escrever não é valorizado. Foi muito difícil chegar a uma editora, após anos com meu livro sendo vendido somente pela internet e tendo meu trabalho totalmente desvalorizado. O livro foi importante, sim, no que diz respeito à visibilidade do conteúdo que ele tem, mas escrever no blogue foi determinante no momento que fui vista e reconhecida por pessoas que poderiam me ajudar nessa caminhada.
RN: Que planos você tem para o futuro em relação à literatura? Pretende escrever mais livros?
Fabiana Escobar: Eu já tenho três obras: Perigosa (biografia), Linha cruzada (web novela) e Um gatinho chamado Flocos (infantil). Estou escrevendo outro livro, um romance de ficção científica. Eu também escrevo roteiros para o grupo de CINEMA que tenho na Rocinha: Rocywood. Já tenho o “Anjos não falam” – premiado em Atibaia, e “A bala perdida”. E estou produzindo um filme de terror chamado Vale dos espíritos. Também escrevi uma peça teatral chamada Se beber não tire selfie.
*Rachel Fátima dos Santos Nunes é pesquisadora do PACC da UFRJ, com Pós-Doutorado em andamento. E-mail: rachelnunes144@gmail.com.
Nota
[1] “Territorialidade e a questão de gênero na obra A número um, de Raquel de Oliveira”, artigo publicado nos anais do XV Encontro da ABRALIC em 2016.
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