editorial
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A CANÇÃO CONTEMPORÂNEA EM ESCUTA

A canção popular brasileira, ao longo do século XX, consolidou-se como manifestação cultural de elevado valor estético e de evidente força política. Além disso, tornou-se fonte preciosa de representações e reflexões em torno da realidade social do país, em suas mais diversas peculiaridades e contradições. Desde os anos 1960, as discussões que conduziram da bossa nova ao tropicalismo geraram farto acompanhamento crítico-teórico por parte do jornalismo especializado, mas também do empenho intelectual dos próprios artistas e, por fim, dos estudos acadêmicos.

Por se tratar de um objeto híbrido, a canção popular passou a ser estudada no âmbito da literatura, da música e das ciências sociais, abrindo caminho para um campo teórico específico e transdisciplinar, do qual se ocuparam nomes como Augusto de Campos, Luiz Tatit, Santuza Cambraia Naves e José Miguel Wisnik. A partir daí, começaram a proliferar trabalhos acadêmicos sobre os gêneros musicais e sobre os grandes cancionistas do século XX, gerando um consistente arcabouço teórico para os estudos da canção.

No entanto, neste momento, é fundamental que nossos olhos também se voltem para o cancioneiro do século XXI. Nesse sentido, é preciso refletir sobre a complexidade do cenário atual: os novos meios de produção, propagação, legitimação e circulação do objeto canção; o estabelecimento de um novo cânone de cancionistas populares a partir das contemporâneas discussões estéticas e identitárias; o retorno dos álbuns, dos vinis, dos EPs e dos singles como objetos estéticos íntegros; a inserção da canção contemporânea no contexto das novas (e das velhas) tensões políticas e sociais; e, por fim, a própria produção recente dos artistas que se consagraram ainda no século passado.

Pensando nisso, o Núcleo da Canção do Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC-UFRJ) vem desenvolvendo, desde 2016, o projeto Escuta, que recebe na universidade artistas contemporâneos, escuta seus discos e conversa sobre questões importantes da canção popular do Brasil, principalmente, em nossos tempos. Para essa coletânea, escolhemos justamente a edição especial de fechamento do primeiro ano de entrevistas (em setembro de 2017), na qual ouvimos um álbum de Bruno Cosentino, que além de artista, é também um pesquisador da canção e um dos idealizadores do projeto. A conversa foi conduzida por mim (Rafael Julião) e pelo professor e poeta Eucanaã Ferraz e serve de exemplo (com alguma dose de metalinguagem) dessa atividade que temos desenvolvido no PACC.

A primeira entrevista do ciclo me deu a oportunidade de conhecer a obra de Luís Capucho, de discos como Cinema Íris e Poeta maldito. Desde então, venho mantendo interesse por seu trabalho e, neste contexto, achei cabível publicar algumas reflexões sobre sua obra musical (e também literária). A questão da voz, central para a compreensão de Capucho, é também tema de Leonardo Davino, em seu texto revelador sobre a vocoperformance de Juçara Marçal. O artigo é um exemplo claro de como o pensador da canção deve deslizar entre zonas diferentes do conhecimento, como a filosofia, a literatura, a estética, a música, a história, e também circular com naturalidade entre diversos estratos da cultura, indo do erudito ao popular, do cult ao pop, circulando por todas essas áreas, desfazendo suas hierarquias e harmonizando suas particularidades.

Esse trabalho crítico podemos observar também no artigo de Carlos Gomes sobre o compositor pernambucano Siba, que nos leva ao maracatu e à cultura do Nordeste do país, revelando sua qualidade poética e, especialmente, sua força política. A canção como conjugação de vetores estéticos e políticos é também assunto de Vanubia Close e Samile Cunha, que refletem sobre a Elza Soares do século XXI e a narrativa que faz de si e da música, ao ser intérprete e curadora das canções que canta. Nesse texto, o lugar de onde se fala e que narrativa produzimos sobre nós é um bom convite à reflexão. Do “Rap da felicidade” de Elza, vamos ao rap de Mano Brown, que Marcos Lacerda nos aponta como um mestre da composição, em sua inventividade formal, e também em seu lugar de pensador da cultura brasileira. A voz do artista vem de um espaço singular de visão, trazendo miradas muitas vezes desconcertantes sobre a realidade do país, sempre postas em sua dicção particular.

A questão das narrativas sobre a canção popular (e suas implicações políticas e culturais) é o assunto de Gustavo Mouro, que pensa na linha de tensão entre a tendência pós-moderna de problematização das narrativas e as interfaces dessas narrativas com o mundo real, por seu poder de retratá-lo, mas também por sua potência de fecundá-lo. Já Augusto Cavalcanti nos convida a pensar a produção de Cazuza e Arnaldo Antunes, paradigmática do rock nacional surgida nos anos 1980, tanto a partir de sua inserção no desenvolvimento da canção popular de massas ao longo da segunda metade do século XX, mas também sob o influxo das recentes discussões estéticas e políticas. Assim, a pós-modernidade não atua só sobre os artistas do presente, mas também sobre os olhos que miram os artistas do passado.

Enfim, a coletânea deseja ser um chamado de atenção para a força presente da canção popular do Brasil, e o que ela nos revela de gesto estético e de dimensão política, apresentando-se como objeto necessário e complexo, que carece de muitos lugares de olhar. Trata-se, antes de tudo, de um convite para a escuta das vozes que permanecem transformando em som e lançando luz sobre a vida deste país e de todos nós.

Rafael Julião (PACC/UFRJ) e Bruno Cosentino (PACC/UFRJ)
Organizadores

dossiê
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A VOCOPERFORMANCE FELINA SONSA QUE TEM ASA DE JUÇARA MARÇAL

Resumo: Jean-Luc Nancy começa o livro À escuta, perguntando-se se “é a escuta uma coisa de que a filosofia seja capaz?”. A resposta a essa pergunta vem sendo desenvolvida por alguns pensadores. Para Paul Zumthor e Adriana Cavarero, o ensurdecimento da filosofia, isto é, da reflexão sobre os poderes da voz, é tema central e precisa ser efetivamente compreendido por quem pesquisa a palavra cantada, a palavra vocalizada, a vocoperformance. Este trabalho enfrenta a questão, a partir da mitologia vocalizada na voz da cantora Juçara Marçal. Posto que nessa revocalização do mito e do logos, Juçara cria um mundo sonoro constituidor e contestador da realidade: “devolve o hematoma”.

Palavras-chave: Juçara Marçal; vocoperformance; mito.

Abstract: Jean-Luc Nancy begins the book À l’écoute, wondering if “l’écoute, est-ce une affaire dont la philosophie soit capable?”. The answer to this question has been developed by some thinkers. For Paul Zumthor and Adriana Cavarero, the deafening of philosophy, that is, reflection on the powers of the voice, is a central theme and must be effectively understood by those who search for the word sung, the word vocalized, vocoperformance. This work faces the question, from the voiced mythology in the voice of the singer Juçara Marçal. Since in this revocation of the myth and the logos, Juçara creates a sonorous world that constitutes and contests reality: “it returns the hematoma”.

Keywords: Juçara Marçal; vocoperformance; myth.

1. Pro mensageiro passar. Para Augusto de Campos (1978),

segundo ensina Moles, a informação é função direta de sua imprevisibilidade, mas o receptor, o ouvinte, é um organismo que possui um conjunto de conhecimentos, formando o que se chama de ‘código’, geralmente de natureza probabilista, em relação à mensagem a ser recebida. É, pois, o conjunto de conhecimento a priori que determina, em grande parte, a previsibilidade global da mensagem.

E completa que

assim, a mensagem transmite uma informação que é função inversa dos conhecimentos que o ouvinte possui sobre ela. O rendimento máximo da mensagem seria atingido se ela fosse perfeitamente original, totalmente imprevisível, isto é, se ela não obedecesse a nenhuma regra conhecida do ouvinte. Lamentavelmente, nessas condições, a densidade de informação ultrapassaria a ‘capacidade de apreensão’ do receptor.

Conclui:

nenhuma mensagem pode, portanto, transmitir uma ‘informação máxima’, ou seja, possuir uma originalidade perfeita, no sentido da teoria das probabilidades, e, mais precisamente ainda, a mensagem estética deve possuir uma certa ‘redundância’ (o inverso da ‘informação’) que a torne acessível ao ouvinte. Reciprocamente, a transmissão de elementos demasiados previsíveis é ‘banal’ aos ouvidos do receptor, que não encontra neles um coeficiente de variedade capaz de interessá-lo.

Assim, “para que haja informação estética, deve haver sempre alguma ruptura com o código apriorístico do ouvinte, ou pelo menos, um alargamento imprevisto do repertório desse código” (p. 180-181). Por sua vez, Jean-Luc Nancy começa o livro À escuta (2014), perguntando-se se “é a escuta uma coisa de que a filosofia seja capaz?” (p. 11). A resposta a essa pergunta vem sendo desenvolvida por alguns pensadores. Nancy, inclusive. Para Paul Zumthor (2007) e Adriana Cavarero (2011), o ensurdecimento da filosofia, isto é, da reflexão sobre os poderes da voz, é tema central e precisa ser efetivamente compreendido por quem pesquisa a palavra cantada, a palavra vocalizada, a vocoperformance. O pesquisador dessas poéticas já percebeu que escutar é saber. Ou que “só podemos atender ao mundo orecular”, como Oswald de Andrade anota no Manifesto Antropófago. Ao neutralizar a escuta, o filósofo deixa de perceber que “o sonoro arrebata a forma”. Isso porque o sonoro “não dissolve [a forma], alarga-a antes, dá-lhe uma amplidão, uma espessura e uma vibração ou uma ondulação que o desenho mais não faz do que aproximar” (Nancy, 2014, p. 12). Por isso mesmo, ao justapor as palavras de Augusto de Campos sobre a transmissão de uma mensagem estética e as de Jean-Luc Nancy sobre a escuta, estranhamos quando este sugere que podemos escutar o que vemos, mas não podemos ver o que escutamos. Ora, o que faz o sujeito cancional, aquele que canta por trás da voz audível, aquilo que antigamente chamávamos de alma [da canção], senão plasmar imagens?

2. Pesar a consciência do plantão. Ao dizer que “quer-se aqui apurar o ouvido filosófico: puxar a orelha do filósofo para a inclinar para aquilo que solicitou ou representou sempre menos o saber filosófico do que o que se apresenta à vista e que se eleva antes no sotaque, no tom, no timbre, na ressonância e no barulho”, Nancy (2014, p. 13) aponta em direção àquilo que temos chamado de sujeito cancional. A saber: a entidade que só se permite ouvir no instante-já da canção e que amalgama a voz do compositor, a voz do sujeito da canção (a voz que “fala” a mensagem da letra da canção) e a voz do desejo do ouvinte. E, importante destacar, descola-se de todos estes quando permite a fruição, bem como a possível significação, pessoal e intransferível. Mais do que a confissão auricular, o sujeito cancional é a alma do sujeito da canção, daquilo que em teoria da literatura chamou-se de eu-lírico. O barulho visual engendrado por esse sujeito foi peremptoriamente silenciado. Isso porque, grosso modo, esse barulho é mais sonoridade e menos mensagem, mais experiência e menos decodificação. É estar e ser à escuta, como defende Nancy. Ou seja, para um ser dado à escuta, formado pelo e no orecular (ouvinte, ouvidor, auditor, auscultador, escutador), caberia “uma intensificação e um cuidado, uma curiosidade ou uma inquietude” (Nancy, 2014, p. 16), já que “escutar é estar inclinado para um sentido possível, e consequentemente não imediatamente acessível” (p. 17). Essa abertura é trabalhada, por exemplo, em “Padê onã”, de Douglas Germano, na voz de Juçara Marçal. É a preparação do encerramento dos trabalhos do disco Convoque seu Buda, de Criolo (2014). A canção é saudação e canto a Exu, mensageiro da travessia e do destino, orixá da comunicação, dos contatos. Junto à canção “Fio de prumo” – instrumento da construção civil e bastão de Exu –, “Padê onã” canta que a ideia não substitui o sensível. Se “a poesia existe nos fatos”, como Oswald de Andrade escreveu, é o sujeito cancional em Juçara Marçal que, coincidido com o estado do ouvinte naquele momento de execução da canção, quem faz o convite para o canto compartilhado. “O modo como o leitor ou ouvinte pode fundamentalmente contribuir para a inspiração poética ou para o desvelamento do Ser acontecer é por meio de sua abertura atenta para o Ser e para a imaginação quando eles ainda não mostraram (e pode ser que nunca se mostrem)”, escreve Gumbrecht (2016, p. 101). O ouvinte não conhece o sujeito, mas tem nele um cúmplice. Há re-conhecimento e há presentificação. O sujeito cancional apresenta em som (tensão entre corpo e alma – “Aço , peito, flecha, caminho / Magma, lava, inveja, vizinho”) algo que até então o ouvinte e o próprio compositor só tinham uma vaga ideia do que seria: a coisa em si – tão fluida e fugidia quanto a própria canção que (não) morre no ar. E aqui está o drama do sujeito cancional: “voa tão leve / mas tem a vida breve / precisa que haja vento sem parar”, como cantou Vinicius de Moraes.

3. Sua boca, seu dente e o encarnado. Encarnar é tirar sarro, é avermelhar (sangrar – vermelho de Matisse), é ter um corpo, é ser no mundo. É sagrar um eu. A raiz da palmeira juçara (Euterpe edulis), típica da Mata Atlântica, é grossa e vermelha. “Uma esperança morta”, “uma ferida aberta”, “um carnaval onírico”. Elementos da alquimia (instalação) sonora engendrada pelos três amigos (para matar): Juçara Marçal, Thiago França e Kiko Dinucci – a alma tríplice do Metá Metá: “um carmim, um fim, um dó / um agogô, um pus, um som”. Esses e outros versos do disco MM3 (2016) refazem os caminhos do trio, de “um canto perdido na voz incomum”, canto que é “marca da felina sonsa que tem asa”. Felina que é orixá sirênico urbano, é “escultura quebrada, falo partido, presságio infeliz”. É ainda Paul Zumthor quem observa que é preciso se concentrar “nos efeitos da voz humana, independentemente dos condicionamentos culturais particulares” (Zumthor, 2007, p. 12). E reclama do silêncio profundo que nos cerca quando lidamos com as canções hoje trabalhadas “apenas” como escrita. Ao mesmo tempo, Zumthor anota que os meios eletrônicos “abolem a presença de quem traz a voz” e que “os media tendem a apagar as referências espaciais da voz viva”. Por sua vez, como temos defendido, o sujeito cancional chama para si a responsabilidade de sustentar o mito, o arcaico vocal (entroncamento do rural e do urbano) em tempos de reprodução técnica da voz. Prismático, o sujeito cancional é permanência (da certeza de que uma voz de alguém de carne e osso emitiu algo) e fluidez (instante de compartilhamento de experiências). Assim, “a experiência, a percepção, não se torna possível a partir da imediatez do real, mas sim a partir da relação de contiguidade com esse lugar ou espaço intermediário onde o real se torna sensível, perceptível”, diz Coccia (2010, p. 20). Por nossa vez, acreditamos que a intertextualidade entre as letras das canções de MM3 – versos, expressões e temas des-dobrados – afirma a permanência de um canto trágico e lírico da vida nua, crua, épica singular que sobrevive à finalidade comercial da canção. “Meu amor, eu acho que se a gente for pensar / de repente nem dá tempo de se imaginar”, canta a tríade Metá Metá. Nesse sentido, pensar MM3 como uma instalação não será um erro grave. A autonomia da obra é estabelecida nas dobras dos elementos que retornam. Esses retornos não deixam o pensamento travar e fazem o ouvinte pensar a obra a partir da obra. Além de permitirem a experiência de um mundo criado, inventado, cantado. Ou seja, esse re-tornar (sinônimo de sonar, tonar e ecoar) restaura o desconhecimento de mundo do ouvinte. E presentifica um mundo novo, cujo saber vem do embate com a obra-tribo de “uma beleza disforme, sem rosto, sem nome, sem moderação”. Se “de repente nem dá tempo de imaginar”, o disco MM3 é “circular dentro de si”: esculturaliza o corpo vão, faz o certo virar errado e o vazio virar semente, pó. Assim, engolir o mundo e regurgitar é gesto próprio dessa “boca funil” in-carnada por Juçara Marçal que “faz o torto voltar a ser regra”. Boca cujo som danado – da calunga ao calundu – é a amálgama da voz humana demasiado humana, da guitarra e do sax da trindade artística. Lembremos que “a cor do pecado é rouge carmim”, no canto de Alceu Valença; “eu não consigo evitar / desejo esse seu corpo / cheiro de carmim”, canta Benito di Paula; “me suja de carmim / me põe na boca o mel”, pede Wando; “uma ponta de cigarro / manchada de carmim / foi a única lembrança / que ficou pra mim”, canta Ary Barroso; “guardo o lencinho branco / que esqueceste ao me abandonar / manchado assim pelo carmim que / tirei dos meus lábios quando te beijei”, canta Dalva de Oliveira; “Eu quero, quero, quero, é claro que sim / iluminar o escuro com meu bustiê carmim / mesmo quando choro e adivinho que é esse o meu fim”, afirma Maria Bethânia; “mamã mamãe, eu quero sim / quero ser mandarim / cheirando gasolina / na fina flor do meu jardim / assim como carmim / da boca das meninas / que a vida arrasa e contamina / o gás que embala o balancê” canta Moraes Moreira. E os exemplos continuam e se condensam no tom da “esperança morta”, da “ferida aberta”, do “carnaval onírico” do Metá Metá. Vermelho, vermelhaço, vermelhusco, vermelhante, vermelhão. Se, como diz Riobaldo, “o sertão está em toda parte, o sertão está dentro da gente. Levo o sertão dentro de mim e o mundo no qual vivo é também o sertão”, a cor vermelha [o encarnado] tinge a escultura sonora erguida no tripé Metá Metá. E evoca os sertões narradores, da “barra do dia foi avermelhando o céu” (O quinze, de Rachel de Queiroz), à “catinga [que] estendia-se, de um vermelho indeciso salpicado de manchas brancas que eram ossadas” (Vidas secas, de Graciliano Ramos).

4. Na pele moura ela ferve em foco invertido. A canção “A imagem do amor”, de Kiko Dinucci e Rodrigo Campos, oferece matéria para a reflexão sobre a questão trans: trans-sexual, trans-e, trans-formar, trans-piração. O canto do nascimento de “uma menina tardia dos guias de luz” é ambíguo e metafórico (como toda linguagem artística deveria ser) e tematiza um corpo trans-formado, uma “escultura quebrada” a ferir os “olhos desleais”. “O sonoro arrebata a forma” (Nancy, 2014, p. 12). Sendo a dissonância a única possibilidade de acesso à verdade, o som do Metá Metá se rebela contra as aparências da arte que se declara insuficiente para si mesma. Daí que, se a obra é autônoma, ela não é independente. No caso, os arquétipos e seus ensinamentos ancestrais – a afirmação da desterritorialidade (antropofágica?) da potência afro. O mito da democracia racial aparece em contraponto à histórica distorção doméstica da ancestralidade. A razão canônica versus a filosofia orecular. A antropofagia é anterior ao conceito. A coerência de um mundo antes de nós é ilusória. Daí o pedido-motriz: “me diz de onde é que vem a sede de cantar, a seiva da canção no sangue tom carmim?”, da canção “Angolana”, assinada pelo trio. Todo o trabalho da voz de Juçara Marçal, da voz e da guitarra de Kiko Dinucci, do sax de Thiago França, do baixo de Marcelo Cabral e da bateria de Sergio Machado é uma investigação disso. A Angolana do título é musa evocada e cujo canto tríplice é traduzido no som dado ao ouvinte. A Angolana é anterior à antropofagia. “Só podemos atender ao mundo orecular”, lembremos. Orecular é fazer do ouvido oráculo, é estar e ser à escuta. E aqui a Angolana é o oráculo a ser consultado, é “Angoulême” – bússola e desorientação, que “grita um verso a quem passar”. O enigma é mantido, pois os caracteres enigmáticos da Angolana provem do gesto de produzi-la na efemeridade do canto, da canção. Contra o messianismo sem messias do capitalismo, a Angolana está preservada em sua indeterminação matriarcal, no esforço artificialmente frustrado de cantar sua forma. Sua questão é apontar que o cuidado de si corre o risco de ser tão negativamente disciplinar e controlador quanto o sistema da ética somática e do biopoder. Sobre o matriarcado, Roberta Barros (2016) observa que “no Manifesto [antropófago] a antropofagia é arquetípica, relacionada a uma imagem do homem primitivo que vive em meio ao sol, cobra grande, jaboti, Jacy e Guaracy, desfrutando do mito de pleno ócio, festa e livre comunhão amorosa, longe da dimensão abjetual daquela mulher-mãe que lambuza o peito de sangue” (p. 56). Isso reforça a positividade da ideia de miscigenação e escamoteia o mito da tolerância racial e sexual. Angolana fala como as sereias nas mitologias: uma fala em ruidoso silêncio e que se aproxima do ouvinte através da circularidade do ordinário: “Pra o onde quer que eu vá / vou ao redor de mim”, diz o sujeito. “O silêncio deve entender-se aqui não como uma privação mas como uma disposição de ressonância: um pouco como, numa condição de silêncio perfeito, se ouve ressoar o próprio corpo, a sua respiração, o seu coração e toda a sua caverna ressonante” (Nancy, 2014, p. 41). Tomemos como exemplo desses retornos (dramáticos) internos que miram “a sina de correr ao redor de mim (de si)” a cor vermelha, o encarnado, a carnação da canção que a Angolana é, o carmim espraiado em todo o disco. “Tem um carmim, um fim, um dó”; “pele tatuada, carne mutilada, o seu dente sangra”, “o bisturi, a toalha”; “no sangue tom carmim”; “o vermelho do vinho”; “o be ri omon”. “(Quem dera) respirar / no peito um novo ar / me perder por um caminho enfim”, canta o sujeito de “Angolana”. Localizamo-nos na platibanda de onde o sentinela Mano Légua mira e nos ensina a caminhar na trinca e pede: vamos lá, meu bem, experimente a terceira margem. Desse modo, os versos “a imagem do amor / não é pra qualquer / fere os olhos desleais / impele os imortais” são a síntese dos tempos de hoje, quando experimentar ainda é a única trans-perspectiva possível para quem deseja o axé das folhas (“l’ase ewe o”) e “se embrenhar no oco do vulcão / e acender o fogo do estopim: explodir, cantarolar”.

5. Yia omo ejá. No poema “Iemanjá” (1943), Maria Martins escreve que

Iemanjá poderia ter vivido no Mediterrâneo, no Oceano Índico, em qualquer lugar de que gostasse, mas escolheu o Brasil. Ela passa os seus dias oscilando da Bahia ao Amazonas. (…) O vagaroso subir e descer das ondas é a sutil cadência do corpo sensual de Iemanjá, a sua magia poderosa. O despertar prateado das águas sob os raios da lua é o cabelo brilhante de Iemanjá, a alga de todos os oceanos. Para possuí-la, para chegar até ela mais rápido, para tocar os seus seios, pesados com o amor proibido, quantos pescadores, quantos marinheiros atiraram-se ao mar, excitados por um desejo inimaginável!

No poema “Mãe dos filhos peixes” (1996), Waly Salomão escreve que Iemanjá é “mãe sexualizada / mãe gozosa / mãe incestuosa // que reina no mar revolto e na maré mansa / e se adona do remanso e do abissal”. No discurso “Do ler e escrever” do livro Assim falou Zaratustra, Nietzsche (2011, p. 41) escreve:

(…) parece-me que borboletas e bolhas de sabão, e o que há de sua espécie entre os homens, são quem mais entende de felicidade. / Ver esvoejar essas alminhas ligeiras, tolas, encantadoras e volúveis leva Zaratustra às lágrimas e ao canto. / Eu acreditaria somente num deus que soubesse dançar. / (…) / Aprendi a andar: desde então corro. Aprendi a voar: desde então, não quero ser empurrado para sair do lugar. / Agora sou leve, agora voo, agora me vejo abaixo de mim, agora dança um deus através de mim.

Despreocupado com as noções canônicas de identidade, ou tentando expandi-las num gesto arquevocálico, assim como a Iracema alencariana, o Zarastustra nietzschiano refere-se a si em terceira pessoa. Muito citado, o trecho oferece importantes recursos para se pensar sobre canção e sobre as corporalidades sonoras brasileiras que tem no canto mítico de Iemanjá bonita síntese. Poderíamos divagar sobre a simbologia da mutante-frágil-volátil borboleta, mas queremos nos ater à bolha de sabão – metáfora reutilizada por outros filósofos no que se refere ao viver como uma constante configuração de esferas sutis e complexas. Obviamente, estamos falando da Teoria das Esferas de Peter Sloterdijk. Entre outras questões, Sloterdijk (2016) escreve sobre a polivalência do mundo, a experiência primária do espaço (cita o útero materno como ponto de partida), as relações de dependência e apresenta uma teoria da intimidade. Para ele, viver é criar esferas imunológicas. É por viver – sentir-se – ameaçado pelo mundo ao redor, que o indivíduo desenvolve a busca do luxo individual, objetivando a abundância perdida desde a saída do útero. E é aqui que ajustamos nosso foco: na necessidade humana de canção, do canto da fama (re-conhecimento). A arte apresenta um outro mundo possível, aplaca a saudade das esferas explodidas, muito embora exploda outras: as canções induzem o indivíduo a sair para o mundo. O indivíduo moderno-contemporâneo fora do quarto cheio d’água (materno) está solto. Ele é bolha de sabão. E são muitos os motivos que levam à arrebentação das esferas: a morte de Deus, o fim da verdade e o fato do homem não estar pronto para não ser o centro do universo, por exemplo. Resguardadas dos conceitos de bem e de mal, as culturas africanas embaçam a visão cristã do indivíduo essencialmente bom ou essencialmente mal. “Na verdade, os maus impulsos são tão apropriados ao fim, conservadores da espécie e indispensáveis quanto os bons: – apenas é diferente a sua função”. “A decisão cristã de achar o mundo feio e ruim tornou o mundo feio e ruim”, escreve ainda Nietzsche em A gaia ciência (2001, p. 57 e p. 151). Além do bem e do mal, há os elementos da natureza, cujos guardiões na mitologia Iorubá são os orixás. Essa mitologia não é inventora de fábulas, pois não conhece a diferença entre história e ficção. É com o sincretismo entre África e Europa, por imposição e tirania cultural desta, no Brasil e em outras colônias europeias, que teremos representações em imagens dos orixás, até então cultuados como forças da natureza. Nesse sentido, Metal Metal (2012), disco do Metá Metá é uma tempestade solar que explode qualquer tentativa de imunização. Porque tropical e universal (tradição e cosmopolitismo), através das misturas engendradas no turbilhão das camadas de histórias, o trio formado por Juçara Marçal, Kiko Dinucci e Thiago França faz a matriz africana ganhar novos vetores de apreciação: grávidos de riscos, sem concessões. Um singular exemplo do modo como a tribo bebe o sangue (a poética) de uma língua do Brasil matriarcal está disposta em “Rainha das cabeças”, canção de Douglas Germano e Kiko Dinucci. O vigor vocal contestador punk, os rituais de terreiro e os miasmas urbanos compõem uma vibração para além de quaisquer pré-teses: tudo soa íntimo, mas estranho, porque imbricado de forma inovadora. A letra da canção em si já detona o incômodo estético: repleta de palavras e/ou expressões íntimas culturalmente e estranhas ao nosso cotidiano urbano. A letra presentifica signos em rotação no imaginário do ouvinte: “Awoió ori dori re / Iyemanjá cuidou / Ade, ala, beijou / E encheu o ori de mar”. A primeira estrofe cantada com a nervura já destacada aqui indicia que não estamos – nós, ouvintes comuns, não iniciados – em lugar cômodo. A força sonora e rítmica, aliada ao timbre – essa comunicação do incomunicável –, o estilo e a assinatura de Juçara Marçal, por vezes não deixa o ouvinte entender, de pronto, a mensagem da canção. Mais partilha e menos transmissão. Pescamos retalhos. Para entrar nela mesmo, precisamos ouvir com o texto sob os olhos. Mas isso não impede de sermos arrebatados pela potência ali dançante, já que “o ritmo é uma coação; ele gera um invencível desejo de aderir, de ceder; não somente os pés, a própria alma segue o compasso” (Nietzsche, 2001, p. 112): ritmo “que não é outra coisa senão o tempo do tempo, a desestabilização do próprio tempo no batimento de um presente que o apresenta disjuntando-o dele mesmo, desembaraçando-o da sua simples estância para a fazer escansão e cadência” (Nancy, 2014, p. 34). Há que se atentar sobre isso, aliás: várias canções interpretadas por Juçara Marçal apresentam textos muito densos e bonitos, mas também, por vezes, difíceis de captar só pelo ouvido, principalmente quando articulados com uma melodia muito recortada ou acelerada. Seria este objeto, plenamente, uma canção? Ou seria uma forma híbrida de poesia-para-ser-cantada (diferente da canção-para-ser-ouvida)?. Seja como for, “Rainha das cabeças” promove a dança da intuição do ouvinte. Através do Ori (Orixá pessoal) em contato com o som da canção, o ouvinte entra em estado-de-poesia, de lugar sonoro, na medida em que o som aí ressoa: não importa muito decodificar as palavras, mas entrar no movimento de pertencimento que elas, ditas daquele modo e com aquele ritmo, promovem – com o objetivo de reorganizar o sistema pessoal do ouvinte: a bolha de sabão e seu alfinete altamente explosivo. Iemanjá-Awoió cuida do cantor-ouvinte, enche a cabeça (ori) dele de mar (no horizonte do infinito) e faz dele ouvinte-cantor: dança nele. E o tabu vira totem: “tupi or not tupi”, é a pergunta. “Iya olori / Mojuba Olodumaré // Ela é filha de Olokun / É iya kekerê”, diz o refrão. Se, como Nietzsche anotou, “o grau do senso histórico de uma época pode ser avaliado pela maneira como ela faz traduções e procura absorver épocas e livros do passado” (2001, p. 110), o Metá Metá orienta-nos na direção de que, como canta Gilberto Gil:

quando, hoje, alguns preferem condenar / o sincretismo e a miscigenação / parece que o fazem por ignorar / os modos caprichosos da paixão // paixão, que habita o coração da natureza-mãe / e que desloca a história em suas mutações / que explica o fato da Branca de Neve amar / não a um, mas a todos os sete anões.

Voltamos à discussão de Nancy sobre o ser e estar à escuta. Ou melhor, como escrever sobre o canto de uma artista que é muito mais escuta e menos escrita? Eis a encruzilhada posta na voz de Juçara Marçal. 

O desafio de um trabalho sobre os sentidos e sobre as qualidades sensíveis é necessariamente o de um empirismo pelo qual se tenta uma conversão da experiência em condição a priori de possibilidade… da própria experiência, correndo embora o risco de um relativismo cultural e individual, se todos os ‘sentidos’ e todas as ‘artes’ não têm sempre e por todo o lado as mesmas distribuições nem as mesmas qualidades,

responderia Nancy (2014, p. 25-26).

6. Cobre o amor na mortalha. O horror fisiológico de um filho abortado tem muito em comum com o risco de viver. Seja a vida urbana, ou a do interior de nossa sociedade feia e desencantada. Partimos dessa afirmação radical para pensar o plano interditado, a esperança morta, a violência de estar vivo e ser obrigados a se defender sorrindo de nossas frustradas revoluções individuais e coletivas presentes [em imanência] no disco Encarnado (2014), de Juçara Marçal.

Fig. 1: Gravura de Kiko Dinucci, capa disco Encarnado (2014)
Fig. 1: Gravura de Kiko Dinucci, capa do disco Encarnado (2014)

Dos primeiros versos – “Não diga que estamos morrendo / hoje não / pois tenho essa chaga comendo a razão” – até os derradeiros – “E o que era belo / agora espanta / e nome dele hoje é João Carranca”, a performance vocal de Juçara Marçal confirma que Encarnado é um disco fundador, que rompe com o conforto dominical, que diz ao ouvinte que este não tem mais o direito de ser ingênuo num mundo violado e violento. A isso, uma cama sonora composta de rock sujo, ruídos, zumbidos de um mundo interno dilacerado conjuga conteúdo de verdade. Não é à toa que “Ciranda do aborto”, de Kiko Dinucci, aparece plugada sonoramente à anterior “Odoya”, de Juçara Marçal. A tópica da maternidade conecta as duas canções. Se nesta o sujeito da canção pede a bença à “mãe cujos filhos são peixes”, naquela temos a mãe cobrindo o amor na mortalha. O sujeito cancional passa de filho à mãe. “A ferida se abriu / Nunca mais estancou / Pra você se espalhar / Laceado”, canta o sujeito cancional criado por Juçara – cuja voz dá visibilidade à pulsão de morte – ninando o agouro. A plasticidade destrutiva está em jogo aqui. Após “Ciranda do aborto” temos “Canção pra ninar Oxum”, de Douglas Germano. Afinal, depois da tragédia narrada, só resta ao sujeito cancional pedir: “Chora não, Oxum / De que chorar? / Sonha viu, Oxum / Sem lágrima”. Este percurso – de filha à mãe, de mãe à cantora da mãe – é singularmente percebido nas gestualidades vocais – sangue, água e sal – encarnadas e deslocadas por Juçara. Cada sujeito-personagem tem alma própria, almas vindas de uma mesma voz urdida na experiência de quem tem uma carreira de mais de vinte anos, desde o grupo Vésper até o Metá Metá, passando pelo grupo A BARCA. Em todos, desenvolvendo trabalhos de pesquisa e experimentação no campo vocal, investigando formas de interditar a violência existencial. O quinteto Vésper Vocal – Ilka Cintra, Nenê Cintra, Mazé Cintra, Juçara Marçal e Mônica Thiele – desde 1992 se dedica à interpretação da música brasileira – Chiquinha Gonzaga, Adoniran Barbosa, Itamar Assumpção, Luiz Tatit, Rita Lee – no formato a capela. Os arranjos feitos somente para vozes é espaço profícuo de experimentação da voz humana. Já o grupo A BARCA desde 1998 pesquisa e documenta a cultura sonora e vocal do Brasil, tendo Mário de Andrade, o autor de “O turista aprendiz” como guia de viagem. Aliás, com o projeto intitulado Turista Aprendiz o grupo registrou cerca de 40 comunidades e/ou artistas da tradição popular, em quilombos, aldeias indígenas, periferias de grandes capitais, pequenas cidades ribeirinhas, litorâneas e sertanejas. Professora de canto e de língua portuguesa, formada em Jornalismo e em Letras, com dissertação de mestrado defendida em 2000 sobre o autor de Baú de ossos – com o título Morte e Memória. Elementos para uma análise do ponto de vista narrativo em Pedro Nava – vemos, portanto, que a voz de Juçara se alimenta de raízes profundas e áreas. Sem esquecer sua participação como integrante na percussão do Ilu Oba de Min, desde 2004. Por tudo isso, a performance vocal de Juçara restitui conscientemente certa fealdade arcaica. Recriam-se as máscaras mítico-canibais que foram despotencializadas no despertar do sujeito romântico e na hegemonia da escrita (do logos científico e filosófico desvocalizado). O sujeito em Juçara Marçal não tem medo de cantar aquilo que Adorno (2012) chamou de “excedente grosseiro da materialidade”, ao defender que o belo vem do feio. No feio encarnado no belo, Juçara denuncia o mundo. Essa pseuda contradição é posta sem filtros na canção “Ciranda do aborto”. O belo guarda e expõe o feio. Cabe ao ouvinte desembaraçar a memória historiográfica individual e coletiva para fruir e entender a cantada e girar na ciranda. Poderíamos ouvir “Ciranda do aborto” como uma “Canção desnaturada n.º 2”. Aquilo que na canção de Chico Buarque aparece como recusa – “Tornar azeite o leite do peito que mirraste / no chão que engatinhaste, salpicar mil cacos de vidro” –, na canção de Dinucci cantada por Juçara aparece como afirmação: “Vem despedaçado / vem, meu bem querer / vem aqui pra fora / vem me conhecer”. Nas duas canções identificamos a renúncia ao conhecimento racional e um elogio ao canto do sensível. A ênfase na objetividade das emoções psicológicas do instante abortivo confere a “Ciranda do aborto” outra zona sociologicamente crítica: o compadecimento do ouvinte. Não mais a mãe tirana, e sim a mãe saudosa do filho que ainda não veio. “Ciranda do aborto” gera um sentimento não excitado. E vem daí a sua beleza inquietante: espantamo-nos diante daquilo que até então intuíamos como sendo terrível. “Eu tiro da dor um benefício: sem parar ela me chama a atenção. (…) A dor me assedia e eu devo pensar para me distrair. É o inverso de Descartes. Eu existo, logo penso. Sem a dor eu não existiria”, escreve Jean Cocteau, em A dificuldade de ser (2015, p. 100-101) A aparição do abortado que conhece a não-mãe – a cantora cuja voz não soa, como no livro O natimorto, de Lourenço Mutarelli – promove uma ciranda de sensações (todas) torturantes. “Assim / saudades sim / simples / como um brinco tupiniquim / um coco de roda / cirandas voltas de tu em mim”, como aparece no poema “Saudades”, de Amador Ribeiro Neto. No caso do sujeito cancional criado por Juçara, saudades de um não-filho: “O agouro da morte / a se revelar / a vida sem endereço / e sem lugar pra ficar”. Essa desterritorialidade da dor, do luto, do trauma é marca dos sujeitos cancionais criados por Juçara Marçal – autora vocal consciente de que não há obra de arte que não mutile o vivo; a arte crítica é o reflexo da possibilidade do existente violentado epistemologicamente; a obra de arte recorta o vivo e encontra o inumano para mostrar o humano perdido: “sua boca, seu dente / e o encarnado / que corta e desmente / meu samba armado”.

7. Colho os prantos sem deixar nenhum. Juntemos aqui uma imagem comentada ao de leve: gravura de Kiko Dinucci, Osun 28 cm x 35.5 cm. É dado a ver uma sereia mirando-se, ou usando o espelho para ver o ouvinte? Essa visão ambígua – aliás, o rabo de peixe completa o corpo humano ou a cabeça de peixe? – desdobra a metáfora poética. O ouvinte ressoa na boca/espelho da sereia. E não é igualmente da ressonância do seu instrumento que a sereia – felina sonsa que tem asa – está à escuta? Cantora e ouvinte abrem-se um ao outro no espelho – esse paradigma da medialidade, do encontrarmo-nos sendo uma pura imagem: algo que não vive, mas é perfeitamente cognoscível, sensível. Nessa gravura de Dinucci, o berço dourado é a habitação: colo e útero – a voz de Juçara Marçal. Chuva que só troveja, mas não cai.

Fig. 2: Gravura de Kiko Dinucci, Osun (S/D)
Fig. 2: Gravura de Kiko Dinucci, Osun (S/D)

8. Respondeu-me como assombração. Se ouvir é compreender, escutar é sensibilizar-se num sentido presente para além do som. “Estar à escuta é sempre estar à beira do sentido, ou num sentido de borda e de extremidade, como se o som não fosse precisamente nada de outro que não este bordo, esta franja ou esta margem”, escreve Nancy (2014, p. 19). Por isso falamos do estado de reciprocidade sonora necessário ao surgimento do sujeito cancional. É preciso que haja um reenvio da mensagem ouvida, pois é nesse retorno – como um tambor que ressoa – que o sujeito cancional se apresenta em imagem. O sujeito cancional é sentido ressoante, é sentir-se-sentir do ouvinte no mundo. Nancy (2014, p. 22-23) escreve que

um sujeito sente-se: é a propriedade e a sua definição. Quer dizer que ele se ouve, se vê, se toca, se saboreia, etc., e que se pensa ou se representa, se aproxima e se afasta de si, e sempre assim se sente sentir um ‘si’ que se escapa ou que se entrincheira, tanto quanto retine algures como um si, num mundo e noutrem.

Ouvir Juçara Marçal é estar-se à espreita desses sujeitos imaginários mais empíricos e menos teóricos. Sujeitos que nos convidam à participação, à acusma, à “escuta fabuladora”, como tem pensado o pesquisador Fred Coelho. A presença de si imposta nos sujeitos cantados por Juçara é convite ao enfretamento do risco do elemento vivencial direto. Não se trata de um ente-presente, ou de um em vista de, mas de um ente-imaginado-presente: ressoante. Em presença da voz de Juçara o ouvinte se conecta ao tempo sonoro, que é diferente do tempo presente datado. O Tempo se ergue como Orixá: ramifica, contamina, espraia: “não enxergo o final/ interrompo o tempo aqui / em você”. Escutar é entrar nesta espacialidade onde penetro e sou penetrado, posto que escuto ao mesmo tempo que o evento sonoro ocorre. Não há tempo a perder. Esse som antro-entre, essa arqui-sonoridade convoca à vida sensível. Para Coccia: “a vida sensível é a capacidade de fazer as imagens viverem fora de si e, de algum modo, liberar-se delas, de perdê-las sem receio. Na medida em que somos capazes de experiência, já vivemos sempre em outro lugar em relação a nosso corpo orgânico. (…). A experiência confere um corpo puramente mundano ao vivente. Ela é aquilo que dá concretude ao vivente, como também o que o liga ao mundo, a esse mundo, tal qual ele é aqui e agora, mas também a um mundo tal qual ele poderia ser em outro lugar e em outro tempo” (2010, p. 69-70). Por exemplo, avessa à docilidade dos corpos, Iemanjá é som corporificado, carnação de timbres que experimenta novas tecnologias da carne – do corpo não simbolizado.

9. Grita e berra como louca. No aforismo 216 de A gaia ciência, Nietzsche anota sobre o Perigo na voz: – “com uma voz muito alta na garganta, quase não temos condições de pensar coisas sutis” (Nietzsche, 2001, p. 175). Há uma vitalidade intrínseca que diferencia a palavra falada da palavra cantada. E essa vitalidade está manifesta na voz: é representada pelo sopro de ar que atravessa o corpo e se encorpa na garganta. Obviamente, os níveis de aproximação entre um ponto e outro são tênues e frágeis. Ou seja, pode haver, e muitas vezes há, conteúdo no canto, assim como pode haver expressão na leitura. É fincado na paixão que o leitor e/ou o cantor investem mais ou menos vitalidade à palavra que seus pulmões lançam no ar depois de tocar (e ser tocada por) sua garganta, úvula e impregnar-se de saliva, na boca. A voz imprime unicidade à pessoa. Há aqui uma constatação da voz e sua autoafirmação – aquilo que nos resgata do abandono profundo. Por trás da voz (ficcional) do sujeito da canção há a voz de uma pessoa: uma garganta. “Uma voz significa isto: existe uma pessoa viva, garganta, tórax, sentimentos, que pressiona no ar essa voz diferente de todas as outras vozes. Uma voz que põe em jogo a úvula, a saliva” (Calvino, 1995 apud Cavarero, 2011, p. 18). E assim, “a função despersonalizante do pronome eu (…) é anulada pela unicidade inconfundível da voz. O som vence a generalidade do pronome” (Cavarero, 2011 p. 205). Posto que “a voz pertence ao vivente, comunica a presença de um existente em carne e osso, assinala uma garganta, um corpo particular” (p. 207). “É com nosso sopro que nos dirigimos a tudo, com a voz que o frágil fole da garganta emite, com o hálito que carrega nossas enzimas, é com o pequeno vento de nossa língua que chamamos o vento verdadeiro”, escreve o narrador de Ó (Ramos, 2008, p. 20). EXERCÍCIO: Escutar o disco Anganga (2015) de Juçara Marçal e Cadu Tenório até perceber que “a escuta está à escuta de outra coisa que não do sentido no seu sentido significante” (Nancy, 2014, p. 56).

10. Como uma boca com fome. Ser e estar à escuta é abrir-se em direção à potência-ó do humano trans-escrito (coincidindo bios e ethos), tendo em vista que “a filosofia frequentemente esqueceu que todo homem vive no meio da experiência sensível e que pode sobreviver apenas graças às sensações” (Coccia, 2010, p. 9) e que “o primeiro passo para liberar a voz de seu gendarme noético, o primeiro gesto contra os cânones desvocalizantes da filosofia, passa por uma tematização privilegiada do falar” (Cavarero, 2011, p. 203). “A partilha do sensível faz ver quem pode tomar parte no comum em função daquilo que faz, do tempo e do espaço em que essa atividade se exerce”, diz Rancière (2014, p. 16). “O sensível (o ser daquilo que chamamos aqui de imagem em sentido amplo) é aquilo pelo qual vivemos indiferentemente à nossa diferença específica de animais racionais”, diz Coccia (2010, p.10). O sujeito cancional é essa imagem plasmada por trás dos olhos de quem ouve. A voz que canta passa a carregar a mitologia do ouvinte, que, por sua vez, se reconhece plasmado no modo sirênico (das Sereias) de dizer do cancionista. É graças a este que o ouvinte pode ouvir-se, perceber-se e interagir com outras imagens de si. O cancionista é o meio que fabrica a relação de continuidade entre alma e corpo, espírito e realidade, ficção e real. Portanto, o cancionista é eficaz em sua função quando engendra o sujeito cancional, a entidade imagética que nos possibilita vivenciar nas coisas e nos outros. O cancionista transforma as coisas em espírito ao mesmo tempo em que torna as coisas mundanas, isto é, mais próximas da percepção e da apropriação criativa do ouvinte. Mundana, a existência se expande. “O sensível, o contato com o sensível, faz o homem viver em um corpo ulterior, no qual não somos mais separáveis de tudo aquilo que vivemos, nem do fato de ver ou sentir” (Coccia, 2010, p. 68).

11. Queimando em silêncio. No aforismo 196, de A gaia ciência, Nietzsche escreve sobre os Limites de nossa escuta: – “Ouvimos apenas as questões para as quais somos capazes de encontrar resposta” (Nietzsche, 2001, p. 171). E é Octavio Paz quem escreve sobre o caráter de revelação da poesia. Paz, para quem “a sociedade revolucionária é inseparável da sociedade baseada na palavra poética” (2012, p. 242), observa que “a missão do poeta é restabelecer a palavra original, distorcida pelos sacerdotes e pelos filósofos” (p. 243). Se concordamos com o autor de O arco e a lira, e acreditamos que “a experiência poética, como a religiosa, é um salto-mortal: uma mudança de natureza que é também uma volta à nossa natureza original” (p. 144), somos levamos a pensar que os sujeitos cancionais criados por Juçara Marçal revelam, por serem vozes de uma religiosidade que não casou com o capital e por não precisarem de autoridade divina, esse isso que somos: seres à margem da linguagem. Duvidar das construções discursivas e afirmar uma falta que esteticamente se revelação e se preenche na presença imagética do sujeito cancional mitificado é o projeto da felina sonsa que tem asa assinada por Juçara Marçal. Aquilo que na palavra religiosa é interpretação, na palavra poética vocoperformativizada por Juçara é possibilidade. “Vida e morte num único instante de incandescência”, na bela expressão de Octavio Paz (2012, p. 163). Aquilo que Catherine Malabou (2014) chama de “plasticidade destrutiva” é o motor da vida sensível (ser das imagens) erguida na voz danada de Juçara Marçal, em seus mais diversos e variados trabalhos: seja em projetos individuais, seja em coletivos: “um personagem irreconhecível, cujo presente não provém de nenhum passado, cujo futuro não tem porvir, uma improvisação existencial absoluta” (Malabou, 2014, p. 11). Esse desengate com o antes só é possível porque Juçara Marçal é uma pesquisadora de sonoridades. Para atentar contra o passado é preciso conhecê-lo, re-visitá-lo. “A destruição tem seus cinzéis de escultor”, afirma Malabou (p. 13). 

12. Apenas uma navalha. No atual momento de descentralização das produções culturais, paralelo às reconstruções de fronteiras, os complexos mecanismos de legitimação do artístico não passam mais pelos caducos sistemas. E os sistemas se ressentem disso. Dar conta da criação em torno da canção brasileira é tarefa sisífica. É bem mais fácil negar tudo e dizer que a música chegou ao fim. Assim faz a TV, por exemplo, com suas trilhas sonoras repletas de “roupas novas” para “canções velhas”, canções já devidamente testadas e aprovadas pelo consumidor. O rádio segue o mesmo ritmo – é somente requentar e usar. A questão é que não há mais UMA ideologia a ser musicada. Se é que já existiu. As ideias de horizontalidade e polifonia (finalmente) caracterizam nossa nacionalidade. E a canção popular mediatizada continua a ser a linha de frente do debate cultural. Porém, encontrando-se com parceiras de outras linguagens, agregadas a ela pelo menos desde a Tropicália, passando pelo Manguebeat, pelo Funk carioca e Rap paulista, além do Tecnobrega paraense (para ficar no exemplo de alguns dos grandes movimentos), a música não é mais (apenas) grito de alerta: “o grito nascendo, a nascença do grito – apelo ou queixa, canto, fricção de si, e até ao último murmúrio” (Nancy, 2014, p. 48). A música é coletivizada, é colaborativa. Basta ir a qualquer atividade “de rua” para ver e ouvir: a música está lá – quente, ritmando, forjando-se. “Ouça como canta louve como conta prove como dança”, sugeriu Haroldo de Campos em suas Galáxias. A música aceitou o desafio. E a canção também. Querer uma música (ou uma canção) que represente o nacional no atual estado das subjetividades é uma atitude ingênua e/ou fascista. “O pressuposto substancialista é o companheiro de estrada da metamorfose ocidental. A forma se transforma, a substância permanece” (Malabou, 2014, p. 15). Então: como distinguir a margem do centro hoje? Margem é quem vende pouco? É quem não aparece na TV? Centro é quem vende muito? Quem é privilegiado pelo mercado e pela crítica? Quem lota estádios? Portanto, mantemos a perspectiva do mercado para pensar a arte e os afetos? É por aí que passa a construção do espaço social hoje. Parece que a música entendeu muito bem que uma reconciliação das populações como uma “identidade nacional” é inviável. “Brasil, braseiro de rosas”, escreveu Sousândrade. Passamos de povo à multidão. E a multidão é a aglomeração (barulhenta) de individualidades que resistem ao mercado. A voz de Juçara Marçal é parte significativa daquilo que Flora Sussekind (2013) chamou de “coros dissonantes”:

Antes mesmo da eclosão das jornadas de junho, e das manifestações ainda em curso no país, um conjunto significativo de textos parece ter posto em primeiro plano uma série de experiências corais, marcadas por operações de escuta, e pela constituição de uma espécie de câmara de ecos na qual ressoa o rumor (à primeira vista inclassificável, simultâneo) de uma multiplicidade de vozes, elementos não verbais, e de uma sobreposição de registros e de modos expressivos diversos. Coralidades nas quais se observa, igualmente, um tensionamento propositado de gêneros, repertório e categorias basilares à inclusão textual em terreno reconhecidamente literário [e sonoro], fazendo dessas encruzilhadas meio desfocadas de falas e ruídos uma forma de interrogação simultânea tanto da hora histórica, quanto do campo mesmo da literatura. E que não à toa conectam este campo a outras áreas da produção cultural.

Nega-se a ideia de massa e do apagamento das diferentes em benefício de uma insustentável ideia de univocidade. A rua é espaço do cartaz pessoal e intransferível e do choque multicolorido das diferenças. Ao preservar as especificidades micro-coletivas internas à multidão, a atual música brasileira dá vigor à diversidade macro-coletiva do povo novo. Bem como à nossa imagem de país, de sociedade e de afetos. Grande parte dos cancionistas contemporâneos é ouvinte-leitora dos mestres da questão de nacionalidade. Cabe lembrar que o próprio Mário de Andrade preferia trabalhar o termo “entidade”, no lugar de “identidade”, para pensar o país das vozes polimorfas inclassificáveis. Ouça quem tiver ouvidos para ouvir. Estão lá, na música atual: as culturas marginais (folclóricas?) e a pesquisa instrumental. Coralidades presentes na fratria – de manos, manas, minas, monas – do rap nacional. Reconheço semelhante gesto em alguns rappers brasileiros, a saber, entre outros: Sabotage, Mano Brown, Criolo, Emicida, Rico Dalasam,… Karol Conká. Mas está tudo tão devidamente e esteticamente (antropofagicamente?) trabalhado e disseminado que dá mesmo muito trabalho perceber, exige esforço desajuizado. E a crítica que se pretende ouvinte limita-se ao hegemônico. Dos jogos sonoros aos elementos da sociedade do espetáculo, passando por referências religiosas e pelas formas coreográficas da vida comum, nos exemplos a seguir, podemos identificar os alicerces contraditórios, e, por isso, brasileiros, da cultura – aforismática, compilada, revisitada, coral – trabalhada por Criolo no disco Convoque seu Buda: “Nin-Jitsu, Oxalá, Capoeira, Jiu-Jitsu / Shiva, Ganesh, Zé Pilintra e Equilíbrio” (“Convoque seu Buda”); “Rap é forte, pode crer, Oui monsieur / Perrenoud, Piaget, Sabotá, enchanted” (“Esquiva da esgrima”) “Temos de galão Dom Perignon / Veuve Clicquot pra lavar suas mãos / E pra seu cachorro de estimação / Garantimos um potinho com pouco de Chandon” (“Cartão de visita”); “Alô, Foucault, cê quer saber o que é loucura? / É ver Hobsbawm na mão dos boy, Maquiavel nessa leitura” (“Duas de cinco”); “Fetiche de playboy é colar com Barrabás” (“Fio de prumo”). “Dobra a força dos braços que eu vou só”, canta Juçara Marçal, fazendo a síntese.

13. A ferida secou. Como ser e estar no mundo da gentrificação do ouvido, sendo um intelectual orecular? E fazer da obra um arquivativista de mundivivências? Reterritorializando o tempo? Manifestando-se contra o fascismo da linguagem sonora e diluindo fronteiras? Produzindo presença e reinventando as noções de autoria? Rompendo com a tradição tirânica do mercado? Inventando uma sonoridade exigente? “O mais simples é se voltar para a lógica dos povos primitivos, das crianças e dos loucos, essa lógica que supera as oposições, a lógica da semelhença, da magia simpatética”, escreve Öyvind Fahlström (2016, p. 19-20), em seu Manifesto para a poesia concreta, de 1953. A mitologia vocalizada na voz de Juçara Marçal é um ato político: “mira no meio da cara / dá com pé, com pau, com vara / bate até virar a cara da nação”. Nessa revocalização do mito, cria-se um mundo sonoro constituidor e contestador da realidade: “e devolve o hematoma”. Se nega a interpretação científica e o consolo dominical é porque foca a compreensão auricular e o risco: “desvio teu riso e me antecipo”. Assim como o quadro (a pintura) não esquadra mais o mundo, a canção (o cantar) não canta mais o mundo. A canção quer ser o mundo, não representante, nem representado. Urge liberar a voz das fáceis frequências do conhecimento. “Inspiração poética como desvelamento do Ser, então, é um potencial existencialmente agressivo, ao qual expomos a nós mesmos e as nossas atenções, porque apreciamos a intensidade que pode produzir – com a atenção para o perigo, e com o entendimento de ser essa a precondição para sua intensidade” (Gumbrecht, 2016, p. 102). Por isso é preciso insistir na unidade (de contrários) forma e conteúdo. A forma (a plasticidade) é o antibárbaro da arte, sua transfiguração, livrando-se da utilidade – “sai de pau no bate boca / rasga a roupa / grita e berra como louca”. A obra evoca a liberdade: “quero morrer num dia breve / quero morrer num dia azul / quero morrer na América do Sul”. Malabou observa que “a única saída possível para a impossibilidade de fugir parece ser a constituição de uma forma de fuga. (…) A plasticidade destrutiva torna possível a aparição ou a formação da alteridade lá o outro fala absolutamente. A plasticidade é a forma da alteridade lá onde não há nenhuma transcendência, de fuga ou de evasão” (2014, p. 17). Por sua vez, Nancy escreve que “o começo do sentido, a sua possibilidade e a sua enviadela, o seu endereçamento, não tem talvez lugar em nenhum outro lugar senão num ataque sonoro” (2014, p. 48). A forma de cantar, as escolhas da cancionista, os malabarismos vocálicos, o controle da melodia e das alturas timbrísticas, a concentração de tensividade, a reiteração dos temas, a narratividade quebrada, a gesticulação das maneiras de dizer sempre declinam para evitar o idêntico, o reconhecível vulgar, a identidade: “tenho essa chaga comendo a razão”. A arte é o mundo uma vez mais tanto semelhante, quanto diferente. E o canto de Juçara exige saber. Quem não sabe o que é dissonância não escuta sua música, por exemplo. Sua arte dispensa a ingenuidade: “de quase isso / de quase nada / é séria é bruta / dissimulada / de nada serve / sem ombro amigo / com febre e confusa / e um precipício”. A canção não quer ser canção, quer a superação dos gêneros, o limite da experiência e a trans-identificação de um mundo livre de ditaduras e injustiças: “Sangue e suor pelo vão / sentir mais a dor, vingar / ver respingar o pavor / quem bateu, levar”. Entre a subjetividade universal e a objetividade particular, toda obra é uma crítica, uma compreensão. E é isso que Juçara Marçal nos oferece: seu entendimento de mundo – “eu que falo / aquela é minha voz / que fala sobre nós / a voz ali é”.

Bônus. Essa chaga comendo a razão. – O que é canção para você? De onde vem a canção? Para que cantar? Juçara Marçal: Juro que tentei, mas não tenho respostas pras suas perguntas. Pra todas elas só me vem o verbo VIVER. É pouco e é tudo o que tenho pra dizer sobre isso aqui. – Cite 3 artistas que são referências para o seu trabalho. Por que estes? A das referências é a mais difícil de todas. São muitas. Música brasileira, música africana, música norte-americana, música latina… E por aí vai. Referência é algo que nos alimenta artisticamente e tudo que me chega de todos os lados serve de referência pra mim. Citar alguém reduziria o caminho, reduziria a própria referência, portanto, é tudo isso aí e mais um pouco.


* Leonardo Davino de Oliveira é professor adjunto de Literatura Brasileira na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É doutor em Literatura Comparada, especialista e mestre em Literatura Brasileira. É autor do blog Lendo canção (lendocancao.blogspot.com) e dos livros Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso (Ibis Libris, 2012); Palavra cantada: estudos e Poesia contemporânea: crítica e transdisciplinaridade.

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ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção e leitura. Trad. Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

dossiê
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ESTÓRIAS DAS TRINCHEIRAS: A DIMENSÃO POLÍTICA DA MÚSICA DE SIBA

Resumo: Este artigo se propõe a analisar a dimensão política da música do cantor e compositor Siba através dos discos que o músico produziu com a Fuloresta do Samba (2002; 2007), o mestre Barachinha (2003), e os discos Avante (2012) e De baile solto (2015). A nossa análise exercerá uma espécie de metacrítica ao repensarmos no próprio (inter)texto modos distintos de nos aproximarmos do objeto artístico analisado e do próprio artista, exercendo com ele um diálogo crítico.

Palavras-chave: Música brasileira; estética e política; Siba.

Abstract: This article proposes to analyze the political dimension of the music of the singer and composer Siba through the discs that the musician produced with the Fuloresta do Samba (2002; 2007), mestre Barachinha (2003), and the albuns Avante (2012) and De baile solto (2015). Our analysis will exercise a kind of metacritical when we rethink in the (inter)text itself different ways of approaching the artistic object analyzed and the artist own, exercising with him a critical dialogue.

Keywords: Brazilian music; aesthetics and politics; Siba.

I – Olinda

A risada quase invisível do Mestre Nico repercute no salão repleto de ritmos e sons e corpos: o uivo de sua voz – quase gargalhada, quase manifesto – anuncia a chegada de uma Mini Desorquestra de Baile Solto e Rimas. A música se torna paisagem na guia de sua percussão. Os demais músicos se contagiam dessa energia, desdobrando-se com ele através de seus toques. O salão[1] localizado à margem do mar de Olinda agrupa essa música que é de muito longe, de um longe-norte, de um onde os homens e mulheres dançam sob a noite, entre batuques, adereços e poesia, até o amanhecer. Por essa estética reside uma resistência, uma linguagem que incorporada pela festa marca um território, estabelece sua trincheira, pois é preciso continuamente lutar por essa voz.

Sob a condução da Desorquestra, o músico Siba. Sem origem? Sem gênero? A música. O músico. Por que não? As alcunhas de poeta, mestre, cantor, compositor, guitarrista, rabequeiro, maracatuzeiro ou artista, que se incorporam à sua persona, são reveladoras dos estados de transe e transitoriedade com os quais o artista dialoga.A música percorre um caminho de inquietação e reverência à palavra e aos sons delirantes das ruas. No entanto, é preciso estar atento às relações de poder que podem contaminar os espaços com o desejo explícito de segregar o que não cabe no gesto, nas cercas ou nas noções de normalidade. A rua é viva e sem centro. Ainda assim, torná-la marginalizada com ares de política cultural é uma das maiores violências que se pode tentar cometer contra ela.

Os mais recentes discos “solo” Avante (2012) e De baile solto (2015) são criações ainda em movimento. É preciso ouvir o passado, distender o presente, investigar conexões, poéticas. O disco não pode ser lugar de origem nem de chegada, mas de passagem. As canções e sonoridades seguem em trânsito, políticas, em marcha, bailando, soltas, macias, cantando-dançando-delirando:

Sai!
A gente brinca, a gente dança
Corta e recorta, trança e retrança
A gente é pura­ponta­de­lança
Estrondo, Marcha Macia![2]  

Com essas conexões em vista, pretendo neste (inter)texto fronteiriço entre ensaio, artigo e crônica, escrever sobre a dimensão política da música de Siba através dos discos com a Fuloresta do Samba (2002; 2007), o mestre Barachinha (2003), e os já citados Avante (2012) e De baile solto (2015); nelas, a música de rua é desterriorializada estética e politicamente e se desfaz dos lugares estanques das categorias de “cultura popular”, “folclore” ou “manifestação popular”. Para produzir esta narrativa, outros textos de minha autoria sobre o artista, trechos de entrevistas com o músico, passagens e leituras de documentários, fotografias e canções serão incorporadas na reescrita sobre a obra, com o intuito de provocar uma fricção entre a trajetória do artista e a do crítico que o acompanha, como processo contínuo, de diálogo.

II – Poeta sambador

Foto de José de Holanda na I Festa da Alvorada com Siba, Maciel Salú e Mestre Barachinha, em Nazaré da Mata – PE, 2015.
Foto de José de Holanda na I Festa da Alvorada com Siba, Maciel Salú e Mestre Barachinha, em Nazaré da Mata – PE, 2015.

Primeiro corte

O maracatu é meu rock and roll. Biu Roque canta que se ouve a uma légua. Cosmo Antônio cortou cana por mais de cinquenta anos. Muitos caboclos morreram na frente da capela. Outros tempos. Somente voz, um eco que mantém a melodia, é Cosmo cantando histórias. Em Nazaré só tem músico e policial. É que aqui tem duas bandas de música e um quartel. Pela Fuloresta eu deixava até o meu trabalho. É um negócio de alegria mesmo. Mané Roque, a bicicleta, sua voz no canto, a paisagem, o cinema, a fotografia. Paris-Recife. É na rua, é no palco. Onde nasci vou morrer.[3]

Na entrecrítica[4] sobre o artista, escrita pelo pesquisador Bernardo Oliveira, do Rio de Janeiro, é possível vislumbrarmos uma espécie de síntese do modo como o músico Siba lida com a música da Zona da Mata de Pernambuco:

[…] um olhar descolonizado sobre o calor da rua, das manifestações populares do Nordeste, sobretudo o Maracatu e a Sambada que habitam a Zona da Mata de Pernambuco. Abolir as categorias generalizantes e os processos de petrificação operados pelos centros de produção intelectual, substituindo-os por uma imagem vibrante e afirmativa calcada sobre procedimentos de captação, síntese e invenção. Descolonizar também implica em atravessar fronteiras, oscilar entre diversos pontos de vista, desestabilizar visões categóricas do global e do local, promover interseções entre aspectos atuais e virtuais (Oliveira, p. 58-61, 2015).

A partir dessa síntese, percebemos como a imagem estática de uma representação cultural não se vincula ao gesto artístico de Siba, mais conectado ao deslocamento como estética, às “desestabilizações do global e local”, como aponta o pesquisador Oliveira.  

Depois de doze anos no grupo Mestre Ambrósio e após sete anos vivendo em São Paulo, o músico retorna a Pernambuco em 2002 para desenvolver a “Fuloresta do Samba” com artistas de Nazaré da Mata, cidade de aproximadamente 3 mil habitantes, na Mata Norte de Pernambuco. Os músicos Biu Roque e Mané Roque compõem o coro da Fuloresta no disco de 2002. Em 2007, o álbum Toda vez que eu dou um passo o mundo sai do lugar vinha à tona com a presença de Cosmo Antônio entre as vozes. Entre esses dois álbuns, Siba ainda lançaria No baque solto somente, com o mestre Barachinha, em 2003, com composições da dupla. Os três álbuns foram produzidos por Beto Villares e Siba. Ainda se dividiram entre as formações do grupo os músicos Biu Neguinho, Dyogenes Santos, Galego do Trombone, Manoel Martins, Maurício Muniz, Roberto Manoel, João Minuto e André Tubista, entre os metais e elementos percussivos.

“[…] eu digo sem medo/ Sou poeta sambador”, canta Siba em sua voz como “grito”[5], pois ao poeta sambador a palavra se desdobra em dança, música e resistência. A canção mimetiza uma paisagem, é repleta de silêncios que explodem no final de cada estrofe. O coro, o apito como condução impõe sua palavra sonora, em diálogo com os versos, marcam o território desse poeta que pode afirmar sem medo: “sou”. Com a Fuloresta, o músico construiu uma trajetória artística que se diferencia do que se costuma chamar de “influência”. Suas composições parecem ter sido escritas por outras vozes, outras paisagens, que não as personificadas em sua figura, mesmo que assinando como Siba, soam como se já existissem; era preciso “apenas” dar-lhes batismos. As narrativas, métricas, ritmos, temáticas e sonoridades se impõem como canções coletivas; a cana-de-açúcar deu verso, a rua, o cheiro do lugar, o vento, o traje, o azougue também deram verso.

O brincante deu canto, o estilhaço da noite, o adereço, os joelhos no chão, o corpo que se move, as cadeiras de balanço na calçada, os sons que se movem, os velhos e crianças, o alto falante, a multidão, o desafio, os feixes de luz dos postes que mal iluminam a rua e casas, o tempo que passa, a barra do dia, pitú, all star, chinelo, chão, mãos dadas, a camisa estampada, o berro que não ouço, essas fotografias[6], o sol que nasce erguendo a gente com as mãos, os homens que parecem lutar-dançar; entre eles, mulheres se descolam com suas armas e presenças-resistências-outras. 

O trabalhador de cana virou brincante. E o brincante buscou respostas às suas gritantes limitações econômicas e sociais através da arte. Parido no seio de um contexto de dificuldades extremas, o Maracatu Rural impressiona pela visceralidade que esbanja uma complexidade criativa incomum, num misto de beleza e violência intrínsecas, nascida no mesmo berço turbulento da zona canavieira. […] O Maracatu Rural que conhecemos hoje foi domesticado, apesar do cenário de violência social pouco ter se modificado na zona canavieira. É da força criativa e realizadora da arte que vem um grito violento que se quer se fazer ouvir, se fazer presente e ser reconhecido socialmente (Marcondes; Lima; Rocha, 2014).

As canções da Fuloresta do Samba se alimentam dessa “visceralidade” e “força criativa”, mas não se apresentam como mimetização da música que ocorre nas sambadas. A sonoridade reflete uma tentativa de expressar o gesto artístico do Maracatu Rural, mas no ambiente novo, esse refletido por um grupo musical criando arranjos para a gravação de um disco em conexão com qualquer outro projeto musical, que consequentemente o colocaria em palcos dos mais diversos, não só em Pernambuco, mas no mundo todo.

Desse modo, enquanto o disco Fuloresta do samba diz “sou”, No baque solto somente diz “nós somos”, e Toda vez que eu dou um passo o mundo sai do lugar diz “De manhã escuto o mundo/ Gritando pra me acordar”[7], e rediz como coro que o vento facilmente leva: “Toda vez que eu dou um passo/ O mundo sai do lugar”.

Segundo corte

A estrada que sempre volta. 12 anos com o Mestre Ambrósio. Guitarras. Rabeca. Cavalo marinho. Maracatus. Cortejos de carnaval. Eu não sou instrumentista. A poesia, a dança, a música. Agreste-Recife. A presença da pessoa no mundo. Os poetas da Mata Norte iluminam 5 horas de improviso sem a presença de palcos. Chão, onde só cabe a palavra. Eu tentei imitar o Mestre Barachinha na construção dos versos. Avante. Quem sou eu? O poeta, a pessoa. Romper barreiras. A guitarra e a ciranda têm lugares diferentes hierarquicamente. Um edifício de rima. A poesia tem um valor em si. Conquistar uma linguagem como poeta em Nazaré. Pôr-se pra fora nos versos, deslocar-se da Mata Norte em busca de uma coisa nova, o que não significaria uma coisa “moderna”. Trânsito. Linguagem. Paisagem. Rima-métrica-oração. De uma poesia do cotidiano para uma mais pessoal. Era preciso expor-se. Tocar viola de forma particular. Caminhos passam pelas guitarras da música congolesa. Explorar a linguagem (expandi-la) sem os limites da tradição. A força do maracatu não está na ancestralidade, mas na hora que acontece. Rememorações. Mestre Ambrósio-ruptura-Fuloresta. A poesia ficou dormente. Não me sinto completo em nenhum lugar. A casa está vazia[8].

Avante é um disco repleto de passagens/paisagens. As canções constroem narrativas tanto poéticas quanto musicais, visto que os arranjos e sonoridade do álbum dão à presença da guitarra um chão estável para que as letras de Siba possam percorrer. A voz do autor mantém essa estabilidade e revela em sua poesia uma capacidade maior para contar histórias. Por entre as frestas dessas histórias é possível eleger a memória e o tempo com temáticas primordiais das canções. Esteticamente, há um balanço e ironia presentes no diálogo entre arranjos e letras, na sua condução rítmica. A música “Canoa furada” revela esse momento de tensão, “A canoa furada/ Já tá perto de afundar”, mas com arranjo que revela na presença da flauta de Teco Cardoso um ar mais burlesco, que soa como irônico diante do “socorro”, do “me acuda”, do “tubarão”, “da dentada”; elementos que surgem na canção e são recortados pelo arranjo que contempla um diálogo mais próximo entre a tuba de Léo Gervázio e a voz (narrativa) de Siba.

Essa canção (a sexta de Avante) se revela como corte entre dois momentos do disco. O primeiro é preenchido por “escombros”, “pó”, “fumaça”, “brasas”, de “Preparando o salto”; por “tempestade”, “ventania”, por uma “brisa […] carinhosa”, mas que “tem castigado”, de “Brisa”; e pelas “dores”, “cansaços”, “pedaços” e outros “escombros” de “Ariana”. As músicas “A bagaceira” e “Cantando ciranda na beira do mar” se juntam a essas canções com sua verve mais festiva e contemplativa. Enquanto a primeira discorre de um tempo de agora, mais vertical, de um instante que precisa ser cantado até o fim, a segunda canção é de alguém que vê o tempo e a paisagem de modo mais amplo, horizontal. Essas canções compõem um conjunto, um retrato que abre a narrativa de Avante para outros falares e poéticas, como se se desenhasse uma passagem mais visível, mais fácil de penetrar, apesar das frestas, das “armadilhas” presentes nas letras das canções.

“Mute” é quase um suspiro, um quase silêncio. É esse segundo momento, onde o mapa já está disposto, os caminhos mais ou menos traçados, em que é possível abrir-se mais, ser menos o tempo e a memória como marcas de um traço coletivo e voltar-se mais para dentro, ser o poema e a canção como indivíduos, libertar-se desse quase silêncio. “Um verso preso” (a faixa seguinte) é essa poética que quer explodir, quer revelar-se diante de todos. A voz de Lirinha ecoada pela de Siba e pelo arranjo que rodeia a estética das violas do Nordeste brasileiro é uma camada importantíssima para a compressão do disco Avante, ou melhor, sobre a própria pujança da música de Siba, sua dimensão política, pois arrasta para dentro toda uma cultura (popular) muitas vezes marginalizada ou tratada como menor, e devolve esse outro grito, outro silêncio, como possibilidade inventiva do presente.

Um verso preso é um tiro
Que a arma não disparou
Pois o gatilho emperrou
E o tambor não deu o giro
Se escuta só o suspiro
De alguém que escapa assombrado
E o atirador, frustrado
Remói a raiva no dente
Sentindo o mesmo que sente
Alguém que foi baleado[9]

A faixa “Avante” é especialmente importante quando se manifesta após esses silêncios, com sua dicção acelerada “Desata o nó das entranhas” e berra: “avante!”. Nela, o vibrafone de Antônio Loureiro tem presença constante ao redor do canto de Siba. O solo final em diálogo com a guitarra constrói e desconstrói a rítmica da canção até a faixa seguinte, “Qasida”, como um outro corpo poético para a construção de Avante. Entre a cadência quebrada e a dança, a voz “canto abandonado”, como fala, declamação, lamento e memória, abre espaço amplo para o guitarrista e co-produtor do disco, Fernando Catatau, distender um solo pungente entre os arranjos da banda que fora os já citados nesse texto-corte, ainda conta com a bateria de Samuca Fraga. Se “Qasida” fala de um tempo passado, de suas ruínas, a faixa “Bravura e brilho” é luminosa e repleta de sonhos que se realizam na fantasia e na presença de um filho que cresce entre naves, dragões e ciclopes. Avante se comporta, portanto, como o movimento de uma catapulta, ergue o peso para trás e arremessa a sua energia para mais longe, provavelmente um outro longe-norte.

III – Nazaré da Mata[10]

Foto de José de Holanda na I Festa da Alvorada com Siba, Maciel Salú e Mestre Barachinha, em Nazaré da Mata – PE, 2015.
Foto de José de Holanda na I Festa da Alvorada com Siba, Maciel Salú e Mestre Barachinha, em Nazaré da Mata – PE, 2015.

O músico Siba conversa com policiais militares durante uma noite de ensaio do Maracatu Estrela Brilhante de Nazaré da Mata, do qual o artista faz parte, na tentativa de convencê-los a seguir com a festa até o amanhecer, como sempre fazem, tradicionalmente, as sambadas dos maracatus, já que a intenção da polícia era a de interromper os ensaios às 2h da madrugada. Apesar de conseguirem ir até o sol nascer nessa ocasião, outros grupos da região não estavam mais conseguindo seguir com a festa. Assim relatou o músico em fevereiro de 2014:

Estrela Dourada de Buenos Aires, Leão Misterioso, Cambinda Brasileira de Nazaré da Mata, e quase todos, tiveram seus ensaios interrompidos às duas da manhã. Curiosamente, noites de maracatu promovidas pelas prefeituras ou por projetos culturais com patrocínio estadual ou federal tem acontecido sem limite de tempo. Conversando com os mais velhos, cuja memória ‘alcança’ os anos 60, não consegui nenhuma lembrança de proibição similar no passado.[11]

Após a repercussão dos artistas e sociedade civil, posteriormente, em uma reunião convocada pelo Ministério Público, ficou decidido o fim da restrição de horário às sambadas na Mata Norte de Pernambuco. No entanto, as feridas que se impõem aos artistas e artes oriundas desta região sangram há muito tempo. O que este caso nos revela é o modo como essas expressões, não menos contemporâneas que outras, vivas, instigantes, criativas, continuam ainda restringidas a um segundo plano, sobretudo por uma política cultural engessante e folclorizada da música de rua.

O texto “Pernambuco, Maracatu de Baque Solto e a Cobertura da Lei”, de Siba, no qual essa denúncia foi feita, pode dialogar com outros textos críticos sobre o tratamento dado a determinados artistas e expressões culturais, como em “Quanto vale a música tradicional?”[12], do músico Rodrigo Caçapa, em que reflete: “Qual o valor simbólico que a música tradicional do Nordeste representa para grande parte da população de classe média e para a elite econômica das grandes cidades da região e do país?”, e em “Realidades do Maracatu Rural para além do marketing cultural”, do tarolzeiro de maracatu rural, artista plástico e arquiteto Lula Marcondes, sobre as condições precárias que passam os Maracatus durante o período do Carnaval Pernambucano. Assim denuncia em seu artigo: “[…] um maracatu com mais de 80 componentes, que viaja quilômetros com um elenco formado de brincantes das mais variadas idades entre crianças e idosos, chega a receber entre R$ 200,00 e R$ 300,00 por apresentação”[13].

Com De baile solto, Siba põe todas essas questões em evidência. No entanto, não o faz de modo panfletário, como “música de protesto”, datada, com prazo de validade. Suas canções são críticas e políticas porque carregam em suas poéticas e sonoridades a voz e os sons que ecoam dessas e de outras expressões artísticas. Ou como ele mesmo afirma:

[…] expressar a grandeza absoluta de uma ave de rapina ante a arrogância dos senhores que se arrastam pela terra, exaltar a potência criativa e social de formas de expressão forjadas coletivamente por pessoas marginalizadas e excluídas, reafirmar a crença tola na embriaguez do verso.[14]

É de modo poético que o compositor destrincha suas críticas. É curioso perceber que no texto-denúncia de Siba algumas das afirmações ali relatadas apareceram em suas canções. Com isso, intuímos o quanto o processo criativo do músico esteja imbuído dessa reflexão, em como essas novas canções jogam de volta aos seus interlocutores as falácias que no fundo querem manter estáveis as forças de poder já estabelecidas. Assim, nova ordem está na boca do policial militar e nos versos de “Marcha Macia”, canção que abre o disco. Já em Progresso com mais ordem?[15], na pergunta irônica do músico naquele texto, surge não menos irônica e contundente nos versos da mesma canção, que diz: “Progrediremos juntos, muito em paz”. Na condução da guitarra-narrativa em diálogo com a voz de Siba até a profusão de sons e ritmos que invadem a canção.

Muito mais do que essas relações entre crítica e criação, a música oriunda da invenção que é a Mini Desorquestra de Baile Solto e Rimas, formada por Siba, Mestre Nico, Lello Bezerra, Antônio Loureiro e Leandro Gervázio, delirando sob uma poesia imagética, é ela mesma uma desordem, nem nova nem velha, mas espacial, como a ave de rapina, o gavião, o balão que voa; uma música que experimenta o seu próprio vocabulário, sua própria corrente de invenção.

IV – Marchas macias[16]

Carlos Gomes: Em 2003 a música “Marcha macia” encerrava o disco No baque solto somente, lançado por você e pelo Mestre Barachinha. No mais recente De baile solto, uma outra “Marcha macia” surge transformada sonora, política e poeticamente na abertura do álbum. Na inclusão da letra, de uma poética crítica, que mantém em seu cerne a estética pela qual sua música é reconhecida, mesmo ainda no período do Mestre Ambrósio, ou seja, na desterritorialização da música de rua de seus lugares normalmente marginalizados ou folclorizados. O que essas “marchas” têm em comum para você, como poéticas, ou mesmo se é possível fazer um diálogo entre esses dois momentos de sua trajetória, entre essas duas “marchas macias”?

Siba: A autonomia estética do Maracatu de Baque Solto é assombrosa. Tudo nesta tradição me parece afirmar com muita intensidade uma noção de distinção, uma consciência de diferença. Falando, cantando, tocando, dançando e também no modo de vestir, o maracatuzeiro parece estar sempre dizendo “eu sou quem eu sou, e não outra coisa”. Eu não nasci na Mata Norte. Como um típico cidadão classe média, nem deveria gostar de Maracatu, mas fui abduzido pela força expressiva do Baque Solto no meu primeiro encontro mais profundo com a tradição. Desde então, sempre me vi numa situação intermediária, onde faço parte de uma cultura marginalizada e isolada pelo preconceito folclorizante e ao mesmo tempo tenho constantemente oportunidades de intermediar canais de comunicação e encontros, da Mata Norte para o mundo e vice-versa. Nesta posição, sempre nutri uma crença, talvez ingênua, na força da beleza. Sempre acreditei que qualquer pessoa que se aproximasse minimamente do Maracatu e dos Maracatuzeiros seria passível de algum tipo de iluminação similar a que eu mesmo tive vinte e tantos anos atrás. Assim, boa parte do que produzi como artista até antes do De baile solto está repleto deste sentimento. Porém, com o tempo fui aprendendo a enxergar de modo mais concreto as reais barreiras para um entendimento livre de preconceitos para as culturas orais no Brasil. Por aqui, qualquer traço de matriz africana e indígena, qualquer sombra de sobrevivência ibérica pré-industrial tem que se adaptar ao lugar de Folclore, suas formas de expressão se tornam “Manifestações” de um passado distante e seus representantes serão sempre prisioneiros deste tempo antigo, de onde é muito difícil levantar voz ativa no presente. Não é à toa que essa Babel que chamamos genericamente de “cultura popular” está sempre refém do Coronelismo e suas versões similares, raramente conseguindo elaborar um discurso mais afirmativo de enfrentamento. As estratégias da Cultura Popular são, quase sempre, adaptação e reformulação. As duas marchas macias são mesmo uma só e afirmam uma mesma coisa, que está contida no refrão da versão mais recente.

Carlos Gomes: De baile solto foi lido majoritariamente pela crítica como um disco político, pois nascido diante dos embates contra a política segregadora do Estado, sobretudo pelos episódios envolvendo a restrição de horário das Sambadas de Maracatu, em Pernambuco, mas que simbolicamente abrange para questões políticas e culturais discutidas e vivenciadas em muitas das capitais brasileiras, sob o prisma capitalista, vide as reflexões sobre as cidades levantadas pelo Ocupe Estelita, por exemplo. No entanto, uma canção como “Será”, dos versos “Será que ainda vai chegar o dia de se pagar até a respiração?/ Pela direção que o mundo está tomando eu vou viver pagando o ar de meu pulmão”, lançada anos antes, já continha essa mirada crítica. Você percebeu uma diferença de tratamento – ou de recepção – entre as canções dos discos anteriores e as do novo álbum?

Siba: Trocar a guitarra por uma rabeca em 1990, formar coletivamente o Mestre Ambrósio e inverter na música o jogo de forças entre a cultura popular e música pop, deixar São Paulo no auge da visibilidade e ir cantar Ciranda e Maracatu no interior de Pernambuco… Foram sempre posições políticas para mim. O De baile solto é apenas mais politicamente explícito e consciente, tem um tom mais duro e afirmativo, mas eu acho que tenho feito sempre a mesma coisa, a vida inteira…


* Carlos Gomes é pesquisador e crítico. Mestre em Comunicação pela UFPE, com estudo comparado do tropicalismo e manguebeat. É editor dos projetos de crítica cultural dos Outros Críticos, no Recife/PE, responsável pela produção de livros, revistas e debates. Lançou em 2018 os livros Canções iluminadas de sol: entre tropicalismos e manguebeats, e O outro é uma queda (Vários autores).

Referências

CAÇAPA, Rodrigo. “Quanto vale a música tradicional?” Outros Críticos. Disponível em <http://outroscriticos.com/quanto-vale-a-musica-tradicional/>. Acesso em 13 fev. 2017.

MARCONDES, Lula. “Realidades do maracatu rural para além do marketing cultural”. Outros Críticos. Disponível em <http://outroscriticos.com/realidades-do-maracatu-rural-para-alem-do-marketing-cultural/>. Acesso em 13 fev. 2017.

MARCONDES; LIMA; ROCHA. “Índios e caboclos: reencontros”. Recife: O norte – Oficina de criação, 2014.

OLIVEIRA, Bernardo. “Repetir, variar, alucinar: entrecrítica sobre De Baile Solto”. Outros Críticos, Recife, ed. 8, p.58-61, 2015.

SIBA. “Maracatu de baque solto e a cobertura da lei”. Outros Críticos. Disponível em <http://outroscriticos.com/pernambuco-maracatu-de-baque-solto-e-a-cobertura-da-lei/>. Acesso em 13 fev. 2017.

Referências discográficas

BARACHINHA; SIBA. Siba e Barachinha. Recife: Terreiro Discos, 2003.

FULORESTA DO SAMBA. Toda vez que eu dou um passo o mundo sai do lugar. Recife: Produção Independente, 2007.

FULORESTA DO SAMBA. Fuloresta do samba. Recife: Produção Independente, 2002.

SIBA. De baile solto. São Paulo/Recife: Yb Music/Fina Produção/Mata Norte ,2015.

SIBA. Avante. São Paulo/Recife: Fina Produção/Mata Norte, 2012.

Referências filmográficas

FRANCISCHELLI, Pablo; JOBIM, Caio. Siba – Nos Balés da Tormenta, DobleChapa Cinematografia/Fina Produção, Rio de Janeiro/Recife: 2012.

PINHEIRO, Marcelo. Fuloresta do samba. Luni Produções, Recife: 2004.

Notas

[1] A apresentação musical ocorreu no bar Manny Deck, no Carmo, em Olinda, no dia 27 de janeiro de 2017.

[2] In: SIBA. De baile solto. São Paulo/Recife: Yb Music/Fina Produção/Mata Norte, 2015.

[3] Narrativas do documentário Fuloresta do samba (2004), dirigido por Marcelo Pinheiro.

[4] Entrecrítica é uma crítica construída sobre uma conversa entre o crítico e o artista.

[5] “A voz, por não ser macia/ Prefiro chamar de grito/ Mas canto imitando o dia/ Por isso eu acho bonito”, na faixa “Poeta sambador”, de Siba, no álbum Fuloresta do samba (2002).

[6] Narrativas sobre as fotografias de José de Holanda na I Festa da Alvorada com Siba, Maciel Salú e Mestre Barachinha, em Nazaré da Mata – PE, 2015.

[7] Da faixa “Toda vez que eu dou um passo o mundo sai do lugar”, de Siba, do álbum homônimo de 2007.

[8] Narrativas do documentário Siba – Nos balés da tormenta (2012), dirigido por Caio Jobim e Pablo Francischelli.

[9] In: SIBA. Avante. São Paulo/Recife: Fina Produção/Mata Norte, 2012.

[10] Esse tópico foi publicado originalmente no site Outros Críticos, em 10 de dezembro de 2015, com o título “Siba: de baile solto, como ave de rapina”.

[11] Disponível em <http://outroscriticos.com/pernambuco-maracatu-de-baque-solto-e-a-cobertura-da-lei/>. Acesso em 13 fev. 2017.

[12] Disponível em <http://outroscriticos.com/quanto-vale-a-musica-tradicional/>. Acesso em 13 fev. 2017.

[13] Disponível em <http://outroscriticos.com/realidades-do-maracatu-rural-para-alem-do-marketing-cultural/>. Acesso em 13 fev. 2017.

[14] Disponível em <http://www.mundosiba.com.br/discos>. Acesso em 13 fev. 2017.

[15] “O que se quer com essa arbitrariedade? Maracatu no Maracatuzódromo? Carnaval no Shopping? Progresso com mais Ordem?”.

[16] Diálogo presente em entrevista realizada pelo autor com o músico na edição 10 da revista Outros Críticos, publicada em dezembro de 2015.

dossiê
Tempo de leitura estimado: 34 minutos

O RAP (DE ELZA) DA FELICIDADE

Resumo: Este ensaio é a materialização de muitos pensamentos, algumas reflexões, conversas de corredor, reboladas entre uma festa ou um baile e ideias que surgiram entre “uma mão no joelho e outra na consciência”[1]. Objetiva pensar sobre a performance de Elza Soares para o “Rap da felicidade”, originalmente cantado por Cidinha e Doca, e de que forma essa canção em sua voz é um manifesto de resistência de uma mulher que representa várias outras que como ela são negras, pobres, faveladas. E que de um certo modo, em alguma parte de qualquer comunidade carioca clamam por ser felizes na favela onde nasceram, querem se orgulhar e ter consciência que pobre tem seu lugar. Reafirmar que o funk é um manifesto, uma arte que é efêmera, mas que consegue deixar pontuais legados que veiculam mensagens, descrições e reflexos da condição social da favela, que são atemporais.

Palavras-chave: Samba; favela; Elza Soares; música.

Abstract: This essay is the materialization of many thoughts, reflections, conversations on hall’s, rolling between a party or a dance and ideas that suggest between “one hand on the knee and one on the conscience”, thinking about Elza Soares’ performance for “Rap da Felicidade” by Cidinha and Doca and how this song in her voice is a manifest of resistance of a woman who represents several others that like her are black, poor, faveladas and that in some way, in any part of any community in Rio claim to be happy in the favela where they were born, who want to be proud and aware that poor people have their place, showing that Funk is a manifesto, an art that is ephemeral but that can leave punctual legacies that have messages, descriptions and reflections of the condition favela that are timeless.

Keywords: Samba song; favela; Elza Soares; music.

Elza (de Moça Bonita) Soares

Comecei a pensar, após a apresentação de um dos trabalhos no I Minervacon, em como uma mulher negra com tamanha força política como Elza Soares poderia embranquecer um funk, conforme foi afirmado em uma das apresentações na última mesa do evento. Me deparei com a biografia dela: uma mulher negra, nascida e criada na favela Moça Bonita, atualmente conhecida como Vila Vintém, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, que se casou cedo, pois no século passado parecia a pais pobres uma honra casar suas filhas ainda moças com homem de mais experiência; maternidade precoce, que velou dois filhos e o marido com meros 21 anos; aventurou-se no meio artístico em meio a tantas tristezas na vida, vítima do entrelugar em que a mulher negra está fadada a viver[2]; era antes apontada como “a amante que acabou com o casamento de Garrincha”[3] e, recentemente, era muito noticiada ou sempre comentada como a mulher com excesso de plásticas. Como poderia uma mulher negra, com tamanha vivência, tamanha biografia e trajetória de vida, ser uma força de “embranquecimento” do funk?  Apesar de não gostar da palavra, esta que foi utilizada.

Foto promocional do documentário O Gingado da Nega, em que Elza conta parte de sua carreira. Exibido pelo Canal Bis em 07/01/2014. Imagem disponível em: https://vimeo.com/69055991

Ela foi uma mulher sofrida, como muitas nessa sociedade machista, patriarcal e estruturalmente racista são, e, durante seu casamento extremamente conturbado de quase 20 anos com Garrincha, sofreu dos mais cotidianos males que as mulheres sofrem: a violência doméstica. Para além das marcas físicas que as agressões constantes lhe deixaram (segundo ela em várias entrevistas), há também as dores da alma, o psicológico das agressões que ficam como marca para uma vida, angústias que ela só expôs anos depois, quando a coragem foi suficiente e a cicatriz já não lhe torturava. Assim, lançou a canção “Maria da Vila Matilde”[4], presente no álbum A mulher do fim do mundo[5], em que fala abertamente sobre uma agressão doméstica à mulher, no caso a ela mesma, além de denunciar uma série de abusos que acontecem com as suas irmãs de cor, outras mulheres negras que são extremamente silenciadas, como elucida Sueli Carneiro:

Fazemos parte de um contingente de mulheres com identidade objeto. Ontem, a serviço das frágeis sinhazinhas e de senhores de engenho tarados. […] Hoje, empregadas domésticas de mulheres liberadas e dondocas, ou de mulatas tipo exportação (Carneiro, 2003, p. 50).

Não pude crer que Elza, que se tornou símbolo de uma série de discussões com seu álbum intitulado Deus é mulher poderia desmerecer a canção. Resolvi debruçar-me sobre o DVD Beba-me e proponho um caminho de deliciosas músicas para chegar ao “Rap (de Elza) da felicidade”.

Beba-me (ou engula-me) – o DVD de Elza Soares

Em março de 2007, Elza da Conceição Soares subiu ao Palco do Sesc Vila Mariana para gravar o que seria seu primeiro DVD ao vivo. Das 22 faixas escolhidas para o repertório, voltarei a uma faixa em específico, presente tanto no CD quanto no DVD, em ambos os casos como última faixa/ faixa bônus. O que mais me chama atenção são as particularidades nela presentes – que aqui serão apontadas – tais como o arranjo, a citação musical que nela é feita e como isso de certa maneira articula com a realidade que é vivida nas favelas.

Capa do DVD Beba-me, de Elza Soares, lançado pela gravadora Biscoito Fino em 2007. Disponível em: https://biscoitofino.com.br/produto/beba-me/)

Tratarei da faixa “Rap da felicidade”, funk originalmente cantado por Cidinha e Doca, lançado em 1995, que Elza regrava, 12 anos depois, com um arranjo reorganizado, leves alterações na letra original em uma roupagem que, minuciosamente pensada, parece ser algo tão contemporâneo e atemporal que no Brasil de 2018, me é difícil acreditar que já se passou tanto tempo desde a primeira execução do “Rap da felicidade” nas rádios. Levanto aqui duas motivações principais: tentar explicar que não há um “embranquecimento” desse funk (como ouvi há um tempo em um evento na academia) e, principalmente, como essa gravação de Elza parece tão Brasil 2018 pós-desfile da Paraíso do Tuiuti[6], embora existam pequenos rastros deixados, tão mínimos, mas que na pressa pelo instantâneo, nesse perturbado contemporâneo, não estimasse tempo suficiente para dar conta de alguma reflexão.

A composição da performance: o show pelo show

Ora, isso me faz repensar o sentido da performance do show, o sentido do próprio show e da composição performática que se dá com o figurino, a escolha das canções e, talvez intuitivamente, com a ordem em que elas estão dispostas ao longo do show. Apesar das mudanças na ordem das canções do CD para o DVD, proponho um olhar sobre o DVD, que contém o show completo e segue a seguinte ordem, conforme contracapa:

1 – Meu guri
2 – Dura na queda
3 – Estatutos da gafieira
4 – Cartão de visita
5 – Pra que discutir com madame
6 – O neguinho e a senhorita
7 – Exagero
8 – Dor de cotovelo
9 – Volta por cima/ Fadas
10 – Flores horizontais
11 – Pranto livre
12 – Palmas no portão
13 – Lata d’água
14 – A carne
15 – Telecoteco
16 – Telecoteco n°2
17 – Contas
18 – Se acaso você chegasse
19 – Malandro
20 – Beija-me (Beba-me)
21 – Salve a Mocidade
22 – Rap da felicidade (Faixa bônus)
(Faixas obtidas junto a uma cópia original do DVD do show, lançado em 2007 pela gravadora Biscoito Fino).

Existe um diálogo entre as faixas desde a primeira, “Meu guri”, na qual ecoa a voz de uma mãe pobre sobre seu filho, à última, “Salve a Mocidade”, referência à sua paixão, a Escola de Samba Mocidade Independente de Padre Miguel, nascida nas proximidades de onde Elza é “cria”. Esse diálogo se confirma na faixa bônus, última do show, o “Rap da felicidade”, que sintetiza a luta e o grito desta mulher negra, pobre, da favela, da luta e de sonhos. Mas posso dizer que há mais que isso: há uma voz que fala por um povo. Diferentemente do que é defendido por Spivak em seu Pode o subalterno falar (2010), em que o subalterno tem sempre sua fala mediada por outra voz, Elza, graças a sua exposição midiática e grande repercussão de sua figura, parece deslocada do contexto de subalternidade. Ela é a própria subalterna que fala pelos subalternos e, na sua posição ainda mais periférica de mulher subalterna e mais ainda de mulher negra subalterna, fala por sua própria voz, sem precisar de mediação.

Outro fator importante no entrelaçamento e no diálogo que as canções estabelecem entre si, ela expõe outro grande problema social pelo qual a mulher negra passa, como a violência singular que sofre em uma sociedade estruturalmente racista. Muitas vezes, pela condição social à qual é submetida, como a falta de acesso à educação, saúde de baixa qualidade, pouca ou nenhuma qualificação profissional, elas se veem obrigadas, com muita frequência, a ocupar postos como os de empregada doméstica, funcionárias da limpeza, vendedoras ambulantes e demais funções que ficam sempre à margem e por muitos não são olhadas e nem vistas no dia a dia da correria. Elza expõe isso na canção “Pra que discutir com madame”. Também há uma reflexão sobre a mulher negra como corpo-objeto, a serviço do homem. Um trecho do livro Mulheres, cultura e política (2017), de Angela Davis, nos ajuda a ter uma luz sobre o pensamento que entrelaça um conjunto de faixa cantadas por Elza em sequência:

Estupro, intimidação sexual, espancamento, estupro conjugal, abuso sexual de crianças e incesto são algumas das muitas formas de violência sexual explícita sofrida por milhões de mulheres neste país. […] O fato de que praticamente todas nós podemos recuperar episódios similares em nossas memórias de infância é a prova do grau em que a violência misógina condiciona a experiência feminina em sociedades como as nossas (Davis, 2017, p. 41-43).

Após essa leitura breve de um trecho do capítulo “Nós não consentimos: a violência contra as mulheres em uma sociedade racista”, posso refletir, fundamentalmente, sobre algumas alusões presentes no show, das quais considero a mais capital, como caminho que levará às canções “Salve a Mocidade” e, propriamente, ao “Rap da felicidade”.

A trilha musical até “Ser feliz”[7]

Sem desconsiderar as faixas iniciais do show, das quais as mais singulares já foram mencionadas, penso que esse caminho se inicia na faixa de número 12, “Palmas no portão”, trilhado em algumas melodias e letras, os tons melancólicos e destaque para a grande voz de Elza, uma espécie de autocanto de uma realidade outrora vivida e que é revisitada pela sua arte.

Já na primeira faixa mencionada, “Palmas no portão”, há um claro exemplo sobre a solidão da mulher negra, que na canção chora por não ser visitada por seu amado, mostrando o abandono pelo qual muitas dessas mulheres passam. Seguindo para “Lata d’água”, em que uma mulher sofre vivendo em uma comunidade, temos uma transição temporal: em pleno 2018, além da falta de saneamento básico em muitas comunidades, há também a evidência de uma força de trabalho dupla, não só a de carregar água, mas a de ser mãe solteira, realidade muito comum na população brasileira. Em se tratando de mulheres negras, a situação é ainda mais grave: ou elas são abandonadas por seus companheiros por diversos motivos, ou são vítimas da violência e têm seus maridos, também negros, assassinados pelas forças que deveriam dar segurança, mas confundem guarda-chuvas com armas de fogo[8] e assassinam pais de família como Rodrigo Alexandre da Silva Serrano, alvejado em um dia de chuva, 17 de setembro, deixando para trás mais uma mulher negra com sua vida dilacerada e mãe solteira.

Em “A carne”[9], Elza faz o apogeu do show, expondo a negligência do Estado com os corpos negros, com a violência por eles sofrida, com os assassinatos que ficam sem solução, pelas associações ao que é ruim e diretamente feitas ao povo negro, pelo que acontece diariamente e não vemos ou fingimos não ver. Há um lamento de Elza ao dizer que “a carne mais barata do mercado é a carne negra”, porque de fato é.[10] É o corpo que pouco importa, a carne que sofre, que é marginalizada, foi escrava, é jogada ao relento e por fim acaba esquecida, jogada em valas ou simplesmente é um corpo que some, pois afinal “Onde está o Amarildo?” ou mesmo “Quem matou Marielle?”[11].

Em “Teleco-teco”[12], volta-se à situação do corpo-objeto da mulher negra. Nessa canção há um jogo, uma citação a duas outras canções: a primeira, “Praça Onze”[13], de Herivelto Martins, conta a história do fim da Praça Onze, reduto das escolas de samba no início do século XX. Essa música mostra uma profunda tristeza pelo provável fim das escolas de samba, dizendo que, para além do choro dos instrumentos que não serão mais utilizados, há também o choro da favela. Há a memória, as recordações. É o fim de algo que foi bom, que deixará lembranças, a esperança de uma nova praça e um passado que será cantado.

A segunda citação, “foi pra mim”, refere-se à música “Samba feito pra mim”[14], que se justifica pela presença da citação dos versos: “Amei alguém, fui só de alguém, o mundo não procurou me compreender”. Há como referência dessas duas canções, um sujeito que está triste, pois vai deixar algo para trás, um amor, uma grande paixão, seja metaforicamente na figura da Praça Onze na primeira música, seja literalmente se pensarmos na segunda música. Algo que ele deixa por não ser compreendido, algo que ele deixa por não poder mais levar isso adiante, algo que ele espera que um dia volte para cantar o tempo de saudade e celebre a felicidade de um novo tempo. Com a construção dessas metáforas podemos entender que ele deixará a mulher, já que na segunda parte da música: “Você é um homem casado, não tem o direito de fazer carnaval”. Ora, entende-se aqui que a metáfora do carnaval nada mais é que ter relações sexuais com ela.

Há uma clara mensagem nessa canção em específico, um sofrimento de uma mulher que, para além de passar “a noite inteira acordada e a minha bronquite assim comecei”, um rancor, uma mágoa de se sentir usada por um homem que é casado, provavelmente, mente para ela e usa de charme e canções do conhecimento popular para criar uma atmosfera de descontração com essa mulher, com o objetivo de pressioná-la para conseguir o seu perdão. É evidente aqui a relação de poder (com o “jeitinho”) e de abuso que a mulher negra sofre. A mulher que se sente só por sua condição social massacrante, que é diferente da mulher branca, que é cortejada e se sente pressionada a dar o perdão. Parece muito simples, mas só a mulher e principalmente a mulher negra que passou por semelhantes situações sabe a quantidade de significados que esse “jeitinho” tem na relação de manipulação e tentativa de dominação do psicológico para que o homem consiga aquilo que quer.

Em “Teleco-teco n° 2”, há uma continuidade para além do título, uma espécie de justificativa do lamento da primeira música. É possível pensar que o verso “samba nasce em qualquer lugar” seja uma resposta à desculpa que o homem dera para lhe deixar, uma coerente e inteligente explicação de que quando se quer, dá-se um jeito, e que poderia ser encontrada uma maneira para que ele conciliasse a vida com ela e a amante. 

Na faixa “Contas”[15], o lamento da mulher, chefe de família. Contas a pagar, pouco dinheiro, da mulher que convive diariamente com o dilema de trabalhar ou cuidar dos próprios filhos, isso porque muitas delas cuidam mais dos filhos das patroas que dos próprios. E, por mais que ela pense elucidar seu dilema pedindo demissão de seu trabalho para dar “conta das contas do lar”, muito lhe faz recuar quando o pensamento dessa mulher negra é o de que sem trabalho não há dinheiro para as contas, mas com trabalho não lhe sobra tempo para dar conta do lar. E assim segue a vida…

“Se acaso você chegasse” dá início ao último bloco do show, seguido de “Malandro”, “Beija-me”, de Roberto Martins e Mário Rossi, a maior brincadeira do show, que merece um olhar especial, pois durante a performance, Elza altera várias vezes o verso “Beija-me” por “Beba-me”. Nessa canção ela sintetiza o martírio de seu tempo na favela, do tempo de qualquer morador de uma favela, em versos que sugerem que ela seja engolida, algo difícil para quem não gosta dela e não a aceita pelo sucesso que conquistou.

Por fim, antes do encerramento do show, há uma declaração do seu amor pelo Samba, a grande paixão da menina Elza, “Salve a Mocidade” Independente de Padre Miguel, escola de samba que nasce em Padre Miguel, território que antes era a favela de Moça Bonita, onde ela nasceu. Amor tão grande que a fez se declarar apaixonada e sambista por inúmeras vezes, desfilar pela escola e até cantar um trecho do samba-enredo de 2019 na gravação oficial do CD do Sambas de Enredo de 2019.

A sutileza para mandar a grande mensagem do que é esse show fica notável, uma síntese de sua carreira, sem negar de onde ela veio – a favela –, o que ela é – uma mulher negra que luta, que está na luta – e, além disso, uma favelada que quer paz, quer tranquilidade, que não deseja mais ser marginalizada pelo que é e sim respeitada pela luta diária de sua vida. É assim que o show termina com a faixa bônus, com o “Rap da felicidade” coroando a Rainha Elza. Parece que este show, que marcaria uma pausa em sua carreira, já que Elza o lança em CD e DVD em 2007 e só retorna com um álbum novo em 2015, seria a grande virada em sua carreira, despontando-a como símbolo de uma série de discussões contemporâneas.

O Rap

Dupla Cidinho e Doca: intérpretes da versão original do “Rap da Felicidade”, lançado em 2004. Imagem de uma visita feita pelos dois à Cidade de Deus para entrevista ao jornal Extra. Disponível em: https://extra.globo.com/tv-e-lazer/musica/dupla-cidinho-doca-retoma-parceria-grava-disco-para-celebrar-20-anos-de-carreira-11646102.html)

A música “Rap da felicidade” tem uma letra melódica, um ritmo menos acelerado e marcado por uma sequência única de batidas, bem diferente do que conhecemos hoje em pleno 2018 por funk, seja nas comunidades, com o acelerado ritmo em 150BPMs (batidas por minuto), seja pelo funk mais comercial que chega às rádios com 130/135BPMs. Ela ainda carrega o “rap” no nome – já que historicamente, no Brasil, o funk começa com o movimento dos “melôs”, assim como nos EUA, onde o ritmo nasce da mistura de ritmos afro-americanos, depois caminha no sentido de se nomearem “raps”, até que, por fim, os movimentos de antropofagia nas favelas consolidam o que temos hoje pelo nosso único e mundialmente reconhecido funk. E parece que crítica social é mesmo receita de bolo em determinadas épocas. Fosse na música, nas artes ou no carnaval, o final da década de 1990 foi propício às críticas, que obtiveram muito sucesso, e com o “Rap da felicidade” não seria diferente.

Com uma estrondosa repercussão nas rádios, nos milhares de discos vendidos e na participação em diversos programas de TV, Cidinha e Doca se tornaram conhecidos nacionalmente pela música que tinha um singelo pedido, mas que talvez fizesse sucesso, no cenário político da época: a grande parte da população brasileira, a grande consumidora dos meios de massa com rádio e televisão, que se via representada na súplica que a canção entoava “Ser feliz na favela onde EU nasci…”. Esse “eu”, marca de primeira pessoa, com referência indeterminada, um sujeito que não se identifica, mas que pode ser qualquer morador de uma comunidade que é assolada pela violência, é para que cada um que cantasse a música, que tocava exaustivamente nas rádios ou estava em todos os programas exibidos na TV, fosse em uma favela carioca, na periferia de São Paulo, no Nordeste, imensamente esquecido em diversos aspectos, ou por qualquer um que sentisse que aquela fala era sua também.

Não se pode negar o grande sucesso que essa música teve e a atemporalidade que essa espécie de “súplica” das favelas ganhou, o que a fez se tornar trilha sonora do filme Tropa de Elite em 2007 e regravação no DVD de Elza Soares no mesmo ano. Talvez essa música seja um daqueles fenômenos que não conseguimos dizer como se deu, mas é de extrema importância reconhecer essa produção como um manifesto político, uma marca histórica do início do movimento funk no Brasil, que passaria por várias mudanças em sua trajetória, mas nunca perdendo sua essência.

Por dentro do “Rap de Elza”

E para encerrar seu show e DVD, Elza traz a sua versão do “Rap da felicidade”, com uma “citação musical”, uma espécie de abertura que se faz antes da faixa principal, onde um cantor geralmente cita outra canção com a qual ele pensa estabelecer um diálogo (o que aqui realmente se dá), pois a citação escolhida é a cantiga popular “Se essa rua fosse minha”, com uma letra repleta de metáforas que estabelecem uma conexão fortíssima com o “Rap da felicidade”. Apreciemos um trecho da cantiga[16]:

Se essa rua
Se essa rua fosse minha
Eu mandava
Eu mandava ladrilhar
Com pedrinhas
Com pedrinhas de brilhante
Para o meu
Para o meu amor passar
(Cantiga popular)

É notável neste trecho apreciado uma certa melancolia, há na simplicidade de uma canção infantil um gesto muito mais simbólico que o simples arranjo que antecede a canção apresentada por Elza; se ligada ao “Rap da felicidade”, uma simples cantiga popular pode dizer mais que as simples palavras ali expressas.

A citação musical faz uma síntese de tudo que já foi visto no show anteriormente, os personagens citados nas canções, o sofrimento das mulheres e o lamento das mães solteiras, o caminhar de cada morador na singularidade, não só dos seus problemas, mas na coletividade, já que todos que passam por esses problemas encontram um ponto em comum: a rua, essa rua, a rua que pode ser de cada um. E não é difícil repensar a realidade de uma favela carioca quando lemos sobre elas diariamente nos jornais. Claro que muitos têm um olhar de fora, do espectador, não de quem mora, mas com um mínimo de empatia, há que se ter uma mínima noção, uma vez que nem todos moram nas favelas e nem todos as frequentam, muitas vezes por medo. E mesmo com essa luz que a mídia lança sobre essas comunidades, mostrando a violência ou muitas vezes um recorte que interessa ser mostrado, remarcar que cada um tem o seu ideal de lugar de onde vem e o seu pertencimento, uma particularidade que une o indivíduo àquele lugar, e, mais uma vez, a rua é o ponto comum que une a todos.

Insisto nisto, na ideia de que a RUA aqui é decisiva para entender o desfecho do show, direcionando o pensamento a dois casos específicos do retrato das favelas do Rio de Janeiro, apontando sua relação com a rua. O primeiro, de Marcos Vinicius Silva, morto durante um confronto entre policiais e traficantes no conjunto de favelas da Maré[17], quando o menino ia para a escola. A criança foi baleada na rua. Em entrevista à impressa, a mãe declarou[18]:

Quando cheguei na UPA ele estava com vida. Ele falou ‘mãe eu sei quem atirou em mim, eu vi quem atirou em mim’. Eu falei ‘meu filho, quem foi que atirou em você?’. ‘Foi o blindado, mãe. Ele não me viu com a roupa de escola” (Trecho da entrevista de Bruna da Silva, mãe de Marcos Vinícius, concedida ao G1).

O segundo caso é a imagem, capa de diversos jornais no Brasil e no mundo, que chocou ao mostrar crianças vendando crianças mais novas, ao passarem por corpos mutilados e ensanguentados pelo chão, em uma rua na favela da Rocinha[19]. Essas narrativas trágicas têm como pano de fundo a rua, que é um lugar de convívio, de passagem, mas que traz consigo uma tragédia particular, um sentimento de revolta, de dor, particular de cada um.

Por essa razão, os versos “Eu só quero é ser feliz, andar tranquilamente na favela onde eu nasci”, precisavam aqui, expostos por uma mulher negra que sofreu na favela, ser antecedidos pela simples citação musical de “Se essa rua fosse minha”. Mas, e se realmente ela fosse, será que a mãe de Marcos teria o filho nela baleado, uniformizado a caminho da escola? Será que as mães e os pais de cada uma daquelas crianças que passaram por aqueles corpos ensanguentados não gostariam que nela seus filhos tivessem que caminhar por outras ruas que não fossem aquelas com marcas de morte, da violência e de sangue? Elza dá a cada um o poder de ter a rua, de se apropriar dela, para que dela façam um caminho melhor por onde possam passar.

Quando Elza gravou o DVD Beba-me, em 2007, já se tinha um panorama da violência, que só cresceu desde então, e do descaso com as comunidades cariocas. Já se tinha um retrato triste do que era a vida em uma comunidade, mas a imortalidade da obra é tão emblemática que, em 2018, 11 anos depois da gravação, a canção e as reflexões sobre todas as escolhas são tão simbólicas e tão comunicativas, que a intencionalidade ao ser produzida parece ter a vontade de se comunicar com um público específico, o que realmente quer “ter a consciência que o pobre tem seu lugar”.

Ela traz luz à ideia da rua e cria uma noção de diálogo dessa mesma rua, que pode ser de qualquer um, para não ser lugar de tragédia, com os movimentos da música, trazidos pelos verbos de ação. Quando a canção evoca o verbo de primeira conjugação “andar”, o sujeito da canção anda por essa rua, que se fosse dele, mandaria ladrilhar de brilhantes, apagando assim as marcas de sangue de inocentes que sequer têm seus nomes conhecidos, dos Marcos Vinicius da vida, que morrem todos os dias a caminho da escola, a caminho do futebol com os amigos. De Amarildo que não tem corpo, que não tem o lugar físico da memória do homem que deixou a família; de Marielle e de Anderson, que têm seus corpos atravessados por tiros, um caso ainda sem solução.[20]

Trazer essa canção com esse arranjo é mais que um manifesto, é a própria Elza que aqui é o subalterno que tem fala, é aquela que fala por uma realidade que é sua, a do medo, da dor, de quem mora na favela, que é desrespeitado, que pede paz, pede justiça, que não aceita mais que sua carne seja a mais barata, que não quer mais seu corpo tratado como objeto. Aqui temos um fim anunciado da missão desse show: fazer descer goela abaixo a hipocrisia e a intolerância que por anos criticaram essa mulher, a realidade e o lugar de onde ela vem, que ela quer cantar, que ela suplica que mude. É Elza por Elza manifestando por um povo, seu povo, o povo negro, favelado, sofredor.

O lugar teórico de Beba-me e a singularidade do “Rap de Elza”

Para além do que já foi dito, há também para se pensar uma memória de Elza na narrativa desse DVD, não a memória vista, mas uma memória no imaginário. Reflito junto a Hugo Achugar, em seus “Planetas sem boca”, na memória imaterial:

Refiro-me ao lugar teórico a partir de onde se fala, que está configurado, entre muitos outros elementos, pela memória. Uma memória que é local ainda que atravessada pelo nacional, o regional e o internacional. Ou seja, falo a partir de um lugar contaminado pela memória e povoado de monumentos que nem sempre têm a materialidade do mármore, do bronze ou da escrita (Achugar, 2006, p. 179).

Ora, ao pensar acerca disso em um dos ensaios que compõem os “planetas sem boca”, Achugar nos mostra a perspectiva de fala a partir de um lugar que existe apenas na memória, que, ou nunca existiu ou deixou de existir. É muito lúdico pensar que é isso que Elza faz quando refletimos que cada personagem cantado ao logo das 22 faixas representa uma parte do conturbado cotidiano de Elza na favela Moça Bonita. Local do qual Elza fala, e nos fala, nesse DVD. Mas principalmente é pensar em um lugar que agora fica apenas no imaginário de Elza, já que, para além da configuração do espaço e do tempo serem diferentes, a favela agora possui outro nome. E parece pouco possuir apenas outro nome, mesmo que o lugar fosse o mesmo, mas o nome é a primeira parte da nossa construção de identidade, e é assim que vemos Elza, a mulher de Moça Bonita. Ao receber outro nome, além de ser outra favela, da demanda de tempo que os moradores levam para se adequar ao novo nome, a nova identidade, que muitas vezes muitos renegam. Como o caso dos moradores da Vila do João, que tiveram os nomes de suas ruas trocadas pelo então prefeito da cidade do Rio de Janeiro[21], Marcelo Crivella, que, em 2017, seu primeiro ano de mandato, trocou o nome das ruas da comunidade por nomes que sequer a população conhecia. Nome é emblemático, é uma marca, a primeira construção de identidade. A troca do nome da favela de Moça Bonita, leva as memórias de Elza de um lugar material para apenas o lugar memorial que habitam em seu pensamento.

Por um reflexivo desejo: poder se orgulhar

Com tantos pensamentos em diálogo não só com a realidade de 2007, mas com o atual cenário que vivemos em 2018, é categórico afirmar que Elza Soares manifesta toda sua vida e suas memórias de vivência na favela nesse show. Aqui ela saltará de um hiato que dura de 2007 a 2015 para uma grande voz das discussões contemporâneas, do pensamento das mulheres, voz de denúncia que fala por si e por milhares como ela.

A narrativa performática que se desenha no show resgata não só a sua carreira, mas reinventa a Elza que já era aclamada, consolidando-a como a grande artista que ela é, mas também revela diante do público sua vida forte e estilhaçada por uma trajetória em condições mínimas.

Elza Soares afirma nesse DVD sua negritude, seu grito de resistência, de luta, de força e de garra como mulher negra, representante cultural, como voz subalterna de outras subalternas que precisam ter luz jogada sobre suas dores. Ela é essa luz, e mostra com graça, leveza, sutileza e um charme em cada detalhe do show, desde a simples cenografia à singularidade de seu figurino, uma realidade que muitas vezes é jogada para debaixo do tapete, que passa despercebida no cotidiano de pessoas que não vivem naquele lugar que é a favela. Ela reafirma que é preciso ter consciência de classe, reconhecer-se pertencente àquele lugar, orgulhar-se e lutar para ter orgulho dele.

Finaliza o show saudando a Mocidade, sua escola de samba do coração, e a mocidade, a juventude, a esperança dessa luta, semente que aqui ela planta e cujos frutos vemos hoje, seja os que ela plantou, seja de outras mulheres que vêm da mesma luta que ela, mas que são os frutos do progresso.

Enaltecer é preciso. Assim, deixa-se ao fim não o final definitivo, mas ao fim desta página um salve a todas as mulheres negras, cis e trans que lutam todos os dias por sobrevivência, por um mundo mais justo e que muito me enchem de orgulho. Salve a arte, viva a Favela, evoé Elza, Elza de Moça Bonita Soares.

Vanubia Close,
No 29° dia do mês de setembro do ano de 2018,
O dia em que o Brasil uniu forças e disse #EleNão
(E que essa escrita tenha sido lida por você, em um Brasil onde o ódio não venceu).

Samile Cunha,
No 10° dia do mês de dezembro do ano de 2018,
Ele venceu, mas nós resistiremos,
pois “Vai sair, de dentro de cada um, a Mulher vai sair”.


* Heterônimo in persona de Artur Vinicius A. Santos. Vanubia Close é travesti, ativista política de direitos LGBT, escritora, dançarina, psicóloga das ruas, leitora assídua, amante de músicas populares como samba e funk. Esta criação parte de uma série de recortes e referências de Artur em um processo de antropofagia que resulta em Vanubia, este ser que se apresenta como pessoa e divide a identidade com o próprio citado e leva as ruas à academia e a academia às ruas.

** Samile Cunha é a persona que Samuel Abrantes, professor doutor da Escola de Belas Artes da UFRJ assume. Samile nasce como Dalva Garça Dourada, em uma brincadeira para o Carnaval de 2004 da G.R.E.S. São Clemente, no enredo “Boi Voador sobre o Recife – Cordel da Galhofa Nacional”, interpretando uma chacrete, a convite do então carnavalesco da Escola Milton Cunha. Dois anos mais tarde adota o nome de Samile e o sobrenome Cunha em homenagem a Milton. Assim, Samile desfila em diversas escolas todos os anos e toma a academia quando, em 2014, Samuel lança o livro Transconexões, memória e heterodoxia, no qual faz um resgate biográfico de Samile. Desde então, apenas Samile é convidada à academia, o que faz da Travesti do Samba, uma intelectual.

Referências

ACHUGAR, Hugo. Planetas sem boca: escritos efêmeros sobre arte, cultura e literatura. Tradução de Lyslei Nascimento. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.

BHABHA, Homi K. O local da cultura [1949]. Tradução de Myriam Ávila, Eliana Lourenço Reis, Gláucia Renate Gonçalves. 2ª ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013.

CARNEIRO, Sueli.Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. In: ASHOKA EMPREENDEDORES SOCIAIS; TAKANO CIDADANIA (Orgs.). Racismos contemporâneos. Rio de Janeiro: Takano Editora, 2003.

DAVIS, Angela. Mulheres, cultura e política [1994]. Tradução de Heci Regina Candiani. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, 2017.

RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento; Justificando, 2017.

SPIVAK, Gayatri Chakravotry. Pode o subalterno falar? [1942]. Tradução de Sandra Regina Goulart Almeida, Marcos Pereira Feitosa e André Pereira Feitosa. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

Sites consultados:

1. https://www.redbull.com/br-pt/Elza-Soares-e-o-lado-obscuro-do-paraiso (Acesso em 10 set 2018)

2. https://noticias.bol.uol.com.br/bol-listas/curiosidades-que-talvez-voce-nao-saiba-sobre-a-cantora-elza-soares.htm (Acesso em 15 set 2018)

3. http://revistadonna.clicrbs.com.br/gente/em-entrevista-elza-soares-fala-sobre-prazer-violencia-domestica-e-preconceito-quando-ninguem-tinha-coragem-de-assumir-sua-negritude-eu-assumi/ (Acesso em 16 set 2018)

4. https://odia.ig.com.br/_conteudo/diversao/celebridades/2015-11-30/ja-levei-muita-porrada-diz-elza-soares.html (Acesso em 18 set 2018)

5. https://mdemulher.abril.com.br/famosos-e-tv/elza-soares-voce-precisa-conhecer-a-historia-dessa-guerreira/ (Acesso em 21 set 2018)

Outras referências:

Beba-me (CD) – Elza Soares: Gravadora Biscoito Fino; gravado em março de 2007 no Sesc Vila Mariana (SP) em parceria com o Canal Brasil. Tiragem AB2500. 15 Faixas.

Beba-me (DVD) – Elza Soares: Gravadora Biscoito Fino; gravado em março de 2007 no Sesc Vila Mariana (SP) em parceria com o Canal Brasil. Tiragem AA3500. 22 Faixas.

Documentário – O Gingado da Nega – Canal Bis: Exibido em 07 jan 2014.

Disponível em: https://vimeo.com/69055991  

Notas

[1] Frase dita por Vanubia Close (heterônimo in persona), durante a apresentação do trabalho “O som de Preto que conquistou o mundo: a antropofagia da favela nas letras e no baile funk” no I Minervacon: Encontro de Estudos Interdisciplinares de Linguagens, Mídia e a Cultura Pop, realizado no dia 06 de junho de 2018 na Faculdade de Letras da UFRJ na Ilha do Fundão.

[2] Este que é apontado por Sueli Carneiro no artigo “A situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero”.

[3] Quando Elza Soares e Garrincha começaram seu relacionamento ele ainda era casado com sua ex-mulher e Elza estava em seu início de carreira. Muitos da mídia mais conservadora a apontavam como “destruidora de lares”.

[4] Lançado em 11 de agosto de 2015 como primeiro single do álbum A mulher do fim do mundo.

[5] Lançado em 3 de outubro de 2015 pelo selo Circus Produções, com 11 canções.

[6] GRES Paraíso do Tuiuti é uma agremiação do Rio de Janeiro que desfilou em 2018 pelo Grupo Especial das Escolas de Samba com o enredo “Meu Deus, meu Deus, está extinta a escravidão?”. A escola arrebatou a Marquês de Sapucaí em um desfile comovente que lembrava a escravidão chegando até a reforma trabalhista. Com isso, ela que era cotada para ser rebaixada, já que a agremiação com menor pontuação desfila no ano seguindo em um grupo inferior, alcançou o 2° lugar da classificação geral.

[7] Alusão a um trecho do “Rap da felicidade” que diz: “Eu só quero é ser feliz”.

[8] Consultado em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/09/19/politica/1537367458_048104.html

[9] Consultado em: https://www.letras.mus.br/elza-soares/281242/

[10] Refiro-me aqui, em apenas uma frase, a todo um caminho refletido por Achille Mbembe em seu Crítica da razão negra.

[11] Na presente data de revisão deste artigo, aos 10 dias do mês de dezembro de 2018, o crime ainda não havia tido solução. Nesta mesma data, Marielle Franco foi homenageada na ALERJ com a medalha Tiradentes, recebida pelas mãos de seu pai, no dia dos Direitos Humanos.

[12] Consultado em: https://www.letras.mus.br/elza-soares/1280641/

[13] Consultado em: https://www.letras.mus.br/herivelto-martins/386766/

[14] Consultado em: https://www.letras.mus.br/elis-regina/542639/

[15] Consultado em: https://www.letras.mus.br/elza-soares/contas/

[16] Cantiga acessada em: https://www.letras.mus.br/cantigas-populares/134098/ no dia 23/09/2018.

[17] Consultado em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/morre-adolescente-ferido-durante-tiroteio-na-mare.ghtml

[18] Consultado em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/testemunha-que-socorreu-adolescente-morto-na-mare-diz-que-tiro-partiu-da-policia.ghtml

[19] Consultado em: https://oglobo.globo.com/rio/exposicao-de-criancas-violencia-na-rocinha-desperta-preocupacao-de-pais-especialistas-21934661

[20] Leva-se em consideração que o texto foi escrito no mês de setembro do ano de 2018.

[21] Consultado em: https://extra.globo.com/noticias/rio/crivella-muda-nomes-de-ruas-na-vila-do-joao-21905331.html

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A FORMA E A INVENÇÃO NA POÉTICA DA CANÇÃO DE MANO BROWN

Resumo: Mano Brown é uma das referências centrais para a música popular brasileira nas últimas décadas, especialmente através das suas canções com o grupo Racionais MCs. A excelência e o nível de inventividade formal da sua poética o coloca na condição de um dos principais poetas da canção brasileira, talvez o último dos grandes mestres da composição em canção popular.

Palavras-chave: Música; invenção; poesia.

Abstract: Mano Brown is one of the central references for Brazilian popular music in the last decades, especially through his songs with the group Racionais MCs. The excellence and level of formal inventiveness of his poetry puts him in the condition of one of the main poets of the Brazilian song, perhaps the last of the great masters of the composition in popular song.

Keywords: Music; invention; poetry.

Mano Brown em 2014 (Foto: Daryan Dornelles/Divulgação)
Mano Brown em 2014 (Foto: Daryan Dornelles/Divulgação)
Fonte: https://portalrapmais.com/mano-brown-diz-que-fas-nao-merecem-um-novo-album-do-racionais/

Mano Brown é, certamente, um dos artistas mais importantes da música popular brasileira em todos os tempos. E não só. A sua inteligência poética o coloca na condição de um pensador da cultura, aquele que aponta balizas, orienta o caminho, persuade, redimensiona o debate público, através de entrevistas ou mesmo falas em meio aos shows. Ele ocupa hoje um papel análogo ao de artistas da canção como Tom Jobim, Caetano Veloso, Chico Buarque, Milton Nascimento, Raul Seixas e, numa dimensão menor, Cazuza, Renato Russo e Chico Science. Mano Brown é um artista que criou uma linhagem própria na música popular brasileira, no mesmo nível dos nossos maiores artistas e pensadores da cultura. O fato de ser oriundo das classes trabalhadoras precarizadas, diferentemente de todos estes artistas, diz muito da sua importância histórica, ao lado da excelência da sua obra artística. Nela, há um senso de totalidade e não de fragmentação. Não se trata de uma perspectiva específica, associada a uma realidade específica, como erroneamente é apresentada em muitas análises, mas de um olhar artístico e crítico totalizante, do lugar do Brasil no espírito do mundo e do espírito do mundo para além do Brasil, tendo a arte – com sua autonomia relativa em relação à sociedade e à política – como mediadora complexa, através de um refinado trabalho estético-formal.

*

O pensamento acompanha a poesia da canção. Ambos potentes e afiados. A maturidade poética e a forma complexa e lúcida com que delineia a relação entre estética e política vem desde o primeiro momento, ainda nas primeiras canções e entrevistas. Holocausto urbano, o primeiro álbum do Racionais Mcs, já era radicalmente inovador dentro do ambiente da canção popular de início da década de 1990, com o ocaso das bandas do chamado “Rock Nacional” e do movimento punk e pós-punk; a emersão de novas movimentações profundas da música popular brasileira com o advento da axé-music; a nacionalização da música sertaneja; o fenômeno dos grupos de pagode romântico e o desenvolvimento ainda regional do funk carioca. O Hip Hop brasileiro nasce neste contexto. Sua complexidade e força derivam daí. Os álbuns posteriores, Escolha seu caminho (1992), Raio X do Brasil (1993), Sobrevivendo no inferno (1997), Nada como um dia após um outro dia (2002) e Cores e valores (2014), deram sempre um passo à frente no contexto poético e musical em que foram lançados. A relação com a MPB dos artistas de classe média da década de 1960 é apenas lateral e só posteriormente vem gerar algumas sugestões de aproximações, com o muito culto Criolo. Em outras palavras, o mais importante da sua grande obra é a relação com um processo histórico e social associado a um contexto em que a inteligência e a vitalidade da música popular brasileira se deslocam para a criação feita pela e para as classes trabalhadoras precarizadas. Ela não é devedora, nem deriva, em nenhum aspecto, das grandes obras e movimentações culturais da classe média da década de 1960, porque abre uma nova fenda, como um clarão, complexo, denso, vigoroso, consistente, cuja potência e força artística começa a ser medida e pensada. E também cria grandes obras, como a do Racionais MCs, de KL Jay, Edy Rock, Ice Blue e Mano Brown.

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Sobrevivendo no inferno é um clássico e representa a maturação estético-formal de uma ruptura ainda sem precedentes na história recente da música popular feita no Brasil. Representa aqueles momentos em que a arte feita no Brasil concentra as tensões formais, sociais e políticas do momento, e consegue ser, pelo alcance artístico, atemporais. O espanto diante da audição de Sobrevivendo no inferno dentro da sua obra só é comparável à audição de Cores e Valores, a misteriosa suíte poético-sonora lançada em 2014. Entre os dois álbuns, algumas das melhores canções feitas em língua portuguesa, como “Racistas otários” e “Pânico na zona sul” (Holocausto urbano, 1990) “Homem na estrada”, “Fim de semana no parque” e “Mano na porta do bar” (Raio X do Brasil), “Capítulo 4 versículo 3”, “Fórmula mágica da paz”, “Diário de um detento” (Sobrevivendo no inferno, 1997), “Jesus chorou”, “Vida Loka II”, “Eu sou 157”, “Da ponte pra cá” e “Negro drama” (Nada como um dia após um outro dia, 2002). E, em alguma área imprecisa, “Mil Faces de um homem-leal” (Carlos Mariguela) (2012) – mediadora entre a extensão narrativa complexa de “To ouvindo alguém me chamar” (Sobrevivendo no inferno, 1997) e as experimentações de síntese em “Finado Neguin” (Cores e valores, 2014).

Capa de Cores e valores, 2014
Capa de Cores e valores, 2014
Fonte: https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-e-lazer/noticia/2014/11/Racionais-MC-s-voltam-com-musicas-curtas-e-influencias-modernas-em-Cores-Valores-OUCA-4650367.html

A capa de Cores e valores é pedra bruta. A arte é terrível, cruel e difícil. A imagem de símbolos que remetem ao modo como filmes de terror fazem parte do imaginário cultural popular; a figura do palhaço que se parece aqui com um sátiro zombeteiro de algum lugar perdido nas ilhas de Samos, Lesbos, imerso ainda num caos originário de pulsão difusa e potência ameaçadora, na aurora da razão; a roupa de gari; a metáfora do assalto que se relaciona com a mesma imagem do clipe da obra-prima “Mil faces de um homem leal”, no qual o Racionais MCs, ao lado do imenso Dexter, tomam de assalto a rádio nacional (a música popular brasileira) para cantar uma poesia afiada, pesada e estranha, com inteligência formal e capacidade de fazer soar o som de palavras e sílabas recheadas de vertigens e quebras súbitas de sentido. “Mil faces de um homem leal” é uma canção que vale por muitos discos de canção.

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O labirinto de figuras de linguagem atravessa e molda as canções de Mano Brown. O domínio formal é impecável e profundamente inventivo. A poesia que chega ao coração da linguagem e nasce do espaço impreciso do som das palavras que ainda não ganharam sentido, que ainda não se embrenharam na trama do significado. O labirinto das formas chama para a decifração do enigma que nunca se apresenta na sua totalidade. O som das palavras, a junção entre som e sentido, a palavra como canção, a música das esferas. A aproximação do enigma. Cola-se a boca na borda do Ser.

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Uma obra de depuração formal da linguagem da canção. Depuração que exige um trabalho permanente, como a confecção demorada de um belo afresco, com suas delicadezas não reveladas explicitamente, que exigem do apreciador o tempo da percepção, da contemplação, da audição repetida, extensa, que vai fazendo aparecer camadas de sentido, tramas sonoras, jogos entre palavras e sílabas, movimentações lancinantes do som em intervalos mínimos de silêncio. Da lapidação sonora e orientação clara da narrativa em “Homem na estrada” para a explosão de narrativas dispersas que se agrupam como estilhaços, sem uma ordem prévia, nem um molde claro, de “Finado Neguin”, a sua obra vai se constituindo fibra a fibra, de ponta a ponta. “Amor distante” e “Boa noite SP”, já sob uma ambiência sonora mais orgânica, misturam ordenações narrativas extensas com variações dispersas de palavras e sons.

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Além do contexto e da estrutura formal, é interessante delimitar também o quadro de referência cultural e artístico do Racionais Mcs e de Mano Brown. Ele é bem diferente do quadro de referência dos artistas da MPB culta da década de 1960. Os principais artistas, intelectuais e lideranças políticas são outros como Malcolm X, Mariguela, 2Pac, Jorge Ben, Guilherme Arantes, Spike Lee, Tim Maia, Arlindo Cruz, Cassiano, geram uma nova ambiência estética, cuja força vem de um outro lugar e é nela que reside a sua sofisticação, complexidade, densidade, inteligência e potência. Ela criou uma linhagem própria, com seus mitos, suas legendas e selecionou, de forma consciente, as suas afinidades eletivas.

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Como artista-pensador Mano Brown também se aproxima de pensadores do Brasil, ou melhor, da sociedade brasileira na sua dimensão concreta, imanente, terra-a-terra. Há na sua poética e nas entrevistas que vêm fazendo constantemente uma preocupação e um senso de responsabilidade sobre o destino do país, em especial, das classes trabalhadoras precarizadas. Longe do universalismo postiço da pequena-burguesia culta, que se acredita detentora de um ethos universal, Mano Brown traz para o campo do pensamento crítico uma outra dimensão, mais complexa e real. Não há mistificação pequeno-burguesa. Não há esteticismo superficial, tentando se passar por alta cultura de vanguarda. Há um pensamento afiado que enovela afirmações e negações, e não nega a dúvida.

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A música popular brasileira bambeia, desde que a canção é canção, entre dois polos. O primeiro é o da contradição sem conflitos, que resulta numa lógica de conciliação de classes; o segundo é o da explicitação dos conflitos, que conduz a uma negação de qualquer forma de conciliação, abre uma fenda e traz à tona singularidades inconciliáveis. A canção e o pensamento de Mano Brown estão no segundo polo. E avançam, arrastando o primeiro. Boogie Naipe, seu álbum solo, é a ponte que sintetiza provisoriamente os dois polos. Cores e valores abre um novo caminho, radicalmente experimental, com sílabas quebradas, traços sonoros, vozes anônimas, como sátiros delirantes vagando no crepúsculo do Ocidente. As figurações que se constroem na sua poética em geral são ameaçadoras e indefinidas, de feições nietzschianas: “Talvez eu seja um sádico, anjo ou mágico, juiz ou réu, um bandido do céu, malandro ou otário, padre sanguinário, franco atirador se for necessário, revolucionário, insano, ou marginal, antigo e moderno, imortal, fronteira do céu com inferno.”

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Na origem não era o samba. Na origem era a multiplicidade de gêneros e subgêneros. Não há linha evolutiva, nunca houve. Há linhagens paralelas que, ora convergem entre si, ora divergem radicalmente. Quando divergem, se sobrepõem. Quando convergem animam modulações. O tropicalismo foi uma procura por convergência, com um centro balizador: o próprio tropicalismo. Transformou-se rapidamente num parâmetro a um só tempo importante, inevitável, mas também profundamente dogmático e datado. O Clube da Esquina realizou a divergência como convergência e, por isso, superou o tropicalismo. Belchior trouxe à canção mais inventiva a materialidade e a beleza de veludo da vida real, muito além dos delírios e virtuosismos autorreferentes das vanguardas pequeno-burguesas. O rapaz latino-americano da sua canção é o mesmo da canção “Capítulo 4 versículo 3”: Sons, palavras são navalhas.ALira paulistana foi uma afirmação da divergência radical, por isso gerou inovações formais profundas e abriu uma fenda. Clara Crocodilo e Black Navalha descendo a ladeira da memória até o vale do anhangabaú. O Hip Hop do Racionais MCs ampliou essa fenda.

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Existe uma fortuna crítica sobre os Racionas Mcs. Um tanto irregular, com certas exceções. Entre elas, podemos destacar aqui o trabalho de Walter Garcia e de Francisco Bosco. No primeiro, a canção do Racionais representa não só um apuro formal com o uso complexo de figuras de linguagem, como na alta poesia, ou a intenção de apresentar uma perspectiva política, social e estético-formal do jovem negro das periferias; mas sobretudo uma visão estruturante da violência – em diversos níveis – como expressão da sociedade brasileira, com alto nível de reflexividade e articulação, e a capacidade de aliar tema e expressão. No segundo, o caminho é praticamente o mesmo: o Racionais representa o último grande acontecimento da cultura brasileira na medida em que expressa a voz de trovão anticordial que coloca no primeiro plano da sua sofisticada poética a negatividade da experiência estética e política da sociedade brasileira.


* Marcos Lacerda é doutor em Sociologia, foi diretor do Centro de Música da Funarte e publicou em livro o volume de “Música” da coleção Ensaios brasileiros contemporâneos, uma antologia com alguns dos melhores ensaios sobre canção e música no Brasil, com autores como Roberto Schwarz, José Miguel Wisnik, Luiz Tatit e Cacá Machado, entre outros.

Referências

BOSCO, Francisco. A voz e a música do Racionais MCS. Revista Cult: Dossiê 25 anos de Racionais MCs. No 192, 2014.

GARCIA, Walter. “Ouvindo Racionais MC’s”. Teresa, revista de Literatura Brasileira. No 4/5. São Paulo, 2004. p. 166-180.

GARCIA, Walter. “Diário de um detento’: uma interpretação”. In: NESTROVSKI, A. (org). Lendo música. São Paulo: Publifolha, 2007. p. 179-216.

GARCIA, Walter. “Elementos para a crítica da estética do Racionais MC’S (1990-2006)”. Ideias, 7, 2013, p. 81-110.

KEHL, Maria Rita. “A fratria órfã: o esforço civilizatório do rap na periferia de São Paulo”. In: KEHL. M. R. (org.). Função fraterna. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000. p. 209-244.

KEHL, Maria Rita. “O lamento de Mano Brown”. Reportagem. Ano IV. No 38. Belo Horizonte, nov., 2002. p. 31-32.

Teperman, Ricardo. Se liga no som: as transformações do rap no Brasil. São Paulo: Claro Enigma, 2015.

ZENI, Bruno. “O negro drama do rap: entre a lei do cão e a lei da selva”. Estudos avançados. V. 18. No 50. São Paulo, 2004. p. 225 241.

Referências discográficas

Racionais MC’s. Holocausto urbano. São Paulo: Zimbabwe, 1990.

Racionais MC’s. Escolha seu caminho. São Paulo: Zimbabwe, 1992.

Racionais MC’s. Raio-X do Brasil. São Paulo: Zimbabwe, 1993.

Racionais MC’s. Sobrevivendo no inferno. São Paulo: Cosa Nostra, 1997.

Racionais MC’s. Nada como um dia após outro dia. São Paulo: Cosa Nostra, 2002.

Racionais MC’s. Cores e valores. São Paulo: Cosa Nostra / Boogie Naipe / X-File Records, 2014.

dossiê
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NARRATIVAS NÃO SÃO MENTIRAS

Resumo: O objetivo deste trabalho é problematizar parte do pensamento crítico contemporâneo que tende a qualificar como falsa qualquer narrativa em que haja um procedimento de síntese histórica.  A partir de um mergulho empírico no clássico de Lima Barreto Triste fim de Policarpo Quaresma e da investigação de meu objeto primordial de estudo, que é a Música Popular Brasileira, procuro demonstrar que tal procedimento – quando exercido de modo pouco rigoroso – serve aos que negam o valor cultural das especificidades do desenvolvimento histórico brasileiro, em prol de um pretenso “alto saber universal”. Narrativas não são mentiras; são produção de discursos simbólicos que, quando verdadeiramente amparados em processos sociais legítimos, constroem o peso de um passado real com o qual temos de aprender a lidar.

Palavras-chave: Narrativas; música Popular Brasileira; Lima Barreto; canção; tradição.

Abstract: The objective of this work is to problematize part of the contemporary critical thinking that tends to qualify as false any narrative in which there is a procedure of historical synthesis.  From an empirical digging into the classic of the Brazilian writer Lima Barreto Triste Fim de Policarpo Quaresma and the investigation of my primary object of study, which is the Brazilian popular music, I try to demonstrate that this procedure – when exercised in a very strict way – serves just to encourage those who deny the cultural value of the specificities of Brazilian historical development, in favor of an alleged “high universal knowledge”. Narratives are not lies. They are the production of symbolic discourses that, when truly supported in legitimate social processes, build the weight of a real past which we must learn to cope.

Keywords: Narratives; Brazilian popular music; Lima Barreto; songs; tradition.

A tentativa de implantação da cultura europeia em extenso território, dotado de condições naturais, se não adversas, largamente estranhas à sua tradição milenar, é, nas origens da sociedade brasileira, o fato dominante e mais rico em consequências. Trazendo de países distantes nossas formas de convívio, nossas instituições, nossas ideias, e timbrando em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra. Podemos construir obras excelentes, enriquecer nossa humanidade de aspectos novos e imprevistos, elevar à perfeição o tipo de civilização que representamos: o certo é que todo o fruto de nosso trabalho ou de nossa preguiça parece participar de um sistema de evolução próprio de outro clima e de outra paisagem.
 (Sergio Buarque de Holanda)

Léguas de ser um projeto que eleve à perfeição o tipo de civilização que representamos (se é que representamos alguma fora esta), o processo de desenvolvimento da música popular no Brasil – sobretudo aquele que gira em torno à estranha amálgama a que chamamos canção – provavelmente foi o mais próximo que conseguimos chegar no campo da cultura – ao menos no século XX – de uma “contribuição original”, como diria Caetano Veloso, que enriqueça nossa humanidade de aspectos novos e imprevistos. Embora cada vez menos, apesar da dor, eu vislumbre uma trilha clara para o meu Brasil, tampouco creio que, por causa disso, “devamos tapar o próprio sol com uma peneira rasgada” desconstruindo, seja por vaidade intelectual, seja por necessidade de marcarmos nosso espaço no campo das reflexões críticas, o fato de que a canção no Brasil foi, senão a melhor, uma das melhores, mais contínuas e mais sólidas construções artísticas que conseguimos levar a cabo até hoje, no país.

Se fosse apenas isso, já estaria bom, mas não é. A música popular, seu entorno e seu processo histórico, sobretudo seu desenvolvimento dentro das engrenagens industriais do século XX, pode nos ajudar a entender, um pouco melhor, questões referentes à sociedade brasileira, às formas como interagimos uns com os outros e com as estruturas institucionais, assim como nossas potências, aspirações e fraquezas. Do mesmo modo, a derrocada mercadológica gradativa, intensificada na transição do século XX para o XXI, de um braço da canção – em alguns momentos dominante, todavia sempre presente – que se enxergava (ou melhor, se escutava) como linguagem artística questionadora, sociológica, experimental (sem abrir mão dos privilégios de produto de massa) também é documento vivo para refletirmos sobre o século XXI e a crise dos processos conciliatórios via social democracia que, de forma tácita, sempre pairou sobre as cabeças criadoras e criativas dos artífices da cultura brasileira.

Sei que muitas direções poderiam ser tomadas para refletirmos sobre nós mesmos utilizando como lente a música popular, contudo me aterei especialmente à observação privilegiada de um aspecto que me interessa sobremaneira: as disputas narrativas por um protagonismo simbólico de “representação do nacional”, presente em nossa canção desde antes da fixação do rádio como meio de comunicação de massas. Sem entrar no mérito de qual narrativa possui legitimidade e qual não, quero demonstrar tão somente que esta disputa vem de priscas eras e só abandona a canção em fins do século passado, quando a própria ideia de nacional é violentamente recalcada e reprimida na consciência social coletiva, vindo a tornar-se potência latente no imaginário político, que a ativa e a faz retornar nos tempos atuais sob a égide de preceitos morais extremamente duvidosos.

Assim – ora identificada com regimes autoritários, ora identificada com a resistência e a liberdade de existir enquanto especificidade cultural – a luta pela imagem de símbolo cultural representativo da identidade brasileira (com tudo que isso apresenta de problemático) já é debatida na música popular muito antes da proposição de Sérgio Buarque de Holanda a respeito de uma inadequação entre aquilo que “nas origens da sociedade brasileira” programaticamente aspirávamos a ser e as possibilidades reais, materiais, geográficas daquilo que, de fato, poderíamos ser.

Em Triste fim de Policarpo Quaresma, Lima Barreto nos dá a prova cabal dessa imbricação entre construção da identidade nacional e música popular, viva desde os primórdios da República. Materializada na figura do compositor, cantor e violonista Ricardo Coração dos Outros, personagem documentadamente inspirado no consagrado artista Catulo da Paixão Cearense, as virtudes e contradições de um projeto cultural aos moldes do que mais tarde virá a ser conhecido como nacional-popular são habilmente exploradas pelo escritor, num movimento pendular que inclina-se tanto para o lado de desqualificar a empreitada de Ricardo (problematizando-a quase a ponto de torná-la ridícula), quanto se deixando enredar pelo charme e afeto do músico-artífice (quase a ponto de se deixar cooptar).

No livro de Lima, Coração-dos-Outros é um artista absolutamente apaixonado pelo gênero denominado “Modinha”. O estilo musical, que mobiliza por inteiro a força de seus afetos, impulsiona-o rumo a um ideal claro e transparente: dar forma à alma brasileira ou, nas palavras do Major Policarpo, refletir “a mais genuína expressão da poesia nacional”.  Sarcasmos à parte, não cairei neste artigo na tentação de repetir a operação que – com muito mais perícia e carinho do que a imensa maioria de trabalhos sobre este livro que já me deparei em minhas leituras – o escritor levou a termo: a denúncia do quanto de histriônico existe no recorte do nacional; do tanto de voluntarismo presente no desejo de apontar o autóctone; ou da falta de critérios para julgarmos quando um processo histórico pode definir a solidificação de manifestações artísticas sempre moventes. Prefiro, em vez disso, focar minha atenção na investigação dos processos sociais que legitimam tais narrativas, nas estratégias discursivas que as sustentam e nos argumentos de ordem estética que fundamentam tais escolhas.

Portanto, ao invés de me colocar em contrapelo a essa ou àquela narrativa, desejo investigar de que modo acontecem esses recortes, pois acredito que, boa parte das vezes, dentro do contexto histórico da música popular e da canção, não foi apenas por veleidade oportunista de um punhado de “formadores de opinião” que as narrativas culturais nasceram, cresceram e ganharam fôlego. A bem da verdade, muitas das narrativas sedimentadas na descrição histórica da música popular (por exemplo: a que coloca o choro como uma das matrizes fundadoras da música popular brasileira ou atribui ao samba a capacidade de “encarnar” o Brasil urbano-popular) recuperam processos históricos reais, profundos e legítimos, cuja deslegitimação, embora em um primeiro momento possa ter parecido democratizante, quando não vem acompanhada de rigor histórico, serve apenas para emprestar fôlego a um elã universalizante e conservador, para quem toda especificidade do desenvolvimento cultural e artístico do Brasil não passaria de um delírio sociológico (ou pior, um recorte folclorista), cujo objetivo precípuo seria, em última análise, disfarçar nossa suposta mediocridade perante o concerto das nações.

Obviamente, não estou sustentando aqui que qualquer revisão histórica está eivada de intenções imperialistas (ou fascistas), mas afirmo sim que o revisionismo histórico baseado somente em voluntarismos, opiniões de gosto ou em um desejo mal disfarçado de criar um contracampo no qual o acadêmico contracampista assoma-se como figura de relevo serve aos piores interesses daqueles que, diferentemente de Sérgio Buarque de Holanda, parecem somente desejar “participar de um sistema de evolução próprio de outro clima e de outra paisagem”. Dito de outro modo, o que defendo sem tergiversação é que o ato de denunciar as arbitrariedades de tais narrativas sem apontar suas fragilidades – escorando-se tão somente no fato de tais narrativas haverem sido inventadas, como se alguma narrativa fundadora aqui ou em alhures não fosse uma construção social – é uma forma farsesca de transformar em mentira algo que, na medida do truísmo humano (baseado em evidências históricas impossíveis de serem provadas cientificamente), mostra-se verdadeiro. O que ocorre na realidade é que muitos dos acontecimentos históricos que se fixaram como narrativa na música popular brasileira não pagam tributo a uma operação metafísica que possa ser explicada pela remissão abstrata a algum marco fundador universal (como acontece em inúmeros discursos filosóficos e nos discursos artísticos ligados ao conceito fascista de “alta cultura”), eles são evidências de um embate de forças e vetores oriundos de um processo histórico ativo de sujeitos sociais os quais, mesmo em condição subalternizada, foram capazes de agenciar socialmente suas manifestações e fazê-las valer como símbolo de uma nação, seja pela sua força estética, seja pela resiliência combativa com que moldaram suas inserções culturais. Por certo que tais vitórias foram moldadas com alianças, cooptações, sincretismos e todas as modalidades estratégicas que constituem qualquer movimento político (mesmo que cultural), mas o fato é que tais empreitadas – contínuas e por vezes heroicas – acabaram por sedimentar no tecido social aquela costura inconsútil que, por falta de uma palavra melhor, chamamos de tradição.

Ao me colocar claramente em favor daqueles que reivindicam certos marcos fundadores na tradição da música brasileira, não nego que tais marcos fundadores constituam narrativas específicas criadas por determinados grupos sociais; o que rechaço é que se desautorize tais narrativas pelo simples fato de serem narrativas, como se qualquer atribuição de sentido, mesmo embasada no estudo de longos períodos de desenvolvimento histórico, fosse em si uma desonestidade intelectual. Defendo exatamente o oposto: há um alto grau de desonestidade intelectual em muitos discursos retóricos que, aparentemente, pretendem desconstruir narrativas embasadas em dinâmicas coletivas reais, a partir do argumento falacioso de que são discursos inventados: são discursos inventados apenas na medida em que qualquer discurso é uma construção; contudo, para vários desses mesmos acusadores basta haver um deslocamento espacial e geográfico (e passarmos a falar de Europa ou mesmo dos Estados Unidos) para ninguém duvidar de premissas como as de que o Blues e o Jazz são marcos fundadores do ethos musical norte-americano ou que certas modalidades de música de orquestra representam pilares artísticos próprios da cultura alemã, francesa, russa etc.

Bem aqui neste ponto, gostaria de propor uma digressão do debate teórico puramente conceitual para retornar ao mergulho empírico no clássico de Lima Barreto Triste fim de Policarpo Quaresma. Minha insistência no reexame dessa obra, escrita no início do século passado, mas cuja trama se desenrola no final do retrasado (no período seguinte à proclamação da República), deve-se ao fato de que já estavam colocadas ali, em formato de romance, muitas das questões que ainda hoje debatemos nas humanidades, o que leva a supor que, já em fins do século XIX, havia uma pulsante reflexão, ao menos em determinados setores da sociedade, a respeito do valor ou desvalia da ideia de brasilidade, identidade nacional, cultura local, música popular, cultura brasileira etc. Tal inferência denota, por conseguinte, que os espaços de poder concernentes a tais narrativas também já se encontravam em disputa. Daí, serem tantos os trechos do livro a demonstrar que o nacional-simbólico e a música popular já andavam de braços dados por esta época.

Para fins de exemplificação, começarei amalgamando alguns diálogos em que a importância da música popular na formação cultural do Brasil é reconhecida tanto pelos personagens principais (embora, por vezes, com distanciamento irônico do narrador), quanto questionadas pelos secundários. No exemplo inicial, vemos Adelaide, irmã do major Quaresma, questionando-o em razão de sua decisão de tomar lições de violão, o que, na visão dela, caracterizaria uma conduta moral duvidável. Em seguida, temos a resposta do major que, refutando tal acusação, defenderá a importância do instrumento e da modinha ancorando-se para tanto em seus valores nacionalistas:

– Policarpo, você precisa tomar juízo. Um homem de idade, com posição, respeitável, como você é, andar metido com esse seresteiro, um quase capadócio – não é bonito!

– É preconceito supor-se que todo homem que toca violão é um desclassificado. A modinha é a mais genuína expressão da poesia nacional e o violão é o instrumento que ela pede. Nós é que temos abandonado o gênero, mas ele já esteve em honra, em Lisboa, no século passado, com o Padre Caldas que teve um auditório de fidalgas. Beckford, um inglês, muito o elogia (grifos nossos) (Barreto, 1911, p. 11-12).

O trecho acima é uma condensação das questões fundamentais apresentadas nesse texto; explico por quê. Primeiramente, Policarpo associa um gênero de música, a modinha, ao conceito de “genuinidade”, que difere um pouco do conceito de “autenticidade”, pois enquanto autenticidade está ligada a ideia de originalidade – algo que é único, singular, raro – “genuinidade” aproxima-se da ideia de “tradição” – algo que, por meio de um processo de maturação social e cultural, passa a reunir os atributos necessários para simbolizar no imaginário uma projeção que guarda relação direta com o real. Embora ambas tragam em si a vontade de definir uma verdade objetiva, a diferença principal consiste no fato de que dizer que algo é genuíno implica necessariamente justificar historicamente o porquê. E é exatamente por essa razão que o major, logo em seguida a sua proposição a respeito do caráter genuíno da modinha, fará uma curta afirmação que traz em si o anteparo de uma pesquisa musicológica, etnográfica ou coisa que o valha. Domingos Caldas Barbosa, o “Padre Caldas”, foi de fato um personagem histórico do século XVIII. Cantor de modinhas, empunhava com sua viola de arame, trovas improvisadas que aproximavam o lundu da moda portuguesa e mesmo fundiam-nas, numa amálgama que foi muito apreciada pela corte portuguesa. Filho de um branco português com uma negra angolana, possuía formação acadêmica, tendo se sagrado mestre de Artes no Colégio dos Jesuítas, no Rio de Janeiro, e posteriormente mestre em Leis e Cânones pela Universidade de Coimbra. Boêmio inveterado gozou de vasta popularidade nas terras lusitanas, ajudando a disseminar o gênero em variadas camadas sociais, tornando-se, pois, o primeiro artista brasileiro a alcançar fama internacional e, ao mesmo tempo, um artífice inconteste e documento vivo do poder da tal gaia-ciência da canção de que nos fala José Miguel Wisnik, em seu livro Sem receita: ensaios e canções.

Dito de outro modo, Policarpo não escolhe o gênero que lhe dá na veneta para designar como genuíno: escolhe a historicizada, antropofagicizada e longeva modinha. O personagem escolhe como seu arquétipo de brasilidade um tipo de música que, nas palavras de Mozart do Araújo, deixou “aos poucos a luz dos candelabros, para se expandir sob o céu das noites enluaradas. E desprezava o contraponto do cravo, pelo contracanto dos baixos melódicos dos violões seresteiros”. Se pensarmos que esse “aos poucos” foi um período de dois séculos, durante o qual a modinha – que recebe esse nome, aliás, na Bahia – conseguiu, em meio a tantas influências (a moda portuguesa e o lundu principalmente, mas também a ópera italiana e até a valsa) se estabilizar como gênero; concluiremos que não há nada de absurdo, aleatório ou arbitrário na reivindicação de Quaresma. O que parece haver, já naquele momento, é uma disputa pela narratividade mais adequada a este ou aquele projeto de Brasil, que precisará, exatamente como estratégia de poder, deslegitimar outras narrativas para então substituí-las no campo das ideias. Assim, se há alguma contradição a ser apontada no pensamento de Policarpo não é certamente o recorte que ele faz da modinha como um gênero nacional, e sim sua hesitação em aceitar o valor estético da modinha em sua especificidade, sem precisar recorrer a “valores pretensamente universais” para legitimá-la. Senão, vejamos:

Quaresma estivera muito tempo a meditar qual seria a expressão poético-musical característica da alma nacional. Consultou historiadores, cronistas e filósofos e adquiriu certeza que era a modinha acompanhada pelo violão. Seguro dessa verdade, não teve dúvidas: tratou de aprender o instrumento genuinamente brasileiro e entrar nos segredos da modinha. Estava nisso tudo a quo, mas procurou saber quem era o primeiro executor e cantor da cidade e tomou lições com ele. O seu fim era disciplinar a modinha e tirar dela um forte motivo original de arte (grifos nossos) (Barreto, 1911, p. 31).

Aqui sim, vemos um Quaresma colonizado (talvez um Lima colonizado?) que nos remete à citação de Sérgio Buarque de Holanda, na epígrafe deste trabalho. Disciplinar a modinha não seria, pois, aplicá-la no positivismo branco de Comte, tão em voga em fins do século XIX, subtraindo-a de seu componente mais negro, “deslundunizando-a”, tornando-a mais branca, mais europeia novamente? Será que neste momento nosso herói nacionalista não está exatamente querendo adequar o gênero, que se abrasileirou na fusão de modalidades musicais díspares, em “um forte motivo original de arte” (leia-se arte europeia)? Mais uma vez meu pensamento reafirma uma das forças propulsoras deste trabalho: a atitude contraditória do major reafirma a potência de verdade da narrativa histórica que reconhece a modinha como um gênero nacional, um marco fundador, pois é justamente porque nos sentimos uns “desterrados em nossa terra”, que não conseguimos aceitar quando algo que fazemos coletivamente, ao longo do tempo, adquire uma singularidade que parece não “participar de um sistema de evolução próprio de outro clima e de outra paisagem”.

Ao me propor a escrever o texto que ora redijo, afastando-me um pouco do meu mote de estudo principal que gira sobretudo e com imenso prazer em torno da voz, da vocalidade, da interface música e palavra etc. é porque me incomoda sobremaneira o fato de ainda termos dificuldade para aceitar a responsabilidade de convivermos com um passado histórico, uma tradição. Muitas vezes me deparo com textos que, sem uma pesquisa robusta ou um argumento concreto, desejam, simplesmente por veleidade do autor (ou por uma paradoxal iconoclastia conservadora) derrubar, desconstruir, deslegitimar processos que representaram no plano individual lutas pessoais de vida ou morte; nas dinâmicas coletivas agenciamentos extremamente custosos; no contexto de um país racista como somos dificuldades transpostas a duras penas. O Choro Negro (saravá Paulinho da Viola) do maestro Anacleto de Medeiros, do virtuoso Irineu de Almeida, do mestre dos mestres Pixinguinha não pode, de uma hora para outra, numa canetada e sem maiores explicações, ser transformada em música branca por brancos que não gostam de fixar raízes, porque se sentem aprisionados por dinâmicas sociais que lhes ultrapassam. Do mesmo modo, o samba como identidade nacional não deve virar, somente em razão de uma autoadulação intelectual, um projeto modernista, abraçado politicamente por Getúlio Vargas. O que proponho ao longo deste texto é uma operação intelectual inversa: pensarmos se não foi a negritude do choro que domesticou a música branca. Se não foi a força estética do samba e a capacidade de seus artífices de fazerem valer suas estratégias de inserção que motivaram os modernistas e intelectuais a posteriormente escolher o samba como objeto privilegiado de seus projetos de construção de Brasil.

Ao contrário do que possa parecer, não estou discutindo essas coisas por achar que devamos andar por aí “cultivando tradição embalsamada”, como diria Tom Zé. A razão pela qual me remonto ao período-chave do início da República e do século XX é que nesta janela de duas décadas as contradições de se inventar um país pós-colonial e periférico aparecem com toda força. O livro de Lima é um meta-livro no sentido de, ainda no olho do furacão e em meio ao processo de construção de uma identidade nacional, lançar-se em uma reflexão ferina sobre o próprio processo em andamento. Contudo, a ambiguidade reflexiva presente no livro foi completamente abandonada no imaginário de nós leitores: Triste fim de Policarpo Quaresma aparece sempre apenas em sua primeira faceta, como crítica a um nacionalismo ingênuo (o que de fato é) mas nunca em sua segunda faceta, como denúncia das mazelas, fraqueza e desmandos que impedem, no plano do real, a sólida fixação de uma imagem simbólica de país com a qual possamos lidar de maneira menos traumática e mais bem resolvida.

Daí a razão de ser deste artigo, sua principal motivação: contribuir para um debate acerca dessa dificuldade do intelectual brasileiro (e quiçá também do não intelectual) em se olhar no espelho da história e ser capaz de lidar com o próprio reflexo. Tal dificuldade acaba provocando o desejo incontrolável, maníaco e incessante de trocar (ou quebrar) o vidro do espelho apenas para não ter de lidar com a imagem refletida. Seria desnecessário dizer, mas digo, que a imagem no espelho não é o verdadeiro ser refletido; porém tampouco a quebra do espelho (ou sua troca por outro menos acurado) resolverá o incômodo mental do sujeito que, narciso às avessas, não suporta perceber-se a si enquanto imagem (ainda que projeção), porque não tolera a dinâmica do real que o antecede.

Importa-me, pois, esse debate, embora não seja o meu foco principal nos estudos da canção – como pontuei acima, meu projeto principal é um estudo sincrônico das vocalidades na canção, seja no Brasil ou em qualquer outro país em que os atributos vocais me chamem atenção –, porque percebo que entramos definitivamente no século XXI e no terceiro milênio (não apenas cronologicamente mas de modo definitivo e irrevogável nas formas de se relacionar, consumir e se dispor do corpo, no mundo do trabalho e do lazer). No campo da cultura, após quase duas décadas de muito revisionismo, histeria retrô e uma quase obsessão por passar a limpo o século XX (materializada de muitas maneiras no campo cultural), parece-me que as experiências com as novas formas de sociabilidade (não tão novas para o tempo tecnológico, mas novas do ponto de vista histórico) finalmente estão se impondo de modo definitivo, inviabilizando antigos paradigmas para construir outros (nem de todo bons, nem de todo maus, contudo, diversos).

Hoje, as informações culturais encontram-se na web à disposição de quem delas quiser dispor, em quantidade quase ilimitada, mas a forma de procurá-las na rede mundial e o interesse que despertam (e, portanto, a relevância que possuem) não são simplesmente franqueadas a um ser-humano-tábula-rasa, que faz escolhas livres e conscientes, a partir de um grande cardápio de bens culturais que lhe é oferecido. A coisa é bem mais complexa. Mais uma vez as narrativas disputam espaços de forma estratégica impulsionando conteúdos simbólicos que representam determinadas matrizes culturais mais do que outras e não me parece justo nem honesto afirmar que há um equilíbrio de culturas na produção e difusão de tais conteúdos (isso para não entrar no debate acerca das origens nacionais das plataformas digitais mais acessadas do mundo). A influência dos algoritmos sobre as escolhas estéticas e os modos de transitar na rede já são parte vital de nossa vida cotidiana e ninguém mais que seja minimamente informado pode negar sua importância ou apostar em uma suposta aleatoriedade/neutralidade digital. A aceleração do fluxo de informações e seus novos regimes de distribuição são parte de um enorme processo de mudanças sociais genericamente (e um tanto esmaecidamente) denominado globalização, que interfere tanto nas relações individuais quanto nas construções culturais (o que implica dizer que estamos a reconstruir de maneira radical a nossa imagem simbólica para trás e para frente). Nesse contexto, em que as referências culturais tradicionais, sobretudo as periféricas se enfraquecem e se diluem, perdidas num mar de informações que, longe de boiar no éden, são agenciadas algoritmicamente por superempresas como a Google, o Facebook, a Amazon etc., a especificidade cultural da canção popular no Brasil e o manancial de conhecimento (e sedução) que elas evocam/provocam representam uma possibilidade (sutil mas existente) de desafinar o cybercoro dos neocontentes, matizando outras paisagens com tons randomizados que não fazem parte da palheta das cores eleitas.

Assim, do mesmo modo que está “léguas de ser um projeto que eleve à perfeição o tipo de civilização que representamos (se é que representamos alguma fora esta)”, este exemplo multifacetado de desenvolvimento cultural repleto de especificidades, que alcunhamos com o signo “música popular brasileira”, também está longe de ser um projeto cultural irrelevante, ou mesmo tão somente um patrimônio nacional confinado ao século XX, que possamos seguir brincando de desconstruir, relativizar e em última instância “deixar pra lá”, como se nenhuma contribuição oferecesse para a cultura mundial.  A música popular brasileira é tanto uma matriz de conhecimentos individuais agenciados social e economicamente, quanto a contribuição cultural de uma miríade de artistas, pensadores e público para um projeto coletivo de país.

Pixinguinha, João da Baiana e Donga. Foto de Alberto Jacob Fonte: https://radiobatuta.com.br/programa/donga-e-joao-da-baiana/

Elaborada em sua concretude pelos músicos, ouvintes, produtores, empresários que, mesmo em constante embate e tensão, conseguiram alcançar um ponto de equilíbrio que tornou possível, cerca de 40 anos apenas após a abolição da escravatura no Brasil, viabilizar um complexo sistema de comunicação e arte que reuniu indústria fonográfica e radiodifusão, a música popular brasileira esteve, continuamente e sem jamais perder sua força, atrelada, durante todo o desenvolvimento da república, à ideia de construção de uma identidade (ou de identidades) nacional(ais) repleta(s) de especificidade.

Empreendedores como Frederico Figner, fundador das casas Edison (loja de venda de discos, partituras, artigos eletrônicos e primeira gravadora da América Latina) e mais tarde da Odeon, primeira fábrica de discos do país, deram o pontapé inicial para o surgimento do negócio fonográfico ainda na primeira década do século XX. Se pensarmos que o Brasil daquela época não era mais que um grande exportador de café e que o fonógrafo havia sido patenteado por Thomas Edison somente em 1878, perceberemos que não era uma consequência óbvia de nosso desenvolvimento econômico darmos início a um processo industrial de veiculação musical. É mais curioso ainda, se atentamos para o fato de que que as primeiras gravações fonográficas no Brasil optaram pela produção local, não apenas com músicos locais (o que por si só poderia indicar mais falta de mão-de-obra qualificada do que interesse em privilegiar o autóctone), mas com composições locais. O que, para leitores desinformados pode parecer um mero acidente, em meu entendimento demonstra o “aproveitamento ótimo” de um emaranhado cultural que contava com uma teia já bastante avançada de músicos profissionais e semiprofissionais; e de um público que os prestigiava nos cafés, saraus, festas populares e concertos.

Conquanto eivada de contradições, apropriações e disputas, podemos, ainda assim, perceber na própria estrutura do mercado musical brasileiro e seu desenvolvimento uma porosidade que, mesmo léguas de ser justa e irrestrita, foi durante décadas mais permeável às classes populares do que a imensa outra gama de atividades econômicas (se citarmos as culturais então, como o cinema, a literatura, as artes plásticas nem se fala) que se desenvolveram no Brasil. Desde muito cedo essa porosidade foi percebida por músicos populares e artistas como Donga, João da Baiana, Pixinguinha e uma boa parte dos sambistas e chorões pertencentes às classes média-baixa e classes pobres (mas não miseráveis) que se tornaram sujeitos ativos, como percebido por Muniz Sodré, de uma movimentação estratégica (se é que não poderíamos chamar de movimento) de inserção no mercado nascente. A anedota verídica envolvendo o pandeiro de João da Baiana (autografado pelo senador-general Pinheiro Machado, evitando assim o confisco do instrumento nas constantes batidas policiais), a batalha em torno da autoria de “Pelo telefone”, a busca incessante de Pixinguinha e de muitos outros compositores e arranjadores em alcançar formatos de regionais e formas de arranjo que se coadunassem com o espaço radiofônico mostram que o campo de trabalho para a música popular permitiu, em dado momento, que grupos subalternizados agenciassem uma ocupação de espaço, até então inédita, no tecido cultural brasileiro.

Sem querer me arvorar (mesmo porque seria ridículo) a dar uma “palavra final” sobre um processo histórico-cultural complexo e, portanto, sempre vulnerável à construção de narrativas múltiplas, ponho minha “cara a tapa”, como se diz popularmente, para desafiar os pares que ainda se dedicam ao tema a se deixar transpassar pelo afeto e pela vontade de construir narrativas responsáveis no campo dos estudos da canção, que sirvam de inspiração para as novas gerações.  Não há motivo para taparmos o próprio sol com uma peneira rasgada: a canção no Brasil foi, digo e repito, senão a melhor, uma das melhores, mais contínuas e mais sólidas construções artísticas que conseguimos levar a cabo até hoje. E continua a ser, em pleno século XXI, uma contribuição original (e de fôlego) ao caótico (des)concerto das nações.


* Formado em Comunicação pela UFRJ, Gustavo Sant’Anna (Mouro) é cancionista e doutorando em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela PUC-Rio. Mestre em Letras, também pela PUC-Rio, sua dissertação de mestrado A insurreição da voz tem lançamento em formato livro previsto para março de 2019. Em sua pesquisa, o autor/compositor investiga os elementos não-lexicais, todavia produtores de sentido dentro do campo da canção.

Referências

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WISNIK, José Miguel. Sem receita. Ensaios e canções. São Paulo: Publifolha, 2004.

dossiê
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ARNALDO ANTUNES, CAZUZA E O ROCK NO BRASIL

Resumo: Este artigo[1] tem como intuito analisar como duas figuras paradigmáticas do rock no Brasil – Cazuza e Arnaldo Antunes – constroem suas identidades artísticas em consonância com certas categorias simbólicas do assim chamado “rock brasileiro”. Tendo como pano de fundo a discussão da canção popular em contexto brasileiro pós-moderno, pretendemos observar como, no caso do “rock brasileiro”, também a canção popular tende a articular e mediar as culturas letrada e oral em uma perspectiva crítica de assimilação e reflexão da arte e da cultura.

Palavras-chave: Antropologia; música; arte; Cazuza; Arnaldo Antunes.

Abstract: This study aims to analize how two paradigmatic rock-and-roll Brazilian characters – Cazuza and Arnaldo Antunes – have built their artistic identities based on some symbolic categories of the “Brazilian rock”. Relating this “brazilian rock”, we also intend to observe how the urban popular songs tend to articulate and mediate literary and oral cultures in a critical perspective of assimilation and reflection of art and culture.

Keywords: Anthropology, music; art; Cazuza; Arnaldo Antunes.

O rock and roll não é somente um estilo de música, como também uma forma ativa que solicita de seus ouvintes certas formas de ser, estar e enxergar o mundo. Catarse urbana a expulsar, irremediavelmente, toda previsibilidade cotidiana, o rock transmuta seus berros primitivos em uma língua própria compartilhada por alguma multidão eletrificada. Por ser um gênero musical urbano e um ritmo universal, em sua construção, o rock trabalha com o amálgama de ritmos, gêneros e meios. Nesse sentido, muito da miscelânea do rock and roll vem da miscigenação do blues, das músicas de trabalho (a kind of blue), do beebop, do hardbop, do cooljazz, do rockabilly até chegar a esta música urbana capaz de expandir e ampliar novos elementos numa forma nova de perspectivar o mundo. O folclore urbano do rock se comunica com as cidades e suas tecnologias modernas, impondo sua estranheza em qualquer lugar por onde ressoe; nos espaços por onde os homens dialogam com os deuses e constroem seus destinos.

Devido ao seu alcance mundial, gerado “quase sem origem” e conquistado através de uma gíria universal, o rock pode ser referido como uma música do planeta Terra. Nesse sentido, Augusto de Campos (1968, p. 142) realça a intercomunicabilidade universal do rock and roll como a representação de um movimento artístico internacional. Como exemplo de tal incorporação, Campos afirma que, no caso do rock, foram os Beatles os primeiros a realizar a fusão entre o erudito e o popular, sendo que, ao mesmo tempo em que estavam nos meios de massa, também se comunicavam com músicos de vanguarda (como John Cage e Stockhausen), através das orquestrações de Georges Martin, unindo produção e consumo, laboratório e auditório, numa espécie própria de produssumo. Corroborando com leitura tal, o rock, fenômeno cosmopolita e mundial, deveria ser incorporado de maneira crítica à cultura brasileira, de modo estratégico contra a estreiteza dos exclusivismos nacionais.

Em vista disso, possivelmente uma leitura mais potencializadora do rock seja a que consiga vislumbrar nesta música um campo de trocas simbólicas não cristalizáveis por representações monológicas. Partindo de tal perspectiva crítica, este artigo tem como objeto de estudo a análise de certas narrativas remetentes ao universo brasileiro do rock and roll no século XX. Tendo como pano de fundo a discussão da canção popular em contexto brasileiro moderno e pós-moderno, pretendemos analisar certas narrativas paradigmáticas do rock and roll no Brasil até os anos de 1980. Sendo uma particularidade brasileira o amálgama entre alta e baixa culturas, no caso do rock brasileiro, também a canção popular tende a articular e mediar culturas letrada e oral.

Com suas blue notes, o rock and roll surge do blues rural adaptado pelas guitarras das cidades, fruto da decadência da canção popular norte-americana dos anos de 1950. O termo “rock and roll” foi utilizado pela primeira vez no blues “My baby she rocks me with a steady roll”, cantada por Big Joe Turner em 1922. Todavia, somente nomeado como gênero em 1952 (pelo disc-jóquei Alan Freed, em um programa radiofônico de Cleveland), o rock and roll principalmente se popularizou a partir de Elvis Presley que, com sua dança dionisíaca, sua voz negra e sua aparência branca, reuniu em suas primeiras apresentações o rythm and blues e o country and western, consolidando midiaticamente o estilo musical. Em sua primeira aparição televisiva, os pés e quadris de Elvis chocaram tanto o puritanismo norte-americano que as câmeras só focalizaram a parte de cima de seu corpo durante apresentação no programa de auditório de Ed Sulivan, em Nova Iorque, no dia 9 de setembro de 1956.

Tendo sido a trilha sonora da contracultura, o rock and roll dialoga com um novo tipo de dicção universal. Como observa Eric Hobsbawn (1996, p. 15), uma distinção crucial entre o jazz e o rock and roll é que o rock jamais foi uma música de minorias. Pelo seu caráter potencialmente internacional, ao ser assimilado por cada contexto cultural específico, o universo simbólico do rock tem por predisposição o diálogo entre meios culturais diversos. Multiplicado pela oralidade do blues, o rock pode ser lido como uma poética apropriativa de identidades que se fixam e se desfazem:

Rather than a cycle of authentic and coopted music, rock and roll exists as a fractured unity within differences of authenticity and cooptation that are defined in the construction of affective alliances and networks of affiliation. These alliances are always multiple and contradictory. […]. the history of rock and roll is read as a cycle of cooptation and renaissance in which rock and roll constantly protests against its own cooptation (Grossberg, 1997, p. 486-493).

Tendo isso em vista, levando em conta as múltiplas variações do termo rock and roll apontadas por Lawrence Grossberg (1997), parece inverossímil discorrer sobre uma sóideologia do rock. Mais auspicioso alude ser o caminho indicado por Júlio Barroso (1991) ao narrar o rock como uma música capaz de reunir fragmentos dispersos do cotidiano, antropofagizando-os em novas estratégias de reinvenção da liberdade:

Matriz da cultura e da arte, do samba e do rock, a árvore África não cessa de dar frutos. Lá se faz, hoje, um som violento e único, multifacetado e uno, raiz eterna projetada no futuro. […] Elvis, na verdade, era uma encarnação televisiva de Chuck Berry, que adentrou a sala de jantar da cultura ocidental, com seu gingado insolente que mudou os costumes de todas as futuras gerações. […] Suas raízes cada vez mais fincadas no solo compelem a humanidade em direção ao espaço interior e o exterior na busca dos arquétipos fundamentais, de onde a cultura viva emana, como um ato de testemunho da eternidade, a arte do agora. […] O rock é uma proposição de liberdade. Ele é a trilha sonora de uma época de mudanças globais, contestação a todo um sistema de valores, etc. Lógico: tudo sobre a década de 70 já foi dito, dez anos nos quais toda a experiência da humanidade foi repensada, da postura do corpo à alimentação, ideologia, religião, ciência. E tudo sobre o saudável signo da antropofagia e seu rebento máximo, o rock (Barroso, 1991, p. 92-135).

No Brasil, Nora Ney foi a primeira intérprete de “Rock around the clock”, mas o primeiro rock composto originalmente em português foi “Rock and roll em Copacabana”, cantado por Cauby Peixoto, em 1957. A seguir, surgiram os irmãos Tony e Celly Campello, com suas versões em português de rocks italianos. Por sua vez, os roqueiros da jovem guarda (também conhecida como iê-iê-iê), liderados por Wanderléia, Erasmo e Roberto Carlos, primeiramente cantaram versões traduzidas do inglês, até começarem a escrever músicas próprias para o gênero, apresentando-as no programa da TV Record com o nome homônimo de Jovem Guarda. Em tal época, as canções jovem-guardistas tratavam de temáticas juvenis. Será somente no fim dos anos 60 que, a partir de Raul Seixas, Os Mutantes e Secos e Molhados, surge uma tradição especificamente roqueira no Brasil. Tais manifestações do rock no Brasil serão potencializadas nos anos de 1980 através de um diálogo ampliado entre a literatura e a música popular. Como observado por Arthur Dapieve (em entrevista que me concedeu em 2004), o rock que se desenvolveu no país ao longo da década de 80 foi catalisador de diversas linguagens – entre elas, marcadamente a literária:

Assim como afirma Cazuza, o rock só deixou de ser subproduto quando outros públicos perceberam que o rock dos anos 80 não era um decalque do rock inglês e americano. Não se tratava de uma música feita por adolescentes inconsequentes, mas sim de um movimento que possuía identidade própria. Quem ouvia Arnaldo Antunes e Renato Russo, podia notar ali um grande interesse pelo trabalho da palavra escrita. Que mesmo sem misturar com samba, este rock era música brasileira, devido às letras em português. […]. O BRock foi um movimento político e intelectual. Essa injeção de intelectualidade permitiu que o rock de qualidade não mais fosse feito isoladamente, como era o caso do Raul Seixas e Mutantes, mas que possuísse uma integridade. Foi excludente de um lado, mas positivo do outro. Positivo porque possuía conteúdo intelectual, como o concretismo de Arnaldo Antunes, as influências beatniks de Cazuza, ou a admiração que Renato Russo possuía por Carlos Drummond. E virou popular ao atingir veiculação nos meios de massa. […]. Quando eu primeiro me utilizei da sigla em matéria, no Jornal do Brasil, não pensava em Mutantes ou Raul Seixas. Mas sim, no rock que começou a ser feito a partir do Júlio Barroso e a Gang 90, e depois com a Blitz. Essas foram as duas bandas que iniciaram o BRock. […]. Quando utilizei esse termo, tinha em mente uma afeição gráfica, em que o BRock significaria: ‘O rock é nosso’. Assim como a Petrobrás possui o slogan: ‘O petróleo é nosso’ (Dapieve apud Cavalcanti, 2010, p. 10).

Para Arthur Dapieve (1995), o rock brasileiro (ou BRock), enquanto movimento estético, terminou no dia da morte de seu maior protagonista, Cazuza:

Cazuza reunia todos os principais traços do roqueiro brasileiro da década de 80, os traços que definiram o próprio movimento […]. O que era então esse tal de BRock personificado em Agenor de Miranda Araújo Neto? Era o reflexo retardado no Brasil menos da música do que da atitude do movimento punk anglo-americano: do-it-yourself, faça-você-mesmo, ainda que não saiba tocar, ainda que não saiba cantar, pois o rock não é virtuoso. Era um novo rock brasileiro, curado da purple-haze psicodélica-progressiva dos anos 70, livre de letras metafóricas e do instrumental state-of-the-art, falando em português claro de coisas comuns ao pessoal de sua própria geração (Dapieve, 1995, p. 195).

Tendo no rock and roll um meio de dinamismo vital e existencial, Cazuza considerava esta expressão musical como um afluente de manifestações culturais de sentido ritualístico e transgressor:

O rock é a ideia da eterna juventude. Quando descobri o rock, descobri também que podia desbundar. O rock foi a maneira de eu me impor às pessoas sem ser o ‘gauche’ […]. O rock para mim não é só música, é atitude mesmo, é o novo! Quer coisa mais nova que o rock? O rock fervilha é uma coisa que nunca pode parar. O rock não é uma lagoa, é um rio. O rock é a vingança dos escravos. É porque não é para ser ouvido, é para ser dançado, é uma coisa tribal (Cazuza apud Araújo, 1997, p. 361).

Por outro lado, para Arnaldo Antunes (outro protagonista do BRock), o rock pode ser lido como uma presentidade que beira as margens do inclassificável:

É muito difícil definir o rock hoje. Qualquer generalização classificatória parece insuficiente. O rock é um rio de muitos afluentes. Heavy rockabilly punk tecno hardcore pop rhythm and blues progressivo new wave psicodélico ye ye ye black metal and roll. Muitos grupos que se formam e/ou se extinguem diariamente. Fusões com reggae funk blues soul samba jazz. Nada disso satisfaz. Só uma coisa permanece e permite que continuemos chamando-o de. Uma coisa que não está no som. Está na sede. O rock tem urgência de agora. Presentidade. Vitalidade que assassina a memória. Por isso é tão difícil catalogar. Dicionarizar. Compartimentar. Ao mesmo tempo em que essa impossibilidade se exibe, sentimos que há uma tradição a não passar impune. Onde o passado vale por manter vivo o eterno presente. Só queremos que se faça uma cultura de rock no Brasil se for assim. Não para sedimentar, mas para clarear. Uma cultura que se mova com a mesma agilidade do seu objeto. […]. Não pelo poder paralisador da história, mas pela diversidade simultânea de seus agoras. Não pelo caminho em linha reta, mas pelo registro de seus desvios e fragmentos. Tentativa de fazer o possível, uma vez que o impossível é responsabilidade do som (Antunes, 2000, p. 40).

Utilizando linguagens heterogêneas, entre elas a roqueira, Arnaldo Antunes e Cazuza atuam como intérpretes que se distanciam de um modelo usual de compositor popular, remetendo à um diálogo intertextual entre poesia e música produzido no Brasil, especialmente a partir do disco-manifesto Tropicália ou Panis et circensis (1968). De modo experimental e difuso, os integrantes da Tropicália eram divergentes à oposição entre o rock e a moderna música popular brasileira, operando em ambas as frentes. Enquanto coletivo programático, o tropicalismo foi enterrado simbolicamente pela banda Os Mutantes no programa televisivo Divino Maravilhoso, da TV Tupi, apresentado por Caetano Veloso e Gilberto Gil, na véspera do natal de 1968. Todavia, seus procedimentos continuaram influenciando certas representações da música popular brasileira e do rock produzidono Brasil.

Como aponta Celso Favaretto (1979, p. 18), o tropicalismo foi responsável por efetuar na cultura brasileira a autonomia da canção, realizando a síntese de música e poesia, relação que vinha se fazendo desde o modernismo, embora raramente conseguida, pois a ênfase recaía ora sobre o texto, ora sobre a melodia. Rompendo com certa noção tradicional de canção, os tropicalistas passaram a incorporar o happening e a performance dentro do formato cancioneiro através da inserção corporal do artista como uma espécie de escultura viva capaz de assumir radicalmente o palco através de máscaras diversas. Por ser inseparavelmente musical e verbal – como não é poema musicado, o texto não pode ser examinado em si, independente da melodia –, a canção tropicalista pode ser referida como uma espécie arquetípica de intertextualidade extrema.

Como observa Santuza Cambraia Naves (2001, p. 51), os tropicalistas levam a intertextualidade – a prática de aludir em suas canções a outros textos poéticos ou musicais – às últimas consequências, transformando-a em fundamento de um projeto estético. Nas letras fragmentadas e polifônicas tropicalistas, a ausência de um discurso principal e linear é substituído por impressões e colagens que filtram o país em fragmentos alegóricos e simultâneos. Com indumentária roqueira, os tropicalistas buscam ressignificar termos como “autêntico” e “nacional”, indo contra uma busca por raízes populares de uma arte militante representada pela sigla MMPB (“Moderna Música Popular Brasileira”).Transitando da paródia ao pastiche, certa atitude tropicalista passa a permear o universo da música popular brasileira desde 1968. Como sugere Luiz Tatit (2007, p. 131), através de uma visão de mundo tropicalista, o modo de ser do cantor e do compositor e sua circunstância de produção passam a ter tanta ou mais importância que a própria canção.

Em paralelo, no âmbito do rock, cada música é irredutível à sua melodia e à sua letra. Potencialmente performático e intertextual, o rock trabalha com amálgamas de estranhamentos, mesclando outras linguagens à sua. Partindo dos Estados Unidos dos anos de 1960, através do folk eletrificado de Bob Dylan, a música popular passa a articular e mediar o erudito e o letrado na cultura de massa. Apropriando-se do nome do poeta gaulês Dylan Thomas, Bob Dylan se inscreve numa tradição trovadoresca de ênfase na palavra cantada e entoada. Nutrindo-se da indústria cultural, ao mesmo tempo em que sorri sobre o cadáver desta, o canto dylanesco pode ser aludido como uma espécie de reconquista da poesia para além dos significados estritos de suas letras. Não por acaso, o poeta beat Lawrence Ferlinghetti tenha certa vez comparado as canções dylanescas com extensas colagens surrealistas (Sounes, 2006, p. 140).

Contra a ideia de um público imparcial e de uma plateia desinteressada, o universo simbólico do rock and roll é marcado por uma premissa basilar de estranhamento ritual. Invariavelmente performativo, o universo roqueiro pode ser aproximado de uma esfera provocativa teatral análoga ao Teatro da Crueldade de Antonin Artaud, como propõe Arnaldo Antunes numa entrevista:

Eu acho que tem uma coisa do Artaud do Teatro da Crueldade de uma certa potência associada a você provocar o público, de certa forma procurar empatia com uma postura invocada, eu acho que o rock and roll tem um pouco a ver com isso. Bob Dylan fez muito isso, tem aquela coisa de ele fazer canções com violão em uma linha mais folk de música de protesto e de repente ele pegou a guitarra, aquilo era uma agressão. Tinha um show dele em que ele tocava metade do show no violão e depois pegava a guitarra e o público antigo que gostava das canções no violão vaiava no meio do show a segunda parte, era uma provocação. […]. Acho que o rock é uma linguagem de muita urgência, muita intensidade… (Abujamra, 2008).

A propósito da ligação entre o rock e o teatro, é relevante observar que Jim Morrison, antes do The Doors, teve formação teatral em sua graduação na UCLA, concluída em 1965. Através de afãs dionisíacos e selvagens, Morrison construiu seu personagem agressivo e libertário dentro do palco através de releituras e reapropriações das adaptações do grupo Living Theatre do Teatro da Crueldade de Antonin Artaud. Sobre a ligação entre o universo da poesia e a linguagem roqueira, sendo a esfera performática que permeia o rock convergente com um teatro artaudiano da crueldade, é interessante observar que significação a crueldadetem para Artaud e como tal termo pode ser relacionado com o universo performático e corpóreo do rock:

Não se trata, nessa Crueldade, nem de sadismo, nem de sangue, pelo menos de modo exclusivo. Não cultivo sistematicamente o horror. A palavra crueldade deve ser considerada num sentido amplo e não no sentido material e rapace que geralmente lhe é atribuído. […]. Do ponto de vista do espírito, a crueldade significa rigor, aplicação e decisão implacáveis, determinação irreversível, absoluta. […]. crueldade não é sinônimo de sangue derramado, de carne martirizada, de inimigo crucificado […]. A crueldade é antes de mais nada lúcida, é uma espécie de direção rígida, submissão à necessidade. Não há crueldade sem consciência, sem uma espécie de consciência aplicada. É a consciência que dá ao exercício de todo ato da vida sua cor de sangue, sua nuance cruel, pois está claro que a vida é sempre a morte de alguém. […]. Uso a palavra crueldade no sentido de apetite de vida, de rigor cósmico e de necessidade implacável, no sentido gnóstico de turbilhão de vida que devora as trevas (Artaud, 2006, p.117-119).

Nesse sentido, em acepção próxima à idealizado por Artaud, é possível pensar numa relação de inevitabilidade performática do rock and roll com certa urgência de mundo. Idealizador da crueldade como técnica teatral, o que Artaud propõe é um tipo de teatro plástico capaz de buscar sua própria magia através da participação ativa do espectador na cena que observa. Diante de desafio tal, Artaud visa construir um teatro primitivo que contenha o drama essencial da linguagem e questione, assim, o lugar poético do homem moderno na realidade que o circunda. Propondo a continuidade entre a vida e o teatro, sua definição vital passa por uma concepção antiformalista capaz de reunir espírito e corpo, exigindo que o homem moderno assuma uma posição de ator, não mais sendo mero objeto de sua cultura. Seguindo perspectiva tal, Arnaldo Antunes aponta a importância de uma simbologia ágil roqueira capaz de por sempre reivindicar novas definições. Tal simbologia pode ser aludida através de Jimi Hendrix colocando fogo em sua guitarra:

O rock (considerado no sentido mais amplo do termo) não é música para ser apenas ouvida. É música associada à dança, cena, atitude, performance, comportamento. Hendrix punha fogo na guitarra. […]. O rock assim como as manifestações artísticas que efetivam a interação de códigos, parece nos remeter, dentro do mundo tecnologizado, a um estado mais primitivo. Como nas tribos, onde a música, associada à dança, cumpre sempre uma função vital-religiosa, curativa, guerreira, de iniciação ou para chamar chuva. Essa inocência já foi perdida (o tempo do homem criou a música para ser ouvida, as artes plásticas para serem vistas, a arte para representar a vida). Mas temos outras. Hendrix punha fogo na guitarra. Esse fogo está solto (Antunes, 2006, p. 46-47).

Tal provocação de Arnaldo Antunes possui referências intertextuais com certa leitura do artista plástico Hélio Oiticica sobre o rock como uma linguagem de seu tempo que, mais do que um gênero musical, pode ser associada à um ritmo de vida e uma forma sempre atual e corpórea de percepção do mundo:

A meu ver só existe rock. Tudo é o ritmo, a música. Eu acho que a música não é uma das artes. A música é a maneira de você ver o mundo, de você abordá-lo. É a única maneira que eu entendo, e isso diz respeito a toda uma fase de descobertas minhas […] o ROCK p. ex. se tornou o mais importante para minha posta em xeque dos problemas-chave da criação […] o ROCK é a síntese planetário-fenomenal dessa descoberta do corpo q se sintetiza no novo conceito de MÚSICA como totalidade-mundo criativa em emergência hoje: JIMI HENDRIX DYLAN e os STONES são mais importantes para a compreensão plástica da criação do q qualquer pintor depois de POLLOCK! (Hollanda, 1980, p. 68).

NÃO SERIA ESSA SÍNTESE MÚSICA TOTALIDADE PLÁSTICA A Q TERIAM CONDUZIDO EXPERIÊNCIAS TÃO DIVERSAS E RADICALMENTE RICAS NA ARTE DA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO QUANTO AS DE MALEVITCH KLEE MONDRIAN BRANCUSI?: e porque é q a experiência de HENDRIX é tão próxima e faz pensar tanto em ARTAUD? (Braga, 2007, p. 193).

De modo análogo ao sugerido por Oiticica, também é possível pensar que o teatro universal do rock and roll visa a sensibilidade fisiológica de seu público. Sendo o rocktão norte-americano quanto africano, é possível pensar numa estranheza selvagem e bárbara que perpassa a simbologia universal roqueira. Se a África pode ser aludida como o berço de toda cultura do rock, a transculturalidade é o seu princípio condutor de aproximação com uma linguagem dimensionada para além das línguas e dos conceitos. Não por força ideológica, mas por razão de vida, para Paul Gilroy (2001), a África pode ser referida como um manancial de ficções, uma figura de linguagem capaz de convocar todos os povos desprivilegiados da terra e todos os malditos do planeta. Partindo da noção de que a música negra não pode ser reduzida a uma comunidade racial imutável, a África de Gilroy é ficcional – disposta como uma questão, mas não uma questão em si – e simbolicamente reconstruída em embate com os mercados das conveniências ontológicas. Entendida não como uma identidade fixa e essencialista, mas, antes, como um conceito sempre em reconstrução, passa a ser possível pensar numa analogia da África distante da imutabilidade de uma essência.

De modo análogo, também o etnógrafo e o poeta surrealista Michel Leiris, em África fantasma (2007 [1934]), produz uma leitura espectral da África como um continente ficcional e fantasma, potencialmente avesso a qualquer território ontológico. Em paralelo, próxima da África de Leris e Gilroy, propomos neste artigo pensar, através de Cazuza e Arnaldo Antunes, numa perspectiva crítica de leitura do rock and roll não como um conceito essencialista, mas, antes, como um novo método de vitalidade sobre a cultura. Nesse sentido, propomos dimensionar o universo simbólico do rock brasileiro como uma espécie própria de bricolagem, ampliando, assim, a discussão proposta por Lawrence Grossberg (1997) ao argumentar que o rock n’ roll em muito se aproxima de uma bricolagem pós-moderna descontínua e fragmentária:

Rock and roll is a particular form of bricolage, a uniquely capitalist and post-modern practice. It functions in a constant play of incorporation and excorporation (both always occurring simultaneously), a contradictory cultural practice… […]. It plays with the very practice that the dominant culture uses to resist its resistance: incorporation and excorporation in a continuous dialectic that reproduces the very boundary of existence. […]. It celebrates the life of the refugee, the immigrant with no roots except those they can construct for themselves at the moment, constructions which will inevitably collapse around them. Rock and roll celebrates play – even despairing play – as the only possibility for survival […]. Both the future and the past appear increasingly irrelevant; history has collapsed into the present. […]. Rock and roll’s resistance – its politics – is neither a direct rejection of the dominant culture nor a utopian negation (fantasy) of structure of power. […].  Rock and roll emerges from and functions within the lives of those generations that have grown up in this post-war, post-modern context. It does not simply represent and respond to the experience of teenagers, not those of a particular class. It is not merely a music of the generation gap. It draws a line through that context by marking one particular historical appearance of the generation gap as a permanent one. […]. Unlike other forms of popular culture, the ‘post-modern politics’ of rock and roll undermines its claims to produce a stable affective formation. Rather, it participates in the production of temporary ‘affective alliances’ which celebrate their own instability (Grossberg, 1997, p. 478-486).

Tendo em vista tal potencialidade crítica do rock and roll como uma forma intrínseca e extrínseca de bricolagem inventiva, é importante dimensionar a etimologia do termo que nos interessa incorporar à esta discussão. O pensamento selvagem do bricoleur foi primeiramente caracterizado por Claude Lévi-Strauss (1989) como aquele que trabalha com a colagem de tradições já existentes. Em confrontação ao engenheiro moderno que articula percepção e conceito de modo a criar a partir de uma nova ideia um novo mundo (qual um demiurgo que erguesse algo a partir de um marco zero), o bricoleur opera com signos não subordinados a um só projeto de base. Como propõe Lévi-Strauss:

…a arte se insere a meio caminho entre o conhecimento científico e o pensamento mítico ou mágico, pois todo mundo sabe que o artista tem, ao mesmo tempo, algo do cientista e do bricoleur: com meios artesanais, ele elabora um objeto material que é também um objeto de conhecimento. O cientista cria fatos através de estruturas e o bricoleur cria estruturas através de fatos (Lévi-Strauss, 1989, p. 38).

Aproximada de tal perspectiva crítica, em analogia a tal paradigma de pensamento selvagem narrado por Lévis-Strauss através da figura do bricoleur, é possível observar em Cazuza e em Arnaldo Antunes uma predominância do pensamento nômade do bricoleur ao engenheiro moderno que controla todos os seus meios expressivos de produção; embora, em ambos, experimentalidade e apuro formal estejam presentes. Neles e através deles, o rock no Brasil ressoa como uma ebulição poética e selvática de contornos narrativos performáticos efetuados nas entrelinhas da cultura. Ambos suscitados pela dessacralização da obra de arte em época pós-moderna, Cazuza e Antunes, cada um à sua maneira, ampliam as tradições vivas do rock.

Tendo em vista que, para Merleau Ponty (2002), cada corpo representa um projeto sobre o mundo e cada movimento é imediatamente um conhecimento prático – uma teoria viva aberta para o mundo –, é relevante observar que o corpo de Arnaldo Antunes no palco se constrói como um catalisador de vários códigos, tais como poesia visual, prosa, letras de canções, performances e ensaios. Cantor, compositor, poeta e artista plástico, o condutor de sua obra é a palavra, muitas vezes sob um caráter primitivo e aproximativo de um olhar selvagem e iniciático. Buscando restituir as palavras às coisas, sua produção poética possui algo de um passado pré-babélico, primitivo e tribal que parte de uma relação que foi perdida pela civilização ocidental de um mundo dicionarizado.

Graduado em Linguística pela USP, músico, poeta e artista visual, Arnaldo Antunes integrou a banda Titãs de 1982 a 1992. Com uma formação atípica para uma banda de rock, com a maioria dos integrantes se revezando nos vocais, o Titãs trouxe para o rock no Brasil uma concepção de grupo que mais remete a um coletivo teatral do que a uma banda de rock. Em vista disso, não por acaso, o guitarrista Marcelo Fromer chegou a se referir ao Titãs não como um grupo de rock, mas como um “fenômeno de outra ordem sociológica” (Trotta, 1995, p. 5). A gênese formal do Titãs do Iê-Iê deu-se através das intersecções musicais provenientes da união de integrantes de três bandas distintas: Trio Mamão, Aguilar e Banda Performática e Os Camarões.[2]

Acervo Titãs, divulgação do álbum “Titãs”, 1984
Acervo Titãs, divulgação do álbum “Titãs”, 1984

Assumindo uma atitude que poderíamos designar de tropicalista, no sentido de confundir registros e incorporar os meios de massa em seus discursos, em sua formação inicial, o Titãs do Iê-Iê assumia para si a importância dos programas televisivos de auditório, bem como a valorização do kitsch em sua formação cultural. Sobre um prisma tropicalista, seus integrantes dialogam com a indústria televisiva no sentido de atrelar certas vinhetas de humor paródico à certa agressividade do punk. Potencializando a relação do rock brasileiro com o teatro, em seus primeiros álbuns, Titãs [1984] e Televisão [1985], o Titãs conciliava artifícios tropicalistas aos da new wave, indo do punk até o iê-iê-iê. Tal miscelânea de gêneros, somada à formação atípica para uma banda de rock, trazia ao grupo um senso de performance no palco que articulava métodos/procedimentos tropicalistas de incorporação de elementos estrangeiros com o Manifesto Antropófago (1928) de Oswald de Andrade,no sentido de pensar o “popularesco” e o “estrangeiro” como elementos constitutivos da cultura brasileira. Sendo a antropofagia defendida no manifesto oswaldiano como um método ameríndio de ingerir e devorar somente os inimigos mais inteligentes e os melhores combatentes, a fim de obter seus poderes em um processamento cultural que canibaliza o elemento estranho, Oswald sugere a ideia da identidade brasileira como fruto do amálgama de uma “boa” digestão, tal como a ocorrida através do ato inaugural de deglutição do Bispo Sardinha pelos índios.

Com o vigor vital de quem questiona todas as oposições lógicas de uma tradição, no terceiro disco da banda – Cabeça Dinossauro [1986] –, há uma combinação do elemento primitivo ao tecnológico, a começar, pela mistura de um elemento técnico da modernidade presente na palavra “Cabeça”, com um elemento pré-histórico e bárbaro presente em “Dinossauro”. Partindo de uma mistura do primitivo com o tecnológico à maneira anunciada por Oswald de Andrade (1978) no Manifesto da Poesia Pau-Brasil [1924] – principalmente na afirmação: “A poesia existe nos fatos” –, o Titãs realiza uma espécie própria de bricolagem sonoro-semântica de letras inconformistas e iconoclastas alusivas ao universo de despretensão estética do punk, mas que não rejeitam o apuro formal da canção.[3]

Por sua vez, no penúltimo álbum do Titãs com a participação de Arnaldo Antunes, Õ Blesq Blom [1989], o grupo retornou à aproximação tropicalista de narrativas fragmentárias relativas à incorporação da cultura popular ao universo estrangeiro do rock. A começar pela sua capa, Õ Blesq Blom foi composto através de bricolagens sonoras e urbanas, com a inclusão de vinhetas do casal de repentistas pernambucanos Mauro e Quitéria, descobertos pela banda na praia de Boa Viagem, em Recife, nos anos 1980; mesma cidade em que em menos de meia década depois ocorreriam as fusões rítmicas do Manguebeat (movimento musical recifense idealizado por Chico Science, Fred 04 e Jorge do Peixe no manifesto “Caranguejos sem cérebro” [1992], a partir de referência ao romance de Josué de Castro, Homens e Caranguejos [1967]).

Vinculada ao álbum Õ Blesq Blom,a música “O pulso” (composição de Arnaldo Antunes) trabalha com a quebra atonal de um círculo e de uma repetição propagada, estabelecendo o isomorfismo[4] entre música e letra, fundo e forma, dentro da esfera de uma canção roqueira produzida no Brasil. Tendo por busca desenvolver os conteúdos potenciais de uma dimensão verbivocovisual[5] da linguagem, “O pulso” faz alusão ao poema “Pulsar” de Augusto de Campos, musicado por Caetano Veloso no álbum Velô [1984]. Ao combinar certas doenças do corpo com certas doenças da alma, a letra de Arnaldo Antunes acaba por produzir um espaço sonoro em que o batimento interior de um corpo se correlaciona com o pulsar exterior de uma matéria.

De modo análogo, no mesmo Õ Blesq Blom, a letra da faixa “Palavras” (creditada a Sérgio Britto e Marcelo Fromer)  foi construída a partir de outra referência concretista: os versos “palavras são sombras / as sombras viram jogos”, que remetem à certa técnica combinatória elogiada por Haroldo de Campos, do livro Constelações [1953] de Eugen Gomringer: “palavras são sombras/ sombras tornam-se palavras. // palavras são jogos/ palavras tornam-se sombras. palavras são sombras / jogos tornam-se palavras. palavras são jogos/ sombras tornam-se palavras” (Campos & Pignatari, 2006, p. 203).

Operando com o artesanato da canção e pensando a cultura em termos de consumo midiático, é possível observar em certas letras de Arnaldo Antunes uma associação tropicalista de dissolução das fronteiras hierárquicas presentes em distinções culturais de termos como o erudito e opopular:

Tem essas diferentes vertentes que no caso de muitas pessoas se opõem, mas na minha formação elas se conjugaram e se atritaram de modo a criar curtos-circuitos que para mim são férteis. Um poeta que talvez fosse claro nesse sentido foi o Paulo Leminski, que chegava a minha casa de casaco de couro para ouvir um disco de rock do The Clash, mas era um sujeito que tinha uma cultura dos clássicos enorme. Era leitor de Homero, Dante, Camões, tinha um conhecimento da cultura oriental impressionante, dos poetas da antiguidade chinesa, dos haikais, da tradição da cultura zen ao mesmo tempo em que era faixa preta de judô. Ao mesmo tempo essa cultura clássica convivia e excitava nele o convívio com toda a contracultura, com toda a atitude comportamental irreverente, com a paixão pelo rock e tudo que cercava o universo do rock and roll, eu me sinto muito identificado com ele, nesse sentido (Antunes, 2008).

Bob Wolfenson, capa do álbum Um som [1998]
Bob Wolfenson, capa do álbum Um som [1998]

Para Antunes (2008), a seleção entre o fino e o grosso da cultura representa mais um ato de escolha do que somente uma mistura estratégica de fortalecimento identitário:

Isso de estudar literatura e fazer música, essas coisas andaram juntas desde muito cedo, de forma que essa divisão entre alta e baixa cultura não faz sentido para mim. […]. Claro, que eu não compactuo, nem um pouco, com a ideia de que poesia é diferente de letra de música por uma questão de valor estético. Que é como as pessoas mais preconceituosas querem separar as duas: uma linguagem mais pobre, ligada à cultura de massas; e outras de uma área mais intelectualizada, que é a área literária. Ao mesmo tempo, eu acho que são diferentes, sim. […] acho que existe essa questão da adequação a cada linguagem. Você criar uma peça para ser ouvida no rádio é uma coisa, para ser lida num livro é outra. É outro tempo, outra forma de absorção. […]. Há tempos atrás a poesia era mais veiculada ao cotidiano das pessoas e de certa forma a música popular herdou um pouco da tradição que a poesia tinha na antiguidade. Os poetas gregos e provençais, por exemplo, cantavam seus versos, aquilo era música também. Era uma poesia cantada, que hoje em dia a gente tem essas poesias nos livros e perde um pouco essa noção. De certa forma a canção popular passou a ser uma veiculação da palavra cantada e tomou esse papel de popularizar o convívio de algum trabalho poético cantado, mas a poesia dos livros foi se tornando muito minoritária no sentido de ter um público muito reduzido. Isso acho que não só no Brasil, mas em qualquer lugar do mundo. Tiveram aí vários fatores como a entrada avassaladora dos meios audiovisuais e inclusive a poesia se vale às vezes deles também.

Por sua vez, Cazuza não se considerava um poeta no sentido tradicional do termo, uma vez que sua aproximação com a literatura se dava principalmente através dos escritores beats, que buscavam promover a reintegração da poesia à fala. Crescendo em um contexto de efervescência cultural carioca, Cazuza teve como sua primeira atividade artística a prática de ator de uma oficina no Parque Lage do grupo teatral Asdrúbal Trouxe o Trombone[6], e, depois, no Circo Voador sob a direção de Perfeito Fortuna. O canto de Cazuza começa, portanto, incorporado à técnica teatral.

Primeiro cantor integrante da banda Barão Vermelho, Cazuza assume certa postura combativa do rock em suas performances vocais. Combinando rebeldia com boemia, nas narrativas de suas letras, o cantor propõe observar os bares do Baixo Leblon como um cronista faria em sua tribo. Inscrevendo-se, de certa forma, em certas tradições culturais subversivas, tais como a beat e a do rock and roll, Cazuzatoma de empréstimo certa noção romântica de um artista à margem do mundo, noturno e noir, para quem a noite conflui com a hora do artista:

Acho que o poeta é um insatisfeito. Então a noite, a vida noturna, a vida boêmia, da farra, são geralmente frequentadas por pessoas insatisfeitas… Acho que é a própria insatisfação do artista que o leva a ter uma vida desregrada… Você diz que eu sou poeta, mas eu me considero um letrista, gosto de falar que sou letrista, porque eu acho que tem uma distância entre poesia e música popular… […]. Eu tenho vários lados. O lado escuro é um lado muito forte, porque sou muito boêmio, vivo muito de noite. Gosto muito da noite, acho que ela é um espaço, um território livre para tudo. Não sei… a noite é muito dramática, muito bonita. As pessoas que saem na noite, procuram algo que na verdade não vão encontrar, mas elas curtem a procura […]. Tudo de noite é mais interessante. […]. Os marginais estão mais perto de Deus. Toda ovelha desgarrada ama mais, odeia mais, sente tudo mais intensamente, embora eu mesmo não me sinta assim. Talvez eu seja mais burguês do que transmito em minhas músicas. Eu convivo com essas pessoas e o que faço é uma espécie de defesa deles. Quando a Brasiliense começou a lançar as obras de Kerouac, Ginsberg, Burroughs, eu quase fiquei pirado, porque eu fazia algo ligado a eles e não sabia. Penso que os anos 50 têm muito a ver com os anos 80. Era uma época de repressão que se soltou lá pela década de 60 como agora (Cazuza apud Araújo, 2007, p. 363-96).

Foto: Eliana Assumpção, Folha Press, 1984
Foto: Eliana Assumpção, Folha Press, 1984

Misturando Lupicínio Rodrigues com a melancolia do blues, Cazuza se apropria do kitsch e associa os conteúdos passionais das letras com interpretações viscerais e muitas vezes irônicas daquilo que canta. Para Cazuza construir sua persona na esfera, a influência de Dolores Duran é tão importante, por exemplo, quanto ade Allen Ginsberg. Em algumas das letras de Cazuza (como “Vem comigo”, “Completamente blue”, “Ponto fraco”, “Dolorosa” e “Meu cúmplice”), o bar é tratado como lugar do trânsito e da alta madrugada, espaço em que o poeta espera resgatar algum amor perdido.

Como descreve Benedito Nunes, os românticos são homens do mundo com uma sensibilidade capaz de reunir pensamento e sentimento em seu agir (Guinsburg, 1978). Insatisfeitos com a impessoalidade de uma razão positivista e com a clareza iluminista do dia, a sensibilidade romântica alemã elege a noite e a sombra como extensões de seus pensamentos errantes. Se, a partir do romantismo, passa a ser possível pensar na figura dramática do artista moderno como um herói noturno e incompreendido, as fronteiras identitárias dos poetas beats são construídas por meio de certo elogio neorromântico dos marginais e dos drop-outs da sociedade. A sensibilidade beat[7] radicaliza tal proposição romântica, transformando a noite em um valor positivo da vida e da arte. Para o poeta beat, “pessoa” e persona são indissociáveis.

Em paralelo aos poetas beats, a temática do artista transgressor é estabelecida singularmente por Cazuza, por exemplo, em “Só as mães são felizes”, penúltima música do álbum Exagerado [1985]. Composta a partir de frase homônima do escritor norte-americano Jack Kerouac (do livro Scattered Poems [1971]), a sua letra é desenvolvida a partir de citações imaginativas de poetas e músicos malditos que percorrem um submundo ficcional carioca. Na letra de Cazuza são mencionados Arthur Rimbaud, Lou Reed, Allen Ginsberg e Luiz Melodia, vagando pela noite do Rio de Janeiro e atualizando a categoria do poeta maldito através de autores que o cantor admira, como exemplificou Cazuza numa entrevista, em fevereiro de 1986, para o Jornal da Bahia:

Essa música foi feita a partir de um verso do Jack Kerouac, uma frase de um poema dele que me deixou muito intrigado. A frase é muito radical: ‘Só as mães são felizes’. Dita desse modo parece que ninguém mais é. Eu usei a frase como brincadeira porque na verdade a música é uma homenagem a todos os poetas malditos. As pessoas que, de certa forma, vivem o lado escuro da vida, o outro lado da meia-noite. Eu quis fazer uma homenagem a esse tipo de poeta, de cantor, aos loucos da vida. Gente que barbariza, que é santo e demônio ao mesmo tempo. Então ficou como uma homenagem a esses caras. Minha citação de Kerouac é igual como quando cito Allen Ginsberg, Melodia, Lou Reed e outros […]. Mostrar esses poetas é sofisticado, o grande público talvez nem entenda, mas quem curte esse tipo de poesia vai sacar (Araújo, 1997, p. 203-204).

Mais do que uma homenagem, em “Só as mães felizes”, tal sugere ser o curta-metragem de Cazuza no submundo carioca: “Rimbaud traficando escravas brancas”, “Lou Reed walking on the wild side”, Allen Ginsberg fazendo “michê na (galeria) Alaska” [8]. Em tal supracitada canção, Cazuza transita pelo submundo da noite com auxílio de seus “poetas”, tal como fez Dante Alighieri na Divina Comédia [1321], ao ser guiado no “Inferno” e no “Purgatório” pelo poeta Virgílio. Também, ao invocar tais artistas transgressores em algumas de suas imagens, Cazuza aciona certos traços arquetípicos do rock and roll como música potencialmente subversiva, maldita e marginal.[9]

Em analogia, sobre o artista que interliga intrinsecamente vida e arte, é possível traçar uma linha de diálogo entre as personas do poeta maldito Arthur Rimbaud e de certos roqueiros como Jim Morrison. Com o interesse pelo lado escuro e trágico da vida, a inquietude, a inadequação e a embriaguez dionisíaca, ambos encarnam um mito do artista boêmio, vagante e exilado como um anti-herói moderno[10]. Nesse sentido, Wallace Fowlie (2005) discorre sobre a atração que Rimbaud exerce sobre o universo do rock:

O uso que Rimbaud faz da palavra ‘anjo’ em toda sua obra após o poema de 1870 caiu no gosto dos cantores de rock e dos jovens que cercavam os músicos, a quem chamávamos de flower children. Eles viam em Rimbaud um homem (na verdade, um adolescente) purificado da corrupção do mundo. Esse é o significado da palavra ‘rebelde’ que eles atribuíam a Rimbaud, e mais tarde, a Morrison. Bob Dylan foi um dos primeiros cantores a falar de Rimbaud em suas músicas, a recomendá-lo e a exaltá-lo. Na primeira canção de seu álbum Blood on the Tracks [1975], ele canta: ‘Relationships have all been bad, / Mine’ve been like Verlaine’s an Rimbaud’. A Rolling Stone recentemente reeditou uma entrevista que Bob Dylan concedeu a Allen Ginsberg. Depois de algumas indagações bastante relevantes, Ginsberg finalmente pergunta: ‘Tem algum poeta pelo qual você se interesse de verdade?’. ‘Só dois’, foi a resposta de Dylan: ‘Emily Dickinson e Arthur Rimbaud’ (Fowlie, 2005, p. 30).

Leitura análoga tem Paulo Leminski (2001) na crônica intitulada “Poeta roqueiro”, em que compara Rimbaud a um roqueiro marginal e transgressor: 

Aí vem o primeiro marginal. Vivesse hoje, Rimbaud seria músico de rock. Drogado como o guitarrista Jimi Hendrix, bissexual como Mick Jagger, dos Rolling Stones. ‘Na estrada’, como toda uma geração de roqueiros. Nenhum poeta francês do século passado teve vida tão ‘contemporânea’ quanto o gatão e ‘vidente’ Arthur Rimbaud. Pasmou os contemporâneos com uma precocidade poética extraordinária – obras-primas entre os 15 e 18 anos. De repente largou tudo, Europa, civilização ocidental-cristã, literatura, e cometa se mandou para a Abissínia na África. Lá, longe da Europa branca e burguesa que odiava, levou a vida do mercador árabe, traficando armas, virando desertos nunca antes pisados, vivendo a grande aventura infantil, pré figurada em nome de seu rei lendário. […]. Enfim, como diz o próprio poeta: ‘Eu é um outro’. A melhor poesia de Rimbaud esteve, porém, em seu gesto final: a recusa do ‘sucesso’, a escolha do ‘fracasso’, a derrota da literatura, inimiga da poesia, para que esta triunfasse (Leminski, 2001, p. 110-111).

Por sua vez, em Uma temporada no inferno [1873], Arthur Rimbaud afirmou não ser o poeta prisioneiro de sua razão, sendo somente através de um extenso desregramento dos sentidos que o poeta poderia se tornar vidente[11]. Sobre Rimbaud e o universo do rock, é ainda importante mencionar uma litografia do poeta de antepassados gauleses feita por Pablo Picasso, em 1960, em que a figura do poeta foi representada com uma juventude vigorosa, com seu cabelo assumindo o aspecto boêmio e inconformista dos punks.

“Rimbaud”, desenho de Pablo Picasso, 1960
“Rimbaud”, desenho de Pablo Picasso, 1960

Dessa forma, como procuramos discutir neste artigo, Cazuza e Arnaldo Antunes articulam, cada um à sua maneira, o constructo do rock and roll dentro da cultura brasileira, realizando, assim, certa renovação formal do rock no Brasil. Ampliam, assim, certa aptidão brasileira moderna de íntima articulação entre a canção popular e a linguagem literária, que, além de um modo particular de expressão, vem a ser, também, umas das formas próprias de reflexão da arte e da cultura. Tal é, segundo José Miguel Wisnik (2004), a perspectiva relacional brasileira de correlação entre a canção popular e a literatura, a partir do disco Tropicália: não uma aproximação exterior pela qual as melodias servem de suporte às inquietações cultas e letradas, mas, antes, a demanda interior de uma canção aproximada a um estado musical da palavra, perguntando à língua o que ela pode, e o que ela quer. Partindo de uma multiplicidade tropicalista catalisadora de novas dicções, nos anos de 1980, certo rock produzido no Brasil seguiu certa tradição intertextual da música popular brasileira e a potencializou, como é possível observar particularmente no caso de Arnaldo Antunes e Cazuza.


* Augusto de Guimaraens Cavalcanti é doutor pelo Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio e, atualmente, pós-doutorando no programa do PACC-Letras da UFRJ, sob orientação de Beatriz Resende. Em 2015 defendeu a tese “Surrealismo no Brasil: a origem animal de deus, O púcaro búlgaro e Invenção de Orfeu: Flávio de Carvalho, Campos de Carvalho e Jorge de Lima” sob orientação de Maria Isabel Mendes de Almeida e Paulo Henriques Britto.

Referências

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Notas

[1] Este artigo é um desdobramento da dissertação Arte e vida: Lobão, Arnaldo Antunes e Cazuza, por mim defendida em 30 de abril de 2010, sob orientação de Santuza Cambraia Naves, sendo, também, uma homenagem à memória de Santuza, que veio a falecer em 2012. 

[2] A formação inicial da banda paulistana tinha nove integrantes: Arnaldo Antunes, Branco Mello, Marcelo Fromer, Nando Reis, Paulo Miklos, Sérgio Britto, Tony Bellotto, Ciro Pessoa e André Jung, contando também com participações do artista plástico Nuno Ramos nas primeiras apresentações da banda. Do Trio Mamão faziam parte Tony Bellotto, Marcelo Fromer e Branco Mello. Tal coletivo musical chegou a abrir alguns shows de Jorge Mautner em São Paulo e se inspirava numa certa visão de mundo tropicalista, com roupas multicoloridas e araras decorando o palco. O grupo Os Camarões, por sua vez, do qual participava Nando Reis, tinha um som próximo ao de Bob Marley e Jorge Ben Jor. Já da Banda Performática do Aguilar faziam parte Arnaldo Antunes e Paulo Miklos. Influenciados pelas experimentações de John Cage, este coletivo performático acompanhava o artista plástico José Roberto Aguilar, realizando apresentações teatrais e criando paródias que remetiam às artes visuais, como a música “Monsieur Duchamp” (de Paulo Miklos e Aguilar), que relatava a chegada do dadaísta francês ao aeroporto do Galeão.

[3] Todavia, tal leitura não é aceita da mesma maneira por todos os integrantes da banda. Nando Reis, por exemplo, opõe-se à associação oswaldiana que fazem com suas músicas, afirmando ser “muito mais barroco” do que Arnaldo Antunes e, também, declarando, a propósito: “Eu não sou um manifesto Pau-Brasil. A carnavalização esconde a eterna visão do colonizador” (Reis apud Trotta, 1995, p. 100 & Reis apud Leoni, 1995, p. 261).

[4] O isomorfismo é um termo matemático utilizado para designar o caso de abstração em que duas classes apresentam as mesmas propriedades. Tal termo foi utilizado pelos poetas concretos primeiramente no Manifesto da Poesia Concreta [1958].

[5] Como explicita Augusto de Campos no manifesto Poesia Concreta [1955], verbivocovisual é um termo criado por James Joyce para designar “palavras dúcteis, moldáveis, amalgamáveis, à disposição do poema”. (Campos & Pignatari 2006, p.56).

[6] Dirigido por Hamilton Vaz Pereira, o Asdrúbal Trouxe o Trombone influenciou, de certa forma, a linguagem do rock carioca do início dos anos de 1980, uma vez que também Evandro Mesquita foi ator da companhia teatral antes de formar a Blitz. Não por acaso, Nelson Motta (2000, p. 328) descreve o grupo performático como mais se assemelhando a uma banda de rock do que a uma companhia teatral. Em contexto carioca do início dos anos 80, contribuiu também para o entrelaçamento entre música e teatro o espaço físico da lona cultural do Circo Voador, onde peças de teatro eram intercaladas por apresentações de bandas e happenings de poesia.

[7] O próprio termo beat, em inglês, provém de beated, isto é: “golpeado”, “derrotado” e “batido”. Por seu turno, o termo beatnik foi criado pela mídia norte-americana no final da década de 1950 para designar um fenômeno coletivo de uma geração derrotista que rimava com Sputnik. Indo contra tal acepção, Jack Kerouac, em entrevista de 1959, propôs que o termo beat fosse ressignificado como “beatitude” de uma poesia à margem da literatura. (Willer, 2009, p. 81).

[8] Nome em referência à Galeria Alaska, ponto gay famoso da Copacabana dos anos 80. Na letra de “Só as mães são felizes”, há ainda uma menção à discoteca Barbarella, casa de strip-tease na zona de prostituição da rua Prado Júnior, também em Copacabana. Ainda, na letra de “Só as mães são felizes”, Cazuza afirma, ironicamente, que já bebeu cicuta (veneno que Sócrates tomou para morrer) misturada com champanhe. No ano de 1986, “Só as mães são felizes” chegou a ter sua execução pública proibida pela Censura Federal, devido a alguns versos considerados escatológicos e alusivos ao incesto.

[9] Sobre as categorias marginal e maldito, é importante ressaltar suas diferenças. O termo maldito foi criado por Paul Verlaine em ocasião da antologia Poètes maudits [1884],em resposta ao ato de Anatole France ter recusado um poema de Stéphane Mallarmé e um soneto do próprio Verlaine para uma antologia publicada no terceiro volume da revista Parnasse contemporain [1876]. De outra maneira, o termo marginal remete a uma geração poética brasileira dos anos de 1970 que visou trabalhar a linguagem coloquial na literatura, postulando uma proximidade entre poesia e vida, e incorporando, assim, as conversas do dia-a-dia ao poema. Em período militar, a poesia marginal buscou sobreviver distante do mundo institucionalizado, politizando o cotidiano e misturando certa marginalidade de conteúdo com certa marginalidade ideológica naquilo que versava (Hollanda, 1998 & Pereira, 1981).

[10] Como aponta Wallace Fowlie (2005, p. 134), Arthur Rimbaud teria influenciado de tal maneira Jim Morrison que este teria passado a declarar em seus dois últimos anos de vida que, quando morresse, preferia ser lembrado como poeta e não como cantor de rock. Quatro meses antes de sua morte, o cantor norte-americano se mudou para Paris com o intuito de virar escritor e morar na mesma área em que Baudelaire vivera como um dândi. Através de uma trajetória de vida extremada e transgressora, Morrison se vestia de preto e era contra o flower power dos hippies.

[11] De outra forma, através do eu lírico do poema “O homem justo”, Arthur Rimbaud (1994, p. 173-175) expõe: “Sabes que sou maldito! E louco, e ébrio, e lívido. (…) Ventos noturnos, vinde ao maldito!”. Já nos versos de “A orgia Parisiense (ou) Paris se repovoa”, o poeta de ancestrais gauleses realiza um outro tipo de elegia dos malditos como motivo de poesia: “Eis que o Poeta vos diz: ‘Covardes, sede loucos!’ (…). Sifilíticos, reis, loucos, bufões, ventríloquos, / Que lhe importa, a Paris-puta, os vossos corpos, / Vossas almas, e mais vosso veneno e andrajos? (…). O Poeta irá tomar o pranto dos Infames, / Os ódios do Forçado, as queixas dos Malditos:/ E as Mulheres serão flageladas de amor. / Seus versos saltarão: Ei-los! Ei-los! Bandidos! (p. 157-159).

dossiê
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O MENSAGEIRO DE ÍRIS – A EXPRESSÃO DE LUÍS CAPUCHO

Resumo: Luís Capucho é uma voz singular da literatura e da música brasileira das últimas décadas. Este artigo busca apresentar algumas questões centrais de suas canções e de seus livros, observando elementos temáticos, como o universo maldito e a representação dos cinemas pornográficos, da masculinidade, do homoerotismo e da figura materna, bem como os procedimentos formais de transfiguração do real realizados em sua obra. Assim, refletiremos sobre a relação entre o sagrado e o profano, e o arco luminoso que o artista constrói com suas palavras.

Palavras-chave: Luís Capucho; Cinema Orly; canção popular; literatura LGBT.

Abstract: Luís Capucho is a unique voice of literature and Brazilian music of the last decades. This article aims to present some central questions of his songs and books, observing thematic elements, such as the cursed universe and the representation of the pornographic cinemas, masculinity, homoeroticism and the maternal figure, as well as the formal procedures of transfiguration of the real in his work. Thus, we will reflect on the relationship between the sacred and the profane, and the luminous arc that the artist constructs with his words.

Keywords: Luís Capucho; Cinema Orly; popular song; LGBTliterature.

Morfeu e Íris, de Pierre-Narcisse Guérin (1811)
Morfeu e Íris, de Pierre-Narcisse Guérin (1811) Fonte: https://www.wikiart.org/en/pierre-narcisse-guerin/morpheus-and-iris

Qual costuma pintar Íris teu arco/ No dilatado Céu, quando aos Solares Raios se opõem os líquidos chuveiros:/ Nele brilham mil cores diferentes,/ Mas não podem os olhos enganados/ Discernir onde as cores se terminam:/ Parecem na união, que elas são uma;/ Porém têm (não sei qual) certa diferença,/ Quanto mais vão buscando as tênues orlas,/ Cambiando-se as tintas”(Ovídio)

Primeira luz: a voz capucho

Em 2016, o artista e pesquisador Bruno Cosentino me convidou para fazermos juntos um projeto de audição e entrevistas com artistas da cena musical brasileira contemporânea. Surgiu, assim, a série Escuta, que passou a ser realizada no Núcleo da Canção do PACC[1] da UFRJ. Para a primeira edição, Cosentino sugeriu o nome de Luís Capucho, que eu não conhecia até aquele momento. Na ocasião, escutamos seu álbum Poema maldito.

Luís Capucho aceitou participar do Escuta, mas ficou reticente de como seria se colocar naquela situação, de fazer uma entrevista longa, gravada e com público. Capucho pediu, então, que eu enviasse as perguntas antes, para que ele se preparasse, alegando sempre um receio de não conseguir organizar as ideias com fluidez no improviso. Atendi ao pedido e enviei o roteiro que eu e Isabela Bosi havíamos organizado.

Pouco depois, Capucho me enviou uma mensagem, dizendo que não havia compreendido uma das perguntas. Acontece que o disco começava por uma canção chamada “La nave va”. Convicto de que estava fazendo uma questão inteligentíssima, perguntei da relação do compositor com o cinema de Fellini, já que o álbum se iniciava com uma nítida intertextualidade com o filme homônimo do diretor italiano, de 1983. O fato é que ele desconhecia em absoluto o tal filme. A letra não era dele, mas de Manoel de Barros, segundo me explicou.

Minha amizade com Capucho creio que nasceu desse equívoco. Na entrevista, ele quis falar sobre o filme (que não viu) e de como a sinopse que contei a ele era reveladora de uma coisa do disco. A entrevista, porém, não foi fácil. Lembro-me das longas pausas que ele fazia em diversos momentos e das reiteradas vezes em que se queixou sobre a dificuldade em ordenar o pensamento. Em muitas perguntas que eu formulei, acreditando estar sendo profundo, recebi respostas lacônicas. Em outras, aparentemente banais, obtive respostas bonitas e imprevistas. Em uma delas, eu perguntava sobre a questão da marginalidade, do que representava estar “na beirinha” (como diz a “Música de sábado”) e ele me respondeu que as palavras são essa beira, esse estar no limite da possibilidade de expressão, de comunicação. Essa resposta lançou grande luz sobre a própria entrevista, mas também sobre sua obra e, por fim, sobre sua enigmática figura.

*          *          *

Luís Capucho é um daqueles artistas cuja história de vida é fundamental para compreender a obra. O artista nasceu em Cachoeiro do Itapemirim no Espírito Santo (tal como Roberto Carlos), em março de 1962. Filho único, foi criado apenas pela mãe, com quem se mudou em 1974 para Niterói, no estado do Rio de Janeiro[2]. Lá se graduou em Letras na UFF nos anos 1980.  

Sua produção musical, no entanto, começou a ser registrada somente a partir da década de 1990, com o álbum Antigo, que apesar de gravado ao vivo no Café Laranjeiras no Rio em 1995, só foi lançado em 2013. O disco apresenta canções emblemáticas como “Máquina de escrever”, “Mamãe me adora”, “O amor é sacanagem” e “Maluca”. Desse trabalho, saíram algumas gravações de artistas de visibilidade, como a versão de Cássia Eller para “Maluca” (no álbum Com você … meu mundo ficaria completo,de 1999), e a de Pedro Luís e a Parede para “Máquina de escrever” (em Astronauta tupy, de 2004).

Vale registrar também que Pedro Luís e Rodrigo Campello produziram em 1996 o álbum coletivo Ovo – novíssimos, que contava com a gravação prévia de “O amor é sacanagem” de Luís Capucho, além de reunir outros compositores, alguns dos quais parceiros do artista, como Marcos Sacramento e Suely Mesquita. Após esse momento embrionário, vieram mais três discos autorais: Lua singela, em 2003 (que traz a canção homônima, além de gravações inéditas de “Sucesso com o sexo” e “A vida é livre”, bem como as regravações de “Máquina de escrever” e “Maluca”); Cinema Íris, em 2012 (com outras tantas canções significativas, como “A música do sábado”, “Cinema Íris”, “Eu quero ser sua mãe” e “A expressão da boca”) e, por fim, Poema maldito, em 2014 (que conta com músicas como “Poema maldito”, “Mais uma canção de sábado”, “Meu bem” e “Cavalos”).  

Cabe pontuar, neste momento, que um dado biográfico é de extrema relevância para a compreensão da trajetória e da estética do compositor. Em 1996, Luís Capucho foi acometido por uma neurotoxoplasmose, que se desenvolveu em função da baixa imunidade decorrente do vírus HIV. Com isso, Capucho ficou em coma durante um mês, e o quadro teve consequências significativas em sua coordenação motora e em sua fala. Essas sequelas impactaram, portanto, diretamente o exercício da composição e do canto do artista. Sua voz tornou-se mais grave e áspera, o que não deixa de ter consequências estéticas (e existenciais) relevantes, na medida em que os traços particulares de sua nova dicção acabaram gerando uma consonância com o espírito “marginal” que caracteriza sua produção artística.

Note-se ainda que o episódio permite dividir sua produção musical, de modo que apenas o álbum Antigo (gravado em 1995) apresenta o registro de sua voz antiga, mais lisa e fluida, enquanto os discos Lua singela (2003), Cinema Íris (2012) e Poema maldito (2014) já apresentam sua nova dicção, áspera, esforçada e, sobretudo, mais densa que a anterior. Em seu programa A voz humana,da Rádio Batuta (em 2016), Eucanaã Ferraz incluiu a canção “Poema maldito” de Luís Capucho no episódio “A voz dos marginais”[3]. No texto de introdução, o apresentador cita um fragmento do livro Mamãe me adora, em que Capucho explica:

Minha voz é muito estranha, por causa da minha incoordenação motora. Tenho dificuldade para pronunciar os fonemas e a força que preciso fazer para dizê-los, incham-me as veias do pescoço. Também para que elas saiam é necessária muita concentração e, desse modo, as palavras ficam lentas, explicadas, com a pronúncia exagerada pelo esforço em dizê-las. E embora saiam explodidas, altas, roucas e arranhadas, são sempre minuciosas em sua pronúncia.

Em seguida, Eucanaã conclui:

A voz de Capucho casa-se exemplarmente com sua música, como se não houvesse sequer separação entre elas. Pode-se pensar em roucos, como Tom Waits ou Leonard Cohen. Penso em Nelson Cavaquinho, na sua aspereza pungente, que como em Capucho, faz inseparáveis canto, composição, instrumento, palavra e vida.[4]

A observação acima faz lembrar os versos de “A expressão da boca”, nos quais Luís Capucho afirma que “a expressão da boca define a pessoa”, “conduz aos outros movimentos dela”, “dá sentido para os olhos”, “centraliza o sentimento”, “revela a pessoa no momento/ e também revela a pessoa mais completamente/ a pessoa fora do momento” e conclui: “é onde sopra o espírito”. A palavra emite-se, portanto, na confluência entre a vida e a voz, encontra no instrumento musical seu suporte, ganha integridade e revela um corpo e um espírito. Arco entre o mundo interior e o mundo exterior, a voz também se desenha em um lugar na beira, e é elemento relevante do processo de transfiguração do real empreendido por muitas de suas canções.

*          *          *

Além das canções, Luís Capucho também é autor de livros em prosa. Note-se, em primeiro lugar, que as consequências motoras do coma impuseram, incialmente, uma dificuldade para o exercício de composição musical. É justamente neste momento que Capucho migra para a literatura, lançando o livro Cinema Orly (em 1999). Só em 2003 (sete anos após o incidente), ele retornou à música, com Lua singela. O disco seguinte, nove anos depois, foi Cinema Íris, de 2012, curiosamente, um álbum diretamente vinculado ao universo de seu livro de estreia. Nesse intervalo, continuou a desenvolver sua obra literária, com Rato (em 2007) e Mamãe me adora (em 2012). Encerram a linha cronológica o álbum Poema maldito,em 2014, e o livro Diário da piscina,em 2017, consolidando sua dupla inclinação à literatura e à canção popular.

É importante também ressaltar que os livros herdam do universo de sua canção uma proximidade muito estreita entre a arte e a vida, buscando, em microcosmos cotidianos, um espaço onde se encenam as questões humanas (do desejo, do amor, do sexo, da angústia, da doença e da morte), bem como a estranheza do mundo (e do estar no mundo). Isso se relaciona diretamente a uma espécie de pulsão do olhar, que parece à vontade no exercício de transfigurar a vida banal, acentuando seu estranhamento, desdobrando as imagens, dotando-as de uma força paradoxal de materialidade sublime. Na mesma esteira, sua poética (nos livros e nas canções) dá protagonismo a corpos e a espaços, que se projetam e se contaminam reciprocamente.

A partir disso, podemos compreender melhor os quatro livros publicados pelo autor. O primeiro, Cinema Orly (1999), é uma espécie de registro autobiográfico, que oferece um retrato dos cinemas pornográficos do centro do Rio e dos personagens que o frequentavam. Em seguida, publicou Rato (2007), livro ficcional (mas com evidentes traços autobiográficos) que conta a história de um rapaz e sua mãe em uma espécie de casa de cômodos, em que se alugam vagas para rapazes. O terceiro, Mamãe me adora (2012), conta uma viagem entre Rio de Janeiro e Aparecida do Norte em que, mais uma vez, aparecem elementos da vida do autor – a homossexualidade, a recuperação do corpo, a presença da mãe e seu processo de decadência física e morte. Por fim, Diário da piscina (2017) conta o funcionamento cotidiano das aulas de natação nas quais o autor-narrador buscava se recuperar das sequelas motoras do já citado incidente.

Por fim, vale notar que a aproximação entre a arte e a vida, para além de seu lastro romântico e de sua vizinhança com a literatura beat e com os poetas malditos da modernidade, também encontra ressonância no cenário pós-moderno, no qual o rompimento das fronteiras entre o público e o privado, a valorização das narrativas à margem, a centralidade do lugar de fala e das questões identitárias e, por fim, a consciência do corpo como espaço político dão o tom das discussões estéticas, sociais e políticas. Por isso, o sempre tensionamento entre o autobiográfico e o ficcional (que atravessa toda sua produção literária) e o protagonismo da questão do corpo (e, com ela, do desejo, da homossexualidade e, com grande ênfase, da masculinidade) formam traços notáveis de suas obras.   

Segunda luz: o cinema pornô

A produção literária e musical de Luís Capucho aparece profundamente marcada pela sua experiência nos cinemas pornográficos do centro da cidade do Rio de Janeiro, com destaque para o Cinema Orly, o Cinema Írise, em menor escala, o Cine Rex. Na verdade, podemos localizá-los temporalmente na esteira do processo de crise dos cinemas de rua; nos anos 1980, diante da retração do mercado, muitos deles aderiram à programação pornográfica (que era mais barata) e aos shows de strip-tease, atraindo um público majoritariamente masculino e popular. Esses espaços também ficaram conhecidos como “cinema de pegação”, nos quais as experiências homoeróticas, a presença das travestis e da prostituição encontravam espaço, na penumbra das salas e do mundo social, para se manifestar.

Fontes: https://cinemagia.wordpress.com/2013/10/16/cinemas-antigos-orly-e-rex-centro-rj/ e https://medium.com/resvistaverum/cine-%C3%ADris-uma-experi%C3%AAncia-cinematogr%C3%A1fica-intrigante-eaa60bd8b1da

O Cinema Orly, como muitos outros cinemas do tipo (incluindo o Cine Rex), fica na Cinelândia, nas proximidades de onde atualmente está o Teatro Rival, o Bar Amarelinho e a Câmara dos Vereadores. O cinema é de 1934, mas recebeu o nome de Orly apenas em 1974, estreando sua programação pornográfica, como se disse, nos anos 1980, tal como ocorreu ao Cine Theatro Íris, que fica na rua da Carioca (em frente ao extinto Cine Ideal), próximo à Praça Tiradentes. O Íris é ainda mais antigo, de 1909, mas só recebeu este nome após uma reforma em 1921, que lhe deu sua ornamentação art nouveau.

O nome Cine Íris vem do fato de que havia um painel da deusa homônima em sua entrada. Íris, na mitologia grega, é a mensageira de Hera (e comunicação entre os deuses e os mortais, ligando o céu à terra) e personificação do arco-íris (em função do rastro multicolorido que deixava ao cruzar os céus). As luzes e as cores do cinema, bem como sua natureza comunicativa, ajudam a dar sentido à relação (para além de os filmes fazerem a ligação entre o olimpo dos astros e estrelas do cinema e a plateia de mortais). Vale lembrar que, posteriormente, na virada dos anos 1970 para 1980, o arco-íris se consolidou como símbolo dos movimentos LGBTs, acrescentando mais uma camada de sentido na interseção entre o cinema e a entidade.

Esses dois cinemas, em especial, vão inspirar duas obras-irmãs: o livro Cinema Orly (1999) e o disco Cinema Íris (2012), que, tomados em conjunto, permitem algumas miradas esclarecedoras sobre a obra de Luís Capucho. Em especial, podem revelar os ambientes underground que permeiam o universo do compositor “maldito”, e atravessam alguns de seus temas mais recorrentes, mas também alguns de seus recursos estéticos, como a pulsão do olhar, a transfiguração da realidade e a aproximação entre o sagrado e o profano, o sublime e o vulgar, enfim, o céu e a terra, cindidos e ligados por sua expressão luminosa.

Fonte: https://www.luiscapucho.com.br/

Cinema Orly – que ganhou em 2005 o Prêmio Arco-Íris de Direitos Humanos –é uma espécie de livro de memórias sobre a experiência do narrador enquanto frequentador do Cinema Orly. O caráter autobiográfico do livro se confirma segundo o conceito de “pacto autobiográfico” proposto por Philippe Lejeune: observamos uma identidade explícita entre autor e narrador, que é marcada de diversas formas. Nesse sentido, sabemos que o enunciador é um cantor e compositor (são citadas oito composições suas, vinculadas à experiência do cinema, entre elas “O amor é sacanagem”, “Cinema Orly”, “Íncubos” e “Savannah”), que foi criado só pela mãe e que não conheceu seu pai, e que, no momento da escrita, encontrava-se “claudicante, impossibilitado de tocar violão e com a voz do homem elefante”, em evidente referência às sequelas motoras do coma. 

Na narrativa, o Orly é descrito como um espaço de culto, pertencimento e autodescoberta, onde as regras de interação social e os valores morais aparecem em registro bem diverso do mundo exterior. Em outro aspecto, trata-se de um microcosmos onde se projeta determinado ciclo social, pertinente a determinado tempo e espaço histórico, com descrições férteis para miradas de ordem sociológica ou antropológica, mas também para reflexões acerca da formação das subjetividades, das identidades de gênero e dos comportamentos sexuais.

Esse ambiente, em que a sexualidade (e, em especial, o homoerotismo) pode ser exercida de modo mais livre, apresenta-se como espaço do possível, onde se dá a realização consciente de fantasias eróticas e de desejos inconfessáveis. Por outro lado, interessa notar que nesse espaço projetam-se corpos entre as poltronas, que diante da pouca luz e do anonimato, e das conversas muito furtivas, transformam-se todos em imagens, virtualizam-se em pleno terreno do real. A materialidade inconteste dos corpos em exibição e fruição sexual é justamente o que dá uma dimensão transcendente aos seres, que existem para além de se pensarem.

Há ainda mais uma camada de interesse que se vincula ao fato de que há também nesse narrador uma ideia fixa, paralela à da realização do desejo homoerótico. Trata-se da projeção de um namorado, isto é, da possibilidade de dar fim à solidão, que também atravessa todo o livro. Esse desejo aparece aqui como marca subjetiva do narrador e como questão humana, mas também como resultado de uma questão contextual, uma vez que a perseguição contra os afetos gays incide diretamente sobre a dificuldade de relação desses sujeitos.

O livro apresenta uma introdução e seis capítulos, sempre com títulos alternativos: 1) “Os répteis ou O parquinho ou Paus pra toda obra”; 2) “Desconcerto para edipiano e orquestra ou Evolução de amor no trapézio ou O namorado”; 3) “Hotel para cavalheiros ou Traíra ou A festa em que ganhei cestinhas”; 4) “Ainda o namorado ou Os eliminados ou O fugidio périplo da bicha baleira em dia de folga”; 5) “No meu bairro ou O matador ou Renan”; 6) “O templo não para ou A lei do eterno retorno ou Parte final”.

A variação de títulos, que remete vagamente ao exercício clariceano de “A quinta história” ou de A hora da estrela, é, antes de tudo, um procedimento de iluminação. A realidade transfigura-se conforme a incidência maior de luz sobre um fato ou outro. Veja-se, por exemplo, que o primeiro título começa com a evocação dos répteis (animais rastejantes e algo repugnantes), remetendo a um processo de animalização dos frequentadores do cinema; muda logo para o título algo infantil “o parquinho” (metáfora-eufemismo para espaços de “diversão”) e, por fim, termina com o trocadilho malicioso, oriundo da expressão popular “paus pra toda obra”, evocando o objeto de desejo mais adorado ao longo do livro. O exercício se repete nos outros títulos, sempre obscurecendo o elo que dá sentido ao conjunto de nomeações. Observam-se neles a reiteração da procura pelo “namorado”, questões de amor e sexualidade, espaços de entorno e, por fim, a jornada cíclica do narrador no Orly.   

O primeiro capítulo do livro começa com dois fragmentos bastante ilustrativos. O primeiro diz:

Há muito que não vou ao Orly assistir a um filme pornô e pagar um boquete. Ver na tela homens jovens nus com paus grandes, pernas abertas, muito grandes e gostosas, e sacos onde se pressente a umidade e o odor, deixando o nosso peito incandescido e a respiração inflamada. […] Sacos peludos sobre a pele gordurosa, que continuavam em paus engordados pela excitação, que ao invés de me trazerem à lembrança a imagem silvestre de um animal, de um sátiro, faziam com que eu tivesse reminiscências provocadas pelos meus sonhos mais românticos, de quando ainda eram pueris e eu achava possível que meu corpo voasse (Capucho, 1999, p. 17).

O livro começa, portanto, marcando um distanciamento temporal entre o momento da enunciação e os fatos narrados, transferindo a narrativa para o espaço da memória. A forma crua e sem pudor com que se narram, em detalhes, as práticas homoeróticas, com especial ênfase no sexo oral e na masturbação, é um tipo de registro que atravessa todo o livro. O cinema e o sexo, dentro ou fora da tela, apresentam-se como espetáculo de imagens, odores e sensações, que se representam tanto em sua beleza erótica, como também em sua atmosfera grotesca de suor, fumaça e sujeira, formando um conjunto obsceno em que o horror e a maravilha conjugam-se em vez de se dividirem. Do mesmo modo, a aproximação entre o universo pornográfico e os sonhos românticos também impede que se delimitem as cores da pureza e da promiscuidade. Na sequência, o narrador afirma:

No Orly sente-se que somos répteis milenares, e então, a vida na penumbra do porão, do cinema, com sua camada de concupiscência em torno de tudo, é mais espessa: a luminosidade, o movimento, o oxigênio, o odor, tudo é mais espesso, porque os sentidos se aguçam (Capucho, p. 17).

O segundo parágrafo apresenta “a vida na penumbra do porão”, apontando não só para a questão da baixa luminosidade, como também para o fato de o Cinema Orly ser numa espécie de subsolo e, portanto, literalmente um underground, um mundo escondido que serve de exílio para os que o frequentam. Isso reforça também uma atmosfera de realidade paralela, provocada não só pela antítese em relação ao “mundo lá fora”, mas também pelo próprio aguçamento dos sentidos, que dá “espessura” ao ambiente. No conjunto da descrição, o Cinema Orly aparece como ambiente marcado pela luz dos filmes moderando a escuridão da sala, acentuada pela neblina de fumaça, que torna mais denso o cheiro abafado de suor, sexo e cigarro.

Assim, o livro que se abre falando sobre as cenas na tela, imediatamente se volta para seu assunto principal, isto é, o que se passa na contratela, entre as poltronas do cinema. Aqui, o sexo geralmente heterossexual da pornografia (em que homens másculos performam uma sexualidade viril) refrata-se na plateia a partir da experiência homoerótica, que não deixa de carregar em si o culto narcísico e falocêntrico da masculinidade, que é um dos assuntos centrais do livro, e também tema de destaque nas canções de Luís Capucho.

Logo no segundo parágrafo, o ambiente espesso, habitado por répteis, já nos conduz a uma transfiguração, que nos põe diante de uma realidade alternativa, em que o espaço promove a metamorfose das criaturas, envoltas em uma atmosfera de pertencimento. A escolha dos répteis reforça o ambiente pegajoso e os olhos dilatados, em corpos que se arrastam, escalam e se esfregam entre as poltronas. Vale lembrar que nessa classificação biológica se enquadram as serpentes (tão simbólicas do universo do pecado original) quanto os lagartos e as lagartixas, com seus corpos adaptáveis à temperatura do ambiente, sem falar nos camelões, símbolos máximos, no reino animal, da capacidade de transformação adaptativa. De resto, o adjetivo “milenares” também funciona como chave de interseção entre os sentidos abertos pela sexualidade (tanto em seu caráter homoerótico, como em seu exercício promíscuo), que se apresenta tão pré-histórica quanto os dinossauros. O “parquinho” do título é também um parque jurássico, escondido em sua realidade fantástica.

A narrativa se segue sempre em exercício cíclico do “eterno retorno” ao Cinema Orly, numa busca incessante de prazer sexual e de transitividade amorosa (conjugados na reiterada procura de “um namorado”). A cada volta, novas descrições acrescentam camadas de complexidade ao texto, que segue essa espiral, apresentando um mosaico de personagens que definem e são definidos pelo ambiente. Em dado momento, o narrador condensa essa profusão de corpos de homens:

Havia homens muito velhos, mancos, com uma das pernas decepadas, muito gordos com barrigas enormes, homens maravilhosamente altos e magros. Muitos masculinos, muitos femininos, jovem com carisma, com charme, com cara de hospício, homens de bigode, de barba, imberbes, antipáticos, nojentos com cara de idiotas, louros, morenos, negros, mulatos, cabeludos, carecas, homens banguelas, fedidos, com nariz grande, homens robustos, mignons etc. (Capucho, 1999, p. 23).

Esse fragmento é especial, sobretudo, porque faz o vínculo mais literal entre o livro Cinema Orly e a faixa-título do disco Cinema Íris. A letra divide-se em dois focos, começando pela “moça que faz strip-tease no Cinema Íris” e depois, voltando-se para a plateia, onde focaliza o mosaico de homens, claramente transposto do fragmento supracitado do livro. Assim, temos uma primeira parte que diz: “A moça que faz strip-tease no Cinema Íris/ sabe deixar o tempo pra trás/ ela avança o corpo nu/ e o tempo escoa na beira do rio/ seus movimentos voltam-se suspensos no som/ enquanto homens masturbam-se na neblina do cinema”. Esse último verso permite a transição do foco para os homens:

Homens sentados assistem,
Velhos mancos com uma das pernas decepadas
Homens muito gordos, com barrigas enormes
Homens maravilhosamente magros e altos
Muitos masculinos
Muitos femininos
Jovens com carisma, com charme
Com pernas muito gostosas abertas
Aqueles tinham caras de veados
Homens com caras cabeludos
Homens com caras de bigode
Homens com caras travestidos
Homens com caras de hospício
Homens com caras de mal

A semelhança entre as passagens da letra e do livro gera uma confluência entre os dois cinemas que, a despeito de suas particularidades, fundem-se em sua ambiência de neblina e sexualidade, contemplada tanto em relação ao espetáculo do palco (ou da tela), como principalmente, o espetáculo das poltronas. Mais uma vez, a coordenação entre homens belos e horrendos, masculinos e femininos, formam um conjunto imagético aprazível em sua diversidade, unificada pela captura simultânea.

Vale lembrar também que a imagem da dançarina também aparece em outras canções de Luís Capucho, desde antes do disco Cinema Íris. Curiosamente, a primeira gravação do disco Antigo,de Luís Capucho, já fala sobre o universo dos cinemas pornográficos do centro da cidade, dando centralidade à atriz e stripper Savannah, que veio a se suicidar em 1994, um ano antes do show que deu origem ao CD. No livro Cinema Orly, a letra é citada na íntegra, pouco após um comentário sobre a dançarina.

Na canção, seu nome é repetido a todo momento no início dos versos, jogando luz sobre a dançarina, chamando atenção para si e para sua história. Ao longo da letra, as roupas são dados fundamentais da composição da personagem (“luva justa, preta ou branca, ou de cetim”, “dança sobre os saltos/ bico fino de cristal”, que culmina com “capa anágua sutiã baby doll”). Curiosamente, são justamente as roupas a serem tiradas que ajudam a compor o corpo sedutor que promete se revelar.

O corpo, aliás, é revelado também em seu ágil movimento, que se imprime na forma ligeira de cantar os verbos coordenados (“Savannah gira, abre, fecha, cresce, dança, diminui”), reproduzindo o exato movimento da stripper. Há também um misto sagrado-profano em sua adjetivação como “deusa” e “coquete”, seguido imediatamente por um registro privado, íntimo, que transfigura a dançarina e a humaniza, posta em seu estado de solidão, de desejo de transcendência afetiva. A rápida transição da dança pública ao sentimento privado desenha a personagem entre a luz e a sombra, do cinema e da vida, projetando-lhe a dualidade das criaturas marginais. A melancolia do desfecho trágico (“imagina tudo acabado”) parece não enfraquecer a dança mas sublinhar a própria precariedade da juventude, da beleza e da vida, o que, contraditoriamente, torna-a mais bela.  

No mesmo disco há ainda a canção “Romena” (parceria com Suely Mesquita) em que aparece nova referência a uma dançarina: “Eu vi uma menina romena dançando break/ deliciosa uma mínima romena dançando break”, ao que se segue o refrão “Eu quero ter as maravilhas do mundo/ quero viver nas maravilhas do mundo/ quero comer as maravilhas do mundo/ eu quero ser as maravilhas do mundo”.

As repetições do final das estruturas “romena dançando break” e “maravilhas do mundo” encerram os versos, encontrando na repetição do movimento final de cada verso o movimento da dançarina. Seu corpo se constrói, para além do break, pelo adjetivo “deliciosa” e pelo adjetivo “mínima”, que reverbera no substantivo “menina”, acentuando-lhe o traço de juventude e de beleza. Veja-se também a variação e a gradação entre “ter as maravilhas”, “viver nas maravilhas”, “comer as maravilhas” e “ser as maravilhas do mundo”. Assim, começamos no desejo de acesso às maravilhas do mundo, que passam a ser um espaço onde se vive e também uma coisa que se come, o que aqui se desdobra entre o sentido sugestivamente sexual e a própria ideia de ingestão, de introjeção por meio do olhar que devora a juventude e a beleza. Por fim, o ser que tem, está e come as maravilhas contamina-se e torna-se ele próprio as maravilhas do mundo.

Terceira luz: as imagens e o sagrado

Ainda sobre o Cinema Orly, penso que seja importante destacar agora três outros elementos, de algum modo, relacionados: a virtualidade, a masculinidade e o sublime. Em primeiro lugar, há uma recorrência no livro em afirmar que, dentro do cinema, todos se transformavam apenas em imagens. Em dado fragmento, uma batida policial faz com que se acendam as luzes do cinema:

Mesmo porque os veados nada mais são do que abstrações de homens. Um veado é apenas um nome social para um homem que prefere outro homem na cama. Assustados com o corte repentino no nosso ambiente de sexo, estávamos concretamente homens. Com o cinema em funcionamento, éramos outra vez abstratos, e o pau comia (Capucho, 1999, p. 24).

Veja-se que, se os “veados” são apenas “abstrações” de homens, não é a condição concreta do sexo biológico que revela a sexualidade, mas o abstrato desejo de se relacionar com outros homens. Curioso também pensar que aqui, a homossexualidade aparece enquanto performance, tal qual as imagens na tela, e o acender das luzes encerra o espetáculo e devolve ao mundo “real”. Em outras passagens, afirma-se: “[no Orly] Todos poderíamos ser apenas uma imagem, sem alma.” (p. 63) e, páginas depois, “No Orly, éramos todos anônimos, nem mesmo a vendedora de balas tinha um nome pra mim. Éramos apenas uma imagem e estava descobrindo como isso era bom” (p. 73).  Nesses dois fragmentos, o interessante é pensar como, no Orly, sem nomes e sem histórias, em meio a conversas curtas, os frequentadores do cinema estavam protegidos enquanto imagens – era isso que lhes garantia a liberdade necessária para concretizarem o que desejavam ser.

Para além dessa questão da virtualidade, temos também que pensar sobre o problema da masculinidade que atravessa todo o livro. Nos parágrafos finais, o narrador relata que, quando criança, observava um rapaz lindo de vinte anos, sobre o qual afirma: “Para mim esse rapaz era o símbolo da virilidade adulta e sonhava ansioso que eu completasse vinte anos para, enfim, estar possuído da graça de ser um homem”. E conclui:

Pois o Orly trouxe-me, antes do tempo pensado, essa masculinidade adulta tão esperada, embora não passasse de uma bicha. […] No Orly, não era uma bicha feminina nem masculina. Para mim, esse nada que eu era, a ausência de formação de imagens sensuais no meu espírito era a masculinidade, contribuía para ela meu corpo, minhas roupas, meus pelos, minha voz (Capucho, 1999, p. 140-141).

Se pensarmos o romance (tal como Lukács), como uma trajetória em que o herói existe para conquistar sua essência, é fundamental pensar que a masculinidade se revela, nesse fragmento, como ponto de chegada dessa conquista.  O livro Cinema Orly refere-se, portanto, a uma representação da homossexualidade masculina e, sobretudo, da masculinidade homossexual, impulsionada também por um processo de identificação narcísica. E esse exercício só se torna possível exatamente no espaço em que os homens podem se converter em imagens abstratas sob uma forma masculina (“corpo”, “roupas”, “pelos” e “voz”).

Por fim, esse momento sublime de realização do desejo de ter e de ser a coisa desejada (as maravilhas do mundo), aparece em vários momentos do Cinema Orly, não raro ganhando contornos sagrados. Vejam-se as duas citações:

A masculinidade, representada por um caralho, era tudo que eu queria possuir, que eu invejava, que achava bonito, como se eu fosse uma mulher, como se eu fosse uma criança, um anjo, um bicho, uma ave e do que mais gostava era ir ao cinema Orly e, sendo tudo isso, ver minha imagem refletida em sua lagoa, como na história de Narciso, ou de Eros e Psiquê de Fernando Pessoa” (Capucho, 1999, p. 20).

Essa superioridade masculina, a violência e a rudeza com que os homens fodiam, fazia-me pensar no que há de mais delicado, exatamente, como a força violenta das águas produz eletricidade e a eletricidade produz luz, que não é um objeto, mas faz parte do mundo das coisas delicadas e nos é difícil saber de que material é feito seu corpo (Capucho, 1999, p. 96).

O primeiro fragmento reforça a ideia de projeção entre o desejo e a coisa desejada, tanto na referência ao mito de Narciso, como também no “Eros e Psiquê” de Fernando Pessoa, onde a princesa adormecida espera o infante que a despertaria e, no final, descobre que “ele mesmo era a princesa que dormia”. No segundo fragmento, a idealização de uma “superioridade masculina”, marcada pela virilidade, é representada pela violência das águas, que produz eletricidade (em algumas passagens do livro, o prazer do homem que recebe o sexo oral é descrito como um corpo eletrificado pelas sensações) e esta, por sua vez, produz a luz, a luminosidade, a iluminação. Da sombra à luz, do partido ao pleno, do profano ao sagrado, o texto de Capucho vai representando, sob o signo de Narciso, a fruição livre do prazer que conduz o sujeito à sua emancipação, à sua essência.

Por isso, vale pensar também em fragmentos em que o narrador comenta a dimensão divina da experiência homoerótica: “Antes de beijar um homem, achava que vê-lo nu, aberto, os pelos amaciando a atmosfera, saco e pau escancarados junto ao tufo de pentelhos era encontrar Deus” (p. 73). Não por acaso, há muitas referências ao longo do texto que aproximam o cinema Orly a uma igreja ou um templo. Na própria letra de “Cinema Orly”, citada no livro, afirma-se: “o Cinema Orly/ de terça a terça/ de dez às dez/ abre as portas para os fiéis/ seja uma igreja seja um cinema/ o Orly me beija”.

Essa aproximação entre o prazer e o sagrado, que se reforça pela posição de joelhos na qual se reza ou se realiza o sexo oral (já explorada imageticamente pela Madonna de “Like a prayer”), percorre todo o livro por meio de uma espécie de culto falocêntrico, que aparece também em algumas letras de Capucho como “São flores” (“que inferno e que céu/ que diabo de tesão doido em mim/ que tudo são deuses/ os rapazes são deuses pra mim/ que tudo são flores/ os caralhos são flores pra mim/ os deuses com flores/ são flores pra mim/ que horrores-maravilhas”).

Tal arco luminoso entre o divino e o humano, o narrador nos comunica em outra passagem do livro:

Isso me faz pensar nas pinturas renascentistas católicas, onde Cristo, Maria, Maria Madalena, Verônica, ou os anjos, os apóstolos, todos têm cara de prazer ou desejo sexual que se parece muito com a expressão de dor. Tem uma pintura que chama a atenção, porque Cristo, deposto da cruz no chão, com sangrentas feridas sob a coroa de espinhos, nas mãos, nos pés, tem a fisionomia de alguém que, numa cama, sofre de amor ou de prazer. Cristo está lindo nos braços de Maria que também sofre, olhando para o seu pau escondido sob aquela fralda branca. Maria também está linda (Capucho, 1999, p. 100).

Impressiona no fragmento a capacidade descritiva do autor, que praticamente pinta a imagem com palavras. Capucho, por meio da palavra “pau”, tão obscena à referência de Cristo (ainda mais diante da piedade de Maria), devolve ao supliciado seu corpo sensível e humano, escondido por trás da manta (aqui despida por meio da palavra “fralda”). Cristo e Maria estão lindos no que revelam de sagrado e de profano que reside nos corpos que gozam e penam. Isso tudo faz pensar tanto na definição de Mathilda Kóvac sobre o livro de Capucho (“O Cinema Orly é sua via crucis do corpo e do espírito num templo da Cinelândia”), como também em George Bataille, refletindo sobre o erotismo por meio do Êxtase de Santa Teresa ou da expressão de gozo na fotografia do supliciado chinês. A dor e o prazer como expressões dos corpos conectam-nos a todos a nossa dimensão mais humana e, portanto, mais sagrada.

Quarta luz: a transfiguração do real

Convém agora refletir mais detidamente sobre os procedimentos estéticos que permitem a Luís Capucho promover a isso que venho chamando de “transfiguração do real”. Comecemos pela canção “Poltrona”:

Não digo que é só sonhar
Mas nessa poltrona
Me sinto assim um astronauta
Um tapuia e uma princesa
Eu fico assim meio sereia
Meio reumático, paralítico
Assim, meu corpo na poltrona
Enquanto voam passarinhos
Enquanto flores morrem na janela

E a poltrona
Como a cama, como a nave, como o altar
Como o trono, como o mar
Oh, poltrona!
Oh, poltrona!
Oh, poltrona!

Eu não sei viver, não sei viver
Sem teu calor
Eu não sei sonhar, não sei sonhar
Sem ter você
Minha cabeça no seu braço
E meu corpo no seu regaço
Alto do chão

A poltrona que dá título à canção remete a um espaço de inércia, no qual descansamos e, por vezes, assistimos a alguma coisa. A partir desse espaço “parado” é que o sujeito sonha, ou seja, move-se em meio a uma realidade alterada. Vale notar como a ideia da viagem para além, anuncia-se desde o signo do “astronauta”, que é coordenado ao “tapuia”, à “princesa” e, depois, à “sereia”, conduzindo-nos a personagens do imaginário infantil, que, além de se fixarem como imagens, projetam também seus correspondentes cenários de fantasia. A poltrona, por fim, também se transmuta, tornando-se “cama” (espaço do sono e do sonho), “nave” (espaço celeste onde viaja o astronauta), “altar” (símbolo do rito sagrado e da experiência mística), “trono” (que se vincula à princesa) e “mar” (onde vivem as sereias).

Cabe sinalizar que a “poltrona” apresenta também uma interseção com o universo do próprio cinema. Os versos finais da letra permitem essa leitura, na medida em que o sonho precisa de outro sujeito que o dispare. Veja-se que “minha cabeça no seu braço/ e meu corpo no seu regaço/ alto do chão” possibilitam o deslocamento para o universo capuchiano dos cinemas pornográficos e da transfiguração do real que neles se consubstancia. Do chão ao alto, do repouso do colo físico à experiência sonhada, Capucho volta a realizar seu processo de transformação.

Esse processo pode ser encontrado em uma série de outras canções do autor. “La nave va” que abre O poema maldito, embora tenha letra de Manoel Gomes, também se comunica com esse processo. O título, que poderia se traduzir do italiano como “o navio vai” (e que curiosamente toca a proximidade etimológica entre nave e navio ao aparecer em uma canção em português) dá centralidade à janela como esse ponto de deslocamento da realidade por meio das imagens: “eu olho a nave pela janela voando/ e eu parado olhando a nave voando/ nave bela sofisticada e que me leva a outros mundos”.

A janela aqui, tal como a poltrona na canção anterior, permite o processo de viagem para outros lugares, ainda que o sujeito se afirme parado. Vale pensar como a janela é justamente um espaço de beira, de limite, entre o sujeito que olha e o objeto olhado; e a canção é o veículo da viagem, as palavras também postas à beira. Na letra, o deslocamento da nave para a janela, aparece nos versos “janela, objeto comum vulgar/ que não me leva a lugar nenhum/ mas é por causa dela que eu viajo na nave/ é ela que me leva/ é ela que é bela/ eu aprendi a amá-la através dos anos”.  

A canção reverbera também em “Parado aqui” (“O céu estava azul/ o sol tão brilhante/ e eu aqui parado penso, onde vai minha cena”). A letra vai sendo construída em um crescente, em que sujeito pensa “onde vai a semana com tanto acontecimento, com o homem, com a mulher, com a árvore na calçada, com a sombra da árvore na casa…”. Outra vez, o eu-lírico inerte vai capturando o real em movimento. A letra segue anaforicamente: “o céu estava azul, o sol tão brilhante,/ o beija-flor voar/ o céu das janelas abrir/ o céu da árvore crescer da sombra da árvore”. O paralelismo sintático é atravessado por uma transfiguração do céu, que passa a ser um para o beija-flor, outro para a janela e outro para a árvore. Trata-se de uma poesia do olhar, mas de um olhar pensante, que usa a organização sintático-semântica para variar focos e transformar o real no exato momento de sua captura.

Assim, poderíamos elencar como recursos formais recorrentes na obra de Capucho: a centralidade de verbos vinculados aos sentidos (especialmente, “olho”, “vejo”, “ouço” e “escuto”), o registro pictórico de um ambiente no exato momento de sua metamorfose, a coordenação sintática de substantivos ou adjetivos (produzidos não raro por uma sequência de símiles ou metáforas que vão se testando diante do ouvinte), rupturas semânticas ou mesmo sintáticas que deslocam o real e, por fim, um apurado controle da captura das cenas (que se expressa por meio de aproximações ou distanciamentos de foco, variações de iluminação, dualidade entre a inércia e o movimento).

Na representação das cidades, podemos pensar em exemplos, como “Lua singela” e “A vida é livre”, ambas de Lua singela. Na primeira, uma espécie de vampiro se anuncia na primeira estrofe, buscando sangue para se alimentar. Então, afirma, “vocês estão muito mais lindos/ pelas ruas da cidade/ subindo pra os apartamentos/ indo pras suas casas”, enquanto a voz poética reclama: “eu não tenho nada pra comer/ eu vou morrer de fome/ eu não tenho onde morar/…/ Vou andar sem destino/ dormir sob as marquises”. Esse olhar desejante e desabrigado se lança sobre os homens na cidade e, no final, conclui a paisagem: “no céu negro de estrelas/ a lua enorme caindo atrás da cidade/ ê, lua singela!”. A montagem da cena cria, portanto, três núcleos imagéticos: o vampiro desabrigado (na rua), os homens se dirigindo para suas casas (os apartamentos) e, em apenas três versos, um céu negro e estrelado envolve o cenário urbano em uma operação vangoghiana. A lua que era “enorme” atrás da cidade, torna-se singela em seu movimento poente, contaminando toda a cena a partir desse olhar desabrigado. 

Em “A vida é livre”, é a vez do mar ser pintado em verso por Capucho: “a vida é livre/ as ondas batendo na praia/ elas vêm com força/ parece que empurram a cidade pro alto/ parece que querem isso”. A imagem potente das águas empurrando a cidade pro alto (note-se como o caráter verticalizante da cidade ganha sentido aqui a partir de um impulso da natureza), torna-se representativa da própria liberdade da natureza, e portanto, da própria vida. Na sequência, céu, vento, mar, montanhas, luz, aves voando, peixes mergulhando, enfim, o espetáculo da imanência de tudo, da liberdade de tudo, levam ao verso “a vida não para de chegar/ e eu já não tenho medo”. O sujeito, incluso no movimento das coisas, partícipe da beleza das coisas, se integra ao cenário que observa e transforma, atribuindo sentido à vida que chega pela contemplação natureza.

Por fim, valeria indicar como essa pulsão do olhar atua na emblemática canção “Maluca”, que se abre exatamente com um convite para olhar, em uma cena matizada pela chuva e pela tristeza: “num dia triste de chuva/ foi minha irmã que me chamou pra ver/ era um caminhão, era um caminhão/ carregado de botões de rosa/ eu fiquei maluca/ por flor tenho loucura, eu fiquei maluca”. O gesto de olhar (e o encanto com a beleza) provoca a ruptura do dia triste (mas não da chuva, que continua a incidir sobre o dia). A canção se completa:

Saí
E quando voltei molhada
Com mais de dúzias de botão
Botei botão na sala, na mesa, na tv, no sofá
Na cama, no quarto, no chão, na penteadeira
Na cozinha, na geladeira, na varanda
E na janela era grande o barulho da chuva
Da chuva
Eu fiquei maluca
Eu fiquei maluca

O interessante é perceber o próprio sujeito lírico feminino capturado entre a chuva e a as rosas (vale também observar a ambiguidade da oração “quando voltei molhada”, que evoca o registro feminino da excitação). Sujeito e ação se fundem pela proximidade fonética entre “botei” e “botão”, que abrem uma sequência de termos coordenados que transfigura o espaço caseiro convencional que os substantivos evocam – a cama, o quarto, o chão, a penteadeira, a cozinha, a varanda e a janela (ao que vale observar também a mudança de cômodos, intensificando o espalhamento da beleza). A janela é agora o elo para o fechamento do ciclo, retornando à imagem (e, especialmente, ao som) da chuva e da iluminação dessa personagem que ficou “maluca” (e não mais triste em meio a um dia chuvoso). É bonito notar também como é justamente a expressão poética o veículo da transformação: é o compositor Capucho que distribui, com a voz, flores em uma casa num dia chuvoso – as flores, a casa e a chuva, todas feitas de palavras.  

Quinta luz: Mamãe me adora

Outro aspecto importante para compreender a obra de Luís Capucho é a representação da mãe em seus livros e canções. Como já disse, a figura da mãe aparece nos romances Rato (em que o rapaz se muda com a mãe) e Mamãe me adora (que conta a viagem com a mãe para Aparecida do Norte). Antes de tudo, a mãe aparece aqui como interseção entre romance e vida, dado autobiográfico e representação literária. Para além disso, a figura materna, estritamente ligada ao feminino, surge como fonte rica de representações, não apenas sobre o gênero, mas sobre a própria experiência da vida e do tempo, da decadência física e da morte. Nas canções, além das referências em “Música de sábado” (“eu ando com mamãe na lua cheia”) e “Mais uma canção de sábado” (“agora que não tem mais mamãe para me proteger”), a imagem da mãe ganha centralidade em “Mamãe me adora” e “Sua mãe” (de Antigo) e, por fim, em “Eu quero ser sua mãe” (de Cinema Íris).

Em “Mamãe me adora”, a letra joga com as relações edipianas desde os primeiros versos: “mamãe me adora/ profundamente ela me quer/ mais do que quis outros homens/ que ela também amava/ que ela também devorava”. Na segunda parte, o espelhamento com a figura materna, começa por “eu também sou feliz com homens/ como os que amou mamãe” e segue por uma lista de “homens que são/ cheios de tesão/ como diabos/ homens que são/ como aparição/ como nossa senhora/ homens que são belos e bons/ sentados, homens em pé/ fortes, feios, gordos, galantes, machos, motoristas, rudes, ruins/ delicados, generosos, gentis/ bravos, brutos, crespos,/ lisos, presos, soltos/ suaves, sofisticados, simples/ soldados, ciganos, pedreiros, patrões… mamãe me adora”.

No canto, Capucho enfatiza mais lentamente o verso reiterado “homens que são…”, enquanto desliza pelos predicativos, formando novamente uma coordenação de imagens masculinas muito semelhante àquela que já discutimos ao relacionar o fragmento de Cinema Orly à canção “Cinema Íris”. Assim, a discussão sobre a homossexualidade e a masculinidade aparecem já aqui, antes das duas obras, projetando a figura materna como dado importante da formação dessa subjetividade e de seus desejos.

Em “Eu queria ser sua mãe”, novamente as coordenações sintáticas e as anáforas vão desenhando a figura materna, na qual o sujeito se projeta (“eu quero ser sua mãe/ feito ela ser tão bom/ feito ela ser macio/ feito mamãe ser o seu prumo”). A mãe surge aqui como aquela que cuida, veste, arruma, zela, protege (“te fazer vestir a camisa”, “te fazer calçar os chinelos”, “e não esquecer o guarda-chuva”, “pentear os seus cabelos”, “cortar as suas unhas”). A subida do tom em “quero te pegar no colo” (junto ao crescente do desejo), aterrissa em “te colocar na cama”, permitindo a virada para um universo de ambiguidade mais claramente incestuosa – “brincar no seu corpo pelado” e, por fim, “te lambuzar com o meu doce”.

O processo de transfiguração da relação com contornos homoeróticos (que é um dado externo à canção, mas que lhe é pertinente enquanto peça de um conjunto de produções de Capucho) chega ao auge nos versos finais, quando o próprio doce do sujeito contamina seu parceiro, que passa a ser alvo iminente do perigo, da degradação, da destruição (“e ficar matando as baratas (as formigas) que venham te comer”. Assim, o sujeito (projetado na mãe), para que o lar se mantenha em ordem, cumpre seu ciclo de doçura, ameaça e proteção.

Sexta luz: Poema maldito

Em 2009, Ney Matogrosso gravou o álbum Beijo bandido, que se tornou DVD em 2011.Aparentemente, o adjetivo do título desencadeou um processo reflexivo no intérprete, que, nesse mesmo ano, anunciou seu desejo de fazer um disco só com compositores “malditos”, entre os quais destacava Itamar Assumpção, Jards Macalé, Jorge Mautner e Luís Capucho. Do nosso autor, chegaram a Ney as canções “Céu” e “Cinema Íris” como possibilidades. Note-se que, em 2011, os discos Cinema íris e Poema maldito ainda não haviam sido lançados. Em fevereiro de 2011, o jornal O Globo publicou a reportagem “O ‘lendário’ e ‘maldito’ Luís Capucho lança disco e livro e é gravado por Ney Matogrosso”, ajudando a reforçar a imagem de maldito a Capucho, e dando visibilidade ao disco Cinema íris e ao livro Mamãe me adora, ambos lançados, como se sabe, no ano seguinte.

O fato é que Ney desistiu da ideia do disco, conforme registrado na imprensa a partir do final de 2016. No entanto, seu aval ajudou a trazer Luís Capucho para um espaço de maior visibilidade e, ao mesmo tempo, acabou sugerindo um viés de leitura de sua obra por meio do predicativo de marginal. O próprio Capucho se apropriou desse gancho, quando em 2014 lançou o disco Poema maldito, curiosamente transfundido do poeta para o poema a condição maldita.

Os termos “maldito” e “marginal” são férteis no sentido de compreendermos melhor tanto aspectos contextuais como também estéticos que se vinculam diretamente a esses termos. Em primeiro lugar, vale observar como a origem das palavras nos ajuda a inferir os sentidos primários desses termos. Assim, “maldito” é aquele vinculado ao maldizer, isto é, aquele sobre quem se fala mal, aquele a quem se desaprova a forma de existir e a forma de se expressar. Já “marginal” é aquele que se encontra à margem, isto é, aquele que não flui o caminho tradicional e que, por isso, é posto à parte. O termo, evidentemente, pode ser vinculado também àqueles artistas que estão à margem da produção mainstream, da visibilidade das grandes mídias, que estão postos para fora da cena, obscenos que são.

A ideia do poeta maldito também pode ser vista a partir de sua conotação romântica, especialmente na virada do século XVIII para o XIX, quando o culto à subjetividade e a auratização do “gênio” levaram à idealização dos poetas como visionários, assinalados e amaldiçoados, que conseguem ver e sentir além, tornando-se incompreendidos. O poeta desviante num universo de vida intensa, degradação física, loucura, entorpecimento, idealização da morte, e até numa certa atmosfera satânica, iriam contribuir para essa formulação. No final do século XIX, a poesia moderna francesa revisitou o mito do poeta maldito, especialmente em torno de poetas como Baudelaire, Rimbaud, Verlaine e Mallarmé.[5]

Já o termo marginal pode ser mais bem compreendido na linha histórica da virada dos anos 1960 para os 1970, ao que evidentemente contribui a algo esdrúxula contemporaneidade entre o apogeu da ditadura civil-militar e o auge do influxo dos movimentos contraculturais no país. Nesse contexto, Frederico Coelho nos chama atenção para a profusão do rótulo no Brasil da época, quando se começa a falar em “imprensa marginal”, “poesia marginal”, “cinema marginal” e, por fim, em compositores marginais, isto é, os músicos “malditos”, como Jards Macalé e Luiz Melodia.

É também de grande importância pensar que a marginália apresenta vínculos estreitos com a tropicália, compondo um dos intercruzamentos mais férteis para a cultura brasileira na virada dos anos 1960 para os 1970. A incorporação da marginalidade urbana, do desbunde, das posturas libertárias em relação ao sexo e às drogas, a valorização da juventude e do narcisismo e a centralidade do corpo e das lutas identitárias seriam refletidas também nas buscas estéticas do período. Vale lembrar que Luís Capucho se mudou para Niterói, ainda adolescente, exatamente nos anos 1970, tendo vivido direta ou indiretamente os influxos desse momento histórico e estético. Convém também lembrar do disco coletivo Ovo,de 1996, que se pretendeu associado a uma ideia de “retropicalismo”. Talvez, a inclusão de Capucho nesse conjunto sinalize menos uma associação direta com o universo tropicalista do que uma relação estreita com o universo marginal que lhe faz interseção.

A obra de Capucho dialoga com esses sentidos, não apenas ao representar o espaço underground dos cinemas pornô do centro, mas também as criaturas marginais, que carregam consigo a tensão entre o sagrado e o profano, a luminosidade e a escuridão. Além disso, o signo do poeta maldito (ou marginal) parece sempre abrir seus sentidos no tempo (em um processo de ancestralidade de personagens malditos) e no espaço (em um processo de mitificação de lugares alternativos onde vivem, se encontram, gozam e se exilam os marginais). Em canções como “Música de sábado”, “Mais uma canção do sábado” e, evidentemente, “Poema maldito”, encontramos exemplos desse conjunto simbólico.

A “Música de sábado”, que abre o disco Cinema Íris, é uma parceria com a artista Kali C, e trata de um sujeito que se afirma “na beirinha”:

Poucos fazem como eu faço
Que estou sempre na beirinha
Daqui pra lá não existe mais fundo
Daqui pra lá não existe meu mundo
Daqui pra lá é o fim

É a maluquice
Eu ando com mamãe na lua cheia, na noite vazia
Uma jovem bicha triste
Mendiga um trocado pra comer biscoito
Penso um pouco
Olhando para o mar, olho pro vazio, olho para mim
Olho pro rapaz sentado esperando
Olho para o fim

O sujeito da canção já começa se colocando em um espaço de exceção – fazer o que poucos fazem, estar sempre na beira ou, se preferirmos, à margem. A palavra “beira” parece ser ainda mais interessante, não apenas porque demarca um espaço fundo e limítrofe, que encerra os limites do mundo daquele indivíduo. Assim, o sujeito à beira torna-se também um sujeito sempre em perigo, sempre próximo ao fim, ao risco de perder seu mundo. Esse misto de gauchismo e precariedade acabam por defini-lo. A maluquice, evidentemente, reverbera à imagem da “beira” (vale lembrar a célebre frase de Estamira – “Eu sou a beira do mundo”).

A imagem da mãe (e da lua) volta a aparecer em “Eu ando com a mamãe na lua cheia, na noite vazia”, ao que se segue o verso “uma jovem bicha triste”. É curioso como esse verso “uma jovem bicha triste” é cantando logo na sequência do verso anterior, dando impressão que se trata de um predicativo do sujeito da canção. No entanto, a sequência nos leva a entendê-lo sintaticamente como sujeito do verbo “mendiga” no verso seguinte. A confusão, permitida pela oralidade da canção e pela construção da palavra cantada, não deixa de funcionar como registro empático entre o sujeito e a bicha triste que mendiga para comer.

Nota-se também na mesma canção a pulsão do olhar, que tanto caracteriza a expressão de Capucho, o que se observa na reiteração dos verbos “olho” (como em “olho pro rapaz sentado esperando”), “vejo” (como em “vejo calças arriadas no banheiro do Rex”, em nova alusão ao universo dos cinemas). Nos versos “tomo os remédios e continuo/ da beirada vê-se o céu aberto”, a margem abre-se também no sentido da enfermidade e, portanto, da beira da vida, isto é, da experiência da própria precariedade da vida. Apesar de conseguir ver o céu aberto, é notável também que o limite é tênue para aqueles que vivem (e ainda mais para aqueles que vivem à margem). A música completa um arco de caminhada que termina em sua própria casa – “ando até minha casa/ a música do sábado à noite/ me derrete sozinho na cama”.

Assim, a solidão encerra a canção configurando-se como um último registro da beira – o inclinar-se para fora no arriscado desejo da transitividade amorosa. Interessante por fim, registrar a ambiguidade do verbo “derreter”, tão afeito às experiências de sexo (evocando o suor), das drogas (do entorpecimento) e da música (vinculada ao sábado, dia do ócio e do prazer), em contrapartida à solidão da cama, isto é, um gesto de derreter-se que pressupõe a dissolução do sujeito, seu risco de desaparecimento, seu estado à beira.

Essa canção é bom preâmbulo para compreendermos a chegada do disco Poema maldito em 2014, que condensa alguns vetores da obra de Luís Capucho. Vale começar chamando a atenção para a escolha da capa, produzida por Felipe Castro a partir de sugestão do jornalista João Santos. Na fotografia, Capucho aparece deitado no chão, de olhos fechados, de braços abertos, com o violão sobre si. A referência é nitidamente o estandarte de Hélio Oiticica de 1968, que traz a imagem do bandido Cara de Cavalo, amigo do artista, que foi morto pela polícia à época. Completa a obra a inscrição “seja marginal seja herói”, reforçando a relação daquela geração com o universo da marginalidade urbana e com a auratização dos personagens à margem do sistema.

Gonzalo Aguilar, ao comentar o estandarte de Oiticica, nos chama atenção também para a proximidade entre a posição de Cara de Cavalo e o apóstolo Pedro, crucificado de cabeça para baixo, na representação de Michelangelo no século XVI, o que reforça ainda mais a santidade maldita do personagem em sacrifício e redenção, bem como as aproximações entre o sagrado e profano que tratamos. Vale, por fim, observar a curiosa inversão dos braços de Capucho e do bandido – enquanto este apresenta os braços para baixo (mais próximos dos de Pedro) e que parecem mais rígidos e presos, aquele os apresenta mais para cima (mais próximos dos de Cristo), e parecem mais frouxos e relaxados, como quem entrega o corpo à cama, livre e despojado.

Fontes: https://www.luiscapucho.com.br/; http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra2638/bandeira-poema; https://pt.wahooart.com

O disco apresenta duas canções que são pertinentes a nossas reflexões e que, curiosamente, não têm letras originais de Luís Capucho, embora tenham sido compostas em proposital sintonia com seu universo. A primeira delas é a “Mais uma canção de sábado” de Alexandre Magno, que inventa uma espécie de continuidade da “Música de sábado” de Capucho, como também de alguns de seus temas e procedimentos construtivos. A música começa na cama, com o sujeito acordando “babado” e “tarado” de saudade (vale lembrar que a “Música de sábado” termina com o sujeito que “derrete sozinho na cama”). A mãe que aparece na primeira canção (“eu ando com mamãe na lua cheia, na noite vazia”) agora já se configura como ausência (“agora que não há mais mamãe pra me proteger”). Mais uma vez também a janela aparece como núcleo de observação de um real transfigurado – “as coisas belas não sabem onde se esconder”, como se quisessem ou devessem fazê-lo. Assim, as coisas belas tornam-se “frágeis”, “corajosas” e “nuas”, expondo-se sem medo de sua beleza. A descrição subsequente da segunda parte continua a ilustrar processos construtivos semelhantes, nos quais “móveis”, “facas”, “livros” e “plantas” completam o cenário, vendo e sendo vistas pelo sujeito.  

A letra se segue com a reiteração dos versos “vagando pelas ruas e avenidas/ você não pode mais se esconder de mim/ você está em todo lugar”. Veja-se que, se a primeira canção começa em movimento na rua e vai até a cama parada; aqui fazemos o caminho inverso – da cama para a sala e desta para a cidade. A transfiguração do real também presentifica o objeto do desejo amoroso (motor da saudade), que surge como todas as coisas belas que não podem se esconder. A crescente batida do violão e o canto visceral de Capucho nesses momentos de refrão condensam o tom desesperado e assertivo com que se busca, no campo do real, uma beleza que está mais que presente no campo imaginário.

O caráter marginal aqui se sustenta mais claramente pela relação direta com a canção anterior, ainda que se possam encontrar algumas referências nesta própria letra, como o sujeito desejante e solitário que vaga pelas ruas, a cabeça consumida por uma ideia totalizante, que se espalha por todo lugar. Aqui, é impressionante tanto a congruência da letra com o universo capuchiano como a apropriação que Capucho faz dessa letra, tornando-a sua, como faz com tudo que canta.

A música que dá título ao disco Poema maldito tem letra de Tive, mas é inspirada em uma história vivida por Capucho em uma praia de Icaraí. Convém citar a letra inteira:

Estou na praia com um sujeito aleijado
Que busca intimidade comigo
Ele tem os braços atrofiados
E isso faz com que ele se pareça um louva-deus sagrado
Estamos conversando
Ele me diz que vive só
E que prefere assim
Porque gosta de se deitar no sofá
A ver filme pornô

Eu disse: sou o Luís Capucho e escrevi o Cinema Orly
E tenho namorado
Em todo caso ele me chama pra beber
E ver filme pornô na sua sala
Então, se aproxima e trata de sentar-se do meu lado
Mas não sei como aconteceu
Ele caiu no chão
Ele caiu no chão
Com movimentos estranhos que não entendo
Fico um tempo a reparar que não vai se levantar sozinho
E vou embora dali
E o abandono em sua agonia de inseto moribundo

É curioso pensar que essa letra toda se passa no solar espaço da praia. No entanto, os dois personagens ali postos, tal como o diálogo que travam entre si parece contaminar o cenário e, portanto, mais uma vez transfigurá-lo. Primeiramente, o “sujeito aleijado” e solitário que gosta de ver filme pornô já se apresenta como encontro inusitado. A letra, porém, observa seus “braços atrofiados” e o aproxima da imagem de um “louva-deus sagrado”. O inseto acaba por concentrar o paradoxo entre a estranheza de sua forma (para além de sua precariedade) com o caráter sagrado que adquire ao aproximar-se do louva-deus e de seu gesto.

O convite para ver o filme pornô (e o próprio flerte homoerótico), aliás, evoca o universo dos cinemas pornográficos e, assim, as obras-irmãs Cinema Orly e Cinema Íris, devidamente conectadas discursivamente ao presente álbum, condensando o caráter marginal-maldito do compositor. Dessa vez, porém, o verso “E tenho namorado” abre-se em dois sentidos – a negativa da intimidade buscada pelo sujeito, e a própria evocação redundante da busca de um namorado que atravessa todo o Cinema Orly. Com isso, o poeta, de fato, aparece aqui menos maldito que o poema, dando sentido ao deslocamento do título. Já o outro personagem insiste no jogo da sedução, mas acaba se desequilibrando e caindo (o que é repetido na canção), de modo inesperado para o sujeito lírico que, outra vez, observa a cena.

O mais curioso é o esvaziamento de qualquer sensibilidade piedosa por parte do enunciador. Onde esperamos uma oferta de ajuda, um gesto solidário de socorro, encontramos uma indiferença crua, que simplesmente assiste à queda e à impossibilidade de se levantar (tal como se vemos insetos caírem invertidos e não conseguirem se recolocar). A agonia do sujeito aleijado parece realçar, em seu sacrifício, seu caráter sagrado. E a aparente indiferença que poderia nos chocar na cena é facilmente explicada: tal como os répteis do Orly, o personagem havia se convertido em imagem.

Sétima luz: Homens flores

Bruno Cosentino, que me apresentou Luís Capucho, é um importante intérprete de sua obra, tendo gravado belamente as canções “Homens flores” no disco Babies,de 2016, e “Eu quero ser sua mãe” em Corpos são feitos pra encaixar e depois morrer,de 2017. Nos últimos anos, assisti muitas vezes a shows dos dois juntos ou ao menos fazendo participações um no show do outro. Neste ano de 2018, Cosentino fez um espetáculo com canções de Ney Matogrosso e incluiu no repertório “Cinema Íris”, como forma de provocação-homenagem. Ney e Capucho estavam na plateia.

Seria necessário outro trabalho para abordar as relações entre o universo desses dois artistas, embora pareça claro que a questão do corpo seja central para as duas obras. Nos dois últimos álbuns, Bruno Cosentino também explora o jogo entre o masculino e o feminino, em frequentes deslizamentos que aparecem nas letras, no canto, nos figurinos e também na postura cênica do artista. Conversamos muitas vezes sobre a questão da masculinidade e como ela aparece na obra de Capucho, e como ela poderia ser levada também para outros lugares. Tais elementos se consolidaram, afinal, como vetor importante no conjunto dos artistas da música brasileira contemporânea que exploram a questão do gênero e da sexualidade em suas múltiplas conjugações.

Quando conversávamos sobre isso, Bruno Cosentino pensava um nome novo para seu show, que abarcaria majoritariamente as canções de Babies e Corpos…, que são também uma espécie de obras-irmãs no conjunto de sua produção. Eu sugeri Homens flores, que é o título da parceria de Marcos Sacramento com Luís Capucho, que começa dizendo: “os mundos são mais belos/ quando olhados pela janela/ e as colinas estão repletas de homens fortes”. Na sequência, versos paralelos se atravessam de modo especular, alternando o pronome coesivo e interferindo na imagem: “e eu olho pra elas [eles] porque elas [eles] são o mundo inteiro/ e eu olho pra elas [eles] porque elas [eles] são meu terreno/ onde eu vou plantar/ homens flores, flores homens”.

A letra me parece uma chave de leitura poderosa para compreender a obra de Luís Capucho. Novamente vemos aqui as janelas, os homens e as flores. E, sobretudo, o exercício de transfiguração do real que tratamos aqui. A imagem quase classicista de uma colina “repleta de homens fortes” dá centralidade aos corpos masculinos em sua fusão com o cenário. A pulsão do olhar também aparece aqui e é um deslizamento que provoca a subversão da cena – ora as colinas são o mundo inteiro, ora os homens são o mundo inteiro, o que faz confluir o humano e o natural em uma imagem totalizante. Na sequência, os homens e as colinas passam a ser um terreno, onde é possível plantar flores homens e homens flores.

O terreno misto de natureza e humanidade é justamente aquele que permite o híbrido entre as flores e os homens (vale lembrar o verso “caralhos são flores” da outra canção). A flor, curiosamente, em geral, é representada como signo do feminino, muito embora sua forma, seu caule, e a forma que se projeta no espaço poderia também ser vista sob a chave do masculino. De todo modo, o embaçamento entre esses signos permite o nascimento de uma coisa outra, que é homem e flor, e que reflete esse espelhamento na própria inversão dos termos, fazendo das duas palavras, ora substância (substantivo) ora característica (adjetivo). Além disso, é comovente a imagem que transforma os homens em uma coisa (bela e delicada) a se plantar (e a se colher com os olhos). É desse modo que Luís Capucho, homem-flor, nos revela a beleza e traça seu arco iluminado, que sai de sua palavra-voz, a vida.


* Rafael Julião é professor substituto de Literatura Brasileira na UFRJ, onde fez seu mestrado sobre Cazuza e o doutorado sobre o livro Verdade tropical de Caetano Veloso. É também coordenador do Núcleo de Estudos da Canção do PACC e autor do livro Infinitivamente pessoal – Caetano Veloso e sua verdade tropical (2017).

Referências

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BATAILLE, George. O erotismo. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.

CAPUCHO, Luís. Cinema Orly. Rio de Janeiro: Interlúdio, 1999.

CAPUCHO, Luís. Mamãe me adora. Rio de Janeiro: Edições da Madrugada, 2002.

CAPUCHO, Luís. Rato. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.

COELHO, Frederico. Eu brasileiro confesso minha culpa meu degredo – cultura marginal no Brasil das décadas de 1960 e 1970. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Impressões de viagem. São Paulo: Brasiliense, 1980.

FERRAZ, Eucanaã (org). Poesia marginal – palavra e livro. São Paulo: IMS, 2013.

LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico – De Rosseau à internet. B.H.: Editora UFMG, 2008.

LUCÁKS, Georg. A teoria do romance: um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande épica. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2009.

PEREIRA, Carlos Alberto M. O que é Contracultura. São Paulo: Brasiliense, 1983.

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ROSAI, Nathália. Sou o sol: uma investigação heliotrópica da experiência extática em Georges Bataille. Revista Nures, ano III, número 21, maio-agosto de 2013.

SKYLAB, Rogério. O sublime na obra de Luís Capucho. Disponível em: http://godardcity.blogspot.com/2015/04/o-sublime-na-obra-de-luis-capucho.html. Acesso em dez 2018.

Sites pesquisados:

https://www.luiscapucho.com.br/

https://oglobo.globo.com/cultura/o-lendario-maldito-luis-capucho-lanca-disco-livro-e-gravado-por-ney-matogrosso-2819556


Notas

[1] Programa Avançado de Cultura Contemporânea, que funciona na Faculdade de Letras da UFRJ.

[2] Em dada passagem de seu livro Cinema Orly, Capucho afirma: “Na mesa de bar, contei-lhe também a minha história. Tinha uma boa história, quer dizer, eu gostava dela e ele comprazia-se em ouvir-me contar que não tinha conhecido meu pai, era filho único, fora criado sozinho com minha mãe com quem vivia até então numa casa com quintal, cachorros, gatos, bicicleta, televisão, sofá e um pé de carambola” (CAPUCHO, 1999, p. 39).

[3] Os outros artistas que compõem o programa “A voz dos marginais” são Bingo Gazingo, Daniel Jandek, Shooby Taylor, Åke Sandin e Bob Vido.

[4] http://radiobatuta.com.br/programa/a-voz-dos-marginais/

[5] É emblemática nesse sentido a coletânea de Paul Verlaine, de 1884, que se chama justamente Les poètes maudits.

dossiê
Tempo de leitura estimado: 42 minutos

ESCUTA BRUNO COSENTINO

Em 21 de setembro de 2017, Bruno Cosentino, um dos idealizadores do Núcleo de Estudos da Canção do PACC, da Faculdade de Letras da UFRJ, foi convidado a fechar o ciclo do primeiro ano de audições de discos de canção brasileira contemporânea, com seu álbum Corpos são feitos pra encaixar e depois morrer (2017). Na ocasião, conversamos sobre sua trajetória artística, os elementos estéticos e temáticos do disco, e também sobre questões como a natureza da canção, as questões do corpo e da sexualidade, as influências musicais, os problemas da criação artística e a inserção do artista no contexto musical contemporâneo.

Para a escuta:

Bloco 1 – O corpo

Escuta: 1. “É claro que eu queria” (Bruno Cosentino)

Rafael Julião: Bruno Cosentino é cantor e compositor. Tem quatro discos: o primeiro, de 2012, é com a banda Isadora e se chama A eletrônica e musical figuração das coisas; depois Amarelo, de 2015; Babies, de 2016; e o que é assunto nosso hoje, Corpos são feitos pra encaixar e depois morrer, de 2017. Mas eu queria começar falando do percurso que levou você até o Corpos… Então, brevemente, eu queria que você voltasse à banda Isadora e me contasse como você foi parar nisso de gravar disco, de fazer banda, de cantar, enfim, de se descobrir como cantor.

Bruno Cosentino: Então, eu nunca tive banda. Muita gente começa a tocar porque tem banda. Eu sempre toquei sozinho, voz e violão. Só que, depois de um certo tempo, eu decidi ter uma banda, porque queria de fato assumir que queria fazer um trabalho assim. Aí, eu chamei uns amigos pra fazer uma banda, mas isso era mais velho, sabe, já tinha passado da época de ter banda. E foi uma grande descoberta fazer, tocar com banda. Achei difícil, porque eu e violão, eu tinha muito domínio. Porque era só eu ali e o violão. Até hoje, eu tenho um domínio muito maior, quando sou eu e o violão só. E foi muito prazeroso, foi uma descoberta tocar com banda. E foi essa banda que teve, gente que entrou, saiu e tal. Mas que a gente lançou esse disco. Chama-se A eletrônica e musical figuração das coisas; que é o meu primeiro disco, considero meu primeiro disco, meu mesmo também, porque eu fiz muita coisa desse disco.

RJ: E, aí, você passa e faz uma sequência bem anual: Amarelo, Babies, Corpos. Queria que você falasse do Amarelo. Enquanto primeiro trabalho solo. Você ficou três anos sem gravar disco, é isso?

Bruno Cosentino: Ah, então, aí, eu fiquei com a banda. Aí, eu fazia o disco, fiz o trabalho com a banda e aí a banda é complicado. Aí eu falei, vou fazer minha coisa sozinho. E também eu tinha vergonha, na época, de botar meu nome na cara. E, por isso, Isadora, era um nome que ficava na minha frente. E tinha medo, tinha vergonha também de botar minha cara na vitrine. E foi um movimento também pra isso… pra isso acontecer, assim… terapêutico, tipo, botar meu nome na cara e me mostrar mais mesmo.

RJ: É uma produção grande, Amarelo, Babies e Corpos, um por ano, e dá para ver, teoricamente, uma linha entre eles. Uma linha geral de coisas que se repetem, eu digo, de coisas que são suas. O Amarelo, teoricamente, tem uma coisa do amor, que paira em todos eles, como é comum no trabalho da canção popular… Mas o Amarelo, teoricamente, viria de uma ótica mais espiritual e haveria uma ótica do amor mais sublime. Não sei se sublime é a palavra. Você tem que dar a palavra. E o Babies você aterrissou e tem uma coisa mais de um amor mais visceral, terreno.

Bruno Cosentino: É, eu vejo assim: que o Amarelo é, tipo, assim, “estou querendo fazer e não fiz”. O Babies é “fiz”. E o Corpos é “fiz e, aí, o que que eu achei?”. Entendeu? O Amarelo é mais sublimado. O Babies é menos. E o Corpos é menos ainda, eu acho. Mas uma coisa que eu percebi, quando eu fiz o Amarelo, antes da Isadora, no Amarelo, eu me dei conta de que eu queria fazer as letras e as músicas, assim, mesmo que piores. Porque até aí, eu musicava muitos poemas. Por exemplo, no Isadora tem dois poemas do Eucanaã. E são canções lindas. Tem um do Paulo Henriques Britto. Eu musicava muitos poemas, eu não fazia letra, assim, pá… eu queria realmente fazer letra. E, aí, foi uma experiência muito boa. Tanto é que agora tem letras que eu acho que eu não gosto nada, do Amarelo. E na época eu já também não gostava. Achava, assim, meio irregular, meio assim… Só que, ao mesmo tempo, eu precisei bancar isso, porque foi a primeira vez que eu escrevi coisas que de fato eu sentia. Por mais que isso pudesse ser precário e por mais que eu soubesse que ainda não tava, que ainda podia ser melhor, mas era eu fazendo. Mas sempre foi sincero. As letras que eu musiquei, os poemas que eu musiquei, em tudo ali existe uma identificação profunda. Mas com o Amarelo, foi como assim, mais do que identificação, eu sentia muito aquilo e, às vezes, eu não sabia nem explicar, mas eu sentia. Porque foi a partir de uma experiência pessoal muito intensa que foi, tipo, três, quatro anos depois que eu me casei. Então, foi uma mudança na minha vida muito grande, assim, emocional. Então, ele é fruto disso, na verdade.

RJ: É, e logo depois, isso era uma coisa que eu ia comentar. Você tem uma produção anual de disco. Você já tem 2015, 2016, 2017, você já está pensando em fazer um para 2018 ou é um momento de produtividade ou é pressa de expor?

Bruno Cosentino: Os dois. Ah, é pressa porque, em algum momento, eu sou mais da contenção, e eu gosto de ir contrariando o que eu sou. E eu era mais da contenção de só publicar aquilo que eu achava muito legal e tal. Depois, tentando fazer parte do meu tempo, em que tudo você publica muito rapidamente, tudo se esgota e tal, de forma muito rápida também… eu fui tendendo mais a uma produção de quantidade, sabendo que isso poderia me trazer qualidade também. E é assim que eu acho que acontece comigo, a cada disco que eu faço, eu sinto que eu estou melhor, que eu faço as coisas melhor. Eu vou ganhando experiência. Então, gravar disco pra mim é assim, eu sinto que é uma evolução artística. Por isso que eu gravo muito disco. E também porque eu descobri que eu posso cantar músicas de outros compositores. Não que eu já não soubesse disso antes, mas eu sempre fui cantor. De início, eu era só cantor. Até que, na época, quando eu era bem menininho, tipo, o Serginho Natureza, que é um compositor, Elis Regina já gravou música dele e tal. Tem umas canções bem conhecidas, ele é amigo da minha família e produziu um show meu. Escolheu um repertório superbacana, mas que não tinha nada a ver comigo. Foi um fiasco pra mim fazer aquele show. Eu nessa época já cantava bem. Era o que eu sabia fazer. Não compunha. Eu não gostei nada desse show, nunca mais fiz, porque eu queria mesmo compor. Então, essa coisa de gravar disco também, eu já consigo compor e gostar, mais ou menos, do que estou fazendo. Agora, eu posso cantar as músicas que têm a ver com meu universo… o Amarelo tem uma música só, que não é minha, é do Otto, e eu gosto muito. No Babies tem muitas de outras pessoas. E nesse aí, último, tem menos, mas é um pouco mais variado. Tem de colegas de profissão da minha geração que vocês talvez não conheçam, porque não tá na televisão. Então, essa coisa de gravar disco, é isso. Eu sinto que eu melhoro muito. E eu gosto de gravar disco, pensar sonoridades, composições, e é mais fácil gravar disco do que era, então, por causa disso também.

RJ: E o Corpos, quando você estava no show do Babies, as músicas do Corpos já existiam? É com a mesma banda, não é isso?

Bruno Cosentino: Esse disco, meu segundo disco Babies, eu gravei… e, em algum momento ali, quando fiz o show de lançamento, eu já sabia, eu já tinha ganhado um edital pra fazer um disco. Eu tinha prazo pra fazer esse disco. Então, fiz show de lançamento do Babies em maio e tinha que gravar esse disco até o final do ano. Então, não pude fazer shows do Babies. Eu tive que gravar esse disco. O tempo que eu tinha era pra ensaiar e gravar. Aí, eu gravei e agora estou fazendo um show que se chama Homens Flores, que é o nome de uma música do Luís Capucho e do Marcos Sacramento, que eu gravei no Babies e é um show que reúne o repertório dos dois discos anteriores.

RJ: O disco abre com uma citação que diz: “Como siempre, la duda es, que hacer com el cuerpo?” De onde você tirou isso, o que é isso?

Bruno Cosentino: Tem uma música no Isadora, no meu primeiro disco, que se chama “Milagros de um Dios menor”, que é um poema que eu musiquei de um colombiano, um poeta colombiano. Não nesse poema, mas no livro tem um outro poema que, em algum momento, diz assim: “como siempre, la duda es, que hacer com el cuerpo?”. Só que, na verdade, no poema é literal. Existe um crime, matam a pessoa e, aí, tem a pergunta sobre o que faz com o corpo morto, com o defunto. Só que eu acho que destacado assim ganha uma outra dimensão, eu acho que bem mais bonita… [risos] porque, como sempre, a dúvida é o que que você vai fazer, o que que a gente faz com o corpo. E, aí, uma amiga minha equatoriana, ela gravou esse trecho, vários trechinhos desse poema e a gente inseriu nessa música lá do disco Isadora. Aí, eu lembrei e abri esse disco com essa frase, pedi pra ela regravar e botei.

Capas dos discos Amarelo (2015) e Babies (2016)
Capas dos discos Amarelo (2015) e Babies (2016)

RJ: Talvez, seja muito bom começar daí, porque me parece que o corpo tem uma centralidade grande no seu trabalho. Chega a se usar um termo no release que eu li de “poética do corpo”. Bom, no Amarelo, a capa é o dorso dele, nu, o dorso só. E, no show, você recita, entre outras coisas, o “Soneto do olho do cu”. No Babies, você começa o disco com uma música chamada “Eletric Fish” que tem um peixe elétrico nadando na boca. E, você tem versos como “corpos são azuis e nascemos nus e podemos dançar mar adentro”. No Homens Flores, que você citou, tem “as colinas repletas de homens fortes”. Em Babies tem – abro aspas e cito – “se eu não sou mais que um caralho duro, fiquei sabendo que ele é a flor e o fruto, toda pureza de meu coração de homem mau”. No Corpos tem “eu quero morrer em outros corpos”, “corpos são feitos pra encaixar e depois morrer”. Eu queria que você comentasse essa centralidade do corpo.

Bruno Cosentino: É porque eu acho que o que existe de tensão mesmo é o que nosso corpo pede e o que nossa cabeça freia nosso corpo, que freia a todo momento…

RJ: Essa presença acintosa do corpo talvez seja uma espinha dorsal do seu trabalho de forma geral. Mas sempre de formas diferentes. Talvez esse seja um caminho. Esse corpo não se comportou igual ao longo desses discos, né?

Bruno Cosentino: É. Não. Então… no Amarelo eu acho que era um corpo mais retraído, assim, sabe? As coisas que tão aí me seduzindo no mundo. O que é que eu faço com isso? Não que isso tenha tido reflexo na minha vida pessoal. Eu estou falando assim no disco. Porque no disco eu posso fazer o que eu quiser. Essa é a grande liberdade, porque na vida real a gente não pode fazer o que quiser e eu não tenho vocação pra ser marginal. Embora eu transgrida as regras, as convenções, eu gosto de transgredir, mas sem fazer alarde. Então, nas músicas, eu falo o que eu quiser, eu faço o que eu quiser. E isso é uma grande liberdade pra mim, falar o que eu quiser, e fazer o que eu quiser ali dentro.

Essa coisa do corpo é basicamente isso. A atração sexual, o não entendimento das coisas, sabe? Porque o corpo também é o não entendimento. Tipo, o movimento em direção ao que o corpo pede é você não entender o que você está fazendo. Então, eu quero muito não entender o que eu estou fazendo e quero muito tentar descobrir alguma zona mais hermética, mas que vibre. Que seja um hermetismo que fique vibrando, assim, como alguma zona de mistério. Aí, se descolar, se livrar da sintaxe, sabe, porque canção não tem nada a ver com sintaxe no fim das contas. É muito sensação. Então, ir mais para a sensação e sair do intelectual. Tem sido um trajeto que eu tenho feito. Por estar na outra ponta e quero ir pra essa ponta agora do não entendimento…

Bloco 2 – Bicho, homem, mulher

Escuta: 2. “Sou frágil” (Bruno Cosentino); 3. “Tem que ser você” (Caetano Veloso).

RJ: O Bruno pesquisa Vinicius de Moraes aqui na casa.  E eu fico pensando se “eu quero morrer em outros corpos” é parente de algum grau do verso “é que um dia em teu corpo, de repente, hei de morrer de amar mais do que pude”. O amor na sua obra tem algum parentesco com o amor a Vinicius?

Bruno Cosentino: Não, não sei nem explicar porque agora eu estou lendo muito Vinicius. O cara… não sei, não sei… eu vejo semelhanças não. Bom, entre mim e Vinicius há coisas parecidas e coisas muito diferentes… Então, se eu for falar sobre isso, é uma coisa que não tá nada elaborada. Eu não sei. Eu estudo Vinicius, estou lendo, estou pensando ainda as coisas.

RJ: Até uma das coisas que eu tinha colocado do Vinicius é daquela entrevista que a gente gosta, do Vinicius com a Clarice, em que ele fala que tem ciúme de bicho. E eu tinha pontuado aqui, se o ciúme aparece na sua obra ou se o ciúme é uma questão pra você…

Bruno Cosentino: Não era muito, não. Mas, agora, eu me lembrei disso. Você falou da entrevista. A Clarice fala assim: ah, você ama o amor ou você ama as mulheres? Que ele já se separou várias vezes e tal. Ele falou assim: ah, eu amo o amor, é verdade que eu amo o amor, mas eu amo também as mulheres. E eu fiquei pensando muito. Eu não amo nada o amor. Eu amo realmente as pessoas. Tanto é que eu não amo o amor… eu estudo isso, né [riso] mas eu detesto! Estudar o amor é muito sem sentido, na verdade. Eu descobri isso numa aula que eu fiz, e li teorias sobre o amor. É uma coisa que, claro, é teorizável e é teorizado e gosto de ler. Você teorizar a falta de sentido que há numa relação amorosa, quase isso. Você não consegue chegar lá, porque, no limite, é caso a caso, sabe? E cada caso é um caso. Então, é inútil ficar falando sobre isso. Por isso que eu não gosto nada do amor. Eu gosto, realmente, das pessoas. Gosto de amar as pessoas.

E essa coisa de amar o amor, parece que vem de Santo Agostinho. E tem aquela coisa com Camões, que o amante se transforma na coisa amada….  porque amar o amor, há um tanto de egoísmo e eu sou muito pouco egoísta quando o assunto é esse. Se eu amo uma pessoa, eu me importo muito com as pessoas que eu amo, muito mesmo. Então, eu vivo essa tensão muito constante entre o que que eu posso, até onde eu posso alimentar o meu egoísmo e não magoar as outras pessoas, entendeu?

RJ: Você tem versos como “o cheiro no meu dedo ainda é muito forte/ enlouquece minha cabeça de mulher”, a própria questão do “Sou frágil”, “Eu quero a mão do meu homem e o mel da mulher, meu desejo brilha no escuro”. No realese do Corpos diz que além da “poética do corpo”, há uma proposta de uma nova masculinidade. E você faz deslizamentos, nesse sentido, entre o masculino e o feminino. Eu queria que você comentasse isso…

Bruno Cosentino:  O que está para além, o que tá numa zona de mistério é o que me interessa, sabe? O que eu consiga entender me interessa muito pouco. Embora eu tenha prazer, seja capaz de ter prazer intelectual, e muito. O cheiro é um negócio que te tira a razão. Então, por isso que eu botei isso lá. A coisa da fragilidade, eu vi isso agora, recentemente, na minha filha, que tem quarenta dias que ela nasceu. E é assim, é muito diferente do filho que eu tenho de três anos. E ela já fica emanando uma espécie de feminilidade.

E eu acho que, de certa forma, é uma característica feminina, uma coisa que é fragilidade e força, como se fosse uma coisa só. Ao mesmo tempo que é frágil, é forte. Como se isso fosse a mesma coisa. E eu gosto disso. Eu fiz essa música muito antes, antes da minha filha nascer. É um elogio à fragilidade, é um elogio a você assumir que é frágil, assumir as suas fragilidades. Porque é assim que você é forte; sendo frágil, você é forte. Então, é quase que contra essa ideia norte-americana, patológica do vencedor, que você tem que ser o vencedor, então, a pessoa nunca assume suas fraquezas, nunca assume suas fragilidades. E fica sempre passando por cima disso e se ferrando, porque depois vai se ferrar assim, não entende nada, né.  Então, a questão da fragilidade é essa.

A nova masculinidade seria um homem menos machão, um homem que entenda a mulher. E a mulher também que entenda o homem. Um homem menos…. um homem… homens flores, como a música do Capucho. Outro dia, eu vi um filme, um documentário no Netflix, mas que falava disso, como é opressor com a criancinha, os meninos desde que nascem. Então, assim: “não chore, chorar é coisa de menina”. E faz isso. E faz aquilo. Aí, eles vão sendo treinados a serem homens. Isso, assim, é um horror… E você vai virando um homenzinho, como a sociedade quer. Eu lembro de um menino que, quando era adolescente, usava boina, ele era todo bonitinho, meu amigo. E, aí, a partir de um certo momento, virou um marombeiro. E eu vi isso no filme. Vários meninos que não aguentam ser chamados de bichas, de qualquer coisa e, aí, vão tentar prestar contas à sociedade. Aí, vira um marombeiro, um zé mané. Um garoto superbonito, sabe? Gostava de fazer o que ele queria. Então, é muito opressor. Essa história de que você tem que ser homem é muito opressora. A nova masculinidade nada mais é do que você poder ser o que você deve ser. E era para ser assim também com as mulheres. É muito difícil a gente poder ser o que a gente quer ser…

RJ: É que tem a própria macheza e tem a coisa da heteronormatividade também, né? Porque junto é um combo, ser um macho e ser um heterossexual, e se permite pouco deslizamento entre as categorias definidas, da heterossexualidade. A paixão e o amor na sua obra deslizam muito nesse território da sexualidade também…

Bruno Cosentino: É, os homens têm que se tocar mais, entendeu? Então, assim, o meu pai sempre me agarrou muito. E, aí, eu acho que hoje, nunca percebi isso, mas vendo de hoje, eu acho que eu tenho uma sexualidade bem resolvida, muito por causa disso. Meu pai sempre me abraçou, meu pai nunca me cobrou que eu fosse macho.

RJ: É, eu acho que é um preço por ser “homens flor”. Há um preço para bancar a liberdade dos corpos…

Bruno Cosentino: Eu acho que ser gay, socialmente, tem mais preço, paga mais caro do que ser “homem flor”. O Luís Capucho, que é gay, a gente foi fazer um show, ele falou assim: “ah, adoro como você não tem medo”… Nesse show, eu tava me maquiando. “Você não tem medo de que fiquem te chamando de bichinha”… Eu falei assim: não. Justamente, porque eu não sou, eu acho. Porque ele que é, sabe, ele sente no corpo o que é ser. Eu, não.

RJ: E é engraçado no disco, você emenda uma música super deslizante com uma música do Caetano, “tem que ser você, tem que ser mulher”. E, ainda, fala a coisa do “e homens, o amor mentira pode ser tão bonito”.

Bruno Cosentino: Um pouco dessa canção do Caetano, é que ele canta essa música no grave, assim, “tem que ser você”, tipo, ele faz uma voz de machão caricata, pra cantar essa letra que tem um pouco de caricatura também: “tem que ser mulher”. Então, ele ironiza a própria canção dele ao cantar no grave. Eu botei essa música no disco, depois, porque eu percebi que eu cantava várias músicas no eu-lírico feminino, “a minha cabeça de mulher”, e a outra que eu fiz pra minha amiga, que eu falo, assim, “sou homem, bicho, mulher” e, depois, fala no feminino também. Aí, eu falei, tá, essa confusão é interessante, porque também alguém já tinha me dito que minha voz, ela fica num registro no meio, ela não é nem grave nem muito aguda, então, é uma coisa meio andrógina, o registro da minha voz. Eu falei, tá bom, então, eu vou colocar essa música do Caetano que eu adoro. E não vou cantar no machão, não vou cantar no gravão. Vou cantar como se fosse uma mulher, porque aí é uma mulher dizendo pra uma mulher, essa confusão, uma mulher dizendo que tem que ser mulher. E, ainda, botei no falsete, botei mais agudo ainda. Cantei na minha região normal que seria e dobrei uma oitava acima, que fica mais agudo ainda. E fica muito diferente da dele que fica no machão.

Aí, a coisa do amor-mentira, eu acho que, ele gosta muito daquele ensaio do Thomas Mann, que em português foi traduzido como “O casamento em transição” e que no filme dele [do Caetano] é o Cícero que lê. O Antônio Cícero lê esse trecho, porque o Thomas Mann defende que o amor, o casamento homossexual é o amor puro, porque as pessoas, os dois homens ou as duas mulheres, estão de fato se relacionando contra as convenções porque se amam. Mas ele faz uma espécie de ressalva, um comentário de que a relação homossexual tende a uma estetização.

Eucanaã Ferraz: Deixa eu fazer uma pergunta sobre a canção do Caetano. Esse arranjo é muito bom, da canção do Caetano… queria que você falasse um pouco dos arranjos, do pessoal que toca, falar um pouco do som do disco.

Bruno Cosentino: São os meninos que têm uma banda que se chama Exército de Bebês. Eles têm na casa dos seus vinte e cinco anos e eles são muito bons músicos. Têm seu trabalho autoral também e acompanham muitas outras pessoas. Eles tocam comigo desde o disco anterior, que é o Babies. Eu gosto muito desse disco, Babies. É eu e a banda só. E eles acompanham muitas pessoas, muitos artistas também, porque são ótimos, são muito bons de groove. E eu gosto muito de groove (de suingue). E, aí, eu gosto muito de ritmo e gosto muito de dançar. Esse arranjo do Caetano, eu falei para fazer uma coisa groovada, porque tudo eu quero fazer groovado com eles.

E quando eu fiz até esse Babies, você perguntou a coisa do corpo e tal, chegou um momento em que eu achava que as palavras, em música, faziam tão pouco sentido, na verdade, porque tudo que interessava era dançar, entendeu? Eu acho que, assim, a verdadeira poesia na música é, se fez você dançar, aí, você atingiu o nível máximo da poesia universal. Se você ouvir uma música e falar assim, que não precisa nem de letra… eu acho mesmo, porque, aí, você vai pro Matisse, “a alegria de viver”. É o auge, é o ponto máximo. E, aí, não precisa de letra.

E, pra quem gosta de estudar letra na Faculdade de Letras [risos], letra de música sozinha não importa. O que importa é a canção. É a letra com a melodia. E a letra, muitas vezes, importa menos ainda. É, eu estou sendo radical também, porque tem algumas que são assim. Aí, a letra interessa mais, mas nunca é a letra sozinha. Então, não faz o menor sentido você olhar a letra sozinha, assim, não quer dizer nada. Quer dizer a letra na canção, sabe? Mas tem alguns casos que, não, é puro dançar. Porque eu descobri que o que eu gosto mesmo é disso, eu gosto de ritmo, porque isso pra mim é o que mais interessa. Aí, a banda é muito boa de ritmo. Eu adoro essa banda, por causa disso.

EF: Mas como chegou ao desenho dos arranjos?

Bruno Cosentino: Ah, tipo, eles da banda também são muito bons, você passa, assim, e sai tocando e já fica bom. É muito assim. Eu tenho ouvido um disco, até no Spotify, chama-se Negro Prision Blues and Songs. Um cara gravou aquelas canções de trabalho, de blues. Então, é assim: “Ainhenhaêiai PÁ”… e dá uma martelada no chão…  Então essas balizas rítmicas, elas tão sempre ali. Todo canto é o ritmo do canto, a melodia tem um ritmo, que é condicionado por aquelas balizas. Então, o pulso está sempre lá. E, quando o meu filho tava na barriga da mãe, tinha o tamanho de um gergelim, ele já era um coração batendo. Já tinha pulso. Já tinha ritmo. Então, se a gente é do tamanho de um gergelim e já é pulso, é porque a gente é puro pulso. E, aí, tudo é decorrência de ser pulso.

Eu gosto muito do The Last Poets…eu tenho gostado muito de rap, coisa que eu nem gostava muito, mas hoje eu amo. Porque rap é isso. Você vai num flow, que o pessoal chama. Otávio Paz chama de fluxo poético. Mas os rappers chamam de flow, e tá lá a batida. Eles são incapazes de compor alguma coisa se não tiver ritmo. Então, eles vão e as palavras vão vindo. Isso eu percebi no Amarelo também, de como se você vai no flow, as palavras vêm, as rimas vêm. E as palavras que vêm são surpreendentes. Isso tem a ver com o corpo também.

Bloco 3 – Tudo é circular

Escuta: 4. “Obs.” (Bruno Cosentino/ Pedro Dias Carneiro); 5. “Eu quero ser sua mãe” (Luís Capucho)

Bruno Cosentino: Essa é a segunda música que eu gravei do Luís Capucho. A “Homens flores” eu gravei no disco anterior e essa se chama “Eu quero ser sua mãe”.

RJ: Em várias conversas nossas, você disse que o fato de você ter tido filhos mudou a sua percepção sobre o tempo, e eu acho que isso paira aqui, em algum lugar.

Bruno Cosentino: Mudou que fica tudo mais embaralhado. Como se ligasse as pontas. Aí, eu me ligo a meu pai. Me ligo ao que eu era pequenininho, a quando eu era criança. Então, vou ligando as pontas, mas é muito confuso, na minha cabeça. Ficou tudo mais indistinto, não consigo mais ter muita clareza de nada, da vida mesmo. E a vida ficou mais sem sentido depois que eu tive meus filhos. Dizem que fica com mais sentido, né. Mas ficou sem sentido, porque aí que eu passei a entender nada mesmo [risos]. É só que as coisas se confundem. Agora, eu sou pai e tenho o meu pai, e já fui filho, sou filho, sou pai. Tudo fica muito confuso, em suma.

O que isso pode me ajudar é que eu acho que o estado de criação artística é um estado de confusão também, que você tenta canalizar. Então, isso me ajuda. De forma muito arbitrária e aleatória. Aí, isso me ajuda. De juntar tudo de uma forma muito livre, isso me ajuda.

Não tem nada a ver com essas canções que passaram. A primeira, que eu fiz em parceria com Pedro Carneiro, eu fiz a letra e ele fez a música. Eu tava lendo o Mircea Eliade, que ele falava dos ritos de androgenização, e fui vendo como nada faz sentido mesmo. Aí, você volta, aí, tem tudo é circular. Aí, sim, é completamente edipiano. Tipo, o desejo sexual masculino ele quer entrar no buraco de onde ele saiu, da mãe. Isso tem a ver com o Vinicius também que lendo aquele poema da Ariana, ele vai pro ventre da terra… tem muito esse lance nele também. Aí, eu fui… entrei numa… num loop. Gente, nada faz sentido mesmo [risos].

RJ: Eu queria que você falasse desses dois parceiros, o Pedro Dias Carneiro e o Luís Capucho, inclusive, você já fez apresentação com os dois. São dois personagens importantes no seu trabalho, de um modo geral. Eu queria que você falasse dos dois, particularmente.

Bruno Cosentino: Eu tenho uma parceria com o Pedro Carneiro que é essa que a gente ouviu antes, pequenininha. E ele que produziu meu disco anterior, o Babies. Eu gosto muito dele, é um puta compositor, muito sério, muito bom. Gosto, assim, como colega e como artista. Como amigo e como artista. E admiro muito ele.

E o Luís Capucho, eu amo total. Acho que todos vocês poderiam procurar ouvir o Luís Capucho. Ele tem uma voz superestranha. Não saiam correndo. Fica ouvindo… Tem um disco, que é o Poema Maldito, que é o último, que é maravilhoso. Os outros também são ótimos. E, aí, ele eu amo. Me identifico muito com a poética dele, com a maneira que ele diz, com as melodias, com o canto dele, acho que ele canta lindo. É um puta intérprete. É uma grande presença, assim.  É um dos maiores compositores, pra mim. “Homens flores” é maravilhosa, é linda. É uma obra-prima. E essa “Eu quero ser sua mãe” também, é uma coisa linda. É dele, é do Luís Capucho também. “Homens flores” é, assim, uma pérola de linda que é!

EF: Essa canção do Capucho, “Eu quero ser sua mãe”, eu gostei muito da opção que vocês fizeram com um arranjo aparentemente muito convencional, muito adocicado, aquela balada bem “eu quero ser sua mãe”, bem macia. E a canção vai toda nessa direção e tem aquele final surpreendente, que é te lambuzar com o meu doce e até que vem depois “e ficar matando as baratas que venham te comer”. Porque se você vai lambuzar alguém com doce, vem barata pra comer a pessoa [risos]. E se você é a mãe, você vai ficar matando as baratas. Então, é uma coisa esquisitíssima, surrealista, louca e muito violenta. É uma canção que tem uma violência incrível, disfarçada de balada de amor de mãe pra filho, que não é pra filho, que eu quero ser sua mãe, não é a sua mãe. Tem uma coisa erótica, sexualizada. E tem essa coisa muito violenta e disfarçada num canto e numa letra e num arranjo tudo muito adocicado. E, assim, eu gosto muito da sequência que a canção anterior, ao contrário, ele é esquisitíssima, eu amo essa anterior, que é atonal, você não entende direito, tá na cara que ela é violenta e essa finge que não é. Então, acho essa sequência muito bonita…

Bruno Cosentino: O que caracteriza bem o Capucho é isso, é uma mistura de ternura e violência de uma forma muito fluida. E isso que é muito fascinante em várias coisas que ele faz. É muito estranho, você unir ternura e violência. Então, é, isso deixa várias coisas que ele faz bonitas assim.

RJ: A coisa da relação de um desejo de experimentar e um desejo de ser também audível ou de ser também canção numa forma mais palatável, numa forma mais popular, isso também é um problema pra quem faz canção, né. Um problema do cara que compõe e quer experimentar, mas que também quer comunicar. Esse disco mais comunica do que “esquisita”, embora “esquisite” também, não é?

Bruno Cosentino: Claro, se você experimenta muito, você paga um preço de não comunicar. Inclusive, a maré tá baixa pra experimentação. Se você quer que aquilo seja um pouco mais divulgado, claro, que depende muito de dinheiro mesmo, basicamente. É, depende também de você ficar cada vez mais careta. E não foi sempre assim, né. Assim, na década de 1960, tinha muito mais… dentro do esquema musical das gravadoras, você tinha muito mais margem pra experimentação, dentro de um esquema. Hoje você tem muito experimentação fora do esquema total. Ou num esqueminha em que ninguém consegue sobreviver do que faz de música.

A experimentação foi colocada num nicho de mercado. E não consegue mais ter a penetração social e cultural que já teve com esses nossos ídolos, sei lá, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, João Bosco. Todas essas pessoas são altamente experimentais. Djavan, todo mundo. Aliavam experimentação com sucesso artístico mesmo, com comunicação. Então, essas baladas, por exemplo, Luís Capucho é uma balada. A intenção foi essa mesmo. Agora, eu sou cada vez mais pela comunicação, acho que a experimentação pela experimentação, eu sei que isso foi bom, mas eu gostava mais de experimentar. Hoje em dia, experimentar na superfície me seduz pouco. Aquela música anterior que é mais experimental, é porque o Pedro Carneiro é super mais experimental que eu. E gosta de loucurinhas. Eu sou cada vez menos pelas loucurinhas. E mais pelo que vai mais fundo, enraíza mais. Mas, aí, eu posso mudar isso também a qualquer momento… eu já estou mudando… [risos].

Bloco 4 – Muito romântico

Escuta: 6. “Certeza triste” (Bruno Cosentino); 7. “Cara” (Bruno Cosentino); 8. “Meu bem” (Bruno Cosentino)

RJ: Eu vi numa entrevista você dizer que descobriu, recentemente, que é um cantor romântico…

Bruno Cosentino: É porque eu descobri que meu tema é esse, de canção de amor. Eu vou fazendo esses discos e vou me conhecendo, eu descobri que é isso mesmo. Isso vem desde o primeiro disco. Quando eu tava fazendo o primeiro disco, meu só, o Amarelo, eu tava ouvindo muito Marvin Gaye. E, eu falei, cara, é isso. É isso, tipo, porque é o ritmo, é soul. Porque eu descobri o ritmo, essa coisa, né, do gergelim, do ritmo, e que tudo é ritmo. E tem uma passagem do Otavio Paz no “Arco e a lira” linda sobre o ritmo. Fala que o ritmo sempre aponta para algum lugar do desejo. O ritmo sempre suscita alguma coisa que está por vir.  E, aí, a coisa rítmica era uma coisa. E a outra é a melodia, eu sempre gostei de melodia.

Então, o que eu gosto é de R&B, de ritmo e poesia e melodia e tal. E aí eu fui descobrindo também que a coisa da melodia, o Marvin Gaye, ele fala coisas banais, assim: “Te amo, meu amor”, “I love you baby”, só que ele vai falando dentro daquele fluxo. E é maravilhoso. É tipo Tim Maia. Não importa o que você está dizendo, importa muito a maneira como você está dizendo, a sua voz, a sinceridade com que você está cantando; a magia, a poesia tá muito ali e não na letra. Tá naquele balanço “I love you”, ah, aí dá um gemidinho, sabe?

E eu fui descobrindo que o que eu gosto mesmo é disso. E isso é uma descoberta minha. E agora tá ficando mais maduro isso no som. No Amarelo, não era tão maduro. Agora, nesse último, tem músicas que eu já acho mais bem resolvidas. Essa última, passei já o que eu queria pra banda. E essa banda faz bem e eles gostam disso também, de fazer esse tipo de som que eu gosto. Eles gostam e eu gosto. A gente combinou e a gente fez. Por isso que eu gosto tanto dessa banda.

RJ: O pop também te interessa, né…

Bruno Cosentino: O pop super me interessa, é o que mais me interessa. O pop e a canção romântica. Eu acho que tem um apelo emocional…  Aí, eu regravei “Fui fiel”, do Pablo. Que é um hit, que o Gustavo Lima gravou também. Eu não pude botar no disco por problema de direito autoral, mas tem no Youtube. E essa música é muito linda. Pois é, uma música simples… E, aí, o que me interessa é isso. Esse arrebatamento emocional extremo, assim, você corta os pulsos, se chegar lá, com uma letra banal, não tem invenção. Tem invenção, mas não tem essa invenção que a gente diz, você não percebe a invenção. Invenção porque o cara chegou num ponto que poucos chegam. Então, tem muita invenção, mas o propósito não é esse. O propósito é a expressão da música.

RJ: E o que você tem ouvido?

Bruno Cosentino: Agora, eu estou ouvindo Otto. Estou ouvindo um garoto da Bahia que é muito bom, Giovane Cidreira, maravilhoso! Ouço Luís Capucho demais. Ouço muito Al Green. Essa galera de soul americana é, assim, piração. Tipo, Marvin Gaye, Al Green… Al Green, peguei tudo e não paro de ouvir. Já faz mais de um ano que eu ouço direto. Amo! E a canção romântica, né. Al Green. É isso, a canção romântica, Roberto Carlos. Tipo, Roberto Carlos mais suingado, mais preto. É isso que eu ouço.

RJ: Existem clipes vinculados a esse trabalho?

Bruno Cosentino: Vai ter um clipe, agora, da primeira música, “É claro que eu queria”, muito em breve. Até a diretora me mandou mensagem, que ficou pronto. Eu não ouvi ainda. E “Eu quero ser sua mãe”, do Luís Capucho, tem um clipe.

Bloco 5 – A anti-história dos dias

Escuta: 9. “Anti-história” (Bruno Cosentino); 10. “Três (Toque pra nascer)” (Bruno Cosentino)

RJ: Em “Anti-história”, você fala sobre “…a curva decadente da humanidade”, “a democracia ocidental produz tiranos magnatas”… Eu queria saber se política é uma coisa que te interessa.

Bruno Cosentino: Política me interessa muito, mas me interessa onde eu consiga atuar. E eu consigo atuar no meio, na micropolítica da música. Aí, eu consigo atuar e eu atuo muito. Agora, na política institucional, é um registro em que eu não consigo operar, porque é um registro de cinismo, é uma lógica de cinismo tão grande, que eu não consigo. O riso que não reconcilia é o cinismo, né. Isso aí acho que é uma frase do Adorno, que eu peguei de segunda mão também, de um ensaio que eu li. E é o cinismo que impera na política institucional.

RJ: Você acha que a música está mais democrática?

Bruno Cosentino: Em princípio, teoricamente, tá à disposição de todo mundo. Mas só na teoria, porque não tá. Porque só chega a você o que tem muito, um modelo muito bem já estruturado, que faz chegar em você. Aqui, não. Aqui, a gente tá trazendo pessoas que não tão dentro de uma coisa. Porque a universidade ainda é um espaço em que você pode respirar. Eu acredito que você pode furar, mas cada vez é mais difícil furar. Cada vez é mais difícil. Eu acho que já foi mais possível. O projeto tropicalista foi esse. Agora, hoje em dia, acreditar nisso, eu acho ingênuo. Porque, depois de neoliberalismo, depois de Breton Woods, depois de tanta coisa que aconteceu na história, acreditar que você pode furar o sistema, eu acho de uma ingenuidade muito grande. Mas era a passagem, a tensão era muito maior, existe uma tensão. Que podia existir, porque eram outros tempos. Agora… década de 60, 70, e, depois, foi piorando cada vez mais 80, 90, aí, ó, já foi. A racionalidade econômica foi de tal forma minando o espaço de criação. Hoje em dia, existe os I-Tunes, eles não põem um puto de grana pra cobrir, pra fazer o seu CD e são uns magnatas, uns super atravessadores do I-Tunes, Spotify… a gente tá tocando aqui no Spotify. Eu estou tocando o disco no Spotify. Os caras não põem um puto na criação do disco, eu gasto do meu dinheiro, todo mundo gasta do seu dinheiro, os caras não fazem nada pra música e ganham dinheiro em cima de você. As gravadoras faziam.

Então, a margem de manobra do artista é muito menor do que já foi. Ela existe? Existe. Mas é pequeniníssima. É disso que eu estou falando. Eu acho que cindiu. Talvez, seja melhor cindir. Que, aí, cada um dá nome aos bois. O problema é a falta de pluralidade, a falta de diversificar.

RJ: Mas suas canções poderiam estar no mainstream, né?

Bruno Cosentino: Elas podiam estar tocando, mas não tocam. E eu conheço todo mundo das rádios, conheço todo mundo! E não toca. Não toca porque, sei lá, não estou fazendo acordo, não tenho dinheiro. E o espaço que tenho de atuar, os jornais tão acabando. A gente tá numa transição e já tá indo pra algum lugar, já tá se definindo um outro lugar, talvez. Ou não se defina. Mas eu acho bom também.

Eu estou construindo uma carreira fonográfica, eu estou gravando meus discos, entendeu? Agora, o gargalo mudou de lugar. Antes, o gargalo, pra você gravar um disco, era caro, você tinha que entrar numa gravadora. Você entrava ali. Ali era o filtro. Agora o filtro é fazer show… É muito difícil fazer show. Se você não tem um empresário, alguém que vai vender você pro circuito de shows. Então, o gargalo só mudou de lugar. Nada ficou mais democrático, nem nada, não. Ficou mais difícil ganhar dinheiro, agora, você ganha dinheiro com shows, porque você não vende mais CD. Porque os caras te dão um centavo por clique, aí. Inclusive é uma briga da classe artística…

EF: Sobre esses serviços de stream, mesmo os medalhões que são muito ouvidos, estão ganhando uma coisa, tipo, 150 reais … 150 reais se for um megassucesso, se estourou!

Bruno Cosentino: Uma miséria! Uma miséria! Eles ganham uma miséria! Por isso… por isso é que eles estão lutando. E eles têm algum poder de barganha. É um mal, assim. Tipo, a Amazon. A Amazon vende desde batedeira a livro. A Amazon, que vende livros, não gosta de livros. Ela gosta de vender, gosta de ganhar dinheiro. Quer dizer, esses super atravessadores, o Spotify não gosta de música, o I-Tunes não gosta de música. Eles gostam, o objeto deles é o dinheiro, é como se fosse a bolsa de valores. O objeto deles é o dinheiro, não é a música. O objeto da gravadora era a música. Já foi um dia. O objeto das editoras e livrarias é o livro. Então, assim, a Amazon, se ela vender livro ou batedeira, dá no mesmo pra ela. Ela não tem o menor compromisso com livro.

RJ: É… eu queria que você comentasse essa última canção, “Três (Toque pra nascer)”, especificamente. Na verdade, eu queria que você comentasse isso em relação à coisa ritualística que tem na canção mesmo.

Bruno Cosentino: Essa última música é porque minha mulher gravou meu filho, quando ele era bem pequenininho, cantando essa melodia. E eu gostei da melodia. Melodia de quem não sabe nem falar ainda. Aí, eu fiquei decorando essa melodia, porque eu achei que ela é estranha, porque é de alguém que ainda não domina o sistema tonal. Não sabe o que é uma melodia dentro de um sistema que já existe. E esse toque aí é o toque pra Exu. Eu tava lendo aquele livro Os Nagô e a morte, que é um clássico, um livro de estudos sobre candomblé. E eu me identifico muito com a figura do Exu. Que é, assim, dentro da mitologia nagô ou iorubá, é o primeiro nascido. E ele é filho da mãe e do pai primordiais. Mas, então, ele é o andrógino, porque ele carrega um pouco do feminino e um pouco do masculino. E ele também é representado pelo número 3. É o nome da música 3, que se chama “Toque pra nascer”. É a última do disco. Tem uma depois, que é um bônus, que eu botei, mas pra mim o disco acaba aí. E eu me identifico muito porque também é o elemento sexual, é o que atravessa, é um elemento de individuação, de individualidade, de singularidade. Eu coloquei isso aí no disco porque é muito uma coisa minha mesmo também. De fazer sentido pra mim. É um canto do meu filho. Foi uma opção muito pessoal mesmo, que fazia sentido pra mim. E, claro, sempre quero que faça sentido pros outros também, porque não quero ficar explicando também, porque se não, quando você explica, tudo faz sentido, né, você acha lindo.

RJ: É por isso até que a gente ouve primeiro. Me parece que é muito bonito, antes de saber… Eu não sabia de nada disso…

Bruno Cosentino: É, claro, eu só ponho porque eu também acho que vai fazer sentido pros outros. Que nem a outra música lá, a “Certeza triste”, que a gente ouviu antes. É uma música também que minha mulher acordou cantando aquilo. E ela não é compositora, é bióloga. E ela cantou aquilo. Eu achei muito bonito o negócio da certeza triste. E ela foi cantando com essas palavras, assim. E com melodia já: “não quero ter contigo uma certeza triste”. Não foi pra mim, não. Ela acordou cantando aquilo. Aí, eu até fiz um arranjo e complementei uma parte da letra, mas fiz mal. Mas quis botar num fluxo de banda. Eu não gosto tanto, mas muita gente diz que gosta, então, eu acho que a coisa da certeza triste bate em muita gente, muito mais de uma pessoa me disse que gosta dessa música, inclusive você.


* Rafael Julião é professor substituto de Literatura Brasileira na UFRJ, onde fez seu mestrado sobre Cazuza e o doutorado sobre o livro Verdade tropical de Caetano Veloso. É também coordenador do Núcleo de Estudos da Canção do PACC e autor do livro Infinitivamente pessoal – Caetano Veloso e sua verdade tropical (2017).

** Eucanaã Ferraz  publicou livros de poesia, como Desassombro (2002), Rua do mundo (2004), Cinemateca (2008, Prêmio Jabuti), Sentimental (2012, Prêmio Portugal Telecom de Poesia) e Escuta (2015). Organizou vários livros, como Letra só (2003) e O mundo não é chato (2005), ambos de Caetano Veloso; a Poesia completa e prosa de Vinicius de Moraes (2004) e a coletânea de letras de Adriana Calcanhoto Para que serve uma canção como essa? (2016). É professor de Literatura Brasileira na Faculdade de Letras da UFRJ e atua, desde 2010, como consultor de literatura do Instituo Moreira Salles (IMS). 

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Tempo de leitura estimado: 25 minutos

SUBJETIVIDADE NA CENA MARGINAL CARIOCA

Resumo: Este texto busca refletir sobre as novas criações teatrais das subjetividades das margens e a sua dramaturgia que entrecruza real e ficção na cena contemporânea carioca. Busca também uma reflexão do teatro enquanto interdisciplinaridade e enquanto cena expandida no momento em que propõe uma revisão ética, estética e política da sociedade brasileira. Os espetáculos analisados são de companhias formadas por atores que vivem na favela da Maré ou nas periferias cariocas, revelando a urgência de falar de sua realidade, da violência, da exclusão e de partilhar um teatro como potência de afetar e transformar as questões sociais. Os espetáculos são Eles não usam tênis naique, da Cia Marginal, e Cidade Correria, do Coletivo Bonobando.

Palavras-chave: Subjetividade; teatro político; Cia Marginal; Coletivo Bonobando.

Abstract: The aim of this paper is to analize recent theatrical productions about the subjectivity of the marginal communities and the mix of reality and fiction in their dramaturgy, in Rio de Janeiro’s contemporary scene. It also reflects on the interdisciplinarity of theatre and its expanded scene that proposes an ethical, aesthetic and political review of Brazilian society. The plays analyzed were produced by companies from the Maré slum and other communities on the outskirts of Rio de Janeiro, demonstrating the urgent need to speak about their reality, violence, and social exclusion, as well as to share the theatrical experience as a way to affect and transform society. The examined plays are Eles não usam tênis Nike (They don’t wear Nike sneakers) by Cia Marginal, and Cidade Correria (City Rush) by Coletivo Bonobando.

Keywords: Subjectivity; political theatre; Cia Marginal; Coletivo Bonobando.

Introdução

Nota-se, nos palcos cariocas, uma grande emergência de espetáculos que falam sobre a condição de vida marginal. Os espetáculos, criados a partir de textos ficcionais e processos de criação coletiva, apresentam momentos das próprias histórias dos atores de violência e de discriminação na sua comunidade, porém não se trata de espetáculos autoficcionais, visto que partem de textos ficcionais (um escrito pela dramaturga Marcia Zanellato, e outro, por meio de um processo coletivo de criação). No entanto, é visível o cruzamento com o real por meio dos depoimentos e testemunhos dos próprios atores em determinados momentos.

Assim como na literatura marginal, conforme explicitou Silviano Santiago (2015, p. 10), a cena marginal contemporânea surge com o desejo de abalar, perturbar, instigar e desequilibrar as previsões modernas e bem assentadas da história social, política e econômica do Brasil. A cena marginal trata de uma fatia do Brasil que foi ocultada, que não faz parte do futuro, que não tem futuro.

Conforme afirma Santiago:

A negligência dos periféricos em sua relação aos arriscados e temerosos projetos alternativos de futuro teve e tem fundamento no fato de que, por nestas e noutras terras, a expressão livre do pensamento da margem e da ação intempestiva apenas denota – aos olhos dos donos do poder […] – o despreparo e o desplante de quem fala (Santiago, 2015, p. 10-11).

De acordo com Santiago, a gradativa conquista do direito à fala, à escrita e à arte propõe novas opções de direito à cidadania plena. Dessa forma, perturbar o coro dos contentes é um modo de liquidar o passado para, em seguida, reinventar o futuro. Reinventar o passado para que se possa inventar um futuro alternativo da nação que se esvaziou do conteúdo dado pela modernidade, isso porque o presente só tem sido razão para negligência e recusa dos atores sociais marginais.

Sendo assim, ao fazer circular espetáculos realizados por atores que vivem nessas margens, com suas histórias de vida dentro de um teatro considerado contemporâneo, inaugura-se a possibilidade de uma cena que valoriza o empoderamento dessas subjetividades. O sujeito marginal deixa de ser um objeto representado (sociologicamente pelo intelectual letrado da primeira metade do séc. XX) e passa a se autorrepresentar, como acontece na literatura com autores que narram histórias sobre a sua própria realidade, estabelecendo uma estética que vai predominar no cinema, na literatura e na TV no séc. XXI como, por exemplo: Cidade de Deus, de Paulo Lins, e MV Bill, que retratam a experiência do surgimento de uma das maiores favelas do Rio de Janeiro na literatura e na música, respectivamente, e ainda Ferréz com Capão Pecado, relatando a violência ocorrida num dos bairros mais violentos de São Paulo, Capão Redondo.

Faz parte da cena contemporânea o reconhecimento de novas subjetividades, seja por meio da criação de uma companhia, seja de coletivos, que se engajam em uma determinada pesquisa com o propósito de realizar uma produção teatral. Essa produção normalmente parte de um processo coletivo que engloba um olhar ético, estético e político das vozes dessas subjetividades no seu território, ampliando a noção de teatro documentário na cena contemporânea, na qual se apresentam as próprias histórias de vida dos atores e sua relação com a comunidade em que vivem. Este teatro realiza um trabalho dramatúrgico de criação embasado em textos ficcionais e nas próprias vivências dos atores, apresentando um cruzamento entre real e ficção, além de um estudo etnográfico ao relatar a experiência de vida e a violência nas comunidades.  

Esta cena se aproxima da noção de etnografia pós-moderna, conforme apontou Clifford, como um rompimento do paradigma da representação:

Torna-se necessário conceber a etnografia não como a experiência e a interpretação de uma outra realidade circunscrita, mas sim como uma negação construtiva envolvendo pelo menos dois, e muitas vezes mais, sujeitos conscientes e politicamente significativos. Paradigmas de experiência e interpretação estão dando lugar a paradigmas discursivos de diálogo e polifonia […]. Um modelo discursivo de prática etnográfica traz para o centro da cena a intersubjetividade de toda a fala, juntamente com seu contexto performativo imediato (Clifford, 1998, p. 43).

Longe de pretender a representação de um Outro essencializado, como na antropologia tradicional, em que o sujeito é o produtor de conhecimento em relação ao objeto, a etnografia busca ser uma escrita coerente com a perspectiva dialógica e polifônica, produzindo uma visão compartilhada da realidade. O diálogo e a intersubjetividade são relevantes quando se pensa em como colocar em cena as novas subjetividades de forma a valorizar a sua experiência e performatividade. Dessa forma, os atores buscaram um diálogo da sua própria realidade com a ficção e, a partir daí, uma forma de potencializar a sua voz ao incorporar a sua dor e sofrimento de uma forma poética, revelando a performatividade própria de seus corpos.

O fato de esses atores terem a oportunidade de ver seus projetos contemplados por editais de teatro e de realizar seus espetáculos em teatros dentro da cidade do Rio de Janeiro que são referência da cena contemporânea (como Sergio Porto, Glauce Rocha e a rede Sesc de teatro), permite que eles deixem de ser enquadrados como “atores da favela” e possam realizar uma carreira como qualquer outro ator, criando-se, assim, a oportunidade de um futuro inclusivo para esses atores.

A cena marginal propõe trazer o olhar de quem vive dentro da comunidade com suas implicações, tais como: a convivência diária com a violência, o preconceito racial, social e econômico, buscando não somente a valorização de sua cultura e identidade por meio da linguagem, do rap, da corporalidade, da dança e da música do funk, mas também um processo de reflexão e de transformação dessa realidade e desses sujeitos. Essa cena parte de uma nova linhagem na cultura contemporânea brasileira ao abordar os seus territórios de pobreza urbana com implicações éticas de falar em nome ou no lugar dos que sofrem ou, até mesmo, por ser o próprio sujeito dessas experiências, assumindo o ponto de vista de quem fala de dentro da violência.

De acordo com Beatriz Resende, em Possibilidades da nova escrita literária no Brasil (2014, p. 10), os representantes da periferia das grandes cidades se tornaram expressões de novas subjetividades que se afirmam no quadro de produção artística inaugurando um novo contexto que se configura não apenas político, mas ético e também estético. Essa configuração democrática e cultural se aproxima das reflexões do antropólogo indiano Arjun Appadurai, ao se referir à condição global do terceiro mundo em seu livro The future as cultural fact (O futuro enquanto fato cultural). O futuro de que fala o autor não é um futuro neutro ou vazio, mas sim construído por afeto e sensações, propriedades humanas que o formatam. O futuro que se organiza pela sensibilidade é o que ele chama de ética da possibilidade em oposição à ética da probabilidade construída unicamente por números. O autor afirma:

Por ética da possibilidade quero dizer de modos de pensar, sentir e agir que aumentam os horizontes de esperança, que expandem o campo da imaginação, que produzem uma maior equidade no que chamei de capacidade de aspirar e que alargam o campo de cidadania informada, criativa e crítica (Appadurai apud Resende, 2014, p. 11).

Vejo, assim como na reflexão de Beatriz Resende, a possibilidade de pensar a arte como um encontro entre a ética e a política ainda a ser buscado. Essas novas subjetividades das margens têm muito a contribuir com suas falas e com sua visão de mundo ao buscar um olhar ético de nossa realidade e uma estética baseada no precário e no cotidiano, valorizando a criatividade na produção cultural nesses territórios de pobreza. Busca ainda refletir sobre a questão das políticas emergentes, como a exclusão e a execução da população negra e marginal da cidade, e de um olhar transformador sobre o Outro.

Sendo assim, a emergência da cena das subjetividades marginais atua como possibilidade de inserção dessas vozes na cena contemporânea brasileira, levando em conta a diversidade social e econômica do Brasil. A cena marginal revela o desejo de reconhecimento desses sujeitos dentro da sociedade, as suas dificuldades, o preconceito e a luta contra as condições desumanas a que são submetidos, proporcionando um novo olhar sobre essa realidade e uma transformação política no nível dos afetos.

Eles não usam tênis naique: a poética da violência

Com dez anos de formação, a Cia Marginal nasceu na Favela da Maré e já realizou quatro espetáculos: Você faz parte de uma guerra? (2005); Qual é a nossa cara? (2007); Ô, Lili (2011) e In trânsito (2013). Situada na Zona Norte do Rio de Janeiro, com aproximadamente 130 mil moradores, numa faixa entre a Avenida Brasil e a Baía de Guanabara, cortada pela Linha Vermelha e pela Linha Amarela, a ocupação do território da Maré começou na década de 1940. Durante a década de 1960, recebeu famílias removidas de outras áreas da cidade e, com o seu crescimento, aproximou-se de antigas habitações de pescadores. O Morro do Timbau é o único local seco, uma vez que toda a área ocupada pela Maré foi um imenso manguezal.

O espetáculo Eles não usam tênis naique, dirigido por Isabel Penoni, interessa ao debate público como amostra da violência que se instalou no cotidiano da cidade. O texto de Marcia Zanellato foi resultado de uma pesquisa sobre a linguagem dos moradores de comunidades e começa com uma narração: “Então, irmão, eu vou contar a história do retorno de Jedai. Mas o Jedai é o Santo, tá ligado? Então eu vou contar a história do retorno do Santo. Aconteceu no dia de operação. Tava rolando uma megaoperação (…)” (Zanelatto, 2004). O narrador passa a enumerar todos os envolvidos na operação para tomar o morro: Exército, PM, Bope, civil, marinha, armas. A história a ser dramatizada trata do reencontro de Roseli e Santo (seu pai) após 20 anos da ausência paterna.

O título da peça sugere uma aproximação com Eles não usam black-tie (1958), de Gianfrancesco Guarnieri, cujo tema principal era a luta dos operários por melhores condições de trabalho. O conflito é entre o pai e o filho que resolve não aderir à greve dos seus companheiros da fábrica por uma questão pessoal, de que vai ter um filho e não pode correr o risco de perder o seu emprego. Zanelatto aborda a mesma questão de conflito de gerações dentro de uma classe social empobrecida das favelas e que luta por uma vida mais digna. O tema deixa de ser o operário e passa a ser a subjetividade marginal.

O espetáculo começa com um ator, com o rosto escondido com uma camiseta, dando um depoimento sobre o que se passa na favela. A sua voz é alterada pelo microfone aparentando uma coisa monstruosa. A sua fala contém relatos reais misturados com a ficção retratando, de uma forma irônica, a sua realidade. A autora oferece explicações relacionadas a um processo social de reflexão sobre a realidade dos próprios personagens, criando um distanciamento ao mesmo tempo em que ocorre um envolvimento com as suas histórias. A cena começa com um diálogo sobre Seu Jaca, um possível benfeitor da favela, quando ainda não era o tráfico a dominar a vida dos moradores, um longo diálogo que deixa em evidência o ponto de vista do grupo sobre a situação de crianças abandonadas, quando elas roubam e se tornam uma questão de “segurança” e ainda com a inserção de relatos pessoais.

O pai, Santo, fugiu da favela para encontrar a paz no interior, ingressando na religião evangélica e, quando retorna, encontra a filha revoltada com a condição violenta de vida à qual é submetida dia a dia. Santo tenta mostrar para Rosa que existe uma vida melhor por meio da crença na religião evangélica, mas Rosa não acredita em Deus e sim no embate da vida, e não admite a fuga do pai. A questão que se evidencia é uma reflexão sobre até que ponto o ser humano pode ser afetado pela violência e pelo medo e até que ponto se é capaz de viver nessas condições.

A peça é realizada com quatro atores e um músico, que toca os instrumentos ao vivo, dando o clima das cenas. As atuações transitam entre ternura e agressão e estão presentes nos gestos que aproximam e, ao mesmo tempo, distanciam os atores. Os personagens se confrontam com pensamentos diferentes, acusações, culpas, se batem e também brincam, mas a própria brincadeira também é violenta.

O jogo corporal dos atores é muito intenso, principalmente na cena com as cadeiras, no momento em que eles mudam de lugar rapidamente, jogando as cadeiras um para o outro ou quando sobem em cima delas andando em desequilíbrio, criando uma tensão também em relação ao texto, o que potencializa a performance dos atores. Há um momento em que Rosa fala do chefe do tráfico, Litinho, que mata rindo, e os atores cantam e dançam um funk com gestos violentos, conotação sexual e agressiva com as cadeiras presas em partes do corpo. O funk ajuda a criar a musicalidade das palavras e cria uma poética nas falas dos atores que, junto com o músico, dão o clima da realidade em que vivem.

Percebe-se uma revolta e uma aceitação da condição de vida dos personagens que se encaixam plenamente dentro da realidade desses atores, tornando a cena ainda mais próxima da realidade. A cena que melhor representa esse real se dá pelos relatos pessoais quando os atores se viram para a plateia e se perguntam se gostariam de continuar a viver na Maré. São relatos de perda, de violência e de dor que retratam a esperança de uma vida melhor, seja dentro ou fora da Maré. Como se pode observar no relato da atriz que representa a personagem Rosa:

A minha militância é na Maré. Tudo o que eu tenho de mais importante na minha vida tá ali naquele espaço. E eu nunca pensei em sair dali. Eu penso cada vez mais em me enraizar naquele lugar. Eu penso em construir família ali. Eu penso em viver na Maré para sempre (Zanelatto, 2004).

Atriz e personagem se entrelaçam nesse relato, real e ficção se misturam na performance potente da atriz que, de certa forma, está falando de sua própria experiência de vida na Maré. Os relatos pessoais projetam para o futuro a vida dos atores e assumem uma reflexão ética diante da possibilidade de construir uma vida digna, mesmo que em um ambiente precário.

Pai e filha se enfrentam no morro em Eles não usam tênis naique / Foto: Maura Martins

Cidade Correria: a cidade marginal

O coletivo Bonobando foi criado em 2014 em residência artística no Teatro da Laje, na Arena Carioca Dicró, na Penha, e a peça Cidade Correria ficou em cartaz no mês de maio de 2016, no Espaço Cultural Sergio Porto, e em maio de 2017 no Teatro Ipanema. A peça trata da relação das pessoas que vivem nas comunidades pobres do Rio de Janeiro com o preconceito e a violência na cidade. O espetáculo foi feito em forma de esquetes, ironizando situações vividas pelos próprios atores do espetáculo, deixando a teatralidade visível na forma de compor o cenário, os objetos, o figurino e a música tocada pelos próprios atores com instrumentos de samba.

Trata-se de um processo coletivo de criação iniciado em 2014 quando o Teatro da Laje ganhou o edital da Prefeitura do Rio de Janeiro para realizar uma pesquisa sobre o território na Arena Dicró, na Penha. Adriana Schneider e Lucas Oradovschi dividem a direção do espetáculo, composto por atores que já tinham uma experiência em teatro nas comunidades. Foram realizadas diversas oficinas, como as de máscaras, palhaçaria, performance, objetos em deriva para estimular o treinamento do grupo e criar uma poética com elementos que vieram a compor uma dramaturgia. 

Em 2015, eles ganharam novamente um edital para realizar uma montagem com esse material sobre a cidade e, assim, começou o processo de montagem que utilizou a ficção, partindo de contos latino-americanos e africanos a fim de estabelecer os dispositivos que estruturassem o processo de criação dos atores. O método dramatúrgico, organizado pela diretora Schneider, partiu dos contos ficcionais e da experimentação dos atores por meio de suas próprias vivências e histórias no dia a dia na cidade. No entanto, havia uma preocupação de que o espetáculo não fosse autobiográfico, pois eles não queriam ser enquadrados como os atores da favela, falando somente de sua realidade, mas queriam aproveitar a oportunidade para mostrar a sua criação poética por meio da cultura popular e de técnicas aprendidas durante o processo, inserindo-se, assim, na cena contemporânea.

Ainda que as experiências pessoais tenham servido de matéria-prima na estruturação desse trabalho, a montagem não pode ser considerada uma autoficção, pois não parte de uma linha confessional das histórias dos atores, mas pode-se dizer que se baseia em fatos reais. Concebida em criação coletiva a partir dos textos “O bebê de tarlatana rosa”, de João do Rio, “A última chuva do prisioneiro”, de Mia Couto, “O duelo entre a criança que diz sim e a cidade que diz não”, de Thiago Rosa, “Banzeiro”, de Ricardo Cotrim, “Cidade Correria 1”, de Thiago Florencio e “Cidade Correria 2”, de Daniel Guimarães, a dramaturgia mescla obra literária e a escrita urgente que visa à cena, às esferas do real e do poético.

Dessa forma, o espetáculo começa satirizando o que seria uma cena autobiográfica com um ator sentado num sofá velho falando de sua vida, da relação conflituosa dos pais e do desejo de sua mãe de que ele se torne um homem importante trabalhando numa grande empresa como Mc Donald’s, Burger King ou KFC, mas ele revela que o seu sonho era ser ator de teatro. Nesse momento, entram outros atores, que se juntam a ele, para pensar qual a cena de teatro que gostariam de montar, revelando a estrutura de um processo coletivo de criação, embasado nos depoimentos dos atores que podem ser reais ou não. Eles encontram uma caixa com elementos cênicos e vão se fantasiando e, com seus corpos, criam um grande barco que os leva para uma viagem de texto e ritmo, para uma cidade caos, cidade contradição, cidade impedida, inventada, cidade revolução, cidade correria, que é o Rio de Janeiro.

Os atores dividem o palco com fitas amarelas em pequenas áreas. Os espaços se tornam compartimentados e os territórios, minados, apresentando uma cidade cindida, na qual as regiões mais valorizadas (Zona Sul e Centro) concentram grande parte das atenções, e as demais ficam condenadas ao quase esquecimento. A questão da gentrificação, a ironia com as propostas do governo em transformar o Rio numa cidade modelo para os jogos olímpicos, o processo de exclusão dos negros e pobres, com o aumento do preço da passagem, a questão da UPP que, ao invés de resolver, muitas vezes piora o conflito na favela, são alguns dos temas abordados.

Alguns espectadores são convidados a participar de uma cena conduzida por um apresentador de TV suburbano. A cena traz à tona a dinâmica territorial da favela (ruas ou vielas), enquanto participantes do público dão as mãos em diferentes posições formando barreiras e acessos, e um ator negro passa por entre eles perseguido por setores da sociedade, como a diretora de uma escola, uma ONG, uma apresentadora de TV, até ser pego pela polícia e enquadrado como marginal. Nesse momento, o personagem perseguido diz que é ator e o policial pede para ele mostrar o que faz. Ele, então, começa um show de striptease, no ritmo de funk, revelando uma roupa embaixo da outra, representando os estereótipos que o negro e o pobre assumem na sociedade, como lixeiro e doméstica, até ficar somente com uma sunga oferecendo seu corpo para o policial. 

Esta cena foi baseada em um fato real que aconteceu com um ator que foi pego pela polícia e teve que provar que era ator de teatro. Os relatos se misturam com a ficção, deixando claro que o tema principal é a exclusão do negro e o preconceito com as pessoas que vivem nas favelas. Durante as Olimpíadas, a cidade foi reformada para se enquadrar no esquema de uma cidade modelo e, dessa forma, os atores simulam uma operação plástica, colocando próteses e enfeitando uma atriz, que representa a cidade e, depois, a colocam de pé como uma boneca falando francês. Os contrastes se intensificam na Cidade Maravilhosa, ao tentar maquiar e esconder os podres, violências, injustiças e descasos, excluindo ainda mais a sociedade marginal para produção de uma cidade olímpica.

O espetáculo apresenta cenas de extrema violência, porém sem perder o humor e a intensa teatralidade, como na cena em que uma atriz de pijama faz o papel de uma menina brincando com suas bonecas e reproduz o que escuta no mundo dos adultos: a violência do estupro, do bandido perseguido pelo camburão, do assassinato e morte de sua família, concluindo com a sua própria morte. A voz infantilizada da criança narrando os episódios que acontecem na vida real demonstra o quanto essas pessoas são submetidas a uma violência cruel no dia a dia.

No final da cena, meninos entram soltando pipas coloridas, um ator dança capoeira e uma atriz entra vestida e dançando como Oxum, a orixá das águas, que vai molhando e limpando todo o sangue derramado, para que o amanhã possa renascer com esperança.  A atriz que representa a cidade vai se desfazendo de toda roupa, maquiagem e próteses que foram colocadas, ao mesmo tempo em que um poema é recitado em off, mostrando a sua revolta de tentar parecer com aquilo que não é. A beleza da cidade está na sua contradição, nas suas misturas e hibridismos culturais que, por vezes, se revelam de forma surpreendente, tal como nos mostra o texto final da Cidade:

Eu sou a Cidade Correria! Sou um fosso, sou um fóssil de um povo que nunca existiu, que nunca existiu? Sei não, sei que sou vil, sei que sou vão, sei que sou a cidade e que nela sou a faísca e sou também a isca na minha armadilha, já fui o fogo, já fui a cinza, sou um cheiro, serei meu chão, minha comida, meu miojo, meu pão, sou a feira no feriado, sou a fruta, sou o resto varrido da fruta, a alegria dos pássaros, o pedágio dos ratos, sou céu, enterrado no chão, sou o sol correndo, o coração batendo, na minha alegria, na minha fuga [Nesse momento os atores que haviam deixado o palco, voltam um a um, com pipas presas em bambu, compondo com relação à figura da Cidade] sou rápida, sou rasa como uma lâmina, era faca? era asa? ou era fome? Ontem me mataram, hoje esqueci meu nome, ontem era pássaro, hoje meu fóssil, sem nome sem data, rasga a calçada e vai passando, circulando, circulando, tenho hora, não tenho dinheiro, mas sou rápida, rápida e rapace como um rato, como carro voando baixo, sou chumbo grosso, metal pesado, sou trânsito, sou trabalho, trabalho, trabalho! Sou a Cidade Correria, sou a dor, a ferida, cimento, cinza, cinza, cinza, (Thiago leva uma bacia de água para Cidade, que se lava) tumor aberto, sinal fechado, corpo fechado, corpo riscado no chão, sou a Cidade Correria, sou a fuga do labirinto, sou meus passos sumindo, sou a multidão, esbarrão sem som, búzios sem relação, o tempo é corrente, meu tempo é corrente, chave e portão, sou a Cidade Correria, sou a flor bonita nascendo, os apesares da minha sorte, sou a beleza chorando no sangue bebido da Terra, Terra velha, terra assombrada, ai os fantasmas da minha terra, sou as histórias das minhas velhas, sou as histórias espalhadas dos meus velhos e das minhas velhas, morrendo de pé como nasceram, apertadas, lugar travesti, foi assim que nasci, maltratada, maquiada, sorriso nos olhos, revolta na mão! (Coletivo Bonobando, 2014).

Cidade Correria / Foto: Maira Barillo

Conclusão

As cenas das subjetividades que vivem à margem vêm despontando no contexto do teatro contemporâneo brasileiro com o surgimento de novos grupos teatrais, coletivos e artistas que aderem às opções estéticas, linguagens, suas experiências de vida e suas vivências de mundo. Esta cena urgente coloca em foco o debate das políticas identitárias referentes aos contextos locais mostrando que é preciso problematizar a cena contemporânea por meio de dramaturgias que correspondam, por potência, a atores negros e marginais. Dessa forma, esses espetáculos refletem sobre o pertencimento dessas subjetividades na cidade e dentro da produção artística hegemônica. Reflete também sobre a questão da violência e da exclusão das pessoas que vivem nas favelas, sobre o espaço precário oferecido para a diversidade cultural, sobre o teatro como forma de ativismo e transformação da realidade e, enfim, como potencialização do espaço afetivo de encontro ao outro.


* Andréa Stelzer foi professora substituta na ECO/UFRJ (2017-2018), é pós-doutora em Literatura Comparada pelo PACC/UFRJ, doutora em Artes Cênicas pela UNIRIO com bolsa sanduiche da CAPES na Université Sorbonne Nouvelle – Paris 3, autora do livro A escritura corporal do ator contemporâneo (Confraria do Vento, 2010), além de diversos artigos acadêmicos.

Referências

APPADURAI, Arjun. “The future as global fact”. In: The future as global condition. London\NY: Verso: 2013.

CLIFFORD, James. “Sobre a autoridade etnográfica”. In: SANTOS, José Reginaldo (Org.). A experiência etnográfica. A antropologia e literatura no séc. XX. Rio de Janeiro: UFRJ, 1998.

COLETIVO BONOBANDO. Cidade Correria. Texto não publicado, cedido pela diretora do espetáculo Adriana Schneider, 2014.  

RESENDE, Beatriz. Possibilidades da nova escrita literária no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 2014.

SANTIAGO, Silviano. “Crítica de mutirão”. In: Modos da margem: figurações da marginalidade na literatura brasileira. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2015.

ZANELLATTO, Márcia. Eles não usam tênis naique. Texto não publicado, cedido pela diretora do espetáculo Isabel Penoni, 2004.

entrevista
Tempo de leitura estimado: 10 minutos

AS RAINHAS DO TRÁFICO NA LITERATURA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA

Desde o início de meus estudos acadêmicos, venho pesquisando literatura contemporânea, com foco na literatura brasileira, especialmente os temas que tratam da violência, das tramas criminosas e das escritas de si. Meu foco está mais nas narrativas-depoimento de escritoras mulheres que traçam relatos da vida na marginalidade. Ou seja, mulheres que viveram à margem do acesso e usufruto das riquezas e benefícios disponíveis, o que lhes confere o status de subalternas. Através da escrita, essas mulheres invocam a periferia, relatando em seus livros as memórias de como elas sobreviveram ao mundo do tráfico.

É marginal quem está do lado oprimido, excluído e desvalido. As escritoras entrevistadas Raquel de Oliveira e Fabiana Escobar relatam suas experiências de dentro do seu território: a favela da Rocinha. Traços comuns entre os romances A número um, de Oliveira, e Perigosa, de Escobar, são identificados pela problemática da violência, da resistência, da condição feminina em espaços urbanos, especificamente, a rua e a favela.

Raquel de Oliveira nasceu no Rio de Janeiro em 1961. Vive na Favela da Rocinha. Descobriu-se poeta dentro de uma clínica para recuperação de dependentes químicos. É pedagoga, professora e romancista. Aos 54 anos, em 2015, publicou pela FLUPP seu primeiro romance, A número um. O livro nos indica desde a apresentação que se trata de uma história baseada em fatos reais, ou seja, uma obra autobiográfica. Como observam Aline Deyques e Beatriz Resende, trata-se de um romance que dá voz a uma mulher que vive na periferia, sendo ex-traficante[1]. Raquel de Oliveira foi mulher de Naldo, chefe do tráfico da Rocinha. A escritora herdou o comando quando Naldo foi morto pela polícia.

Fabiana Escobar, atualmente com 36 anos, foi nascida e criada no bairro Rio Comprido, Zona Norte do Rio de Janeiro. Cursou Serviço Social na UFRJ. Atualmente, com três obras publicadas é blogueira e escreve artigos para sites e notícias da favela da Rocinha. No romance Perigosa, lançamento exclusivo da Novo Século, Fabiana Escobar narra o dia a dia do mundo do crime nas favelas do Rio de Janeiro, refletindo sobre os motivos que levam muitas pessoas a fazer parte dessa triste realidade, sobretudo mulheres e meninas. Em seus relatos, Fabiana Escobar vai descrevendo em detalhes a sua inserção no mundo do tráfico. Descreve as ações empreendidas por ela, o avanço das sofisticações das armas, estratégias de comando e as suas variadas formas de defesa e sobrevivência. Fabiana conta em seu livro sobre seu envolvimento com o traficante Saulo de Sá da Silva, com quem foi casada por 11 anos.

Como Raquel de Oliveira, Fabiana Escobar também conseguiu mudar e reconstruir sua vida após o envolvimento com o crime.

Entrevista com Raquel de Oliveira

Rachel Nunes: Partindo da constatação de que você escreveu um livro com base em suas memórias e vivências, é possível afirmar que você construiu uma personagem literária a partir de si mesma? Quem é a “Bonitona”?

Raquel de Oliveira: Contar essa história foi muito difícil e eu achei no romance literário um jeito de sofrer menos revivendo a Bonitona. Encontrei no estilo “Colcha de Retalhos’ eternizado e contemporizado por Mário de Andrade, do qual sou fã, a ferramenta necessária para criar literatura a partir de mim mesma. Mostrar-me como personagem através de um estilo literário foi vital para essa realização. Em sendo assim, pude manter uma certa distância e executar com êxito o livro, pude pegar imagens de mim mesma, partir de mim mesma, encontrar comigo mesma 30 anos mais nova e realçar os traços de personalidade mais fortes e dignos de uma obra literária de qualidade que a história merecia, centralizando no caso de amor e paixão dos protagonistas. A Bonitona sou eu! Em verdade e de verdade! Eu construí uma obra literária dessa época da minha vida, e reviver a Bonitona me fez aceitar, perdoar e deixar o passado no passado, pois sofria muito com essas lembranças. Foi como uma terapia. Tirei alguns fantasmas do armário! Concentrei no A Número Um minha eterna gratidão à literatura e à minha paixão pelo gênero romance.

RN: Se a personagem é criada pela autora, mas é ao mesmo tempo invenção, você acha que a personagem mostra algum traço que na vida real a autora esconde? O que a Bonitona faz que você não faria?

Raquel de Oliveira: A personagem não é uma invenção. A ficção se deu em reproduzir diálogos e falas ditas há muito tempo e não seria possível reproduzi-las, de fato. Também optei por escrever um romance e não uma autobiografia porque não seria ético para minha carreira como escritora nem recomendável para o mercado literário, já que não sou uma celebridade ou uma pessoa famosa. Além disso, há a questão dos nomes que são todos fictícios. Tudo o que a Bonitona fez foi o que ela sabia fazer. Foi o que aprendeu ao longo de uma vida dentro da criminalidade. Foi o que aprendeu sendo criada no meio do crime. Foi o que aprendeu sendo brutalizada e violentada desde muito criança. Em verdade ela só reproduziu o sistema em que viveu desde os seis anos de idade. Hoje sou outra pessoa. Com pensamento e sentimentos diferentes. Mais louváveis e mais humanizados, mas guardo dentro de mim essa mulher que, criança ainda, muito novinha mesmo, aprendeu a se defender e a sobreviver em um mundo tão cruel, sem possibilidades e oportunidades legais e favoráveis para se desenvolver como pessoa. Em verdade, até hoje, a força e a vontade dessa mulher de viver intensamente o seu amor me ajudam a superar as minhas misérias pessoais.

RN: Olhando pelo retrovisor da sua própria história de vida, você acha que essa vida teria sido diferente sem a literatura, sem a escrita do livro? O que representa a literatura para você, hoje?

Raquel de Oliveira: Sempre digo que a literatura me salvou! Me deu um fôlego de vida que eu desconhecia e foi na Poesia que descobri que poderia sobreviver à minha dependência química, uma doença progressiva, incurável e de determinação fatal, e prosseguir. Foi através da escrita sobre mim mesma, e meus dias confinada para a recuperação das drogas, que eu me descobri como pessoa, com sonhos e vontade de vencer as minhas próprias limitações, tão destrutivas. Não conseguia falar de mim, nem chorar ou sentir culpa, ou dizer não às minhas compulsões e obsessões, às substâncias psicoativas ilícitas, e por isso as terapias não funcionavam. Não sentia nada! Vivia anestesiada! Então passei a escrever sobre o dia e tudo o que se passava comigo, e foi assim que achei meu dom como poetisa. Então, sem a escrita não teria conseguido superar a doença e foi através dessa poesia que fui parar na Festa Literária das Periferias (FLUPP), fui reconhecida e publicada como poetisa, voltei à escola, fiz o ENEM, ganhei a bolsa para a faculdade de Pedagogia, e várias publicações como contista; e também publiquei um livro solo de poemas. Por fim, mas não o final, escrevi o romance A Número Um. Sem a literatura, acho que eu estaria morta; talvez como um zumbi, vazia por dentro e inutilizada para uma vida útil, com certeza! E, hoje, a literatura é minha melhor parte! A mais forte, e o que me move em relação a todos os aspectos de minha vida. Sou escritora! Amo escrever! E tenho ainda muito a dizer!

RN: Quais são seus planos de futuro? Vai escrever outros livros?

Raquel de Oliveira: Sim. Estou nas publicações desse ano nos livros da FLUPP. Em Poesia, com quatro dos meus poemas, e em Narrativas Curtas, com dois contos. Também estou terminando um segundo romance, o Vozes da noite. Tenho planos de publicar mais um livro solo de poemas e um de poemas para crianças. Quero fazer um mestrado e depois um doutorado em Educação e Saúde. Quero trabalhar com pesquisas em torno da Síndrome Alcoólica Fetal (SAF).

Entrevista com Fabiana Escobar

Rachel Nunes: O que você escreveu antes de escrever este livro? E o que a literatura representa para você?

Fabiana Escobar: Em 2001 eu comecei a escrever uma história que eu definia como sendo uma novela, mas só a minha família que lia. Já em 2011, escrevi a minha história em um blogue e, posteriormente, aquilo que eu havia escrito em 2001, eu atualizei no formato web novela. Depois publiquei os dois em formato de livro. A literatura inicialmente foi uma forma encontrada para mostrar para o mundo toda a minha verdade e, de certa forma, era também uma defesa. Depois percebi que tinha muita importância, tendo em vista que as pessoas se reconheciam no que eu escrevia.

RN: Você pode contar um pouco do que você leu desde sua infância? Que livros marcaram sua trajetória?

Fabiana Escobar: Na infância eu lia os livros tradicionais que recomendavam na escola. Não teve nenhum supermarcante dessa época. Mas sempre fui curiosa. Lia livro de São Cipriano, livros espíritas, e muito gibi. Mas não tenho nenhum livro para falar que esse marcou a minha vida.

RN: Como foi para você a experiência de preparar e publicar Perigosa? Ele foi importante para você no que diz respeito ao seu destino?

Fabiana Escobar: Apesar de ter sido pessoalmente muito angustiante relembrar algumas coisas para escrever o livro Perigosa, essa foi a parte mais fácil. Quando comecei a preparar o livro, me vi sozinha sem nenhum tipo de suporte que não estivesse ligado a dinheiro. Eu não tinha dinheiro, então tive que fazer tudo sem nenhum aporte material. O livro começou a ser vendido de forma independente por 47 reais, mas desses eu só recebia 5. Extremamente caro, pois no fim eu mesma não ganhava quase nada. O mercado literário brasileiro é muito cruel com os escritores. Me parece que escrever não é valorizado. Foi muito difícil chegar a uma editora, após anos com meu livro sendo vendido somente pela internet e tendo meu trabalho totalmente desvalorizado. O livro foi importante, sim, no que diz respeito à visibilidade do conteúdo que ele tem, mas escrever no blogue foi determinante no momento que fui vista e reconhecida por pessoas que poderiam me ajudar nessa caminhada.

RN: Que planos você tem para o futuro em relação à literatura? Pretende escrever mais livros?

Fabiana Escobar: Eu já tenho três obras: Perigosa (biografia), Linha cruzada (web novela) e Um gatinho chamado Flocos (infantil). Estou escrevendo outro livro, um romance de ficção científica. Eu também escrevo roteiros para o grupo de CINEMA que tenho na Rocinha: Rocywood. Já tenho o “Anjos não falam” – premiado em Atibaia, e “A bala perdida”. E estou produzindo um filme de terror chamado Vale dos espíritos. Também escrevi uma peça teatral chamada Se beber não tire selfie.


*Rachel Fátima dos Santos Nunes é pesquisadora do PACC da UFRJ, com Pós-Doutorado em andamento. E-mail: rachelnunes144@gmail.com.

Nota

[1] “Territorialidade e a questão de gênero na obra A número um, de Raquel de Oliveira”, artigo publicado nos anais do XV Encontro da ABRALIC em 2016.