dossiê
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EM BUSCA DA COROA DA SALVAÇÃO: MAGIA E ESCRAVIDÃO EM 1869

Resumo: Este artigo trata da análise de um processo-criminal em Cunha, São Paulo, 1870, aberto para investigar o que foi chamado de Escola de Feitiçaria Coroa da Salvação. Os escravos envolvidos foram acusados de matar pessoas como prática de lições de feitiçaria, em investigação iniciada pela senhora do principal acusado. A escola envolvia escravos de várias fazendas locais, além de libertos que moram na região. A base teórica usada são, principalmente, textos de Max Weber sobre religião e magia para tentar observar as condições de possibilidade para a crença compartilhada por senhores e escravos no caso analisado.

Palavras-chave: escravidão; magia; acusações de feitiçaria.

Abstract: This article deals with the analysis of a criminal process, in Cunha, São Paulo, 1870, open to investigate what was called by the School of Witchcraft Crown of Salvation. The slaves involved were accused of killing people as practicing witchcraft lessons in an investigation initiated by the lady of the main accused. The school involved slaves from several local farms, as well as freedmen living in the area. The theoretical basis used are mainly texts by Max Weber on religion and magic to try to observe the conditions of possibility for the shared belief by masters and slaves in the case analyzed.

Keywords: slavery; magic; witchcraft accusations.

Max Weber se notabilizou nas Ciências Sociais, dentre outros fatores, por abordar a religião como fenômeno social, entrelaçado a elementos de ordem diversa, centrais na sua compreensão. Momentaneamente, ele isola o fenômeno para investigá-lo e, assim que possível, relacioná-lo a tantos outros. Uma questão de estratégia analítica, de método. Para Weber, a crença na salvação, a conformação das regras de autorização para alguém ser mágico, feiticeiro ou sacerdote, as maneiras de produzir os fundamentos de sua reputação, da crença em suas habilidades extraordinárias, a sustentação social moral que imbui de poder um messias, as camadas letradas, os especialistas, que detém as rédeas da argumentação teológica e as justificativas rituais, são, em alguma medida, aspectos dos universos chamados de religiosos. Esses seriam ambientados a partir dos desejos nutridos nas pessoas para responderem de forma confortável aos seus medos, às suas angústias. Tudo isso socialmente concebido e performatizado, experimentado com paradoxos de diversos níveis de complexidade. Para Weber, a sociogênese da crença na magia não ocorre em etapas evolutivas numa única temporalidade ahistórica, mais sim em processos sociais os mais diversos – alguns de cunho mundial, outros territorialmente mais localizados. O tempo também é socialmente construído e vivido, e as investigações de Weber trazem recomendações teóricas e metodológicas para observarmos e analisarmos os agentes sociais em relação nos seus devidos contextos históricos.

Neste artigo, viso a fornecer alguns instrumentos para avaliar situações nas quais indivíduos se valeram de recursos mágicos e processos de magicização do mundo social para atingir os fins por eles almejados, num processo de busca de superação de angústias, dramas dolorosos. Terei como corpo analítico central parte de um caso ocorrido na cidade de Cunha, província de São Paulo, em 1869 (Processo-crime, Corte de Apelação, número 50, caixa 28, galeria c, ano 1870). Desde minha tese de doutorado não revisitava essa documentação, e esta é a primeira vez em que publico algumas análises, que serão completadas em outros artigos em fase final de elaboração, parte de um livro que pretendo publicar com investigações e interpretações mais amadurecidas intelectualmente sobre o caso.

A base teórica das análises neste artigo são algumas observações de Max Weber, contidas nos seus estudos sobre as condições sociais de possibilidade para crença na magia e as investiduras sociais que os candidatos a mágicos devem ter para que sejam reconhecidos como portadores de poderes mágicos, para os que neles acreditam. De maneira alguma tratarei de percorrer a vasta bibliografia sobre a magia, tema central na Antropologia, muito menos sobre a historiografia sobre religiosidade e escravidão nas Américas e Caribe. A proposta é me ater em textos que permitam pôr em relevo o quanto os procedimentos mágicos são constitutivos do funcionamento do mundo social, buscando compreender o que me parece ser uma densa trama de relações, presentes nas narrativas que constam nas diferentes peças processuais que compõem o já referido documento. Dessa forma, a perspectiva por mim adotada é procurar identificar em certos antropólogos aquilo que é útil para pensar os materiais de pesquisa, enfatizando questões inspiradas em textos específicos sobre religião de autoria de Max Weber.

O que de Max Weber ajuda na análise do caso de Cunha?

Religião é ação no mundo, para Weber, mas as motivações dos fiéis adeptos seguem os mais diversos protocolos, baseados em regras morais compreendidas empiricamente. Tal afirmação não vale somente para o que denominou por grandes religiões mundiais, às quais ele dedicou volumes particulares. Tal maneira de tratar pesquisas sobre religião coloca o pesquisador diante do impedimento de não universalizar valores morais. Não percebo, nesse sentido, um caráter etnocêntrico em Weber, nem mesmo observo antropólogos sob sua influência, tendo feito uso de seus apontamentos ao se debruçarem no entendimento de seus materiais de pesquisa. Citarei dois exemplos. Lygia Sigaud (1979) buscou avaliar as condições morais de interpretação de formas de remuneração e de lidar com dinheiro entre trabalhadores em engenhos de cana na Zona da Mata de Pernambuco, observando forte presença de justificativas morais para colocar patrões entendidos como sendo mau-pagadores na justiça. Stanley Tambiah (1968) entendeu, em certos rituais religiosos em Sri Lanka a verbalização das moralidades em palavras ritualmente alocadas em situações de transformação de estágios sociais dos participantes das cerimônias. Ambos esses autores não trataram de modo etnocêntrico os universos pesquisados, como se fossem confirmações de fenômenos mais amplos, exemplos da ocorrência em qualquer outro lugar, mas partiram do raciocínio de Weber da preponderância de explicações morais para atos objetivamente vividos e performatizados, com autorização ou condenação ética de outros agentes envolvidos. Por um lado, podemos dizer ser esse um uso canibalista do autor, mas eu prefiro dizer pragmático e empírico, fazendo render os dados das pesquisas. Ou seja, o que Weber (1921) chama de tipos ideais.

Dos textos em que ele coloca aspectos religiosos como sendo centrais em certas sociedades, escolhi L´éthique économique des religions mondiales (1996 [1915-1920]), posto que traga questões inspiradoras para a avaliação do material que estou revisitando. Weber põe em relevo a promessa ofertada como algo a ser investigado no que chama de religiões mundiais asiáticas. Nelas, o saber é o caminho da salvação, uma vez que há o pressuposto de um fosso entre a massa de fiéis e os letrados, os especialistas. Não há o banimento, mas sim a tolerância às práticas mágicas por meio de constantes negociações entre os envolvidos. Desde que não houvesse concorrência com os rituais religiosos, haveria como acomodar as coisas em seus devidos lugares socialmente aceitos. Existiria, para o autor, um saber asiático, dito de maneira imprecisa, em seu aspecto voltado para a vida religiosa e para não dar conta somente de um saber prático no mundo. A relevância disso encontraria variações nas religiões mundiais asiáticas.

Para Weber, “só o saber assegura o poder” (1996, p. 464), e, não à toa, ele destaca a atuação dos Brâmanes, uma aristocracia sacerdotal que exercia domínio na leitura e interpretação das escrituras sagradas, na Índia, e que liderava a negociação do bom lugar da magia nessa sociedade. Se os sacerdotes e teólogos trabalham para dar explicações acerca dos acontecimentos no mundo, racionalizando a religião, os feiticeiros operam no campo da eficácia. Estes teriam o papel de contemplar as insatisfações de fiéis com relação à ação dos sacerdotes. A capacidade de chegar à gnose mística estaria ligada, então, a um carisma que só essa casta possuiria – ela teria o monopólio das possibilidades racionalizadas de salvação, pois é a casta dos especialistas. A salvação é experimentada, assim, nesse texto de Weber, na vida mística, e interpretada na vida racional. Ela não é conseguida por uma recompensa por atos corretos dados por um Deus pai, único e absoluto.

O referido texto pode ser conectado a outro conjunto de escritos sobre Confucionismo e Taoísmo (2000), também produzidos no mesmo intervalo de tempo, cerca de dez a quinze anos depois da publicação da Ética protestante e o espírito do capitalismo (1985). Especificamente sobre aquelas duas religiões há um conjunto apontamentos que também me inspiram. O caráter mais solto desses textos em relação aos dados específicos me traz certo desconforto na imprecisão, contudo, também observo maior dinamismo no aparecimento de questões gerais que devem ser testadas à luz de material empírico mais detalhado. Nos textos apontados, Weber coloca as mesmas perguntas às grandes religiões mundiais: como se chega à salvação? Qual é o caminho da salvação? Uma forma de encarar essas questões, através de observações do próprio Weber, é examinar trajetórias religiosas de indivíduos e coletivos humanos que tenham suas condutas morais orientadas por alguma ideia de salvação. Localizei claramente essas duas questões no material pesquisado e no cenário no qual foi produzido, sendo, assim, pontos centrais da minha abordagem da rede de relações para o estudo e prática de magia, organizada por escravos e libertos de fazendas localizadas no município de Cunha, São Paulo, em 1969, chamada na documentação consultada Escola de Feitiçaria Coroa da Salvação.

Sobre os critérios para a escolha do caso estudado

Na tese de doutorado (Couceiro, 2008), busquei avaliar como poderia encontrar situações de acusação de feitiçaria enfrentando o problema do seu aparente não-lugar nas classificações nos arquivos consultados. Minhas pesquisas ocorreram, principalmente, no Arquivo Nacional, localizado no Rio de Janeiro. Geralmente, as classificações obedecem aos códigos legais de cada período administrativo estatal, em parte formulados de acordo com critérios morais dos agentes com poderes legitimados socialmente para o exercício do controle jurídico satisfatório dos conflitos. No período colonial, a América Portuguesa era regida por ordenações que previam que acusados de feitiçaria participassem de ritualísticas jurídico-criminais, assim como nas primeiras décadas da república no Brasil, conforme mostrou, dentro outros autores, Laura de Mello e Souza (1986) e Yvonne Maggie (1993), respectivamente para os períodos colonial e o início do republicano. Como feitiçaria e magia não eram crimes prescritos no Código Criminal do Império é preciso adotar outro tipo de busca dessas fontes. Esse é o motivo para ter me detido nesse período, uma vez que a crença não desapareceu com o novo corpo de leis.

Operei com pesquisas em arquivos como sendo eles espécies de aldeias, em metáfora às primeiras etnografias clássicas em antropologia, na medida em que operam como registros sob questionamento do investigador pata responder a questões que não são as que deram sentido original à sua produção (Carrara, 1998). No caso de processos judiciais, são papéis organizados a partir de regras institucionais, carregados de significados morais, tecidos de pedaços de narrativas de biografias esfaceladas dirigidas em rituais policiais e jurídicas em que os narradores estão em posições desiguais de locução (Vianna, 2014). De acordo com a pergunta que se faça, podemos inscrever os documentos em narrativas ordenadas por informações de fontes as mais variadas sobre os seus autores, a sua natureza, os personagens que ali apareçam direta ou indiretamente, e as circunstâncias e os cenários para a sua construção (Le Goff, 1996, p. 203-231). Ou seja, o que Weber (1985) chama de condições de possibilidades, principalmente a de narrativas acerca de situações dramáticas experimentadas por pessoas de outros tempos, no tocante às relações escravistas, em nosso caso, documentadas na organização de um acervo – aldeias em forma de fichas, gavetas, instrumentos de busca, catálogos diversos, em meios físicos ou, mais recentemente, digitais.

Assim, procuro operar por meio do caráter histórico das relações sociais. Muito embora seja território consagrado aos historiadores, não é lugar incomum aos antropólogos desde a fundação da disciplina (Stocking Jr., 1992). Estar nos arquivos é fundamental para que fatos sejam reclassificados e interpretados pelos pesquisadores. Realizar etnografias nos arquivos permite redimensionar os caminhos para a formulação de narrativas e de seus variados estilos, historicizando lógicas e sentidos, descobrindo personagens e suas relações, questionando temporalidades, observando as contradições dos tempos. Um dos caminhos pelos quais enveredei foi o do emprenho de autoridades senhoriais, burocratas do sistema legal escravista e seus prepostos nas investigações de casos denominados por feitiçaria quando relacionados às denúncias de insurreições de escravos, com a participação ou não de libertos e africanos livres. Seguindo a literatura nacional e internacional, trata-se de um perfil bem estabelecido de evento que produziu documentos os mais variados. As pessoas envolvidas passaram a ser personagens desses registros, nas Américas e no Caribe, como apontam trabalhos de Carolyn Fick (1992), para o Haiti, John Savage (2007), para Martinica, Vincent Brown (2003), em relação à Jamaica, João José Reis (1988; 1989; 2001) e Rachel Harding (2003), sobre Salvador.

Circunscrito às investigações a fazendas de café do Vale do Paraíba e do Oeste Paulista, examinei documentos judiciais e oficiais do Império, processos criminais que tratavam de homicídios e tentativas de, correspondências confidenciais de ministros de Estado, chefes de polícia, da diplomacia e presidentes de província, além de romances, como A carne, de Júlio Ribeiro, de 1888, e notícias de jornais (Couceiro, 1998b). Todos eles se referiem às insurreições de escravos ou a sinais lidos por senhores seus prepostos e autoridades públicas como da iminência de sua ocorrência, bem como planos de acusados de serem feiticeiros conspirando para matá-los. Nessas fontes, encontrei narrativas sobre acusações de feitiçaria e sobre os acusados e os seus acusadores, com os últimos recorrendo ou não às esferas jurídicas para resolver as ofensas sofridas. As narrativas sobre as ações das autoridades públicas não trazem certeza ao pesquisador de que elas compartilhavam, sempre e de que maneiras, da crença nos efeitos dos feitiços, dos poderes dos sacerdotes e das sacerdotisas, dos iniciados nas práticas mágico-religiosas de matriz africana diversa. Os acusados eram punidos não por serem feiticeiros e nem por praticarem o que seus acusadores e julgadores entendessem por feitiçaria, mas sim por estelionato, homicídio, e demais crimes previstos no Código Criminal do Império.

Lembrando autores como Malinowski (1935), Evans-Pritchard (1968), Mauss e Hubert (2003) e Lévi-Strauss (1975a; 1975b), não é feiticeiro e nem mágico quem quer, mas sim quem corresponde às investiduras simbólicas socialmente instituídas pelos problemas que afligem certo número de pessoas. Quem demanda suas intervenções no correr da vida exige eficácia para atingir os fins desejados por meio mágicos, e explicações aceitáveis do mágico para os motivos de suas falhas. Ele é punido, de acordo com as disputas de poder em cada coletivo humano, seguindo o nível de frustração de quem avalia ter sido prejudicado. Trata-se de uma relação de morde e assopra: coerção aos mágicos e feiticeiros quando alguém se sente prejudicado através da ação mágica, e, em alguns casos, com legítimas relações de vingança e contra-vingança, como nos materiais analisados por Evans-Pritchard (1931), Max Gluckman (1968), e Jeanne Favret-Saada (1977), e presentes em livro organizado por Mary Douglas (1970). Contudo, protegem-se os ditos feiticeiros quando eles não estão a serviço de inimigos ou pessoas que ameacem poderes estabelecidos, como no caso dos Shona, na antiga Rodésia, atual Zimbábue, analisado por Peter Fry (1976), no período em que membros do partido comunista a eles recorriam nas lutas de independência. Mais recentemente, trabalhos como os de Peter Geschiere (1998) e naqueles organizados por Jean e John Commarof (1993) demonstram a dinâmica dessas relações de explicação de infortúnios nos processos de construção das formas burocráticas estatais ditas modernas em países como Camarões, e as perspectivas de interferir nos rumos dos acontecimentos.

Entendendo a Escola de Feitiçaria Coroa da Salvação

O cenário por mim escolhido é o da chamada “segunda escravidão”, conceito construído por Dale Tomich (2011), para falar do momento de maior crescimento das economias escravistas ligadas às plantações monocultoras uma vez inseridas no sistema capitalista industrial mundial – a partir da década de 1760. Trabalho de escravos africanos em regiões tropicais forneciam a baixíssimos custos matéria prima para as indústrias europeias, principalmente algodão, e alimentos estimulantes de valor nutritivo precário, como café e açúcar, consumido pelo proletariado capaz de fabricar os bens mundialmente comercializados (Mintz, 1986; 2010). No Brasil, a região economicamente mais rica na concentração de escravos de origem africana eram as lavouras de café, principal produto desse cenário no século XIX, a partir de 1840 (Slenes, 1986). Tal região abrangia parte do Vale do Paraíba Fluminense e do Oeste de São Paulo. Verdadeiro laboratório historiográfico para explicações de caráter local e nacional acerca de problemas os mais diversos, desde migração, até táticas revolucionárias precoces, recentemente vem sendo revisitada com outros olhares teóricos e metodológicos. Através da compreensão do quadro mais amplo das estruturas da economia nos meios de produção em escala industrial nas quais tais fazendas escravistas operavam (Marquese e Salles, 2016), de um lado, e dos debates acerca do grau de influência das ações de escravos nessa região na queda desse sistema de produção econômica em termos legais oficiais (Gomes, 1995; Machado, 1987; 1994), podemos avaliar como dona Geraldina e senhores vizinhos reagiram de forma tão rápida para evitar o alastramento das ações da Coroa da Salvação.

Nesse ambiente, pesquisei casos em que acusações de feitiçaria ocorriam exatamente quando os senhores não se sentiam contemplados pela ação de mágicos de origem africana, algo que resumi, em parte, noutro artigo (Couceiro, 2008). Pelo contrário, sentiam forte ameaça ao seu poder quando feiticeiros operavam perspectivas salvacionistas antissenhoriais nos rituais por eles comandados. Um dos casos analisados por mim ocorreu na fazenda de dona Geraldina Maria de Campos, na cidade de Cunha, província de São Paulo, em 1869, onde foram praticados assassinatos, segundo ela mesma narrou em carta ao inspetor de quarteirão Antonio Pereira Coelho, datada de 12 de janeiro de 1870.

Contava a senhora que alguns de seus escravos haviam aparecido mortos, depois de sofrerem da mesma enfermidade.[1] Os sintomas levaram dona Geraldina a suspeitar que eles pudessem ter sido “envenenados”, uma vez que tais fatos já haviam ocorrido em fazendas daquela região. Desta forma, mandou fazer “minucioso exame em todas as casas que serviam de morada para os seus escravos”. O alvo principal do exame eram as “caixas onde os escravos guardavam suas roupas”. Na “casa onde residia” o escravo Pascoal de Nação foram encontrados em sua caixa e uma patrona de couro contendo “uma pequena garrafa branca com um líquido que ele confessou ser de uma raiz muito venenosa, raspada e misturada com aguardente”, bem como “diversas raízes, todas venenosas, das quais de algumas ele se servia para dar aos seus parceiros”.

Depois do exame, dona Geraldina mandou que Pascoal fosse preso por trabalhadores livres, empregados em sua fazenda, e levado a ser interrogado na sala da casa de morada. Perguntou a Pascoal o porquê das tais “raízes venenosas” estarem em seu poder, tendo ele respondido que nem todas eram venenosas. Em seguida, sobre a “composição” que estava na garrafa, Pascoal afirmou que dera a três escravos de dona Geraldina – Jeremias, Benedito Gama e Lourenço Crioulo. Da raiz, tinha dado à “crioulinha Rita, também escrava de dona Geraldina”, misturada ao seu “mingau”. A escrava faleceu no dia seguinte. Pascoal afirmou, ainda, que não matara somente estes quatro escravos, mas também o escravo chamado Luís, pertencente ao genro de dona Geraldina, Joaquim Augusto da Purificação. Havia dado a Luís um pouco de pó de uma raiz venenosa, misturado à “canjiquinha que o crioulo estava comendo”. Seu falecimento também se deu no dia seguinte à ingestão da raiz.

Pascoal teria dito ser ele o único escravo que detinha o conhecimento acerca das propriedades das ervas e de seus usos com os objetos com ele encontrados. Usando esse aparato, segundo afirmara em juízo, havia matado, sozinho, cinco escravos. Além disso, contou que fora os dois “mestres”, Luís Moçambique e Félix, havia outro que era “o que melhor sabia fazer tudo aquilo” – um “preto” de nome Antonio. Entretanto, com aqueles dois “mestres, disso ele sabia, muitos escravos estavam aprendendo o ofício”. Não sabia quem eram, muito menos precisar o que realmente estavam “aprendendo” para atingirem o grau maior no que chamou “Escola de Feitiçaria Coroa da Salvação”.

Os depoentes foram revelando uma complexa estrutura de aprendizado na chamada “Escola de Feitiçaria Coroa da Salvação”. Mestres, calendário com local, mês, dia e hora de atividades específicas, protocolos rituais rígidos, tarefas a serem realizadas, hierarquia definida entre o seleto grupo de participantes, fórmulas de conteúdo misterioso, segredos, demonstração de habilidades, e o preço de objetos mágico-religiosos. É possível estabelecer uma tabela relacionando esses objetos, prestações e contra-prestações entre os que os negociavam, como dentes de cobra, patuás, orações, imagens de santos, ervas as mais variadas, através dos seus preços e do valor social a eles atribuído entre os envolvidos. Parte do documento indica, ainda mais quando ocorreram acareações entre os sacerdotes e candidatos ao grau máximo da Coroa da Salvação, que havia dívidas financeiras entre eles. Elas teriam motivado vinganças, uma vez que mau-pagadores não teriam digerido muito bem a cobrança material que seus credores exerceram, que obedeceria a outro calendário que não o das aulas e provas para avançar rumo à Coroa da Salvação.

Como Weber (1985) demonstrou, a vida religiosa não está automaticamente associada à vida voltada para ganhar dinheiro pelo trabalho diário, algo claro no capitalismo. Os agentes sociais tecem essas relações, através dos mais variados critérios, experimentando a vida sob condutas morais que ajudam a fazer uma costura entre a ação religiosa para a salvação pela ação nesse mundo e o ganho financeiro pelo trabalho diário. A fazenda de dona Geraldina estava localizada numa região rica e monetarizada do Império, perto de Parati, aonde desembocava o antigo caminho do ouro colonial. Não avalio como sendo de todo irrelevante lembrar que essa microrregião conhecia formas monetarizadas de intermediação de relações sociais as mais diversas, de modo pioneiro na América portuguesa, junto com a região das Minas Gerais. Da mesma maneira, podemos encontrar registros sobre isso na cidade de Salvador, a partir de 1828, segundo as pesquisas de, envolvendo a encomenda de feitiços, organização de festas dos candomblés e a sustentação dos terreiros nos arrebaldes da cidade, de cujos africanos e seus descendentes, em situação de escravidão ou não, participavam de relações mediadas pelo dinheiro (Reis, 2001; Santos, 2005). Para os anos subsequentes, especificamente nos terreiros do chamado candomblé jeje, Luís Nicolau Parés (2006) fornece dados acerca da complexa rede de relações para o sustento econômico das casas de culto e seus organizadores. Gabriela Sampaio (2007) investigou extensa rede de dons e contra-dons eróticos, políticos e econômicos na sexualizada figura de Juca Rosa, afamado feiticeiro africano-descendente que morava no coração da capital do Império do Brasil.

Entrevista com o prof. João José Reis (Departamento de História/UFBA), sobre resistência dos escravizados africanos e seus descendentes à escravidão

Entrevista com o prof. Vagner Gonçalves da Silva (Departamento de Antropologia/USP), sobre construção social das religiosidades no Brasil e intolerâncias às religiões de matrizes africanas

Há registros de que escravos e africanos moradores de Salvador e do Rio de Janeiro, durante o século XIX, teriam vindo de regiões em que bens mágico-religiosos, saberes e ofícios de sacerdotes e sacerdotisas, por exemplo, eram pagos com dinheiro. Esse sistema não seria diferente do que os africanos islamizados transmigraram com sucesso para Salvador e o Recôncavo da Bahia, a partir da série de insurreições étnico-religiosas desde 1816 (Reis, 2003; 2008).

Contudo, para a região cafeeira, ou para além dos limites urbanos de grandes cidades escravistas das Américas e do Caribe, trata-se de uma novidade esse perfil de organização econômica das relações mágico-religiosas, incluindo pagamento por etapas de aprendizado. Tanto Cunha, Parati como Salvador ocupam lugar privilegiado nas correspondências reservadas dos ministros da Justiça, da Agricultura e da Fazenda do Império quando o assunto eram moedas e notas falsas. Para Weber, somente esse caminho explicaria a racionalização da crença religiosa na salvação pelo trabalho remunerado diário para outrem. Um espírito, um sentir e agir simultâneos, um conjunto de éticas, ethos, que guiam o sentido das pessoas no mundo. Se fosse um radical leitor de Weber, e não de certa maneira um herético, submeteria toda a interpretação do processo de precificação, seguindo as definições de Viviana Zelizer (2011), desenvolvidas por José Renato Baptista (2007) para religiões de matriz africana, dos feitiços e outros elementos do caso de Cunha ao contato com a mentalidade econômica religiosa supostamente disseminada pelo protestantismo na anglo-américa. Poderia até mesmo tratar, em parte como Robert Slenes (1991-92) e Parés (2006) vêm propondo, de uma diáspora religiosa do que autoridades classificavam como feitiço africano e de entidades espirituais. Mas esse não é o meu caso, nesse artigo.

Considerações finais

Diante de todas as declarações, dona Geraldina entregou Pascoal às mãos do inspetor de quarteirão, para que ele, por sua vez, o enviasse ao delegado de polícia da cidade de Cunha, afastando-o do convívio dos seus escravos. O caso se desenrolou em processo criminal volumoso e duradouro, e num longo inquérito que mostrou ser um verdadeiro pente-fino da senhora e outros senhores locais nas senzalas de suas fazendas para descobrir como dar fim ou controlar satisfatoriamente, como diria Yvonne Maggie (1992), a ação dos feiticeiros. Afinal, o dono do escravo não era quem controlava a magia, a manipulação de ervas usadas como dispositivos outros, que não senhoriais, e nem legais, para a resolução de conflitos. Os senhores insatisfeitos poderiam deslocar as autoridades religiosas, e seus futuros mestres, para longe do conjunto de seus escravos. Tal atitude era comum nessas áreas do café, obedecendo ao conjunto de atitudes de vigilância e punição para evitar as ondas negras, nos termos de Célia Azevedo (1987).

No dia 30 de março de 1870, Pascoal e Luís Moçambique foram condenados a pena de galés perpétuas – prisão com trabalhos forçados. Jacinto Monjolo foi absolvido. O pedido de apelação foi negado, em 6 de julho de 1870, com o processo sendo encerrado em 21 de agosto. A condenação foi pelos homicídios, no caso de Pascoal, e por Luís Moçambique tê-lo ajudado diretamente a cometê-los, lhe fornecendo os instrumentos necessários.

Em Mauss e Hubert, Malinowski e Evans-Pritchard o mágico era informado por características místicas e carismáticas, funcionando como um mediador, um especialista, para proporcionar às populações atingir suas demandas. Pela etnografia e pelo recurso aos arquivos, é possível mostrar o lugar da magia na sociedade. Entre os Azande e os Trobriandeses, seguindo Malinowski, a magia não tem relação com sentido do mundo e da vida, ao contrário das grandes religiões mundiais trabalhadas por Weber. É bom saber que se os Azande desnaturalizam a morte, os Trobriandeses não. Um dos interesses do texto de E-P é pensar que magia e feitiçaria não são as mesmas coisas. Quem se considera atingido pela feitiçaria atribui o seu estado como produto da ação de alguém que teria feito o mal magicamente. Isso só é possível se a sociedade permitir que essa possibilidade exista – na feitiçaria, sempre há a atribuição de responsabilidade por um terceiro, tendo como suporte a crença da sociedade, a opinião. O epicentro é a vítima que formula a acusação, refutada pelo acusado. Isso é moralmente condenado pela sociedade, através das opiniões. Esse tipo de acusação revela as classificações dos indivíduos no mundo social, e a natureza social da acusação. A pessoa é vista como um feiticeiro, e não instituída socialmente como mágico. O feiticeiro é escolhido pelo jogo de relações pessoais. A questão, assim, é como os indivíduos tratam historicamente as situações de acusação de malefício, tendo sido acusados por alguém. Ao acusar, a pessoa atribui culpa. Em ambos, magia e feitiçaria operam com o pressuposto da crença de que há uma força fora do mundo.

A magia e a feitiçaria somente relacionam pessoas que já estão em relação em determinado círculo social. Por isso, é fundamental reconstituir a rede de quem diz o que em relação a quem. Como no mundo social tudo é fluido, é preciso historicizar as acusações – o acusado de um momento pode ser o acusador de outro. E Max Weber nos oferece perspectivas eficazes de leitura de materiais de pesquisa que tenham perfis de crença, organização de relações com o sagrado em sentidos salvacionistas que rendem análises não etnocêntricas.


*Luiz Alberto Couceiro é bacharel e licenciado em história pela PUC-Rio, mestre e doutor em antropologia pelo PPGSA-IFCS/UFRJ, com pós-doutorado em antropologia social pelo PPGAS-Museu Nacional/UFRJ. É professor de antropologia no Departamento de Sociologia e Antropologia e professor no PPGHIS, ambos da UFMA. Pesquisa perfis de sociedades escravistas e ações dos agentes escravizados no dimensionamento dos significados de sua existência, através de conflitos com senhores e seus prepostos nos cenários de fazendas de café no Rio de Janeiro e São Paulo, na segunda metade do século XIX, acusações de feitiçaria no Rio e em Salvador, e comunidades de fugitivos no Maranhão e Amapá, a partir de 1755, e suas conexões com as dinâmicas do sistema capitalista internacional.

Fonte documental
Arquivo Nacional

Processo-crime, Corte de Apelação, número 50, caixa 28, galeria c, ano 1870.

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Nota

[1] Todas as citações estão nas folhas 17 e 18v do documento citado.

dossiê
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“IAIÁ DE OURO”: FEITIÇARIA E ESCRAVIDÃO NO RECIFE OITOCENTISTA

Resumo: As sociabilidades religiosas de africanos e crioulos são fios condutores, não só da resistência, mas também de uma cultura que organiza a população negra na sociedade e no território urbano. Por outro lado, as movimentações de feiticeiros(as), curandeiros(as), catimbozeiros(as), são importantes enquanto mecanismo de resistência dos egressos da escravidão. As experiências de vida de livres e libertos, como de Feliciana Maria Olimpia, a Iaiá de Ouro, nos permitem entrar no mundo das negociações nos espaços urbanos do Recife do século XIX, por caminhos diferenciados daqueles que privilegiam as análises estruturalizantes do impacto da abolição no desenvolvimento econômico. O presente artigo traz para o debate, portanto, as ações de livres e libertos – praticantes das religiões afro-brasileiras – como mecanismo de resistência para assegurar seus espaços sociais, religiosos, culturais na cidade nas últimas décadas da escravidão.

Palavras-chave: feitiçaria; escravidão; espaço urbano; Recife; século XIX.

Abstract: The religious sociabilities of Africans and Creoles are the guiding threads not only of resistance, but also of a culture that organizes the black population in society and urban territory. On the other hand, the movements of sorcerers, healers, catimbozeiros(as), are important as a mechanism of resistance of the graduates of slavery. The experiences of free and liberated life, such as those of Feliciana Maria Olimpia, the Iaia de Ouro, allow us to enter the world of negotiations in the nineteenth-century Recife urban spaces, by differentiated paths from those that favor the structural analysis of the impact of abolition in the economic development. The present article brings to the debate, therefore, the actions of the free and free – practitioners of Afro-Brazilian religions – as a mechanism of resistance to ensure their social, religious, and cultural spaces in the city in the last decades of slavery.

Keywords: witchcraft; slavery; urban space; Recife; nineteenth-century.

A[1] presença de africanos(as) e crioulos(as) praticantes de feitiçarias e mandingas, no Recife, como a parda Iaiá de Ouro, que burlava a vigilância e o controle das autoridades eclesiásticas e civis, e assim, garantiam seus espaços de liberdade na sociedade da época, foi registrada por memorialistas e viajantes. Segundo o memorialista Francisco Augusto Pereira da Costa, foi a tal Iaiá uma “afamada bruxa do Largo do Forte das Cinco Pontas”, que, por meio da indústria da feitiçaria, conquistou grande clientela e acumulou fortuna legada a seus devotos protetores. Chegou a viver no Recife até os primeiros anos do século XX e exerceu forte influência sobre policiais, políticos, inspetores de saúde e comerciantes da época (Pereira da Costa, 1974, p. 120-121).

No dia 28 de janeiro de 1873, foi enviada ao Comendador Henrique Pereira de Lucena (posteriormente Barão de Lucena), então presidente da Província de Pernambuco, uma carta anônima pedindo que fosse remediado um grande mal. Curiosamente, tal malefício que pairava sobre a Cidade do Recife de Pernambuco era a presença de uma moradora do Largo da Fortaleza das Cinco Pontas: “parda de nome Feliciana Maria Olímpia, conhecida por Iaiá de Ouro, ou feiticeira, que intitulava-se viúva, mas que sempre foi e é prostituta”[2]. Possuidora de escravos, costumava aplicar golpes e furtos em comerciantes, tendo como cúmplice um sujeito de nome João Nepomuceno. Teve relações estreitas com pessoas de influência na sociedade da época, como o Secretário da Chefatura de Polícia, o senhor Eduardo de Barros. Foi acusada ainda de estar envolvida no assassinato de algumas de suas escravas. Era de tão má conduta que chegou a ser presa dez ou doze vezes, sendo algumas dessas prisões por crime de ferimentos, outras por injúria e outras ainda por furtos e golpes.[3]

O Presidente da Província parece ter levado muito a sério as denúncias contra Feliciana Maria Olímpia, a Iaiá de Ouro, pois, cinco dias depois da referida carta, estava nas ocorrências da Polícia Civil um ofício que dizia estarem sendo tomadas as “precisas providências sobre a prisão dos criminosos” citados na carta.[4]

Na tentativa de percorrer a trajetória dessa mulher parda, feiticeira, criminosa e, como relata seu algoz anônimo, pessoa de má conduta, procuramos pensar como as ações cotidianas de pessoas livres e/ou libertas: africanas, crioulas ou mestiças; em especial, praticantes de feitiçarias, mandingas, catimbós, xangôs – práticas afro-religiosas[5] – se constituíram em mecanismos de garantia de seus espaços na cidade, tornando bairros e logradouros áreas de suas relações de poder. A exemplo do bairro de São José, que foi sendo reconfigurado por escravizados e egressos do cativeiro, tornando-se, segundo Marcus Carvalho, lugar de reconstrução de laços sociais, culturais e religiosos esgarçados pela violência do tráfico transatlântico de africanos (Carvalho, 1998, p. 87).[6]

O objetivo deste artigo, portanto, é por meio da trajetória da Iaiá de Ouro coteja as ações de livres e libertos – praticantes de feitiçaria, curandeirismo, catimbós, ou seja, práticas afro-religiosas – os mecanismos de resistência utilizados para assegurar seus espaços sociais, religiosos, culturais na cidade nas últimas décadas da escravidão, por caminhos diferenciados daqueles que privilegiam as análises estruturalizantes do impacto da abolição no desenvolvimento econômico.

Iaiá de Ouro à época do Recife das Maxambombas

A cidade do Recife, na segunda metade do século XIX, assistiu à chegada do progresso, experimentado na expansão de sua área urbana e nas ações dos “homens de negócios”, que, preocupados com a industrialização e a reforma da cidade, investiam na edificação de prédios públicos, como a construção do Mercado Público de São José, inaugurado em 1875; no alargamento de ruas e largos; no transporte coletivo, com o aparecimento das maxambombas – bondes que circulavam na Cidade, ligando o centro a seus arrabaldes. Por outro lado, o progresso do Recife, na proporção em que se expandia urbanisticamente, tentava conter o fluxo de pessoas egressas dos engenhos, normatizando a utilização das ruas, controlando as idas e vindas dos transeuntes, principalmente a movimentação cotidiana de escravos e libertos que circulavam nas ruas, seja à luz do dia ou à noite.

O Largo das Cinco Pontas, localizado no bairro de São José, onde morava Iaiá de Ouro, foi um desses lugares de vigilância e controle das autoridades civis e eclesiásticas da época. Era o Cinco Pontas visto pelas instâncias púbicas – policiais e administrativas – como reduto de vadios, malandros, ajuntamento de negros escravizados, livres e libertos: “rixa entre moleques e pretos que alli vão estacionar com o fim de conduzir as bagagens dos passageiros. Da lucta resultou ferimentos feitos á pedradas e até canivete”.[7] Também a violência era registrada nas ocorrências dos chefes de polícia:

Hotem às 8 horas da noite, na ocasião em que dous Bondes se encontraram na curva que forma as linhas na Praça do Conde d’Eu, João José Nepomuceno, passageiro do Bonde que vinha da Magdalena, estendendo a cabeça para fora da plataforma, onde vinha, recebeu uma forte pancada no rosto pelo bonde que ia para a passagem. Este facto foi e deste modo informado por Pedro Luiz de Oliveira, empregado na Estação das Cinco Pontas que presenciou.
As 11 horas da noite de 2 do corrente os dous vigias, q’rondam a Estação das Cinco Pontas, perceberam q’ uma canoa atracara aos cães do lado interior da estação. Dos dous indivíduos, q’ vinham em dita canoa, um saltou á terra e travou uma lucta a faca com os vigias, não podendo esse indivíduo tirar vantagem nessa lucta, retirou-se á canoa, e com o outro fez-se ao largo. Quatro horas depois apareceu outro individuo q’ sorphehendido pelos vigias, retirou-se depois de desparar sobre os mesmos um tiro.[8]

Mais uma vez, ambos os relatos policiais mostram a área como violenta e perigosa para os que nela labutavam, a exemplo dos vigias da Estação, que arriscaram sua vida para garantir o patrimônio do estado, como para aqueles que precisavam ir e vir, como João José Nepomuceno, que saía da Madalena para ir ao Cinco Pontas, talvez no caminho de seu trabalho. Ou ainda para aqueles que escolhiam residir nessa parte do Recife, como Iaiá de Ouro que, ao sair da comarca de Nazareth, chegou a essa localidade no final da década de 1860. Ali se estabeleceu, tirando feitiços, praticando curandeirismo, envolvendo-se em furtos e golpes, acusações de assassinatos, muitas vezes em parceria com seus amigos, clientes ou domésticos. Chegou a ter doze registros na Casa de Detenção, devido às estratégias de sobrevivência, que passou a engendrar nesse lugar[9].

Disputas acirradas por trabalho entre moleques e pretos, furtos, roubos, assassinatos cometidos por ex-cativos, foram alguns exemplos elucidados por Walter Fraga ao analisar as ações da população livre e liberta às vésperas do movimento de 1888, que culminou na abolição do sistema escravocrata. Para ele, são exemplos que podem ser lidos como experiências com a liberdade e estratégias de sobrevivência dos egressos da escravidão na sociedade pós-emancipação. Análises importantes também para perceber como outros libertos ou livres, assim como a parda feiticeira Feliciana, criavam mecanismos para garantir seu espaço na cidade (Fraga Filho, 2006).

Feliciana Maria Olímpia, muitas vezes era ela “Maria da Conceição”, “Maria Conceição”, “Maria Olímpia Floresta Brasileira”. Isto é, na tentativa de escapar da vigilância e do controle policiais, utilizava um nome para cada momento, talvez delegacia, chefe de polícia, circunstância, conteúdo do crime. Os jornais da época, no Recife, estão cheios de anúncios à procura de cativos(as) que, em seus momentos de fuga, costumavam mudar de nome, como Severino, que, quando fugia, segundo seu senhor, mudava seu nome para Francisco Antônio (Carvalho, 1998, p. 184).

Feliciana Maria Olímpia, Maria Floresta Brasileira, Maria da Conceição, ou Iaiá de Ouro, também era tida como parda. Talvez uma liberta ou, quem sabe, parda livre. Enfim, Feliciana trazia na cor de sua pele as marcas comuns ao cativeiro. Pelas informações documentais não foi possível precisar sua condição de experiência com a liberdade. Mas, assim como tantos que carregavam na pele a cor do cativeiro, Feliciana negociava, criava estratégias para inserir-se no mundo “branco” e escravocrata. Sobre suas estratégias de inserção nessa sociedade e de garantia de sua sobrevivência na cidade, discutiremos, a princípio, sua identidade étnica e/ou de cor, ou melhor, sua meta-etnia, uma vez que sua classificação de cor/etnia é dada por terceiros.[10]

No final do século XIX, as classificações de cor e raça passaram a ter uso científico e de vinculação com a sociedade brasileira. No cotidiano da sociedade, as classificações de cor/raça seguiam padrões múltiplos desde o século XVIII, podendo representar desde características físicas, relações de parentesco até sinalizadores de redes sociais. Desse modo, o que era ser pardo(a) como a feiticeira Feliciana nas últimas décadas do oitocentos? Ou melhor, de que critérios a sociedade se utilizava para classificar uma pessoa como negra, crioula, parda, mulata, cabra, enfim, das mais variadas matizes de cor/etnia?[11]

No Brasil escravista, mais que a condição de cor e social, a condição jurídica era a balizadora das diferenças entre livres e escravizados; desse modo, negros, pardos, mulatos, cabras, poderiam ser juridicamente tanto escravizados como libertos. O termo negro era utilizado juridicamente como sinônimo de escravo, não sendo possível encontrar designações do tipo “negro livre” ou “negro liberto” no século XIX. Seguindo o mesmo raciocínio, era a classificação de crioulo tida como referência de escravizado nascido no Brasil, ou seja, filho de africanos cativos. Quando alforriados, os crioulos seriam designados como pardos forros, enquanto seus filhos seriam pardos, independentemente da cor da pele. Ou seja, os termos classificatórios: negro, crioulo e/ou pardo para designar escravizado não significavam cor de pele, mas origem de nascimento.

A cor da pele entre os livres e libertos, por sua vez, indicava outros níveis de diferenciação social para os homens e as mulheres coloniais/imperiais que não eram submissos pelas distinções entre livres, forros e escravos. A cor da pele era um fator de reconhecimento social de determinada situação que caracterizava o status dos livres e dos escravizados e não a condição jurídica desses ou ainda sua ascendência étnica (Machado, 2008, p. 123). O termo pardo, portanto, recebeu conotação mais variante/ampla, poderia indicar tanto os recém-libertos filhos de africanos, libertos, filhos de crioulos e seus descendentes livres. Para Sheila Faria, pardo seria um termo para indicar a mestiçagem. Até meados do século XIX, a cor parda era triplamente qualificada: “pardo cativo”, pardo forro” e “pardo livre”. Quando forro, pardo adquiria o mesmo sentido que mulato; quando livre, seria então não-branco (Faria, 2004, p. 69; Mattos, 1998, p. 96). Isto é, a cor parda depois da segunda metade do século XIX tornou-se um critério de diferenciar o liberto do escravizado. Segundo Hebe Mattos, a cor era ainda um indicativo de lugar social, signo de cidadania no Império. Dessa forma, seria a cor parda, no final do século, também um indicativo de inserção no “mundo do branco”; era, pois, uma identidade de negociação no mundo escravocrata.

No dia 12 de fevereiro de 1873, ou seja, 12 dias do surgimento da carta anônima na mesa de Henrique Pereira de Lucena, foi também entregue ao referido Presidente um oficio do promotor público da comarca de Olinda, ministro Gaspar de Vasconcelos Mendes de Drummond, a resposta ao ofício datado de 17 de janeiro do mesmo ano, referindo-se à apuração do inquérito sobre o assassinato de Madame Luiza Boltine, tendo como principal suspeita do crime, Feliciana Maria Olímpia.[12] Pelo conteúdo da carta, a investigação sobre a morte de Madame Boltine estava sendo minuciosa, segundo palavras do próprio promotor Mendes de Drummond, que ainda não tinha chegado a conclusões mais precisas sobre se Feliciana era ou não a autora do crime. Desejando dar ao Presidente da Província resultado do que lhe foi pedido, iria usar o máximo de sua autoridade enquanto Promotor Público, investigando, indagando testemunhas envolvidas no processo, até extrajudicialmente. Ou seja, Mendes de Drummond, ao dizer que iria utilizar extrajudicialmente sua autoridade, provavelmente se valeria de ações no âmbito do privado para resolver uma questão de ordem jurídica – pública.

Investigando o cotidiano do bairro de São José, na época em que morou ali Feliciana, através dos registros policiais, observamos ainda que dez dias após as denúncias feitas anonimamente a ela, foi presa uma africana liberta de nome Josepha. O alferes do 9º Batalhão da Delegacia do 1º Distrito do Recife, delegacia que respondia pela localidade onde morava Feliciana, João Bernardo do Rego Barros – comandante da guarda na época – deixou de registrar os motivos que levaram à prisão de Josepha. Seria ela uma “transgressora da ordem e dos bons costumes”, assim como Feliciana? Teria sido presa por praticar algum furto, tirar feitiço, ferir, espancar ou assassinar alguém? Provavelmente foi Josepha presa apenas pelo fato de sua procedência étnica e condição social, visto que foi “reconhecida ao torreão desta casa [Detenção] em a noite de hontem”.[13] Historiadores da escravidão já se comprometeram com análises sobre as posturas municipais e leis provinciais que controlavam a movimentação de escravizados e libertos à noite nas ruas da cidade sem bilhetes que assegurassem sua condição jurídica, enfatizando que, para os africanos, uma linha muito tênue dividia a condição de escravização daquela de liberto, quando o assunto era vigilância e controle policiais (Maia, 2008; Reis, 2008).

Vale ressaltar que Feliciana, “a título de tirar feitiços, vai-se locupletando com o alheio dos incautos”.[14] Ou seja, as práticas de feitiçaria da parda moradora do Largo das Cinco Pontas, além de terem lhe rendido algum cabedal, por meio de uma clientela que a procurava sem cautelas ou medidas, enriqueceu. Provavelmente a clientela de Feliciana era considerável não só entre a polícia, visto que o local onde morava foi registrado nas delegacias da Cidade do Recife como violento e perigoso. Mas, sobretudo, estavam seus clientes, entre as altas cúpulas policial e jurídica, que provavelmente iam buscar os trabalhos de Feliciana ou de outras pessoas que oferecessem os mesmos serviços que a parda feiticeira no referido logradouro, área de furtos e roubos, malandragem, assassinatos, prostituição. Reduto de negros, como afirmamos no início da narrativa; espaço de exercício da negociação entre a vigilância e o controle policiais e as práticas de sobrevivência dos moradores da área. Desse modo, as relações estabelecidas entre a parda Feiticeira e seus “protetores” da polícia se constituíram em redes de poder, de (inter)dependência.[15] Ela se empoderava por meio de suas práticas de feitiçaria, curandeirismo ou até mesmo pelas redes sociais que articulava com policiais.

Por outro lado, mesmo não tendo tantos subsídios para uma análise da trajetória de Feliciana sobre a leitura de gênero – classe – etnicidade, arriscaremos fazer algumas considerações sobre o assunto em torno dos mecanismos utilizados pela sociedade patriarcal a partir do silenciamento de Feliciana na documentação. Por meio de sua trajetória, é possível ler estratégias sócio históricas de produção das desigualdades não só de gênero, como também de cor e classe. Sua experiência não é só de uma praticante de feitiçaria, mas de uma mulher dentro de uma sociedade de “voz e mando” masculinos, cujos estigmas negativos sobre sua condição social, econômica e cultural lhes eram atribuídos por homens e mulheres de sua época. A carta anônima traz a informação de que ela “se intitulava viúva, mas que sempre foi e é prostituta”. Aqui, talvez seja possível que não só classificaram Feliciana de algo que ela não era, como também negaram sua própria condição de existência. As origens do acúmulo de seu dinheiro, que a levou a ficar rica, foi uma das questões que mais incomodaram as pessoas de seu convívio cotidiano, motivo no meio de outros, que impulsionou a escrita da tal carta anônima. Para seus algozes, eram chocantes os meios pelos quais a fortuna de Feliciana, vinda da prática de feitiçarias e curandeirismo foi gerada. Talvez o(a) autor(a) da carta anônima também quisesse dizer que não só de feitiçaria mais também de prostituição a parda feiticeira afortunou-se. Por outro lado, ao estigmatizarem Feliciana de prostituta, feiticeira, sinalizavam condição de sua cor/etnia, ou seja, prostituição e prática de feitiçaria seriam sinônimos de representação de mulher negra. Classificações, designações, “estigmas” elaboradas ainda no século XIX para diferenciar, naturalizar, legitimar as desigualdades de gênero e etnia.

Feiticeira escravocrata

Até o momento, foram feitas algumas análises acerca de denúncias contra Feliciana, suas redes sociais, possíveis motivações de suas ações. Mas, quem foi o autor da carta anônima contra ela? Quem eram as pessoas de que esse seu algoz trata na carta que também queriam ver a Feiticeira ser punida pelas autoridades provinciais?

Pelo conteúdo da carta e da forma como vêm sendo descritas suas ações, provavelmente foi alguém próximo a ela, que também fez parte de suas redes de sociabilidade. Cliente para os trabalhos com feitiçarias e mandingas? Amigo, vizinho, ex-amante? Comerciante da redondeza do bairro de São José? Ou quem sabe se esse algoz era, na realidade, uma das consortes dos amigos íntimos de Feliciana? Difícil saber! O fato é que a pessoa que escreveu a carta sabia da trajetória de vida dela. Sabia possivelmente como ela conquistou sua riqueza, e até como a parda Feiticeira tratava sua escravaria, pelo visto deve até ter presenciado a morte de uma de suas cativas pois, segundo o autor, ou autora da carta anônima, foi Feliciana a assassina de uma de suas escravas. No entanto, o atestado médico dizia “ter morrido a negra de apoplexia”.[16] Isto é, no óbito da cativa de Feliciana, constou que a causa do falecimento foi um infarto fulminante, ou seja, o coração parou, levando à morte a desvalida. É plausível que a morte da cativa esteja até relacionada com a truculência que comumente Feliciana tratava sua escravaria. Uma de suas escravas foi vista, outro dia, fugindo em estado de quase nudez e ferida nas mediações do Campo das Princesas, no vizinho bairro de Santo Antônio.[17]

O algoz de Feliciana ainda cita vizinhos que estavam ansiosos por ver a feiticeira por traz das grades, como o português Antônio Maria Reis “e um indivíduo de nome Carvalho”, que também eram testemunhas do trato de Feliciana para com suas escravas. Carvalho e Reis também chegaram a presenciar os espancamentos noturnos que Feliciana costumava dar às suas cativas. Mas por que os referidos vizinhos estavam tão “preocupados” com o trato que uma senhora dava a sua escravaria, visto que se tornou prática corriqueira a correção – coerção pela violência – para assegurar a autoridade senhorial?

Decerto alguns desses vizinhos de Feliciana estivessem dando guarida ou apadrinhando as escravas fugidas da casa da feiticeira. Comumente, os escravizados buscavam auxílio, apadrinhando-se na vizinhança. A rede de apadrinhamento, segundo Paulo Moreira (2008), foi um traço cultural presente no escravismo brasileiro, cujo objetivo era atenuar, ou até mesmo, resolver os conflitos que poderiam ter desfechos violentos. Prática comum, entre os escravizados fugidos, apadrinharem-se com pessoas vizinhas aos seus senhores, negociando a volta para seu cativeiro de origem. Havia também casos em que os cativos revoltados pelos “castigos injustos” recebidos procuravam padrinhos que lhes dessem condições de trocar de senhor por meio da venda. A busca por apadrinhamento, em casos de fugas, adquiria maior sucesso quando os escravizados jogavam com as redes de poder de seus senhores. Não adiantava pedir proteção a qualquer padrinho, pois seus senhores só negociaram com pessoas de seus mesmos ou superiores valores sociais e/ou econômicos. Ressalta-se também que se corria riscos ao apadrinhar-se com inimigos políticos de seu senhor. Isto é, cabia ao escravizado realizar uma avaliação política antes desta empreitada, visto que tinha muito a perder (Moreira, 2008, p. 212).

Em meados do século XIX, dar guarida, acoitar cativos fugidos se tornou corriqueiro em Pernambuco. Mesmo sendo crime, referida ação na época era mais uma estratégia que os senhores utilizavam para assegurar a exploração da mão-de-obra que estava se tornando cada vez mais difícil com a Lei de 1831, colocando empecilhos na posse de cativos. Acreditamos que a Lei de 1871, esse problema teria aumentado, visto que a transação para o trabalho livre ainda estava sendo teorizada, sendo culturalmente muito mais desesperador para os senhores escravocratas perderem a “peça” da engrenagem de seu poder. Enfim, para o escravizado que encontrava na fuga que culminava em seu acoitamento na casa de um vizinho de seu senhor, era mais uma tentativa para melhorar sua condição, buscando por um senhor menos tirânico e/ou que viesse respeitar alguns direitos que pensava o escravizado ter conquistado ou adquirido.[18]

Suspeitamos ainda que os senhores Carvalho e Reis, vizinhos de Feliciana, estavam se beneficiando das cativas da feiticeira. Ou quem sabe se não eram simpatizantes da causa abolicionista que tomava maiores proporções entre a população na época? Vale ressaltar que os movimentos abolicionistas e a mentalidade da população em relação a escravidão estavam mudando entre as décadas de 1870 e 1880. Portanto, os vizinhos de Feliciana que estavam acompanhando, pormenorizadamente, o que acontecia com suas cativas, poderiam ser adeptos da causa abolicionista.

Nos relatos dos viajantes que estiveram no Brasil no século XIX, alguns como Maria Graham, mencionaram como a população negra – crioulos, mulatos, pardos – já era expressiva demograficamente desde o início do século. Graham deixou em seus relatos suas impressões sobre a esperteza e as habilidades de crioulos, mulatos e pardos. Quando libertos, muitos chegavam a acumular fortunas, montando comércio, ostentando sua riqueza através de joias, tecidos de seda, etc. (Graham, 1990, p. 157). Feliciana era uma parda que fez sua fortuna através de sua prática de feitiçaria, chegando também a investir na propriedade de escravos. Na sociedade escravocrata em que ela viveu, a escravidão era mais do que um sistema de sustentação econômica, tornou-se também uma instituição social – implicando práticas sociais correspondentes, ou seja, a posse de escravos representava simbolicamente poder, status social, riqueza, passaporte para a ascensão social. Até mesmo o próprio escravizado, na primeira oportunidade, virava um proprietário de cativos (Carvalho, 1998, p. 273).[19] Nossa feiticeira escravocrata era, nada mais nada menos, que sujeito social das relações produzidas na sociedade de sua época, suas cativas representavam seu capital simbólico de poder no âmbito no qual estava inserida.

Feiticeiros, bruxos, curandeiro, catimbozeiros e os espaços citadinos

“Os feiticeiros formigam no Rio, espalhados por toda a cidade, do cais à estrada de Santa Cruz” (Rio, 2008, p. 51). Assim, João do Rio mostrou a cartografia da cidade do Rio de Janeiro por meio das ações dos últimos africanos feiticeiros, com suas casas de candomblés que demarcavam ruas e bairros como espaço de seu poder. Na visão de João do Rio, a feitiçaria seria então as práticas religiosas de herança africana, isto é, por nós conhecidos como cultos afro-brasileiros.

Luís da Câmara Cascudo definiu em Meleagro, feitiçaria e bruxaria como sinônimos de catimbó, termo popular para designar as práticas de manipulação de ervas, defumações com cachimbos e charutos, orações e rezas invocativas para resolução de problemas ligados a dinheiro, casamento, trabalho. Seria então o feiticeiro ou catimbozeiro “quem mestra a ‘mesa’, usando a ‘marca’ fumegante ou isoladamente atendendo aos clientes, vendendo ‘orações fortes’, fazendo muambas na intenção do amor e morte” (Câmara Cascudo, 1978, p. 21-22). Assim, amalgamaram-se as orações poderosas e magias europeias à ciência das ervas indígenas, ficando o velho africano com maior prestígio enquanto místico/feiticeiro. Nessa narrativa sobre a parda Feliciana Maria Olímpia, a Iaiá de Ouro, sua condição social, ou melhor, sua cor de pele e sua área de moradia apresentavam-se como indícios para conjecturarmos seu perfil de feiticeira dentro das denominações de Câmara Cascudo e João do Rio.

Iaiá de Ouro viveu no espaço tempo da cidade do Recife nas décadas de 1870, momento de tensões políticas e sociais que concorreram para a fragmentação do patriarcalismo e dos movimentos para o fim do sistema escravagista, como já mencionamos em outros momentos. Nas acusações que sofreu, não havia nenhuma ligada à prática de feitiçaria, e sim por crimes de roubo, ferimentos, injúrias. Nos relatórios do Presidente da Província de 1873, ano das denúncias sobre a parda feiticeira Feliciana, foram listados os seguintes casos de crimes na província de Pernambuco: 16 furtos, 57 tentativas de furto, 19 roubos, 46 homicídios, 18 ferimentos e ofensas físicas leves e 66 ofensas à religião. Esse último tipo de crime perdeu apenas para 153 quebras fraudulentas, ou seja, eram as “querelas” ligadas à religião, uma preocupação considerável para a polícia e a justiça provinciais da época. Feliciana foi indiciada por vários desses crimes listados nos Relatórios do Presidente da Província, alguns até explicitados na carta anônima.[20]

Possivelmente por ter sido indiciada por vários desses crimes se tornou alvo do cólera de pessoas de todas as estratificações sociais, como Manoel Pinto Ribeiro da Silva que, embora não sabemos qual o grupo social o qual pertencia, conjecturamos que fazia parte de algum grupo privilegiado. Isto devido a defesa que o mesmo terá, como veremos adiante. Ele atentou contra a vida dela usando um clavinote e uma faca de ponta. Tendo esta última arma ferido Feliciana, no dia 18 de agosto de 1872 na casa que ela possuía em Porto da Madeira, Beberibe, enquanto ela “admoestava um caboclo”.[21] Ou seja, quando Feliciana exercia suas funções religiosas e/ou de feitiçaria. Embora Manoel Pinto tenha sido preso, recebeu um habeas corpus, o qual veio ela a contestar junto ao juiz de Direito da cidade de Olinda que estava à frente do caso naquela ocasião. Referido Juiz chegou a dar atenção a solicitação de Feliciana em relação ao habeas corpus de Manoel Pinto. Em carta de 14 de setembro de 1872, a feiticeira pedia ao juiz de Direito de Olinda que não atendesse ao pedido de relaxamento da prisão de Manoel Pinto, pois

A concessão de habeas-corpus animou o perverso, e assustou a suplicante sobre a maneira que desde logo se tem conservado trancada, vendo a cada instante repetir-se aquela scena (sic) de horror: porquanto o perverso passeia impune por toda parte dizendo que levará a efeito o que na outra vez não conseguiu.
Portanto, à vista do que fica podendo e consta das provas dos autos, espera a suplicante da indefectível justiça de Vossa Magnificência Ilustríssimo que tomando conhecimento do dito recurso reforme a sentença recorrida para efeito de ser capturado o dito perverso, como autor de tão qualificada e horrorosa tentativa de morte, que escapou ao demasiado escrúpulo daquele integro magistrado.[22]

Não sabemos quem foi atendido pelo Juiz de Olinda. Se Feliciana ou Manoel Pinto. O fato é que Feliciana apelou ao juiz de Direito de Olinda não só por temer por sua vida, mas também por ter alguma certeza de que seu pedido iria ser apreciado pelo Magnífico Juiz. Estrategicamente, ela se valeu da imprensa, a carta foi publicada no Jornal do Recife como uma forma senão de comover a sociedade, ao menos de deixar o Juiz em evidência e em situação delicada perante o caso. É possível também que alguma ascendência Feliciana tinha sobre essa autoridade, do contrário não utilizaria de tal audácia para atingir seu objetivo que era impedir o habeas corpus de seu verdugo.

O impacto de sua carta de apelação contra o habeas corpus de Manoel Pinto entre seus algozes foi tamanho, assim como sua atuação, enquanto feiticeira, o era na cidade. Três dias depois da publicação da carta de Feliciana, ou seja, no dia 17 de setembro de 1872, um Redator anônimo escreveu no Jornal do Recife, saindo em defesa de Manoel Pinto, afirmando que “o juiz de direito, não fez mais do que executar a lei, tornando-se garantidor da liberdade individual injustamente ameaçada.”[23] Ainda acusou Feliciana:

Maria Olympia invertendo a história do tiro que sofrera, santifica-se e mandou narrar, a bel prazer seu, o fato, para calar no espírito dos membros da Relação e na opinião pública, de que foi selváticamente agredida, sem ofender, pelo abaixo assinado. Entretanto, quem tem conhecimento de Yayá de Ouro, sabe quanto insólita e ousada é esta feiticeira, que não respeita a honra das senhoras casadas, das solteiras, dos homens, etc. etc.[24]

Este algoz da Iaiá de Ouro não só defende o seu agressor como a acusa de feiticeira ousada que não respeita a honra e a moral das famílias da cidade. Mas, o que torna esta acusação interessante é o fato do temor que Feliciana, a Iaiá de Ouro causava em um seguimento da “gente grã-fina” do Recife.

Desde a década de 1860, já estavam sendo registradas nas Delegacias de Polícia da Cidade do Recife pessoas praticantes de feitiçaria ou simplesmente por serem feiticeiros que roubaram, como Manoel Matheus dos Anjos Fernandes, conhecido como Manoel Feiticeiro, autor de um crime de roubo com agravante de incêndio no Forte do Mattos – bairro do Recife, zona portuária da Cidade.[25] Não temos muitas informações sobre Manoel Feiticeiro, salvo a ocorrência da Delegacia do bairro de São José, onde foi preso. Seria ele um orientador espiritual dos escravos, libertos e livres que labutavam no porto? O crime por ele cometido não seria parte das várias ações dentro do movimento abolicionista que cativos e libertos acionavam? Por outro lado, era também comum escravizados, tanto crioulos como africanos, serem acusados de praticar feitiçaria, quando o assunto era assassinato do senhor ou de seus empregados. Para Luiz Alberto Couceiro, ainda neste período, as acusações de feitiçaria só apareciam como crimes quando ligados à classe senhorial, vistos sob a ótica das autoridades imperiais como crimes de “sedução” (Couceiro, 2008).

A feitiçaria ou as práticas religiosas africanas não eram prescritas como crimes pelo Código Criminal de 1830, ao contrário do que veio a ocorrer posteriormente na República. Francelino Correia da Silva, conhecido como Pai Velho,[26] foi acusado por crime de homicídio em 1902. Encontramos, nas petições de presos da Detenção do Recife, uma apelação ao Supremo Tribunal de Justiça, na qual Pai Velho apelava para que sua prisão e sua condenação fossem revistas. Não sendo possível saber se realmente Pai Velho foi o autor do crime pelo qual estava sendo preso e julgado, permanece para nós a pergunta: será que a polícia e a justiça republicanas continuaram com as mesmas prerrogativas utilizadas no Império? Ou Pai Velho foi tido como principal suspeito de um crime por ser feiticeiro, catimbozeiro ou xangozeiro? – denominações utilizadas pela polícia nos primeiros anos da República, de forma pejorativa, para designar os praticantes das religiões afro-brasileiras.[27]

Portanto, a estatística de 66 crimes por ofensa à religião, apontada no Relatório do Presidente da Província de Pernambuco em 1873, pode ser o fio de Ariadne para nos conduzir no labirinto da documentação policial e judiciária, para chegarmos até os sujeitos sociais das práticas de feitiçaria e suas estratégias de apropriação dos espaços citadinos no Recife, como no caso de nossa Iaiá de Ouro. Teria ela seduzido o delegado Martins, que, ao indiciá-la, acabou se tornando seu amigo, assim como Eduardo de Barros, chefe de polícia, que passou a ser seu testamenteiro? Uma vez que ambos passaram a pertencer às redes sociais tecidas pela feiticeira o que seria na realidade um crime de “sedução” cometido por feiticeiros e/ou catimbozeiros no final do Império é o argumento central que conduziu o trabalho de Coceiro (2008).

Mas, não só foram o delegado Martins e o chefe de política Barros que passaram a fazer parte das redes políticas da Iaiá de Ouro. Além desses ela obteve também a proteção do Dr. Moscoso, Inspetor de Saúde Pública do Recife em 1874. No dia 11 de junho de 1874 foi publicado no Jornal do Recife, uma carta denúncia assinada por um tal Dr. Murilo contra o Inspetor de Saúde Pública da Província:

O que tem feito e Sr. Dr. Inspetor de Saúde Pública em relação a uma celebre feiticeira Yaya, que recebe doentes e dá consultas em sua casa no Largo das Cinco Pontas?
Nada absolutamente. Ou Sua Senhoria ignora a existência dessa feiticeira que especula com a boa fé e credulidade pública e outras, fazendo profissão de curar a loucura e outras moléstias com benzeduras, feitiços, etc. e nesse caso  Sua Senhoria não cumpre os seus deveres, por que não procura conhecer as infrações constantes e repetidas do regulamento, ou não tem se importado absolutamente com esse fato, como se ele não fosse gravemente criminoso, e nesse caso faz mais do que não cumprir os seus deveres, os ignora. É ainda verdadeira a nossa asserção:  O Sr. Dr. Inspetor de Saúde Pública não tem cumprido com o seu dever.
O Sr. Dr. Inspetor de Saúde Pública só se lembra infelizmente que é Inspetor de Saúde Pública, quando deseja dizer alguma couza em desabono de algum seu colega.[28]

O curandeirismo foi prática corrente no Brasil imperial, tendo nos africanos e seus descendentes os principais alvos da perseguição policial e médica. Por outro lado, constantemente procurados pela população escrava, livre e liberta. Segundo Maria da Vitória de Lima (2016), os curandeiros exerciam atuação mais direta no meio da população pelo fato de irem até o domicílio para atender aos que o procuravam, além do que, havia entre essa população e os curandeiros uma identidade de solidariedade que passavam por experiências comuns e pela condição social (Lima, 2016, p. 276).

Iaiá de Ouro estava sendo acusada de curar as moléstias de loucuras de seus consulentes, cuja medicina da época certamente não atendia. O saber médico se consolidava, em meados do século XIX, anulando o conhecimento popular, sobretudo de manipulação de ervas, plantas medicinais, benzeduras, as chamadas “mesinhas” que a população se valia para curar suas enfermidades. Lidos como charlatanismo, como nomeou o dr. Murilo ao acusar o dr. Moscoso de não exercer devidamente suas funções quanto a tal assunto que “alça o solo e a todos ameaça a dominar”.[29] Não obstante, foi a partir do conhecimento das plantas e ervas medicinais que a farmacologia e a medicina buscaram as bases para o saber científico. Todavia, o saber médico, a impressa, a igreja, a polícia e as elites articulavam discursos que deslegitimavam a atuação dos curandeiros em meio aos populares, em particular, aos escravizados, negros livres e libertos cuja medicina e a farmacologia não alcançavam.

Para o Dr. Moscoso a ilegalidade não estava na prática de curandeirismo de Iaiá, mas sim nos médicos, como o dr. Santos Mello que estava com seu registro irregular na Inspeção. Iaiá, dentro de seu saber, era bastante procurada pela população, assim como outros tantos curandeiros e curandeiras que existiam na Província. Alguns ficaram deveras afamados como o preto Manoel, escravo do engenho Guararapes, curandeiro que atuou em 1856 no combate à epidemia do cólera no Recife. Pai Manoel, como era popularmente conhecido, chegou a ter autorização para ter “mezinha” no Hospital de Marinha do Recife, onde atendia os achacados pelo cólera (Farias, 2012). Era bastante procurado pela população devido a sua fama de cura do cólera e de outros malefícios.

O sucesso de pessoas como Pai Manoel, Iaiá de Ouro, entre outros que se tornaram afamados nas práticas de cura não se deu apenas pela falta de médicos, cirurgiões ou porque a maioria da população não podia arcar com os custos de um serviço médico. A bem da verdade, os curandeiros e as curandeiras eram solicitados por serem mais eficientes para tratar tanto as moléstias leves quanto as mais sérias e também por estarem mais próximas as pessoas. Percebemos pela denúncia do dr. Murilo que Iaiá de Ouro tinha a confiabilidade não só da população consulente, mas também da própria autoridade de inspeção de saúde da província, dr. Moscoso, que não desabonava o exercício de seu curandeirismo. Por outro lado, Recife já era uma afamada capital, desde a década de 1850, de atuação de afamados curandeiros e curandeiras que exercitavam o curandeirismo concorrendo com a medicina alopática (Farias, 2012).

Breves considerações finais

Para finalizar, as ações dos egressos do cativeiro na garantia de seu espaço na cidade e as ações da parda feiticeira, curandeira Feliciana Maria Olímpia, a Iaiá de Ouro foram aqui pensadas em torno das teorias de resistência – concepções tão caras à historiografia da escravidão dos anos 1980, que trazem os escravizados e seus descendentes como sujeitos sociais de suas próprias histórias. Segundo Michael Brown, pensar nas ações de pessoas dentro da dicotomia subserviência-resistência estaria um tanto demasiada, perdendo-se de vista as dimensões antropológicas que privilegiam a existência em detrimento da resistência (Brown, 1990). Portanto, a trajetória dos atores sociais que acompanhamos, muitas vezes, são traduções de suas experiências de vida, de como o mundo é concebido em seu cotidiano. Isto é, as práticas de feitiçaria de Feliciana podem ser lidas como um mecanismo pelo qual ela conseguia não só se inserir em determinados espaços na cidade, todavia, sua própria maneira de conceber sua existência e traduzir a sociedade na qual vivia.

Assim, por meio das conjecturas sobre a parda feiticeira Feliciana e suas redes sociais tecidas no bairro de São José na Cidade do Recife, cotejar os mecanismos de garantia de sua sobrevivência na área urbana. Seguindo as hipóteses de Carlo Ginzburg sobre as ações dos praticantes da feitiçaria no século XVI como meios de combater a ordem vigente, ele pensou os sujeitos sociais praticantes de feitiçaria nos quinhentos como articuladores de armas de “defesa e ataque nas lutas sociais” (Ginzburg, 1989, p. 21). Ou melhor, seriam as movimentações dos feiticeiros estudados por ele, meios de inserção e garantia de espaços na cidade, formas de redesenhar as áreas citadinas sob o olhar das camadas subalternas. Iaiá de Ouro, mesmo não sendo do século XVI e também não estando mais inserida nas camadas desfavorecidas – por sua situação econômica, pode ser exemplo de uma subalterna buscando inserção nos espaços sociais do Recife no final do Império.


* Valéria Costa é autora de É do dendê! História e memórias da nação Xambá no Recife, 1950-1992 (2009); co-organizadora de Religiões negras no Brasil: da escravidão à pós-emancipação (2016); publicou o capítulo 7 (Mônica da Costa e Teresa de Jesus: africanas libertas, status e redes sociais no Recife oitocentista) em Mulheres negras do Brasil escravista e do pós-emancipação (2012) e o capitulo 10 (Os libertos no Recife: os mundos de João Joaquim José de Santa Anna) em História da escravidão em Pernambuco (2012). Doutora em História Social/UFBA e professora do IF Sertão PE/Campus Serra Talhada.

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Notas

[1] Parte das discussões aqui presentes foram previamente elencadas em um trabalho preliminar apresentado no IV Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional.

[2] Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano (doravante APEJE), Diversos Avulsos, vol. II, n. 28 (1872-1873), fl. 336.

[3] APEJE, Diversos Avulsos, vol. II, n. 28 (1872-1873), fl. 336.

[4] APEJE, Polícia Civil, 03 fev. 1873, fl. 40.

[5] Em Pernambuco, são chamados xangôs os cultos de orixás, tidos como formas mais africanizadas de religião. Enquanto as designações de catimbó e feitiçaria seriam para as formas mais hibridizadas de culto, amalgamando elementos da feitiçaria europeia e do catolicismo popular com a manipulação de ervas e defumações utilizadas pelos indígenas e os rituais africanos. João Reis, analisando a Revolta escrava de 1835 na Bahia – Levante dos Malês – trouxe para o debate a utilização de bolsas de mandingas (espécie de patuás contendo pedaços de orações do Alcorão) que os africanos carregavam consigo. Ficaram as bolsas de mandingas como marca do islamismo entre os africanos envolvidos na referida Revolta. Posteriormente, tornaram-se as bolsas de mandingas um objeto de identidade entre os praticantes das religiões africanas no Brasil.

[6] Utilizamos também os conceitos sobre práticas culturais de espaços de Michel de Certeau, nos quais concebe as ações de transeuntes, pessoas comuns, como formas de ressignificação de áreas citadinas, ou seja, criação de mecanismos para assegurar seu espaço na cidade (Certeau, 1991).

[7] Diário de Pernambuco (doravante DP) 16 out. 1871 – APEJE apud ARRAIS, 2004, p. 418.

[8] Relato 1: Fundo da Casa de Detenção do Recife – CDR (doravante FCDR), 24 mar. 1872, fl. 13. Relato 2: AEJE, Fundo Secretaria Segurança Pública (doravante FSSP), 5 jul. 1872, fl. 49 v.

[9] APEJE, Diversos Avulsos, vol. II, n. 28 (1872-1873), fl. 337.

[10] Sobre o conceito de meta-etnia ou meta-narrativa, isto é, das construções de identidades que são elaboradas no jogo entre os sinais diacríticos, preferenciais e interesses dos atores sociais e o olhar da alteridade foram discutidas por F. Barth, retomadas por Luís Nicolau Parés. Este utilizou o conceito de meta-etnia e/ou meta-narrativa, para considerar as configurações de identidades étnicas e de procedências que africanos e seus descendentes foram elaborando no período do tráfico e escravização, rememoradas nas religiões africanas da atualidade (Barth, 1997; Parés, 2006).

[11] Para uma leitura sobre teorias racializadoras que são embutidas no Brasil no final do século XIX, ver Schwarcz, 1993. Ver também Santos, Jocélio Telles dos. De pardos disfarçados a brancos pouco claros: classificações raciais no Brasil – XVIII-XIX, Revista Afro-Ásia, Salvador, n. 32, 2005, p. 115-137.

[12] APEJE, Diversas Autoridades, vol. 16, 12 fev. 1873, fl. 71.

[13] APEJE, FCDR, 7 fev. 1873, fl. 41.

[14] APEJE, Diversos Avulso, vol. II, fl. 336.

[15] Sobre relações de poder, ver Ginzburg (2002).

[16] APEJE, Diversos Avulsos, fl. 336v.

[17] O campo das princesas na atualidade é uma área que compreende do Palácio do Governo do Estado e a Praça da República.

[18] Sobre fugas e crimes de acoitamento em Pernambuco, ver Carvalho (1998, p. 276-283). Ver também Chalhoub (1990) e Lara (1988).

[19] Para o debate sobre escravidão na África e a atuação dos africanos nessa agência ver Thorton (2004).

[20] Falla com que o exm. sr. comendador Henrique Pereira de Lucena abrio a sessão da Assemblêa Provincial no 1º de março de 1873. Pernambuco, Typ. de M. Figueiroa de F. & Filhos, 1873, Relatórios do Presidente da Província, http://www.crl.edu/content/brazil/pern.htm.

[21] Fundação Joaquim Nabuco (doravante FUNDAJ), secção de microfilmes, Jornal do Recife, n. 213, 14 set. 1872.

[22] Idem.

[23] FUNDAJ, secção de microfilme, Jornal do Recife, n. 215, 17 set. 1872.

[24] Idem.

[25] APEJE, Fundo CDR – 24 mar. 1864, fl. 10.

[26] A liderança espiritual, ou seja, o sacerdote – cargo mais alto na hierarquia de uma casa de culto africano, popularmente denominado de “pai-de-santo”, é chamado pelos adeptos das religiões afro-brasileiras de tatá (língua bantu), baba (língua iorubá), palavras que significam “pai” (Castro, 2001; Slenes, 1991, p. 48-67).

[27] APEJE, Coleção Petições de Presos, FCDR, 8 ago. 1902, fl. 268.

[28] FUNDAJ, secção de microfilmes, Jornal do Recife, n. 131, 11 jun. 1874.

[29] Idem.

dossiê
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FAKE NEWS, FAKE HISTORY? A RACIST JUDGE TAKES ON ZUMBI

Resumo: Este ensaio considera o potencial de encontrar ideais e caminhos produtivos através de uma refutação de e engajamento com o comentário da desembargadora Marília de Castro Neves Vieira, quem ressaltou que Zumbi é “mito histórico”, inventado para “estimular racismo”. Se o fato de existência de Zumbi não precisa provas, a construção de mitos sobre ele é, de fato, assunto interessante, só não da maneira que Neves sugere. O artigo descreve e analisa quatro mitos construídos sobre Zumbi não com o objetivo de valorizar Neves, mas, ao contrário, para entender de onde vem sua declaração absurda e para ressaltar outras linhas de pensamento sobre a mitologia sobre Zumbi, Palmares e a resistência contra a escravidão em geral.

Palavras-chaves: Zumbi; Dandara; quilombos; escravidão; resistência.

Abstract: This essay explores the potential of finding productive ideas and routes through a refutation and engagement with the commentary made by Judge Marília de Castro Neves Vieira that Zumbi is a “historical myth,” invented to “stimulate racism.” If the fact of Zumbi’s existence does not need further substantiation, the construction of myths about him is, in fact, an interesting subject, just not in the way that Neves suggests. The article describes and analyzes four myths constructed about and around Zumbi. This is done not with the objective of valorizing Neves—just the opposite, the idea is to understand where her absurd declaration comes from and to emphasize other lines of thinking about the mythology surrounding Zumbi, Palmares, and resistance against slavery, in general.

Keywords: Zumbi; Dandara; quilombos; slavery, resistance.

As right-wing politicians continue to ascend globally, it is of little surprise that they display little if any command (or interest) in the histories of race and slavery, or the relationship between past and present. Not so long ago (though it feels like ages), George W. Bush visited Brazil and asked then president Fernando Henrique Cardoso “Do you have blacks, too?” Bush’s National Security Advisor Condoleeza Rice quickly jumped in. “Mr. President,” she said, “Brazil probably has more blacks than the USA.”[1] More recently, Donald Trump displayed a similar ignorance, calling Frederick Douglass “an example of somebody who’s done an amazing job and is getting recognized more and more, I notice,” as if Douglass, the famed slave-turned-abolitionist and brilliant orator and writer who died in 1895, was an up and coming entrepreneur or artist (Wootson, Jr.).

Enter Judge Marília de Castro Neves Vieira, she of countless venomous lies and slurs spewed at the likes of Marielle Franco and Jean Wyllys. Last March, Neves called Zumbi, the last leader of Palmares and namesake for the National Day of Black Conscience, an “invented myth.” Before digging more deeply into the surprisingly rich possibilities hidden in Neves’s patently false statement, a few points of fact are in order, inspired at least in part by Neves’s own Facebook page, which reveals her favorite quote to be, “Know the truth, and it will set you free.”[2]

Neves’s Facebook profile.
Neves’s Facebook profile. Available at:
https://brasil.elpais.com/brasil/2018/03/20/politica/1521561716_720743.html

First, though it seems like a painful waste of time and space to make this point, Zumbi was real. Brazilians have been writing about him for centuries, and in recent years Flávio Gomes and Silvia Lara (among others) have collected, transcribed, and brilliantly analyzed scores of documents about his life and death, and the larger history of Palmares (e.g., Gomes, 2010; Lara, 2008).[3] Second, Neves’ absurd statement and larger collection of caustic provocations are a mix of Trump and Bush, whose own ignorance and chauvinism are not to be dismissed, even now when they almost seem to pale in comparison to Trump’s. Bush had no qualms using “dog whistles,” a euphemism for racist statements presented in a way that might sound innocuous but whose real message is clear to a racist base of voters, eager to preserve white privilege. Bush’s father, George H.W., perfected the art of the whistle with his infamous 1988 “Willie Horton ad,” a television spot that played on white paranoia of black crime and helped Bush Sr. win the presidency. Trump, meanwhile, most often discards the whistle altogether and simply makes hideously racist statements. Indeed, his campaign and presidency are built on such statements.

Indirectly, at least, Neves is a Trump acolyte by way of Bolsonaro, all peers in the lowest sense of the word. In her attacks on Marielle and Wyllys, Neves has shown little use for hiding anything between the lines, determining that doing so is too much work and no longer necessary, anyway. To once again state an obvious but necessary point: casting the inspiration of Brazil’s Day of Black Conscience as an invented myth is to spit in the face of history and countless activists and citizens who every day bear the weight of racism in its many forms. And yet part of what makes her comments about Zumbi so potentially pernicious is that they link up with long-standing—and truly mythological—ideas about Brazilian “racial democracy,” a concept that has been used (though not always with that name) for many decades to suppress and silence black activists and other oppositional voices.

As with Trump, Bolsonaro, and other demagogues, Neves’s outlandish comments pose a number of dilemmas, including whether or not to even engage them in the first place. There is no perfect formula for when to let racism whither on the branch and when to denounce it publicly, but given the great deal of attention that the comment has already received there is a case to be made here for denunciation over silence. But what to say? A point of guidance comes from anthropologist-activist Yarimar Bonilla, who chose to respond when Trump tweeted utter falsehoods about Hurricane Maria, which devastated Puerto Rico in 2017. “His insistence,” she wrote, “on maligning Puerto Rico and its people might have an unintended positive outcome: to cast a spotlight on Puerto Rico’s long-standing problems” (Bonilla, 2018). Dwelling too deeply on Neves’s comments runs the risk of dignifying and giving them extra life. But there is perhaps a way to find unintended positive outcomes here, too. What if, for example, we take the idea of an “invented myth” at face value and then turn the assertion into a question: what myths have been created around Zumbi? As it happens, there are, in fact, a number of myths surrounding Zumbi, just not the one that Neves suggested. In fact, and somewhat ironically, much of the myth making around Zumbi leads down the very roads and lines of inquiry that Neves intended to close down. Four myths, among others to choose from, stand out.

Myth #1: Zumbi is Palmares

Though Neves hardly meant it in this way, it is in fact true both that there is mythology surrounding Zumbi and that that mythology has marginalized other people and other histories. In 1678, Gangazumba, then the leader of Palmares’ sprawling collection of mocambos, signed a peace accord with the Portuguese. During the late twentieth century, as Zumbi became a figure of national renown and as more research about Palmares came out, Gangazumba became, as Lara (2008, p. 10) puts it, “a counterpoint: a leader who had misjudged the forces at play, succumbed to the weight of defeat, and lost all standing among his followers”.[4] Gangazumba thus has been depicted as weak and traitorous, while Zumbi became the consummate hero.

If both Gangazumba and Zumbi are often cast in unrealistically dichotomous (romanticized or demonized) form, in other cases the enthroning of Zumbi as the representative of Palmares takes other forms. While Neves complains about Palmares and the larger history of mocambos and quilombos being spoken of at all, others might reasonably object to the way that Palmares often stands in for all runaway or fugitive slave experiences. Flávio Gomes and others have shown the nature, expanse, and geography of mocambos and quilombos to have been almost unimaginably vast and complex (e.g., Gomes, 2005; Reis and Gomes, 1996). As these authors suggest, Zumbi may carry crucial symbolic weight, but history is also full of nameless other men and women, the vast majority of them marginalized not only by reactionaries like Neves but also less intentionally by earnest and well-meaning scholars and activists. As the Zumbi-Gangazumba dyad suggests, the historiography of Palmares—and mocambos and quilombos, in general—is dominated by male figures. Perhaps the most famous female quilombola is one whose very existence we know next to nothing about. Dandara, who one writer calls “the feminine face of Palmares,” has generated powerful meaning and symbolism, but precious little is known about her (Dandara). In fact, it is not certain whether she was a single person, a conglomeration of different individuals, or a creation passed down over time as a shield against unending waves of erasure and repression. Whatever Dandara’s origins, she is hardly responsible for division, as Neves would have it, and has instead become a remarkable means for claiming and accessing histories that have otherwise been obliterated.

Myth #2: Zumbi killed himself (and so Brazil is not racist)

To Neves, Zumbi was invented “in order to stimulate a racism that Brazil previously did not know” (“5 Momentos”).[5] There is no point rehashing the countless refutations of the notion that Brazil is or ever was free of racism. Other issues bear further scrutiny and discussion.  For example, the notion that the black activists—those who helped turn the anniversary of Zumbi’s death into the Day of National Conscience and those who continue to observe it—somehow “stimulated” or “invented” racism parrots one of the main lines of argumentation used to oppose Brazil’s landmark affirmative action legislation. By advocating for more equitable representation in higher education and beyond, critics insist, proponents of affirmative action and quotas create “dangerous divisions” that were previously unknown or minimal in Brazil (Fry et al, 2007.).

The argument that afrodescendentes or anyone else struggling against racist structures of exclusion, marginalization, and violence may themselves be guilty of sowing divide by calling attention to inequality has been used for ages in Brazil and the US. In the US, the myth has been debunked by, among others, North American political scientist Ira Katznelson, who shows how generations of structural, institutional, and casual racism in effect equaled a powerful and pervasive “affirmative action for whites” (Katznelson). Though this was enforced and enacted via different mechanisms than in the US, Brazil has its own history of “affirmative action for whites,” who historically gained much greater access to education, infrastructure, privilege, and opportunity than blacks.

Papering over and denying racial inequality is a central strategy for political figures like Neves and the opponents of legislation to guarantee spaces at universities and in other venues for underrepresented minorities and ensure the inclusion of African and minority history in school curriculum. Discourses about Brazil’s putative “racial democracy,” which by definition would not need affirmative action or quotas, has relied on countless smaller stories and myths, including a number about Zumbi. One is the centuries-old story that he died by his own hand, throwing himself off a cliff to avoid capture and a certain return to slavery. In fact, colonial documents make clear, Zumbi was captured and killed, his body then mutilated, and his head posted on a stake as a warning again other would-be runaways and rebels. The suicide myth appeared in the earliest writings about Zumbi and persisted for centuries, often as part of a romantically constructed history of slavery. As a self-sacrificing martyr, Zumbi’s suicide became a symbol of a closed chapter of Brazilian history and a way to lighten the burden of, and ultimately erase, white violence. By contrast, the actual death and decapitation represent a brutal recounting of the racial terror that white colonizers and their descendants wrought. The suicide story therefore helped keep the blood off of white hands and neatly sealed Zumbi, Palmares, and slavery into a closed compartment to be accessed selectively in the service of fanciful histories of racial inclusion. Neves is actually right that myths about Zumbi have been constructed, though she is dead wrong in suggesting that they somehow helped exacerbate racial divisions. Just the opposite, the suicide myth and others have been used for centuries to deny very real divisions and larger histories of racism.

Myth #3: “Zumbi owned slaves” (and was like Hitler)

Desembargadora Neves’s “invented myth” post gains legs in part because there are already well developed, though misleading and often just plain false, critiques circulating in Brazil. One of the most popular revolves around the supposition that Zumbi owned slaves. In his popular Guia politicamente incorreto da história do Brasil (Politically Incorrect Guide to the History of Brazil), Leandro Narloch cherry picks bits of evidence from scholarly references to cobble together an ostensibly irreverent and frank version of history that, in fact, simply reproduces old talking points, the great majority of which line up neatly with anti-black and anti-leftist lines of argumentation. One of the things that makes Narloch’s work so potent is that it engages, even if selectively, with serious scholarship and in some cases even makes important points. For example, he points out the forgotten importance of Gangazumba, though does so in a way that is both contradictory and indicative of his goals. On the one hand, he demonizes Zumbi for rejecting the peace accord, and on the other hand suggests that Gangazumba descended from a savage lineage, thus casting him alternately as a symbol of peace and a war-prone brute (Narloch, 2012, p. 75, 78).

Narloch frames his discussion of Palmares with a section heading that doubles as a sensationalist headline: “Zumbi owned slaves” (Narloch, 2012, p. 73).[6]  This point, he claims (without any specific references) “appears to offend some people today, to the point that they prefer to omit or censure it” (Narloch, 2012, p. 73).[7] In fact, the complex issue of slaves and former slaves who owned slaves is treated with great depth and subtlety by some of the very same scholars whose work Narloch selectively cites. But in Narloch’s hands, multifaceted histories are reduced to what amounts to a campaign or advertising slogan — Zumbi owned slaves! — that also functions as a vehicle by which to sneak in other disproven myths. To “prove” his point, Narloch reprises an old saw about the notions of liberty and freedom emanating from Europe. He writes,

The slave system only began to collapse when the Enlightenment gained strength in Europe and the United States… Abolitionists appeared a century after Zumbi and seven thousand kilometers from the region where the Quilombo of Palmares was constructed. It is difficult to believe, in the middle of the jungles of Alagoas, Zumbi had anticipated the European humanist spirit or foresaw the ideals of liberty, equality, and fraternity of the French Revolution (Narloch, 2012, p. 74).[8]

In one fell swoop, the author revives a veritable pantheon of hoary, long-disproven ideas—that history and progress began in Europe and the U.S., eventually moving south and west; that everyone back then owned slaves so what’s the big deal, anyway?; that history may be understood through the western, liberal categories codified by the French Revolution; that Zumbi and other blacks were too backwards or pre-modern to understand or even desire freedom.

It is difficult to know where to even begin to address the misconceptions and falsehoods repeated here. Suffice to say that each and every one has been thoroughly disproven by historians not just in Brazil but also throughout the Americas and beyond. Before concluding the section on Zumbi, The Politically Incorrect Guide also takes a swipe at João Goulart and Leonel Brizola, placing blame for the apparently “politically correct” histories of Zumbi on Marxists and the left, writ large (Narloch, 2012, p. 77). This is also indicative of Narloch’s political vision, and of the way that historical falsehoods feed political agendas—fake history begets fake news. In this case, faulty historical relativism (everyone back then was bad, and slavery was just the way things worked, even for Zumbi) is employed to undo the work of black activists and to remove Zumbi as the figurehead of freedom and even black conscience, to reestablish instead the primacy of Princesa Isabel, Rio Branco and other white patrons, and to generally absorb the fall of slavery into a heroic, romantic arc of history that eventually produced Brazil’s putative racial paradise.

The myths stemming from the notion that Zumbi owned slaves links up in a somewhat stunning way with the “dangerous divisions” line of argument through the remarkable rhetoric of the hardline Movimento Brasil Livre (MBL, Free Brazil Movement) and one of its figureheads, Fernando Silva, better known as Fernando Holiday. Holiday, a young man who describes himself as “black, poor and honest,” likens the Day of Black Conscience to “a day of white conscience honoring Hitler.” Not only did Zumbi have slaves, Holiday maintains, but tortured them (Alessi). Zumbi, Holiday and the MBL suggest, was not only evil on a level comparable to Hitler, but also now the root of new divisions that threatened to destroy what was once a country free of racial strife.

Myth #4: Zumbi was the “Leader of All Races”

The idea that Zumbi and the Day of Black Conscience create rather than critique societal division evolved especially over the last five decades, in response to the consolidation of the 20th of November as a symbol of black resistance and unity. A much older myth, which casts Zumbi as neither divisive nor even necessarily symbolic of blackness, is expressed on the plaque of a monument dedicated to him in Brasília, which describes the former quilombola as “the leader of all races.” If Zumbi, then, is on the one hand demonized as a “black Hitler,” on the other hand he has also been improbably transformed into a benevolent leader of all Brazilians.

This particular myth has several smaller, seemingly opposing legends wrapped into it. Scholars have shown fugitive slave communities to have been home to diverse groups, in addition to people of African descent, also indigenous and white people. In one sense, then, Zumbi could be accurately described at least as a leader of a racially diverse group of people. But the monument in Brasília suggests something larger and more tightly aligned with the myth of racial democracy. However diverse Palmares and other mocambos and quilombos were, to hold them as representative symbols of a multi-racial colonial order would be absurd. It would be similarly incorrect to portray quilombos as simply oppositional to colonial society—in many cases, fugitive settlements traded and interacted regularly with nearby towns and farms. But that subtlety in no way suggests that Palmares or Zumbi may be understood as some kind of gel that bonded society happily together. Thanks in part to the suicide myth, over time some writers (on both the left and the right) helped create the most improbable of legends—the runaway slave, who rejected a peace alliance, was known for his fierceness, and who died a bloody death as a symbol of peaceful and democratic interracial harmony.

Any doubt about the veracity of the “leader of all races” label and companion myth of racial democracy was viscerally dismissed in 2018, when vandals effaced the Brasília Zumbi monument with red paint evoking a gunshot wound.

Monument to Zumbi in Brasília, extolling him as the “Black Leader of All Races”.
Monument to Zumbi in Brasília, extolling him
as the “Black Leader of All Races”. Available at: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Zumbidospalmares.jpg

 

The monument vandalized in 2018.
The monument vandalized in 2018
Available at:
http://www.palmares.gov.br/?p=50538

A lesson, a tragedy

While history and historians provide plenty of material with which to bury Neves’ assault, the judge herself might benefit from some of the messages and displays from Carnival this year. Mangueira’s much talked about winning samba enredo (Carnival theme song), “História pra ninar gente grande” (Lullaby History for Grownups) is a case in point. In delivering “the history that history doesn’t tell” and stories “that the book erased,” Mangueira took an almost direct stab at Neves, or at least what she represents.[9] The famous samba school exhorted revelers to hear the voices of, among others, countless “Marielles,” an explicit reference to the slain leader who Neves slandered.

Mangueira also harkened the age of Palmares, though—importantly—not via Zumbi. “Brazil,” Mangueira sang, “your name is Dandara.”[10] The choice is instructive, not only for centering a black female figure at the center of history and the nation but also for its meaning about the power of myth and legend. While Neves slings “myth” as an insult, the truth is that history does not exist without it. Sometimes this results in fake history precisely along the lines of what Neves and her kin constantly try to prop up as unassailable truth. Other times it is the primary or only means by which the histories that history doesn’t tell survive. It is possible that a palmarina named Dandara existed and also possible that she was assembled from the detritus of very real stories of black women cast aside by colonial violence and “official” history. In other words, and in this case, legend and myth play an undeniably important and meaningful role in making history more representative and more accurate.

In 2014, the journalist Dandara Tinoco wrote a moving column in O Globo about her namesake (Tinoco). The piece reflected on the seeming countless “uncertainties” surrounding Dandara’s life and also on the immense power that her figure could nonetheless inspire. Three years later, Brazil and the international community viewed shocking video of the brutal killing of a transgender woman named Dandara dos Santos (Phillips). Together, the two Dandaras suggest the value and indeed necessity of understanding and honoring the importance of historical myth-making. Dandara Tinoco and Dandara dos Santos remind us that, in spite of the rhetoric coming from Neves and other likeminded pundits, slavery continues to swing a long tail, capable of inspiring memories and narratives about resistance, suffering and other dynamic aspects of humanity, and at the same time equally adept at unleashing brutal violence against those memories and against individuals who have dared to create and keep them alive.


* Marc A. Hertzman is Associate Professor of History at the University of Illinois, Urbana-Champaign. He is the author of Making Samba: A New History of Race and Music in Brazil, which will be translated into Portuguese by Editora 7Letras this year.  He is writing a history about the memory of Zumbi’s death from 1695 to the present.

References

“5 Momentos em Que a Desembargadora Marília Castro Neves Criou Polêmica”. Bol Notícias. 20 March 2018. https://noticias.bol.uol.com.br/ultimas-noticias/entretenimento/2018/03/20/5-momentos-em-que-a-desembargadora-marilia-neves-poderia-ter-ficado-quieta.htm. Accessed: 22 March 2019.

ALESSI, Gil. “Líder do Movimento Brasil Livre compara Zumbi a Hitler ‘para chocar.’” EL PAÍS, 7 Apr. 2015, https://brasil.elpais.com/brasil/2015/04/07/politica/1428432891_689300.html. Accessed 22 March 2019.

BONILLA, Yarimar. “Trump’s False Claims about Puerto Rico Are Insulting. But They Reveal a Deeper Truth.” Washington Post, 14 September 2018. https://www.washingtonpost.com/outlook/2018/09/14/trumps-false-claims-about-puerto-rico-are-insulting-they-reveal-deeper-truth/?utm_term=.3eb103696617. Accessed 19 March 2019.

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“Dandara: a face feminina de Palmares.” Geledés, 20 Oct. 2011, https://www.geledes.org.br/dandara-a-face-feminina-de-palmares/. Accessed 22 March 2019.

ENNES, Ernesto. As guerras nos Palmares (subsídios para a sua história). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938.

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GOMES, Flávio dos Santos (ed.). Mocambos de Palmares: histórias e fontes (séculos XVI-XIX). Rio de Janeiro: 7Letras, 2010.

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LARA, Silvia Hunold. Palmares & Cucaú: o aprendizado da dominação. 2008. Tese (apresentada para o concurso de Professor Titular). Campinas, UNICAMP.

NARLOCH, Leandro. Guia politicamente incorreto da história do Brasil. Rio de Janeiro: Leya, 2012.

PHILLIPS, Dom. “Torture and Killing of Transgender Woman Stun Brazil.” The New York Times, 8 Mar. 2017. NYTimes.com, https://www.nytimes.com/2017/03/08/world/americas/brazil-transgender-killing-video.html. Accessed 30 December 2017.

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TINOCO, Dandara. “Descrita como heroína, Dandara, mulher de Zumbi, tem biografia cercada de incertezas.” O Globo, 15 November 2014, https://oglobo.globo.com/sociedade/historia/descrita-como-heroina-dandara-mulher-de-zumbi-tem-biografia-cercada-de-incertezas-14567996. Accessed 30 December 2017.

WOOTSON JR. Cleve R. “Trump implied Frederick Douglass was alive. The abolitionist’s family offered a ‘history lesson.'” The Washington Post, 2 February 2017. https://www.washingtonpost.com/news/post-nation/wp/2017/02/02/trump-implied-frederick-douglass-was-alive-the-abolitionists-family-offered-a-history-lesson/?utm_term=.2a214a5230b1. Accessed 1 April 2019.

Notas

[1] https://www.snopes.com/fact-check/black-tuesday/ Accessed 18 March 2019.

[2] https://www.facebook.com/Euzinha.Marilinha. Accessed 6 February 2019. Conhece a verdade e ela te libertará.

[3] Both build on earlier waves, spearheaded by Ernesto Ennes, Edison Carneiro, and Décio Freitas (Carneiro, Ennes, Freitas).

[4] tornou-se um contraponto, um líder que havia avaliado mal o jogo de forças, sucumbira ao peso da derrota e perdera prestígio entre os seus

[5] inventar mitos históricos como Zumbi para estimular um racismo que o Brasil até então não conhecia.

[6] Zumbi tinha escravos.

[7] Essa informação parece ofender algumas pessoas hoje em dia, a ponto de preferirem omiti-la o censurá-la.

[8] O sistema escravocrata só começou a ruir quando o Iluminismo ganhou força na Europa e nos Estados Unidos… Os abolicionistas apareceram um século depois de Zumbi e a 7 mil quilômetros da região onde o Quilombo dos Palmares foi construído. É difícil acreditar que, no meio das matas de Alagoas, Zumbi tenha se adiantado ao espírito humanista europeu ou previsto os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade da Revolução Francesa.

[9] https://www.letras.mus.br/sambas/mangueira-2019/ (A história que a história não conta) + (versos que o livro apagou).

[10] Brasil, o teu nome é Dandara.

dossiê
Tempo de leitura estimado: 41 minutos

A CASA DA ÁGUA: DIÁSPORA, MITO E MATRIARCADO EM ANTÔNIO OLINTO

Resumo: Este trabalho analisa a influência mítica na narrativa de Antônio Olinto e a maneira como a mítica orixaísta influencia sua prosa, buscando comprovar que o romance A Casa da Água (2007), primeiro tomo da trilogia Alma da África, lançado originalmente em 1967, problematiza a reterritorialização de uma família que tenta se estabelecer em solo africano após a abolição da escravatura no Brasil. A representação da reterritorialização presente no romance será analisada à luz de autores como Regina Zilberman (1977), Wayne C. Booth (1980), Edward Said (1996) e, finalmente, Lukács (1978), dentre outros. A partir desta análise, buscar-se-á uma melhor compreensão do empoderamento feminino feito a partir do resgate dos valores presentes em um matriarcado tribal fundamental para o processo de descolonização do território africano.

Palavras-chave: A Casa da Água; Antônio Olinto; diáspora; mito; matriarcado.

Abstract: This work analyzes the mythical influence on Antônio Olinto’s narrative and how this orixaist myth influences his prose. We will seek to prove that the novel A Casa da Água (2007), first volume of the trilogy Alma da África, originally published in 1967, problematizes the reterritorialization of a family trying to settle on African soil after the abolition of slavery in Brazil. This representation of the reterritorialization present in the novel will be analyzed according by authors as Regina Zilberman (1977), Wayne C. Booth (1980), Edward Said (1996) and, finally, Lukács (1978), among others. From this analysis, we will to demonstrate the proccess of the feminine empowerment made from the recovery of the values ​​presents in a tribal matriarchy comes up as fundamental to the process of decolonization of the African territory.

Keywords: A Casa da Água; Antônio Olinto; diaspora; myth; matriarchy.

Olinto representa, em sua trilogia Alma da África – A Casa da Água (2007), O rei de Keto (2007) e Trono de vidro (2007) – famílias que se desenvolveram ainda dentro das paredes da senzala e que foram, a partir de sua organização e dos laços estabelecidos entre elas e, não raro, com seus senhores, fundamentais para a sobrevivência após a abolição dos sujeitos da diáspora. A história de A Casa da Água (2007) em terras brasileiras, em um período preponderante para a história do Brasil, mostra os primeiros momentos após a abolição da escravatura. A narrativa inicia com a saída da família de Catarina (Ainá) da cidade do Piau, Zona da Mata de Minas Gerais, no ano de 1898, dez anos após a abolição. A escravidão no Brasil, em seus momentos finais, atingia contornos complexos. Em 1822, com a Independência do Brasil, o país necessitava de reconhecimento por parte das outras nações. A Inglaterra, mantendo uma forte pressão, que já realizava em prol da extinção do tráfico de escravos, posicionou-se condicionando o reconhecimento do Brasil enquanto nação independente à abolição. Dois grandes obstáculos se interpunham ao fim da escravidão no Brasil. Por um lado, o grande número de escravizados poderia ocupar lugares na sociedade, adquirindo o status de cidadãos. Por outro, a independência recente fora impulsionada, em grande parte, por recursos oriundos de agricultores escravocratas. Com o fim da escravidão e a entrada de imigrantes europeus como mão de obra, o movimento de retorno de escravizados para o solo africano se intensificou. Esses homens e mulheres valeram-se do dinheiro auferido com seu trabalho, do auxílio de amigos e, não raro, do apoio de ex-proprietários de escravos, como é descrito n’A Casa da Água (2007).

O romance se subdivide em quatro partes, a partir das quais se desenvolve a trajetória da protagonista Mariana e de sua família. Assim, em “A viagem” o foco da narrativa se estabelece em torno das dificuldades a que a família de Mariana será submetida, desde a saída da pequena cidade de Piau, em Minhas Gerais, até sua chegada ao solo africano. A segunda parte, “O marido”, mostrará a chegada de Mariana à fase adulta e sua adaptação a essa outra sociedade culturalmente distinta, dentre os agudá, descendentes de escravos brasileiros retornados à África. Os laços da protagonista são definidos a partir da composição das bases da família Silva, com o casamento de Mariana e o nascimento de seus três filhos, Joseph, Ainá e Sebastian[1]. O terceiro e principal capítulo do romance, “A Casa da Água”, narra o estabelecimento de Mariana enquanto empresária de sucesso em três países africanos: Nigéria, Daomé (atual Benin) e, finalmente, o fictício país de Zorei (ver mapas abaixo). O quarto capítulo, “O chefe”, faz referência a Sebastian Silva (o filho), que protagonizará, a exemplo do pai, poucas cenas antes de sua morte – novamente um assassinato. Sebastian (o filho) é mostrado, preponderantemente, de maneira indireta, a partir de sua ausência, pelo olhar estabelecido por Mariana e outros personagens[2].

Atual mapa da África
Atual mapa da África
Fonte: ANGOP/Agência Angola Press

 

Com base nos fatos da narrativa, ilustramos o que seria a fictícia nação de Zorei, separada do Togo pelo rio Momo e cuja capital, Aduni, fica próxima ao Golfo do Guiné
Com base nos fatos da narrativa, ilustramos o que seria a fictícia nação de Zorei, separada do Togo pelo rio Momo e cuja capital, Aduni, fica próxima ao Golfo do Guiné
Fonte: do autor

O romance se desenvolve a partir de um ponto de vista raramente traçado por uma narrativa literária, o das mulheres (afro-brasileiras ou africanas) que, após a diáspora, reconstroem a si mesmas, na medida em que participam da transformação da sociedade pós-colonial. Essas protagonistas agem sobre as três conjunturas elencadas por Paul Ricoeur (1994) – econômica, físico-política e civilizatória, porém, a partir de valores bem diversos dos que mobilizaram o colonizador.

A prosa é permeada pelo conceito iorubá de owó (do iorubá, valor), pelo qual se percebe a organização do romance de Olinto, cujo eixo semiológico se estabelece a partir de noções de tribalidade-subjetividade-ancestralidade, na contramão da visão marxista[3] monetária de capital, que se desenvolve a partir do eixo semiológico sociabilidade-objetividade-capitalismo. Dessa forma, é a partir do owó e do axé (energia telúrica circulante) que ocorre o empoderamento do matriarcado.

O narrador funciona, em Olinto, como a primeira personagem da qual faz uso o autor para comunicar ao leitor sua ideologia, buscando-lhe a adesão necessária ao encantamento que faz da proposta mimética uma efetiva experiência estética. Ainda que, ocasionalmente, não comungue dos pontos de vista do autor, faz-se necessário que o leitor lhe dê crédito, cumprindo a tarefa de se movimentar dentre as páginas do romance. Wayne C. Booth (1980) fala das implicações retóricas na ficção, salientando o viés retórico no texto literário, afetando a percepção do leitor e as produções de sentido a partir de suas estratégias narrativas. O narrador de A Casa da Água (2007) é onipresente e onisciente, acessando as memórias que utiliza para compor sua tentativa de convencimento a partir de possíveis diálogos com a protagonista, valendo-se de sua própria imaginação para preencher lacunas necessárias à sua compreensão dos fatos: “[…] é assim que vejo Mariana começando sua aventura, carregada por alguém” (Olinto, 2007a, p. 11). Nota-se, na construção do narrador de A Casa da Água (2007), ao estabelecer Mariana como o fiel da memória do romance, a tentativa de localizá-la em um ponto cronológico muito distante no futuro, como se tivesse acesso às memórias de uma anciã, fugidias e cambiantes, através do véu do esquecimento erigido pelo tempo. Este narrador recupera, em diversos trechos do romance, seu diálogo com o leitor, na medida em que descreve a protagonista como se a estivesse observando através da narrativa, como se de fato a encontrasse e reencontrasse, constantemente, enquanto conta sua história.

Não sei como surpreendê-la no começo de minha história – de sua história –, mas vejo-a, naquela manhã de enchente, sendo arrancada da cama e do sono, ouvindo palavras de cujo sentido completo nem se dava conta, sabendo que havia perigo e que desejavam protegê-la – é assim que imagino Mariana começando sua aventura, carregada por alguém, a luz ainda não viera de todo, um pouco de noite se prendia como água nas coisas, e só a ideia de que o rio transbordara lhe dava medo […] (Olinto, 2007a, p. 16, grifo meu).

O trecho acima reproduz as primeiras palavras do romance. Dessa forma, Olinto principia sua história posicionando o narrador enquanto um observador onisciente que se propõe a contar a história da protagonista a partir de suas reminiscências, enquanto testemunha ocular da trajetória de Mariana ou ainda seu confidente. Booth define, ao analisar os caminhos retóricos para o texto da ficção, a possiblidade do narrador transmitir suas histórias enquanto cenas – de forma primária; enquanto sumário ou quadro ou, o que afirma ser mais frequente, em uma combinação das duas estratégias figurativas (Booth, 1980, p. 170). Esse narrador permanecerá consciente de si próprio e da natureza literária de seu intento e definitivamente não é envolvido nas ações que irá descortinar ao leitor.

O narrador de Antônio Olinto aponta, frequentemente, para o fato de que versará sobre as recordações de Mariana, seus pensamentos e sua experiência de vida, alternando, sem qualquer sinal maior desta modificação de curso, a descrição de memórias, pensamentos e fatos. No momento em que utiliza o verbo “imaginar”, Olinto localiza a obra enquanto indústria da imaginação, ou ainda, abre espaço para um questionamento sobre o acesso deste narrador sobre os fatos que descreve, uma dubiedade constantemente reiterada – ora posiciona o narrador enquanto observador da vida da protagonista e seu cúmplice, ora adventa com sutileza a possibilidade de ficção – em uma retórica ficcional que perpassa Alma da África (2007). Divisa-se, porém, de maneira definitiva, o projeto de Olinto de desenhar o desenvolvimento e o processo de consolidação da protagonista enquanto indivíduo. A partir do momento em que elege a trajetória de Mariana enquanto objeto de sua história, descreve a consolidação de sua personalidade com riqueza mimética. Dessa forma, este narrador se localiza enquanto sujeito maduro e partícipe dos valores morais e espirituais de sua protagonista, enquanto vai reduzindo sua distância intelectual da mesma, descrevendo o amadurecimento de sua psicologia.

Mariana aparece nas primeiras páginas na vacilante fragilidade e incerteza tipicamente pueris e chega às páginas finais no auge de sua maturidade – momento em que se desenha o ápice do que Carl Gustave Jung (2014) define enquanto individuação (processo de vir a ser do sujeito em indivíduo pleno em sua percepção de mundo). O apogeu de Mariana enquanto sujeito aparece, no encerramento do primeiro romance, na repetição do desfecho trágico e no epicédio[4] da protagonista frente à perda do filho em condições similares à do marido.

A cosmovisão africana se assenta em três pontos, a partir dos quais um sujeito é bem sucedido em sua vida: a prole – que deve ser numerosa; a fartura – que difere da ideia de mera acumulação de bens e relaciona-se com uma ideia de pleno gozo dos recursos naturais no decorrer da vida e de movimentação das riquezas dentre os membros da tribo (é interessante como o conceito de riqueza relaciona-se diretamente com o de movimento no pensamento iorubá e não com o de acúmulo, tal como ocorre na perspectiva eurocêntrica); e, finalmente, o conceito de longevidade – um sujeito, para concretizar sua existência em plenitude, deve atingir grande prole, a partir da qual imortalizará seu nome e transmitirá os valores de sua tribo para as futuras gerações. Mariana, enquanto personagem central do primeiro romance da trilogia e matriarca da família sobre a qual se desenvolve a épica de Olinto, é uma mulher plenamente sucedida nos três aspectos que norteiam o sujeito no mundo orixaísta.

Para um iorubá, três são os objetivos maiores da existência: a abundância, que difere da ideia de riqueza ocidental, aproximando-se da natureza e da sustentabilidade e razoabilidade do uso de recursos, devendo ser comungada pela comunidade; a longevidade, celebrada na velhice, muito distante da visão narcisista da eterna juventude; e a fertilidade, fundamental para a transmissão dos valores civilizatórios, calcada na tradição e na oralidade. A personagem que representará, acima de todos os outros, o êxito destes valores da civilização orixaísta é Mariana, cujo percurso de vida fundamenta-se no primeiro romance da trama, mas se desenvolve, como coadjuvante, nos demais tomos de Alma da África.

Michel Pêcheux (2010, p. 50) afirma que a memória é formada por diversos matizes que se entrecruzam. Assim, mais que um produto da mera memória individual, a memória mítica, inscrita no inconsciente coletivo descrito por Jung (2014); a memória social, inscrita em práticas do grupo e a memória histórica, construída pelo historiador e inscrita na cultura e na ciência, se misturam na composição de uma narrativa. Olinto propõe, no primeiro romance da trilogia Alma da África, um narrador que parte do processo de evocação dos fatos depositados na mente de Mariana, na medida em que necessita definir um marco zero, um primeiro sujeito em sua proposta literária:

Ponho esse despertar com enchente como início das lembranças de Mariana, e pensei muito na melhor maneira de contar o que aconteceu com ela. Poderia ter escolhido o sistema do narrador alheio, separado dos acontecimentos, mas de tal modo me é íntima, conhecida, a história de Mariana, que só consigo transmiti-la colocando-me de dentro e narrandoa-a como se eu estivesse, a cada passo, acompanhando as cenas, ouvindo diretamente os diálogos e recebendo na cara as emoções da longa viagem da menina (Olinto, 2007a, p. 12).

Com efeito, já nas primeiras páginas do romance, surgem exemplos de memória mítica, social e histórica a se confundirem à experiência das personagens, representadas a partir do ponto de vista da protagonista. A psicologia de Mariana é construída de forma gradual, descrevendo o amadurecimento dos caracteres que irão compor a matriarca da família Silva, desde o momento em que é retirada de sua casa em meio a uma grande enchente, início do deslocamento que é objeto central, segundo o narrador, de sua história: “Porque é de uma viagem que se trata e dela irei falar, a partir da manhã em que Mariana foi  tirada da cama e levada para a rua, que ficava em plano mais alto do que a casa” (Olinto, 2007a, p. 12, grifo nosso). A Casa da Água (2007) apresenta ainda, de forma acentuada, uma circularidade dos fatos, que comunga com o pensamento africano[5].

O romance tem início com uma grande enchente. São as águas de um rio, o Piau, que irão fazer com que Catarina (Ainá), no comando da família Santos, tome a decisão de retornar para a África, levando consigo a filha, Epifânia, e os netos, Mariana, então com dez anos, Emília, com cinco anos e Antônio, com três. Catarina posiciona-se como líder da família e é forte seu desejo de retorno para a África. Sofre ao perceber a demora em cada momento de viagem, temerosa de fracassar em seu projeto de retorno. Vê ainda no fato de Mariana já estar com dez anos uma preocupação. Devem iniciar o quanto antes “A viagem” (primeira parte do romance), de maneira que a menina estabeleça sua identidade em África (Olinto, 2007a, p. 16).

Regina Zilberman, ao analisar a presença do mito no romance, salienta o contraste entre mudança e permanência, quando afirma que “as relações se transformam, mas as pessoas continuam ocupando as mesmas posições relevantes” (1977, p. 53). Detecta, no que denomina “saga familiar”, uma circularidade onde a permanência e, portanto, a negação do tempo – que aproxima ainda mais a narrativa romanesca da mítica – ou antes, sua delimitação no que chama de “origem, único tempo verdadeiro e paradigma para o futuro” (Zilberman, 1977, p. 56). Toda a prosa de Olinto evolui a partir de uma sucessão de nascimentos, casamentos e mortes, que serão igualmente comemorados e é conduzida pelo percurso nômade e inconstante, intuitivo e transformador de Mariana. Ao não pertencer unicamente a nenhum continente, Mariana consegue ressignificar seus saberes e reorganizar o mundo de seus antepassados, novo e velho a um só instante. Esta sucessão relaciona-se ao próprio pensamento iorubá, no qual cada pessoa é substituída em seu papel perante a tribo por um de seus descendentes. Na cosmovisão africana, os fatos não são meramente repetidos, mas reordenados e celebrados dentro de padrões idênticos.

Sem ser propriamente africano e sem ser considerado negro em seu país, o homem afrodescendente Olinto compõe, a partir da tentativa de libertação do país imaginário de Zorei – mimese e homenagem ao corpo da mulher amada, Zora – uma obra feminina e afro-brasileira, ou antes, como lembra Mariana, agudá, palavra que significa, a um só tempo, brasileiro e cristão. Aguessy (1980) afirma que a filosofia e o pensamento africanos são expressos na oralidade dos mitos repassados para além da religiosidade e, acima de tudo, no modo de vida e na maneira como este comunga uma alma (ou psique) comunal, onde o espírito individual se relaciona constantemente com o espírito da tribo. Mariana se percebe agente de uma (re)evolução que se deu pela própria evolução, como se vê nos momentos finais de A Casa da Água, quando se principia um movimento de democratização liderado por seu filho, com o fim da Segunda Guerra Mundial.

Mariana se sentiu ligada àquele chão, estava na África há tempo suficiente para saber que suas imagens eram daquelas terras, tornara-se africana antes de tudo, tanto de Lagos como da Casa da Água e de Aduni, não via muita diferença entre esses lugares, aqui, porém, era onde o filho mais próximo, o último, o que sempre lhe dera uma sensação de segurança, o que sempre lhe dera uma sensação de segurança, o que tinha o nome do marido, o que nascera depois da morte do pai, era onde ele trabalhava e morava, onde fora preso, aqui ficava sendo sua terra, como podia ser na Casa da Água ou em Lagos […] (Olinto, 2007a, p. 327-328).

A protagonista, nesse instante, compreende que não pensou o mundo de forma política, mas o contradisse e o modificou pelo estar no mundo. Sem apagar sua origem brasileira, a protagonista se vê como africana. Produz-se, portanto, a definitiva reterritorialização dos sujeitos da diáspora simultânea e intimamente ligada à descolonização da qual a matriarca toma parte:

Na independência nunca pensara com atenção, talvez por se ter sempre achado independente, por ter vindo do Brasil que naquele tempo já era independente e nunca se haver sentido dependente de ingleses, alemães ou franceses. Pouco falara com eles, só se sentira dependente na ocasião em que os ingleses haviam exigido que todos os brasileiros de Lagos falassem inglês e durante a guerra entre os franceses do Daomé e os alemães de Zorei, mas o filho tinha razão, chegara o tempo de cada região tratar de seus próprios assuntos, lembrou-se de  que era proprietária importante em três lugares da África, sua opinião teria de pesar […] (Olinto, 2007a, p. 328).

Zilberman (1977), em seu estudo Do mito ao romance, define o primeiro enquanto “elemento unificador e fundamental da vida primitiva”, localizando sua presença de modo notável no interior de romances que chama de “sagas familiares”, na revelação de acontecimentos originais, cercados por outros “sinais míticos” (Zilberman, 1977, p. 47), na composição de um sujeito ligado ao mundo de forma intuitiva.

O homem das sociedades nas quais o mito é uma coisa vivente, vive num mundo “aberto” embora “cifrado” e misterioso. O Mundo “fala” ao homem e, para compreender esta linguagem, basta-lhe conhecer os mitos e decifrar os símbolos. […] O mundo não é mais uma massa opaca de objetos arbitrariamente reunidos, mas um Cosmo vivente, articulado e significativo (Eliade, 2013, p. 125).

É interessante notar que não apenas encontramos marcas da narrativa mítica e importantes arquétipos representados na prosa de Olinto quanto seus personagens são herdeiros deste pensamento primitivo que subjaz no texto. Dessa forma, investigar o mito que se entrelaça à narrativa de Alma da África e investigar a maneira como este universo é retratado no pensamento das personagens são importantes possibilidades de estudo sobre as maneiras como a macroestrutura arquetípica condiciona a trilogia; evidenciando ainda o fato de que o autor também compartilha das crenças orixaístas de suas personagens, possuindo, portanto, uma ligação ainda mais íntima com a mítica que recupera em sua obra. Eliade (2013) afirma que o conhecimento de ordem esotérica, transmitido ao iniciado em um culto, traz em si uma capacidade, um atributo de controle “mágico-religioso” associado a esta narrativa, comum a diversas crenças (Eliade, 2013, p. 82).

A viagem de que trata a narrativa de Olinto, reiterada pelo narrador, consiste em uma indústria arquetípica per se – o retorno do degredado, a partir de uma travessia de mares perigosos, ao solo nativo – mas se reveste ainda do pensamento africano, pois celebra um arquétipo central na cultura orixaísta: a retomada do poder por parte do matriarcado (como será visto nos mitos que introduzem cada um dos capítulos seguintes). Mariana compreende-se como herdeira de suas ancestrais divinas que já haviam lutado pela manutenção do poder feminino e entende, ao fim, que, se a força matriarcal permanece viva no mundo em que vive, está sufocada pelo poder do colonizador, como percebe na conclusão do primeiro romance, momento em que reflete, igualmente, sobre a circularidade e inevitabilidade dos fatos em uma cronologia, porém, que pode ser recuperada – ou revertida, pelas palavras de Eliade (2013) – até o momento em que as mulheres dividiam o governo do mundo. Este (re)empodarento se faz necessário e é o cerne da trilogia, a partir de múltiplas referências aos mitos ligados às iyabás (orixás femininos), especialmente aos mitos referentes a Oxum, em A casa da água (2007).

Esse mundo “transcendente” dos Deuses, dos Heróis e dos Ancestrais míticos é acessível porque o homem arcaico não aceita a irreversibilidade do Tempo. Como constatamos por diversas vezes, o ritual abole o Tempo profano, cronológico, e recupera o tempo das façanhas que os Deuses efetuaram in illo tempore. A revolta contra a irreversibilidade do Tempo ajuda o homem a “construir a realidade” e, por outro lado, liberta-o do peso do Tempo morto, dando-lhe a segurança de que ele é capaz de abolir o passado, de recomeçar sua vida e recriar o seu mundo (Eliade, 2013, p. 124, grifo nosso).

Camila Marques (2012) propõe, ao revisar a historiografia da família escrava brasileira, um papel para os escravos enquanto agentes sociais na história do Brasil, levando em conta o ponto de vista dos próprios escravizados. Afirma que “os escravos não foram meros objetos manipulados, desorganizados e que agiam guiados por instintos”, em contraponto a teóricos como Gilberto Freyre e Caio Prado Jr., que, segundo a autora, em linhas gerais, culpabilizavam os descendentes dos escravos por sua situação socioeconômica atual, associando-a a uma pretendida “ausência da instituição familiar” dos escravos (Marques, 2012, p. 56). A autora enfatiza a existência de laços de solidariedade surgidos ainda dentro do cativeiro entre os escravos e mesmo relacionamentos que transcendiam o mero vínculo de paternalismo-subordinação a que se refere Freyre, assumindo verdadeiros laços de afetividade (Marques, 2012, p. 57-58). Freyre representa um “equilíbrio de antagonismos de economia e de cultura”, entre os quais o mais geral e o mais profundo ainda é o do “senhor” e do “escravo” (Freyre, 1980, p. 53), reduzindo a relação entre senhor e escravo a aspectos de exploração e violência e ignorando afetos estabelecidos entre escravos na senzala e entre estes e seus senhores.

Entender esta sociedade enquanto uma organização com polos estanques, definidos entre senhores e escravos, não é o melhor caminho, como lembra Nila Michele Bastos Santos (2014). A autora vê a cultura enquanto um elemento polissêmico, a compor um “jogo conflituoso e tenso nos espaços de convívio social” (Santos, 2014, s. p.), no qual sujeitos, não raro, firmavam afetos e relações das mais diversas, independentemente do vínculo de servidão. O olhar que Olinto estende para a sociedade pós-escravidão brasileira abarca afetos que podem parecer, a um primeiro momento, incompreensíveis. Tio Inhaim é visto por Catarina como um amigo, independente da relação de senhor-escravo que existia entre eles até então.

Sem poupar nada em sua mimese do drama da diáspora africana, Olinto foge, porém, de alternativas maniqueístas de representação. Assim, o primeiro fato que chama a atenção do leitor é o do auxílio recebido por Catarina (Ainá) para seu retorno para a África, após a abolição, por parte de seu antigo proprietário, afetivamente tratado como “Tio Inhaim”. Analisando os limites da mobilidade social de mulheres e mães negras ainda no século XVIII, Dantas (2012) mostra uma relação entre mulheres negras e seus senhores que transcende o jugo escravagista. É notório, vide exemplos como os da célebre Chica da Silva, que mulheres negras cultivavam relações sociais – frequentemente familiares ou afetivas – com homens brancos para que se pudessem beneficiar. Estas mulheres, ainda segundo Dantas, construíram redes de sociabilidade que lhes permitiram um reposicionamento social, a partir de sua libertação mediante alforria (Dantas, 2012, p. 104). Catarina (Ainá), nascida em Abeocutá, Nigéria, fora vendida como escrava pelo próprio tio, durante uma visita à cidade de Lagos, aos dezoito anos. Olinto narra o processo de adaptação da personagem à realidade brasileira. Nesta adaptação, a língua aparece como metáfora do apagamento identitário gradual que se processa. A jovem, ainda conhecida como Ainá, chega primeiro à Bahia, sendo levada até Juiz de Fora, Minas Gerais, onde receberá o nome de Catarina, que termina por obliterar sua identidade de origem.

Conhecera Juiz de Fora muitos anos antas, ainda moça, recém-chegada da Bahia, sem entender a língua daquela gente, achando as palavras duras, lembrando-se da sonoridade das palavras que usara em casa, ekaró, odabó, mó fé jé, tudo tão claro, aberto, simples. Aprendera com raiva suas primeiras palavras de português, no princípio não queria falar a língua e fora exatamente em Juiz de Fora que se dera conta de que os sons lhe entravam sem esforço na cabeça e passavam a ter significado, um dia teve sede e pediu água, teve fome e falou que tinha fome (Olinto, 2007a, p. 21).

A Casa da Água (2007) se afirma enquanto possibilidade poética de revisão de um período da história cujas narrativas são preponderantemente eurocêntricas e masculinas. Assim, a arte e a ciência articulam-se enquanto tentativas de reorganização da realidade, partindo de elementos que as constituem. O estudo da arte é, pois, um estudo da particularidade que constitui o objeto observado, associada ou comparada à realidade que a sustenta. Pode-se afirmar, em dada medida, respeitando as construções teóricas estéticas e éticas (de Lukács), lógicas e antropológicas (de Kuhn), que é possível a percepção de uma estética do texto científico, assim como de uma lógica da reflexão estética. Há ordem na arte, e é esta que permite ao sujeito a compreensão mínima necessária à experiência dita artística. Da mesma forma, sem uma dose mínima de sensibilidade associada ao senso crítico, a descrição científica careceria de um apelo ao homem, em sua busca pela compreensão do mundo, que imprimisse em sua alma a verdadeira cognição. Tem-se, pois, arte e ciência, estética e lógica em situação de armistício, ainda que temporário, no campo de batalha epistemológico que, não raro, relega à arte o estatuto de mero devaneio e à ciência o epíteto de enfadonha. Dedicamo-nos ao estudo da trilogia de Olinto sob estes dois vieses, constantemente buscando um senso estético que faça um sentido igualmente científico. A eficácia do trabalho científico, lembra Julia Kristeva (1978), sempre foi contestada no domínio das ciências humanas. A autora anuncia nas humanidades uma lógica outra, que não a científica.

A escravidão nas Américas sempre esteve ligada ao projeto colonial, de forte caráter comercial. Dessa forma, a maior parte dos escravos em solo americano era de africanos e afrodescendentes. Esses homens e mulheres, convertidos em propriedade, trabalhavam sob regimes duríssimos e eram comercializados abertamente. Gabriel Aladrén (2012) enfatiza que, nas Américas, a escravidão, diferentemente do modelo do Velho Mundo, possuía uma base racial – “com o crescimento do tráfico de africanos, os escravos se tornaram sinônimo de negros” (Aladrén, 2012, p. 20). Desta forma, embora nem todos os negros fossem escravos, a maioria o era. A cor da pele converteu-se rapidamente, em forte elemento de identificação da condição do escravo, marcando sua inferioridade social. Este sentimento perpassou toda a escravidão e perpetuou-se após a abolição, intervalo de tempo representado por Antônio Olinto. Outro fator decisivo no modelo de escravização colonial atinha-se à destinação destes escravos enquanto mão de obra – preeminentemente serviços braçais, voltados para a agricultura, pecuária e mineração, além de serviços domésticos. Os escravos rapidamente converteram-se em maioria populacional, eram em maior número em fazendas e nas cidades.

No Velho Mundo, como atenta Aladrén (2012), os escravos tinham origens étnicas e características raciais variadas (gregos, eslavos, egípcios, ingleses e alemães, dentre outros) em diferentes períodos da história dos países e exerciam funções muito mais amplas que nas Américas – trabalhando como artesãos, soldados, administradores, tutores ou criados – e, portanto, tinham seu potencial intelectual tão explorado quanto o braçal. Nas Américas, a ênfase era da mão de obra básica, composta por um número muito maior de escravos e de duas origens básicas – indígena autóctone e africana. Necessitava-se, portanto, para a manutenção dos liames da escravidão e da submissão dos escravos que sua língua, sua cultura, sua ciência, suas tradições e sua religiosidade fossem apagadas, pois, em maior número em terras americanas, o esquecimento de sua história e de seu manancial de saberes era fundamental para o domínio de seus senhores.

Se, no universo discursivo do romance, o destinatário está incluído enquanto discurso (Kristeva, 1978, p. 71), o escritor eleva-se enquanto um dos macrodiscursos que (re)unem o texto. Em Alma da África, em especial em A Casa da Água (2007), tem-se a sociedade enquanto um terceiro discurso subjetivador. A sociedade que atua discursivamente na obra tem características bastante distintas da que se vê no romance europeu da metaficção historiográfica delimitada por Linda Hutcheon (1991). Muito antes do pensamento engendrado pela experiência da União Europeia expressar-se no romance, Alma da África brinda ao leitor com uma proposta que é, a um só tempo, tribal e supranacional de sociedade, a interpelar o brasileiro em meio à ditadura e o processo de redemocratização (o primeiro romance da trilogia foi lançado em 1969 e o terceiro em 1987).

Em uníssono ao pensamento de George Lukács (1978), este trabalho tem a teoria marxista como uma das possibilidades para o estudo da literatura que representa a os sujeitos da diáspora no período da pós-colonialidade. Embora não se possa abandonar o pós-estruturalismo e as teorias fabricadas no Ocidente, as discussões sobre transnacionalização, hibridismo, nomadismo, sincretismo, crioulização e as literaturas poliédricas produzidas na representação desta realidade não podem ser analisadas unicamente por teorias que se atém ao pós-colonialismo. A teoria marxista poderia servir para um melhor entendimento sobre o imperialismo, enquanto uma característica do capitalismo. A dialética materialista, a partir de autores como Lukács, analisa as literaturas pós-coloniais, porque ela é capaz de enfrentar as coordenadas materiais do imperialismo sem reduzir o texto literário a um relacionamento mimético com a realidade, tampouco limitá-lo a um simples objeto de análise dos discursos veiculados. Sem se ignorar, por exemplo, a importância das teorias feministas e do pós-colonialismo na composição do manancial teórico necessário à desconstrução do imperialismo e do patriarcalismo, percebe-se a necessidade da crítica de conectar os textos literários aos contextos históricos, valendo-se da dialética marxista.

Em sua forma ortodoxa, a teoria pós-colonial e os feminismos analisaram, com muita propriedade e profundidade, embora frequentemente no viés apenas discursivo, os mecanismos, as causas, as consequências e os resíduos do colonialismo e do patriarcalismo, mas parece que deixaram de entender a história dos movimentos sociais de libertação, explicar as teorias de libertação total, e compreender a centralidade do imperialismo para o capitalismo (Bonicci, 2006, p. 14).

Em conformidade ao olhar de Thomas Bonicci (2006), este trabalho busca ampliar as possibilidades de reflexão sobre o texto literário a partir do materialismo marxista, porém, faz eco ainda ao olhar de teóricos como Edward Said, que vê, em seu Orientalismo (1996), a necessidade de uma descentralização dos pensamentos eurocêntricos para se tratar de sociedades que tiveram, justamente, na Europa, seu algoz. Dessa forma, pensar o mundo a partir da cosmovisão tribal orixaísta pode lançar luzes sobre a maneira como essas mulheres, a partir da celebração de seus valores ancestrais e de seu empoderamento enquanto coletividade, lançam-se ao mundo patriarcal, desafiando suas regras. O universo de Alma da África supera, porém, o imediatismo materialista de Karl Marx (s.d.). Na obra, é o bem tribal que deve ser privilegiado, e este leva em conta dimensões espirituais, divinas e ancestrais.

Longe de se ater à noção de bem social comunista, um senso de responsabilidade tribal leva Mariana, ao comerciar a água que extrai de seu poço, a vendê-la por diferentes valores, de acordo com o poder aquisitivo dos compradores, ou antes, a doá-la secretamente àqueles que, necessitando do bem vital, não podem comprá-lo, em A Casa da Água. Desde o princípio da trama, as mulheres desenvolvem-se em âmbito privado e público sem a presença masculina. Já sob a Lei do Ventre Livre, Catarina (Ainá) dá à luz sua filha, Epifânia, sem qualquer menção ao pai da criança. Seus netos, que a acompanham também em sua aventura de regresso, Mariana, Emília e Antônio, nascem já após a abolição, sendo criados sem saber a identidade do pai. Após uma grande enchente que alaga a cidade do Piau, onde se localiza a fazenda onde ainda vivia com a família, a mulher, já anciã, decide pela volta ao país de origem. Catarina (Ainá) passa a juntar dinheiro, aceitando ainda o auxílio de seu antigo proprietário, que chama, familiarmente, de “Tio Inhaim”, e de outros ex-escravos, após o fim da escravatura. A família demorará, porém, ainda dois anos até que o retorno à África seja possível. Saindo de Minas Gerais, passam por um período no Rio de Janeiro, indo estabelecer-se, finalmente, na Bahia, onde buscam uma embarcação que propicie seu retorno. Durante esse período, passam a trabalhar em um mercado, na venda de peixe, lugar onde passarão as noites.

Uma leitura atenta de Alma da África exige do crítico a disposição de questionar, ao mesmo tempo em que se utiliza de conceitos eurocêntricos tais como feminismo (ou feminismos) e pós-colonialismo. Nascida no Zimbábue, a escritora (e feminista) Anne McClintock (1994) percebe a ideia de um pós-colonialismo eivada de contradições, na medida em que, para se pensar a superação do período das colonizações é necessário imaginar-se um mundo onde não exista a inegável crise generalizada e histórica da concepção de “progresso” (McClintock,  1994, p. 91). McClintock vê a necessidade de uma revisão constante de conceitos como feminismo e pós-colonialismo para a análise de sociedades onde práticas capitalistas e pré-capitalistas podem ocorrer simultaneamente e, não raro, simbioticamente. Da mesma forma, a teoria feminista não considera a intrincada estrutura social de realidades onde países “imaginados” por interesses externos romperam com a tessitura tribal e a complexa relação étnica de grupos que convivem há milênios, como é o caso da Nigéria, Benin e da fictícia Zorei. A geografia política é relativizada, nestas sociedades, por uma geografia étnico-tribal e, não raro, mítica. Assim, o pensamento mágico determina que culturas se diferenciem em prol de seus deuses fundadores e que a própria topografia dos territórios pode ser determinada por um mito ou divindade, que, diferentemente do que acontece na Europa – onde diversos acidentes geográficos ou a topografia de cidades tiveram seus mitos fundadores apagados pelo tempo – o mito permanece vivo e constantemente celebrado. Assim, determinados limites geográficos, culturais, econômicos, são respeitados e outros são relativizados ou esvaziados por força do pensamento mágico.

O hábito de grandes deslocamentos feitos a pé, sem qualquer apoio de meio de transporte, passando noites ao relento, nas proximidades da estrada, mostra-se uma prática herdada da África por Catarina, como se vê em sua ida a um ritual de sacrifício para Xangô. Xangô é o primeiro orixá que surge na narrativa, divindade de devoção de Catarina. É nesse episódio que aparece a primeira representação de uma possessão religiosa. Durante esse ritual, jovens são tomadas pelo orixá, sob o olhar atônito da pequena Mariana.

Mariana viu a avó entrar na roda e sair dançando como as outras. O som do tambor e dos cânticos se tornou íntimo, as danças foram ganhando força, de repente uma das mulheres deu um grito e ficou  num canto da sala, os braços esticados, olhos fechados, o lábio inferior estendido, e logo se atirou numa dança rápida, o corpo dando voltas sobre voltas, todos ao redor gritaram kauô, e outra mulher imitou a primeira, e em alguns instantes eram várias que dançavam na maior das entregas, a roda se desfez numa alegria geral, Mariana acompanhou cada volteio das mulheres que dançavam, uma parecia às vezes que ia chocar-se com outra, mas as duas se detinham a tempo (Olinto, 2007a, p. 51-52).

Outra alegoria que aparece com grande força em Olinto é a da máscara Egungun. A partir dela, o religioso iorubá resgata do mundo dos mortos (o Orum) a presença dos ancestrais, que poderão, personificados pelo religioso que ostenta a máscara, passear pelos lugares que visitava em vida. Assim, o ancestral é revivificado e se propõe a uma retomada de sua trajetória habitual. O fato cotidiano e a experiência do sujeito enquanto membro de sua tribo é, desta forma, fortalecido e alçado ao status de fato mágico e sagrado. Há ainda um papel moralizador do egum, espírito de um antepassado, que poderá erguer-se dos mortos para reestabelecer valores tribais perdidos momentaneamente, em ato de moralização da urbe. Assim, os antepassados, a partir da visão de mundo iorubá, participam da vida de seus descendentes.

[…] ouviu dizer que a festa era de Eguns, em homenagem às almas dos antepassados que se chamavam Egunguns na África e eguns na Bahia, os eguns surgiram tarde da noite, com roupas coloridas, pareciam lisos como tábuas, haveria alguém embaixo daqueles panos?, o rosto desaparecia, todos se ajoelhavam, diziam agô, esfregavam uma das mãos na outra, perguntavam coisas, agradeciam a resposta, os adupés e modupés ecoavam pela sala, […] (Olinto, 2007a, p. 51-54).

Ao teorizar sobre a diáspora, Stuart Hall (2003) afirma que cada dispersão carrega consigo a esperança de um “retorno redentor”. Fala de uma identidade cultural fixada no nascimento, enquanto parte da natureza impressa através do parentesco e da genética, constitutiva da subjetividade. Essa visão de identidade fixa e herdada como tradição (na sua acepção mais centralizadora) não abarca questões como a hibridização das culturas pelo inevitável contato do contexto diaspórico e a crioulização decorrida do contexto multicultural. Essa hibridização e o sofrimento pela adaptação ao estatuto irreversível do sujeito da diáspora é representado em diferentes pontos de vista pelo drama de Catarina (Ainá) em sua tentativa de retorno que é frustrada pela realidade da diáspora; pelo sofrimento de Epifânia pela desterritorialização sentida por uma afrodescendente brasileira em solo africano e pela adaptação de Mariana ao contexto híbrido das comunidades pelas quais transita na África – africanos, brasileiros descendentes de africanos retornados e colonizadores europeus. Mariana representa a riqueza do que Edward Said 1996 chama de “culturas irremediavelmente impuras” e, por isto mesmo, ricas de significações novas, em uníssono a uma modernidade inevitável. Ao retornar a seu país de origem, Catarina busca para si o passado que lhe fora roubado e seu vínculo com estes ancestrais, capazes de passear pelas ruas. Um passado que a assombra, na medida em que é capaz de se levantar dos mortos, tal como os Egunguns, mas que lhe devolve sua razão de existir, em seus momentos finais.

Catarina respondia com poucas palavras, usava muito “eu quero”, o som iorubá de mó fé permanecia no ouvido da filha, que sonhava com ele, a mãe sempre fora de poucas vontades, anulava-se, hoje afirmava que queria isto, queria aquilo, em Lagos ia querer tal ou qual coisa (Olinto, 2007a, p. 64).

Destarte, a diáspora fragmenta a identidade de Catarina (Ainá) e o processo de reconquista desta identidade perdida dá-se a partir do retorno à África. Lentamente, a personagem adquire um traço que, até então, era desconhecido pela filha: vontade própria. Torna-se, no navio, silenciosa, em um primeiro momento, voltando-se para suas memórias, tentando remontar os traços de sua antiga personalidade. Ainda que sua transcendência ao sofrimento da diáspora dê-se apenas com a morte, Catarina (Ainá) integra a espiritualidade que alimentará o matriarcado que se inicia, irá reencontra-se como parte de uma família que se une à comunidade a partir de sua ancestralidade.


*José Ricardo da Costa realiza doutorado na área de Estudos de Literatura, em Pós-Colonialismo e Identidades, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mestre em Estudos de Literatura, Literaturas Portuguesa e Luso-Africanas (UFRGS). Algumas de suas publicações: Opaxorô, o cetro dos ancestrais: mímese e mito na representação de mundo afro-gaúcha (UFRGS, 2016); Emília e Oxum, da Reinação à ação no reino: indícios e vestígios em uma proposta comparatista (UNIPAMPA, 2014), dentre outras.

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Notas

[1] Reforçando a abordagem desta pesquisa de um ocultamento da participação masculina na narrativa central, o “marido” de que trata a segunda parte do romance é representado em sua ausência, na medida em que Sebastian Silva (o pai) parte logo após o nascimento da pequena Ainá, retornando apenas ao fim do capítulo para poucas cenas antes de sua morte, deixando Mariana grávida de seu terceiro filho.

[2] Um movimento neo-sebastianista, encabeçado pela filha de Sebastian, Mariana, será a temática central do terceiro romance da trilogia, O rei de Keto (Olinto, 2007).

[3] Para Karl Marx (s.d.), o valor de uma mercadoria está ligado ao trabalho que é necessário para que seja produzida, e sobre o qual diversas circunstâncias se sobrepõem, implicado ao conceito de capital. Valores subjetivos, porém, como prazer ligado ao trabalho e tradição de trabalho, bem como implicações espirituais do trabalho perante a comunidade e a divindade, presentes no conceito de owó e axé, ultrapassam os aspectos desenvolvidos pelo autor.

[4] Do grego, epikêdeios (Moisés, 1982, p. 188), sofrimento ou canto plangente de personagem em presença do corpo do morto.

[5] Como será visto, esta circularidade se intensifica pela ruptura com o tempo cronológico em O rei de Keto (2007) e é enfraquecida em Trono de vidro (2007), de acordo com as intenções retóricas do autor.

dossiê
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A ARTE E O ARTISTA NEGRO NA ACADEMIA NO SÉCULO XIX

Resumo: O negro adentrou o século XIX na escravidão, ou quando alforriado, estava presente invariavelmente em trabalhos subservientes e mal pagos. Nas artes desse século, sua presença não foi muito diferente, tanto na condição de artista como de uma figura representada. Este artigo procura evidenciar a presença negra na Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro, então centro de atividades artísticas do Império, analisando algumas das inúmeras dificuldades de afirmação do artista negro e a aceitação de sua presença em telas expostas por essa instituição. Uma concepção de nação, defesas científicas, preconceitos cristalizados entram em jogo para defender estéticas e formas de ensino que perduram, de certo modo, até os dias de hoje.

Palavras-chave: história da arte; cultura brasileira; escravidão.

Abstract: Black people began the nineteenth century in slavery, or when they were free, they were invariably in subservient and poorly paid work. In the art field of that century, their presence was not very different – as artists and as a figure represented. This article seeks to highlight the presence of black people at the Academy of Fine Arts of Rio de Janeiro, the centre of artistic activities of the Empire. It analyzes some of the innumerable difficulties of affirmation black artist faced and the acceptance of his representation on the canvas exposed by this institution. A conception of nation, scientific defenses, crystallized prejudices came into play to defend aesthetics and forms of teaching that endure, in a certain way, even nowadays.

Keywords: History of art; Brazilian culture; slavery.

1. Introdução

“O que se pode esperar de um povo feito do conluio de selvagens inferiores, indolentes e grosseiros, de colonizadores oriundos da gente mais vil da metrópole – calcetas, assassinos, barregões – e de negros boçais e degenerados?” (Veríssimo, J. apud Pontual, 1987, p. 7). Com essas palavras José Veríssimo, escritor e membro fundador da Academia Brasileira de Letras, assina um artigo publicado em 1901 em um jornal da Capital Federal. O início da República marcou uma época no Brasil em que se tornou ordem do dia a discussão acerca do então atraso científico, tecnológico, econômico da nação frente aos outros países europeus e mesmo americanos. Era fundamental que se interpretasse o Brasil a partir de sua realidade nacional, e nesta estava presente a mestiçagem, o predomínio do meio rural, a população analfabeta; tudo isso acabava por se traduzir em um sentimento de alijamento do Brasil do concerto de nações ditas desenvolvidas.

A República, ainda que fosse inaugurada sem a presença da escravidão e que propugnasse a ideia de ordem e progresso calcada nos pressupostos positivistas que pretendiam abandonar os preconceitos e atrasos do desconhecimento das época anteriores, continha ainda em grande parte de seu discurso que permeava o meio político e intelectual, uma enorme desvalorização do negro e do mestiço.

De fato, a partir da década de 1870 a questão da miscigenação ganha enlevo no Brasil, pois como observa Schwarcz (1993), é nesse momento que há uma desmontagem da escravidão com a Lei do Ventre Livre (1871). Em 1894, Raimundo Nina Rodrigues, professor titular da cátedra de Medicina Pública em Salvador, expõe no seu livro entitulado “As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil” seu posicionamento acerca do papel da raça na patologia da população brasileira:

O desenvolvimento e a cultura mental permitem seguramente às raças superiores apreciarem e julgarem as fases por que vai passando a consciência do direito e do dever nas raças inferiores, e lhes permitem mesmo traçar a marcha que o desenvolvimento dessa consciência seguiu no seu aperfeiçoamento gradual (Rodrigues, 2011, p. 28).

E acrescenta que “(…) os atos tidos por criminosos nos povos civilizados confundem-se nos selvagens com os atos comuns, permitidos e até obrigatórios” (Rodrigues, 2011, p. 29).

Em 1911, o então diretor do Museu Nacional, João Batista Lacerda, apresenta no I Congresso Internacional de Raças, a sua conferência “Sobre os mestiços do Brasil” em que afirma que “o Brasil mestiço de hoje tem no branqueamento em um século sua perspectiva, saída e solução” (Schwarcz, 1993).

Obviamente, a discriminação e o racismo não começaram no Brasil nessa época, porém a questão da raça, da mestiçagem e da necessidade de branqueamento da população se transformou em parte fundamental de um discurso sobre a construção de uma identidade nacional que, com a queda do Império, se tornava ainda mais presente.

A Academia Imperial de Belas Artes (AIBA) também passava, por esses anos de 1870, por uma reformulação movida por um desejo de progresso que insuflasse ares de renovação e de modernidade a um ambiente academista, patrocinado por uma monarquia que já dava ares de decadência.

Por volta de 1870 um novo período vai se abrir na história do pensamento brasileiro. É então que novos matizes de ideias… o positivismo, o naturalismo, o evolucionismo, enfim, todas as modalidades do pensamento europeu do século XIX — vão se exprimir agora no pensamento nacional e determinar um notável progresso de espírito crítico (Costa, apud Pereira, 2016, p. 241).

É importante ressaltar que dentro desses “novos matizes e ideias” se insere também o conceito de superioridade e de eugenia racial, tudo isso embasado pela ciência — o darwinismo social, entendendo a mestiçagem como um sinônimo de degeneração racial e social.

Nesse contexto, o fim da escravidão, a queda do império, o início da industrialização, a abertura para novas ideias republicanas, não trazem qualquer tipo de avanço, ao menos em princípio, para a atenuação do racismo e da discriminação racial no Brasil nesse final de século XIX. Ao contrário, passa a haver todo um cabedal teórico que dá ênfase à necessidade de constituir uma nação segundo ideais burgueses calcados na eficiência, na produtividade, no liberalismo econômico e na limpeza étnica, só assim o Brasil poderia pretender ascender um dia ao rol das nações desenvolvidas.

2. O negro nas artes brasileiras

Como ficaria então o papel do negro nesse final de século nas artes brasileiras? Como a Academia, ou melhor, a Escola Nacional de Belas Artes absorveria, ou não, artistas negros e uma arte negra?

Uma rápida abordagem acerca do papel dos negros e de sua representações nas artes brasileiras no período colonial poderia ser resumida pela afirmativa do historiador Antônio da Cunha Barbosa afirmando, no final do século XIX, que “em geral foram escravos todos aqueles que naquela época [colonia] se dedicavam às artes” (apud Teixeira Leite, 1988, p. 13). De fato, a grande parte dos artistas presentes no Brasil colonial eram negros ou mulatos. Alguns, como o caso do pintor negro Manuel da Cunha, poderiam ter uma formação mais aprimorada indo estudar em Portugal, mas isso constituía uma exceção, o aprendizado, em geral, acontecia nas corporações de ofício que atuavam na colônia. Márcia Bonnet (2009, p. 97) explica que

Muitos senhores ensinavam ou proviam para que se ensinasse ofícios mecânicos aos seus escravos com o objetivo de colocá-los para trabalhar ao ganho, alugando seus serviços a terceiros, ou mesmo com o intuito de vendê-los. Desta forma, uma vez em liberdade, estes escravos já tinham um ofício por meio do qual poderiam sobreviver, ao invés de perambular pelas ruas da cidade desorientados e sem meio de sustento.

As corporações de ofício tiveram sua extinção através de um alvará do Príncipe D. João que privava os seus associados do monopólio do exercício de qualquer que fosse a arte. A atitude do regente se deveu a uma intenção política que tinha como pressuposto o desenvolvimento do liberalismo econômico; quebrava-se o monopólio das corporações e abria-se espaço para a livre concorrência.

Ao mesmo tempo, D. João inaugurava, em 1816, a Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios que institucionalizava o ensino das Artes[1]. Assim, não só uma estética neoclássica de estirpe francesa passou a ser incorporada no programa da arte no Brasil, mas foi profundamente abalada toda a tradição da pintura colonial e sua estrutura de corporações de ofício, onde negros e mulatos obtinham o seu aprendizado. A Escola, mais tarde Academia, representava a um só tempo a formação intelectual do artista e sua desvinculação de qualquer formação e atuação vinculada a práticas corporativas.

Essas formas coletivas entraram em conflito violento, ou até mortal, com as academias, que, no começo, desejavam ser um elemento libertador. Mas também estas iriam formar um quadro de restrições, em cuja sombra podiam ser encontradas e reproduzidas as posições dominantes. Sendo assim, o sistema acadêmico não continha estruturas tão coletivas quanto o sistema corporativismo e, sob seu abrigo, o modo de trabalhar dos artistas tendeu a individuação (Greffe, 2013, p 128).

A Academia Imperial de Belas Artes, quando inaugurou as suas atividades em 1826, passou a ser o centro gravitacional das artes, onde exposições, encomendas, prêmios, faziam parte do seu controle, ou seja, ao contrário do período colonial, nesse momento a produção artística estava intrinsecamente ligada ao direcionamento oficial, cujo objetivo “era formar uma elite de artistas treinados segundo valores considerados os melhores para uma produção oficial” (Pereira, 2016, p. 45).

Aceder a esta instituição era, por um lado, relativamente fácil, pois bastava ser alfabetizado e saber fazer contas. Contudo, se grande parte da população branca era analfabeta, o que dizer então de negros e mulatos[2]? Mas é preciso perceber também, como observa Sônia Pereira, que as classes abastadas não se interessavam pela Academia, já que eram “pressionados pelo bacharelismo, num país em que o trabalho manual sofria todo o tipo de descrédito social” (2016, p. 44). De fato, segundo o censo de 1872, das profissões liberais, a de artista é a que tinha maior número de integrantes, tanto entre a população livre quanto a de escravos.[3]

Era possível que negros e mulatos acedessem ao ensino acadêmico nas artes nesse século XIX, embora isso não constituía algo corriqueiro.

Nessas condições, é de se prever que, dada sua congênita vocação áulica, a Academia funcionasse como uma barreira tendendo a dificultar consideravelmente ao negro e ao mulato acesso à condição de artista, que ela, estava habilitada a conferir (Marques, 1988, p. 136).

Por outro lado, os poucos alunos de origem africana que conseguiam ingressar em seus quadros de discentes, passavam a ter um prestígio intelectual que jamais conseguiriam obter no período colonial. Nesse sentido, acabava por existir uma espécie de acordo: a Academia promovia uma ascensão social do negro enquanto este reforçava o ideário acadêmico e elitista da Escola.

Um caso conhecido e bom exemplo disto é o de Estevão Roberto da Silva (1845?-1891). Filho de escravos, é considerado o primeiro pintor negro com destaque na AIBA. Famoso por suas naturezas-mortas, seu nome é justamente relacionado como um dos maiores artistas dessa temática de todos os tempos no Brasil.

Ao mesmo tempo que a AIBA foi uma promotora de seu talento, esta instituição limitou o seu reconhecimento.

Perante o próprio Imperador Pedro II, na sessão solene de entrega de prémio àqueles que se distinguiram na Exposição Geral da Academia, o pintor levantara-se para protestar contra a premiação que lhe coubera, dizendo-se injustiçado. O escândalo foi enorme, tanto que, quase um ano mais tarde uma comissão nomeada pelo diretor para apurar o incidente aplicava a Estevão a pena de suspensão por um ano, reconhecendo que praticara “um atentado sem exemplos nos anais da Academia”, da qual só não foi expulso porque a mencionada comissão, após lhe ouvir a defesa, convencera-se de agira “por acanhamento da inteligência” (Teixeira Leite, 1988, p. 476).

A atitude de Estevão Silva deveu-se a ter recebido um prêmio inferior a que não só ele, mas todos os seus colegas de academia esperavam. Estavam plenamente convencidos que o primeiro lugar deveria ser conferido ao pintor negro, como Antônio Parreira escreve em suas memórias “Íamos nos revoltar”. Mas Estevão pediu a seus amigos “Silêncio! Eu sei o que devo fazer.” Estevão se limitou a proferir “Recuso!” Foi suficiente para ser tomado como um atentado sem exemplos nos anais da Academia”, essa insolência de um negro dito arrogante só não foi mais duramente punida, pois imputaram-lhe generosamente o atributo de “acanhado de inteligência”.

 Durante o período imperial, talvez não se possa elencar, além de Estevão Silva, mais do que cinco nomes de artistas de origem negra que conseguiram algum destaque na arte realizada no Brasil através da AIBA[4].

Além da óbvia discriminação existente no período escravocrata e que continuou (e continua ainda hoje) nas décadas seguintes, a educação artística era dispendiosa e devia se realizada de acordo com o gosto social dominante. O resultado imediato disso é que as obras de todos esses artistas não contêm, pelo menos em relação à técnica, a estrutura espacial, ao modo de composição, nada que seja peculiar a identidade africana ou a qualquer qualidade identitária do negro.

Em relação a temática, há diversas obras onde estão presentes pessoas negras ou mulatas. Em certo sentido isso denota uma presença, dentro da arte dita oficial, dessa negritude. Por outro lado, vários desses retratos exibem essas pessoas executando serviços braçais, como se estas pinturas representassem o retrato uma realidade nacional. Algo que possuía certa reminiscência da pintura holandesa no Brasil ou das aquarelas de Debret.

Há também alguns retratos de pessoas negras em que não estão associadas a qualquer tipo de atividade braçal. O primeiro deles é o retrato do Marinheiro Simão, o carvoeiro de José Correia de Lima, de 1853 (Figura 1). Contudo, essa pintura de Simão escapa àquilo que era costumeiro de ser feito, mesmo na obra de Correia Lima. Em primeiro lugar, Simão não era escravo, e, além disso, foi responsável pelo salvamento de treze pessoas do naufrágio do navio Pernambucana nesse mesmo ano. Sua figura ficou notória através da imprensa, sendo alçado, com esse gesto de bravura, do anonimato para a notoriedade. Ele ganhou assim o status de personalidade, sendo, com isso, passível de ser representado — uma representação não mais associada ao trabalho, mas apenas ao indivíduo Simão.

José Correia de Lima — Marinheiro Simão, o carvoeiro, OST, 93x72,6 cm, 1853
Figura 1: José Correia de Lima — Marinheiro Simão, o carvoeiro, OST, 93×72,6 cm, 1853

Certamente o retrato de Simão se configurou uma das poucas exceções. Outros retratos de negros sem a associação com o trabalho foram feitos por artistas negros, como é o caso, por exemplo, de Arthur e de João Timóteo da Costa que teve diversos negros como modelos de seus retratos.

Em grandes telas representativas da história nacional, patrocinadas pelo governo e pintadas por professores da AIBA, como Batalha dos Guararapes, de 1879, de Victor Meireles (figura 2) ou Independência ou Morte, de 1888, de Pedro Américo (figura 3), por exemplo, a figura do negro é retratada fora do centro de ação das obras. No caso da obra de Américo, o único negro presente apenas assiste à ação, como se fosse um elemento componente da paisagem.

Victor Meireles — Batalha dos Guararapes, OST, 9,25x5,0m, 1879
Figura 2: Victor Meireles — Batalha dos Guararapes, OST, 9,25×5,0m, 1879

 

Pedro Américo — Independência ou Morte, OST, 7,6x 4,15m, 1888
Figura 3: Pedro Américo — Independência ou Morte, OST, 7,6x 4,15m, 1888

A figura do negro não era apenas mal vista como representação, ainda que esta fosse de uma realidade manifesta em uma força de trabalho, mas também como modelo. Neste século XIX, muitos negros, devido obviamente às suas condições subalternas ou mesmo à baixíssima remuneração que recebiam, serviam de modelos-vivos para os artistas da AIBA. Contudo, até mesmo nisso, a presença deles causava desconforto. João Maximiano Mafra[5], então aluno da Academia, em 1839, investiu para que fosse organizada uma associação a fim de trazer europeus ao Brasil com o intuito de substituirem os modelos-vivos negros. Argumentava que as pessoas negras não possuíam beleza física suficiente para serem retratadas em quadros cujo padrão estético adotado pela Escola remetia à Grécia clássica.

Um exemplo significativo deste desprezo ao modelo negro se encontra no quadro de Oscar Pereira da Silva, Escrava romana de 1894 (figura 4), ganhadora da medalha de ouro no Salão Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro de 1897. A pintura retratava uma escrava, mas sem ter por base o modelo clássico de corpo humano. Ao contrário, seu referencial é de uma mulher de sua época, com pés grandes, sobrancelhas grossas, ventre volumoso, algo que deveria ser muito mais próximo da beleza de uma típica escrava. Contudo, essa escrava retratada possuía pele clara e se situava em um ambiente romano. Por que Pereira da Silva não utilizou como modelo a negra brasileira, que tinha fartamente a disposição? Se a temática era a representação de uma escrava, por que então não colocar na pintura a escrava brasileira que há pouco havia sido liberta?

Oscar Pereira da Silva — Escrava romana, OST, 146,5x72,5cm — 1894
Figura 4: Oscar Pereira da Silva — Escrava romana, OST, 146,5×72,5cm — 1894

3. O negro e o ideal de nação

Certamente a exclusão do negro tanto na Academia quanto a sua representação em pinturas ou em esculturas pode ser vista hoje como o reflexo de uma época preconceituosa e excludente. Contudo, essa exclusão se baseava em dados e em teorias científicas amplamente aceitas e validadas à época.

Os mesmos modelos que explicavam o atraso brasileiro em relação ao mundo ocidental passavam a justificar novas formas de inferioridade. Negros, africanos, trabalhadores, escravos e ex-escravos — “classes perigosas” a partir de então — nas palavras de Silvio Romero transformavam-se em “objetos de sciencia”. Era a partir da ciência que se reconheciam diferenças e se determinavam inferioridades (Schwarcz, 1993, p. 28).

A partir da segunda metade do século XIX, começavam a ganhar força teorias que procuravam explicar a inferioridade de determinadas raças, em particular a negra. As teorias evolucionistas e social-darwinistas justificavam cientificamente a supremacia racial através de uma seleção natural em que sobrevivia o mais apto e o mais capaz. Assim, negros teriam sido naturalmente escravizados dada as suas supostas condições de inferioridade racial.

O componente negro existente no Brasil poderia então ser excluído de ser formador de uma identidade nacional.  A filiação francesa existente na AIBA não poderia ser vista apenas como um modelo exótico aplicado em terras brasileiras, mas ao contrário, esse modelo significava a busca de uma identidade nacional calcada em um branqueamento da raça. Significava ainda que se o Brasil quisesse entrar para o concerto de nações desenvolvidas teria que efetivamente excluir raças inferiores e degeneradas. O famoso quadro do pintor espanhol radicado no Brasil, Modesto Brocos y Gomes aluno da AIBA e mais tarde professor da Escola Nacional de Belas Artes (ENBA)[6], A redenção de Cam de 1895 (figura 5), exposto no Museu de Belas Artes do Rio de Janeiro, expõe de modo claro a busca do embranquecimento brasileiro como elemento de salvação pátria.

Modesto Brocos y Gomes — A redenção de Cam, OST, 199x166cm — 1895
Figura 5: Modesto Brocos y Gomes — A redenção de Cam, OST, 199x166cm — 1895

O índio, nesse caso, acabava por ser banido desta exclusão. Baseado na ideia do bon sauvage de Rosseau, o indígena era o homem em seu estado puro e natural, representativo de uma natureza que era, em uma nação destituída de grandes obras, personalidades e feitos, a marca que dava ao Brasil sua peculiaridade em face às outras nações. Por isso, pode-se encontrar, dentro das artes plásticas, como também na literatura, na ópera, a figura do índio sendo exaltada. Contudo, esse índio era representado não em sua condição própria, mas, como observa Roberto Pontual (1987), com nova roupagem indígena elementarmente brasileira que acabava por produzir um pieguismo que só lhes acentuava a estranheza.

Procurava-se criar assim uma nação calcada em virtudes europeias, onde a ciência, a indústria, os valores morais cristãos, a vida privada, a arte eram reflexo de teorias e princípios universais que condiziam com o mundo branco.

A classe de pessoas brancas procurava formar uma nação que tinha como paradigma o mundo europeu. No entanto, ela se distanciava de tudo aquilo que poderia ser tido como ligado as tradições brasileiras.

A alienação passou a ser a condição mesma desta classe dominante, inconformada com seu mundo atrasado, que só mediocremente conseguia imitar o estrangeiro, e cega para os valores de sua terra e de sua gente. O mais grave é que esta alienação, tornando a classe dominante incapaz de ver e compreender a sociedade em que vivia, tornava seu componente erudito também inapto para propor um projeto nacional de desenvolvimento autônomo (Ribeiro, 1978, p. 144).

Em contrapartida, o mundo negro se filiava ao trabalho braçal, à servidão, às religiões pagãs com rituais tribais e arcaicos, a uma arte dominada pelo sentimento comunitário que nada poderia oferecer àquilo que se pretendia como paradigma de uma nação ou de um ideal maior.

Talvez, assim se explique que no século XX ainda persistiu essa visão. O samba, o carnaval, o futebol, por serem artes coletivas e passionais, são de domínio maioritariamente negro, enquanto que a literatura, a pintura de cavalete, a filosofia, são exemplos de atividades que são realizadas individualmente, precisam de um espírito crítico daqueles iniciados em uma cultura superior.

Sem antecedentes culturais fortes, a ideia de progresso, no Brasil, estava associada a um preceito exógeno fundamentado naquilo que o europeu moderno tomava como inovador e avançado. Assim, “o brasileiro comum se construiu como homem tábua rasa, ou seja, mais receptivo às inovações do progresso do que o camponês europeu tradicionalista, o índio comunitário ou o negro tribal” (Ribeiro, 1995, p. 249).

Os negros teriam a excelência do artesanato, da arte regionalista, seriam como artífices da época colonial, servos de alguma corporação, presos a uma arte de sobrevivência e de prática herdada pela tradição. Os brancos seriam os herdeiros da École de Beaux Arts, representantes da imagem da nação fundada a partir do translado da Família Real Portuguesa e capazes de realizar a Bela Arte. Darcy Ribeiro observa bem quando afirma que

[e]ssa camada senhorial constitui um círculo fechado de convívio eurocêntrico, que mais cultua a moda que seus próprios valores hauridos no acesso ao centro metropolitano, onde, bem ou mal, se faz herdeira da literatura, da música, das artes gráficas e plásticas, bem como outras formas eruditas de expressão de uma cultura que, apesar de alheia, passaria a ser sua própria (1995, p. 262).

Duas realidades distintas conviviam na mesma espacialidade, separadas por barreiras simbólicas. Quando um elemento de uma realidade adentrava em outra, acabava por ser impelido a assumir os valores que esta outra realidade impunha.

É importante também perceber que é próprio da cultura europeia formular um cabedal teórico e crítico acerca da arte. Desse modo, muitos dos estudiosos da herança africana, em terra brasileira, eram, ou ainda são, brancos. O francês Pierre Verger (1902-1996), o argentino Carybé (1911-1997), o brasileiro Alberto Vasconcellos da Costa e Silva (1931- ) são exemplos de grandes estudiosos da cultura e da história africana sem serem afro-descendentes. Mais preocupado com valores comunitários, sem a necessidade de formular princípios universais a partir de um entendimento individual da cultura e da história, o artista negro acaba por sentir a necessidade de criar uma arte mais sentimental e mais próxima das pessoas de seu mundo e de sua realidade.

4. Considerações finais

Caberia agora refletir quais seriam as possíveis heranças na Academia, ou seja, na atual Escola de Belas Artes (EBA) da Universidade do Brasil, da presença, ou melhor, da ausência do negro nas artes visuais na capital brasileira do século XIX.

Certamente muita coisa mudou de lá para cá em termos institucionais, conceituais, artísticos etc. A EBA teve um aumento sensível em seus quadros discentes da presença de negros e pardos, principalmente a partir da Lei das Cotas Raciais de 2012, tornando assim o universo de pessoas de origem africana, entre os alunos da instituição, bem maior que no século XIX. Por outro lado, em relação aos docentes, a Escola conta com pouquíssimos representantes. À exceção do recém inaugurado curso de Conservação e Restauro, há apenas um professor afro-descendente, em um universo de aproximadamente 140 docentes.

Ainda dentro das estatísticas da Universidade do Brasil, de que a EBA faz parte, esse número causa perplexidade, já que há entorno de 2% de negros e 8% de pardos de professores do quadro efetivo[7].

Se como afirma Xavier Greffe, a profissão de artista atrai mais os representantes das classes mais baixas do que das superiores, pois estes procuram mais profissões que propiciem mais segurança e prestígio profissional, como engenharia, medicina, direito, seria obviamente de se esperar que haveria mais artistas de poucos recursos do que o contrário. Porém, esses profissionais ainda continuam a ter grande dificuldade, ou pelo menos, baixo interesse em aceder aos quadros acadêmicos. Um estudo pormenorizado dessa causa certamente não caberia nesse espaço, mas vale ressaltar que passado mais de um século, a Academia continua a possuir um ensino ministrado por uma elite social e econômica, aos moldes do Brasil Império.

É ainda pertinente observar que das aproximadamente 400 disciplinas oferecidas pela EBA existe apenas uma dedicada à arte africana[8] e apenas uma outra que trata da questão da antropologia e sua relação com a arte[9].

Mesmo que a Academia, no decorrer de mais de cem anos, tenha criado vários outros cursos de graduação e de pós-graduação, aumentado enormemente o número de alunos, aderido ao sistema de cotas, que esteja a buscar uma formação plural e que procure incorporar a diversidade cultural, étnica, social etc. é fundamental que ela repense as suas propostas levando em conta que a tradição que incorpora é importante, mas que, ao mesmo tempo, deve haver um diálogo profundo com uma realidade que vem sendo obliterada há mais de duzentos anos. Se negros, escravos ou libertos, eram uma realidade que não queria ser incorporada à imagem da nação brasileira no século XIX, hoje eles são parte integrante e fundamental para a produção de uma nova imagem nacional sem estar atrelada a estereótipos. Repensar os seus respectivos papéis na época do império é possibilitar entender uma construção identitária que, em boa parte, perdura até os dias atuais. Superá-la significa repensar modelos de arte e de ensino que sejam críticos e inclusivos de uma pluralidade de formas e conceitos de arte e de cultura.


* Marcelo da Rocha Silveira é arquiteto e urbanista (FAU/UFRJ), mestre em Filosofia (IFCS/UFRJ), doutor em História, Teoria e Crítica da Arquitetura (ProArq/UFRJ). Professor Associado do Departamento de História e Teoria da Escola de Belas Artes/UFRJ. Autor do livro A cidade informal: arquitetura e projeto; co-autor do livro No centro do problema arquitetônico nacional, a modernidade e a arquitetura tradicional brasileira; organizador e autor do livro A cidade e o patrimônio, Ouro Preto, Paraty, Cataguases.

Referências

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DIWAN, Pietra. Raça Pura: uma história da eugenia no Brasil e no mundo. São Paulo: Contexto, 2007.

GREFFE, Xavier. Arte e mercado. São Paulo: Iluminuras: Itaú Cultural, 2013.

MARQUES, Luiz. “O século XIX, o advento da Academia das Belas Artes e o novo estatuto do artista negro”. In ARAÚJO, Emanoel (org.). A mão afro-brasileira. São Paulo: Tenege, 1988.

PEREIRA, Sônia Gomes. Arte, ensino e academia: estudos e ensaios sobre a Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Mauad, 2016.

PONTUAL, Roberto. Entre dois séculos: arte brasileira do século XX na coleção Gilberto Chateaubbriand. Rio de Janeiro: JB, 1987.

RIBEIRO, Darcy. Os brasileiros: I teoria do Brasil. 3ª ed. Petrópolis: Ed. Vozes, 1978.

RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a evolução e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

RODRIGUES, Raimudo Nina. As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil.  [online]. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisa Social, 2011, 95p. Disponível em <https://static.scielo.org/scielobooks/h53wj/pdf/rodrigues-9788579820755.pdf>. Acesso em :21 fev. 2019. Livro.

SCHWARCZ, Lilia M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

TEIXEIRA LEITE, José Roberto. Dicionário crítico da pintura no Brasil. Rio de Janeiro: Artlivre, 1988.

TEIXEIRA LEITE, José Roberto. “Negros, pardos e mulatos na pintura e na escultura brasileira do séc. XVIII”. In: ARAÚJO, Emanoel (Org.). A mão afro-brasileira. São Paulo: Tenege, 1988.

Notas

[1] Mais tarde essa Escola viria a se tornar Academia Imperial de Belas Artes (AIBA)

[2] Segundo o censo de 1872 — o primeiro do Brasil — a taxa de analfabetismo, para pessoas com idade igual ou superior a cinco anos, para o conjunto do país era de 82,3%. (https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/monografias/GEBIS%20-%20RJ/Recenseamento_do_Brazil_1872/Imperio%20do%20Brazil%201872.pdf)

[3] Segundo Censo de 1872, disponível em https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/monografias/GEBIS%20-%20RJ/Recenseamento_do_Brazil_1872/Imperio%20do%20Brazil%201872.pdf

[4] São eles, o escultor Manuel Chaves Pinheiro (1882-1844), e os pintores Leôncio da Costa Vieira (1852-1881), Horário Hora (1853-1890), Antônio Firmino Monteiro (1855-1888) e Rafael Pinto Bandeira (1863-1896).

[5] Mafra (1823-1908) entrou na Academia como discente em 1835, com apenas 12 anos. Foi professor de Pintura Histórica e de Desenho de Ornatos, lecionando entre 1854 e 1890.

[6] Com a República, a Academia Imperial de Belas Artes, passou a ser chamada de Escola Nacional de Belas Artes e mais tarde Escola de Belas Artes.

[7] Disponível em https://adufrj.org.br/noticia/apenas-2-dos-docentes-da-ufrj-se-declaram-negros/

[8] A disciplina de Arte Africana e Afro-brasileira.

[9] A disciplina de Arte e Antropologia.

dossiê
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A ORAÇÃO DO CARRASCO, O “PESSOAL MESMO” E O “OUTRO DA RAZÃO”

Resumo: A partir do que Gomes defende tratar-se “de uma luta semântica no interior da própria ciência” (2010, p. 510), proponho com este trabalho estabelecer interlocuções com base nas inquietações levantadas por intelectuais negras e negros em seus escritos, no tocante às diversas expressões identitárias, através dos contos do livro A oração do carrasco (2017). Em seu universo ficcional, o autor baiano Itamar Vieira Junior – recém-laureado com o Prêmio LeYa de Portugal com o seu primeiro romance, Torto arado (2019) –, evoca uma complexa rede de questões humanitárias que afeta intelectuais das humanidades, desde tempos remotos até o que se convém chamar, neste momento, de contemporaneidade. Esta escrita, portanto, se configura como um aprendizado, na tentativa de chegar a uma melhor compreensão de saberes outros, com os quais fui, sou confrontada e afetada diariamente. E por que não dizer, agora mais que nunca.

Palavras-chave: A oração do carrasco; intelectuais negras e negros; expressões identitárias.

Abstract: Considering what Gomes advocates as being “a semantic struggle in the interior of science itself – “de uma luta semântica no interior da própria ciência” (2010, p. 510) –, my aim with this writing is to entail interlocutions based on issues raised by black female and male intelectuals in their writing output, towards the diversity of cultural identities expressed in the book A oração do carrasco (2017). In his short stories fictional environment, the baiano writer Itamar Vieira Junior, who won recently the literary award LeYa (Portugal) for his first novel Torto arado (2019), brings to the contemporary debate a complex networking of human rights issues, which has been affecting Human Sciences thinkers since remote times. Therefore, this writing should function in terms of an awakening, a learning expecience, an attempt of achieving a greater awareness of some other knowledges and epistemologies, which I have been confronted with and daily affected by in the today-world, more than ever.

Keywords: A oração do carrasco; black female and male intelectuals; diversity of cultural identities.

Sobre esta escrita. De outras e outros

Entre outros tantos trabalhos e os desafios inerentes a cada um pessoal – e academicamente falando –, esta escrita resulta como avaliação final do componente curricular “Expressões Identitárias”, ministrado pela professora Dra. Florentina Souza do programa de Pós-graduação em Literatura e Cultura (PPGLitCult) da Universidade Federal da Bahia (UFBA), no período compreendido entre outubro de 2017 e fevereiro de 2018. Segundo orientações da própria professora o ensaio deve debruçar-se sobre “textos/obras de um escritor/a negro/a que se reporte a questões identitárias”.

Ainda sobre o tema, a professora reforçou que a este deve ser acrescido de “uma introdução com uma discussão sobre intelectual negro/a que será seguida da análise crítica do texto/obra selecionado que acione os textos das referências do curso” e que “a parte introdutória do trabalho discuta as proposições a respeito de intelectualidades negras apresentadas nos textos de West, hooks e Gomes”.

Assim sendo, proponho com este trabalho estabelecer interlocuções com base nas inquietações levantadas por intelectuais negras e negros em seus escritos, no tocante às expressões identitárias, a partir dos contos do livro “A oração do carrasco” (2017), do escritor negro baiano Itamar Vieira Junior.

Conforme Gomes (2010), a atuação acadêmica e política dos intelectuais negros, além de problematizar e tensionar questões pertinentes ao próprio campo científico, amplia o debate contemplando outras produções de saberes. Em outras palavras, ao problematizarem especificidades do debate étnico-racial, esses intelectuais comprometidos com sua luta, põem em pauta outras questões, a saber, de gênero, de sexualidade, de práticas religiosas, de idade, da relação campo/cidade, por exemplo (Gomes, 2010, p. 509-510).

É nesse sentido que busco aqui articular, sobretudo numa dimensão ética e estética, a relação da produção intelectual negra com as diversas alteridades que, violentamente invisibilizadas pelos mecanismos do poder hegemônico branco, reinam com dor e vigor nos contos de Itamar. Embora seja esse, digamos, o mote deste trabalho, gostaria de iniciar essa introdução, portanto, me valendo da conduta da própria professora que nos assinalou essa tarefa, por ser ela mesma um exemplo daquilo que nos propôs. Já me utilizando da discussão empreendida por bell hooks sobre o que seria uma intelectual negra em seu ensaio “Intelectuais negras” (1995), testemunho, como aluna do acima mencionado componente curricular, que Florentina Souza é, ela própria, uma professora negra e uma intelectual negra. Professora ou docente, pois este é o cargo que ocupa na academia, com a recente conquista do mais alto grau da carreira acadêmica, o título de professora titular, com atuações nos vários setores da Universidade Federal da Bahia, notadamente nos cursos da graduação e pós-graduação do Instituto de Letras (Ilufba). Intelectual orgânica (nos termos gramscianos, eu diria), pela forma engajada e academicamente sólida com que exerce seu ativismo lutando, dentro e para além dos muros da academia, em defesa das causas que afligem quotidianamente a população negra, sobretudo a brasileira, com destaque para a comunidade mais próxima ao seu local de fala, o Estado da Bahia, e em particular a cidade de Salvador.

Florentina é incontestavelmente uma mulher negra, pelo que deixa ver como pele e como postura de vida, seja nas delícias e/ou nas dores da vida pessoal e intelectual. Em sala de aula discutiu e debateu com argúcia e sabedoria a complexidade da intelectualidade de negras e negros por meio de textos seminais, bem como do “outro da razão”, para empregar o termo de Castro-Gómez, utilizado por Gomes para se referir aos “diferentes”, quais sejam, o louco, o índio, o negro, o desadaptado, o preso, o homossexual, o indigente (2010, p. 502-503). Dentre as diversas expressões identitárias, a questão da mulher negra e o exercício de sua intelectualidade ganhou vulto durante as discussões, fosse através da militância da própria professora ou das falas engajadas do número expressivo – digo expressivo para aquele contexto específico de sala de aula – de alunas negras que participavam ativamente dos debates, numa interpolação de seus conhecimentos teóricos com aqueles de suas subjetividades, vivências dolorosas e/ou potentes, cravadas e carregadas na negritude de suas peles.

Diante desse último aspecto, ou seja, a condição de mulher negra intelectual, considero oportuno trazer novamente a voz de hooks, a qual critica a negligência de Cornel West em seu ensaio “O dilema do intelectual negro” (1999), em não dar visibilidade ao trabalho intelectual da mulher negra em um momento histórico de grande efervescência  das discussões de gênero à época. Quanto a isso, ela se manifesta:

Quando eruditos negros escrevem sobre a vida intelectual negra em geral, só focalizam as vidas e obras de homens. […] Apesar do testemunho histórico de que as negras sempre desempenharam um papel importante como professoras, pensadoras críticas e teóricas na vida negra em particular nas comunidades negras segregadas, muito pouco se escreveu sobre intelectuais negras. Quando a maioria dos negros pensa em grandes mestres quase sempre invoca imagens masculinas (hooks, 1995, p. 466-467).

No que tange aos modelos epistemológicos discutidos por West no ensaio acima citado – os modelos burguês, marxista, foucaultiano e o insurgente –, hooks exalta este último como alternativa futura para a prática intelectual no ativismo afro-americano. O modelo insurgente define como prioridade “a criação ou a reativação das redes institucionais que promovam hábitos críticos de alta qualidade para propósitos, primeiramente de insurgência negra” (West, 1999, p. 13). Entretanto, na ampliação do debate, hooks enfatiza que tal modelo deve, não só, mas sobretudo, abranger também intelectuais negras e negros que estejam à margem da academia (hooks, 1995, p. 475). Dando prosseguimento ao seu pensamento insurgente, West defende que os intelectuais negros (assim mesmo, relativo aos homens) pós-modernos têm como tarefa central promover o deslocamento do poder sobre o conhecimento através de práticas discursivas outras, que não as dominantes: “Isso pode ser feito somente por um trabalho intelectual intenso e por uma prática insurgente e engajada” conclui ele. (West, 1999, p. 13).

Voltando à nossa realidade acadêmica na UFBA, combativamente ao lado da professora Florentina, destaco também o ativismo, a militância e a liderança da professora doutora e intelectual negra Denise Carrascosa, na luta em dar visibilidade e disseminar o trabalho de possíveis intelectuais negros e, sobretudo, negras dentro e fora da academia. A convivência com ambas na condição de aluna este semestre e com minhas/meus colegas negras/os me fez entrar em contato com minhas pontuais ignorâncias e a me aproximar de um universo de escritas literárias e não literárias de intelectuais e/ou escritoras/es negras ou negros. Para situar algumas e alguns “vivos e bulindo” próximos, cito a escritora e doutoranda Cidinha Silva, a professora doutora Lívia Natália e a tradutora e doutoranda Luciana Reis, que se destacam, respectivamente, não apenas, mas sobretudo, no campo da crônica (do tipo denúncia, ouso dizer), da poesia e nos estudos de tradução afrodiaspóricas. Entre os negros intelectuais, tive o prazer de ouvir em diferentes ocasiões, Dr. Samuel Vida, jurista e professor da UFBA, Dr. Eduardo Oliveira, filósofo e professor da UFBA e Itamar Vieira Júnior, escritor e doutor em Estudos Étnicos e Africanos, pela mesma instituição.

Posso afirmar que suas contribuições, sejam de natureza epistemológica e/ou artística, rasuram[1] o conhecimento monolítico naturalizado, dito neutro e objetivo, e o desloca para o campo das subjetividades, da diversidade epistêmica, na luta pela construção de novos saberes e práticas mais justas e dignas de coexistência entre as diversas expressões identitárias.

Nesse processo de estabelecer diálogos possíveis entre as diferenças, Gomes (2010) apoia-se no pensamento de Santos e propõe sua “ecologia de saberes” como um caminho a ser trilhado. A ecologia dos saberes, nos termos de Santos, é um conjunto de epistemologias contra-hegemônicas, cujos pressupostos baseiam-se na diversidade e na busca por legitimação dessa diversidade epistemológica no campo científico. Gomes destaca seu caráter incompleto, contextual, portanto, investido (não-neutro) politicamente, socialmente e culturalmente falando (2010, p. 493).

Diante do exposto, concluo esta introdução oportunamente, ressaltando a ênfase dada sobretudo por parte de minhas professoras intelectuais negras em suas práticas, no sentido da não hierarquização de epistemes e a atenção para com sua potencial hegemonia. Segundo Gomes, o engajamento do intelectual negro brasileiro, dentro e fora do campo científico, deve “ampliar ao máximo a inconsistência das análises sobre a identidade negra, inclusive aquelas que são produzidas pelos próprios intelectuais negros” (2010, p. 514). Pelo que ela conclui, em seguida, esse deve ser o maior desafio encarado pelas intelectuais negras e negros, na busca por compreender a complexa rede que emaranha identidades e diferenças nos diversos grupos étnico-raciais.

Máscaras expostas na Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia/UFBA. Salvador – Bahia, 2018
Máscaras expostas na Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia/UFBA. Salvador – Bahia, 2018
Fonte: foto da autora

Sobre alguns desafios. De mim

E eu, quem sou? A qual desafio me refiro em relação a este trabalho? Sou paraibana de Campina Grande, crescida em João Pessoa, nordestina portanto, a terceira filha de um total de seis, sendo uma irmã e quatro irmãos, a primeira menina depois de dois meninos, de um casal modesto. Ela, a mãe, cultivada para ser dona de casa, oriunda de mais uma família campinense, estudou até o ginásio. Ele, o pai, desterritorializado da área rural do município de Sapé, formado como técnico em Contabilidade na capital. De ambos herdei, entre outros traços, a pele ostensivamente não negra.

Traduzindo o desafio, a partir do que aqui coloco e como me coloco, ressalto dois movimentos:

– Reside nesse privilégio histórico e social, de ter nascido branca temperada em uma sociedade patriarcal e racista, o desafio de tratar de questões étnico-raciais que me dizem respeito, que nos dizem respeito, porém que não me atravessaram a pele via fenótipo negro;

– Reside na desvantagem histórica e social de ser mulher e nordestina, a vantagem de poder me aproximar um pouco de alguns lugares de exclusão, ainda que ciente esteja de que ser uma mulher de pele branca e que teve acesso à educação formal, já se trata de um grande privilégio nesse país – o que não deveria.

No entanto, reside também, em algum espaço entre esses dois movimentos, a convicção de que, apesar de ocupar este lugar no mundo, podemos tratar da tarefa à qual nos foi designada com este trabalho, qual seja, debruçar-se sobre questões identitárias através do pensamento intelectual negro. Não que isso tenha sido inviabilizado ou desencorajado nos nossos encontros em sala de aula. Pelo contrário. No entanto, havia uma tônica sobre o lugar de fala que nos punha em um lugar de constante reflexão e vigilância, que vinha das falas teóricas e dos testemunhos vivenciais de nossos colegas e professoras e que, às vezes, por que não dizer, nos punham sob suspeita, uma vez que a experiência de estar no mundo de parte de nós não era atravessada pela cor da pele negra ou por outras questões identitárias, outras subjetividades e sociabilidades, que afetavam mais diretamente uns que outros.

É exatamente por ocupar esse espaço de privilégio e pela oportunidade que tive junto às minhas/meus colegas e professoras de tensionar conflitos que cercam as questões identitárias, que senti a necessidade de expor com honestidade a minha condição. Pensando nisso, me reporto agora aos instrumentais metodológicos e nas categorias de análise de tradição ocidental, enfrentadas pelos negros e, sobretudo pelas negras, no exercício de sua intelectualidade.

Gomes afirma tratar-se, portanto, “de uma luta semântica no interior da própria ciência”, pois o desafio é fomentar uma produção de conhecimento protagonizada pela/o negra/o, e não sobre ela/ele (p. 510). Trata-se, portanto, da mudança de paradigma que é deixar de ser objeto e passar a ser o sujeito de sua própria produção intelectual.

Todas as acadêmicas e acadêmicos aqui citados perseguem o mesmo objetivo de problematizar o espaço de produção acadêmica, deslocando-o do seu eixo hegemônico de conhecimento e saberes da branquitude, a fim de viabilizar a ressemantização de discursos que promovam lugares para as diferentes identidades e a circulação de seus saberes, culturas, conhecimentos, estéticas. Sobre isso, Gomes reúne os seguintes questionamentos:

[…] quais são as possibilidades e perspectivas reais da universidade, enquanto espaço acadêmico, vir a desempenhar o papel de instituição capaz de articular os saberes oriundos e outras tradições e universos sociorraciais, sem hierarquias e discriminações (Abib, 2005)? A universidade e sua estrutura organizacional, curricular e de poder nos permite isso? Ela é capaz de se redefinir por dentro? (2010, p. 511).

É em meio a essas considerações até aqui feitas que esta escrita se configura como um aprendizado, um exercício, que tem como ponto de partida o reconhecimento de minhas limitações, de minhas ignorâncias, na tentativa de chegar a uma melhor compreensão de saberes outros, os quais não me atravessam diretamente, porém, com os quais fui e sou confrontada e afetada diariamente.  E, por que não dizer, agora mais do que nunca.

Isso posto, é a partir desses movimentos, ora como quem se encontra meio dentro estando fora e/ou ora meio fora estando dentro, que busco articular as reflexões feitas por intelectuais negras e negros aqui mencionados a partir dos contos que compõem o livro A oração do carrasco (2017), do escritor baiano Itamar Vieira Junior.

A oração do carrasco e as expressões identitárias

O escritor Itamar Vieira Júnior, nascido em 1979 na cidade de Salvador, Bahia, é geógrafo e doutor em Estudos Étnicos e Africanos pela Universidade Federal da Bahia. Seu livro A oração do carrasco foi selecionado pelo edital de Literatura da Fundação Cultural do Estado da Bahia (FUNCEB) 2016, além de ter recebido menção honrosa no edital de Criação Literária em São Bernardo do Campo, São Paulo. O livro é composto por sete contos, obedecendo à seguinte ordem: “Alma”, “A floresta do adeus”, “A oração do carrasco”, “O espírito aboni das coisas”, “Meu mar (Fé)”, “Doramar ou A Odisseia” e o “Manto da Apresentação”. Como se pode notar, os títulos de seus contos já deixam entrever ou sugerir marcas de sua formação acadêmica, bem como de elementos que sugerem vivências pessoais em seu lugar de origem.

Por meio de suas narrativas potentes e poéticas, personagens e contextos vão ganhando contornos e camadas que permitem estabelecer relações com as diversas expressões identitárias, foco desta escrita. As/os personagens de seus contos – mulheres negras escravas/escravizadas, homens negros, empregadas domésticas, indígenas, loucos, prisioneiros, clandestinos, ilegais – protagonizam, em sua maioria, a condição do não-lugar, da marginalização. As narrativas se situam em espaços urbanos (cidade, apartamento da patroa), urbanos periféricos (favela, cais, maré da baía), rurais (casa grande, roça, mato, mata, uma floresta), ou ainda no que se cabe chamar de um não(entre)lugar (uma instituição psiquiátrica, uma embarcação no meio do mar, uma fuga).

Suas/seus personagens com suas dores, sofrimentos e angústias são o “outro da razão”. Com integridade e força insubmissa, legitimam suas existências ante as condições mais adversas e indignas dentro de uma sociedade racista, sexista, opressora e excludente. Em seu universo ficcional, Itamar evoca uma complexa rede de questões humanitárias, que afetam intelectuais das humanidades, desde tempos remotos até o que se convém chamar, nesse momento, de contemporaneidade.

Insurgência

Em “Alma”, o primeiro conto do livro, a protagonista é uma mulher negra escrava/escravizada que se liberta do poder de seus algozes, senhores e senhoras brancos da casa grande, empreendendo, sozinha, uma fuga fenomenal. Sobrevivente, após caminhar por muitas luas cheias em busca de sua liberdade, enfim ela chega a um lugar sem cercas onde faz sua morada. Numa sucessão de acontecimentos, Alma, outra vez fortalecida, arranja um companheiro, pare seus filhos e vive da terra com dignidade. Aos poucos, outros irmãos insurgentes como ela vêm de longe e fundam uma comunidade. O final da narrativa revela sua força e segredos de sua ancestralidade como a base de sua insurgência.

[…] eu, uma mulher, uma alma, que lutava todas as horas e da primeira vez quando levaram um filho urrei de tristeza, como uma cadela, meus filhos arrancados como uma ninhada de cães, um a um, foram retirando de mim, um a um foi sendo retirado, eu que agora caminho para a frente, lembro-me de todas essas coisas que doem mais que as feridas abertas de meus pés e do couro do meu cabelo, eu, essa mulher que anda pela mata como se bicho fosse, e que um dia disseram que eu tinha alma, e por isso me chamaram de Alma, “e toda alma reside em um corpo”, rezava minha senhora, e eu, se era uma alma, era  posse daqueles senhores, minha morada era o fundo de sua casa branca, era meu corpo [….] (Vieira Junior, 2017, p. 19).

Fronteiras

A “floresta do adeus” é uma narrativa que mais se assemelha a uma distopia. A floresta submetida a um regime totalitário é um espaço rigorosamente controlado por uma organização militar, cujos limites não podem ser ultrapassados sob pena de soldados armados abrirem fogo. Separados por uma cerca de arame farpado, Luís e Rosa se encontram em lados opostos e revelam o sofrimento causado pela separação forçada e de terem seus desejos amorosos reprimidos. A situação dramática cresce aos olhos do leitor através de seus relatos e de seus familiares: irmãs e irmãos, tias e tios, sobrinhas e sobrinhos, primas e primos, entre outros.

Eu me posto na margem da estrada onde está estabelecido o limite e aguardo, mirando a floresta, com o coração incerto de que eles conseguiriam vir conforme combinamos no último encontro. O barulho do vento, incansável, abafa os sons que espero das pegadas quebrando gravetos secos compactando as folhas caídas de tanto adeus. Uma sombra ao longe surge e logo se divide em duas, três, quatro, cinco, com suas roupas coloridas, as tias idosas com lenços na cabeça, a prima com um lenço florido em volta dos cabelos soltos, o tio com bigode  grisalho e a boina velha que usa desde que eu era criança (p. 48).

Recrudescimento

No conto “A oração do carrasco”, que intitula o livro, o personagem central é um pai de família – num semiárido esquecido qualquer –, cujo ganha-pão é a profissão de carrasco. Seu ofício deve ser passado adiante ao filho mais velho, obedecendo à linhagem dos homens da família. A reviravolta se dá quando esse primogênito desaparece aos dezessete anos, como “inimigo do Estado”, supostamente por ter entrado em contato com ideias subversivas em reuniões clandestinas com camponeses a favor da reforma agrária. Em nota, o autor explica que, embora o conto seja ficcional, traços biográficos de personagens icônicos de nossa história foram utilizados sem, no entanto, fazer referências a nomes.

Seu bisavô e avô foram carrascos. Seu pai também. Ele, que lhe deu o machado na última manhã de uma estiagem de quatro anos, para depois vir a chuva, e paradoxalmente a fome, empenhou-se para que o filho, o primogênito, honrasse a linhagem de carrascos à qual pertencia. Seu avô foi a figura mais importante da família, e certamente um herói anônimo de seu país: foi o executor da sentença de morte do ditador que governou por 30 anos, quando o filho carrasco ainda não havia nascido. Não se livraram dos ditadores, que se alternavam nos governos, muito menos de seus interesses, mas o tempo e os conflitos os ensinaram a serem parcimoniosos com a vida (p. 75).

“pessoal mesmo”[2]

No conto “O espírito aboni das coisas”, o indígena Tokowisa deixa a aldeia seguindo instruções de um velho xamã em busca de uma palmeira de abatosi para curar a sua mulher doente. O conto, na sua forma e ritmo narrativos, se assemelha a uma lenda indígena, como se contada por alguém do próprio grupo étnico. Segundo nota do próprio autor, foram utilizadas palavras da língua jarawara, uma das muitas etnias indígenas do Brasil, explicitando desse modo, a pesquisa empreendida e criteriosa ao se aproximar esteticamente de outros falares, pertencimentos e ancestralidades. A fonte para o vocabulário utilizado no conto foi o Dicionário Jarawara – Português, do linguista Alan Vogel.

Tokowisa é um homem que sobe o rio faha com sua canoa. Os guerreiros de seu povo não estão ao seu lado, mas Tokowisa tem o mundo: a terra wami, a água faha e o céu neme. Tokowisa pode falar com a pedra yati quando desce da canoa. Pode falar com o boto e ouvir sua resposta. Pode falar com os espíritos aboni do céu neme. Com o espírito aboni das árvores. Tokowisa carrega o mundo em seu coração ati boti. Yanici está em seu ati boti. Os seus filhos também. Tokowisa ouve estrondos que parecem com o som da madeira que cospe fogo dos homens brancos. Estão matando o espírito aboni das coisas, pensa. Tokowisa pode sentir clarões de luz vindo do interior da floresta. Tokowisa disse para o xamã que as árvores tremem de medo dos homens brancos que devoram a floresta (p. 101).

Clandestinidade

Em “Meu mar (Fé)” a narrativa é contada em primeira pessoa por uma mulher, que nos lança ao mar de um lado a outro do Atlântico, numa remissão a movimentos semelhantes aos afro-diaspóricos. São personagens “à deriva” entre Baraka (uma favela superpopulosa na capital senegalesa de Dakar), o porto da Bahia, a América, São Paulo, o Brasil e o Haiti, por exemplo. Essas referências nos remetem irremediavelmente ao período da escravização dos cidadãos negros arrancados violentamente de suas terras e famílias e embarcados em navios para a América, ou ainda, na contemporaneidade, aos fluxos migratórios de cidadãos negros e não-negros tornados clandestinos confinados em contêineres dentro de navios de carga ou em botes de borracha, em busca de uma vida digna ao redor do globo.

Vendemos a casa que habitávamos, a outra casa que herdamos de seu pai e rendia o parco para nos saciar a fome, para pagar a travessia até o porto da Bahia. Desembarcaríamos depois de muitos dias sem ver a terra e com a memória dos muito poucos fios de luz que nos chegavam ao longo da viagem.  No contêiner, éramos seis pessoas, jovens, cinco homens e somente eu, mulher, que conhecemos o inferno da travessia. O alimento terminou antes de nossa chegada, o calor sufocante nos enchia de cansaço e mal-estar. Havia um medo de que fôssemos descobertos, havia o balanço da pesada embarcação no mar aberto, quebrando ondas, havia o perfume nauseante da maresia. Você segurou minha mão diversas vezes com muita força. Era uma travessia dolorosa, carregada de angústias E temores. Deixávamos nosso país para trás, sem a esperança de voltar em breve (p. 108).

“Como se fosse da família”

Doramar protagoniza o conto através de sua voz e memórias que se confundem entre o tempo da infância, em que era menina livre, moradora da favela da maré da baía; a mocidade marcada pelos sorrisos, brincadeiras e a volta clandestina no Puma amarelo (roubado) de Pito e a passagem do tempo, cujo anúncio vem na forma de cabelos brancos, lapsos de memória e pés cansados. Mecanizada pelo trabalho doméstico dedicado à mesma família há 20 anos, o despertar de Doramar é provocado por um incômodo encontro ao final da tarde de mais um exaustivo dia de trabalho: um cão moribundo, fétido, apodrecendo nas dependências do prédio dos  patrões, sacode-a para sua própria vida (conforme nota do próprio autor, o conto “Doramar ou A odisseia”, faz uma breve referência à crônica “Mineirinho”, de Clarice Lispector).

Minha cabeça coça, o mar cheio invade minha cabeça, é o som da maré, a dona pediu para comprar o peixe, vou para o fundo de casa, nas palafitas, para buscar o peixe na maré que não vai embora, olho para o céu que é o teto branco da casa de meus patrões: “Deus, onde está a sacola?” A sacola está bem acima de meus olhos, pendurada no varal, coçando minha cabeça. Volto para a porta e o cão me olha, eu olho para a fome do cão, então abro a geladeira e tem sobras do jantar, agacho próxima ao seu prato e despejo, o que tem dentro com as minhas mãos, o cão lambe meus dedos, lambe meu nariz, eu limpo os dedos na minha roupa, mas não sei se esse gesto salvará a sua vida. Fecho a porta, minha mãe não me pediria que fechasse a porta, porque lá quando era menina éramos livres e agora eu sirvo meus patrões que não me dão descanso. Olham para mim e dizem para os convidados que sou “como se fosse da família” e nada posso dizer (p. 146-147).

Tecelão do Mundo

O “Manto da Apresentação”, o último conto do livro, é narrado por uma voz feminina negra, a mãe de um Jesus filho negro a quem é dado a chance e o poder de refundar o mundo em sete anos de trabalho. A voz maternal que fala com Jesus filho sobre sua tarefa de reconstrução do mundo diz-lhe que ele deverá estar apropriadamente vestido para a ocasião. Em sua missão, ela o orienta a não usar as roupas rotas da colônia, uma menção à instituição psiquiátrica, na qual foi interditado como esquizofrênico. Segundo a voz, ele deveria portar um manto divino, nobre e delicado, tecido e bordado por ele mesmo, com a sensibilidade de sua arte. Quem estiver minimamente familiarizado com a história de Arthur Bispo do Rosário, logo é capaz de estabelecer conexões entre ele e o personagem Jesus filho.

Segundo a escritora e pesquisadora Luciana Hidalgo, no artigo “As artes de Arthur Bispo do Rosário” (2009) sobre o artista plástico sergipano, em sua ficha no manicômio podia-se ler “negro, sem documentos, indigente”. O manto da apresentação que seria usado no dia do Juízo Final, era uma espécie de vestimenta semelhante a uma mortalha, confeccionada por ele mesmo com objetos de naturezas e formatos diversos.

Conforme nota do autor Itamar Vieira Junior, o conto traz elementos biográficos do artista plástico, baseados sobretudo na dissertação Manto da Apresentação: Arthur Bispo do Rosário em diálogo com Deus, de Alda Moura Macedo.

[…] são tuas mãos generosas e hábeis que tecem este novo mundo para maravilhar o homem, as mãos que fazem o pão, deves também bordar o globo terrestre, para que saibam por onde caminhamos,  o seu interior deverá carregar algo muito precioso porque nele estarão os nomes dos eleitos, que sejam louvadas as mulheres que subirão para sua morada, jesus filho, as mulheres que serão arrebatadas, porque em suas dores se fizeram maiores que os homens, com seu senso de humanidade interromperam guerras, sofreram dores, atravessaram desertos, viveram  odisseias, transpuseram muros e cercas, forjaram a liberdade das entranhas do seu ventre,  nadaram por oceanos, elas que terão seus nomes escritos no interior do manto que vestirás para o dia da  fúria ida glória […] (p. 161).

Detalhe da Gaia Mother Tree (2018), obra do artista plástico Ernesto Neto. Estação Central de Zurique - Suíça, 2018.
Detalhe da Gaia Mother Tree (2018), obra do artista plástico Ernesto Neto. Estação Central de Zurique – Suíça, 2018. / Fonte: foto da autora

Arrematando as pontas de tudo até aqui dito, pode-se perceber que a A oração do carrasco, como o título mesmo já anuncia, não é um livro para melindres. É um livro que tem como fio condutor os cataclismos humanos causados pelo poder hegemônico branco e seus mecanismos de opressão que se abatem sobre uma sociedade de classes, em que o racismo se traduz como uma de suas formas mais perversas e violentas. Todos os sete contos dão visibilidade a figuras humanas subalternizadas ao longo da História, dentro da lógica de um sistema hierarquizante e racista, sem que tampouco sejam resignadas ou vencidas. São identidades em estado de vulnerabilidade, – mulheres negras, homens negros, crianças negras, indígenas, pobres, favelados, mães, empregadas domésticas e até animais doentes abandonados – contudo, numa luta aguerrida pela sobrevivência e garantia de seus direitos na construção de suas identidades.

Considerando a potência dos contos de Itamar Vieira Junior no contexto acadêmico, é como se eles traduzissem do ponto de vista ético e estético, o conjunto de epistemes defendidos pelas diversas/os intelectuais negras e negros mencionados nessa escrita. O fazer literário de Itamar, enquanto escritor e intelectual negro, se revela comprometido e engajado, através de uma riqueza de outros saberes e sabedorias “da memória, da oralidade, da ancestralidade, da ritualidade, da temporalidade, da corporeidade”, conforme Gomes (2010, p. 510)

Por essas e outras, creio não ser nenhum exagero afirmar que o escritor Itamar é um autor contemporâneo, tal como postulado por Agamben (2013). Ele é intempestivo na forma como projeta as temporalidades em seus contos ficcionais: adere ao seu tempo histórico e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias. É essa condição que o habilita, de forma extra-ordinária, a perceber e apreender o seu tempo. Na célebre imagem de Walter Benjamin, seus contos “escovam a história a contrapelo” (Löwy, 2002).

Comparativamente, se considerarmos o pensamento de Édouard Glissant, a literatura de Itamar, neste caso, nos oferece a possibilidade de uma abordagem “crioulizada”, no sentido de que seu imaginário destrona a ideia de identidade como “raiz única, fixa e intolerante” (2005, p. 80) para se espraiar rizomaticamente exuberante em busca de outras raízes. É a literatura do imaginário do sendo e não de ser, para a qual Glissant apela: “(…) o imaginário do sendo, de todos os sendos possíveis do mundo, de todos os existentes possíveis do mundo” (p. 81)

Podemos dizer ainda dessa relação que os contos de Itamar atendem à noção de rastro/resíduo, o que supõe em si a incompletude, a divagação, a impermanência. A seguinte citação traduz com propriedade esse fenômeno:

Não seguimos o rastro/resíduo para desembocar em confortáveis caminhos; ele devota-se à sua verdade que é a de explodir, de desagregar em tudo a sedutora norma. Os africanos, vítimas do tráfico para as Américas, transportaram consigo para além da Imensidão das Águas o rastro/ resíduo os seus deuses, de seus costumes, de suas linguagens (Glissant, 2005, p. 83-84).

Itamar transporta de si para sua escrita o rastro/resíduo de seu povo, o “pessoal mesmo”.

A citação acima pode, com efeito, desembocar na reflexão de Stuart Hall (2000) sobre a identificação, como sendo um processo de articulação, que traz em si intervalos, faltas, mas nunca uma completude. Sujeita ao “jogo” da différance (o “mesmo”/ o “outro”), a identificação, como em geral ocorre nos processos de significação, se constitui enquanto trabalho discursivo, abrindo brechas para a produção do que ele vai designar de “efeitos de fronteiras” (Hall, 2000, p. 106). Na minha leitura, essas seriam demarcações de fronteiras simbólicas, cujas aberturas e fechamentos se encontrariam a serviço do poder vigente.

Hall conclui que, na consolidação desse processo, a identificação vai requerer justamente aquilo que é deixado de fora e que lhe é parte constitutiva: o exterior. Justo aí, nesse deixar de fora o que lhe é de dentro, se instala seu caráter desagregador, desconfortável, no qual a literatura de Itamar se inscreve por meio da relação – e não da exclusão – com outras culturas, sejam estas aquelas que nos cercam mais imediatamente no nosso convívio diário, ou as tantas outras além-mares, além-ancestralidades. Seu livro bem pode representar um clamor por atitudes literárias corajosas e criativas, no tratamento dado à construção e visibilidade de novos sujeitos, novas subjetividades e possibilidades de relações sociais, como forma de contribuir para o combate ao epistemicídio (evocando Santos, segundo Gomes).

É nesse sentido que compreendo o debate aqui engendrado através do pensamento das/os diversas/os teóricas/os negras/os aqui citados, quer no campo acadêmico – e por que não dizer?  – como também no ficcional-estético. É nesse sentido que compreendo a potência e beleza da contribuição artístico-literária de Itamar Vieira Junior para essa contemporaneidade.


* Rosilma Diniz Araújo Bühler é professora do Departamento de Letras Estrangeiras Modernas (DLEM) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), em João Pessoa. Atualmente, encontra-se doutoranda na área de Estudos da Tradução, do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura (PPGLitCult), Universidade Federal da Bahia (UFBA), em Salvador.

Referências

AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo. In: AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo e outros ensaios. Trad. Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2013. p. 55-73

GLISSANT. Édouard. Cultura e identidade. In: GLISSANT. Édouard. Introdução a uma poética da diversidade. Trad. Eunice do Carmo Albergaria Rocha. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2005. p. 71- 95

GOMES, Nilma Lino. Intelectuais negros e produção do conhecimento: algumas reflexões sobre realidade brasileira. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (Orgs.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010.

HALL, Stuart. Quem precisa da identidade?. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.); HALL, Stuart; WOODWARD, Kathryn. In:. Identidade e diferença. A perspectiva dos estudos culturais. Trad. Tomaz Tadeu da Silva. Petrópolis: Editora Vozes, [1996] 2000. p. 103-133.

HIDALGO, Luciana. As artes de Arthur Bispo do Rosário. In: Mente Cérebro. 2009. Disponível em:<www2.uol.com.br> Acesso em: 11 abr. 2018.

HOOKS, bell. Intelectuais negras. Estudos feministas. Trad. Marcos Santaritta. Florianópolis, v. 3, n.2, p. 464-478, 2º semestre 1995.

JUNIOR, Itamar Vieira. A oração do carrasco. Itabuna, BA: Mondrongo, 2017.

LÖWY, Michael. A filosofia da história de Walter Benjamin. São Paulo, 2002. Disponível em:<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142002000200013> Acesso em: 10 abr. 2018.

WEST, Cornel. The dilema of the Black Intelectual. In: The Cornel West: reader. Basic Civitas Books. Trad. Braulino Pereira de Santana, Guacira Cavalcante e Marcos Aurélio Souza. 1999. p. 302-315.

Notas

[1] O conceito vem usualmente na forma de “sob rasura” e é corrente a esse processo. É atribuído ao intelectual afrodiaspórico Stuart Hall em seus estudos sobre identidades, e aqui me reporto mais especificamente ao artigo “Quem precisa de identidade?” (2000).

[2] pessoal mesmo: “e yokana” é a forma como os povos indígenas Jarawara, Jarauara, Yarawara ou ainda Jaruará se autodenominam. Segundo o linguista Alan Vogel (2006), “e yokana“ significa literalmente “pessoas de verdade”. Contudo, esses povos indígenas traduzem o termo por “pessoal mesmo“. Jarawara, nome e localização. Disponível em:< https://pib.socioambiental.org/pt/povo/jarawara/615> Acesso em: 09 abr. 2018.

dossiê
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APANHAR PANCADA: RESQUÍCIOS DE ESCRAVIDÃO

Resumo: Este texto busca resquícios de escravidão em cenas do cotidiano: um comercial de perfume; um comercial de Natal; um patrão que dá bananas aos empregados no Dia da Consciência Negra; um ladrão que é acorrentado a poste e submetido a linchamento público; uma advogada algemada, presa e humilhada em pleno exercício da profissão; um guarda-chuva confundido com fuzil, e mais um jovem fuzilado.

Palavras-chave: escravidão; cotidiano; faits-divers.

Abstract: This article looks for remnants of slavery in daily scenes: a perfume comercial; a Christmas comercial; a boss that gives bananas to a employee in Black Conscience Day; a burgler tied up to a post and submmited to public lynching; a lawyer on handcuffs, arrested and humilliated in her duties; confusing an umbrela with a rifle, and another Young man is shot.

Keywords: slavery; daily; faits-divers.

1

Um quase adolescente aluno negro, em meio à atividade corriqueira de classe, questionava, com alguma ponta de ressentimento, que não entendia o motivo de ter nascido com aquele tom de pele. O que pude contestar, em contrapartida, e a título de (des)consolo pedagógico, é que muitos, dentro de nossa controversa sociedade, inclusive em idade adulta – fossem negros ou não –, também ainda não haviam se inteirado efetivamente dessa questão. De pele.

Uma pergunta inicial, então, logo se impunha: seria possível – no contexto racial, como o brasileiro – se vivenciar a experiência, o sentimento da discriminação e da inadequação à própria cor sem pertencer à etnia subjugada?

Em outras palavras – e retomando o mote inicial: um quase adolescente aluno considerado branco, ou quase branco[1] faria similar questionamento ressentido a seu mestre em classe?

Essas perguntas costumam remeter ao momento inaugural das concepções de Homem e cidadão. E, consequentemente, da identidade moderna.

Lembremos que a sinonímia entre os conceitos de negro e raça passaria a ganhar vulto no imaginário da Europa ilustrada paralelamente ao discurso em torno dos valores constituintes da humanidade e da cidadania – narrativa da qual, aliás, o elemento negro sempre estivera de fora. Desde a fonte.

Outrossim, dentro dos valores da razão, disseminavam-se teorias raciais que separavam, em contrapartida, Homens e cidadãos. Por raças.

Tais teses legariam aos séculos posteriores complexos padrões de (des)igualdade, a partir dos quais, por fim, uns tornar-se-iam mais cidadãos do que outros – e outros menos humanos do que uns. Na sucessão discriminatória, pode-se somar, então, à distinção por raças – ranço da antiga era mercantil –, a divisão por classe – fruto da era nova industrial.

A razão iluminada – a mesma que idealizou o capitalismo comercial, formatou o colonialismo europeu, e trouxe em seu ventre a escravidão negra –, inauguraria também a ideia da mercadoria humana. Neste sentido, a teoria da cor de pele inferior tanto serviu para confirmar teses raciais, quanto para fragmentar ao limite o autoentendimento de etnias inteiras: sua identidade, enfim.

Rebaixado, pois, em sua condição humana e intelectual, e rejeitado socialmente, o elemento negro seguiria, desde então, excluído de todos os paradigmas razoáveis projetados pelo sonho da ilustração.

Logo, na lógica do mercado, o negro, tornado mercadoria, passaria também a ter o seu valor. De troca.

Não bastasse toda a escravização de humanos historicamente sempre estar vinculada à violência e ao subjugo, a modalidade negra viria ainda a fundar no imaginário das relações humanas o sentimento – com permanência no tempo – do preconceito racial.

Talvez seja esse caminho – o da identidade – o início da trilha para se entender melhor o drama da inadequação daquele quase adolescente aluno negro.

Fonte: http://www.cartapotiguar.com.br/wp-content/uploads/2015/07/alckmin-maioriade-penal.jpg. Acesso em 11 jul 2019.

2

Na perspectiva de Stuart Hall (2005), a dificuldade na definição de identidade, deve-se ao fato de ser este conceito antropologicamente recente, e um tanto quanto complexo.

De início, Hall pondera a identidade a partir de três concepções distintas – expostas aqui de forma sucinta:

  1. a do sujeito Iluminista: caso em que o centro essencial do eu equivalia à identidade do indivíduo; um ser unificado, razoável, consciente e ativo, pertencente à etnia e a sexo específicos, posto que “o sujeito do Iluminismo era usualmente descrito como masculino” (Hall, 2005, p. 11). E não-negro.
  2. a do sujeito sociológico: caso em que, na contramão da ideia de autonomia e autossuficiência iluministas, a identidade seria formada na interação entre o eu e a sociedade. Em outras palavras, a individualidade só funcionaria quando em contato com os mundos culturais externos. “A identidade, então, costura (ou, para usar uma metáfora médica, ‘sutura’) o sujeito à estrutura” (Hall, 2005, p. 12).
  3. a do sujeito pós-moderno: caso em que o processo de identificação se torna fluido; a identidade, neste contexto, adquire caráter variável e problemático. Movediça, equivaleria agora à forma como o indivíduo se vê representado pelos sistemas culturais circundantes. E passa a ser “definida historicamente, e não biologicamente” (Hall, 2005, p. 13).

Por razões de cor, imediatamente excluído dos paradigmas de subjetividade do Iluminismo, e, por conseguinte, fora dos padrões do homo economicus – o que o modelo pós-industrial só fez confirmar –, o negro tampouco protagonizaria a narrativa do homo sociologicus, visto que, naquele contexto, era explícita cobaia. Ou mera mercadoria. Um pouco aquém do humano. Objeto próprio a experimentos. Propício à venda. E à troca.

Na sequência do tempo, quedaria também subalterno – quando não preterido – na lógica do mundo automatizado. Pós-moderno.

No caso específico brasileiro, o ajuste identitário carrega ainda nas costas a mácula de três séculos e meio de maus-tratos escravistas. Afinal se a identidade, na concepção sociológica, é projeção das identidades externas, mediante valores internalizados, e se, de fato, é o que “costura”, “sutura” o sujeito à estrutura social, onde se espelharia a subjetividade negra sob os recentes reflexos da escravidão? Que face vê o negro refletida no espelho do seu cotidiano? E como é visto? O que projeta quando vê sua imagem precária projetada nos aparelhos de representação social?

E neste tempo-espaço pantanoso, em que a identidade se torna cada vez mais rarefeita, e incessantemente reformatada pelos meios de representação, onde situar a identidade negra, sob a ótica agora de exotismos e de minorias?

Tais questões aumentam a complexidade do conceito de identidade, sobretudo quando o foco recai sobre aqueles que historicamente estiveram à margem do eixo identitário imposto pela modernidade – e que a dita pós-modernidade ora pulveriza. E desmancha no ar.

3

Em sua Crítica da razão negra, Achille Mbembe (2014, p.25), embora admitindo que “só nos é possível falar da raça (ou do racismo), numa linguagem totalmente imperfeita, dúbia, diria até desadequada”, reafirma que a ideia do negro como sujeito racializado é uma invenção recente do ocidente civilizado. E, sendo assim, para uma elementar reflexão acerca da condição subalterna da etnia no mundo contemporâneo, não se deve negligenciar a responsabilidade colonialista-escravista no tocante ao vínculo que encobre de preconceitos tanto raça quanto categoria social em que se enquadram o ser negro historicamente no tempo.

Sob esta perspectiva, então, se entende um pouco mais porque, até nossos dias, não assusta à maioria quase branca um corpo negro humilhado, espancado e acorrentado pelo pescoço a um poste[2].

Há, inclusive, argumentos que tornam casos como esses simples e corriqueiros faits-divers. Discursos que tendem a dissociar a natureza do fato de sua evidente questão racial. No âmbito neológico-ideológico, hoje, o termo vitimismo, por exemplo, parece se encaixar perfeitamente ao propósito de desqualificação do ato racial, fazendo a denúncia do episódio racista, ou sua exposição pública, depor contra a própria vítima: a acusação consiste em contestar que o vitimado é quem vê racismo em tudo; afinal – afirmam os defensores do fait-divers –, fosse o meliante branco e mereceria, no caso, idêntico castigo.

No entanto, nesta hipótese, restam dúvidas quanto a possibilidade de tal episódio. Em outras palavras: haveria frequente probabilidade de um jovem delinquente branco, em qualquer território urbano, quer fosse por ódio racial, quer fosse por diferença de classe – ou até mesmo pela própria delinquência –, ser linchado e em seguida acorrentado a poste público pelo pescoço, à revelia da lei? A cena, em paralelo, de um jovem nipo-brasileiro, por exemplo, sumariamente justiçado a sociedade historicamente registra?

Em contrapartida, vivemos numa cultura que se habituou a ver negros ao longo dos séculos em situações similares, de indigência, de servidão e humilhação; e, na sequência dos tempos, quase sempre em praças públicas, maltrapilhos, e pedintes. Ou a roubarem para subsistir. No papel de subalterno ou de inimigo público, com classe e cor definidos socialmente, o negro – no imaginário coletivo – quase sempre esteve apto mesmo a apanhar pancada.

Fonte: https://pt.globalvoices.org/2014/02/10/menor-preso-a-poste-barbarie-racial-exposta-em-zona-nobre-do-rio-de-janeiro/. Acesso em 11 jul 2019.

Achille Mbembe (2014, p. 21) pondera os efeitos da herança colonial que reside neste fenômeno:

[…] da obstinação colonial em dividir, classificar, hierarquizar e diferenciar, sobrou ainda algo: cortes e lesões. Pior ainda, a clivagem criada permanece. Será mesmo verdade que somos capazes hoje em dia de estabelecer com o negro relações distintas das que ligam o senhor ao seu criado?

E é neste pormenor – da obstinação irracional e irrefletida – que se pode rastrear algum senso de urbanidade no episódio do meliante negro submetido a linchamento público, mediante, inclusive, vasta justificativa pseudosociológica. A naturalização do fato, sua banalização cotidiana, enfim, confirma – sempre por vias abjetas e escusas – filigranas demagógicas da famigerada “democracia racial”: a sociedade vigia e pune quem é digno de castigo, quer branco, quer negro. Embora todos saibamos, dentre nós, quem mormente é, e deverá ser, excluído, mantido submisso. E sob controle.

Busquemos uma razão, no rastro de Mbembe (2014, p. 11): “Funcionando simultaneamente como categoria originária, material e fantasmática, a raça esteve, no decorrer dos séculos precedentes, na origem de inúmeras catástrofes, tendo sido a causa de devastações psíquicas assombrosas e de incalculáveis crimes e massacres.”

Desta forma, a razão vigente, com frequência, torna o Outro um dessemelhante, uma ameaça constante, a ser controlada. Desdenhada. Ou aniquilada.

Lembremos do tão frequente, quanto midiático, “teste” de racismo: o das duas menininhas, uma negra, outra branca, perdidas no centro urbano. Diluída no formato do entretenimento, do fait-divers, a cena racial decorre conforme o esperado: a quase unanimidade dos transeuntes acode a criança branca, que afinal está ali ocupando um lugar, uma identidade que historicamente não lhe pertence.

Como no caso das menininhas, na hipótese de branco o adolescente acorrentado e espancado, a sociedade – quer negros quer brancos –, tenderia também à imediata empatia com o pobre rapaz. É o que com frequência ocorre quando determinado tipo de injustiça acomete à identidade modelo. A branca[3]. Sob esta ótica, a questão posta é de desvio e norma: o negro, apenas um ponto fora da curva.

Em sua Crítica, Mbembe, (2014, p. 10) compreende que:

(…) o pensamento europeu sempre tendeu a abordar a identidade não em termos de pertencimento mútuo (copertencimento) a um mesmo mundo, mas antes na relação do mesmo com o mesmo, do surgimento do ser e da sua manifestação em seu ser primeiro ou, ainda, em seu próprio espelho.

Por que tanto incomoda, por exemplo, uma propaganda de cosméticos, vez ou outra, protagonizada por uma família classe média negra?[4] A quem desconforta, senão à certa elite e à alguma patuleia brancas, que – neste caso específico – vociferaram o mimimi dos vitimizados? Admitindo que a sobreposição de uma etnia à outra é, efetivamente, ato racial – vez que só havia negros no comercial –, houve quem se utilizasse da equivocada, e renitente, expressão “racismo inverso”.

Como se o ato racista legítimo fosse algo exclusivo do branco. Um privilégio. De casta.

O que, afinal, inquieta e afronta na representação de uma família negra em situação de igualdade, ocupando um lugar estético e social compatível às elites raciais? Assusta a ideia da compatibilidade, da paridade no estamento social? A hipótese de perda, ou mesmo divisão de privilégios? Motivo porque não se registram manifestações sociais idênticas para o protagonismo negro quando na pele do escravizado, do flagelado, do traficante, do presidiário, do pé-de-chinelo, do desdentado, do desdenhado. Representando sempre latente ameaça, convém mantê-lo no lugar social em que, historicamente, se mantém.

A Crítica da razão negra levanta e esquenta a questão cromática que desconcerta a razão branca:

A que se deve então esse delírio e quais as suas manifestações mais elementares? Primeiro, deve-se ao fato de o negro ser este (ou então aquele) que vemos quando nada se vê, quando nada compreendemos e, sobretudo, quando nada queremos compreender. Onde quer que apareça, o negro desencadeia dinâmicas passionais e provoca uma exuberância irracional que invariavelmente abala o próprio sistema racional (Mbembe, 2014, p. 11).

Exemplo similar se viu em outra propaganda, cuja narrativa apresenta uma família branca que, no Natal, doa ceia a família menos favorecida socialmente[5]. E negra. Enquanto no comercial do perfume o antagonismo cor x classe se deu numa só família – motivo da celeuma racial –, neste caso há uma polarização de classe e cor em famílias distintas. E, logo, o ajuste de classe se faz pela cor. Ou vice-versa.

Ainda reverberam as questões: e a simulação contrária, de uma família classe média negra doando a ceia a outra, menos favorecida?. E branca? Neste caso, qual seria o clamor dos vitimizados? O fato é que, conforme vimos afirmando, independente da classe social, o branco se reconhece, e se autoproclama superior, por intermédio dos mecanismos ideológicos historicamente a sua disposição. É norma. Desta forma, nem coletiva, tampouco individualmente se consegue equacionar bem a questão: de quem a responsabilidade pelos ranços e resquícios do escravismo?

Mbembe (2014, p. 15, 16) reitera a existência de um sistema formador de subalternidades: “Desde logo, os riscos sistemáticos aos quais os escravos negros foram expostos durante o primeiro capitalismo constituem agora, se não a norma, pelo menos o quinhão de todas as humanidades subalternas.”

O imaginário coletivo tende a reproduzir um padrão de comportamento para o negro; este, se espelha, mas não se vê no espelho. Como resultado, resta a absorção do que pertence ao universo do Outro.

De acordo com Mbembe (2014, p. 19), sob esta perspectiva, o negro vive prisioneiro da própria aparência. Sempre inadequado, enfim:

(…) esse termo (negro) foi inventado para significar exclusão, embrutecimento e degradação, ou seja, um limite sempre conjurado e abominado. Humilhado e profundamente desonrado, o negro é, na ordem da modernidade, o único de todos os humanos cuja carne foi transformada em coisa e o espírito em mercadoria (…)

Se, no caso da propaganda do perfume, o incômodo residia na classe social da família, em seu comportamento excessivo aos estereótipos da negritude, no episódio das bananas oferecidas a funcionários em pleno Dia da Consciência negra[6]– a título de deboche! –, a classe social dos entregadores não figurou, necessariamente, como fator preponderante. Há bilionárias contas bancárias no mundo do esporte, por exemplo, que, com frequência, sofrem este tipo de constrangimento. E quem oferece bananas, nestes casos, são cidadãos, em tese, inferiores economicamente. Mas brancos, provavelmente. Ainda uma vez, a cor sobrepondo-se à classe social.

Na visão do pensador camaronês (2014, p. 11):

Ao reduzir o corpo e o ser vivo a uma questão de aparência, de pele e de cor, outorgando à pele e à cor o estatuto de uma ficção de cariz biológico, os mundos euro-americanos em particular fizeram do negro e da raça duas versões de uma única e mesma figura: a da loucura codificada.

Viver sob pele negra, a partir do advento da escravatura, equivale, pois, a experimentar – e não apenas metaforicamente – o “calabouço das aparências” (Mbembe, 2014, p. 12).

4

Uma apresentadora de TV (branca) apresenta em rede suas babás (negras)[7]; e, ao primeiro mimimi – acusada de racismo –, justifica-se mediante a mais secular, e elementar, das evasivas de raça e classe: as negras são bem tratadas, bem remuneradas, e comem na mesa da casa. Há ato racial na cena de ostentação involucrada em episódio – aparentemente – tão comezinho e banal? De onde vem a naturalização do ato e de toda a narrativa que o envolve de naturalidades? Qual sua origem? Sempre fora assim, desde às mães negras? Desde às amas-de-leite? Estima ou estimação? Casa-Grande e Senzala em secular harmonia?

Fato é que, respondidas ou não as questões acima, na condição de subjugado e subalterno, o negro será sempre bem-vindo. E visto. Afinal de contas, sua força de trabalho, desde os primórdios de nossa história econômica, vem servindo para manter o bem-estar das classes que o dominam. Daí a tensão ambígua com a qual, entre nós, o dominante se posiciona diante da premente questão de raças. Ora, uma vez que há papeis socialmente predefinidos, e a sociedade se mantém conservadora, a desigualdade é mero exagero na voz dos menos favorecidos. Para as elites raciais, adeptas da narrativa da democracia racial, no Brasil há boa convivência, sem preconceitos. Claro, enquanto os espaços se mantiverem bem definidos. E discriminados.

Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:A_Brazilian_family_in_Rio_de_Janeiro_by_Jean-Baptiste_Debret_1839.jpg. Acesso em 11 jul 2019.

Em ensaio intitulado Ser negro no Brasil, hoje, Milton Santos (2000, p. 1) ajuda a desfazer de vez o equívoco midiático do tal vitimismo, isso que – na sociologia das redes sociais – ficou conhecido hoje, no Brasil, como mimimi: “(…) a opinião pública foi, por cinco séculos, treinada para desdenhar e, mesmo, não tolerar manifestações de inconformidade, vistas como um injustificável complexo de inferioridade (…)”. À luz deste raciocínio – que vitimiza a vítima –, a relação escravista fora justa. Posto que legal. Equalizou as cores. Mas cada qual ocupando seu espaço, seu território social.

Milton Santos (2000, p. 1) acrescenta:

Os interesses cristalizados produziram convicções escravocratas arraigadas e mantêm estereótipos que ultrapassam os limites do simbólico e têm incidência sobre os demais aspectos das relações sociais. Por isso, talvez ironicamente, a ascensão, por menor que seja, dos negros na escala social sempre deu lugar a expressões veladas ou ostensivas de ressentimentos (paradoxalmente contra as vítimas).

No caso da advogada negra[8], algemada, humilhada e presa em pleno exercício da profissão, toda a “loucura codificada”, os mais “básicos ressentimentos”, “dinâmicas passionais”, “exuberância irracional” tudo ali convergiu, num só roldão, abalando as estruturas da pretensa racionalidade. E quedam ainda as renitentes questões: com a justificativa da falsa paridade – fosse branca fosse negra –, o tratamento seria, de fato, isonômico?  Racista ou não o episódio, há registros de constrangimento e humilhação pública semelhantes ocorridos com advogadas brancas em exercício da função? A partir de que sentimento, ou a partir de que lugar a sociedade faz (re)produzir historicamente tais cenas, senão do lugar da supremacia? A questão, que era, literalmente, jurídica, virou apenas mais um fait divers.

Na compreensão de Santos (2000, p. 4): “(…) no Brasil, o debate sobre os negros é prisioneiro de uma ética enviesada. E esta seria mais uma manifestação da ambiguidade a que já nos referimos, cuja primeira consequência é esvaziar o debate de sua gravidade e de seu conteúdo nacional.”

Conforme se constata, o lugar do negro, neste contexto, não se define socialmente, a despeito de sua mobilidade na pirâmide social. Milton Santos (2000, p. 5) nos ajuda a concluir:

Ser negro no Brasil é, pois, com frequência, ser objeto de um olhar enviesado. A chamada boa sociedade parece considerar que há um lugar predeterminado, lá em baixo, para os negros e assim tranquilamente se comporta. Logo, tanto é incômodo haver permanecido na base da pirâmide social quanto haver subido na vida.

Mediante o reconhecimento de que há “espaços que mandam” e “espaços que obedecem”, e partindo da básica distinção que considera o território um termo político para definir o espaço de um país, uma pergunta mais ainda resta: em que outro território urbano, por exemplo, um guarda-chuva seria confundido com um fuzil,[9] que não fosse na periferia, na quebrada, na favela? A partir de que olhar turvo e enviesado um jovem negro – a menos – assim resulta sumariamente fuzilado? Como?, por quem?, por quê?, para quê?

Santos (2000, p. 02), esboça o rumo de uma resposta: “(…) ser negro no Brasil o que é? Talvez seja esse um dos traços marcantes dessa problemática: a hipocrisia permanente, resultado de uma ordem racial cuja definição é, desde a base, viciada. Ser negro no Brasil é frequentemente ser objeto de um olhar vesgo e ambíguo.”

No vigor de uma necropolítica (Mbembe, 2018), foi-se estabelecendo a territorialização da violência e expandindo a política do extermínio ao redor das zonas periféricas do mundo.

Enquanto política de morte, por conseguinte, a necropolítica visa sempre restringir, retirar o espaço do cidadão menor. Quer seja menor na escala social, quer seja menor na idade. Afinal, o famigerado “de menor” é apenas um menor de idade que, na escala social, é bem menor do que outros menores. Brancos.

É sabido, pois, que forças militarizadas e policias possuem códigos de conduta, adornados por jargões. Na cidade do Rio de janeiro, por exemplo, um agente da lei é capaz de distinguir um “cidadão” de um elemento considerado “cor padrão” (Ramos; Musumeci, 2005).

Logo, havendo um jovem branco e um negro no mesmo território, sabe-se de antemão quem o suspeito. Adolescentes negros (ou quase) são “cor padrão” na ótica vesga e enviesado do desvio social. Afinal, mesmo dentro da lógica do slogan “bandido bom é bandido morto”, o imaginário coletivo recusa-se a cogitar morto, crivado de balas e humilhado em praça pública o bom bandido de “colarinho branco”. Por exemplo.

E, de acordo com Santos (2000, p. 03), tudo passa pelo corpo:

No Brasil, onde a cidadania é, geralmente, mutilada, o caso dos negros é emblemático. Os interesses cristalizados, que produziram convicções escravocratas arraigadas, mantêm os estereótipos, que não ficam no limite do simbólico, incidindo sobre os demais aspectos das relações sociais. Na esfera pública, o corpo acaba por ter um peso maior do que o espírito na formação da socialidade e da sociabilidade […]

O corpo. A aparência. A cor: mancha indelével a demarcar, identificar e discriminar negativamente, de cara, o indivíduo. A ostensiva corporeidade: a própria identidade sendo constantemente avaliada pelo viés do dissenso.

Retomando-se aqui a ideia do devir-negro do mundo, de Mbembe (2014, p. 21):

Não persistirá ele próprio a se reconhecer apenas pela e na diferença? Não estará convencido de ser habitado por um duplo, uma entidade estrangeira que o impede de se conhecer a si mesmo? Não vivenciará seu mundo como um definido pela perda e pela cisão e não nutrirá o sonho do regresso a uma identidade consigo mesmo, que regride ao modo da essencialidade pura e, por isso mesmo, muitas vezes, do que lhe é dessemelhante?

A despeito disto, nem todos em nossa controversa sociedade reconhecem resquícios de escravidão em episódios tão esparsos – e tão cotidianos – como os que acima se recompilou.

Aquele quase adolescente aluno negro, em seu drama identitário, sequer mensura se individualmente sobreviverá às estatísticas da necropolítica. Tampouco qual o devir, na sucessão dos tempos, daqueles contemporâneos seus que carregam na pele o tom da sua cor.

Fonte: https://gz.diarioliberdade.org/quadrinhos/category/3-carlos-latuff.html?start=60. Acesso em 11 jul 2019.

A crítica da razão negra (2014, p. 20-21) – repleta de humanismo – aposta na ponderação final:

Se, além disso, no meio dessa tormenta, o negro conseguir de fato sobreviver àqueles que o inventaram e se, numa dessas reviravoltas cujo segredo é guardado pela história, toda a humanidade subalterna se tornasse efetivamente negra, que riscos acarretaria um tal devir-negro do mundo à promessa de liberdade e igualdade universais da qual o termo negro foi a marca patente no decorrer da era moderna?

A despeito do vigoroso esforço humanístico de Stuart Hall, Milton Santos e Achiles Mbembe na busca por questionar e equacionar o devir do negro por vias da razão, há quem viva – os adeptos da necropolítica – à espera da Redenção de Cam.[10] Ainda que se tenham que admitir, para isso, práticas de Estado menos ortodoxas do que a simples miscigenação.


­­­* Lucio Valentim é doutor em Letras Vernáculas. Pós-doutorando e pesquisador visitante do PACC/UFRJ. Autor do livro de contos Memórias Pústulas (2012). Entre suas publicações destacam-se:  “Poética e Ritmo da Música Popular Brasileira”, Revista Agália (Espanha/2015); “O galego no léxico de Rosa: veredas”, Revista Gallæcia. Estudos de lingüística portuguesa e galega (Espanha/2017). Colunista semanal “Botafogo na Literatura”: site http://curtabotafogo.com.

Referências

HALL, Stuart. A identidade cultural na pósmodernidade. 10ª ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.

MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. 1. ed., Lisboa: Antígona, 2014.

MBEMBE, Achille. Necropolítica. 1ª ed. N-1 edições, 2018.

RAMOS, Silvia e MUSUMECI, Leonarda (Coord.). Elemento suspeito: abordagem policial, estereótipos raciais e percepções da discriminação na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

SANTOS, Milton e SILVEIRA, Ma Laura. O Brasil: território e sociedade no início do século XXI. 9ª ed, Rio de janeiro: Record, 2006.

SANTOS, Milton. Ser negro no Brasil, hoje. In: SANTOS, Milton. O país distorcido: o Brasil, a globalização e a cidadania. São Paulo: Publifolha, 2000.

Notas

[1] Referência à canção Haiti, de Gil e Caetano: “…a fila de soldados, quase todos pretos/Dando porrada na nuca de malandros pretos/De ladrões mulatos e outros quase brancos/Tratados como pretos/Só pra mostrar aos outros quase pretos/(E são quase todos pretos)/E aos quase brancos pobres como pretos/Como é que pretos, pobres e mulatos/E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados…” No Brasil da miscigenação, onde japoneses, chineses, libaneses e similares são considerados brancos, o Censo (Disponível em: https://ww2.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/04062004pmecoreshtml.shtm), por sua natureza autodeclarativa, mais confunde do que esclarece. Certo é que poucos, entre nós, podem ser efetivamente considerados brancos. Em contrapartida, muitos, na pele, são imediatamente identificados negros. Logo, neste texto, ao utilizarmos os termos branco/quase branco estaremos nos referindo – excetuando-se o índio –, ao não-negro.

[2] Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/02/1407239-adolescente-e-agredido-a-pauladas-e-acorrentado-nu-a-poste-na-zona-sul-do-rio.shtml Acesso em: 21 jan. 2019.

[3] Vide o caso da família de mendigos brancos: https://www.youtube.com/watch?v=BQ7OEy6QmKs

[4] Disponível em: https://exame.abril.com.br/marketing/o-boticario-poe-familia-negra-em-comercial-e-os-racistas-não gostaram/ Acesso em: 21 jan. 2019.

[5] Disponível em: https://www.revistaforum.com.br/comercial-onde-chester-e-doado-a-familia-negra-causa-indignacao-na-internet/ Acesso em: 21 jan. 2019.

[6] Disponível em: https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/gerente-oferece-bananas-a-funcionarios-negros-no-dia-da-consciencia-negra-e-e-preso/ Acesso em: 21 jan. 2019.

[7] Disponível em: https://odia.ig.com.br/_conteudo/diversao/celebridades/2015-08-04/fernanda-lima-publica-foto-de-babas-e-e-chamada-de-sinha-em-rede-social.html Acesso em: 21 jan. 2019.

[8] Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/09/valeria-foi-algemada-em-um-conflito-entre-dois-advogados-afirma-juiz.shtml Acesso em: 21 jan. 2019.

[9] Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/09/19/politica/1537367458_048104.html Acesso em: 21 jan. 2019.

[10]Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/A_Reden%C3%A7%C3%A3o_de_Cam#/media/File:Reden%C3%A7%C3%A3o.jpg. Acesso em: 21 jan. 2019.

dossiê
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LÍNGUA E PODER NO SISTEMA EDUCATIVO COLONIAL, EM ARNALDO SANTOS

Resumo: O presente artigo pretende discutir o papel da língua na definição das desigualdades sociais e raciais, dentro e fora do ambiente escolar de Luanda, durante a época colonial, através da análise dos contos “A menina Vitória” e “O velho Pedro”, escritos por Arnaldo Santos e publicados na coletânea Quinaxixe em 1965. Nessas narrativas, a personagem Vitória, uma professora mulata que se comporta à maneira dos portugueses, contrapõe-se a Pedro, um médium que mora no musseque e que possui habilidades curativas extraordinárias, pela função educativa que esses adquirem na narrativa, além das diferentes metodologias didáticas adotadas, demonstrando as tensões culturais e sociais na cidade de Luanda durante a colonização portuguesa. Ademais, a descrição e a caraterização destes personagens, feitas através de uma linguagem polifônica que inclui termos quimbundos num texto maioritariamente escrito em português, mas na sua variedade angolana, demonstra as conexões entre língua e poder na sociedade luandense segundo a percepção do autor.

Palavras-chave: literatura angolana; Arnaldo Santos; educação; assimilados; quimbundo; língua.

Abstract: The aim of the present paper is to discuss the role of language in the definition of the racial and social inequalities, inside and outside the school environment of Luanda during colonial time, by analysing Arnaldo Santos’s short stories “A menina Vitória” and “O velho Pedro”, belonging to the collection of nine short stories titled Quinaxixe and published in 1965. In the above stories, Vitória, a mixed-race teacher who acts like a Portuguese, places herself in contraposition against Pedro, an old sorcerer who lives in the musseque (slum) and has extraordinary healing powers, due to the educative function that both characters acquire in the narrative, besides the different methodologies adopted, hence showing the cultural tensions occurring in Luanda during the Portuguese colonisation. In addition, the description and characterisation of the above personages, done through a polyphonic language the blends Kimbundo terms within a Portuguese text, in its Angolan variety, demonstrates the connections between language and power in the society of Luanda, according to the author.

Keywords: Angolan literature; Arnaldo Santos; education; assimilation, kimbundo; language.

Introdução

O presente artigo pretende discutir o papel da língua na definição das desigualdades sociais e raciais, dentro e fora do ambiente escolar em Luanda na época do colonialismo, nos contos “A menina Vitória” e “O velho Pedro”, escritos por Arnaldo Santos e publicados na coletânea Quinaxixe em 1965. Nas narrativas, a personagem Vitória, uma professora mulata que se comporta à maneira dos portugueses, contrapõe-se a Pedro, um médium que mora no musseque e possuidor de habilidades curativas extraordinárias, pela função educadora que estes personagens adquirem na narrativa e pelas diferentes metodologias didáticas adotadas, ressaltando as tensões culturais e sociais na cidade de Luanda durante a colonização portuguesa. Ademais, a descrição e a caraterização destes personagens, feitas através de uma linguagem polifônica que inclui termos quimbundos num texto escrito principalmente em português, na sua variedade angolana, contribui para a caraterização dos sujeitos, mas também demonstra as conexões entre língua e poder na sociedade luandense, segundo a percepção do autor.

Capa do livro Quinaxixe de Arnaldo Santos
Capa do livro Quinaxixe de Arnaldo Santos (http://livrosultramarguerracolonial.blogspot.com/2017/05/angola-literatura-quinaxixe-de-arnaldo.html)

Quinaxixe é uma coletânea de nove contos que retratam a vida dos moradores do bairro homônimo de Luanda, maioritariamente povoado pelos nativos negros e mestiços nascidos em Angola, os quais se confrontam constantemente com o poder colonial português em todos os aspetos da vida privada e social. A conexão entre o autor e este lugar geográfico é muito significativo, sendo que Arnaldo Santos escreveu esta obra inspirado pelos eventos que caraterizaram a própria infância no bairro mencionado. Dando voz aos marginalizados da sociedade luandense, o autor usa uma linguagem impregnada de vocábulos e expressões que vêm do quimbundo para sustentar um discurso anticolonial e que discute as tensões sociais e culturais da própria terra.

Como é noto, a colonização portuguesa impôs a própria cultura e a própria língua na administração e na educação em Angola, obrigando os nativos falantes das línguas bantu a comunicarem somente em português e a adquirirem os costumes dos colonizadores, em detrimento da própria identidade linguística e cultural. Neste sentido, a obra de Santos descreve as emoções dos personagens perante às formas opressivas de supressão das culturas locais, para questionar e redefinir as múltiplas culturas dos angolanos colonizados e para criticar o regime colonial, em nome da liberdade de expressão. De fato, como veremos na análise dos contos “A menina Vitória” e “O velho Pedro”, as distinções sociais e raciais são expressas através de uma série de escolhas linguísticas que remarcam a subalternidade das culturas nativas bantu na sociedade colonial instaurada pelos portugueses, onde a categoria social dos assimilados toma uma função relevante, por suportar a superioridade racial e social dos colonizadores. Na sua obra, Arnaldo Santos revoca constantemente os assimilados para levantar um debate ideológico, criticando o processo de absorção da cultura portuguesa em Angola.

Devido ao desejo de “civilizar” os nativos africanos, a legislatura e o sistema educativo angolanos da época colonial tinham como objetivo o “branqueamento” da sociedade e a eliminação dos traços caracterizantes as etnias locais. Sob o ponto de vista legal, conforme o Estatuto Político, Civil e Criminal dos Indígenas das colónias portuguesas de África, retificado e aprovado em 1929, os assimilados eram todos aqueles angolanos que tinham obtido a cidadania portuguesa somente depois de terem cumpridos os requisitos necessários:  a idade mínima de 18 anos; saber falar corretamente em português; ter um emprego ou recursos que dessem a possibilidade de providenciar alguma forma de sustentamento para a pessoa e para a própria família; uma boa conduta e a aquisição dos hábitos portugueses, a nível público e privado; ter prestado serviço militar (Meneses, 2010, p. 85). A ideia fundante da política colonial portuguesa era o conceito segundo o qual os povos nativos africanos eram considerados crianças num estado primitivo da evolução humana, portanto, a assimilação da cultura dominante podia servir para eles atingirem à fase adulta (Duvpy, 1961, p. 295).

Devido à necessidade de “civilizar” os nativos negros, também as escolas angolanas refletiam essa tendência. De fato, como podemos ver ao longo da história da educação da então colônia, houve uma distinção entre brancos, assimilados e indígenas, os quais tinham acesso a uma instrução diferente, conforme a própria raça e ao próprio status social. Em 1845, foram criadas as “escolas principais de instrução primária”, onde os estudantes aprendiam a ler, escrever e contar, graças ao decreto criado por José Joaquim Falcão, ministro de Estado, da Marinha e do Ultramar, durante o reinado de D. Maria II. Essas escolas eram frequentadas pelas pessoas “evoluídas”, enquanto, para os indígenas, o Governo ainda planejava a criação de Escolas Rudimentares (Gomes, 2014, p. 2). Subsequentemente, Sá da Bandeira, ministro da Guerra e dos Negócios Estrangeiros, aprovou a portaria régia, em 1856, que estabelecia que os filhos dos potentados indígenas recebessem uma educação portuguesa, para que eles pudessem difundir esse conhecimento para o próprio povo (Liberato, 2014, p. 1006).

Na década de 1910, a política colonial da República Portuguesa impôs uma soberania branca, que teve, na personalidade de Norton de Matos (governador geral de Angola, entre 1912 e 1914, e alto-comissário entre 1921 e 1924) a expressão do dito “darwinismo social”, que previa a consolidação da raça portuguesa em Angola, ao fim de implantar uma “forma de civilização superior” (Liberato, 2014, p. 1006). Norton defendia a distinção entre a educação para os indígenas e a para os portugueses, promovendo a criação de institutos para os africanos que ensinassem a língua portuguesa, as quatro operações aritméticas e os cálculos com a moeda local, além da higiene pessoal e da limpeza do lar (Liberato, 2014, p. 1008).

Com a instauração da ditadura militar, no final dos anos 1920, o regime político autoritário, policial e corporativista era regulado por uma moral nacionalista cristã. Nos primeiros anos do Estado Novo, as escolas tinham o objetivo de transmitir um conhecimento baseado na ideologia salazarista que não permitia o desenvolvimento de um pensar crítico que pudesse comprometer o poder ditatorial (Liberato, 2014, p. 1009). Foi nesse contexto político que a instrução primária, graças ao Diploma legislativo n. 518 de 1927, foi reestruturada de forma que houvesse um plano curricular específico para os portugueses e os assimilados, por um lado, e um para os indígenas, pelo outro (Gomes, 2014, p. 3). Neste sentido, o Diploma legislativo n.º 238 de 1930, formalizou a separação dos objetivos para os dois tipos de instrução: de acordo com a dita lei, no caso dos indígenas, a educação devia servir para a civilização dos nativos, enquanto os portugueses e os assimilados beneficiavam de uma formação que os preparasse para a vida social e adulta. Esta distinção, baseada na raça, foi reforçada ulteriormente através do Acordo Missionário de 1940 e do Estatuto do Missionário de 1941 (Gomes, 2014, p. 3).

Para terminar esta breve resenha histórica, em 1964, foi fundada a Secretaria Provincial de Educação de Angola, dirigida por José Pinheiro da Silva, defensor da ideologia salazarista e da ideia de criação de uma “Angola portuguesa”, para suprimir qualquer movimento subversivo (Gomes, 2014, p. 3). No mesmo ano, o Decreto-Lei n. 43.893 reformou a educação primaria, através da difusão de um plano curricular único para todos os portugueses, conforme o sistema educacional da mãe-pátria (Gomes, 2014, p. 3).

As próximas seções do presente artigo articularão a análise dos dois contos de Arnaldo Santos, onde será possível notar uma demarcação acentuada das disparidades entre assimilados e negros, através de uma linguagem que reflete a política colonial portuguesa delineada nesta parte introdutória.

A menina Vitória

Depois de discutir brevemente as fases salientes da história da educação em Angola, esta seção enfoca-se na análise do conto de Arnaldo SantosA menina Vitória”, que é exemplar em relação à discussão das contraposições entre português e quimbundo no âmbito escolar angolano, durante a época colonial. Esta obra, de fato, denuncia a maneira em que as escolas costumavam silenciar as culturas nativas, através de um plano curricular meramente português. O ambiente escolar criado pelo autor critica e reconstrói o processo colonial de assimilação, representando as transformações culturais e sociais que o dito processo implicava, e promovendo, de forma implícita, um sentimento de resistência que defendesse o legado cultural dos nativos bantu, em nome da independência e da formação do país angolano.

O título do conto vem do nome da protagonista, Vitória, uma mulher mestiça assimilada, professora de Gigi, um menino que foi obrigado a mudar de escola por motivos higiênicos e pela baixa qualidade do ensino. O substantivo menina confere um aspeto de inocência à protagonista, apesar da atitude agressiva e da índole racista dela, que impede ao jovem estudante de se integrar na nova escola, por causa da sua raça e da sua classe social. Desta forma, a aparente bondade da professora representada no título desaparece ao longo do conto, onde encontramos vários exemplos que demonstram o caráter discriminatório de Vitória contra todos aqueles que não tivessem assimilado a cultura e a maneira de falar dos portugueses.

O conto começa apresentando Sr. Silvio Marques, o pai de Gigi, que decide transferir o próprio filho para o colégio da Bucha Beatas, uma escola mais cara, mas que, segundo este personagem, podia providenciar uma instrução melhor que pudesse formar o jovem estudante e prepará-lo para uma carreira profissional no setor público, garantindo-lhe, assim, um futuro próspero e uma condição social mais avantajada. Mas além da escola, Gigi é obrigado a mudar também de estilo de vida, evitando a companhia dos amigos do musseque que lhe poderiam afetar a fala e o comportamento.

Transferiram-no no meio do ano lectivo, para o colégio do Bucha Beatas, por causa dos piolhos da Escola 8 e da prosódia, em que os professores o achavam muito fraco. O Sr. Sílvio Marques embora pouco exigente consigo em relação à pronúncia — trocava amiúde os vv pelos bb — era no entanto muito cuidadoso a fechar as vogais. Ralhava severamente o Gigi sempre que lhe ouvisse algum desconchavo, ou então abria-lhe muito os olhos, o que significava o mesmo. Também os amigos dele aos domingos, debaixo da mulembeira e entre uma ou outra jogada de sueca, comentavam as incorrecções do Gigi. E sibilavam (alguns eram da Beira Alta) lamentando que a pronúncia do garoto se estragava, que era preciso afastá-lo da companhia dos criados e dos colegas dos musseques (Santos, 1965, p. 45).

No presente trecho o autor descreve as dificuldades dos nativos em absorver o idioma do dominador. Até o Sr. Silvio Marques achava complicado pronunciar a letra “v”, devido à influência do quimbundo, sua língua-mãe. Apesar disto, o homem repreendia Gigi caso cometesse algum erro (desconchavo), que precisava ser corrigido imediatamente. Além do pai, também os amigos dele criticavam asperamente a maneira do menino e sugeriam para que ele se afastasse dos rapazes do musseque, ao fim de “limpar” a própria pronunciação. Embora seja evidente, desde o princípio da estória, o comportamento depreciativo dos personagens em relação à língua e a cultura dos nativos, o autor quer criticar o processo de “branqueamento” que a assimilação pressupõe, condenando, implicitamente, todos aqueles que anelam ser portugueses, para se sentirem superiores aos indígenas e para beneficiarem de privilégios que lhes eram recusados.

Ademais, graças às escolhas linguísticas usadas pelo autor, o conto quer transmitir a sensação de estranhamento e de deslocamento dos nativos dentro do espaço colonial. Por exemplo, a árvore local mencionada acima, a mulembeira, onde os amigos de Silvio Marques jogam, por um lado representa a identidade dos povos autóctones pela função social e espiritual que esta planta carrega, adquirindo um valor simbólico de resistência e de afirmação da própria identidade (Miranda, 2009, sem página), enraizada na terra desde um tempo ancestral e reforçando a visão holística das culturas bantu que se baseiam na harmonia do homem com a natureza e com o mundo inteiro (Costa, 2009, sem página). Por outro lado, a dita planta sofre com as mudanças histórica e cultural que se verificam em Angola, na época da publicação da obra, por virar o lugar onde os personagens jogam à sueca, palavra que claramente demonstra uma marcada influência colonial também nas atividades lúdicas dos residentes, inspirados por uma cultura alheia que se impõe sobre os jogos tradicionais (Santos, 2017, p. 44).

Outro termo de origem quimbunda que manifesta essa sensação de deslocamento é representado pela palavra musseque, o típico bairro com chão arenoso onde moram os marginalizados de Luanda, que aqui indica o lugar de onde Gigi tem que se afastar, porque os moradores dessa área influenciam  negativamente o menino, prejudicando-lhe um futuro como assimilado, o sonho dos pais do menino e a aspiração dos demais naquela época.

Depois da introdução providenciada acima, Arnaldo Santos apresenta a personagem de Vitória, que dá nome ao conto. Ela representa a classe dos assimilados e do sistema educacional colonial. Aqui, a menina é definida de mulata, palavra que, em si, demonstra a conotação racista da língua portuguesa, por derivar de mulo, sublinhando, de forma negativa, o hibridismo racial da personagem (Menocci, 2018, p. 4). De todas as maneiras, a jovem mulher tenta aparecer e comportar-se como os portugueses, escondendo, assim, a própria descendência africana. De fato, a maquilhagem branca (pó de arroz) que a protagonista põe frequentemente na cara pode ser vista como uma forma de cobrir a própria cor natural, criando uma “máscara”, na tentativa de disfarçar a identidade real (Menocci, 2018, p. 4). Ademais, o gesto de tocar o cabelo loiro de um dos estudantes sentados na primeira fila demonstra a ambição da mulher em ser o que não é, depreciando tudo o que seja associado à fisionomia dos nativos negros, considerados um padrão de que é preciso afastar-se. Desta forma, Vitória tenta replicar a cultura dominante europeia, reproduzindo os mesmo mecanismos de opressão dos colonizadores. Ela não parece ter ressentimento pelas atrocidades cometidas pelos portugueses, que exploraram e submeteram os nativos de África, e reforça a posição dos dominadores, seja a nível físico, seja social, silenciando qualquer pessoa que expressasse livremente a própria identidade.

A professora da 3.a classe, a menina Vitória, era uma mulatinha fresca e muito empoada, que tinha tirado o curso na Metrópole. Renovava o pó de arroz nas faces sempre que tivesse um momento livre, e durante as aulas gostava de mergulhar os dedos nos cabelos alourados e sedosos de uns meninos que se sentavam nas primeiras filas. Olhou-o com desconfiança e depois do primeiro exame mandou-o para uma carteira do fundo da aula, junto de um menino com cara de puto, a quem chamava cafuzo, por ser muito escuro. Mas o menino cafuzo chamava-se Matoso, o que, de início, pareceu ao Gigi insuficiente para justificar o seu mutismo. Vergado na cadeira, não tirava os olhos do livro, nem mesmo quando a menina Vitória se referia a ele, quase sempre com desprezo, ao recriminar outro aluno. «Pareces o Matoso a falar…», «Sujas a bata como o Matoso…», «Cheiras a Matoso…», — e ele grudava-se cada vez mais à carteira, transido por aqueles comentários impiedosos (Santos, 1965, p. 46).

Ademais, na segunda metade de parágrafo, vemos o comportamento suspeitoso da menina, que afasta Gigi até mandá-lo para o fundo da sala, para ele se sentar ao lado de Matoso, alcunhado de cafuzo, devido à cor da própria pele – no Brasil, a palavra cafuzo refere-se a todas as pessoas nascidas de pais nativos-americanos e negros, mas neste contexto, o termo é usado como depreciativo para remarcar a cor escura do menino, que é constantemente usado como referência negativa da qual é preciso afastar-se. E a atitude racista da professora é enfatizada, ainda mais, através de expressões como “Pareces o Matoso a falar…”, “Sujas a bata como o Matoso…”, “Cheiras a Matoso…”, que associam a língua dos nativos ao aspecto físico, à escassa higiene pessoal e à falta de educação, para ridiculizar, mais uma vez, os nativos africanos. Relembrando as palavras de Fanon (2008, p. 33): “O negro tem duas dimensões. Uma com seu semelhante e outra com o branco. Um negro comporta-se diferentemente com o branco e com outro negro.” Sílvio Marques e Vitória atuam um processo de autocensura muito repressivo porque a sociedade lhes impõe apagar qualquer traço do próprio ser e da própria cultura, imitando os cânones estéticos e as etiquetas socias portugueses para eles se integrarem na sociedade. Ademais, Gigi, embora se sinta próximo a Matoso, devido ao aspecto físico e à maneira de falar e de se comportar, é obrigado a tomar distância dele, a fim de se integrar na escola. Na realidade, Gigi gostaria de se expressar livremente, sem constrangimentos de nenhum tipo, mas o sistema educacional colonial não permite essa liberdade. No próximo trecho, de fato, o jovem protagonista tenta eliminar qualquer traço da própria cultura nativa para absorver aquela dos colonizadores, embora o trastorno que esta forma de censura comporte na mente do menino.

Procurava esquecer o colorido vivo das penas dos maracachões, dos gungos, dos rabos-de-junco que ele perseguia na floresta e cujo canto escutava trêmulo atrás dos muxitos, o sabor ácido dos tambarinos que colhia sedento, o suor e o cansaço das longas caminhadas pelas barrocas, emoção dos seus jogos de atreza e cassumbula. Imitava passivamente a prosa certinha do gosto da menina Vitória. Esvaziava-a das pequeninas realidades insignificantes que ele vivia, das suas emocionantes experiências de menino livre, agora proibidas e imprestáveis. (Santos, 1965, p. 48).

As memórias felizes de Gigi brincando com os pássaros da vegetação local (muxito), aqui descritos com nomes quimbundo ou português na sua variedade local (gungos, e rabos-de-junco), ou os jogos típicos de atreza e cassumbula que retratam a vida do dia-a-dia no musseque, são reprimidas pelo menino para se adequar à cultura imposta pela professora, agressiva e exigente. Neste sentido, Campos (2017) afirma que Gigi quer aderir a uma cultura que não lhe pertence, tentando apagar as memórias e as cores do seu mundo e repetindo gestos que não fazem sentido para ele, como o ato de repetir “a prosa certinha do gosto da menina Vitória”. As palavras ligadas à natureza e à cultura locais representam, aqui, a memória do jovem protagonista, simbolizando todos aqueles nativos que, durante a época da colonização, foram obrigados a apagar a própria identidade em favor da cultura dominante portuguesa. Sem esses termos tão específicos em língua quimbunda ou na variedade angolana de português, o autor não poderia explicar as memórias de Gigi, que deseja voltar para aqueles momentos felizes da própria vida, em que se sentia realmente livre. Devido à impossbilidade de escolher, o menino representa os sentimentos fragmentados de todos aqueles nativos que, durante a época colonial, não sabiam efetuar uma mediação entre a cultura própria e aquela exógena (Campos, 2017).

Depois de várias humilhações sofridas pelo jovem protagonista, o conto de Santos acaba com a enésima palmatória de Vitória que repreende o menino por ter usado, no próprio ensaio, o artigo definido para descrever um importante político colonial. Inicialmente Gigi não percebe a razão pela qual a professora quer puni-lo, sendo que ele tinha escolhido os vocábulos adequados muito atentamente, conforme às instruções dela. Contudo, os esforços feitos para não decepcionar a professora não foram suficientes para evitar essa reação tão agressiva, como podemos ver no trecho em baixo:

Olhou o caderno que ela lhe devolvera, aberto nas mãos, mas não distinguiu as letras sùbitamente misturadas. A acusação, porém, veio sem tardar, inexorável, imprevisível. Como é que ele se atrevera a tratá-lo por tu! Como é que ele tivera o arrojo de o nomear com um simples artigo definido!?
— Ouve lá.., tu julgas que ele anda sujo e roto como tu, e come funje na sanzala…?
— Não… não.., não é… — gemia o Gigi, desnorteado, tentando estancar o fluxo daquelas insinuações que ele temia. (Santos, 1965, p. 51)

A exclamação dura da menina Vitória pode ser vista como uma tentativa de denegrir o aluno, não só remarcando a sua inferioridade em nível estético (“sujo e roto como tu”), como já vimos no exemplo anterior, quando a professora ofendia Matoso, mas também em nível cultural, mencionando o prato típico angolano (funje) e a organização social tradicional das etnias ovimbundo (sanzala), para reforçar a distância cultural entre os nativos, considerados “primitivos”, e os colonizadores, urbanizados e, supostamente, mais “evoluídos”. Neste sentido, Pires Laranjeira (1995, p. 416) relembra-nos que o código etno-antropológico que emerge na literatura da época é caracterizado por lexemas e conceitos que se referem a um estilo de vida rural, dependente do setor primário, em contraposição à sociedade do consumo instaurada com o colonialismo. A dita contraposição remarca as diferenças entre natureza e urbanização, que são usadas constantemente pelos colonizadores para exercerem o próprio domínio a nível ideológico e cultural (Laranjeiras, 1995, p. 416). Este tratamento de inferioridade se reflete na palmatória de Vitória que humilha Gigi que, na impossibilidade de providenciar uma explicação adequada para justificar a própria escolha estilística (ou seja, o artigo definido antes do nome do personagem político colonial), chora e uma sensação de torpor lhe invade o corpo, até enfraquecer. O menino sente-se triste pelas lutas constantes que tem que enfrentar na nova escola e pergunta-se o porquê desses maus-tratos, desde que Vitória tem ascendência africana como ele. Em seguida, o aluno entulha o caderno e chora, sem lágrimas, com a cabeça dentro da carteira. Depois de ser agredido violentamente pela professora, os olhos do menino são, conforme à narração de Santos, “orgulhosamente” raiados de sangue, como aqueles de Matoso, porque se dá conta de não querer assimilar a cultura do colonizador, mas prefere expressar a própria identidade sem constrangimentos, representando todos os nativos que foram subjugados pelo regime colonial.

O velho Pedro

Depois de ter analisado “A menina Vitória”, passamos a examinar o conto “O velho Pedro”, a narrativa de um ancião que mora isolado numa barroca de Kinaxixi. No começo da narração, este personagem é ridicularizado pelos meninos do bairro por causa da aparência assustadora e pelo estilo de vida que não se conforma aos cânones impostos pelos colonizadores, de forma semelhante ao conto anterior. Por outro lado, contrariamente ao primeiro conto, o protagonista, Pedro, representa o legado tradicional bantu, por recusar o processo de assimilação. De fato, o homem é um médium que pratica rituais ancestrais para curar as doenças mentais e físicas dos seus pacientes, de acordo com os ditados herdados dos antepassados.

Quando os meninos do musseque jogam na rua, as mães pedem para eles terem “cuidado com o cambungú da barroca” (Santos, 1965, p. 25), um ogre típico da narrativa oral bantu, do quimbundo kimbungu (Porto Editora, online). Apesar das advertências, os jovens personagens continuam na mesma, mexendo nos objetos acumulados na caverna onde mora o velho Pedro:

Só quando chovia e porque, diziam-se, vinham cacussos na corrente, é que alguns se atreviam a enfrentar o risco da aparicao do cambungú… Se ele aparecia mesmo, silenciava no alto da barroca, magro, anguloso, como um diquixi de madeira. No rosto ossudo, os olhos redondos brilhavam febris sobre uma barba castanha. Os garotos ficavam transidos, sem reações, prensados entre aquele olhar fixo e imperativo, e o fundo vermelho do buraco (Santos, 1965, p. 26).

Musseque luandense
Musseque luandense (http://acrimararquitectura.blogspot.com/2015/03/2-parte-da-conversa-com-angela-mingas.html)

Mas um dia, o homem sai da cava e todos os meninos ficam assustados por causa do aspecto físico dele, descrito pelo autor como um diquixi de madeira, um outro monstro da tradição oral bantu que, segundo a investigação de Oliveira (2001, p. 55), vem do radical bantu kixi que pode ter vários significados, entre os quais: máscara/mascarado, feitiço, espírito/alma, monstro/antropófago, albino e anão. No presente texto, a descrição do homem feita através de uma referência explícita ao ser monstruoso da narrativa popular, confere uma conotação negativa ao homem. De fato, a descrição física fornecida pelo autor (o rosto ossudo, os olhos redondos, febris, a barba castanha) reforça os estereótipos dos médiuns, devidos aos preconceitos raciais construídos pela cultura colonial ao fim de subjugar e depreciar os dominados física e ideologicamente. Neste sentido, Hellis e Ter Haar (2004, p. 94) afirmam que as práticas rituais tradicionais são consideradas de malignas por três razões principais: primeiramente, a demonização das ditas práticas pelos missionários que evangelizaram o continente africano; por conseguinte, a difusão de outras crenças entre as novas gerações determinou uma diminuição dos guias espirituais tradicionais; ademais, como o mundo espiritual é visto como uma reflexão daquilo material, não surpreende que espelhe as condições adversas em que se encontram os nativos na vida cotidiana. A posição destes acadêmicos podem servir de explicação para entender o comportamentos dos meninos do musseque, que consideravam o homem de um ser maligno por causa da sua aparência. Ademais, os jovens protagonistas não paravam de desafiar o velho Pedro, como podemos ver no trecho seguinte.

Em certa ocasião teve uma explosão nasal para o Zeca e o Neco, que esgaravatavam distraìdamente no fundo da barroca, uns imbricados monturos de coisinhas bambas. «Fora chafurdos!». — Sob o impacto daquele grito, eles difìcilmente perceberam a separação dos termos, porque os sons se juntaram nos seus ouvidos tensos, enrolados uns nos outros, formando um volume único.
No dia seguinte o Zeca, porque a mãe dele, a D. Brízida, andara no liceu, explicou com arrogância e ódio que «chanfurdos» era uma quimbundisse do velho negro. O Neco concordou, vingativamente, embora não reconhecesse absolutamente perfeita semelhança entre aquela palavra e os sons que lhe tinham ficado gravados nos ouvidos. Mas enfim, devia ser quimbundisse, pois também o criado dele, o Catuto, metia muitas palavras na conversa, que a mãe lhe proibia de imitar, porque eram de quimbundo. Além disso aquele andava sempre mais roto e sujo que o criado dele, e nem se lavava! (Santos, 1965, p. 26-27)

Zeca e Neco, dois companheiros de escola e vizinhos de casa, costumam ir à caverna do homem para mexerem nos objetos acumulados pelo ancião, sem mostrar algum respeito pelas propriedades dele. Por isso, um dia, Pedro grita “fora chafurdos!” para que os meninos saiam da caverna e parem de perturbar. A exclamação do homem suscita perplexidade na mente dos jovens protagonistas, os quais não percebem a palavra proferida; de fato, eles pensam que o homem tenha dito chanfurdo e, por isso, afirmam que se trata de uma quimbundisse. Desta forma, o velho Pedro é considerado iliterato e incapaz de falar um bom português. Por conseguinte, essa presumida falta de escolaridade, segundo os meninos, é sinônimo também de falta de higiene pessoal e de elegância. Assim, constatamos que a língua, mais uma vez, toma um papel importante na produção literária de Santos, por descrever as distinções socioculturais entre os nativos quimbundo e os portugueses, através de imagens estereotipadas da cultura local e das práticas espirituais de origem bantu que colocam os colonizados num nível inferior respeito aos colonizadores. Tudo isto é, de fato, reforçado graças à comparação entre o ancião e o Catuto, que aqui é usado como referência negativa, de forma parecida ao Matoso do conto anterior; quem fala quimbundo é pobre e sujo, segundo o menino Zeca.

Contudo, ao longo da estória reparamos que os jovens protagonistas mudam gradativamente a própria opinião em relação ao velho Pedro, o qual não é assim tão mau como eles acreditavam antes.

Às vezes regressava com o Zeca que também tinha sido castigado com o velho e que lhe falava dos novos companheiros, pretos e mulatos, graúdos e bassuleiros que passavam os intervalos a lutar. Mas do cambungú nada! Parece que tinha desaparecido. Falavam de um Sr. Pedro, brando, que ensinava a ler na cartilha e soletrava pacientemente o b a – ba, como se falasse com as almas dos meninos traquinas. «Diz também umas palavras difíceis», cochichou um dia o Zeca muito sério, enquanto entrelaçava uma cadeirinha de capim (Santos, 1965, p. 29).

Esta citação descreve uma cena em que Zeca compartilha a experiência vivida pela irmã Juju, a qual, visitou o velho Pedro para resolver o próprio distúrbio da linguagem, adquirido depois de ter encontrado o cambungú, trazendo consigo “uma cartilha e uma pedra-negra” (Santos, 1965, 28). Graças à sabedoria do médium, a mulher supera o próprio problema e volta a ser feliz novamente. De fato, Pedro, aplicando os conhecimentos herdados pelos antepassados, consegue solucionar as dificuldades da mulher ensinando-lhe a ler e soletrando diligentemente, através de rituais ancestrais que, ainda na época da narração, demonstram certa validade. Desta forma, o médium demonstra uma índole bondosa, providenciando o próprio saber para o bem da comunidade. Ademais, reparamos uma contraposição entre a imagem negativa inculcada pelos colonizadores a respeito das culturas locais, na primeira parte da narração, enquanto, na segunda parte, o autor ressalta a atitude positiva dos nativos e dos mestiços não assimilados no que se refere às práticas rituais ancestrais que, desde tempos imemoriais, ajudam para a salvação espiritual e física do ser humano.

Ao longo da estória, os meninos do musseque adquirem maior consciência do fato que o velho Pedro não é maléfico como parecia no começo do conto. No trecho final da narração, vemos, de fato, que Neco decide deixar de lado os preconceitos e a raiva contra o velho homem para encontrá-lo e ver se é verdadeiramente capaz de afastar o azar do bairro:

Subitamente ele voltou-se e o Neco baixou os olhos com medo de enfrentar aquele rosto de diquixi, que ele temia. Viu depois a sua sombra caminhar e parar junto de si. O coração pulsava-lhe desordenadamente e ele mal sentiu que uma mão negra e enrugada se pusara no seu ombro. Os olhos redondos do Sr. Pedro brilhavam febris, mas ele sorria. O Neco estremeceu. E no acordo que os seus sorrisos selaram ia nascer o Sr. Pedro, e desaparecia o cambungu das barrocas (Santos, 1965, p. 32).

Este parágrafo mostra os sentimentos contrastantes do jovem personagem a respeito do médium e das crenças tradicionais que ele representa. O velho Pedro ainda tem um aspecto assustador mas, ao aproximar-se a Neco, a aparência maldosa esvanece. O menino cai em transe depois de ter olhado para o sorriso do ancião, que parecia um diquixi mas, após ter aberto os olhos, o “cambungú das barrocas” desaparece para sempre. Apesar dos preconceitos negativos contra a pessoa de Pedro, o poder das práticas espirituais nativas demostra a sua validade, pela função “evangélica” que adquire, favorecendo o regresso às raízes bantu, partindo da perspectiva colonial cristã imposta pelo poder colonial.

Conclusões

Para terminar, a análise linguística dos contos “A menina Vitória” e “O velho Pedro” de Arnaldo Santos, demonstrou que através de determinadas escolhas lexicais entre quimbundo e português operadas pelo autor, os dois protagonistas se colocam em contraposição dentro da coletânea Quinaxixe por várias razões.

Primeiramente, a menina Vitória parece ser uma personagem positiva, mas na realidade demonstra o seu lado maligno. De fato, ela representa todos os assimilados que recusam a própria identidade racial e cultural para assumir aquelas do colonizador de uma forma agressiva, que replica os métodos usados pelos colonizadores. Como vimos na análise desenvolvida ao longo do presente artigo, a professora aspira a ser portuguesa, comporta-se como tal e denigre Gigi and Matoso através de uma linguagem agressiva, para se afastar deles, considerando-se de “superior”. Por outro lado, o velho Pedro é descrito como um monstro no início do conto, sendo visto pelos meninos do musseque como um dos ogres dos contos tradicionais de origem bantu, mas, no fim da narração, demonstra o seu lado bondoso, por usar a própria sabedoria ancestral para ajudar e cuidar dos membros da comunidade. A sua aparência maléfica esvanece, quando o homem apoia a própria mão no ombro de Neco, estabelecendo, assim, uma relação de confiança e de compreensão mútua.

Ademais, Vitória ensina a língua e a cultura portuguesas de forma repressiva, e espera que os seus alunos mudem a própria maneira de falar e de pensar, seguindo os ditados dos colonizadores. Neste contexto, a língua do colonizador torna-se a única forma de comunicação possível, de acordo com as políticas postas em ato na época da publicação do livro de Santos. Por outro lado, Pedro consegue resolver a distúrbio da fala de Juju, devido a uma trauma que sofreu por ter encontrado o cambungú, o monstro da narrativa tradicional bantu. Depois da visita do velho Pedro, a mulher consegue falar normalmente e supera o transtorno de ansiedade que tinha. O médium, falando com as palavras dos ancestrais, transmite, assim, um conhecimento antigo para o bem da comunidade inteira, contrariamente aos estereótipos criados pelos colonizadores.

Além disso, o conto “A menina Vitória” termina negativamente, com a palmatória de Gigi que é humilhado pela professora e pelos colegas da turma. Contudo, o jovem protagonista aprende a ser orgulhoso pela própria identidade, apesar dos sofrimentos que esta escolha lhe possa causar. Por outro lado, o fim de “O velho Pedro” é positivo, de fato o monstro dos contos tradicionais bantu desaparece para sempre e o ancião mostra a própria índole benévola pela capacidade de curar todos os problemas de saúde dos membros da comunidade através das habilidades mediúnica que aprendeu com os ancestrais. O protagonista desta narrativa representa o legado das culturas bantu que está por desaparecer, devido às mudanças socioculturais em ato, enquanto os meninos do musseque personificam o futuro da sociedade angolana que, na época, não era ainda um país autônomo. Contrapondo o antigo com o novo, a língua quimbunda com a portuguesa, o autor consegue representar duas realidades distintas, a do dominante e a do dominado, de uma forma que subverte a hierarquia estabelecida pelo poder colonial, considerado o fim positivo deste conto.

Para terminar, o presente artigo ressaltou algumas das estratégias lexicais adotadas por Arnaldo Santos para descrever a própria sociedade e criticar o regime colonial, através de uma linguagem que incorpora termos de origem quimbunda num texto maioritariamente português, mas na sua variedade angolana, representando, assim, a maneira de falar dos marginalizados da sociedade luandense, na época da publicação do livro Quinaxixe. Em detalhe, Santos coloca no centro da própria narrativa a figura dos assimilados, que se põem numa posição controversa por recusar a própria identidade e abranger a língua e a cultura do opressor, apesar das atrocidades do colonialismo, que provocaram alienação e intolerância. Representando a sociedade luandense, dentro e fora do ambiente escolar, através de um amplo leque de registros linguísticos, o autor consegue discutir as tensões da própria sociedade que questiona a identidade dos angolanos e deseja um futuro melhor e próspero para o futuro país angolano, em nome da liberdade de expressão.


*Vincenzo Cammarata é pesquisador de doutorado do King’s College London, Departamento SPLAS, Reino Unido. A sua área de investigação se baseia na análise linguística e literária relativamente à tradição oral de origem bantu, na narrativa curta pós-colonial angolana. Vincenzo é mestre em Tradução Audiovisual (Sheffield University, Reino Unido) e licenciado em Mediação Linguística paras as Instituições, as Empresas e o Comércio (Università della Tuscia, Itália).

Referências

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dossiê
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A TRAJETÓRIA DO NEGRO PÓS-ABOLIÇÃO EM DIÁRIO DE BITITA

Resumo: Carolina Maria de Jesus ficou nacional e internacionalmente conhecida após a publicação de seu primeiro diário, Quarto de despejo: diário de uma favelada, em 1960, em que retratava sua rotina miserável no ambiente da favela e sua luta diária para se sustentar, bem como alimentar os três filhos. Neste artigo, procuro estabelecer uma relação entre a ideologia escravocrata de depreciação do negro e a trajetória dos negros que nasceram pós-abolição, por meio dos relatos de Carolina Maria de Jesus em seu livro de memórias publicado postumamente, Diário de Bitita (1986), no qual relata sua trajetória de vida desde a infância até a chegada a São Paulo, denunciando as dificuldades enfrentadas para sobreviver em um mundo feito pelos brancos e para eles.

Palavras-chave: trajetória; negro; Carolina Maria de Jesus.

Abstract: Carolina Maria de Jesus became nationally and internationally known after the publication of her first diary: Child of the dark: the diary of Carolina Maria de Jesus, in 1960, in which she portrayed her miserable routine in the favela environment and her daily struggle to support herself, as well as food the three children. In this article, I intend to establish a relationship between the slave-owning ideology of the depreciation of the black people and the trajectory of the blacks that were born after the abolition. It will be used as study object the accounts of Carolina Maria de Jesus in his posthumously published memoir Diário de Bitita (1986) in which Carolina recounts his life trajectory from childhood until her arrival in São Paulo, denouncing the difficulties faced in surviving in a world made by and for white people.

Keywords: trajectory; black people; Carolina Maria de Jesus.

Houve um tempo em que lugar do negro era na senzala.
Hoje trancam a gente na favela.
(Carolina Maria de Jesus)

Carolina Maria de Jesus ficou nacional e internacionalmente conhecida após a publicação de seu primeiro diário, Quarto de despejo: diário de uma favelada, em 1960, em que retratava sua rotina miserável no ambiente da favela e sua luta diária para se sustentar, bem como alimentar os três filhos. Ao tomar a favela como a atual senzala do negro, Carolina Maria de Jesus reconhece que a trajetória do negro é extremamente desigual em uma sociedade que ainda não superou a ideologia escravocrata.

Neta de um negro cabinda escravizado, filha de uma negra nascida sob a lei do ventre livre, Carolina Maria de Jesus conheceu, desde pequena, por meio das histórias do avô, não somente as atrocidades cometidas contra os negros durante o regime escravocrata, mas também tomou conhecimento das histórias de resistência, como as de Zumbi dos Palmares. Além disso, ela também vivenciou, durante toda a sua trajetória de vida, as dificuldades enfrentadas para sobreviver em um mundo feito pelos brancos e para eles.

Em virtude disso, neste trabalho[1], procuro estabelecer uma relação entre a ideologia escravocrata de depreciação do negro e a trajetória dos negros que nasceram pós-abolição, por meio dos relatos de Carolina Maria de Jesus em seu livro de memórias publicado postumamente, Diário de Bitita (1986).

Construindo a ideologia de depreciação do negro

Desde o início do século XIX, o Brasil se vê forçado a produzir argumentos sólidos que embasem e justifiquem a continuidade do sistema escravocrata aqui, tanto diante da pressão inglesa, quanto diante da noção europeia de nação moderna e civilizada que se espalhava nacional e internacionalmente entre políticos e pensadores abolicionistas da época.

Os trezentos anos de escravidão no Brasil e o esforço empregado para que ela não tivesse fim, enquanto um sistema econômico rentável para uma elite minoritária, fundamentam uma ideologia ainda existente (mas camuflada) de superioridade da raça branca, da inferioridade da mulher e do negro, da existência de uma língua pura, culta, correta e escrita, em detrimento de uma inculta e “errada” e oral.

Olhando para trás, na época da escravidão, é possível compreender os mecanismos de manutenção dessa ideologia. Nesse contexto, a elite escravocrata procurou difundir no país um ideal de depreciação da raça negra em todos os aspectos (físicos, intelectuais, culturais, psicológicos, religiosos, morais etc). Segundo Taunay (2001, p. 52-53):

A inferioridade física e intelectual da raça negra, classificada por todos os fisiologistas como a última das raças humanas, a reduz, naturalmente, uma vez que tenha contatos e relações com outras raças, e especialmente a branca, ao lugar ínfimo, e ofícios elementares da sociedade. Debalde procuram-se exemplos de negros cuja inteligência e produções admiram. O geral deles não nos parece suscetível senão no grau de desenvolvimento mental a que chegam os brancos na idade de quinze a dezesseis anos. A curiosidade, a imprevisão, as efervescências motivadas por paixões, a impaciência de todo o jugo e inabilidade para se regrarem a si mesmos; a vaidade, o furor de se divertir, o ódio ao trabalho, que assinalam geralmente a adolescência dos europeus, marcam todos os períodos da vida dos pretos, que se podem chamar homens-criança e que carecem viver sob uma perpétua tutela: é pois indispensável conservá-los, uma vez que o mal da sua introdução existe, em um estado de escravidão, ou próximo à escravidão; porém, esta funesta obrigação dá os seus péssimos frutos, e o primeiro golpe de vista nos costumes, moralidade e educação desengana o observador e o  convence de que a escravidão não é um mal para eles, e sim para os seus senhores.

Este trecho, retirado da obra Manual do agricultor brasileiro, escrita por Taunay, em 1829, mas publicada em 1839, demonstra que o autor representa os defensores do sistema escravocrata, descrevendo o negro como um ser completamente inferior e que a escravidão é um mal para o senhor que é obrigado, pelo regime, a conviver com ela.

Sob essa ótica, uma das justificativas para a continuidade da escravidão é o fato de a raça negra estar em posição completamente inferior à do branco, e os senhores é que “sofrem” por terem que conviver com esse “mal” e de trazê-lo no seio de sua família, que corre o risco de se corromper com ele. Todavia, esse mal é necessário: segundo Alencar (2009 – com primeira publicação em 1867), o homem foi o primeiro capital do próprio homem e “se a escravidão não fosse inventada, a marcha da humanidade seria impossível, a menos que a necessidade não suprisse esse vínculo por outro igualmente poderoso” (2009, p. 286).

Já os abolicionistas da época procuravam rebater a questão da inferioridade da raça e atribuíam ao sistema escravocrata o embrutecimento do negro. José Bonifácio de Andrada e Silva publicou em 1823:

Se os negros são homens como nós, e não formam uma espécie de brutos animais; se sentem e pensam como nós, que quadro de dor e de miséria não apresentam eles à imaginação de qualquer homem sensível e cristão? Se os gemidos de um bruto nos condoem, é impossível que deixemos de sentir também certa dor simpática com as desgraças e misérias dos escravos; mas tal é o efeito do costume, e a voz da cobiça, que veem homens correr lágrimas de outros homens, sem que estas lhes espremam dos olhos uma só gota de compaixão e ternura. Mas a cobiça não sente nem discorre como a razão e a humanidade (Silva, 2000, p. 25).

Apelar para a questão da humanidade em uma cultura intitulada católica e seguidora dos preceitos de Cristo leva ao questionamento de como um cristão poderia escravizar outro homem. Os escravocratas argumentavam que era para torná-los também cristãos que a escravidão tinha valor. Segundo Taunay (2001, p. 72):

Vimos que uma das cláusulas tácitas da compra dos escravos era a sua conversão: os senhores têm portanto obrigação, não menos como cidadãos do que como cristãos, de lhes mandar ensinar e praticar a religião, sendo aliás o meio mais eficaz de os conservar obedientes, laboriosos, satisfeitos da sua condição e de ocupar inocentemente as horas de domingo.

A preocupação em tornar os escravos cristãos também se dava mais por uma questão de dominação do que de humanidade. Para a Igreja, a “inteligência do negro” não permitia que ele compreendesse os “sublimes dogmas”, por isso era necessário que ele participasse da fé dos senhores para suprir a “alegria e a esperança no coração dos pretos” e como forma de amenizar a relação senhor/escravo, o que, na realidade, surtiu mais como um apagamento da cultura e das crenças que os negros possuíam (Taunay, 2001, p. 73).

Além disso, vem do livro religioso cristão, a Bíblia, a “associação da cor preta com maldade e feiura, e da cor branca com bondade e beleza” (Brookshaw, 1983, p. 12). Assim, toda a religiosidade cristã trazida ao Brasil pelos portugueses não impediu a prática dos maus tratos em relação aos escravos como algo corriqueiro e como regra para manter a ordem do sistema. De acordo com Taunay (2001, p. 54-55):

A escravidão priva o homem livre da metade de sua virtude. Este rifão não foi feito para os pretos, sim para brancos, oriundos da primeira das raças humanas, da caucásica, e até para republicanos, gregos e romanos. Que diremos dos pretos de raça ínfima e sujeita aos apetites brutos do homem selvagem? Qual será a mola que os poderá obrigar a preencher os seus deveres? O medo, e somente o medo, aliás empregado com muito sistema e arte, porque o excesso obraria contra o fim que se tem em vista.

Sempre que os homens são aplicados a um trabalho superior ao prêmio que dele recebem, ou mesmo repugnante à sua natureza, é preciso sujeita-los a uma rigorosa disciplina, e mostrar-lhes o castigo inevitável.

Medo e castigos eram os meios para a disciplina diante de tanto trabalho forçado. O autor, ainda afirma, na sequência, que sem castigo “um preto se não sujeitaria nunca à regularidade de trabalhos que a cultura requer” (Taunay, 2001, p. 55). A preocupação em tornar os escravos cristãos também se dava mais por uma questão de dominação do que de humanidade.

Além disso, nem os abolicionistas conseguiram se livrar totalmente do ideal escravocrata, uma vez que, até mesmo sua “‘consciência abolicionista’ era antes um patrimônio dos próprios brancos, que lideravam, organizavam e ao mesmo tempo continham a insurreição dentro de limites que convinham à ‘raça’ dominante” (Fernandes, 1972, p. 87).

Portanto, em prol da moral, da cristandade, da economia e do progresso nacional, a elite foi procurando manter vivo seu ideal nas gerações seguintes. Segundo Bernd (1988), “o maior perigo da ideologia, como se sabe, não é apenas permitir a dominação de um grupo sobre o outro, mas procurar atribuir a causas falsas, apresentadas de preferência através de um discurso pretensamente científico e verdadeiro, a dominação real”. E, assim, tendo como pano de fundo uma ideologia de uma elite construída com base na importância econômica do trabalho escravo, fecundada por ideias da superioridade da raça branca e da maldição que acompanha a raça negra no campo religioso (os filhos de Cam).

A ideologia favorecia os dominadores na medida em que também era uma forma de controle do escravo. Carolina Maria de Jesus relata em Diário de Bitita:

Os abolicionistas instigavam os negros a não obedecer aos sinhôs. Mesmo que eles quisessem fazer um levante estariam sós, não poderiam contar com a cooperação dos seus escravos. Começaram a dar presentes aos escravos. Furavam orelhas das negrinhas, ofereciam-lhes brincos de ouro com a pretensão de reconquistá-los. Mas já eram quase 400 anos de sofrimento.

[…] Os sinhôs haviam espalhado que eles eram amaldiçoados pelo profeta Gam. Que eles haviam de ter a pele negra e ser escravos dos brancos. A escravidão era como cicatriz na alma do negro (Jesus, 2014, p. 61).

Assim, por meio de uma ideologia dominante que favorecia o senhor branco, a abolição no Brasil foi muito tardiamente assinada. Segundo Bernd (1988, p. 7-8):

Último país da América a proceder à abolição do ultrapassado sistema escravocrata, o Brasil o faz de maneira a beneficiar mais uma vez a classe dominante, não criando as condições mínimas para que o contingente negro, egresso das senzalas, fosse absorvido pelo mercado de trabalho urbano na nova sociedade brasileira.

Além de ter sido um processo que beneficiou a classe dominante, não possibilitou que o negro construísse uma “consciência social própria da situação”:

Quanto ao negro, com a Abolição ele perdeu os liames humanitários que o prendiam aos brancos radicais ou inconformistas e deixou de formar uma consciência social própria da situação. Como foi mais tutelado que a gente do processo revolucionário, não tinha uma visão objetiva e autônoma dos seus interesses e possibilidades. Converteu a liberdade em um fim em si e para si, sofrendo com a destituição uma autêntica espoliação – a última pela qual a escravidão ainda seria responsável (Fernandes, 1972, p. 87).

Assim, após a abolição, o negro ficou entregue à própria sorte dentro de um contexto histórico, cultural e econômico que o excluía, pois toda a justificativa que a sociedade escravocrata utilizou durante anos para colocar o negro como um ser inferior não iria naturalmente nem facilmente desaparecer das práticas sociais. Agora então é que o processo de abolição se inicia e o negro terá uma batalha árdua para enfrentar que continua até os dias atuais.

O “mundo dos brancos”

Ao analisar a sociedade paulista já em meados do século XX, Fernandes (1972) aponta, a princípio, dois problemas mais evidentes na atitude daquela sociedade (que se aplicava também a toda a sociedade brasileira da época) que geravam discrepância na relação do negro e do branco: o primeiro é o preconceito de não ter preconceito e o segundo é o mito da existência da democracia racial.

Para a sociedade brasileira, o preconceito de cor é considerado algo ultrajante e degradante, algo completamente condenável. No entanto, isso fica mais no plano ideal e conceitual porque, na ação concreta e direta, o racismo se apresenta como algo absorvido em manifestações que não são consideradas como preconceituosas. Ou seja, uma adaptação de “falsa consciência”, resultado do grande período de escravidão (Fernandes, 1972, p. 25). Para o pesquisador,

Esse mecanismo adaptativo só se tornou possível porque as transformações da estrutura da sociedade, apesar da extinção da escravidão e da universalização do trabalho livre, não afetaram de modo intenso, contínuo e extenso o padrão tradicionalista de acomodação racial e a ordem racial que ele presumia (Fernandes, 1972, p. 25).

Trata-se, portanto, de um mecanismo historicamente firmado em que não há “um esforço sistemático e consciente para ignorar ou deturpar a verdadeira situação racial imperante”, dessa forma, o mecanismo se configura em uma prática de esquecer o passado ou deixar que as coisas se resolvam por si mesmas, que condenam o negro e o mulato “à desigualdade racial com tudo que ela representa no mundo histórico construído pelo branco e para o branco” (Fernandes, 1972, p. 25-26).

O mundo feito pelos brancos causou uma cissura na relação entre negros e mulatos, narrada por Carolina Maria de Jesus em Diário de Bitita:

A tia Ana Marcelina, irmã de minha avó materna, era mulata clara. A mulata cabedal. Não gostava de preto. Dava mais atenção aos brancos. […]
Tenho pouca coisa de dizer dessa tia, porque ela era mulata. E havia, como divisa das famílias, o preconceito de cor. Minha tia vestia roupas finas iguais às dos brancos. Esforçava-se para viver igual aos ricos. Residia numa casa confortável. […]
As filhas gostavam de dançar. Nos bailes dos brancos, elas não iam porque não eram convidadas. Nos bailes dos negros, elas não queriam ir. Quando nós, os sobrinhos pretos, íamos visitá-la, não tínhamos o direito de entrar. Casa de mulato, o negro não entra (Jesus, 2014a, p. 70).

No mundo dos brancos, o mulato ficava em um entre-lugar, pois não era negro nem branco. Esse mundo feito por brancos e para eles se acomoda na ideia da democracia racial que, segundo Fernandes (1972, p. 26) “constitui uma distorção criada no mundo colonial, como contraparte da inclusão de mestiços no núcleo legal das “grandes famílias” – ou seja, como reação a mecanismos efetivos de ascensão social do “mulato”. Esse mulato integrado à família antes escravagista compõe o processo de miscigenação, que deu continuidade à ordem racial, e sua hierarquia foi mantida pelo regime escravista.

Por isso, à miscigenação corresponderam mecanismos mais ou menos eficazes de absorção do mestiço. O essencial, no funcionamento desses mecanismos, não era nem a ascensão social de certa porção de negros e de mulatos nem a igualdade racial. Mas, ao contrário, a hegemonia da “raça dominante”, ou seja, a eficácia das técnicas de dominação racial que mantinham o equilíbrio das relações raciais e asseguravam a continuidade da ordem escravista (Fernandes, 1972, p. 27).

Com isso, muitos mestiços integrados eram socializados e educados dentro das famílias para agirem como “brancos”, sendo este o parâmetro para integração social. Surge, com essa prática, a ideia do “negro de alma branca” um protótipo do “negro leal, devotado ao seu senhor, à sua família e à própria ordem social existente” (Fernandes, 1972, p. 27). Sob essa ótica, esse comportamento ocorria em benefício do próprio negro e nos casos em que os negros ou mulatos não atingissem esse ideal do negro como imitação do branco atribuíram-se a eles uma “incapacidade residual do ‘negro’ de igualar-se ao ‘branco’” (Fernandes, 1972, p. 28).

Ao negro, cabe aceitar as regras do jogo que impõe os limites da linha de cor, ou romper com esse padrão, que o torna um inferior permanente na convivência com o branco. Mas esse não era o caso da maioria da população negra. De acordo com Fernandes (1972, p. 85):

Tudo se passou, historicamente, como se existissem dois mundos humanos contínuos, mas estanques e com destinos opostos. O mundo dos brancos foi profundamente alterado pelo surto econômico e pelo desenvolvimento social, ligados à produção e à exportação do café, no início, e à urbanização acelerada e à industrialização, em seguida. O mundo dos negros ficou praticamente à margem desses processos sócio-econômicos, como se ele estivesse dentro dos muros da cidade mas não participassem coletivamente de sua vida econômica, social e política.

Os negros que não voltaram para suas regiões de origem, após a abolição, para trabalhar no campo (também de forma explorada), continuaram nas cidades grandes em busca da sobrevivência em trabalhos precários de subsistência, reclusos em cortiços e depois concentrados nas favelas. Na disputa com os imigrantes, o negro saíra perdendo, sendo que os imigrantes ocupavam as novas oportunidades e, ao negro, cabiam certas atividades que mais ninguém queria realizar. Em suma, Fernandes (1972, p. 17) aponta a pobreza da brasilidade como uma herança do passado escravocrata:

A brasilidade que herdamos do passado escravocrata e das primeiras experiências de universalização do trabalho livre, é demasiado estreita e pobre para fazer face aos dilemas humanos e políticos de uma sociedade racial e culturalmente heterogênea. Temos de aprender a não expurgar os diferentes grupos raciais e culturais do que eles podem levar criadoramente ao processo de fusão e unificação, para que se atinja um padrão de brasilidade autenticamente pluralista, plástico e revolucionário.

Diante dessa pobreza, até mesmo de identidade herdada da escravidão, em busca da identidade plural, uma quebra dessa tradição é necessária, de modo que se busque a democracia tanto racial, como em geral:

Quanto ao mais, não é só a democracia racial que está por constituir-se no Brasil. É toda a democracia na esfera econômica, na esfera social, na esfera jurídica e na esfera política. Para que ela também se concretize no domínio das relações raciais, é mister que saibamos clara, honesta e convictamente o que tem banido e continuará a banir a equidade nas relações de “brancos”, “negros” e “mestiços” entre si. A chamada “tradição cultural brasileira” possui muitos elementos favoráveis à constituição de uma verdadeira democracia racial (Fernandes, 1972, p. 23).

Assim, é a democracia que se enfraquece quando se ignoram os problemas que a tradição cultural ligada à escravidão gerou em nossa sociedade. Ao conhecer e reconhecer esses problemas, estratégias para superá-los podem ser traçadas de modo que todos possam contribuir igualitariamente para a consolidação da democracia no país.

Carolina Maria de Jesus e Diário de Bitita

Em meio a este “mundo dos brancos” há quem se questione como Carolina Maria de Jesus conseguiu publicar seus livros. Primeiramente, ela precisou de um intermediador para publicar seu diário Quarto de despejo, o jornalista Audálio Dantas, que produziu um ambiente propício para a recepção do diário pelo público. A partir de reportagens escritas por ele, publicadas em jornal e revista, o primeiro livro de Carolina Maria de Jesus foi aguardado pelo público e tornou-se um grande sucesso de vendas. No entanto, o sucesso foi por um curto espaço de tempo e, em 1961, o segundo diário de Carolina Maria de Jesus, Casa de alvenaria: diário de uma ex-favelada (1961), não vendeu e a autora passou a ter dificuldades para conseguir publicar outras obras. Uma das causas dessa trajetória curta entre o auge e o esquecimento é o fato de o “mundo dos brancos” tê-la tratado como “exceção cultural”:

Carolina Maria de Jesus, a autora de diários, foi expressão de uma situação única onde o sucesso de uma negra poderia ter ocorrido além do destaque como cantora ou esportista. Ela só conseguiria, contudo, ter existido enquanto exceção cultural e alguém feito para aquele momento exato. Assim mesmo, precisou do prestígio de um homem, branco, já reputado jornalista, Audálio Dantas, para apresentá-la à sociedade brasileira. Sozinha, possivelmente pouco teria feito além de cuidar dos filhos e catar papel (Meihy, 1996, p. 13).

O negro de sucesso visto como exceção é fruto da tradição cultural escravocrata, que, além disso, desfavorecia a mulher:

Ser negra num mundo dominado por brancos, ser mulher num espaço regido por homens, não conseguir fixar-se como pessoa de posses num território em que administrar o dinheiro é mais difícil do que ganhá-lo, publicar livros num ambiente intelectual de modelo refinado, tudo isto reunido fez da experiência de Carolina um turbilhão (Meihy e Levine, 2015, p. 70).

É claro que o fato de Carolina ter conseguido sair da favela, juntamente com seus três filhos, já foi um enorme feito para uma mulher negra, favelada, sozinha, com pouco estudo formal. Mas ela não queria apenas sair da favela, objetivava ser reconhecida como escritora, como uma cidadã com plenos direitos, não como uma exceção.

No entanto, os responsáveis pela promoção dos dois primeiros diários de Carolina Maria de Jesus queriam manter a imagem da “escritora favelada”, da “escritora de diários” somente, que representava a “fórmula inicial do seu sucesso” e, além de ignorarem suas demais produções, procuravam manter a ligação de Carolina Maria de Jesus com a favela como algo indissociável, por isso é comum a imagem da escritora, com lenço na cabeça e no ambiente da favela, mesmo depois de ter se mudado dele.

Carolina Maria de Jesus na favela
Carolina Maria de Jesus na favela
Fonte: Audálio Dantas. Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2014/11/1550499-escritora-carolina-maria-de-jesus-viveu-do-caos-ao-caos.shtml

Ao não aceitar as imposições cobradas pela mídia – tornar-se “branca”, ou seja, adotar comportamentos aceitáveis dentro daquela sociedade, Carolina Maria de Jesus passou por insubordinada, difícil, arrogante, dentre outras qualificações que depreciavam sua imagem. Porém, sua atitude era completamente aceitável para alguém que compreendia que a escravidão já tinha acabado, e que buscava a liberdade ainda relegada ao contexto feminino, principalmente ao negro:

Carolina foi, pode-se dizer, uma guerreira valente contra as tropas de herança racista, anti-interiorana, preconceituosa em relação às mulheres e, sobretudo uma pessoa afrontadora da marginalidade e da negligência política. Rebelava-se sozinha e por isso jamais chegou a ser revolucionária ou heroína permanente. Sequer foi musa de causas coletivas. Houve um momento em que, ainda que de maneiras contraditórias e estranhas, ela cabia em todas as frentes e, ao mesmo tempo, não servia por longo período a nenhuma. Por isso é provável que tenha sido deixada por todos. De qualquer forma, não se rendeu ao Estado ou a instituições, nem a maridos, ainda que muitas vezes estivesse tão próxima de adulá-los como de feri-los (Meihy e Levine, 2015, p. 21).

O estado de exceção vivido por Carolina colocava-a em uma “moldura” com um retrato empalidecido, o que definitivamente ela não aceitou e, sem conhecimento de como modificar a situação, ela demonstrava comportamentos contraditórios:

Negra, favelada, sozinha, semi-analfabeta, cabeça de família e pretensamente de oposição à ordem estabelecida, Carolina teria tudo para não dar certo. Neste sentido, suas constantes contradições argumentativas e vivenciais, antes de diminuí-la, a engrandecem, pois a tornam mais normal em sua anormalidade contextual. Excluídos os estalados momentos de glórias, sua obra não se constituiu em exceção do tratamento racista que a sociedade delegava aos que habitavam as franjas do progresso. Fora da moldura que segurava seu retrato, pálido para a efetiva sociedade dos brancos, ela não conseguiu praticamente nada. Sequer exibiu-se poetisa (Meihy, 1996, p. 13).

Portanto, a retomada de sua trajetória permite compreender melhor a jornada contraditória de Carolina no mundo dos brancos e no mundo dos negros, em uma tentativa de sobreviver nesses mundos e de existir neles, ela acabava se distanciando e se isolando cada vez mais no seu próprio mundo.

Em 1972, Carolina Maria de Jesus estava tentando publicar sua autobiografia, denominada “O Brasil para os brasileiros”, mas não foi algo bem recebido pela imprensa que via a iniciativa como mais uma tentativa da escritora de trazer a fama de volta (Meihy e Levine, 2015, p. 47). Assim, antes de falecer, ela entregou uma cópia dessa autobiografia para uma jornalista francesa que a publicou na França, em 1982, com o título de Journal de Bitita.

Diário de Bitita, diferentemente de Quarto de despejo e Casa de alvenaria, não é estruturado em formato de diário, ao contrário do que diz seu título. Trata-se de narrativas memorialísticas da infância da escritora, com uma linguagem estruturada, mais elaborada do que nos dois primeiros diários. Isso porque o trabalho de edição ocorreu duplamente (pela jornalista brasileira Clélia Pisa, que traduziu do português para o francês, e pela editora francesa Anne-Marie Métailié, que adaptou o texto para o público francês), o que resultou em outro texto, diferente da proposta original apresentada por Carolina Maria de Jesus. A versão publicada no Brasil em 1986 é a tradução da versão francesa. Segundo entrevista realizada por Raffaella Fernandez em 2014 (Fernandez, 2019, p. 86), a jornalista Clélia Pisa comenta da seguinte maneira a edição de Journal de Bitita (1982):

[…] Tiramos o que tiramos e o que podíamos tirar. Teve que ser traduzido, e o importante no Journal de Bitita é que fosse um testemunho que pudesse ser lido por um francês que não tivesse nenhuma referência da Carolina. Porque este livro não é o original.

Mesmo passando pela tradução e edição, o Diário de Bitita publicado no Brasil continua tendo seu valor enquanto narrativa memorialística que integra a trajetória de Carolina Maria de Jesus como narradora e personagem de si.

Em Diário de Bitita, Carolina Maria de Jesus demonstra, por meio dos relatos de sua memória, o que Fernandes (1972) constatou em seus estudos sobre o “negro no mundo dos brancos”, a saber:

  • A degradação moral, o negro enquanto mau exemplo:

Quando os negros bebiam, eu pensava: “Por que é que só os pretos bebem?”. Mas os brancos bebiam dentro de suas casas. Se um branco cambaleava nas ruas diziam que era indisposição, mal-estar. Se um branco bebia nos bares era repreendido: – Você está imitando os negros? Arranjou um negro para ser seu professor? A única coisa que está ao alcance do negro para ele nos ensinar é beber pinga. Na pinga eles são catedráticos (Jesus, 2014, p. 55).

  • Emprego de violência contra o negro:

Quando havia um conflito, quem ia preso era o negro. E muitas vezes o negro estava apenas olhando. Os soldados não podiam prender os brancos. Ter uma pele branca era um escudo, um salvo-conduto (Jesus, 2014, p. 55).

  • Falta de instrução técnica e falta de autodisciplina do assalariado:

Eu notava que os brancos eram mais tranquilos porque já tinham seus meios de vida. E para os negros, por não ter instrução, a vida era-lhes mais difícil. Quando conseguiam algum trabalho, era exaustivo. O meu avô com setenta e três anos arrancava pedras para os pedreiros fazerem os alicerces das casas. Os pretos, quando recebiam aquele dinheirinho, não sabiam gastar em coisas úteis. Gastavam comprando pinga (Jesus, 2014, p. 59).

  • Concorrência desfavorável com o imigrante no mercado de trabalho:

Minha tia Claudimira trabalhava para os sírios que vinham com imigrantes para o Brasil. E aqui conseguiam até empregadas. Ganhava trinta mil-réis por mês, para lavar a roupa, passá-la, cuidar das crianças, da casa e da cozinha.
Pensava: “Por que será que eles deixam a sua pátria e vêm para o Brasil?”. E dizem que o nosso país é um pedacinho do céu. Não havia motivos para odiá-los. Porque gostavam do país, e não perturbavam. Pensei: “Será que o Brasil vai ser sempre bom como dizem eles? Por que será que o estrangeiro chega pobre aqui e fica rico? E nós, os naturais, aqui nascemos, aqui nós vivemos e morremos pobres?”.
Ouvia dizer que os estrangeiros que já estão há mais tempo no Brasil auxiliavam os patrícios pobres. Que os brasileiros ricos não auxiliavam o brasileiro pobre. Que não confiam. Os estrangeiros não vinham pobres. Eles não eram analfabetos e dominavam o comércio (Jesus, 2014, p. 63-64).

Além desses relatos que atestavam a existência do “mundo dos brancos”, há as situações em que ela própria vivenciou sendo uma criança negra e pobre, como o preconceito racial presente nas falas de vizinhas e parentes: “– Dona Cota, espanca essa negrinha! Que menina cacete! Macaca” (Jesus, 2014, p. 16); “– Que negrinha feia! Além de feia, antipática. Se ela fosse minha filha eu matava” (Jesus, 2014, p. 18). Bitita ia tentando construir sua identidade em relação a sua cor, “Eu pensava que era importante porque a minha madrinha era branca” (Jesus, 2014, p. 17). O tratamento negativamente diferenciado com relação ao negro deixava a menina confusa: “Eu sabia que era negra por causa dos meninos brancos. Quando brigavam comigo, diziam:/– Negrinha! Negrinha fedida!” (Jesus, 2014, p. 95). Assim, Carolina percebia-se negra em contato com os brancos. E foi notando que, na relação com o branco, o negro era inferiorizado, isto a deixava triste e a questionar: “Fui ficando triste. O mundo há de ser sempre assim: negro para aqui, negro para ali. E Deus gosta mais dos brancos do que dos negros. Os brancos têm casas cobertas com telhas. Se Deus não gosta de nós, por que é que nos fez nascer? (Jesus, 2014, p. 95).

Sua memória mantém o mesmo tom crítico e de denúncia contra os maus-tratos dos patrões e patroas contra os negros que trabalhavam para eles, contra a polícia analfabeta, contra políticos, denunciava o abuso sexual das meninas negras pelos filhos dos patrões.

Com a chegada dos italianos, muitos negros passaram a trabalhar para eles por um salário como qual o negro não sabia o que fazer. Então compravam roupas e sapatos. Enquanto que os italianos compravam mais terras e construíam casas de aluguéis nas cidades.

Antes de narrar que foi pega em flagrante roubando manga no quintal da vizinha, Carolina Maria de Jesus previamente defende sua honestidade que, para ela, é algo inquestionável:

Mas não sentia tranquilidade interior. O meu subconsciente me advertia que havia praticado um ato indigno. Eu não tenho coragem de roubar. Devo e deverei lutar para conseguir tudo com honestidade. Tinha a impressão de que alguém sussurrava nos meus ouvidos – seja honesta, seja honesta, seja honesta –, como se fosse um tique taque de um relógio (Jesus, 2014a, p. 57).

Essa necessidade de assegurar sua honestidade, mesmo quando criança, é uma forma de se contrapor ao estereótipo instituído de que a criminalidade é intrínseca ao negro. Assim, ações que, para uma criança branca, soariam como peraltices da infância, para o negro, representavam indícios de criminalidade e desonestidade. Além disso, em sua trajetória pelo mundo dos brancos, Carolina Maria de Jesus foi presa injustamente por duas vezes, a primeira vez, acusada de roubar dinheiro de um padre; na segunda, acusada de bruxaria por ler o livro de “São Cipriano” quando na verdade ela lia um dicionário.

E assim, para a menina negra e pobre, crescer era um problema por perceber que suas expectativas diante do futuro não eram as melhores. Além disso, havia no âmbito familiar da menina a violência, promovida muitas vezes pelo excesso de bebida. No entanto, o avô procurava animar os netos ao dizer que essa realidade dos negros estava mudando: “O vovô nos contava que os pretos que moravam nas cidades grandes já sabiam ler e tinham até dinheiro nos bancos. Ele não sabia ler, mas procurava saber se os negros já estavam subindo na esfera social. “Oh!”, exclamávamos admirados (Jesus, 2014, p. 83).

O fascínio pela cidade grande aumentou à medida que Carolina Maria de Jesus vivenciou a exploração do trabalhador no campo, bem como a falta de expectativa de quem trabalhava no serviço doméstico pelas cidades do interior de São Paulo por onde Carolina Maria de Jesus passou.

A capital era a promessa de melhoria de vida para muitos negros do interior. Eram muitas as histórias que circulavam por meio de cartas de parentes que diziam que lá era o paraíso. E assim, com muita esperança de dias melhores, encerra-se o tempo de Bitita no interior:

No dia da viagem, não dormi para não perder o horário. O trem saía às sete horas, mas eu cheguei à estação às cinco. Que alegria quando embarquei!
Quando cheguei à capital, gostei da cidade, porque São Paulo é o eixo do Brasil. É a espinha dorsal do nosso país. Quantos políticos! Que cidade progressista. São Paulo deve ser o figurino para que este país se transforme num bom Brasil para os brasileiros.
Rezava agradecendo a Deus e pedindo-lhe proteção. Quem sabe ia conseguir meios para comprar uma casinha e viver o resto de meus dias com tranquilidade (Jesus, 2014, p. 206).

A principal bagagem levada por Bitita a São Paulo foi a esperança. Esperança de dias melhores, de poder trabalhar e não passar fome e de poder comprar sua casa, mas lá a aguardava também “o mundo dos brancos”.

Considerações finais

Durante sua trajetória, Carolina Maria de Jesus buscou um lugar comum, básico, burguês, com sonhos considerados simples, como ter sua casa própria, criar seus filhos honestamente por meio do seu trabalho e da sua aptidão para escrever. Porém esse “local” lhe foi constantemente negado e ela acabou se situando em um não-lugar por não se subjugar ao que a sociedade procurou determinar a ela, desde pequena.

Na infância, era repreendida por pensar, questionar e falar demais, coisas incomuns no seu meio familiar. Na adolescência, a falta de saúde e a pobreza extrema fizeram com que ela peregrinasse por outras cidades, dormindo em ruas, em casas de parentes e conhecidos onde não era bem-vinda ou em Casas de Misericórdia, atendidas por freiras. Na juventude, seu hábito de leitura proporcionou tanto conhecimento que a vida na sua terra natal já não era mais suportável, não havendo acolhimento nem entre os seus familiares. Na fase adulta, ao passar por várias casas exercendo o trabalho doméstico e não vendo nisso a possibilidade de melhoria na sua condição de vida, na possibilidade de adquirir sua casa própria, alimentou o sonho de chegar a São Paulo, como a terra de realizações dos sonhos. Na favela, Carolina se distinguia e se afastava dos favelados por seu conhecimento. Na casa de alvenaria, ela e sua família sofreram preconceito social e racial por não permitirem que eles pertencessem àquele mundo que era exclusivo dos brancos.

Assim, apesar de sua trajetória apresentar vários pontos de intersecção com a da maioria dos negros no Brasil contemporâneos a ela, compartilhando das mesmas condições socioeconômicas, houve um grande diferencial que permitiu a ela transgredir: a importância dada por ela à leitura e à escrita. Isso possibilitou que sua trajetória ficasse eternizada na literatura, por meio dos diários, diferentemente de muitos outros colegas de infortúnio que viveram no anonimato e, assim, morreram. Sua trajetória de vida deve ser conhecida e sua trajetória literária deve ser reconhecida, revisitada e trazida a público. Carolina Maria de Jesus autora-narradora-personagem representa motivação, superação e resistência.

Que a imagem lembrada seja a de Carolina Maria de Jesus escritora, rompendo os estereótipos e as barreiras impostas ao seu sonho de viver pela escrita em um mundo que seja de todos.

Clarice Lispector e Carolina Maria de Jesus
Clarice Lispector e Carolina Maria de Jesus
Fonte: IMS. Disponível em: https://ims.com.br/2017/06/01/sobre-carolina-maria-de-jesus/

* Vanessa Maria Poteriko da Silva é professora de língua portuguesa e inglesa da rede estadual de ensino público no Estado do Paraná; mestre em Letras / Estudos Literários, na linha de pesquisa Literatura, História e Crítica, do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Paraná (PPGL/UFPR).

Referências

ALENCAR, José de. Cartas de Erasmo. José Murilo de Carvalho (Org.). Rio de Janeiro: ABL, 2009. Disponível em: <http://www.academia.org.br/sites/default/files/publicacoes
/arquivos/cartas_de_erasmo_ao_imperador_-_jose_de_alencar.pdf
> Acesso em: 16 jul. 2018.

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Nota

[1] Este artigo foi adaptado da dissertação de mestrado “A trajetória na construção da identidade da personagem-narradora-autora Carolina Maria de Jesus em seus diários”, UFPR, 2019.

dossiê
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HISTÓRIA SOCIOPOLÍTICA DO CABELO CRESPO

Resumo: O cabelo já foi objeto de análise de autores como Freud, Charles Berg e Edmund Leach. Tanto a abordagem psicológica de Freud e Berg quanto a antropológica de Leach foram unânimes em associá-lo a uma conotação sexual ou, mais especificamente, à castração simbólica. C. R. Hallpike (1969), em resposta, é contrário a essa conotação e associa o corte do cabelo ao controle social. Embora compartilhem da crença na sua importância simbólica, os estudiosos das relações raciais opõem-se a essas perspectivas ao reivindicar que a importância do cabelo para negros e negras é irrefutável devido ao seu legado histórico e político específico. Desde a colonização, pressupostos racistas foram formulados e propagados e uma das suas premissas é a negação da beleza aos negros e negras. Nesse contexto, o cabelo foi – e continua sendo –, junto com a cor da pele, um dos principais sinais diacríticos da negritude. Eventos históricos importantes, no entanto, marcaram a revalorização da beleza negra e impulsionaram diversos sujeitos a reinterpretar a sua estética através de uma valorização. Em âmbito global, vários movimentos articularam muito fortemente estética negra e política. Nos anos 1930, um contra discurso jamaicano sobre estética emergiu do Movimento Rastafari. Outro marco do reconhecimento positivo de ser negro refere-se à existência do conceito de negritude de Aimé Cesaire também nos anos 1930. Nos anos 1960 e 1970, com os movimentos “black is beautiful” e “black power”, o cabelo crespo passou a significar orgulho e poder. Nesse contexto, a radicalização em torno do uso do cabelo crespo considerado “natural” foi central, já que este foi reforçado como ícone identitário e cultural. Os reflexos desses movimentos foram sentidos no Brasil. A partir daí, houve um impulso crescente no sentido de também ressignificar as características físicas associadas à negritude, destacando-as e valorizando-as.

Palavras-chave: racismo; escravidão; cabelo crespo; mulheres negras.

Abstract: Hair has already been the object of analysis by authors such as Freud, Charles Berg and Edmund Leach. Both the psychological approach of Freud and Berg as well as the anthropological approach of Leach were unanimous in associating it with a sexual connotation or, more specifically, with symbolic castration. In response, C. R. Hallpike (1969) is contrary to this connotation and associates the haircut to social control. While sharing a belief in hair’s symbolic importance, scholars of Racial Studies oppose to these perspectives by claiming that the importance of hair to black people is irrefutable due to their specific historical and political legacy. Since the period of colonialism, racist assumptions have been formulated and propagated and one of its premises is the denial of beauty to black people. In this context, hair was – and still is -, alongside skin color, one of the main diacritical signs of blackness. However, important historical events marked the revaluation of black beauty and impelled several subjects to reinterpret their own aesthetics through a more positive perspective. At a global level, several movements have articulated very strongly black and political aesthetics. In the 1930s, a Jamaican counter-discursive on aesthetics emerged from the Rastafarian Movement. Another milestone in the positive recognition of being black is Aimé Cesaire’s concept of negritude in the 1930s. In the 1960s and 1970s, with the movements “black is beautiful” and “black power”, natural afro-hair came to mean pride and power. In this context, the radicalization around the use of “afro-hair” considered “natural” was central, since it was reinforced as an icon of identity and culture. Reflexes of these movements could also be perceived in Brazil. From then on, there was a growing impulse to also re-signify these physical characteristics, highlighting and valuing them.

Keywords: racism; slavery; hair; black women.

Primeiras páginas

Neste artigo, discorrerei sobre a história sociopolítica do cabelo crespo a fim de elucidar como foi construído, historicamente, o discurso racista que tem o corpo negro como sua “superfície de inscrição”. Tal discurso atua produzindo subjetividades e afeta profundamente a vida daqueles que subjuga sob o estigma da inferioridade. As expressões “cabelo de negro” e “cabelo ruim” revelam a arbitrariedade de uma dimensão estética que associa a negritude à absoluta negação da beleza (Mercer, 1987). Longe de negar as consequências disso para os homens negros, me debruçarei, por uma questão de escopo, mais sobre as mulheres negras. Elas conhecem a violência do racismo desde muito cedo, principalmente através da maneira como a sociedade taxa o cabelo crespo como “ruim”. Acredito que esse é um dos discursos racistas mais abertamente postulados. Sendo construída social e historicamente, a rejeição/aceitação do ser negro permeia a vida delas em todos os seus ciclos de desenvolvimento humano: infância, adolescência, juventude e vida adulta. De modo geral, os primeiros esforços de transformação do corpo negro datam da infância e do desejo de mudar uma parte específica do corpo: o cabelo crespo através do alisamento capilar (Gomes, 2008).

Importante começar dizendo que os significados do cabelo remetem a um campo fértil de pesquisa e perpassam a obra de autores como Freud, Charles Berg e Edmund Leach. Mesmo a abordagem psicológica de Freud e Berg quanto a antropológica de Leach foram unânimes em associar o cabelo a uma conotação sexual ou, mais especificamente, à castração simbólica. Em resposta, C. R. Hallpike (1969) nega essa conotação e associa o corte do cabelo ao controle social. Embora compartilhem da crença na importância simbólica do cabelo, os estudiosos das relações raciais opõem-se a essas perspectivas e mostram que a importância específica do cabelo para negros e negras é irrefutável devido ao seu legado histórico e político específico. No contexto das relações raciais, o cabelo pode significar relações com a África, construções da negritude, memória da escravidão, autoestima, rituais, estética, técnicas de cuidado apropriadas, imagens de beleza, política, identidade e, também, a intersecção de gênero e raça (Banks, 2000).  Fora todas as tensões que existem quando ideias culturais e sociais são transmitidas através dos corpos.

Segundo Banks (2000), apenas nos anos 1960, debates sobre o que as práticas com o cabelo representam entre mulheres negras surgiram na Academia. Quando o Feminismo Negro chega às universidades, está fortemente associado à necessidade de autodeterminação das mulheres negras sobre a sua própria estética. A geração de feministas negras pós-movimento Black Power construiu, em continuidade, uma nova celebração do “cabelo natural” e da ancestralidade africana, mas com ênfase na autonomia, na irmandade e na diversidade sexual. Esse processo desafiou as convenções de gênero em um mundo no qual o cabelo longo é sinônimo de feminilidade (Kelley, 1997).

Para as mulheres negras, a geografia do corpo serve como um poderoso símbolo da ideologia racista. Um dos elementos-chave para compreender a relevância do cabelo como uma marca identitária entre elas é, justamente, através da história desse imaginário poderoso e dessas crenças dirigidas à negritude e ao corpo feminino.  Esse apanhado histórico remete ao processo de colonização, à escravidão negra e à diáspora africana e, nesse contexto, um nome ganha relevo: Sarah Baartman. Sua vida ilustra, dramaticamente, como o corpo feminino negro se tornou a manifestação física de todas as características negativas associadas à raça. Duplamente distanciada da cultura e ligada à natureza por ser mulher e negra (Ferreira e Hamlin, 2010), Sarah foi uma sul-africana que, adotada aos dez anos na condição de serva, foi levada para Europa para ser exibida nos chamados “circo dos horrores”. Lá recebeu, pejorativamente, o apelido “Vênus Hotentote”. Ela também ficou conhecida como “Vênus Negra” e sua história marca o início de uma violência racial que ficou conhecida como racismo científico.

As exibições de Sarah Baartman nos chamados “Circo do Horrores” ou “zoológicos humanos” eram oferecidas como possibilidade de entretenimento na Europa e ali a diferença racial atuou como mola propulsora capaz de gerar uma distância abissal entre europeus e africanos (Braga, 2015). Nas suas primeiras apresentações, ela era exibida como uma “fera selvagem”, saindo e voltando de uma jaula. Em Londres e em Paris, se tornou famosa entre o público como um “espetáculo”, exibida em cartoons, ilustrações e mesmo em reportagens de jornais. Entre os naturalistas e etnologistas, ela foi medida e observada em cada detalhe de sua anatomia, viva e morta. Nos “circos dos horrores”, corpos humanos eram exibidos como monstruosidades que tinham por função dar ao seu público mais confiança e consciência de si, de sua civilidade, de sua normalidade, de sua preeminência. Sarah permaneceu em Londres por quatro anos e, em 1814, foi vendida a um exibidor de animais francês (Braga, 2015). Para Stuart Hall, o caso de Baartmam reitera uma preocupação – ou até obsessão – com a demarcação da “diferença”; no caso da “Vênus Negra”, essa diferença foi patologizada. Simbolicamente, ela não fazia parte da norma eurocêntrica sobre o que significava ser uma mulher. Seu corpo foi lido, como um texto, a fim de reiterar a irreversível assimetria entre as “raças”. Ela era comparada com feras selvagens, com orangotangos – e não com a cultura humana. A sua “diferença” foi naturalizada e traduzida, sobretudo, na sua sexualidade. Ela foi reduzida ao seu corpo e seu corpo foi reduzido aos seus órgãos sexuais. Sarah também não existia como uma pessoa; ela era um objeto. Seu caso tomou ainda mais importância, à medida que Georges Cuvier, seu “preceptor”, foi o cientista que protocolou, segundo Lilia Schwarcz (1993) o termo raça na ciência moderna. Ou seja, foi pelo corpo de Sarah que nasceu o conceito moderno de raça.

Se, durante o período em que permaneceu na Inglaterra, seu sucesso estava associado à sua exibição pública nos “circos dos horrores”, na França, o fascínio pelo seu corpo assume ares de interesse científico. Ela era exibida seminua em reuniões científicas onde mediam seu corpo, “observavam, desenhavam, escreviam tratados sobre, modelavam em cera, escrutinizavam cada detalhe de sua anatomia” (Hall, 1997, p. 265). Sarah despertou o desejo dos naturalistas de “se beneficiarem da circunstância oferecida pela presença, em Paris, de uma fêmea bosquímana que pode fornecer, com mais precisão do que jamais foi feito até hoje, as características distintivas desta raça curiosa” (Jean Le Garrec, 2002, p. 7 apud Ferreira e Hamlin, 2010).  Em 1815, o corpo nu de Baartman foi exposto ao olhar de cientistas e artistas no Jardin du Roi.  São as ilustrações registradas nessa exibição que compõem parte do livro de Cuvier e Saint-Hilaire, editado alguns anos mais tarde, “História Natural dos Mamíferos”. Nessa obra, Sarah Baartman é representada como uma espécie natural, dentre inúmeras outras, especialmente de macacos.

Depois da sua morte precoce em 1815 (há relatos de que ela acelerou esse processo através do uso excessivo do álcool quando já estava doente)[1], seu corpo foi moldado, dissecado e seu cérebro e sua genitália foram exibidos no Museu do Homem de Paris até 1974. A exibição de partes do seu corpo a transformou, literalmente, em separados pedaços de objetos, uma coisa, “um conjunto de partes sexuais”. Do relatório feito por Georges Cuvier sobre Baartman, nove das dezesseis páginas são usadas para a descrição da sua genitália (Blackledge, 2003, p. 141 apud Ferreira e Hamlin, 2010). O interesse de Cuvier em Sarah era inestimável: ela não era apenas uma mulher, mas, sobretudo, uma mulher negra. Duplamente distanciada da cultura, duplamente ligada à natureza (Ferreira e Hamlin, 2010).  Só quando pareceram “obsoletos”, os seus restos mortais foram arquivados nas prateleiras da reserva técnica do museu, sendo devolvidos à África do Sul após grande mobilização dos povos khoi-san já no governo de Nelson Mandela.  Com a devolução de seu corpo à África do Sul, Sarah Baartman, foi velada e enterrada na Cidade do Cabo em 2002 (Hall, 1997; Damasceno, 2008).

“Sartjee the Hotentot Venus”.
Sartjee the Hotentot Venus”. Fonte: https://www.britishmuseum.org/research/collection_online/collection_object_details.aspx?objectId=1490165&partId=1&people=108609&peoA=108609-1-7&page=1

Se, no século XIX, o corpo europeu masculino representa a normalidade, o que, se não o corpo de uma mulher negra, para representar sua radical alteridade? Não foi por acaso que Jay Gould (1990) notou, ao visitar o Museu do Homem de Paris no início dos anos 1980, que próximo de onde estavam expostos os cérebros de franceses “notáveis” como Renée Descartes e Pierre Broca, representantes do racionalismo francês, não havia um só cérebro de mulher. Como contraponto, eram expostos próximos deles os genitais de “uma negra, uma peruana e da Vênus Hotentote” (Damasceno, 2008).

Segundo Hall (1997) não tem como não lembrar de Fanon em “Pele Negra, Máscaras brancas”, em como ele se sentiu desintegrado, como um homem negro, pelo olhar dos brancos: “os olhares do outro me fixaram lá” (Fanon apud Hall, 1997). Essa substituição da parte pelo todo, de uma coisa – um objeto, uma parte do corpo – pelo sujeito, é o efeito de uma importante prática representacional: o fetichismo. A história da “Vênus Negra” marca o início de uma violência racial que ficou conhecida como racismo científico. Esse discurso era estruturado em um quadro de “oposições binárias” entre a “civilização” (branca) e “selvageria” (negra).  Essas oposições também eram marcadas no corpo, polarizadas em seus extremos opostos. De um lado, refinamento, instituições, governos formais e leis, civilização dos costumes, da vida sexual, emocional e civil etc. foram associados à Cultura, à Europa; de outro, emoção e sentimentos, ausência do refinamento civilizatório na vida sexual e social foram associados à natureza, aos outros, a Sarah Baartman (Hall, 1997). Por isso que, para Mbembe (2014), a raça não passou de uma ficção útil.

No livro 400 years without a comb (1973), um clássico sobre a importância dos cabelos para as negras(os), Willie Morrow afirma que o pente era um artefato cultural muito valorizado na África. Tais pentes, feitos à mão em diferentes tipos de madeira, eram verdadeiras obras de arte. A escravidão, no entanto, forçou os escravizados a abandonar essa tradição. Segundo Morrow, além de deixar o pente para trás, a escravidão também significou a perda da liberdade, da dignidade e do amor-próprio. Os homens negros, por exemplo, diante da nova realidade de negação da sua humanidade e, consequentemente, da sua beleza, muitas vezes cortavam os cabelos extremamente curtos – o que era muito perigoso devido à exposição ao sol no trabalho escravo. Junto com a imposição de um novo padrão estético, os pentes africanos, ideais para o cabelo crespo, foram substituídos por novos artefatos completamente inapropriados para o trato com aquele cabelo (Morrow, 1973). Não é à toa que, frequentemente, é dito que alisar o cabelo é mais simples e fácil de cuidar; ora, isso é verdade se o regime de cuidado é moldado por assunções da branquitude (Taylor, 2016).

Uma das consequências da trágica vida de Sarah Baartman foi que, no espírito do público, ela se tornara a mulher africana “típica” (Braga, 2015). A sua vida remete às raízes históricas do estereótipo da hiperssexualidade da mulher negra e a sua história atravessou o Atlântico, chegando ao Brasil.  Registros de mulheres negras, de certa maneira, comparadas à vênus negra estão espalhadas pelos arquivos do período escravocrata: pinturas, depoimentos de viajantes, anúncios de jornal, relatos históricos (Braga, 2015). Com uma pesquisa que lançou o olhar também sobre os anúncios de jornais brasileiros do século XIX, Amanda Braga (2015) pôde traçar e analisar a história da beleza negra no Brasil. Os anúncios de jornais brasileiros do século XIX guardam, em grande medida, a história de uma economia senhorial e, ao mesmo tempo, dependente de seus escravos. Impregnados pelo cotidiano do país e, consequentemente, pelo intenso comércio de negras escravizadas para fins sexuais, esses anúncios chegavam a ocupar dois terços dos jornais em questão. A constatação da continuidade da história da vênus negra, agora em solo brasileiro, é inevitável. Segundo Freyre ([1963] 2010, p. 114 apud Braga, 2015), “sucedem-se os casos de negros e negras de origem evidentemente hotentote ou bosquímana, que são as populações africanas culatronas por excelência”. Braga (2015) cita vários exemplos de anúncios de jornais tanto de venda de escravas quando de procura de escravas fugidas com menção a termos como “bundas grandes, nádegas salientes, empinadas para trás, nádegas gordas, traseiros arrebitados” etc.

Defendo que compreender como se deu, historicamente, a construção do discurso racista é fundamental para o fim de suplantá-lo. Nesse apanhado, a dimensão estética ganha ênfase, já que a negação da beleza negra é parte estruturante do racismo, que busca desumanizar suas vítimas.  O cabelo crespo/cacheado surge como uma questão desde muito cedo na vida dos negros, sobretudo das mulheres. A manipulação dessa parte do corpo tende a protagonizar os seus rituais de beleza, mesmo durante a infância.

O cabelo crespo no país do mito da democracia racial

É constitutivo do campo de estudos sobre as relações raciais brasileiras a comparação, implícita ou explícita, com os Estados Unidos (Figueiredo, 2002). Para esta pesquisa, a literatura norte-americana sobre cabelo foi muito importante, mas, para entender as nuances do caso brasileiro, é preciso discorrer sobre a especificidade do nosso racismo.  Segundo Lilia Schwarcz (1993), em finais do século dezenove, já perto do fim da escravidão, tomava força, no Brasil, um modelo racial de análise em resposta à hibridação das raças, a qual era tida, naquele contexto, como um grande “tumulto”. As teorias raciais chegam tardiamente aqui, recebendo, em contrapartida, uma entusiasta acolhida, principalmente nos diversos estabelecimentos científicos de ensino e pesquisa, onde estava localizada grande parte da elite pensante nacional (Schwarcz, 1993).

Diante do enfraquecimento da escravidão, que resultou em seu fim, e da necessidade de realização de um novo projeto político para forjar uma identidade para o país, os modelos raciais de análise tornaram-se um caminho teórico viável para justificar o status quo da época. Embora hoje seja bastante renegado, esse foi um momento na história intelectual do Brasil no qual pressupostos racistas foram abertamente postulados (Schwarcz, 1993). De acordo com tais modelos de análise, era a partir da ciência que se reconheciam diferenças e se determinavam inferioridades raciais. Assim, teorias como o evolucionismo social, o positivismo, o naturalismo e o social darwinismo começaram a se difundir, no Brasil, a partir dos anos 1870. Vale relembrar a importância de Sara Baartman para a constituição desses pensamentos na Europa. Como já foi dito, Cuvier, seu “preceptor”, foi o cientista que protocolou, segundo Lilia Schwarcz (1993) o termo raça na ciência moderna.  Ele apresentou a genitália de Sara a fim de sustentar sua tese acerca da origem comum dos seres humanos, posição conhecida como monogenismo. Sua proposta colocava Sara Baartman como “o elo perdido entre os seres humanos e os macacos” (Ferreira e Hamlin, 2010).

Através do racismo científico, a alternativa escolhida para o país foi a de negar a civilização aos negros e mestiços, sem citar os efeitos da miscigenação já avançada, e expulsar “a parte gangrenada” e garantir que o futuro da nação seria “branco e ocidental” (Schwarcz, 1993). Imigrantes europeus, então, foram trazidos ao Brasil como mão-de-obra livre. Os negros e negras foram jogados à margem da sociedade.

Após esse momento em que o racismo científico foi amplamente difundido no Brasil, em 1933, com a aparição de Casa Grande & Senzala de Gilberto Freyre, iniciou-se uma grande mudança na maneira do pensamento social e político brasileiro encarar a questão racial.  Não só na figura de Freyre, mas, de certo modo, a modernidade brasileira, seja nas ciências sociais — que tiveram em Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda (1936) e Caio Prado Jr. (1965 [1937]) seus primeiros expoentes —, seja na literatura regionalista — expressa por Jorge Amado (1933, 1935), José Lins do Rego (1934, 1935) e outros – tentou superar esse discurso racialista e valorizar a herança cultural brasileira (Guimarães, 1999). Uma ênfase especial precisa ser dada à obra de Gilberto Freyre, porque, ao romantizar a violência colonial, foi basilar para o surgimento da grande falácia das relações raciais no Brasil: o mito da democracia racial. A obra freyreana introduziu, de fato, um marco diferencial em relação às teorias raciais do século XIX. Além da substituição do conceito de “raça” pelo de cultura, ele tinha “novos objetos” de análise: a família, a intimidade e a sexualidade presentes nas relações sociais e raciais cotidianas (Guimarães, 1999; Pacheco, 2013). Na sua leitura, a miscigenação da sociedade brasileira teria contribuído no sentido de uma “democratização racial”.  Freyre propunha a ideia de houve, no Brasil, um encurtamento da distância entre a casa grande e a senzala, já que, para ele, os portugueses não tinham “preconceitos inflexíveis”, chegando a afirmar, inclusive, que estes tratavam com doçura os seus escravos (Freyre, 2006, p. 298). Em consequência de uma suposta plasticidade social maior do que qualquer outro colonizador europeu – devido a um passado étnico “híbrido” -, a colonização portuguesa, segundo o argumento freyreano, tinha como característica o “equilíbrio de antagonismos” (Freyre, 2006, p. 280).

O ideário antirracialista que buscava negar o discurso do racismo científico acabou prestando um grande desfavor para a população negra brasileira. Isto é, a redução do antirracismo ao antirracialismo e sua utilização para o fim de negar a existência de uma violência real tornaram-se uma eficaz ideologia racista. As raças, então, embora não existam num sentido biológico, existem na sociedade e pautam as atitudes racistas (Guimarães, 1999). O mito da democracia racial, ao negar uma realidade, criava uma dificuldade maior, a de ter de enfrenta-la e supera-la. Uma das suas consequências, segundo Florestan Fernandes (2008), é o dilema racial brasileiro, qual seja: o contraste entre o mito e a realidade de subalternização e opressão. A perpetuação do mito e do seu consequente dilema racial faz não só com que grupos mantenham suas estruturas de poder, mas também que, ao mesmo tempo, os negros, submetidos à dominação, fiquem propensos à impotência para impor sua vontade e corrigir a situação (Fernandes, 2008).

Convidado por Roger Bastide, Florestan Fernandes produziu um estudo revolucionário para a compreensão do Brasil. Seu trabalho trouxe uma nova visão das relações raciais oposta ao modelo então dominante de Gilberto Freyre, transfigurado no plano da ideologia nacional na noção de democracia racial (Soares; Braga; Costa, 2002). Ao estudar sobre como se deu a integração dos negros, pós-Abolição, na sociedade de classes, Fernandes mostrou que estes não conseguiram desfrutar de uma igualdade de condições para participar da sociedade capitalista emergente. Na realidade, passaram por um processo de pauperização e miséria social. Os mecanismos de dominação da época da escravidão permaneceram mesmo com o seu fim formal (Fernandes, 2008). As possibilidades de inclusão na nova sociedade eram esporádicas para os negros e negras.  Em sua quase totalidade, a sociedade de classes permanecia não igualitária e fechada àqueles cuja história é marcada por séculos de opressão. Além de relegados à margem e submetidos a um árduo processo de pauperização e miséria social, segundo Fernandes, os negros e negras não dispunham de meios materiais e morais para o ingresso na ordem competitiva (Fernandes, 2008).

Em 1979, Hasenbalg argumenta, ainda, que a integração subordinada dos negros criou uma situação de desvantagens permanentes, que o preconceito e a discriminação racial apenas tendiam a reforçar. Ou seja, ele afirma que a desigualdade racial coexiste e se alimenta da desigualdade social. A persistência histórica do racismo não deve, então, ser explicada como mero legado do passado, mas como servindo aos complexos e diversificados interesses do grupo racial dominante (Hasenbalg, 1979).

Esse breve apanhado sobre as relações raciais no Brasil ajudará a iluminar também a nossa história da beleza negra. Ainda segundo Florestan Fernandes (2017), foi a população negra que reivindicou significados novos para o 13 de Maio de 1888. Primeiro, a data foi desmascarada, nas décadas de 1930 e 1940, como uma falácia social: a Abolição não passara de uma artimanha, pela qual os escravos sofreram a última espoliação. Decorrente dessa interpretação, a militância negra passou a defender que do próprio negro dependia uma “Segunda Abolição”. A ressignificação da data, reflexo da compulsão libertária coletiva dos negros, atravessa e afirma Palmares e Zumbi. 20 de novembro, a data da morte desse grande líder quilombola, símbolo da resistência negra frente aos horrores da escravidão, é contraposta ao 13 de Maio. Esse novo olhar enxerga a liberdade não como uma dádiva, mas sim como uma conquista (Florestan, 2017). Segundo Gato (2018), Florestan Fernandes foi, além de pioneiro, bastante perspicaz na forma como percebeu a maneira através da qual as contestações do preconceito racial articuladas nos jornais da imprensa negra nas décadas de 1920 e 1930 construíram uma visão crítica sobre a história nacional condensada na utopia de uma Segunda Abolição (Gato, 2018).

Nesse momento, era preciso “reeducar a raça”. Com a voz dos negros endereçada aos negros, a ideia era subtrair-lhes os estereótipos consagrados pelos séculos anteriores: a preguiça, a deseducação, o “vício da cachaça” e a hiperssexualidade. Concursos de beleza, então, foram promovidos por essa população a fim de, além de auxiliar na construção de um conceito de beleza negra, responder à imagem da mulata promíscua que surgira na escravidão (Braga, 2015).  Segundo Guimarães (2001), tratava-se de uma “reeducação da raça negra, no sentido de sua completa aculturação e distanciamento de suas origens africanas, a começar pela educação formal”. Havia um elemento educativo como componente primeiro na proposta da primeira imprensa negra (Guimarães, 2001, p. 91 apud Braga, 2015), já que era preciso lutar contra os estereótipos que eram justificados cientificamente pelo racismo científico já mencionado. Bastide e Fernandes (1959, p. 228-229 apud Gomes, 2008), ao examinar os artigos dos jornais dos líderes negros entre 1925 e 1937, em particular, o jornal A voz da Raça da associação A Frente Negra, em São Paulo, destacaram a presença de uma ambivalência de ideologias, o orgulho da cor e um sentimento de inferioridade que, segundo os autores, levava à imitação do branco e dos seus pontos de vista. Não era só classe. Essa ambivalência é resultante da tensão entre uma imagem estereotipada construída em um processo de dominação e a luta pela construção de uma autoimagem positiva (Gomes, 2008).

Os primeiros concursos de beleza negra promovidos para e pela população negra, então, surgem a fim de construir não só um conceito de beleza negra, mas, principalmente, uma resposta à imagem da “mulata promíscua”. O primeiro deles remonta a 1916. As mulheres eram, por exemplo, chamadas de “senhorinhas” a fim de trazer uma conotação de respeito. Nesse momento, a beleza negra não passa pelo corpo negro, mas pela sua moral. Sobre o concurso Miss Progresso (não há imagem da vencedora, mas há da vice e da quarta colocada), pode-se perceber já um critério de beleza claro nas fotografias estampadas: a preferência pelo cabelo alisado (Braga, 2015).

Apesar de as três primeiras décadas do século XX terem ficado marcadas pelos resquícios do período escravista, houve, em contraproposta, uma imprensa militante, pulverizada entre vários periódicos e que oferecia voz, visibilidade e espaços de sociabilidade aos negros. O que essa publicidade vendia era um ideal de beleza eugênico, historicamente construído e perpassado por relações de poder. Naquele contexto de romper com os estereótipos, o alisamento capilar também era uma maneira de ascender. Ou seja, a busca por uma inserção social passava pela estética, ainda que isso custasse uma profunda manipulação de seu corpo. A exemplo das publicações do Jornal Progresso – escrito por negros e para negros – nas quais já havia muitas propagandas de produtos e locais para alisamento capilar (por exemplo o “salão brasil”, “especialista em cabelos de pessoas de cor”). Esse momento constitui a normalização de um processo que, como foi mostrado, remonta à escravidão (Braga, 2015).

Importante frisar que não pretendo engessar um olhar sobre a estética negra que associe o alisamento unilateralmente à imitação da branquitude. Estudos mostram que alisar aparece, muitas vezes, como uma alternativa de ascensão social (Tyler, 1990 apud Banks 2000; GOMES, 2008).  A análise dessas experiências que reduzem tudo à imitação do padrão branco negligencia as implicações profundas e a trama complexa que envolvem a relação negro e cabelo na esfera da dominação, da cultura e da subjetividade. O alisamento, claro, deve ser contextualizado e questionado devido à violência estruturante do racismo. Ao mesmo tempo, também pode ser visto como integrante de um estilo de o negro usar o cabelo. O que quero dizer é que a discussão sobre a expressão estética negra não pode ser cristalizada.

A partir de 1931, a Frente Negra Brasileira e o Teatro Experimental do Negro dariam continuidade a vários ideais. A Frente Negra Brasileira, fundada em setembro de 1931 tinha, dentre os seus militantes, o negro, dramaturgo, ator e ex-senador da república Abdias do Nascimento. Com núcleos em vários outros estados como Rio de Janeiro, Pernambuco, Bahia e Rio Grande do Sul, a sua proposta fundamental era a educação dos negros (Munanga e Gomes, 2006).  Com o lema “congregar, educar, orientar”, tratava-se de um movimento de massa cujo principal objetivo era resgatar os negros da condição de exclusão. Os militantes da FNB defendiam que, através da educação, seria possível ajustar o comportamento negro, formatando-o num dado padrão de comportamento social e moral (Braga, 2015). Devido aos êxitos alcançados, a Frente Negra resolveu transformar-se em partido político em 1936. Com o golpe do Estado Novo de Getúlio Vargas, em 10 de novembro de 1937, a FNB, que se caracterizava como partido político, é fechada. Raul Joviano do Amaral tentou dar continuidade à organização, fundando a União Negra Brasileira; a repressão do Estado Novo, no entanto, era muito acirrada. Seu jornal, A Voz da Raça, deixou de circular e, em 1938, a União Negra Brasileira deixa de existir (Munanga e Gomes, 2006).

Há uma ideia de que a Frente Negra teria sido uma organização conservadora, de direita. Há também críticas no sentido de que ela não se interessava por uma transformação mais profunda na ordem social e nas relações e comportamentos da população branca, limitando-se a afirmar a existência do racismo. Ou, ainda, a ideia segundo a qual a Frente nutria uma admiração pelo fascismo europeu, com alguns líderes monarquistas. Segundo o escritor Márcio Barbosa (1998), muito dessa visão sobre o caráter conservador da Frente Negra deve-se ao seu presidente, Arlindo Veiga dos Santos, um militante monarquista que realmente nutria simpatias pelo fascismo, prezando com muita determinação regras de disciplina e autoridade. Essa postura, no entanto, não refletia todo o grupo (Munanga e Gomes, 2006).

Após a ditadura do Estado Novo, há uma consciência internacional mais evoluída na militância negra. Em 1944, o Teatro Experimental do Negro (TEN) surge no Rio de Janeiro. Fundado e dirigido por Abdias do Nascimento, o objetivo do TEN era abrir as portas das artes cênicas brasileiras para os atores e atrizes negros. O TEN foi responsável por lançar grandes atores e atrizes competentes, expressivos e talentosos. Alguns são mais conhecidos do grande público e outros são nomes cujo talento é reconhecido apenas dentro do circuito artístico e por pessoas da geração do TEN: Aguinaldo Camargo, Grande Otelo, Ruth de Souza, Haroldo Costa, Lea Garcia, Abdias do Nascimento, entre outros. Isso sem falar de um dos seus fundadores ter sido o grande poeta pernambucano Solano Trindade. O TEN foi responsável também pela publicação do jornal Quilombo, o qual retratou o ambiente político e cultural de mobilização antirracista no Brasil. Além de montar espetáculos teatrais, o grupo do Teatro Experimental do Negro promovia cursos de alfabetização.  O jornal Quilombo foi uma produção muito diferente dos outros jornais militantes que o antecederam. Talvez o mais importante motivo dessa diferença tenha sido a sua inserção e sintonia com o mundo cultural brasileiro e internacional (Munanga e Gomes, 2006).

Havia agora, portanto, o comprometimento com o movimento internacional na luta pela descolonização. Algumas das reportagens do Quilombo exemplificam essa preocupação, a exemplo de matérias sobre a “ku-klux-klan”. Junto à eclosão de movimentos raciais pelo mundo – e da cobertura que a imprensa negra brasileira fazia de tais movimentos – aconteceu, na sociedade brasileira, o surgimento de um discurso que, embalado pela ideia de democracia racial, acusava as organizações negras de propagar um “racismo às avessas” (Braga, 2015).

O TEN buscava o resgate da cultura negra de raiz africana e um dos modos que encontrou foi a promoção de concursos de beleza para mulheres negras que valorizasse seu próprio padrão estético: contra os concursos que só aceitavam mulheres brancas. Os concursos “Rainha das mulatas” e “Boneca de Pixe” não duraram muito; foram, entretanto, importantes pela introdução de toda uma discussão sobre a estética negra, que não apenas afirmava um conceito de beleza construído entre o corpo e a moral, como também criavam espaços para socializá-los (Braga, 2015). Vale lembrar que a primeira miss Brasil negra, Deise Nunes, só venceu em 1986, 32 anos depois do surgimento do concurso Miss Brasil. Em âmbito global, a primeira Miss Universo negra, Jannelle Commissiong, de Trinidad e Tobago, venceu em 1977 após 26 anos de surgimento do concurso.

Uma análise sobre como a beleza negra foi abordada pelos próprios movimentos negros no pós-Abolição foi importante, porque, no seu transcurso, foi possível enxergar as tensões que sempre estiveram presentes. Mesmo o “olhar dos negros sobre os negros” recaiu na dificuldade de romper com pressupostos racistas. Apesar de todo o mérito, é notória a falta de questionamento desses estereótipos e, em certa medida, a assunção de que, para melhorar as questões raciais, o caminho era a equiparação com os padrões brancos dominantes. Esse questionamento, no entanto, não tardou em acontecer. Eventos históricos importantes marcaram a revalorização da beleza negra e impulsionaram diversos sujeitos a reinterpretar a sua estética através de uma valorização.

“Say it loud: I’am black and I’m proud!”[2]

Em um âmbito global, vários movimentos articularam muito fortemente estética negra e política. Nos anos 1930, um contra discurso jamaicano sobre estética emergiu do Movimento Rastafari. Caracterizado como um movimento antirracista, anticolonial, religioso e afro-centrado, o Movimento Rastafari tirou sua inspiração dos escritos de Marcus Garvey, um importante nome da luta antirracista (embora ele nunca tenha se convertido à religião).  Usando dreadlocks e elogiando a pele negra e a beleza “natural”, o movimento foi um símbolo poderoso de liberdade dos padrões estéticos brancos (Barrett, 1977 apud Tate, 2007).  Nesse contexto, os dreadlocks implicavam um link simbólico entre sua aparência “natural” e a África, como uma maneira de reinterpretar a narrativa bíblica que identifica a Etiópia como “Zion” ou Terra Prometida. Apesar da conotação primeira ter sido religiosa, os dreads se popularizaram em grande escala – via, especialmente, a militância crescente do reggae. Os dreadlocks também abraçam a ideia do “natural” na maneira em que celebram a materialidade da textura do cabelo crespo, o ideal para ser “emaranhado” e transformado em dread (Mercer, 1987).

Outro marco do reconhecimento positivo de ser negro refere-se à existência do conceito de negritude de Aimé Cesaire nos anos 1930.  Principal movimento literário francófono, africano e afro-caribenho, a “negritude” foi protagonizada não apenas por Césaire, escritor e político francês nascido na Martinica em 1913, mas também por Léopold Senghor, um político e escritor senegalês que foi presidente do Senegal de 1960 a 1981 (Appiah, 1992).   Aqui, a invocação da raça ou a tentativa de estabelecer uma comunidade racial visava, primeiro, a criação de um vínculo e o surgimento de um lugar como base em resposta a uma longa história de sujeição. Nos poetas da negritude, a exaltação da “raça negra” é um imenso grito cuja função é salvar da degradação absoluta os indivíduos que haviam sido subjugados à insignificância. Para Mbembe (2018) essa invocação da raça nasce de um sentimento de perda (Mbembe, 2018).

Com o mesmo apelo à valorização das raízes africanas, esses movimentos redirecionaram a consciência negra no Caribe (Gomes, 2008). Marcus Garvey também foi importante por participar com alguns outros seguidores e artistas do “Harlem Renaissance”, movimento que, dentre outros aspectos, clamava que os negros parassem de alisar o cabelo e abraçassem a sua beleza. Em 1920, o Harlem Renaissance defendia a repatriação da África e uma geração de poetas, escritores e dançarinos abraçaram tudo aquilo que tivesse uma conotação africana a fim de renovar um novo senso estético coletivo para a comunidade afro-americana dos Estados Unidos (Craig, 1997 apud Banks, 2000).

Nos anos 1960 e 1970, com os movimentos “black is beautiful” e “black power”, o cabelo crespo passou a significar orgulho e poder. James Brown perfeitamente expressou esse momento no seu hit de 1968: “say it loud – i’m black and i’m proud” (“Diga alto: eu sou negra(o) e me orgulho disso!”). Naquele momento, as pessoas que não usassem seu cabelo como um afro – ou porque a textura não permitia, ou simplesmente porque preferiam alisar – eram consideradas “uma contradição, uma mentira, uma piada” (Gayles, 1993). O “black is beautiful” foi um movimento cultural e comportamental norte-americano dos anos 1960 que reposicionava a ordem simbólica dominante, que tratava as características físicas associadas aos negros como esteticamente inferiores. Para Mercer (1987), a radicalidade do slogan “black is beautiful” está na função do “IS”, como marcando uma afirmação ontológica da beleza negra, indo de encontro à negação do Song of Songs que a Europa reescreveu (na versão da Bíblia de King James) como “I am black but beautiful”.

Embora as pessoas associem muito fortemente o “black is beautiful” exclusivamente ao movimento norte-americano, as suas raízes, na verdade, remontam à luta antirracista na África do Sul. No violento contexto do apartheid sul-africano, um grupo de estudantes decidiu se organizar politicamente, debruçando-se sobre os problemas históricos do país e construindo um conceito libertário intitulado Consciência Negra. O conceito de Consciência Negra teve como principal protagonista Steve Biko, assassinado pelo regime do Apartheid. O conjunto de ideias do movimento extrapolou as fronteiras sul-africanas e influenciou a organização dos negros em diversos países, inclusive no Brasil (Gomes, 2008). Assim como os Panteras Negras nos EUA, o movimento Consciência Negra na África do Sul, nas décadas de 60 e 70, ajudou não só a pensar estratégias políticas de combate ao racismo como também formulou um conjunto de ideias que inspiraram o ativismo de jovens militantes negros em outros países.  A valorização da estética negra esteve fortemente presente nessa militância, já que suas reflexões eram sobre os condicionamentos mais profundos do racismo. É assim que surge o slogan “negro é lindo” (“black is beautiful”). Steve Biko afirma que a importância desse slogan reside na maneira como desafia uma crença na inferioridade negra que é, via de regra, assimilada pelos próprios negros, levando-os a uma negação de si (Silva, 2001, p. 34-37 apud Gomes, 2008).

Em 1966, no contexto de luta pelos direitos civis nos Estados Unidos, surgiu o movimento chamado “Black Power”. O país estava vivendo uma mudança significativa na sua luta por justiça racial e a década de 1960 assistiu a urgência do desmantelamento legal de uma sociedade segregada. Com a ênfase na história dos negros, da África e da escravidão, o movimento Black Power trouxe também um ímpeto pela mudança comportamental e estética. Nesse contexto, o cabelo Afro ocupou papel central, além da maneira de vestir, o uso dos “dashikis” e até a mudança de nomes para nomes africanos. Em síntese, além da defesa da necessidade de uma luta organizada, o movimento acarretou uma mudança em direção às raízes africanas (Ture e Hamilton, 1967).

Parte importante da agenda da luta antirracista norte-americana, o movimento Black Power tinha como central o conceito de autodefinição. Para esses militantes, a autodefinição era um componente essencial para a “revolução das mentes”: pré-requisito para uma mudança mais ampla.  Antes mesmo da ascensão econômica, então, os negros precisariam definir a si mesmos positivamente, porque, aprisionados na vergonha de si, seriam incapazes de alcançar a liberdade. Por isso, o uso das distinções físicas e culturais foi uma arma na luta pela libertação. Eles proclamaram que os negros são, de fato, lindos. A valorização da herança africana e da cultura negra pareceu essencial. Aqui, especialmente, fica óbvio que o Black Power buscava mais do que a garantia de direitos civis. Tratava-se um conceito cultural revolucionário que demandava importantes mudanças nos padrões da cultura norte-americana hegemônica (Deburg, 1992).

O Black Power colocou o conceito de “negro” de cabeça para baixo, despindo-o de suas conotações negativas em discursos racializados, transformando-o, assim, em uma expressão de uma identidade afirmativa de grupo. Esse movimento estimulou os negros norte-americanos a construírem a “comunidade negra” não como uma questão de geografia, mas antes em termos da diáspora africana global. “Negro” se tornou uma cor política. A ideologia do Black Power não reivindicava apenas um passado ancestral pré-determinado, mas, no próprio processo, também construía uma versão particular dessa herança.  Já que os processos culturais são dinâmicos e o processo de reivindicação é também mediado, o termo “negro” não precisa ser construído em termos essencialistas, mas pode ter diferentes significados políticos e culturais em contextos diferentes (Brah, 2006).

A radicalização em torno do uso do cabelo crespo “natural” foi central, já que este foi reforçado como ícone identitário e cultural. O uso do cabelo no estilo Afro passa a ser privilegiado, numa releitura do que era enfatizado pelos ativistas do Movimento de Consciência Negra sul-africano. Todos esses movimentos articulavam muito fortemente estética e política (Gomes, 2008). Embora o Afro tenha sido claramente mais poderoso símbolo estético das políticas do Black Power e do Black is Beautiful, associá-lo exclusivamente a esses movimentos recai numa velha narrativa masculinista. Muitos pesquisadores cometem esse equívoco; consequentemente, a associação do afro com a militância pós-1960 tornou-se “senso comum” no mundo dos acadêmicos que estudam sobre cabelo. Kelley (1997), no entanto, atenta para os perigos dessa abordagem. A autora considera, então, os episódios mais antigos de mulheres negras intelectuais e, também, os esforços dos cabelereiros profissionais especializados em cabelo crespo. Esse é um capítulo pouco explorado da história sociopolítica do cabelo crespo.

Com raízes nos círculos burgueses de alta moda no fim dos anos 1950, o Afro foi visto por negros e brancos de elite como um símbolo de “exotismo feminino”. Entre alguns círculos, ou pela busca por um cabelo saudável ou pelo desejo de expressar solidariedade para com os países africanos que se tornaram independentes, o Afro ganhou destaque como algo fashion (Kelley, 1997). Nesse âmbito, chegou a ser celebrado mesmo nos círculos burgueses de maioria branca. Ainda mais importante, é preciso enfatizar que, logo no início da década de 1960 (antes do “Black Power”), mulheres negras como Odetta, Abbey Lincoln e Nina Simone passaram a usar o cabelo sem alisamento (Jones and Jones, 1971 apud Kelley, 1997). Ou seja, mulheres negras também foram precursoras do Afro como estilo político.

Com os movimentos “Black is Beautiful” e, sobretudo, “Black Power”, o Afro passou a ser associado à rebelião.  Tornou-se, assim, símbolo da masculinidade negra e foi essencial para o surgimento da imagem do militante, do “virulento homem negro”. Essa masculinização do Afro permaneceu mesmo após os movimentos e contribuiu para um retrocesso contra as mulheres negras com cabelo natural. Mesmo tendo sido uma mulher negra, Angela Davis, um dos grandes nomes do movimento “black power”, o uso do cabelo afro por ela também recaiu nos problemas dessa masculinização – como será melhor explorado adiante. Por isso que, para as mulheres negras, mais do que para os homens negros, assumir o cabelo crespo “natural” tem consequências diferentes. Mais do que a valorização da negritude ou da descendência africana, significa uma rejeição direta de uma concepção de beleza feminina (Kelley, 1997).

No fim dos anos 1960, em meio a esses movimentos que ressignificaram a estética negra norte-americana, uma mulher negra teve destaque particular e foi diretamente associada ao cabelo Afro (Banks, 2000). Nascida em 1944, em Birmingham, um dos principais centros dos conflitos raciais dos EUA, Angela Davis é filósofa e um dos maiores nomes do feminismo negro. Através da circulação da sua foto como uma das pessoas mais procuradas pelo FBI, tornou-se mundialmente famosa. Membro dos Panteras Negras, Davis foi acusada injustamente de crimes e chegou até a ser presa, o que despertou a campanha Libertem Angela Davis” (“Free Angela Davis”), que mobilizou ativistas e intelectuais do mundo inteiro. O período em que permaneceu injustamente presa serviu para fortalecer o seu engajamento pela abolição do sistema carcerário.

Cartaz divulgado pelo FBI com Angela Davis como “procurada”.
Cartaz divulgado pelo FBI com Angela Davis como “procurada”.
Fonte: https://www.geledes.org.br/angela-davis/

O “Black Panther Party” (Partido dos Panteras Negras), do qual Angela Davis era membro, pode ter parte de sua atuação resumida no seu próprio slogan: “for self defense” (pela autodefesa). Contra a ideia de uma militância exclusivamente pacífica, os Panteras Negras surgiram como herdeiros políticos de Malcom X, assassinado em 1965, e aderiram à tática de guerrilha urbana contra a violência perpetrada contra a população negra – sobretudo a violência policial. Nesse momento, os Estados Unidos viviam forte tensão, conflito racial e a luta dos Movimentos Pelos Direitos Civis, cuja principal expressão foi Martin Luther King. A militância do “Black Panther Party” também consistiu na composição e distribuição de livros de bolso sobre o Direito a fim de introduzir a população negra no conhecimento básico de seus direitos legais. Assim, com armas e livros nas mãos, os panteras negras deixaram claro para a polícia que os negros não seriam mais vítimas, mas sim sujeitos conhecedores de seus direitos perante a lei (Deburg, 1992).

Como há sempre tensões envolvidas quando ideias culturais e sociais são transmitidas através dos corpos, esses movimentos não ficaram isentos de contradições e ambivalências. Aliás, em quase todos os trabalhos produzidos sobre os significados do cabelo para negras e negros, a ambivalência é uma das categorias centrais. Em certa medida, o “Black Power” e o “Black is Beautiful” normalizaram a beleza negra racializada, criaram uma ideia de “beleza negra natural” (Tate, 2007). Por isso que, em “The making of a permanet Afro”, Gloria Wade Gayles (1993) discute como o Movimento pelos Direitos Civis influenciou a decisão dela de usar um Afro. Naquele contexto, o cabelo alisado significava uma contradição em relação à afirmação da negritude.  Até hoje, essas ideias culturais sobre o que significa ser negro estão presentes, por exemplo, na dificuldade em enxergar força e empoderamento em uma mulher negra de cabelo alisado (Banks, 2000).

Mercer (1987) problematiza o notório apelo à naturalidade e à originalidade africana presente tanto com o aparecimento do estilo de cabelo rastafári, quanto com o “afro”, nos EUA, onde “Afro” sugere um link com a África através do nome e de sua associação com um discurso político radical.  Ambos invocam a “natureza” para inscrever “África” como símbolo de oposição política e pessoal à hegemonia do Ocidente. A associação também é parte de um processo contra-hegemônico que ajudou a redefinir os negros norte-americanos não como negros, mas como afro-americanos.  Acontece que nenhum cabelo é apenas “natural”, mas sempre marcado ou remarcado por convenções sociais e intervenções simbólicas.  A ideia do cabelo “natural” e o consequente link entre “África” e “natureza” implicam uma oposição a qualquer técnica artificial, como se qualquer elemento de artificialidade fosse imitação da Europa, identificação com os ideais estéticos brancos. Ou seja, essa “estética do natural” é utilizada a fim de se opor a qualquer artifício como signo de influência eurocêntrica.  Esses estilos, no entanto, nunca foram apenas naturais: foram estilisticamente cultivados e politicamente construídos em um momento histórico particular como parte de uma estratégia de contestação contra o poder da branquitude. Apesar de radical e importante, essa tática de inversão de categorias foi limitada. Uma razão é que o “natural” invocado não é um termo neutro; ao contrário, como já foi dito, é uma ideia ideologicamente criada segundo a lógica binária e dualista da cultura Europeia. A associação da África à natureza foi fundamental para a hegemonia do ocidente (Mercer, 1987).

Outro exemplo é o já mencionado “Harlem Renaissance”. Um de seus espetáculos, chamado “New Negro”, invocava uma África mitológica, imaginária de nobre selvageria e primitiva graça, o que nada mais é que a reescrita da mitologia romântica criada pelo Iluminismo Europeu (Mercer, 1987). Mbembe (2014) também tece críticas semelhantes aos poetas da Negritude, porque, para eles, o “negro” passa a ser quase uma essência, uma “arma miraculosa” com que todos os negros da diáspora se identificariam.  Nesse movimento, esses poetas estariam endossando a narrativa que existe por trás da ideia racializada do “negro”.  Essa tática contra-hegemônica de inversão se apropriou de uma versão romântica particular da natureza como um meio de empoderar os sujeitos negros; por permanecer na lógica binária dualista, o momento de ruptura, no entanto, foi delimitado pelo fato de que foi apenas uma África imaginária que foi colocada em jogo (Mercer, 1987).

A reivindicação tanto de uma africanidade como de uma americanidade fez parte dos supracitados movimentos de ressignificação da estética negra.  Segundo Mbembe (2014) isso aconteceu como reflexo da “dupla consciência” da maioria dos pensadores negros da época. Mercer (1987) defende, ainda, que não há nada de particularmente africano nos dreads e no Afro: eles são estilos especificamente diaspóricos. Em África, eles não significam africanidade. Ao contrário, eles podem implicar uma identificação com o “primeiro mundo”, como uma imagem metropolitana de negritude, embora esses estilos expressem fortemente um desejo de “retorno às raízes”. Essa associação com a “naturalidade” e, consequentemente, com a natureza tem muito mais a ver com a Europa do que com a África (Mercer, 1987).  Longe de negar a grande importância desses movimentos, é preciso sempre ter atenção e cuidado para que a afirmação da diferença não recaia na inversão do mesmo. Sendo o racismo estruturante na sociedade, a linha entre a sua superação e manutenção é muito tênue. A atenção aos limites alarga a compreensão das possibilidades de tais processos. Apesar desse olhar cuidadoso, o mais evidente e importante são os méritos de movimentos que reivindicam algo tão fundamental para a relação das pessoas consigo mesmas que é a beleza.

Infelizmente, esses estilos de cabelo também foram, em certa medida, despolitizados e absorvidos pela moda. Uma vez comercializado no espaço do mercado, o Afro perdeu sua significação específica como um enunciado político-cultural negro.  Dissociado de seus contextos políticos originais, tornou-se, em alguns espaços, apenas um acessório fashion. Angela Davis discutiu as ambivalências de ser reduzida a um penteado e todas as sutis implicações da sua associação ao Afro.

Ela relata o episódio em que uma mulher advertiu um homem que não a reconheceu: “Você não sabe quem é Angela Davis? Você deveria se envergonhar!”. Ao que ele respondeu: “Oh! Angela Davis! O Afro!”. Essa associação fez com que ela se sentisse humilhada ao perceber que, uma única geração após os eventos que a construíram como uma pessoa pública, ela era lembrada apenas como um “penteado”. Isso reduziu toda uma política de libertação ao universo fashion, além de demonstrar a fragilidade e a mutabilidade das imagens históricas, particularmente as associadas à história afro-americana (Davis, 1994).

A associação do Afro à moda, a um glamour revolucionário, fez Davis também relembrar um artigo da New York Magazine que a listou como uma das quinze maiores influenciadoras fashion do último século. Como, após a acusação de assassinato, sequestro e conspiração, a ampla circulação de várias fotografias dela tiradas por jornalistas disfarçados de policiais e por ativistas, sua imagem é reduzida ao universo fashion?  Ela se sentiu violada (Davis, 1994). Como já mencionei, ela viveu um verdadeiro terror quando o FBI a colocou na lista dos dez mais procurados criminosos do país. Foragida, tentou mudar completamente sua aparência a fim de não parecer mais perigosa. Esse aspecto, na minha opinião, reitera o quanto o cabelo crespo é colocado fora das noções de feminilidade. Assumir o cabelo “natural” tem implicações diferentes para mulheres e homens negros. Angela Davis, para romper com a imagem de perigo que foi atrelada a ela, usou uma peruca com cabelo liso, longos cílios, sombras, blush etc. tudo que ela achou que poderia remeter ao glamour feminino. Essa pareceu uma maneira de anular a probabilidade de ser percebida como uma revolucionária perigosa. O que a impactou, então, foi que, de repente, essa imagem “revolucionária” e que ela tentou camuflar com artifícios de feminilidade pudesse se transformar, uma geração depois, em glamour e nostalgia (Davis, 1994).

A ampla divulgação de sua foto na lista dos procurados do FBI, na qual ela aparece com o cabelo Afro, teve fortes consequências na sua vida e na de outras mulheres negras, porque implicou na criação de imagens genéricas das mulheres negras com cabelo “natural”. Ela ouviu que talvez centenas ou milhares de mulheres que usavam o mesmo tipo de cabelo foram assediadas e até presas pela polícia, pelo FBI ou por agentes de imigração durante o tempo em que ela esteve foragida. A sua fotografia identificou um vasto número de corpos femininos negros com estilo black power como alvos de repressão. Esse é o passado secreto que existe por trás da associação do seu nome ao Afro. A transformação deste em uma “nostalgia fashion” apaga as consequências políticas que existiram não só na vida de Angela Davis, mas também na de muitas outras mulheres negras. Segundo ela, “nós precisamos encontrar maneiras de incorporar o Afro na memória política e social, em vez de usá-lo como algo que encoraja a atrofia de tamanha memória” (Davis, 1994). Mercer (1987) sugere que o fato de o Afro ser neutralizado e incorporado tão rapidamente reflete que a sua intervenção estética opera em um terreno já mapeado pelos códigos simbólicos da cultura branca dominante.

Apesar de tanto homens negros quanto mulheres negras rejeitarem alisar o cabelo no contexto desses movimentos de ressignificação da estética negra, houve diferentes implicações para as mulheres negras (Craig, 1997; Kelley 1997).  Para elas, assumir o cabelo “natural” não é só uma valorização da negritude ou da descendência africana, mas uma rejeição direta de uma concepção de beleza feminina que inclusive muitos homens negros reiteram. Marcus Garvey, cuja importância nesse contexto histórico já foi mencionada, foi reportado como fascinado pelo longo cabelo da sua esposa. Em suas memórias, a segunda esposa de Garvey, Amy Jacques Garvey que, diferente se sua primeira esposa, tinha a pele mais clara e o cabelo longo ondulado escreveu que ele era fascinado pelo comprimento e pela textura do seu cabelo, que ele considerava suave (Garvey 1963:186 apud Rosado, 2007). Enquanto, em público, Marcus Garvey defendia o orgulho racial negro e a nova definição de beleza negra, ele era privadamente fascinado pelo longo cabelo da esposa. A própria propensão de Garvey indica que a batalha em torno do cabelo é ao mesmo tempo pública e extremamente privada (Rosado, 2007).

A partir desse apanhado histórico dos movimentos de ressignificação da estética negra, podemos compreender melhor como seus reflexos foram sentidos no Brasil. A partir daí, houve um movimento crescente no sentido de também ressignificar essas características físicas, destacando-as e valorizando-as. A redefinição do lugar estético do cabelo crespo ocupa um lugar fundamental, como mostra a etnografia de Gomes (2002) em torno dos chamados salões de beleza étnicos na cidade de Belo Horizonte. Nilma Lino Gomes desenvolveu uma pesquisa etnográfica realizada em quatro salões étnicos da cidade de Belo Horizonte a fim de compreender o significado social do cabelo e do corpo e os sentidos a eles atribuídos por indivíduos negros. Evidente que a importância do cabelo e do corpo não se limita aos salões. O contato com eles, no entanto, levou-a a refletir que ser negro no Brasil está relacionado com uma dimensão estética, com um corpo; daí o seu potencial enquanto resistência política.  Na sua pesquisa, o cabelo do(a) negro(a) é considerado não de maneira isolada, mas dentro do contexto das relações raciais construídas na sociedade brasileira. A autora trabalha com quem assumiu o cabelo crespo através de uma revalorização que extrapola o indivíduo e atinge o grupo étnico-racial a que pertence.

Apesar de os salões populares que atendem à clientela negra serem uma realidade no Brasil há muitos anos, não havia uma ênfase na afirmação racial ou na luta política. Os espaços de beleza considerados étnicos surgem junto com a efervescência dos supracitados movimentos sociais, no final da década de 1970, e fortalecem-se nos anos 1980 e nos anos 1990. Esses espaços são criados não somente para o tratamento dos cabelos crespos, mas, principalmente, para a construção de um discurso afirmativo de negritude (Santos, 2000). O cabelo crespo passa por um processo de revalorização, o que não deixa de apresentar contradições e tensões próprias do processo identitário. Essa revalorização extrapola o indivíduo e atinge o grupo étnico/racial a que pertence. Por isso que o entendimento do significado e dos sentidos do cabelo crespo pode nos ajudar a compreender e a desvelar as nuances do nosso sistema de classificação racial (Gomes, 2008). Além dos salões étnicos, outro bom indicador das mudanças ocorridas nesta área também é fornecido pela imprensa. O lançamento da revista Raça Brasil, em setembro de 1996, é um marco.

As vendas de Raça Brasil contrariaram três dogmas do mercado editorial: o de que os negros não têm poder de compra de produtos supérfluos; o de que revistas que trazem negros na capa não vendem e o de que o negro brasileiro não tem orgulho da raça… (Jornal da Tarde, 13/10/96 apud Figueiredo, 2002).

O sucesso da revista, constatado pela tiragem expressiva de 300 mil exemplares já no primeiro número, foi importante também pelo estímulo que prestou para debates acerca da existência de produções específicas para o consumidor negro. Ficou evidente a existência de uma classe média negra e, consequentemente, de um poderoso nicho de mercado. Não por acaso, em todos os números, invariavelmente, há matérias sobre cabelo (Mizrahi, 2015).

Marcado pelo mito da democracia racial, o Brasil reproduz um racismo ambíguo: real, mas mascarado pela ideia falaciosa de harmonia racial. Nesse cenário, a ode à mestiçagem tem papel central. Como já foi mencionado, tal mito prestou e ainda presta um grande desfavor à população negra brasileira. Esse discurso também perpassa a ressignificação da estética negra: o maior salão para cabelos crespos no Brasil é justamente o que esvazia a questão racial.

Com 39 filiais pelo Brasil e uma recém-inaugurada (em 2017) em Nova York, o Instituto Beleza Natural tem como principal serviço a transformação de cabelos crespos em cabelos cacheados. Suas criadoras são duas mulheres negras que, a partir da própria experiência com seus cabelos, impulsionaram um novo tipo de tratamento capilar. Zica Assis foi babá e faxineira e, embora amasse seu cabelo black power, foi obrigada a alisá-lo para conseguir um emprego. Inconformada, ela se debruçou no estudo para se tornar cabelereira e passou 10 anos pesquisando uma fórmula para tratar seus cabelos sem perder a originalidade do fio. Nesse processo de estudo árduo sobre cabelos, ela se tornou uma expert em fios crespos, cacheados e ondulados. Em 2013, a revista americana Forbes incluiu Zica na lista das 10 mulheres mais poderosas do Brasil. Leila Velez também partiu da sua experiência situada de mulher cacheada e de origem humilde (trabalhou no McDonald’s e, ainda aos 16, foi promovida a gerente). Ela desenvolveu o conceito de uma experiência única para as clientes e o compromisso com preços acessíveis e resultados verdadeiros. Em 2014, Leila Velez foi escolhida uma das Young Global Leaders pelo Fórum Econômico Mundial de Davos[3].

O Instituto Beleza Natural é a maior rede de salões voltada para o tratamento de cabelos crespos no Brasil e, segundo Cruz e Figueiredo (2015), o seu sucesso está relacionado aos sentidos de uma identidade brasileira com base nas noções de morenidade. As autoras defendem ainda que um dos fatores que contribuem para o sucesso do salão é exatamente o silenciamento da raça e a emergência da identidade cacheada, que parece estar em perfeita consonância com o discurso da identidade nacional. No Instituto Beleza Natural, há uma recusa ao cabelo alisado, no sentido de torná-lo liso, mas há, igualmente, uma recusa ao cabelo crespo, considerado sem balanço. Com o uso de produtos químicos, o que para a clientela dos salões étnicos pode ser visto como negação da raça, o Instituto Beleza Natural entrelaça inserção social, afirmação de traços mestiços e autoestima (Cruz e Figueiredo, 2015).

Transição capilar: um novo capítulo

Infelizmente, não caberá, no escopo deste artigo, discorrer sobre esse novo momento na “história sociopolítica do cabelo crespo”. Vale dizer, pelo menos, que está, atualmente, em evidência um novo capítulo na história da ressignificação da estética negra. Fenômeno transnacional, articulado, principalmente, via internet, a transição capilar vem sendo vivenciada e compartilhada por milhares de mulheres negras no Brasil e em outros países. Esse processo consiste na ressignificação de cabelos que eram quimicamente alisados e no retorno ao cabelo natural. Para se livrar da química, é necessário esperar o crescimento de um cabelo totalmente novo, o que acarreta, por exemplo, o “problema das duas texturas”, qual seja: o contraste entre a parte alisada e o cabelo novo que cresce na raiz. Uma das partes mais importantes é, justamente, o corte do cabelo quimicamente tratado; muitas mulheres, inclusive, não esperam muito o crescimento do cabelo natural e optam pelo BC (“big chop” ou grande corte, em português), o que significa raspar a cabeça ou cortar o cabelo bem curto. Esse processo é muito difícil e marca profundamente a vida dessas mulheres.

Já que o enxergo como um capítulo de uma longa história, o movimento pela transição capilar apresenta continuidades em relação aos antigos movimentos aqui trabalhados (assim como no “black is beautiful”, por exemplo, essas mulheres estão reivindicando a beleza negra com ênfase na aceitação do cabelo “natural”). Apesar dos pontos em comum, o boom pela transição tem suas especificidades.  Por exemplo, podemos associá-lo a dinâmicas do capitalismo neoliberal cuja tendência é uma maior individualização e consequente fragmentação das pautas políticas, bem como da identidade racial (GOMES, 2008). Autoras como Ingrid Banks (2000) e Ashley Dunn (2015) também discorreram sobre a mudança existente na nova gramática social do uso do cabelo crespo e atrelaram o ressurgimento da importância do cabelo a partir da década de 1990 ao crescimento do individualismo. Defendo que, apesar dessa associação, a transição capilar, acarreta, via de regra, o reconhecimento de uma identidade negra antes negligenciada. É um processo que vai muito além do cabelo e implica a negociação de identidades complexas, sobretudo em um país que vive sob a égide de um racismo ambíguo.

Conclusão

Longe de encerrar qualquer debate, busquei iluminar uma discussão cara no âmbito das relações raciais: a importância da estética negra na luta política antirracista. A negação da beleza negra remete ao período escravocrata e o cabelo crespo foi e continua sendo, junto com a cor da pele, um dos principais sinais diacríticos da negritude.  A maneira como a sociedade naturalizou um discurso que taxa o cabelo crespo de “cabelo ruim” mostra a arbitrariedade de uma faceta do racismo cujas marcas são profundas na vida das pessoas negras. Compreender como se deu a construção desse discurso é fundamental para desmantelar o projeto histórico de hegemonia racial dos brancos.


* Anita Maria Pequeno Soares é formada com dupla-titulação em Ciências Sociais pela UFPE e em Sociologia pela Universität Hamburg. Mestra em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPE e, atualmente, doutoranda no mesmo programa.

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Notas

[1] As fontes diferem em alguns anos em relação às datas de seu nascimento e morte.

[2] “Diga alto: eu sou negra(o) e me orgulho disso!” (tradução minha)

[3] Fonte: http://www.belezanatural.com.br.

dossiê
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PALMARES E A ESCRAVIDÃO, NO FEMININO: AS HISTÓRIAS DE GAYL JONES

Resumo: Este estudo aborda a escravidão no Brasil a partir da escrita imaginativa de Gayl Jones (1949 – ), que dialoga com a historiografia em abordagem interamericana e diaspórica. A autora negra do estado de Kentucky, sul dos Estados Unidos, recorre à história colonial brasileira para contar histórias emocionadas e contundentes no romance Corregidora (1975) e nos poemas narrativos Song for Anninho (1981) e “Xarque” (1985). Narrados por uma mulher negra em primeira pessoa (respectivamente, uma descendente de escravas, uma palmarista e uma escrava), os textos de Jones se modulam em tons de blues para revelar os sonhos, lutas e dores de mulheres negras nas Américas.

Palavras-chave: Brasil colonial; mulheres negras; diáspora; Américas; contar histórias.

Abstract: This essay approaches slavery in Brazil through the imaginative lenses of Gayl Jones (b. 1949), a black writer from the southern state of Kentucky, in the United States.  The inter-American, diasporic concerns in her literature set up a dialogue with Brazilian colonial historiography to tell touching, dramatic stories in the novel Corregidora (1975) and the narrative poems Song for Anninho (1981) and “Xarque” (1985). With a woman as first person narrator (respectively, a descendant of former slaves, a Palmarista or maroon, and a slave), Jones’s texts echo sounds of the blues to reveal the dreams, struggles, and pains of black women in the Americas.

Keywords: colonial Brazil; black women; diáspora; the Americas; storytelling.

Eu me considero, na verdade, uma contadora de histórias.
[…] “Contar histórias” é algo dinâmico, em processo […que] me sugere
possibilidades, muitas possibilidades […]. Também me vejo como contadora
de histórias devido à conexão entre palavra falada e escrita […],
entre tradições orais e documentos escritos. […E] é preciso documentar as
tradições – para combater os efeitos das documentações falsas[1]

(Gayl Jones, 1979, p. 355-56).

Partindo de um viés alternativo para abordar a escravidão no Brasil, este estudo privilegia as histórias contadas em prosa e verso pela escritora negra Gayl Jones. Numa literatura que acena de modo especial aos brasileiros, Gayl Jones convoca nossa atenção para a agudeza do seu olhar e a contemporaneidade de sua abordagem interamericana e diaspórica. Nascida em 1949 na cidade de Lexington, no estado sulista de Kentucky, Estados Unidos, onde ainda vive, a escritora recorreu diversas vezes à história colonial brasileira para compor suas obras, ainda não traduzidas para o português. A mais conhecida em seu país é provavelmente seu primeiro romance, Corregidora (1975), cujo manuscrito causou uma impressão tão forte em Toni Morrison (então editora da Random House), a ponto dela declarar que “nunca mais um romance sobre uma mulher negra poderia ser o mesmo” depois daquele texto revolucionário da iniciante Gayl Jones (apud Ghansah, 2015).[2] Além da valiosa recomendação de Morrison, Corregidora recebeu mais adiante o aval transnacional do autor de O Atlântico negro [The Black Atlantic, 1993] e professor da University of London, Paul Gilroy, que vem estampado na contracapa do romance de Jones na edição de 1987: “O panorama de trauma e superação em Corregidora se tornou ainda melhor e mais relevante com a passagem do tempo. Continua sendo um indispensável ponto de entrada para a tradição da escrita afro-estadunidense, que Gayl Jones renovou e enriqueceu”.[3]

O enredo do romance entrelaça o tempo presente – os anos 1950-1970 em Kentucky – e os traumas coletivos carregados pela narradora Ursa Corregidora, uma cantora de blues, que dá voz e descende de mulheres que foram escravas no Brasil do século XIX, traumatizadas, estupradas e permanentemente marcadas com o nome do senhor de escravos, Corregidora. Nos longos poemas narrativos Song for Anninho (1981) e “Xarque” (1985), por outro lado, Gayl Jones escolhe uma mulher quilombola (denominada Almeyda, em Anninho) e uma escrava urbana (Euclida, em “Xarque”) para contar em verso suas vivências e memórias. A autora recria acontecimentos dos séculos XVII e XVIII, respectivamente, remetendo a locais, fatos e personagens da história colonial brasileira. Mas são, principalmente, histórias femininas e intimistas, imaginadas por Gayl Jones e narradas em primeira pessoa, falando de amores, alegrias, medos, sofrimentos, luta e sobrevivência.

Esses três textos publicados num período de dez anos – Corregidora (1975), Song for Anninho (1981) e “Xarque” (1985) –, compõem o referencial básico para este artigo, lembrando que o interesse da autora norte-americana sobre a história e a cultura afro-brasileira não se encerra neles; abarca vários outros escritos.[4]

Gayl Jones na literatura negra dos Estados Unidos

A obra de Gayl Jones compartilha características marcantes e inovadoras com outras escritoras que publicaram nos Estados Unidos nas décadas de 1970 e 1980.  Pode-se destacar, por exemplo, o entrelaçamento da imaginação literária com a história do país e, ultrapassando fronteiras nacionais, com a diáspora africana nas Américas; a ênfase dada às memórias e raízes familiares; e o foco voltado para a mulher (assumido ou não como feminista). Durante essa verdadeira Renascença da literatura feminina/ negra, há um boom na publicação e visibilidade de uma variedade de autoras e gêneros. Além de Gayl Jones, afirmam-se nomes como Paule Marshall, Audre Lorde, Ntozake Shange, Maya Angelou, Toni Cade Bambara, Alice Walker e Toni Morrison. Um traço distintivo no trabalho de Jones e de outras escritoras da época é a consciência das afinidades existentes entre o seu lugar de origem, a área continental dos Estados Unidos, e o Caribe e/ou partes da América Latina. Chama atenção o fato de que três das citadas acima, Jones, Marshall e Shange, deram especial relevo a aspectos da história e da cultura afro-brasileira em suas obras.[5]

Gayl Jones com frequência associa seu trabalho com a linguagem oral e a cultura negra dos Estados Unidos, mas também manifestou sua admiração por romancistas latino-americanos bastante conhecidos em seu país nos anos 1970.  Em entrevista de 1979, Jones declarou que a maior influência que recebeu sobre conceitos de ficção veio de Carlos Fuentes e Gabriel García Márquez. A lista de pontos que ela detalha é longa: “imagem, mito, história, linguagem, metáfora, movimento entre tipos diferentes de linguagem e de níveis de realidade […], a relação entre presente e passado com a paisagem […], as ‘revoluções’, ou tipos de mudanças constantes – coisas políticas (Chile, México, Brasil)”. Na percepção de Gayl Jones, a maioria dos escritores latino-americanos é “moral e socialmente” responsável, conciliando “inovação técnica” com implicações humanas. Preocupados com os “pesadelos históricos e contemporâneos” que atormentam seus povos, os escritores latinos, assim como os negros e indígenas dos Estados Unidos, “são sempre responsáveis”, contagiando a autora com sua energia e despertando nela um sentimento de confiança e de grande afinidade [kinship] (Jones, 1979, p. 366-67).

Algumas das escritoras que então despontavam viriam a ser reconhecidas e premiadas, influenciando tendências naquele país e em outras partes do mundo. Destacam-se Alice Walker, primeira autora negra a ganhar um prêmio Pulitzer de Literatura/Ficção (para A cor púrpura [The Color Purple], 1983) e Toni Morrison, agraciada com um Pulitzer/Ficção por Amada [Beloved] em 1988 e com o Nobel em 1993. Outras, como Gayl Jones e Paule Marshall, receberam prêmios e são valorizadas por leitores exigentes, mas suas obras merecem um reconhecimento bem maior, como enfatiza Volk (2001).

A efervescência dos anos 1970-80 contribuiu para a reedição de escritoras relegadas ao esquecimento, como Zora Neale Hurston (1891-1960), que alcança um lugar de respeito na literatura do século XX, e Frances Harper (1825-1911), poeta e romancista do século XIX, ativista política das causas negras e feministas. Essa energia impulsionou também a expansão e o prestígio da teoria crítica sobre a literatura feminina negra e/ou diaspórica, com nomes como bell hooks (em minúsculo), Barbara Christian, Mary Helen Washington, Hortense Spillers, Barbara Smith, Susan Willis e Hazel Carby, além de influentes ensaios produzidos pelas autoras de poesia e ficção e das parcerias feministas inter-raciais e interculturais que se abrem a uma crescente interamericanidade.

Relações interamericanas, transnacionais, diaspóricas

Toda essa movimentação na literatura e na crítica não acontece de forma isolada; ela tanto repercute quanto revigora mudanças sociais e culturais que se propagam nos Estados Unidos e em outras partes do mundo na segunda metade do século XX. Há os processos de independência de ex-colônias europeias na África e na região caribenha, intensificados naquela época; o incremento de contatos acadêmicos interamericanos e a grande migração de chicanos, latino-americanos e caribenhos para os Estados Unidos. Temos ainda o movimento dos Direitos Civis, os protestos políticos contra a guerra e pela liberdade, a contracultura, as organizações e bandeiras raciais (como Black Power, Black Arts, Afrocentrism) e o movimento feminista, em ramificações diversas. O feminismo negro reforça a necessidade de reconhecer e privilegiar este segmento específico, tendo em vista que, como afirma hooks (1981, p. 7), “nenhum outro grupo nos Estados Unidos teve sua identidade tão excluída do corpo social quanto as mulheres negras”.[6] Em graus e estilos variados, a literatura negra de autoria feminina se associa à expansão de pesquisas acadêmicas nas áreas de história e estudos sociais abordando o colonialismo e seus legados, a diáspora africana nas Américas, os sistemas escravistas, as formas de resistência escrava, os mecanismos de sobrevivência e adaptação, além da relação entre países americanos, sua cultura e história.[7]

É verdade que o reconhecimento dos laços culturais e raciais de caráter interamericano não era algo novo naquele país. Já nas primeiras décadas do século XX, época do primeiro boom da música e literatura black no Harlem, Nova York – a chamada Harlem Renaissance –, o poeta Langston Hughes (1902-1967) cruzava fronteiras, visitando e escrevendo particularmente sobre o México e Cuba. Desde então, os olhares e interesses de escritores, artistas, músicos, intelectuais e pesquisadores negros dos Estados Unidos se voltam cada vez mais para o espaço caribenho em razão da sua centralidade geográfica, da pluralidade cultural e da violência histórica ali gerada e irradiada desde a chegada dos europeus, com a dizimação de povos nativos e a implantação do tráfico escravista.

Vale lembrar o conceito de “Extended Caribbean” ou Grande Caribe, imaginado pelo viés da economia política por Immanuel Wallerstein (1980) para sublinhar características comuns às áreas onde milhares de africanos foram escravizados para garantir o domínio europeu sobre as colônias. Ultrapassando o âmbito das ilhas que marcam o começo da América e interligam hemisférios, e mesmo o conjunto de países em torno do Mar do Caribe, o termo “Extended Caribbean” é tomado emprestado e adaptado aqui para abranger a faixa ao longo do Oceano Atlântico que se estende aproximadamente deste o estado de Maryland, nos Estados Unidos, até o sudeste do Brasil. Reproduzido abaixo, um mapa inspirado em Wallerstein remete à conexão histórica, cultural e econômica entre hemisférios, países, regiões e cidades geograficamente distanciados e politicamente separados por fronteiras e línguas.

Grande Caribe / Afro-América (Coser, 1994, p. xii)
Grande Caribe / Afro-América (Coser, 1994, p. xii)

O estudo de Wallerstein interliga as economias “modernas” das sociedades que se desenvolveram no “Grande Caribe” em torno das minas de ouro e/ou das plantations, as fazendas de cana de açúcar, algodão e café, com base na mão de obra africana escravizada. Seu conceito oferece um recurso estratégico para abordar a escritora Gayl Jones que, a partir de Kentucky, nos Estados Unidos, focaliza importantes momentos históricos em pontos geográficos diversos do Brasil colonial. Outros historiadores e antropólogos daquele país usam denominações como “Plantation America” e “Afro-America” para identificar aproximadamente a mesma área, mas com interesse primordial nas questões raciais e socioculturais decorrentes da escravidão (por exemplo, Charles Wagley, 1968, p. 14).

A Afro-América une hemisférios, entrelaçando histórias coloniais e culturas de raízes africanas, e o Brasil tem lugar destacado nesse espaço e nessa história. Em 2018 o Museu de Arte de São Paulo (MASP) e o Instituto Tomie Ohtake abriram ao público uma grande mostra intitulada Histórias afro-atlânticas, com “obras de arte e documentos relacionados aos ‘fluxos e refluxos’ entre a África, as Américas, o Caribe e também a Europa, ao longo de cinco séculos”. Como parte da proposta de “descolonizar” a percepção do saber e da arte e transformar museus em espaço “diverso, inclusivo e plural”, a exposição centralizou a matriz africana, explorou as rotas entre continentes e privilegiou os afrodescendentes em suas obras de arte e formas de resistência. Em seu mapeamento, a Afro-América se expande para incluir até o Uruguai. Nesse enorme cenário, os diretores do Museu enfatizam: “O Brasil é um território chave nessas histórias, pois recebeu cerca de 40% dos africanos que deixaram seu continente, durante mais de trezentos anos, para serem escravizados deste lado do Atlântico” (Martins e Pedrosa, 2018, p. 28).

Nas últimas décadas do século XX e primeiras do século XXI, intensas migrações internacionais provocam mais aproximações, misturas, choques e embates. A evolução nas comunicações e transportes facilita contatos sociais e profissionais e a disseminação de saberes, mas também traz maior concentração de poder e riqueza. Esses fatores têm estimulado questões renovadas sobre antigos e novos colonialismos, a persistência de valores eurocêntricos e esquemas de discriminação com base em local, raça, cor, gênero, religião e outros marcadores de diferença. Tais dilemas trazem impulsos adicionais para a expansão de estudos literários e culturais de caráter interamericano/ diaspórico/ global e o desenvolvimento de ferramentas teóricas que contribuam para a análise dos novos desafios.

Este trabalho se desenvolve em grande parte com o suporte de estudos sobre a escravidão brasileira e formas de rebelião adotadas pelos escravos, associados a pesquisas sobre a persistência de legados patriarcais e coloniais, dentro de um quadro crítico-conceitual que inclui estudos feministas, culturais e de-coloniais, com elaborações sobre identidades afro-americanas e hibridismos culturais. Os cruzamentos e colaborações podem ser pensados como movimentos culturais minoritários, transversos e transnacionais, sob o conceito de “minor transnationalism” (Lionnet & Shih, 2005, p. 7-9), relacionado às teorias da relação e transversalidades elaboradas por Édouard Glissant (1928-2011). Em diversos momentos o pensador nascido na Martinica ressalta a interligação das Américas e a importância caribenha, e as razões são muitas:

O Caribe sempre me pareceu ser uma espécie de prefácio ao continente americano. […] Foi o lugar do primeiro desembarque dos escravos vítimas do tráfico, dos escravos que vivenciaram o tráfico – e que depois eram orientados para a América do Norte, para o Brasil, ou para as ilhas da região. […] Repito sempre que o mar do Caribe se diferencia do mar Mediterrâneo por ser um mar aberto, um mar que difrata […] e leva à efervescência da diversidade. Ele não é apenas um mar de trânsito e de passagens, mas é também um mar de encontros e de implicações (Glissant, 2001, p. 14-17).

O Brasil imaginado por Gayl Jones

Desde a primeira metade do século XX, o Brasil é foco constante de atenção para estudiosos norte-americanos da história colonial, relações inter-raciais e africanismos, as heranças africanas perceptíveis na cultura do país, principalmente na linguagem, culinária e bebida, música e dança, religião, crenças e costumes.[8] Têm a expectativa de encontrar aqui traços ou indícios relevantes para os muitos descendentes de africanos violentamente cortados de sua história e de seus ancestrais. Afinal, o Brasil foi o maior importador de escravos africanos nas Américas e o último a abolir totalmente a escravatura, tendo hoje a maior população de descendência africana fora da África. Por outro lado, a igualdade racial permanece um objetivo a ser conquistado. Como aponta Heloisa Toller Gomes (2009, p. 15) com referência ao Brasil e aos Estados Unidos, “aqui e lá (assim como em todas as antigas sociedades coloniais nas Américas, erigidas sobre a escravidão), os códigos de conduta diante das relações étnico-raciais se mantiveram obstinadamente refratários a mudanças”, deixando espaços vazios e “silêncios eloquentes” a respeito da escravidão e da pessoa negra.

Gayl Jones, menina tímida e pobre que amava ouvir as conversas dos adultos e as histórias escritas e lidas por sua mãe Lucille, foi sempre fascinada pelo ato de imaginar e contar histórias. A linguagem oral, os sons das palavras, a música e os relatos sobre o passado encantavam e inspiravam a garota que já escrevia seus primeiros registros aos sete/oito anos de idade. Até a adolescência estudou em escola segregada, só para negros, quando afinal começa a integração racial nos estados sulistas. Falando como autora a uma entrevista, citada em epígrafe, Jones se define como uma “contadora de histórias” [storyteller], que tenta reproduzir o ritmo e a integridade das narrativas orais, buscando conexão com o ouvinte. Ela retoma esse tipo de narrativa que é tradicional e ao mesmo tempo dinâmica, em processo, atuando na contraposição às “documentações falsas” (Jones, 1979, p. 355-356).

Nos anos 1970, a escrita de Gayl Jones se afirma com o desejo de registrar tradições, reescrever a história e preencher lacunas, particularmente sobre a figura complexa da mulher negra e escrava, ainda ignorada por estudiosos e mantida na sombra. A escritora procura, porém, abrir relações e horizontes em seus textos literários e ensaios críticos, abraçando culturas mestiças e criando interações entre personagens de raças diversas, fugindo à pureza monocromática e à dicotomia preto/branco ou afro/euro. Afastando-se também do foco exclusivo no país, a escritora defende uma “estética do Terceiro Mundo” que comporia o legítimo “romance afro-americano” [“the African-American novel”]: enraizado no folclore e histórias orais, estética e criticamente “decolonizado”, “afrocêntrico” e, ao mesmo tempo, “multicultural”, “multiétnico” e feminista, ou melhor, “Afro-womanist” (Jones, 1994, p. 507-512).

O termo adotado por Jones agrega o referente “Afro” a “womanist”, conceito proposto dez anos antes por Alice Walker (1984, p. xi-xii), acentuando a diferença feminina-negra.[9] Gayl Jones se alia também à obra literária de Alice Walker, escritora do estado da Georgia e, portanto, sulista como ela, para ilustrar a conexão entre o presente e a história e também as marcas de ambivalência e contradição em temas e personagens. Tem interesse pessoal na complexidade das relações humanas, as ambiguidades, paradoxos, violências e tensões, pontos que definem sua própria escrita e que também percebe em Alice Walker (Jones, 1982, p. 38).

Tais características se entrelaçam nos ‘textos brasileiros’ criados por Gayl Jones, nos quais a escritora combina fatos e personagens históricos, lendas folclóricas (em torno do jabuti, por exemplo), referências linguísticas e aspectos culturais, sem ter nunca visitado pessoalmente o país. Foi possivelmente inspirada por suas muitas leituras e pelo contato com professores e poetas, como Michael S. Harper (1938-2016), seu mentor durante o mestrado e doutorado na conceituada Brown University. Sensível, poeta premiado e professor admirado, Harper era profundamente interessado em história, mito, folclore negro, nos ritmos do jazz e do blues e, também, na cultura de outros povos e raças.

A entrevista concedida a Charles H. Rowell em 1982 possibilitou a Gayl Jones esclarecer seu prolongado interesse na escravidão do Brasil e situar-se num quadro amplo e interamericano: “Gostaria de poder lidar com todo o continente americano em minha ficção – a totalidade das Américas – e escrever com imaginação sobre negros em qualquer lugar e em toda parte.” [10] Segundo a autora, os contatos com a cultura brasileira, ainda que de forma indireta, contribuíram para o enriquecimento do seu próprio trabalho, pois “recorrer à história e à paisagem brasileira ajudaram minha imaginação e minha escrita”. Para alcançar isso, Jones desenvolveu “a necessária pesquisa sobre fatos históricos e sociais”, inclusive para reportar-se a figuras históricas (como Zumbi, Ganga Zumba, Domingos Jorge Velho etc.) e também para se apropriar de alguns nomes e atribui-los a personagens imaginários bem distanciados do ‘original’.[11] É o caso do sobrenome do governador de Pernambuco, D. Pedro de Almeida, usado como primeiro nome da mulher Almeyda, sobrevivente de Palmares, personagem-título do conto “Almeyda” (1977) e protagonista-narradora no poema Song for Anninho (1981), rememorada em “Xarque”(1985). A experiência brasileira (“puramente literária e imaginativa, já que nunca estive lá”, declara Jones) permitiu à escritora maior flexibilidade para abordar a extrema violência contra a mulher (e não ser acusada de exagero, já que se apoiava em fatos reais). Além disso, contribuiu para que olhasse de outra maneira as vidas das mulheres negras em seu próprio país (Jones, 1982, p. 40-41).

Nos dois textos longos poéticos aqui focalizados, Song for Anninho e “Xarque”, a escritora evoca locais, cenas e crenças africanas enquanto imagina histórias e vivências cotidianas de quilombolas e escravos em locais específicos do Brasil. Inspirada pela longa e sofrida história da escravatura no Brasil e, principalmente, pela resistência palmarista, Gayl Jones dialoga com a historiografia e abraça a causa quilombola, que é central para o movimento negro brasileiro e repercute nas Américas. Dada sua importância como resistência ampla e organizada – que envolveu diversos núcleos prósperos e ameaçou por quase um século o sistema escravagista –, Palmares é reconhecido como o maior movimento desse tipo conduzido por escravos fugidos ou maroons. A memória de Zumbi e de Palmares permanece viva e inspiradora, mesmo após sua destruição: todos se unirão novamente “em um Novo Palmares”, porque a força de Zumbi será imortal, em “carne e sangue e espírito” (Jones, 1981, p. 15, 59). A República palmarista é recriada por Gayl Jones ao longo das 80 páginas de Song for Anninho, poema-testemunho que termina assinado com local e data, como um documento sobre a grande utopia de liberdade brasileira.

(Jones, 1981, p. 88)
(Jones, 1981, p. 88)

A memória da resistência e a esperança em um Novo Palmares contagiam os personagens de “Xarque”, relato poético de 45 páginas narrado pela voz de Euclida e localizado em “Recife, Brasil, 1741” (1985, p. 51). Mesmo dois séculos após seu fim, a força simbólica de Palmares sustenta ainda os escravos oitocentistas do romance Corregidora (1975); o sonho permanece forte em meio à grande violência contra os corpos negros. A bisavó de Ursa lembra muito bem de um jovem africano que conhecera numa fazenda do Brasil:

“Ele tinha esse sonho, sabe, de fugir e se juntar com os quilombolas em Palmares. Eu vivia repetindo prá ele que isso tinha sido muito antes do seu tempo, mas ele não acreditava, dizia que ia se unir a esses negros que tinham dignidade.[…] Eu disse que ele não ia achar o caminho porque Palmares tinha sido lá atrás, há dois séculos, mas ele disse que Palmares era agora. […] Não devia ter mais de dezessete ou dezoito anos” (Jones, 1975, p. 126-127).[12]

Em vez de privilegiar os heróis oficiais, Gayl Jones ilumina as lutas, sofrimentos e amores de pessoas comuns, dando voz às mulheres negras da era colonial e às que vieram depois. Em Corregidora, romance em formato experimental e estilo “blues”, a autora tentou explorar relacionamentos (entre mulheres; entre mulheres e homens) em situações de tensão e contradição. Intercalando tempos e espaços, o texto cobre um período que vai desde o século XIX no Brasil escravista até o presente segregado e opressivo no sul dos Estados Unidos. A relação entre oralidade, música e escrita é marcante; Corregidora foi primeiramente pensado como uma canção, um ritual, uma combinação ambígua de sonhos e memórias, prosa e poesia, vida e escrita, desafiando gêneros estabelecidos (Jones, 1979).

As três obras se interligam em personagens, episódios e referências históricas que denunciam a opressão, o racismo, o sexismo e a exploração continuada do corpo feminino e negro, em linguagem contundente, por vezes chocante, ou surpreendentemente lírica. Em Corregidora, as memórias da avó e da bisavó de Ursa sobre o apetite sexual e o domínio violento do senhor Corregidora sobre suas escravas ultrapassavam qualquer pesadelo. As duas foram “testadas”, estupradas e engravidadas por ele, de modo que tanto a avó quanto a mãe de Ursa eram filhas biológicas de Corregidora (que não era totalmente branco; tinha cor de índio, segundo dizia a bisavó e mostrava um retrato dele). Ursa é descendente desse homem e odeia os traços híbridos, herdados dele, que enxerga em seu próprio rosto. Os traumas são passados de geração em geração, de corpo a corpo de mulheres comprometidas em gerar filhas que mantivessem ‘o nome do pai’ para denunciar o horror da história. Mas isso não seria, também, um prolongamento da escravidão?, questiona o texto. Ao ser contada e cantada, a dor pede alívio, corpo e voz clamam por um novo tempo.

O corpo feminino abusado e ferido é recorrente nas obras de Gayl Jones. Em Song for Anninho, no ataque final a Palmares, Almeyda teve os seios amputados e jogados num rio por soldados portugueses. Em fuga na mata, recebe os cuidados mágicos das mãos de Zibatra, sábia curandeira que a ouve e socorre, lhe dá de comer e beber e adivinha sua história: sabe que Almeyda nasceu em Recife por volta de 1669, que é católica e que sua avó africana lutou contra holandeses e portugueses. Esta avó, lembrada em diversas partes do poema, era uma bela e inteligente muçulmana que se fingia de católica e admirava o saber dos jesuítas, com quem gostava de conversar (1981, p. 35). Almeyda rememora os tempos de escrava junto com a mãe e a avó em fazenda de cana de açúcar, e depois como ajudante de um sapateiro que a espancava até sangrar. Por fim, foi raptada e levada por homens de Palmares (Jones, 1981, p. 28-29). Zibatra é outra figura feminina sábia e amorosa: fala as línguas portuguesa e tupi, domina os cantos sagrados, a Bíblia e outros saberes místicos, conhece as matas e usa as ervas para aliviar a febre e curar as feridas do corpo de Almeyda. Ao avistar “os globos dos seios flutuando no rio”, Zibatra os enrola e esconde, estanca o sangue com barro, coloca Almeyda num cobertor e a carrega para dentro da mata (p. 11).

Depois que se perde de Anninho, que era um soldado muçulmano de Zumbi, parece restar a Almeyda apenas a lembrança dos carinhos de seu companheiro.

Onde está ele? A guerra de Palmares
acabou, nós fugimos; os soldados portugueses
nos alcançaram no rio.
Minha memória não vai além disso
(Jones, 1981, p. 11).[13]

Coberta com o barro do rio, Almeyda se sente literalmente unida a essa terra que é vida, lar, lugar e história. É como se “o sangue de todo o continente” corresse em suas veias (Jones, 1981, p. 12). Ela conversa com o amado, mesmo em delírio:

Esta terra é minha história, Anninho,
nada menos que esta terra inteira.
Construímos nossas casas no topo
da história.
Você lembra como era,
lá no alto das montanhas?
(Jones, 1981, p. 10-11).[14]

Almeyda recorda as histórias contadas pelo companheiro, que nasceu livre e foi para Palmares por vontade própria. Como não era um escravo fugido e procurado, tornou-se útil à República por circular com facilidade nos vilarejos e fazendas dos arredores, atuando no comércio e colhendo informações. Ele havia conhecido Ganga Zumba, “o velho tolo” que acreditou nas promessas dos portugueses e ia entregar os quilombolas todos, mas foi morto pelo sobrinho Zumbi.  Nas palavras de Anninho, “só aqui existe dignidade e posição”, mas é uma liberdade necessariamente vigilante e armada (p. 37).

Sem conseguir aceitar tanta guerra e tamanha crueldade, Almeyda relembra as indagações cruciais que havia feito a sua avó. Falam do Brasil colônia, mas poderiam estar se referindo ao Brasil ou aos Estados Unidos dos dias atuais, do nosso tempo.

Então pergunto, “Porque eles precisam sempre tentar
nos destruir? Porque não nos deixam ficar
neste lugar que fizemos para nós mesmos?” […]
“Este é um país que não deixa os homens
serem gentis. Homens brancos ou negros. […]
E ela disse que não é fácil amar
num tempo como este. Não é fácil
nem para um homem, nem para uma mulher”
(Jones, 1981, p. 37-38).[15]

As três obras aqui focalizadas compartilham o referencial brasileiro e também a ênfase no matriarcado, com diversas gerações de mulheres da mesma família sendo representadas e sua experiência sendo lembrada e recontada pela descendente-narradora. Nos sonhos e delírios de Almeyda em Song for Anninho, por exemplo, a avó lhe fala sobre a necessidade da gentileza e a certeza de uma nova era chegando, quando será fácil mostrar ternura. “Você acredita nisso, vovó?”/ “Sim.” (Jones, 1981, p. 40-41).[16] Seria o diálogo a projeção do desejo de Almeyda, e não fato guardado na memória? Em sua mente torturada e confusa, essa palavra de esperança se mistura a previsões opostas e sombrias sobre o futuro, ditas pela mesma avó e um dia relatadas por Almeyda a Anninho:

“Não. Ela me disse que sabia que não era verdade
que chegaria a hora em que os tempos duros
teriam fim. Não haveria tal momento,
nunca na vida dela, nem na minha e nem
nas vidas dos que vierem depois de nós”
(Jones, 1981, p. 44-45).[17]

E agora, teria sido mesmo a avó quem fez essa “profecia terrível”? Mas ela não enfatizou a ternura, que haveria de prevalecer? Será que essa previsão pessimista não foi feita pela escrava que se automutilara para não ter nem homem nem filhos, mulher que surge trágica e recorrente nas lembranças de Almeyda?[18]

No fluxo de consciência apresentado por Gayl Jones em Song for Anninho, o real e o sonhado se misturam e se confundem. Há também lembranças de momentos doces e das conversas com Anninho, que a avó não chegou a conhecer. Ele era um dos palmaristas que capturaram a moça escrava e a trouxeram para o quilombo, junto a outras mulheres. Até então Anninho “estava convicto de que [aquele] não era nem o momento nem o lugar para uma mulher”, mas quando viu Almeyda, chegando tão amedrontada e cansada, percebeu que “teria que criar a hora” [I would create time] (p. 42-43). Mas ela chegou a ter medo do amado, quando o corpo dele estava tomado pelo ódio. Existirá um tempo certo e uma linguagem apropriada para o entendimento e o amor? é a pergunta que ressoa como refrão neste canto/ song.

A estratégia narrativa traz a confluência de tempos diversos e do real maravilloso presentes em autores como García Márquez e Fuentes. Aspectos violentos, contraditórios e paradoxais também existem na literatura dos dois escritores e em Alice Walker, todos admirados por Jones. Em sua riqueza imaginativa, o texto poético de Gayl Jones é lírico e épico, prosaico e filosófico, narrativo e reflexivo. Conta fatos da história entrelaçados a experiências cotidianas e relacionamentos fictícios, e ao mesmo tempo medita sobre os desafios da existência e da história, as crises políticas, as guerras e os conflitos humanos, o desejo e o amor. A escritora considera que suas “histórias mais autênticas estão em primeira pessoa”, exatamente quando tenta “entrar nas personagens e contar suas histórias como elas teriam contado” (Jones, 1982, p. 37).[19]

Ainda há muito a descobrir sobre o que de fato aconteceu e como viveram as pessoas em Palmares. Os documentos e fontes sobre o quilombo ou agrupamentos semelhantes têm geralmente o selo dos poderes coloniais. Nas palavras de Décio Freitas (1982, p. 13), “a República Negra será sempre vista de longe”, e pouco se consegue imaginar do seu interior. João José Reis e Flavio dos Santos Gomes (1996, p. 11-12) apontam as muitas abordagens existentes sobre Palmares, desde a visão colonial, que insere sua destruição e a vitória do poder constituído na história militar brasileira, passando por interpretações “culturalistas” na primeira metade do século XX e uma corrente “restauracionista”, que mostra Palmares como a tentativa de “restaurar a África neste lado do Atlântico”. Na segunda metade do século XX vieram estudiosos marxistas, socialistas, e ligados ao movimento negro. Análises mais recentes dos quilombos cobrem mais regiões e apontam “para uma complexa relação entre os fugitivos e os diversos grupos da sociedade em torno deles”, embora persistam polêmicas quanto a número, tipo de organização e variedade de habitantes, raças e etnias no conjunto das vilas palmarinas (Reis e Gomes, 1996, p. 13-14).

Gayl Jones recria personagens e episódios relacionados às guerras e sofrimentos, mas também ressalta aspectos do cotidiano e da cultura afro-brasileira em seus sincretismos e multiplicidades. Integra à sua “contação de histórias” diversos pontos de interesse de historiadores e antropólogos e ainda questões cruciais para o pensamento contemporâneo.  Entrelaça comentários sobre a linguagem, suas seleções e exclusões, o aspecto ‘construído’ de documentos, a importância do relato oral para o conhecimento de vivências e identidades à margem da história oficial, as relações inter-raciais e as questões de gênero.[20] Em Song for Anninho (1981, p. 17), as raízes na África são valorizadas por Almeyda tanto quanto seu pertencimento ao Brasil, com sua bela paisagem e sua realidade desafiadora. Ela assim diz, na canção dedicada a Anninho:

Sou neta de uma africana.
Esta é a minha terra.
Pego o óleo da palmeira e o esfrego no meu cabelo e corpo.
Este é o meu lugar. Minha parte do mundo.
A paisagem e a ternura,
também as guerras e o desespero. [21]

Jones incorpora lendas africanas e afro-americanas que mostram, por exemplo, a possibilidade de os africanos voarem, referência utilizada por Toni Morrison no romance Canção de Solomon [Song of Solomon, 1979]. Essa crença ressurge no Brasil em relatos sobre a destruição de Palmares, quando Zumbi e seus guerreiros teriam voado da montanha para a liberdade. São evocados por Almeyda:

E nossos bravos palmaristas, saltaram do penhasco ao invés da rendição.
Ah, se eles puderam se tornar pássaros naquela hora! […]
Mesmo agora continuo a olhar os pássaros,
na esperança de que seja algum palmarista!
(Jones, 1981, p. 36).[22]

A personagem Almeyda sobrevive à guerra e ressurge em “Xarque”. É avó da jovem escrava (e narradora) Euclida, insegura e arredia por ter perdido a mão após ser mordida por uma cobra jararaca. Ela se define como brasileira e filha de Bonifácia, esta conhecedora de muitas ervas, curas e antídotos que aprendeu com a mãe. Euclida herdou da avó o gosto pelos prazeres simples da natureza, mas com o insucesso da segunda tentativa de se estabelecer um Palmares em território brasileiro, ela tem medo de novos sofrimentos.[23]

Sou uma mulher tímida
que receia mudanças.
Sonho com redes macias,
com penas e capim. […]
Sonho com figos do mato
e com minha avó guerreira.
Mas sou uma mulher tímida.
(Jones, 1985, p. 7) [24]

Para sobreviver, Euclida força um sorriso e trabalha sem parar. Mas, como sua avó Almeyda, ela um dia encontra a doçura e o carinho em um negro bonito e livre (Feijó), que conheceu pescando no rio Maranhão: “Me senti uma deusa como Iemanjá,/se erguendo do mar./ Ele passou mel na minha testa/ e então me beijou./ ‘Me conta de você’” (Jones, 1985, p. 49).

Tanto em Song for Anninho quanto em “Xarque”, as jovens narradoras adotam uma linguagem simples e coloquial, como se contassem uma história oral ou escrevessem impressões e pensamentos num diário ou numa carta ao amado, em tons de um blues cadente, apaixonado e melancólico. Em Song for Anninho, a sobrevivente Almeyda rememora o sonho compartilhado com o amado Anninho, a força herdada de sua avó escrava, o movimento de resistência coletiva de que participou e, também, a crueldade dos colonizadores e a ameaça de destruição de Palmares. Euclida, neta de Almeyda, conta em versos livres sobre seu trabalho numa fábrica de carne-seca e o de sua mãe como cozinheira, na casa do dono da fábrica. As duas estavam entre os escravos e alguns libertos que acabaram chegando no vilarejo às margens do Rio Parnaíba, bem ao norte do Brasil. Em “Xarque”, a jovem Euclida expõe seu medo, a exploração e mutilação do corpo escravo, a persistente rebeldia negra, a frustrada tentativa de construção de um Novo Palmares.[25]  Fala também do sonho recente de fuga “para o norte”, para além das fronteiras brasileiras. Como deseja a criança abandonada pela mãe que havia partido para tentar a sorte em Paris:

“Não a culpo nem um pouco. […]
Mas se fosse eu, iria para o norte.
Dizem que esse é o lugar
para ter aventura e fortuna de verdade.
Subir até a América do Norte,
é para lá que eu vou.”
(Jones, 1985, p.41) [26]

Gayl Jones escolhe mapear cenários importantes na história colonial brasileira e interamericana. Assim é a Serra da Barriga, então na Capitania de Pernambuco e hoje município de União dos Palmares, Alagoas, onde Almeyda consegue sobreviver para contar histórias vividas no quilombo. Também relevante é o Rio Parnaíba, em “Xarque”, cuja denominação foi dada pelo bandeirante Domingos Jorge Velho, que conduziu a tropa para destruir Palmares e aparece como personagem em Song for Anninho e em Corregidora. Maior rio reconhecidamente “nordestino” e totalmente navegável, o Parnaíba corre entre os estados de Maranhão e Piauí até desaguar num grande delta no Oceano Atlântico, “o único delta em mar aberto das Américas” (Wikipedia). Localizado num ponto do mapa voltado para o hemisfério norte, o Delta do Parnaíba parece apontar para espaços além da fronteira, no Caribe e nos Estados Unidos. Esta era a rota desejada por uma personagem em “Xarque”, mas o plano se concretiza para duas escravas que deixam o Brasil, a bisavó e a avó de Ursa, no romance Corregidora. A bisavó consegue escapar da prisão de sexo e terror em que se encontrava sob Corregidora, cruza a fronteira e chega à Louisiana. Em 1906 volta para buscar a filha, também abusada e engravidada por Corregidora. As duas refazem o percurso rumo ao norte e vão até o Kentucky, em busca de trabalho e liberdade (Jones, 1975, p. 79).

Mesmo com tantas dores vividas e lembradas, as personagens de Gayl Jones, mulheres e homens, gostariam de superar as ameaças, de conseguir amar um ao outro e não sofrer mais violência ou mutilação. Será possível o sonho? Em Song for Anninho, sempre com jeito de blues, Almeyda anuncia a esperança no corpo solto e no contato humano, docemente, fora da linguagem, apesar da história: nós faremos nosso tempo.

Fale comigo suave e bem perto com um beijo, Anninho.
E nós teremos nosso tempo de ternura.
Nós faremos nosso tempo de ternura
(Jones, 1981, p. 78).[27]


* Stelamaris Coser é professora aposentada do Departamento de Línguas e Letras e do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários (UFES). Mestre em Letras/Literatura Norte-Americana (UFRJ) e doutora em Estudos Americanos (University of Minnesota), desenvolve Projeto de Estágio de Pós-Doutorado no PACC/UFRJ. Autora de Bridging the Americas: The Literature of Paule Marshall, Toni Morrison and Gayl Jones (1994); organizadora de O papel de parede amarelo e outros contos (2006) e de Viagens, deslocamentos, espaços (2016), entre outras publicações.

Referências

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WALLERSTEIN, Immanuel. The Modern World System. New York: Academic, 1980. v. II.

Notas

[1] As traduções de textos citados são de minha responsabilidade, e o original segue em nota. “[…] I really think of myself as a storyteller. […] “Storytelling” is a dynamic word, a process word. […] (it) suggests possibilities, many possibilities. […] I see myself as a storyteller also because of the connection between the spoken and the written. […] between the oral traditions and the written documentation […] it’s necessary to document the traditions – to counteract the effects of the false documentations.”

[2] “[…] no novel about any black woman could ever be the same after this.”

[3]Corregidora’s survey of trauma and overcoming has become even better and more relevant with the passage of time. It remains an indispensable point of entry into the tradition of African American writing that Gayl Jones reshaped and enriched.”

[4] Há poemas no livro The Hermit Woman (1983), cenas e personagens no romance Die Vogelfängerin (1986), publicado apenas em alemão (The birdcatcher ou O apanhador de passarinhos). “Ensinança” é nome de personagem desse romance e também título de um poema e um conto (1983). O jabuti e a suas lendas surgem em vários trabalhos e há referências “brasileiras” em The Healing (1998) e Mosquito (1999). Existe ainda o manuscrito inédito de um romance de 1.000 páginas intitulado Palmares.

[5] As três escritoras (mais Edwidge Danticat) fazem parte do projeto de pesquisa que desenvolvo no momento junto ao PACC: “A diáspora africana no Grande Caribe: visões de Brasil na literatura feminina-negra da América do Norte”.

[6] hooks explica: “Quando se fala de pessoas negras, o foco tende a ser os homens negros; e quando se fala de mulheres, o foco tende a ser as mulheres brancas”, como acontece em grande parte da produção feminista dos anos 1970-80. Destaques no original: “No other group in America has so had their identity socialized out of existence as have black women. […] When black people are talked about the focus tends to be on black men; and when women are talked about the focus tends to be on white women.”

[7] Publicam-se estudos pioneiros de autoria feminina e com foco explícito na mulher negra (no país e na diáspora), por ex.: F.C. Steady (The Black Woman Cross-Culturally, 1981); P. Giddings (When and Where I Enter: The Impact of Black Women on Race and Sex in America, 1984); D.G. White (Ar’n’t I a Woman?: Female Slaves in the Plantation South, 1985); R. Terborg-Penn (“Women and Slavery in the African Diaspora: A Cross-Cultural Approach to Historical Analysis”, SAGE, 1986); A. Davis (Women, Race & Class, 1981); b. hooks (Ain’t I a Woman?, 1981); M. Morrissey (Slave Women in the New World: Gender Stratification in the Caribbean, 1989).

[8] Alguns trabalhos pioneiros: M. Herskovits (The Myth of the Negro Past, 1941, e The New World Negro, 1966); F. E. Frazier (“The Negro Family in Bahia, Brazil” e “Some Aspects of Race Relations in Brazil”, 1942); Donald Pierson (Negroes in Brazil, 1942); e F. Tannenbaum (Slave and Citizen, 1947).  Na década de 1970, temos as pesquisas relevantes de E. Genovese, C. Degler, M. Horowitz, S. Mintz, R. Price, S. Schwartz, etc.

[9] Avessa a rótulos e partidos, Jones permaneceu distante de organizações feministas apesar de criar mulheres fortes e protagonistas. Em entrevista a M. Harper, 1979 (p. 364), declarou: “Não tenho bem certeza se sei o que é uma feminista” (“I’m not really sure if I know what a feminist is”). Muda de perspectiva nos anos 1990, quando se aproxima de Alice Walker, que havia definido “womanist” como “a feminista negra ou de cor”, que admira a força e a cultura feminina, mas pode amar mulheres ou homens, e é “universalista” em termos de raça e cor.

[10] “I’d like to be able to deal with the whole American continent in my fiction – the whole Americas – and to write imaginatively of blacks anywhere/everywhere. “

[11] Apenas especulação sobre obras que Jones pode ter consultado: Freyre, The Masters and the Slaves/Casa-grande e senzala: A Study in the Development of Brazilian Civilization (tradução inglesa de 1946); R. K. Kent, “Palmares: An African State in Brazil” (Journal of African History, v. 2, p. 161-175, I965); e Herskovits, Pierson e Tannenbaum, citados em nota anterior.

[12] “He had this dream, you know, of running away and joining up with them renegade slaves up in Palmares. I kept telling him that was way back before his time, but he wouldn’t believe me, he said he was going to join up with some black mens that had some dignity […] I said he couldn’t know where he was because Palmares was way back two hundred years ago, but he said Palmares was now.[…] Couldn’t’ve been more than seventeen or eighteen.”

[13] “Where is he? The battle of Palmares/ ended, we escaped; Portuguese soldiers/ caught us at the river./ My memory does not go beyond that.”

[14] “This earth is my history, Anninho,/ none other than this whole earth./ We build our houses on top of history./ Do you remember how it was/ up in the mountains?”

[15]  Then I ask, “Why must they always try to/ destroy us? Why can’t they let us stay in/ this place we have made for ourselves?”[…] This is a country that doesn’t allow men/ to be gentle. White men or black men./[…] And she said it is not easy to love/at a time like this one. It is not/ easy for a man or a woman.”

[16]There will come a time, Almeyda, / when it won’t be difficult/ to be tender, when it will be an easy thing./ Do you believe that, grandmamma?/ Yes.” (itálico no original).

[17] “No. She told me she knew it was not true that/ there would come a time when the hardness would/ be over. There would not come such a time,/ never in her lifetime and not in mine and not/ in the lifetimes of those that come after us.”

[18] Na história e na literatura há registros da revolta feminina contra a escravidão manifestada em violência contra o próprio corpo, em suicídio, em crimes contra os senhores  e na morte dos próprios filhos (como no romance Amada [Beloved], de Toni Morrison).

[19] “I think my most authentic stories are in first person when I enter the characters and tell their stories as they would tell them”.

[20] Tenho um artigo publicado sobre Song for Anninho: “Imaginando Palmares: a obra de Gayl Jones (Coser, Revista Estudos feministas, v. 13, n. 3, p. 629-644, 2005).

[21] “I am the granddaughter of an African./This is my land./ I take palm oil and rub it on my hair and body./ This is my place. My part of the world./ The landscape and tenderness,/ the wars too and despair”.

[22] “And our brave Palmaristas,/ jumping from cliffs rather than surrender./ Oh, if they could have become birds then!/[…] Even now I watch out for birds,/ hoping it’s some Palmarista!”

[23] A saga de Euclida inclui referências a seu pai Icó, negro livre e itinerante, sudanês/angolano, que falava do mundo mais ao norte; à liberta Tirana, que cantava “tiranas” e contava sobre Madagascar; ao escravo Diamantino, que perdeu três dedos na fábrica de charque; aos jesuítas e indígenas, à cidade de São Paulo, Bahia, Minas, etc.  Como na vila palmarista criada por Gayl Jones, há contatos entre raças, etnias e religiões diversas e misturadas.

[24] “I am a shy woman/ who fears change./ I dream of hammocks/ of feather and grass  […]/ I dream of wild figs/ and my warrior grandmother./ But I am a shy woman.” A timidez faz pensar na autora Gayl Jones, descrita como muito retraída e há anos reclusa.

[25] No texto de Jones, Euclida e a mãe foram capturadas em 1721, vendidas e trazidas para o vale do Piauí. Quase três séculos depois, em 2017, já são conhecidas  2.890 comunidades quilombolas, inclusive nos estados do norte.

[26] “I don’t blame her a bit./ We’re all poor devils,/ and now she’s off to Paris,/ to try to be a lucky one!/if it was me I’d go up North./ They say that that’s the place/  for real adventure and real fortune./ Up to North America,/ that’s where I’ll go.”

[27]  “Speak to me softly and close through a kiss, Anninho./ And we will have our time of tenderness./ We will make our time of tenderness.”

editorial
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A CANÇÃO CONTEMPORÂNEA EM ESCUTA

A canção popular brasileira, ao longo do século XX, consolidou-se como manifestação cultural de elevado valor estético e de evidente força política. Além disso, tornou-se fonte preciosa de representações e reflexões em torno da realidade social do país, em suas mais diversas peculiaridades e contradições. Desde os anos 1960, as discussões que conduziram da bossa nova ao tropicalismo geraram farto acompanhamento crítico-teórico por parte do jornalismo especializado, mas também do empenho intelectual dos próprios artistas e, por fim, dos estudos acadêmicos.

Por se tratar de um objeto híbrido, a canção popular passou a ser estudada no âmbito da literatura, da música e das ciências sociais, abrindo caminho para um campo teórico específico e transdisciplinar, do qual se ocuparam nomes como Augusto de Campos, Luiz Tatit, Santuza Cambraia Naves e José Miguel Wisnik. A partir daí, começaram a proliferar trabalhos acadêmicos sobre os gêneros musicais e sobre os grandes cancionistas do século XX, gerando um consistente arcabouço teórico para os estudos da canção.

No entanto, neste momento, é fundamental que nossos olhos também se voltem para o cancioneiro do século XXI. Nesse sentido, é preciso refletir sobre a complexidade do cenário atual: os novos meios de produção, propagação, legitimação e circulação do objeto canção; o estabelecimento de um novo cânone de cancionistas populares a partir das contemporâneas discussões estéticas e identitárias; o retorno dos álbuns, dos vinis, dos EPs e dos singles como objetos estéticos íntegros; a inserção da canção contemporânea no contexto das novas (e das velhas) tensões políticas e sociais; e, por fim, a própria produção recente dos artistas que se consagraram ainda no século passado.

Pensando nisso, o Núcleo da Canção do Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC-UFRJ) vem desenvolvendo, desde 2016, o projeto Escuta, que recebe na universidade artistas contemporâneos, escuta seus discos e conversa sobre questões importantes da canção popular do Brasil, principalmente, em nossos tempos. Para essa coletânea, escolhemos justamente a edição especial de fechamento do primeiro ano de entrevistas (em setembro de 2017), na qual ouvimos um álbum de Bruno Cosentino, que além de artista, é também um pesquisador da canção e um dos idealizadores do projeto. A conversa foi conduzida por mim (Rafael Julião) e pelo professor e poeta Eucanaã Ferraz e serve de exemplo (com alguma dose de metalinguagem) dessa atividade que temos desenvolvido no PACC.

A primeira entrevista do ciclo me deu a oportunidade de conhecer a obra de Luís Capucho, de discos como Cinema Íris e Poeta maldito. Desde então, venho mantendo interesse por seu trabalho e, neste contexto, achei cabível publicar algumas reflexões sobre sua obra musical (e também literária). A questão da voz, central para a compreensão de Capucho, é também tema de Leonardo Davino, em seu texto revelador sobre a vocoperformance de Juçara Marçal. O artigo é um exemplo claro de como o pensador da canção deve deslizar entre zonas diferentes do conhecimento, como a filosofia, a literatura, a estética, a música, a história, e também circular com naturalidade entre diversos estratos da cultura, indo do erudito ao popular, do cult ao pop, circulando por todas essas áreas, desfazendo suas hierarquias e harmonizando suas particularidades.

Esse trabalho crítico podemos observar também no artigo de Carlos Gomes sobre o compositor pernambucano Siba, que nos leva ao maracatu e à cultura do Nordeste do país, revelando sua qualidade poética e, especialmente, sua força política. A canção como conjugação de vetores estéticos e políticos é também assunto de Vanubia Close e Samile Cunha, que refletem sobre a Elza Soares do século XXI e a narrativa que faz de si e da música, ao ser intérprete e curadora das canções que canta. Nesse texto, o lugar de onde se fala e que narrativa produzimos sobre nós é um bom convite à reflexão. Do “Rap da felicidade” de Elza, vamos ao rap de Mano Brown, que Marcos Lacerda nos aponta como um mestre da composição, em sua inventividade formal, e também em seu lugar de pensador da cultura brasileira. A voz do artista vem de um espaço singular de visão, trazendo miradas muitas vezes desconcertantes sobre a realidade do país, sempre postas em sua dicção particular.

A questão das narrativas sobre a canção popular (e suas implicações políticas e culturais) é o assunto de Gustavo Mouro, que pensa na linha de tensão entre a tendência pós-moderna de problematização das narrativas e as interfaces dessas narrativas com o mundo real, por seu poder de retratá-lo, mas também por sua potência de fecundá-lo. Já Augusto Cavalcanti nos convida a pensar a produção de Cazuza e Arnaldo Antunes, paradigmática do rock nacional surgida nos anos 1980, tanto a partir de sua inserção no desenvolvimento da canção popular de massas ao longo da segunda metade do século XX, mas também sob o influxo das recentes discussões estéticas e políticas. Assim, a pós-modernidade não atua só sobre os artistas do presente, mas também sobre os olhos que miram os artistas do passado.

Enfim, a coletânea deseja ser um chamado de atenção para a força presente da canção popular do Brasil, e o que ela nos revela de gesto estético e de dimensão política, apresentando-se como objeto necessário e complexo, que carece de muitos lugares de olhar. Trata-se, antes de tudo, de um convite para a escuta das vozes que permanecem transformando em som e lançando luz sobre a vida deste país e de todos nós.

Rafael Julião (PACC/UFRJ) e Bruno Cosentino (PACC/UFRJ)
Organizadores

dossiê
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A VOCOPERFORMANCE FELINA SONSA QUE TEM ASA DE JUÇARA MARÇAL

Resumo: Jean-Luc Nancy começa o livro À escuta, perguntando-se se “é a escuta uma coisa de que a filosofia seja capaz?”. A resposta a essa pergunta vem sendo desenvolvida por alguns pensadores. Para Paul Zumthor e Adriana Cavarero, o ensurdecimento da filosofia, isto é, da reflexão sobre os poderes da voz, é tema central e precisa ser efetivamente compreendido por quem pesquisa a palavra cantada, a palavra vocalizada, a vocoperformance. Este trabalho enfrenta a questão, a partir da mitologia vocalizada na voz da cantora Juçara Marçal. Posto que nessa revocalização do mito e do logos, Juçara cria um mundo sonoro constituidor e contestador da realidade: “devolve o hematoma”.

Palavras-chave: Juçara Marçal; vocoperformance; mito.

Abstract: Jean-Luc Nancy begins the book À l’écoute, wondering if “l’écoute, est-ce une affaire dont la philosophie soit capable?”. The answer to this question has been developed by some thinkers. For Paul Zumthor and Adriana Cavarero, the deafening of philosophy, that is, reflection on the powers of the voice, is a central theme and must be effectively understood by those who search for the word sung, the word vocalized, vocoperformance. This work faces the question, from the voiced mythology in the voice of the singer Juçara Marçal. Since in this revocation of the myth and the logos, Juçara creates a sonorous world that constitutes and contests reality: “it returns the hematoma”.

Keywords: Juçara Marçal; vocoperformance; myth.

1. Pro mensageiro passar. Para Augusto de Campos (1978),

segundo ensina Moles, a informação é função direta de sua imprevisibilidade, mas o receptor, o ouvinte, é um organismo que possui um conjunto de conhecimentos, formando o que se chama de ‘código’, geralmente de natureza probabilista, em relação à mensagem a ser recebida. É, pois, o conjunto de conhecimento a priori que determina, em grande parte, a previsibilidade global da mensagem.

E completa que

assim, a mensagem transmite uma informação que é função inversa dos conhecimentos que o ouvinte possui sobre ela. O rendimento máximo da mensagem seria atingido se ela fosse perfeitamente original, totalmente imprevisível, isto é, se ela não obedecesse a nenhuma regra conhecida do ouvinte. Lamentavelmente, nessas condições, a densidade de informação ultrapassaria a ‘capacidade de apreensão’ do receptor.

Conclui:

nenhuma mensagem pode, portanto, transmitir uma ‘informação máxima’, ou seja, possuir uma originalidade perfeita, no sentido da teoria das probabilidades, e, mais precisamente ainda, a mensagem estética deve possuir uma certa ‘redundância’ (o inverso da ‘informação’) que a torne acessível ao ouvinte. Reciprocamente, a transmissão de elementos demasiados previsíveis é ‘banal’ aos ouvidos do receptor, que não encontra neles um coeficiente de variedade capaz de interessá-lo.

Assim, “para que haja informação estética, deve haver sempre alguma ruptura com o código apriorístico do ouvinte, ou pelo menos, um alargamento imprevisto do repertório desse código” (p. 180-181). Por sua vez, Jean-Luc Nancy começa o livro À escuta (2014), perguntando-se se “é a escuta uma coisa de que a filosofia seja capaz?” (p. 11). A resposta a essa pergunta vem sendo desenvolvida por alguns pensadores. Nancy, inclusive. Para Paul Zumthor (2007) e Adriana Cavarero (2011), o ensurdecimento da filosofia, isto é, da reflexão sobre os poderes da voz, é tema central e precisa ser efetivamente compreendido por quem pesquisa a palavra cantada, a palavra vocalizada, a vocoperformance. O pesquisador dessas poéticas já percebeu que escutar é saber. Ou que “só podemos atender ao mundo orecular”, como Oswald de Andrade anota no Manifesto Antropófago. Ao neutralizar a escuta, o filósofo deixa de perceber que “o sonoro arrebata a forma”. Isso porque o sonoro “não dissolve [a forma], alarga-a antes, dá-lhe uma amplidão, uma espessura e uma vibração ou uma ondulação que o desenho mais não faz do que aproximar” (Nancy, 2014, p. 12). Por isso mesmo, ao justapor as palavras de Augusto de Campos sobre a transmissão de uma mensagem estética e as de Jean-Luc Nancy sobre a escuta, estranhamos quando este sugere que podemos escutar o que vemos, mas não podemos ver o que escutamos. Ora, o que faz o sujeito cancional, aquele que canta por trás da voz audível, aquilo que antigamente chamávamos de alma [da canção], senão plasmar imagens?

2. Pesar a consciência do plantão. Ao dizer que “quer-se aqui apurar o ouvido filosófico: puxar a orelha do filósofo para a inclinar para aquilo que solicitou ou representou sempre menos o saber filosófico do que o que se apresenta à vista e que se eleva antes no sotaque, no tom, no timbre, na ressonância e no barulho”, Nancy (2014, p. 13) aponta em direção àquilo que temos chamado de sujeito cancional. A saber: a entidade que só se permite ouvir no instante-já da canção e que amalgama a voz do compositor, a voz do sujeito da canção (a voz que “fala” a mensagem da letra da canção) e a voz do desejo do ouvinte. E, importante destacar, descola-se de todos estes quando permite a fruição, bem como a possível significação, pessoal e intransferível. Mais do que a confissão auricular, o sujeito cancional é a alma do sujeito da canção, daquilo que em teoria da literatura chamou-se de eu-lírico. O barulho visual engendrado por esse sujeito foi peremptoriamente silenciado. Isso porque, grosso modo, esse barulho é mais sonoridade e menos mensagem, mais experiência e menos decodificação. É estar e ser à escuta, como defende Nancy. Ou seja, para um ser dado à escuta, formado pelo e no orecular (ouvinte, ouvidor, auditor, auscultador, escutador), caberia “uma intensificação e um cuidado, uma curiosidade ou uma inquietude” (Nancy, 2014, p. 16), já que “escutar é estar inclinado para um sentido possível, e consequentemente não imediatamente acessível” (p. 17). Essa abertura é trabalhada, por exemplo, em “Padê onã”, de Douglas Germano, na voz de Juçara Marçal. É a preparação do encerramento dos trabalhos do disco Convoque seu Buda, de Criolo (2014). A canção é saudação e canto a Exu, mensageiro da travessia e do destino, orixá da comunicação, dos contatos. Junto à canção “Fio de prumo” – instrumento da construção civil e bastão de Exu –, “Padê onã” canta que a ideia não substitui o sensível. Se “a poesia existe nos fatos”, como Oswald de Andrade escreveu, é o sujeito cancional em Juçara Marçal que, coincidido com o estado do ouvinte naquele momento de execução da canção, quem faz o convite para o canto compartilhado. “O modo como o leitor ou ouvinte pode fundamentalmente contribuir para a inspiração poética ou para o desvelamento do Ser acontecer é por meio de sua abertura atenta para o Ser e para a imaginação quando eles ainda não mostraram (e pode ser que nunca se mostrem)”, escreve Gumbrecht (2016, p. 101). O ouvinte não conhece o sujeito, mas tem nele um cúmplice. Há re-conhecimento e há presentificação. O sujeito cancional apresenta em som (tensão entre corpo e alma – “Aço , peito, flecha, caminho / Magma, lava, inveja, vizinho”) algo que até então o ouvinte e o próprio compositor só tinham uma vaga ideia do que seria: a coisa em si – tão fluida e fugidia quanto a própria canção que (não) morre no ar. E aqui está o drama do sujeito cancional: “voa tão leve / mas tem a vida breve / precisa que haja vento sem parar”, como cantou Vinicius de Moraes.

3. Sua boca, seu dente e o encarnado. Encarnar é tirar sarro, é avermelhar (sangrar – vermelho de Matisse), é ter um corpo, é ser no mundo. É sagrar um eu. A raiz da palmeira juçara (Euterpe edulis), típica da Mata Atlântica, é grossa e vermelha. “Uma esperança morta”, “uma ferida aberta”, “um carnaval onírico”. Elementos da alquimia (instalação) sonora engendrada pelos três amigos (para matar): Juçara Marçal, Thiago França e Kiko Dinucci – a alma tríplice do Metá Metá: “um carmim, um fim, um dó / um agogô, um pus, um som”. Esses e outros versos do disco MM3 (2016) refazem os caminhos do trio, de “um canto perdido na voz incomum”, canto que é “marca da felina sonsa que tem asa”. Felina que é orixá sirênico urbano, é “escultura quebrada, falo partido, presságio infeliz”. É ainda Paul Zumthor quem observa que é preciso se concentrar “nos efeitos da voz humana, independentemente dos condicionamentos culturais particulares” (Zumthor, 2007, p. 12). E reclama do silêncio profundo que nos cerca quando lidamos com as canções hoje trabalhadas “apenas” como escrita. Ao mesmo tempo, Zumthor anota que os meios eletrônicos “abolem a presença de quem traz a voz” e que “os media tendem a apagar as referências espaciais da voz viva”. Por sua vez, como temos defendido, o sujeito cancional chama para si a responsabilidade de sustentar o mito, o arcaico vocal (entroncamento do rural e do urbano) em tempos de reprodução técnica da voz. Prismático, o sujeito cancional é permanência (da certeza de que uma voz de alguém de carne e osso emitiu algo) e fluidez (instante de compartilhamento de experiências). Assim, “a experiência, a percepção, não se torna possível a partir da imediatez do real, mas sim a partir da relação de contiguidade com esse lugar ou espaço intermediário onde o real se torna sensível, perceptível”, diz Coccia (2010, p. 20). Por nossa vez, acreditamos que a intertextualidade entre as letras das canções de MM3 – versos, expressões e temas des-dobrados – afirma a permanência de um canto trágico e lírico da vida nua, crua, épica singular que sobrevive à finalidade comercial da canção. “Meu amor, eu acho que se a gente for pensar / de repente nem dá tempo de se imaginar”, canta a tríade Metá Metá. Nesse sentido, pensar MM3 como uma instalação não será um erro grave. A autonomia da obra é estabelecida nas dobras dos elementos que retornam. Esses retornos não deixam o pensamento travar e fazem o ouvinte pensar a obra a partir da obra. Além de permitirem a experiência de um mundo criado, inventado, cantado. Ou seja, esse re-tornar (sinônimo de sonar, tonar e ecoar) restaura o desconhecimento de mundo do ouvinte. E presentifica um mundo novo, cujo saber vem do embate com a obra-tribo de “uma beleza disforme, sem rosto, sem nome, sem moderação”. Se “de repente nem dá tempo de imaginar”, o disco MM3 é “circular dentro de si”: esculturaliza o corpo vão, faz o certo virar errado e o vazio virar semente, pó. Assim, engolir o mundo e regurgitar é gesto próprio dessa “boca funil” in-carnada por Juçara Marçal que “faz o torto voltar a ser regra”. Boca cujo som danado – da calunga ao calundu – é a amálgama da voz humana demasiado humana, da guitarra e do sax da trindade artística. Lembremos que “a cor do pecado é rouge carmim”, no canto de Alceu Valença; “eu não consigo evitar / desejo esse seu corpo / cheiro de carmim”, canta Benito di Paula; “me suja de carmim / me põe na boca o mel”, pede Wando; “uma ponta de cigarro / manchada de carmim / foi a única lembrança / que ficou pra mim”, canta Ary Barroso; “guardo o lencinho branco / que esqueceste ao me abandonar / manchado assim pelo carmim que / tirei dos meus lábios quando te beijei”, canta Dalva de Oliveira; “Eu quero, quero, quero, é claro que sim / iluminar o escuro com meu bustiê carmim / mesmo quando choro e adivinho que é esse o meu fim”, afirma Maria Bethânia; “mamã mamãe, eu quero sim / quero ser mandarim / cheirando gasolina / na fina flor do meu jardim / assim como carmim / da boca das meninas / que a vida arrasa e contamina / o gás que embala o balancê” canta Moraes Moreira. E os exemplos continuam e se condensam no tom da “esperança morta”, da “ferida aberta”, do “carnaval onírico” do Metá Metá. Vermelho, vermelhaço, vermelhusco, vermelhante, vermelhão. Se, como diz Riobaldo, “o sertão está em toda parte, o sertão está dentro da gente. Levo o sertão dentro de mim e o mundo no qual vivo é também o sertão”, a cor vermelha [o encarnado] tinge a escultura sonora erguida no tripé Metá Metá. E evoca os sertões narradores, da “barra do dia foi avermelhando o céu” (O quinze, de Rachel de Queiroz), à “catinga [que] estendia-se, de um vermelho indeciso salpicado de manchas brancas que eram ossadas” (Vidas secas, de Graciliano Ramos).

4. Na pele moura ela ferve em foco invertido. A canção “A imagem do amor”, de Kiko Dinucci e Rodrigo Campos, oferece matéria para a reflexão sobre a questão trans: trans-sexual, trans-e, trans-formar, trans-piração. O canto do nascimento de “uma menina tardia dos guias de luz” é ambíguo e metafórico (como toda linguagem artística deveria ser) e tematiza um corpo trans-formado, uma “escultura quebrada” a ferir os “olhos desleais”. “O sonoro arrebata a forma” (Nancy, 2014, p. 12). Sendo a dissonância a única possibilidade de acesso à verdade, o som do Metá Metá se rebela contra as aparências da arte que se declara insuficiente para si mesma. Daí que, se a obra é autônoma, ela não é independente. No caso, os arquétipos e seus ensinamentos ancestrais – a afirmação da desterritorialidade (antropofágica?) da potência afro. O mito da democracia racial aparece em contraponto à histórica distorção doméstica da ancestralidade. A razão canônica versus a filosofia orecular. A antropofagia é anterior ao conceito. A coerência de um mundo antes de nós é ilusória. Daí o pedido-motriz: “me diz de onde é que vem a sede de cantar, a seiva da canção no sangue tom carmim?”, da canção “Angolana”, assinada pelo trio. Todo o trabalho da voz de Juçara Marçal, da voz e da guitarra de Kiko Dinucci, do sax de Thiago França, do baixo de Marcelo Cabral e da bateria de Sergio Machado é uma investigação disso. A Angolana do título é musa evocada e cujo canto tríplice é traduzido no som dado ao ouvinte. A Angolana é anterior à antropofagia. “Só podemos atender ao mundo orecular”, lembremos. Orecular é fazer do ouvido oráculo, é estar e ser à escuta. E aqui a Angolana é o oráculo a ser consultado, é “Angoulême” – bússola e desorientação, que “grita um verso a quem passar”. O enigma é mantido, pois os caracteres enigmáticos da Angolana provem do gesto de produzi-la na efemeridade do canto, da canção. Contra o messianismo sem messias do capitalismo, a Angolana está preservada em sua indeterminação matriarcal, no esforço artificialmente frustrado de cantar sua forma. Sua questão é apontar que o cuidado de si corre o risco de ser tão negativamente disciplinar e controlador quanto o sistema da ética somática e do biopoder. Sobre o matriarcado, Roberta Barros (2016) observa que “no Manifesto [antropófago] a antropofagia é arquetípica, relacionada a uma imagem do homem primitivo que vive em meio ao sol, cobra grande, jaboti, Jacy e Guaracy, desfrutando do mito de pleno ócio, festa e livre comunhão amorosa, longe da dimensão abjetual daquela mulher-mãe que lambuza o peito de sangue” (p. 56). Isso reforça a positividade da ideia de miscigenação e escamoteia o mito da tolerância racial e sexual. Angolana fala como as sereias nas mitologias: uma fala em ruidoso silêncio e que se aproxima do ouvinte através da circularidade do ordinário: “Pra o onde quer que eu vá / vou ao redor de mim”, diz o sujeito. “O silêncio deve entender-se aqui não como uma privação mas como uma disposição de ressonância: um pouco como, numa condição de silêncio perfeito, se ouve ressoar o próprio corpo, a sua respiração, o seu coração e toda a sua caverna ressonante” (Nancy, 2014, p. 41). Tomemos como exemplo desses retornos (dramáticos) internos que miram “a sina de correr ao redor de mim (de si)” a cor vermelha, o encarnado, a carnação da canção que a Angolana é, o carmim espraiado em todo o disco. “Tem um carmim, um fim, um dó”; “pele tatuada, carne mutilada, o seu dente sangra”, “o bisturi, a toalha”; “no sangue tom carmim”; “o vermelho do vinho”; “o be ri omon”. “(Quem dera) respirar / no peito um novo ar / me perder por um caminho enfim”, canta o sujeito de “Angolana”. Localizamo-nos na platibanda de onde o sentinela Mano Légua mira e nos ensina a caminhar na trinca e pede: vamos lá, meu bem, experimente a terceira margem. Desse modo, os versos “a imagem do amor / não é pra qualquer / fere os olhos desleais / impele os imortais” são a síntese dos tempos de hoje, quando experimentar ainda é a única trans-perspectiva possível para quem deseja o axé das folhas (“l’ase ewe o”) e “se embrenhar no oco do vulcão / e acender o fogo do estopim: explodir, cantarolar”.

5. Yia omo ejá. No poema “Iemanjá” (1943), Maria Martins escreve que

Iemanjá poderia ter vivido no Mediterrâneo, no Oceano Índico, em qualquer lugar de que gostasse, mas escolheu o Brasil. Ela passa os seus dias oscilando da Bahia ao Amazonas. (…) O vagaroso subir e descer das ondas é a sutil cadência do corpo sensual de Iemanjá, a sua magia poderosa. O despertar prateado das águas sob os raios da lua é o cabelo brilhante de Iemanjá, a alga de todos os oceanos. Para possuí-la, para chegar até ela mais rápido, para tocar os seus seios, pesados com o amor proibido, quantos pescadores, quantos marinheiros atiraram-se ao mar, excitados por um desejo inimaginável!

No poema “Mãe dos filhos peixes” (1996), Waly Salomão escreve que Iemanjá é “mãe sexualizada / mãe gozosa / mãe incestuosa // que reina no mar revolto e na maré mansa / e se adona do remanso e do abissal”. No discurso “Do ler e escrever” do livro Assim falou Zaratustra, Nietzsche (2011, p. 41) escreve:

(…) parece-me que borboletas e bolhas de sabão, e o que há de sua espécie entre os homens, são quem mais entende de felicidade. / Ver esvoejar essas alminhas ligeiras, tolas, encantadoras e volúveis leva Zaratustra às lágrimas e ao canto. / Eu acreditaria somente num deus que soubesse dançar. / (…) / Aprendi a andar: desde então corro. Aprendi a voar: desde então, não quero ser empurrado para sair do lugar. / Agora sou leve, agora voo, agora me vejo abaixo de mim, agora dança um deus através de mim.

Despreocupado com as noções canônicas de identidade, ou tentando expandi-las num gesto arquevocálico, assim como a Iracema alencariana, o Zarastustra nietzschiano refere-se a si em terceira pessoa. Muito citado, o trecho oferece importantes recursos para se pensar sobre canção e sobre as corporalidades sonoras brasileiras que tem no canto mítico de Iemanjá bonita síntese. Poderíamos divagar sobre a simbologia da mutante-frágil-volátil borboleta, mas queremos nos ater à bolha de sabão – metáfora reutilizada por outros filósofos no que se refere ao viver como uma constante configuração de esferas sutis e complexas. Obviamente, estamos falando da Teoria das Esferas de Peter Sloterdijk. Entre outras questões, Sloterdijk (2016) escreve sobre a polivalência do mundo, a experiência primária do espaço (cita o útero materno como ponto de partida), as relações de dependência e apresenta uma teoria da intimidade. Para ele, viver é criar esferas imunológicas. É por viver – sentir-se – ameaçado pelo mundo ao redor, que o indivíduo desenvolve a busca do luxo individual, objetivando a abundância perdida desde a saída do útero. E é aqui que ajustamos nosso foco: na necessidade humana de canção, do canto da fama (re-conhecimento). A arte apresenta um outro mundo possível, aplaca a saudade das esferas explodidas, muito embora exploda outras: as canções induzem o indivíduo a sair para o mundo. O indivíduo moderno-contemporâneo fora do quarto cheio d’água (materno) está solto. Ele é bolha de sabão. E são muitos os motivos que levam à arrebentação das esferas: a morte de Deus, o fim da verdade e o fato do homem não estar pronto para não ser o centro do universo, por exemplo. Resguardadas dos conceitos de bem e de mal, as culturas africanas embaçam a visão cristã do indivíduo essencialmente bom ou essencialmente mal. “Na verdade, os maus impulsos são tão apropriados ao fim, conservadores da espécie e indispensáveis quanto os bons: – apenas é diferente a sua função”. “A decisão cristã de achar o mundo feio e ruim tornou o mundo feio e ruim”, escreve ainda Nietzsche em A gaia ciência (2001, p. 57 e p. 151). Além do bem e do mal, há os elementos da natureza, cujos guardiões na mitologia Iorubá são os orixás. Essa mitologia não é inventora de fábulas, pois não conhece a diferença entre história e ficção. É com o sincretismo entre África e Europa, por imposição e tirania cultural desta, no Brasil e em outras colônias europeias, que teremos representações em imagens dos orixás, até então cultuados como forças da natureza. Nesse sentido, Metal Metal (2012), disco do Metá Metá é uma tempestade solar que explode qualquer tentativa de imunização. Porque tropical e universal (tradição e cosmopolitismo), através das misturas engendradas no turbilhão das camadas de histórias, o trio formado por Juçara Marçal, Kiko Dinucci e Thiago França faz a matriz africana ganhar novos vetores de apreciação: grávidos de riscos, sem concessões. Um singular exemplo do modo como a tribo bebe o sangue (a poética) de uma língua do Brasil matriarcal está disposta em “Rainha das cabeças”, canção de Douglas Germano e Kiko Dinucci. O vigor vocal contestador punk, os rituais de terreiro e os miasmas urbanos compõem uma vibração para além de quaisquer pré-teses: tudo soa íntimo, mas estranho, porque imbricado de forma inovadora. A letra da canção em si já detona o incômodo estético: repleta de palavras e/ou expressões íntimas culturalmente e estranhas ao nosso cotidiano urbano. A letra presentifica signos em rotação no imaginário do ouvinte: “Awoió ori dori re / Iyemanjá cuidou / Ade, ala, beijou / E encheu o ori de mar”. A primeira estrofe cantada com a nervura já destacada aqui indicia que não estamos – nós, ouvintes comuns, não iniciados – em lugar cômodo. A força sonora e rítmica, aliada ao timbre – essa comunicação do incomunicável –, o estilo e a assinatura de Juçara Marçal, por vezes não deixa o ouvinte entender, de pronto, a mensagem da canção. Mais partilha e menos transmissão. Pescamos retalhos. Para entrar nela mesmo, precisamos ouvir com o texto sob os olhos. Mas isso não impede de sermos arrebatados pela potência ali dançante, já que “o ritmo é uma coação; ele gera um invencível desejo de aderir, de ceder; não somente os pés, a própria alma segue o compasso” (Nietzsche, 2001, p. 112): ritmo “que não é outra coisa senão o tempo do tempo, a desestabilização do próprio tempo no batimento de um presente que o apresenta disjuntando-o dele mesmo, desembaraçando-o da sua simples estância para a fazer escansão e cadência” (Nancy, 2014, p. 34). Há que se atentar sobre isso, aliás: várias canções interpretadas por Juçara Marçal apresentam textos muito densos e bonitos, mas também, por vezes, difíceis de captar só pelo ouvido, principalmente quando articulados com uma melodia muito recortada ou acelerada. Seria este objeto, plenamente, uma canção? Ou seria uma forma híbrida de poesia-para-ser-cantada (diferente da canção-para-ser-ouvida)?. Seja como for, “Rainha das cabeças” promove a dança da intuição do ouvinte. Através do Ori (Orixá pessoal) em contato com o som da canção, o ouvinte entra em estado-de-poesia, de lugar sonoro, na medida em que o som aí ressoa: não importa muito decodificar as palavras, mas entrar no movimento de pertencimento que elas, ditas daquele modo e com aquele ritmo, promovem – com o objetivo de reorganizar o sistema pessoal do ouvinte: a bolha de sabão e seu alfinete altamente explosivo. Iemanjá-Awoió cuida do cantor-ouvinte, enche a cabeça (ori) dele de mar (no horizonte do infinito) e faz dele ouvinte-cantor: dança nele. E o tabu vira totem: “tupi or not tupi”, é a pergunta. “Iya olori / Mojuba Olodumaré // Ela é filha de Olokun / É iya kekerê”, diz o refrão. Se, como Nietzsche anotou, “o grau do senso histórico de uma época pode ser avaliado pela maneira como ela faz traduções e procura absorver épocas e livros do passado” (2001, p. 110), o Metá Metá orienta-nos na direção de que, como canta Gilberto Gil:

quando, hoje, alguns preferem condenar / o sincretismo e a miscigenação / parece que o fazem por ignorar / os modos caprichosos da paixão // paixão, que habita o coração da natureza-mãe / e que desloca a história em suas mutações / que explica o fato da Branca de Neve amar / não a um, mas a todos os sete anões.

Voltamos à discussão de Nancy sobre o ser e estar à escuta. Ou melhor, como escrever sobre o canto de uma artista que é muito mais escuta e menos escrita? Eis a encruzilhada posta na voz de Juçara Marçal. 

O desafio de um trabalho sobre os sentidos e sobre as qualidades sensíveis é necessariamente o de um empirismo pelo qual se tenta uma conversão da experiência em condição a priori de possibilidade… da própria experiência, correndo embora o risco de um relativismo cultural e individual, se todos os ‘sentidos’ e todas as ‘artes’ não têm sempre e por todo o lado as mesmas distribuições nem as mesmas qualidades,

responderia Nancy (2014, p. 25-26).

6. Cobre o amor na mortalha. O horror fisiológico de um filho abortado tem muito em comum com o risco de viver. Seja a vida urbana, ou a do interior de nossa sociedade feia e desencantada. Partimos dessa afirmação radical para pensar o plano interditado, a esperança morta, a violência de estar vivo e ser obrigados a se defender sorrindo de nossas frustradas revoluções individuais e coletivas presentes [em imanência] no disco Encarnado (2014), de Juçara Marçal.

Fig. 1: Gravura de Kiko Dinucci, capa disco Encarnado (2014)
Fig. 1: Gravura de Kiko Dinucci, capa do disco Encarnado (2014)

Dos primeiros versos – “Não diga que estamos morrendo / hoje não / pois tenho essa chaga comendo a razão” – até os derradeiros – “E o que era belo / agora espanta / e nome dele hoje é João Carranca”, a performance vocal de Juçara Marçal confirma que Encarnado é um disco fundador, que rompe com o conforto dominical, que diz ao ouvinte que este não tem mais o direito de ser ingênuo num mundo violado e violento. A isso, uma cama sonora composta de rock sujo, ruídos, zumbidos de um mundo interno dilacerado conjuga conteúdo de verdade. Não é à toa que “Ciranda do aborto”, de Kiko Dinucci, aparece plugada sonoramente à anterior “Odoya”, de Juçara Marçal. A tópica da maternidade conecta as duas canções. Se nesta o sujeito da canção pede a bença à “mãe cujos filhos são peixes”, naquela temos a mãe cobrindo o amor na mortalha. O sujeito cancional passa de filho à mãe. “A ferida se abriu / Nunca mais estancou / Pra você se espalhar / Laceado”, canta o sujeito cancional criado por Juçara – cuja voz dá visibilidade à pulsão de morte – ninando o agouro. A plasticidade destrutiva está em jogo aqui. Após “Ciranda do aborto” temos “Canção pra ninar Oxum”, de Douglas Germano. Afinal, depois da tragédia narrada, só resta ao sujeito cancional pedir: “Chora não, Oxum / De que chorar? / Sonha viu, Oxum / Sem lágrima”. Este percurso – de filha à mãe, de mãe à cantora da mãe – é singularmente percebido nas gestualidades vocais – sangue, água e sal – encarnadas e deslocadas por Juçara. Cada sujeito-personagem tem alma própria, almas vindas de uma mesma voz urdida na experiência de quem tem uma carreira de mais de vinte anos, desde o grupo Vésper até o Metá Metá, passando pelo grupo A BARCA. Em todos, desenvolvendo trabalhos de pesquisa e experimentação no campo vocal, investigando formas de interditar a violência existencial. O quinteto Vésper Vocal – Ilka Cintra, Nenê Cintra, Mazé Cintra, Juçara Marçal e Mônica Thiele – desde 1992 se dedica à interpretação da música brasileira – Chiquinha Gonzaga, Adoniran Barbosa, Itamar Assumpção, Luiz Tatit, Rita Lee – no formato a capela. Os arranjos feitos somente para vozes é espaço profícuo de experimentação da voz humana. Já o grupo A BARCA desde 1998 pesquisa e documenta a cultura sonora e vocal do Brasil, tendo Mário de Andrade, o autor de “O turista aprendiz” como guia de viagem. Aliás, com o projeto intitulado Turista Aprendiz o grupo registrou cerca de 40 comunidades e/ou artistas da tradição popular, em quilombos, aldeias indígenas, periferias de grandes capitais, pequenas cidades ribeirinhas, litorâneas e sertanejas. Professora de canto e de língua portuguesa, formada em Jornalismo e em Letras, com dissertação de mestrado defendida em 2000 sobre o autor de Baú de ossos – com o título Morte e Memória. Elementos para uma análise do ponto de vista narrativo em Pedro Nava – vemos, portanto, que a voz de Juçara se alimenta de raízes profundas e áreas. Sem esquecer sua participação como integrante na percussão do Ilu Oba de Min, desde 2004. Por tudo isso, a performance vocal de Juçara restitui conscientemente certa fealdade arcaica. Recriam-se as máscaras mítico-canibais que foram despotencializadas no despertar do sujeito romântico e na hegemonia da escrita (do logos científico e filosófico desvocalizado). O sujeito em Juçara Marçal não tem medo de cantar aquilo que Adorno (2012) chamou de “excedente grosseiro da materialidade”, ao defender que o belo vem do feio. No feio encarnado no belo, Juçara denuncia o mundo. Essa pseuda contradição é posta sem filtros na canção “Ciranda do aborto”. O belo guarda e expõe o feio. Cabe ao ouvinte desembaraçar a memória historiográfica individual e coletiva para fruir e entender a cantada e girar na ciranda. Poderíamos ouvir “Ciranda do aborto” como uma “Canção desnaturada n.º 2”. Aquilo que na canção de Chico Buarque aparece como recusa – “Tornar azeite o leite do peito que mirraste / no chão que engatinhaste, salpicar mil cacos de vidro” –, na canção de Dinucci cantada por Juçara aparece como afirmação: “Vem despedaçado / vem, meu bem querer / vem aqui pra fora / vem me conhecer”. Nas duas canções identificamos a renúncia ao conhecimento racional e um elogio ao canto do sensível. A ênfase na objetividade das emoções psicológicas do instante abortivo confere a “Ciranda do aborto” outra zona sociologicamente crítica: o compadecimento do ouvinte. Não mais a mãe tirana, e sim a mãe saudosa do filho que ainda não veio. “Ciranda do aborto” gera um sentimento não excitado. E vem daí a sua beleza inquietante: espantamo-nos diante daquilo que até então intuíamos como sendo terrível. “Eu tiro da dor um benefício: sem parar ela me chama a atenção. (…) A dor me assedia e eu devo pensar para me distrair. É o inverso de Descartes. Eu existo, logo penso. Sem a dor eu não existiria”, escreve Jean Cocteau, em A dificuldade de ser (2015, p. 100-101) A aparição do abortado que conhece a não-mãe – a cantora cuja voz não soa, como no livro O natimorto, de Lourenço Mutarelli – promove uma ciranda de sensações (todas) torturantes. “Assim / saudades sim / simples / como um brinco tupiniquim / um coco de roda / cirandas voltas de tu em mim”, como aparece no poema “Saudades”, de Amador Ribeiro Neto. No caso do sujeito cancional criado por Juçara, saudades de um não-filho: “O agouro da morte / a se revelar / a vida sem endereço / e sem lugar pra ficar”. Essa desterritorialidade da dor, do luto, do trauma é marca dos sujeitos cancionais criados por Juçara Marçal – autora vocal consciente de que não há obra de arte que não mutile o vivo; a arte crítica é o reflexo da possibilidade do existente violentado epistemologicamente; a obra de arte recorta o vivo e encontra o inumano para mostrar o humano perdido: “sua boca, seu dente / e o encarnado / que corta e desmente / meu samba armado”.

7. Colho os prantos sem deixar nenhum. Juntemos aqui uma imagem comentada ao de leve: gravura de Kiko Dinucci, Osun 28 cm x 35.5 cm. É dado a ver uma sereia mirando-se, ou usando o espelho para ver o ouvinte? Essa visão ambígua – aliás, o rabo de peixe completa o corpo humano ou a cabeça de peixe? – desdobra a metáfora poética. O ouvinte ressoa na boca/espelho da sereia. E não é igualmente da ressonância do seu instrumento que a sereia – felina sonsa que tem asa – está à escuta? Cantora e ouvinte abrem-se um ao outro no espelho – esse paradigma da medialidade, do encontrarmo-nos sendo uma pura imagem: algo que não vive, mas é perfeitamente cognoscível, sensível. Nessa gravura de Dinucci, o berço dourado é a habitação: colo e útero – a voz de Juçara Marçal. Chuva que só troveja, mas não cai.

Fig. 2: Gravura de Kiko Dinucci, Osun (S/D)
Fig. 2: Gravura de Kiko Dinucci, Osun (S/D)

8. Respondeu-me como assombração. Se ouvir é compreender, escutar é sensibilizar-se num sentido presente para além do som. “Estar à escuta é sempre estar à beira do sentido, ou num sentido de borda e de extremidade, como se o som não fosse precisamente nada de outro que não este bordo, esta franja ou esta margem”, escreve Nancy (2014, p. 19). Por isso falamos do estado de reciprocidade sonora necessário ao surgimento do sujeito cancional. É preciso que haja um reenvio da mensagem ouvida, pois é nesse retorno – como um tambor que ressoa – que o sujeito cancional se apresenta em imagem. O sujeito cancional é sentido ressoante, é sentir-se-sentir do ouvinte no mundo. Nancy (2014, p. 22-23) escreve que

um sujeito sente-se: é a propriedade e a sua definição. Quer dizer que ele se ouve, se vê, se toca, se saboreia, etc., e que se pensa ou se representa, se aproxima e se afasta de si, e sempre assim se sente sentir um ‘si’ que se escapa ou que se entrincheira, tanto quanto retine algures como um si, num mundo e noutrem.

Ouvir Juçara Marçal é estar-se à espreita desses sujeitos imaginários mais empíricos e menos teóricos. Sujeitos que nos convidam à participação, à acusma, à “escuta fabuladora”, como tem pensado o pesquisador Fred Coelho. A presença de si imposta nos sujeitos cantados por Juçara é convite ao enfretamento do risco do elemento vivencial direto. Não se trata de um ente-presente, ou de um em vista de, mas de um ente-imaginado-presente: ressoante. Em presença da voz de Juçara o ouvinte se conecta ao tempo sonoro, que é diferente do tempo presente datado. O Tempo se ergue como Orixá: ramifica, contamina, espraia: “não enxergo o final/ interrompo o tempo aqui / em você”. Escutar é entrar nesta espacialidade onde penetro e sou penetrado, posto que escuto ao mesmo tempo que o evento sonoro ocorre. Não há tempo a perder. Esse som antro-entre, essa arqui-sonoridade convoca à vida sensível. Para Coccia: “a vida sensível é a capacidade de fazer as imagens viverem fora de si e, de algum modo, liberar-se delas, de perdê-las sem receio. Na medida em que somos capazes de experiência, já vivemos sempre em outro lugar em relação a nosso corpo orgânico. (…). A experiência confere um corpo puramente mundano ao vivente. Ela é aquilo que dá concretude ao vivente, como também o que o liga ao mundo, a esse mundo, tal qual ele é aqui e agora, mas também a um mundo tal qual ele poderia ser em outro lugar e em outro tempo” (2010, p. 69-70). Por exemplo, avessa à docilidade dos corpos, Iemanjá é som corporificado, carnação de timbres que experimenta novas tecnologias da carne – do corpo não simbolizado.

9. Grita e berra como louca. No aforismo 216 de A gaia ciência, Nietzsche anota sobre o Perigo na voz: – “com uma voz muito alta na garganta, quase não temos condições de pensar coisas sutis” (Nietzsche, 2001, p. 175). Há uma vitalidade intrínseca que diferencia a palavra falada da palavra cantada. E essa vitalidade está manifesta na voz: é representada pelo sopro de ar que atravessa o corpo e se encorpa na garganta. Obviamente, os níveis de aproximação entre um ponto e outro são tênues e frágeis. Ou seja, pode haver, e muitas vezes há, conteúdo no canto, assim como pode haver expressão na leitura. É fincado na paixão que o leitor e/ou o cantor investem mais ou menos vitalidade à palavra que seus pulmões lançam no ar depois de tocar (e ser tocada por) sua garganta, úvula e impregnar-se de saliva, na boca. A voz imprime unicidade à pessoa. Há aqui uma constatação da voz e sua autoafirmação – aquilo que nos resgata do abandono profundo. Por trás da voz (ficcional) do sujeito da canção há a voz de uma pessoa: uma garganta. “Uma voz significa isto: existe uma pessoa viva, garganta, tórax, sentimentos, que pressiona no ar essa voz diferente de todas as outras vozes. Uma voz que põe em jogo a úvula, a saliva” (Calvino, 1995 apud Cavarero, 2011, p. 18). E assim, “a função despersonalizante do pronome eu (…) é anulada pela unicidade inconfundível da voz. O som vence a generalidade do pronome” (Cavarero, 2011 p. 205). Posto que “a voz pertence ao vivente, comunica a presença de um existente em carne e osso, assinala uma garganta, um corpo particular” (p. 207). “É com nosso sopro que nos dirigimos a tudo, com a voz que o frágil fole da garganta emite, com o hálito que carrega nossas enzimas, é com o pequeno vento de nossa língua que chamamos o vento verdadeiro”, escreve o narrador de Ó (Ramos, 2008, p. 20). EXERCÍCIO: Escutar o disco Anganga (2015) de Juçara Marçal e Cadu Tenório até perceber que “a escuta está à escuta de outra coisa que não do sentido no seu sentido significante” (Nancy, 2014, p. 56).

10. Como uma boca com fome. Ser e estar à escuta é abrir-se em direção à potência-ó do humano trans-escrito (coincidindo bios e ethos), tendo em vista que “a filosofia frequentemente esqueceu que todo homem vive no meio da experiência sensível e que pode sobreviver apenas graças às sensações” (Coccia, 2010, p. 9) e que “o primeiro passo para liberar a voz de seu gendarme noético, o primeiro gesto contra os cânones desvocalizantes da filosofia, passa por uma tematização privilegiada do falar” (Cavarero, 2011, p. 203). “A partilha do sensível faz ver quem pode tomar parte no comum em função daquilo que faz, do tempo e do espaço em que essa atividade se exerce”, diz Rancière (2014, p. 16). “O sensível (o ser daquilo que chamamos aqui de imagem em sentido amplo) é aquilo pelo qual vivemos indiferentemente à nossa diferença específica de animais racionais”, diz Coccia (2010, p.10). O sujeito cancional é essa imagem plasmada por trás dos olhos de quem ouve. A voz que canta passa a carregar a mitologia do ouvinte, que, por sua vez, se reconhece plasmado no modo sirênico (das Sereias) de dizer do cancionista. É graças a este que o ouvinte pode ouvir-se, perceber-se e interagir com outras imagens de si. O cancionista é o meio que fabrica a relação de continuidade entre alma e corpo, espírito e realidade, ficção e real. Portanto, o cancionista é eficaz em sua função quando engendra o sujeito cancional, a entidade imagética que nos possibilita vivenciar nas coisas e nos outros. O cancionista transforma as coisas em espírito ao mesmo tempo em que torna as coisas mundanas, isto é, mais próximas da percepção e da apropriação criativa do ouvinte. Mundana, a existência se expande. “O sensível, o contato com o sensível, faz o homem viver em um corpo ulterior, no qual não somos mais separáveis de tudo aquilo que vivemos, nem do fato de ver ou sentir” (Coccia, 2010, p. 68).

11. Queimando em silêncio. No aforismo 196, de A gaia ciência, Nietzsche escreve sobre os Limites de nossa escuta: – “Ouvimos apenas as questões para as quais somos capazes de encontrar resposta” (Nietzsche, 2001, p. 171). E é Octavio Paz quem escreve sobre o caráter de revelação da poesia. Paz, para quem “a sociedade revolucionária é inseparável da sociedade baseada na palavra poética” (2012, p. 242), observa que “a missão do poeta é restabelecer a palavra original, distorcida pelos sacerdotes e pelos filósofos” (p. 243). Se concordamos com o autor de O arco e a lira, e acreditamos que “a experiência poética, como a religiosa, é um salto-mortal: uma mudança de natureza que é também uma volta à nossa natureza original” (p. 144), somos levamos a pensar que os sujeitos cancionais criados por Juçara Marçal revelam, por serem vozes de uma religiosidade que não casou com o capital e por não precisarem de autoridade divina, esse isso que somos: seres à margem da linguagem. Duvidar das construções discursivas e afirmar uma falta que esteticamente se revelação e se preenche na presença imagética do sujeito cancional mitificado é o projeto da felina sonsa que tem asa assinada por Juçara Marçal. Aquilo que na palavra religiosa é interpretação, na palavra poética vocoperformativizada por Juçara é possibilidade. “Vida e morte num único instante de incandescência”, na bela expressão de Octavio Paz (2012, p. 163). Aquilo que Catherine Malabou (2014) chama de “plasticidade destrutiva” é o motor da vida sensível (ser das imagens) erguida na voz danada de Juçara Marçal, em seus mais diversos e variados trabalhos: seja em projetos individuais, seja em coletivos: “um personagem irreconhecível, cujo presente não provém de nenhum passado, cujo futuro não tem porvir, uma improvisação existencial absoluta” (Malabou, 2014, p. 11). Esse desengate com o antes só é possível porque Juçara Marçal é uma pesquisadora de sonoridades. Para atentar contra o passado é preciso conhecê-lo, re-visitá-lo. “A destruição tem seus cinzéis de escultor”, afirma Malabou (p. 13). 

12. Apenas uma navalha. No atual momento de descentralização das produções culturais, paralelo às reconstruções de fronteiras, os complexos mecanismos de legitimação do artístico não passam mais pelos caducos sistemas. E os sistemas se ressentem disso. Dar conta da criação em torno da canção brasileira é tarefa sisífica. É bem mais fácil negar tudo e dizer que a música chegou ao fim. Assim faz a TV, por exemplo, com suas trilhas sonoras repletas de “roupas novas” para “canções velhas”, canções já devidamente testadas e aprovadas pelo consumidor. O rádio segue o mesmo ritmo – é somente requentar e usar. A questão é que não há mais UMA ideologia a ser musicada. Se é que já existiu. As ideias de horizontalidade e polifonia (finalmente) caracterizam nossa nacionalidade. E a canção popular mediatizada continua a ser a linha de frente do debate cultural. Porém, encontrando-se com parceiras de outras linguagens, agregadas a ela pelo menos desde a Tropicália, passando pelo Manguebeat, pelo Funk carioca e Rap paulista, além do Tecnobrega paraense (para ficar no exemplo de alguns dos grandes movimentos), a música não é mais (apenas) grito de alerta: “o grito nascendo, a nascença do grito – apelo ou queixa, canto, fricção de si, e até ao último murmúrio” (Nancy, 2014, p. 48). A música é coletivizada, é colaborativa. Basta ir a qualquer atividade “de rua” para ver e ouvir: a música está lá – quente, ritmando, forjando-se. “Ouça como canta louve como conta prove como dança”, sugeriu Haroldo de Campos em suas Galáxias. A música aceitou o desafio. E a canção também. Querer uma música (ou uma canção) que represente o nacional no atual estado das subjetividades é uma atitude ingênua e/ou fascista. “O pressuposto substancialista é o companheiro de estrada da metamorfose ocidental. A forma se transforma, a substância permanece” (Malabou, 2014, p. 15). Então: como distinguir a margem do centro hoje? Margem é quem vende pouco? É quem não aparece na TV? Centro é quem vende muito? Quem é privilegiado pelo mercado e pela crítica? Quem lota estádios? Portanto, mantemos a perspectiva do mercado para pensar a arte e os afetos? É por aí que passa a construção do espaço social hoje. Parece que a música entendeu muito bem que uma reconciliação das populações como uma “identidade nacional” é inviável. “Brasil, braseiro de rosas”, escreveu Sousândrade. Passamos de povo à multidão. E a multidão é a aglomeração (barulhenta) de individualidades que resistem ao mercado. A voz de Juçara Marçal é parte significativa daquilo que Flora Sussekind (2013) chamou de “coros dissonantes”:

Antes mesmo da eclosão das jornadas de junho, e das manifestações ainda em curso no país, um conjunto significativo de textos parece ter posto em primeiro plano uma série de experiências corais, marcadas por operações de escuta, e pela constituição de uma espécie de câmara de ecos na qual ressoa o rumor (à primeira vista inclassificável, simultâneo) de uma multiplicidade de vozes, elementos não verbais, e de uma sobreposição de registros e de modos expressivos diversos. Coralidades nas quais se observa, igualmente, um tensionamento propositado de gêneros, repertório e categorias basilares à inclusão textual em terreno reconhecidamente literário [e sonoro], fazendo dessas encruzilhadas meio desfocadas de falas e ruídos uma forma de interrogação simultânea tanto da hora histórica, quanto do campo mesmo da literatura. E que não à toa conectam este campo a outras áreas da produção cultural.

Nega-se a ideia de massa e do apagamento das diferentes em benefício de uma insustentável ideia de univocidade. A rua é espaço do cartaz pessoal e intransferível e do choque multicolorido das diferenças. Ao preservar as especificidades micro-coletivas internas à multidão, a atual música brasileira dá vigor à diversidade macro-coletiva do povo novo. Bem como à nossa imagem de país, de sociedade e de afetos. Grande parte dos cancionistas contemporâneos é ouvinte-leitora dos mestres da questão de nacionalidade. Cabe lembrar que o próprio Mário de Andrade preferia trabalhar o termo “entidade”, no lugar de “identidade”, para pensar o país das vozes polimorfas inclassificáveis. Ouça quem tiver ouvidos para ouvir. Estão lá, na música atual: as culturas marginais (folclóricas?) e a pesquisa instrumental. Coralidades presentes na fratria – de manos, manas, minas, monas – do rap nacional. Reconheço semelhante gesto em alguns rappers brasileiros, a saber, entre outros: Sabotage, Mano Brown, Criolo, Emicida, Rico Dalasam,… Karol Conká. Mas está tudo tão devidamente e esteticamente (antropofagicamente?) trabalhado e disseminado que dá mesmo muito trabalho perceber, exige esforço desajuizado. E a crítica que se pretende ouvinte limita-se ao hegemônico. Dos jogos sonoros aos elementos da sociedade do espetáculo, passando por referências religiosas e pelas formas coreográficas da vida comum, nos exemplos a seguir, podemos identificar os alicerces contraditórios, e, por isso, brasileiros, da cultura – aforismática, compilada, revisitada, coral – trabalhada por Criolo no disco Convoque seu Buda: “Nin-Jitsu, Oxalá, Capoeira, Jiu-Jitsu / Shiva, Ganesh, Zé Pilintra e Equilíbrio” (“Convoque seu Buda”); “Rap é forte, pode crer, Oui monsieur / Perrenoud, Piaget, Sabotá, enchanted” (“Esquiva da esgrima”) “Temos de galão Dom Perignon / Veuve Clicquot pra lavar suas mãos / E pra seu cachorro de estimação / Garantimos um potinho com pouco de Chandon” (“Cartão de visita”); “Alô, Foucault, cê quer saber o que é loucura? / É ver Hobsbawm na mão dos boy, Maquiavel nessa leitura” (“Duas de cinco”); “Fetiche de playboy é colar com Barrabás” (“Fio de prumo”). “Dobra a força dos braços que eu vou só”, canta Juçara Marçal, fazendo a síntese.

13. A ferida secou. Como ser e estar no mundo da gentrificação do ouvido, sendo um intelectual orecular? E fazer da obra um arquivativista de mundivivências? Reterritorializando o tempo? Manifestando-se contra o fascismo da linguagem sonora e diluindo fronteiras? Produzindo presença e reinventando as noções de autoria? Rompendo com a tradição tirânica do mercado? Inventando uma sonoridade exigente? “O mais simples é se voltar para a lógica dos povos primitivos, das crianças e dos loucos, essa lógica que supera as oposições, a lógica da semelhença, da magia simpatética”, escreve Öyvind Fahlström (2016, p. 19-20), em seu Manifesto para a poesia concreta, de 1953. A mitologia vocalizada na voz de Juçara Marçal é um ato político: “mira no meio da cara / dá com pé, com pau, com vara / bate até virar a cara da nação”. Nessa revocalização do mito, cria-se um mundo sonoro constituidor e contestador da realidade: “e devolve o hematoma”. Se nega a interpretação científica e o consolo dominical é porque foca a compreensão auricular e o risco: “desvio teu riso e me antecipo”. Assim como o quadro (a pintura) não esquadra mais o mundo, a canção (o cantar) não canta mais o mundo. A canção quer ser o mundo, não representante, nem representado. Urge liberar a voz das fáceis frequências do conhecimento. “Inspiração poética como desvelamento do Ser, então, é um potencial existencialmente agressivo, ao qual expomos a nós mesmos e as nossas atenções, porque apreciamos a intensidade que pode produzir – com a atenção para o perigo, e com o entendimento de ser essa a precondição para sua intensidade” (Gumbrecht, 2016, p. 102). Por isso é preciso insistir na unidade (de contrários) forma e conteúdo. A forma (a plasticidade) é o antibárbaro da arte, sua transfiguração, livrando-se da utilidade – “sai de pau no bate boca / rasga a roupa / grita e berra como louca”. A obra evoca a liberdade: “quero morrer num dia breve / quero morrer num dia azul / quero morrer na América do Sul”. Malabou observa que “a única saída possível para a impossibilidade de fugir parece ser a constituição de uma forma de fuga. (…) A plasticidade destrutiva torna possível a aparição ou a formação da alteridade lá o outro fala absolutamente. A plasticidade é a forma da alteridade lá onde não há nenhuma transcendência, de fuga ou de evasão” (2014, p. 17). Por sua vez, Nancy escreve que “o começo do sentido, a sua possibilidade e a sua enviadela, o seu endereçamento, não tem talvez lugar em nenhum outro lugar senão num ataque sonoro” (2014, p. 48). A forma de cantar, as escolhas da cancionista, os malabarismos vocálicos, o controle da melodia e das alturas timbrísticas, a concentração de tensividade, a reiteração dos temas, a narratividade quebrada, a gesticulação das maneiras de dizer sempre declinam para evitar o idêntico, o reconhecível vulgar, a identidade: “tenho essa chaga comendo a razão”. A arte é o mundo uma vez mais tanto semelhante, quanto diferente. E o canto de Juçara exige saber. Quem não sabe o que é dissonância não escuta sua música, por exemplo. Sua arte dispensa a ingenuidade: “de quase isso / de quase nada / é séria é bruta / dissimulada / de nada serve / sem ombro amigo / com febre e confusa / e um precipício”. A canção não quer ser canção, quer a superação dos gêneros, o limite da experiência e a trans-identificação de um mundo livre de ditaduras e injustiças: “Sangue e suor pelo vão / sentir mais a dor, vingar / ver respingar o pavor / quem bateu, levar”. Entre a subjetividade universal e a objetividade particular, toda obra é uma crítica, uma compreensão. E é isso que Juçara Marçal nos oferece: seu entendimento de mundo – “eu que falo / aquela é minha voz / que fala sobre nós / a voz ali é”.

Bônus. Essa chaga comendo a razão. – O que é canção para você? De onde vem a canção? Para que cantar? Juçara Marçal: Juro que tentei, mas não tenho respostas pras suas perguntas. Pra todas elas só me vem o verbo VIVER. É pouco e é tudo o que tenho pra dizer sobre isso aqui. – Cite 3 artistas que são referências para o seu trabalho. Por que estes? A das referências é a mais difícil de todas. São muitas. Música brasileira, música africana, música norte-americana, música latina… E por aí vai. Referência é algo que nos alimenta artisticamente e tudo que me chega de todos os lados serve de referência pra mim. Citar alguém reduziria o caminho, reduziria a própria referência, portanto, é tudo isso aí e mais um pouco.


* Leonardo Davino de Oliveira é professor adjunto de Literatura Brasileira na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É doutor em Literatura Comparada, especialista e mestre em Literatura Brasileira. É autor do blog Lendo canção (lendocancao.blogspot.com) e dos livros Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso (Ibis Libris, 2012); Palavra cantada: estudos e Poesia contemporânea: crítica e transdisciplinaridade.

Referências

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ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção e leitura. Trad. Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

dossiê
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ESTÓRIAS DAS TRINCHEIRAS: A DIMENSÃO POLÍTICA DA MÚSICA DE SIBA

Resumo: Este artigo se propõe a analisar a dimensão política da música do cantor e compositor Siba através dos discos que o músico produziu com a Fuloresta do Samba (2002; 2007), o mestre Barachinha (2003), e os discos Avante (2012) e De baile solto (2015). A nossa análise exercerá uma espécie de metacrítica ao repensarmos no próprio (inter)texto modos distintos de nos aproximarmos do objeto artístico analisado e do próprio artista, exercendo com ele um diálogo crítico.

Palavras-chave: Música brasileira; estética e política; Siba.

Abstract: This article proposes to analyze the political dimension of the music of the singer and composer Siba through the discs that the musician produced with the Fuloresta do Samba (2002; 2007), mestre Barachinha (2003), and the albuns Avante (2012) and De baile solto (2015). Our analysis will exercise a kind of metacritical when we rethink in the (inter)text itself different ways of approaching the artistic object analyzed and the artist own, exercising with him a critical dialogue.

Keywords: Brazilian music; aesthetics and politics; Siba.

I – Olinda

A risada quase invisível do Mestre Nico repercute no salão repleto de ritmos e sons e corpos: o uivo de sua voz – quase gargalhada, quase manifesto – anuncia a chegada de uma Mini Desorquestra de Baile Solto e Rimas. A música se torna paisagem na guia de sua percussão. Os demais músicos se contagiam dessa energia, desdobrando-se com ele através de seus toques. O salão[1] localizado à margem do mar de Olinda agrupa essa música que é de muito longe, de um longe-norte, de um onde os homens e mulheres dançam sob a noite, entre batuques, adereços e poesia, até o amanhecer. Por essa estética reside uma resistência, uma linguagem que incorporada pela festa marca um território, estabelece sua trincheira, pois é preciso continuamente lutar por essa voz.

Sob a condução da Desorquestra, o músico Siba. Sem origem? Sem gênero? A música. O músico. Por que não? As alcunhas de poeta, mestre, cantor, compositor, guitarrista, rabequeiro, maracatuzeiro ou artista, que se incorporam à sua persona, são reveladoras dos estados de transe e transitoriedade com os quais o artista dialoga.A música percorre um caminho de inquietação e reverência à palavra e aos sons delirantes das ruas. No entanto, é preciso estar atento às relações de poder que podem contaminar os espaços com o desejo explícito de segregar o que não cabe no gesto, nas cercas ou nas noções de normalidade. A rua é viva e sem centro. Ainda assim, torná-la marginalizada com ares de política cultural é uma das maiores violências que se pode tentar cometer contra ela.

Os mais recentes discos “solo” Avante (2012) e De baile solto (2015) são criações ainda em movimento. É preciso ouvir o passado, distender o presente, investigar conexões, poéticas. O disco não pode ser lugar de origem nem de chegada, mas de passagem. As canções e sonoridades seguem em trânsito, políticas, em marcha, bailando, soltas, macias, cantando-dançando-delirando:

Sai!
A gente brinca, a gente dança
Corta e recorta, trança e retrança
A gente é pura­ponta­de­lança
Estrondo, Marcha Macia![2]  

Com essas conexões em vista, pretendo neste (inter)texto fronteiriço entre ensaio, artigo e crônica, escrever sobre a dimensão política da música de Siba através dos discos com a Fuloresta do Samba (2002; 2007), o mestre Barachinha (2003), e os já citados Avante (2012) e De baile solto (2015); nelas, a música de rua é desterriorializada estética e politicamente e se desfaz dos lugares estanques das categorias de “cultura popular”, “folclore” ou “manifestação popular”. Para produzir esta narrativa, outros textos de minha autoria sobre o artista, trechos de entrevistas com o músico, passagens e leituras de documentários, fotografias e canções serão incorporadas na reescrita sobre a obra, com o intuito de provocar uma fricção entre a trajetória do artista e a do crítico que o acompanha, como processo contínuo, de diálogo.

II – Poeta sambador

Foto de José de Holanda na I Festa da Alvorada com Siba, Maciel Salú e Mestre Barachinha, em Nazaré da Mata – PE, 2015.
Foto de José de Holanda na I Festa da Alvorada com Siba, Maciel Salú e Mestre Barachinha, em Nazaré da Mata – PE, 2015.

Primeiro corte

O maracatu é meu rock and roll. Biu Roque canta que se ouve a uma légua. Cosmo Antônio cortou cana por mais de cinquenta anos. Muitos caboclos morreram na frente da capela. Outros tempos. Somente voz, um eco que mantém a melodia, é Cosmo cantando histórias. Em Nazaré só tem músico e policial. É que aqui tem duas bandas de música e um quartel. Pela Fuloresta eu deixava até o meu trabalho. É um negócio de alegria mesmo. Mané Roque, a bicicleta, sua voz no canto, a paisagem, o cinema, a fotografia. Paris-Recife. É na rua, é no palco. Onde nasci vou morrer.[3]

Na entrecrítica[4] sobre o artista, escrita pelo pesquisador Bernardo Oliveira, do Rio de Janeiro, é possível vislumbrarmos uma espécie de síntese do modo como o músico Siba lida com a música da Zona da Mata de Pernambuco:

[…] um olhar descolonizado sobre o calor da rua, das manifestações populares do Nordeste, sobretudo o Maracatu e a Sambada que habitam a Zona da Mata de Pernambuco. Abolir as categorias generalizantes e os processos de petrificação operados pelos centros de produção intelectual, substituindo-os por uma imagem vibrante e afirmativa calcada sobre procedimentos de captação, síntese e invenção. Descolonizar também implica em atravessar fronteiras, oscilar entre diversos pontos de vista, desestabilizar visões categóricas do global e do local, promover interseções entre aspectos atuais e virtuais (Oliveira, p. 58-61, 2015).

A partir dessa síntese, percebemos como a imagem estática de uma representação cultural não se vincula ao gesto artístico de Siba, mais conectado ao deslocamento como estética, às “desestabilizações do global e local”, como aponta o pesquisador Oliveira.  

Depois de doze anos no grupo Mestre Ambrósio e após sete anos vivendo em São Paulo, o músico retorna a Pernambuco em 2002 para desenvolver a “Fuloresta do Samba” com artistas de Nazaré da Mata, cidade de aproximadamente 3 mil habitantes, na Mata Norte de Pernambuco. Os músicos Biu Roque e Mané Roque compõem o coro da Fuloresta no disco de 2002. Em 2007, o álbum Toda vez que eu dou um passo o mundo sai do lugar vinha à tona com a presença de Cosmo Antônio entre as vozes. Entre esses dois álbuns, Siba ainda lançaria No baque solto somente, com o mestre Barachinha, em 2003, com composições da dupla. Os três álbuns foram produzidos por Beto Villares e Siba. Ainda se dividiram entre as formações do grupo os músicos Biu Neguinho, Dyogenes Santos, Galego do Trombone, Manoel Martins, Maurício Muniz, Roberto Manoel, João Minuto e André Tubista, entre os metais e elementos percussivos.

“[…] eu digo sem medo/ Sou poeta sambador”, canta Siba em sua voz como “grito”[5], pois ao poeta sambador a palavra se desdobra em dança, música e resistência. A canção mimetiza uma paisagem, é repleta de silêncios que explodem no final de cada estrofe. O coro, o apito como condução impõe sua palavra sonora, em diálogo com os versos, marcam o território desse poeta que pode afirmar sem medo: “sou”. Com a Fuloresta, o músico construiu uma trajetória artística que se diferencia do que se costuma chamar de “influência”. Suas composições parecem ter sido escritas por outras vozes, outras paisagens, que não as personificadas em sua figura, mesmo que assinando como Siba, soam como se já existissem; era preciso “apenas” dar-lhes batismos. As narrativas, métricas, ritmos, temáticas e sonoridades se impõem como canções coletivas; a cana-de-açúcar deu verso, a rua, o cheiro do lugar, o vento, o traje, o azougue também deram verso.

O brincante deu canto, o estilhaço da noite, o adereço, os joelhos no chão, o corpo que se move, as cadeiras de balanço na calçada, os sons que se movem, os velhos e crianças, o alto falante, a multidão, o desafio, os feixes de luz dos postes que mal iluminam a rua e casas, o tempo que passa, a barra do dia, pitú, all star, chinelo, chão, mãos dadas, a camisa estampada, o berro que não ouço, essas fotografias[6], o sol que nasce erguendo a gente com as mãos, os homens que parecem lutar-dançar; entre eles, mulheres se descolam com suas armas e presenças-resistências-outras. 

O trabalhador de cana virou brincante. E o brincante buscou respostas às suas gritantes limitações econômicas e sociais através da arte. Parido no seio de um contexto de dificuldades extremas, o Maracatu Rural impressiona pela visceralidade que esbanja uma complexidade criativa incomum, num misto de beleza e violência intrínsecas, nascida no mesmo berço turbulento da zona canavieira. […] O Maracatu Rural que conhecemos hoje foi domesticado, apesar do cenário de violência social pouco ter se modificado na zona canavieira. É da força criativa e realizadora da arte que vem um grito violento que se quer se fazer ouvir, se fazer presente e ser reconhecido socialmente (Marcondes; Lima; Rocha, 2014).

As canções da Fuloresta do Samba se alimentam dessa “visceralidade” e “força criativa”, mas não se apresentam como mimetização da música que ocorre nas sambadas. A sonoridade reflete uma tentativa de expressar o gesto artístico do Maracatu Rural, mas no ambiente novo, esse refletido por um grupo musical criando arranjos para a gravação de um disco em conexão com qualquer outro projeto musical, que consequentemente o colocaria em palcos dos mais diversos, não só em Pernambuco, mas no mundo todo.

Desse modo, enquanto o disco Fuloresta do samba diz “sou”, No baque solto somente diz “nós somos”, e Toda vez que eu dou um passo o mundo sai do lugar diz “De manhã escuto o mundo/ Gritando pra me acordar”[7], e rediz como coro que o vento facilmente leva: “Toda vez que eu dou um passo/ O mundo sai do lugar”.

Segundo corte

A estrada que sempre volta. 12 anos com o Mestre Ambrósio. Guitarras. Rabeca. Cavalo marinho. Maracatus. Cortejos de carnaval. Eu não sou instrumentista. A poesia, a dança, a música. Agreste-Recife. A presença da pessoa no mundo. Os poetas da Mata Norte iluminam 5 horas de improviso sem a presença de palcos. Chão, onde só cabe a palavra. Eu tentei imitar o Mestre Barachinha na construção dos versos. Avante. Quem sou eu? O poeta, a pessoa. Romper barreiras. A guitarra e a ciranda têm lugares diferentes hierarquicamente. Um edifício de rima. A poesia tem um valor em si. Conquistar uma linguagem como poeta em Nazaré. Pôr-se pra fora nos versos, deslocar-se da Mata Norte em busca de uma coisa nova, o que não significaria uma coisa “moderna”. Trânsito. Linguagem. Paisagem. Rima-métrica-oração. De uma poesia do cotidiano para uma mais pessoal. Era preciso expor-se. Tocar viola de forma particular. Caminhos passam pelas guitarras da música congolesa. Explorar a linguagem (expandi-la) sem os limites da tradição. A força do maracatu não está na ancestralidade, mas na hora que acontece. Rememorações. Mestre Ambrósio-ruptura-Fuloresta. A poesia ficou dormente. Não me sinto completo em nenhum lugar. A casa está vazia[8].

Avante é um disco repleto de passagens/paisagens. As canções constroem narrativas tanto poéticas quanto musicais, visto que os arranjos e sonoridade do álbum dão à presença da guitarra um chão estável para que as letras de Siba possam percorrer. A voz do autor mantém essa estabilidade e revela em sua poesia uma capacidade maior para contar histórias. Por entre as frestas dessas histórias é possível eleger a memória e o tempo com temáticas primordiais das canções. Esteticamente, há um balanço e ironia presentes no diálogo entre arranjos e letras, na sua condução rítmica. A música “Canoa furada” revela esse momento de tensão, “A canoa furada/ Já tá perto de afundar”, mas com arranjo que revela na presença da flauta de Teco Cardoso um ar mais burlesco, que soa como irônico diante do “socorro”, do “me acuda”, do “tubarão”, “da dentada”; elementos que surgem na canção e são recortados pelo arranjo que contempla um diálogo mais próximo entre a tuba de Léo Gervázio e a voz (narrativa) de Siba.

Essa canção (a sexta de Avante) se revela como corte entre dois momentos do disco. O primeiro é preenchido por “escombros”, “pó”, “fumaça”, “brasas”, de “Preparando o salto”; por “tempestade”, “ventania”, por uma “brisa […] carinhosa”, mas que “tem castigado”, de “Brisa”; e pelas “dores”, “cansaços”, “pedaços” e outros “escombros” de “Ariana”. As músicas “A bagaceira” e “Cantando ciranda na beira do mar” se juntam a essas canções com sua verve mais festiva e contemplativa. Enquanto a primeira discorre de um tempo de agora, mais vertical, de um instante que precisa ser cantado até o fim, a segunda canção é de alguém que vê o tempo e a paisagem de modo mais amplo, horizontal. Essas canções compõem um conjunto, um retrato que abre a narrativa de Avante para outros falares e poéticas, como se se desenhasse uma passagem mais visível, mais fácil de penetrar, apesar das frestas, das “armadilhas” presentes nas letras das canções.

“Mute” é quase um suspiro, um quase silêncio. É esse segundo momento, onde o mapa já está disposto, os caminhos mais ou menos traçados, em que é possível abrir-se mais, ser menos o tempo e a memória como marcas de um traço coletivo e voltar-se mais para dentro, ser o poema e a canção como indivíduos, libertar-se desse quase silêncio. “Um verso preso” (a faixa seguinte) é essa poética que quer explodir, quer revelar-se diante de todos. A voz de Lirinha ecoada pela de Siba e pelo arranjo que rodeia a estética das violas do Nordeste brasileiro é uma camada importantíssima para a compressão do disco Avante, ou melhor, sobre a própria pujança da música de Siba, sua dimensão política, pois arrasta para dentro toda uma cultura (popular) muitas vezes marginalizada ou tratada como menor, e devolve esse outro grito, outro silêncio, como possibilidade inventiva do presente.

Um verso preso é um tiro
Que a arma não disparou
Pois o gatilho emperrou
E o tambor não deu o giro
Se escuta só o suspiro
De alguém que escapa assombrado
E o atirador, frustrado
Remói a raiva no dente
Sentindo o mesmo que sente
Alguém que foi baleado[9]

A faixa “Avante” é especialmente importante quando se manifesta após esses silêncios, com sua dicção acelerada “Desata o nó das entranhas” e berra: “avante!”. Nela, o vibrafone de Antônio Loureiro tem presença constante ao redor do canto de Siba. O solo final em diálogo com a guitarra constrói e desconstrói a rítmica da canção até a faixa seguinte, “Qasida”, como um outro corpo poético para a construção de Avante. Entre a cadência quebrada e a dança, a voz “canto abandonado”, como fala, declamação, lamento e memória, abre espaço amplo para o guitarrista e co-produtor do disco, Fernando Catatau, distender um solo pungente entre os arranjos da banda que fora os já citados nesse texto-corte, ainda conta com a bateria de Samuca Fraga. Se “Qasida” fala de um tempo passado, de suas ruínas, a faixa “Bravura e brilho” é luminosa e repleta de sonhos que se realizam na fantasia e na presença de um filho que cresce entre naves, dragões e ciclopes. Avante se comporta, portanto, como o movimento de uma catapulta, ergue o peso para trás e arremessa a sua energia para mais longe, provavelmente um outro longe-norte.

III – Nazaré da Mata[10]

Foto de José de Holanda na I Festa da Alvorada com Siba, Maciel Salú e Mestre Barachinha, em Nazaré da Mata – PE, 2015.
Foto de José de Holanda na I Festa da Alvorada com Siba, Maciel Salú e Mestre Barachinha, em Nazaré da Mata – PE, 2015.

O músico Siba conversa com policiais militares durante uma noite de ensaio do Maracatu Estrela Brilhante de Nazaré da Mata, do qual o artista faz parte, na tentativa de convencê-los a seguir com a festa até o amanhecer, como sempre fazem, tradicionalmente, as sambadas dos maracatus, já que a intenção da polícia era a de interromper os ensaios às 2h da madrugada. Apesar de conseguirem ir até o sol nascer nessa ocasião, outros grupos da região não estavam mais conseguindo seguir com a festa. Assim relatou o músico em fevereiro de 2014:

Estrela Dourada de Buenos Aires, Leão Misterioso, Cambinda Brasileira de Nazaré da Mata, e quase todos, tiveram seus ensaios interrompidos às duas da manhã. Curiosamente, noites de maracatu promovidas pelas prefeituras ou por projetos culturais com patrocínio estadual ou federal tem acontecido sem limite de tempo. Conversando com os mais velhos, cuja memória ‘alcança’ os anos 60, não consegui nenhuma lembrança de proibição similar no passado.[11]

Após a repercussão dos artistas e sociedade civil, posteriormente, em uma reunião convocada pelo Ministério Público, ficou decidido o fim da restrição de horário às sambadas na Mata Norte de Pernambuco. No entanto, as feridas que se impõem aos artistas e artes oriundas desta região sangram há muito tempo. O que este caso nos revela é o modo como essas expressões, não menos contemporâneas que outras, vivas, instigantes, criativas, continuam ainda restringidas a um segundo plano, sobretudo por uma política cultural engessante e folclorizada da música de rua.

O texto “Pernambuco, Maracatu de Baque Solto e a Cobertura da Lei”, de Siba, no qual essa denúncia foi feita, pode dialogar com outros textos críticos sobre o tratamento dado a determinados artistas e expressões culturais, como em “Quanto vale a música tradicional?”[12], do músico Rodrigo Caçapa, em que reflete: “Qual o valor simbólico que a música tradicional do Nordeste representa para grande parte da população de classe média e para a elite econômica das grandes cidades da região e do país?”, e em “Realidades do Maracatu Rural para além do marketing cultural”, do tarolzeiro de maracatu rural, artista plástico e arquiteto Lula Marcondes, sobre as condições precárias que passam os Maracatus durante o período do Carnaval Pernambucano. Assim denuncia em seu artigo: “[…] um maracatu com mais de 80 componentes, que viaja quilômetros com um elenco formado de brincantes das mais variadas idades entre crianças e idosos, chega a receber entre R$ 200,00 e R$ 300,00 por apresentação”[13].

Com De baile solto, Siba põe todas essas questões em evidência. No entanto, não o faz de modo panfletário, como “música de protesto”, datada, com prazo de validade. Suas canções são críticas e políticas porque carregam em suas poéticas e sonoridades a voz e os sons que ecoam dessas e de outras expressões artísticas. Ou como ele mesmo afirma:

[…] expressar a grandeza absoluta de uma ave de rapina ante a arrogância dos senhores que se arrastam pela terra, exaltar a potência criativa e social de formas de expressão forjadas coletivamente por pessoas marginalizadas e excluídas, reafirmar a crença tola na embriaguez do verso.[14]

É de modo poético que o compositor destrincha suas críticas. É curioso perceber que no texto-denúncia de Siba algumas das afirmações ali relatadas apareceram em suas canções. Com isso, intuímos o quanto o processo criativo do músico esteja imbuído dessa reflexão, em como essas novas canções jogam de volta aos seus interlocutores as falácias que no fundo querem manter estáveis as forças de poder já estabelecidas. Assim, nova ordem está na boca do policial militar e nos versos de “Marcha Macia”, canção que abre o disco. Já em Progresso com mais ordem?[15], na pergunta irônica do músico naquele texto, surge não menos irônica e contundente nos versos da mesma canção, que diz: “Progrediremos juntos, muito em paz”. Na condução da guitarra-narrativa em diálogo com a voz de Siba até a profusão de sons e ritmos que invadem a canção.

Muito mais do que essas relações entre crítica e criação, a música oriunda da invenção que é a Mini Desorquestra de Baile Solto e Rimas, formada por Siba, Mestre Nico, Lello Bezerra, Antônio Loureiro e Leandro Gervázio, delirando sob uma poesia imagética, é ela mesma uma desordem, nem nova nem velha, mas espacial, como a ave de rapina, o gavião, o balão que voa; uma música que experimenta o seu próprio vocabulário, sua própria corrente de invenção.

IV – Marchas macias[16]

Carlos Gomes: Em 2003 a música “Marcha macia” encerrava o disco No baque solto somente, lançado por você e pelo Mestre Barachinha. No mais recente De baile solto, uma outra “Marcha macia” surge transformada sonora, política e poeticamente na abertura do álbum. Na inclusão da letra, de uma poética crítica, que mantém em seu cerne a estética pela qual sua música é reconhecida, mesmo ainda no período do Mestre Ambrósio, ou seja, na desterritorialização da música de rua de seus lugares normalmente marginalizados ou folclorizados. O que essas “marchas” têm em comum para você, como poéticas, ou mesmo se é possível fazer um diálogo entre esses dois momentos de sua trajetória, entre essas duas “marchas macias”?

Siba: A autonomia estética do Maracatu de Baque Solto é assombrosa. Tudo nesta tradição me parece afirmar com muita intensidade uma noção de distinção, uma consciência de diferença. Falando, cantando, tocando, dançando e também no modo de vestir, o maracatuzeiro parece estar sempre dizendo “eu sou quem eu sou, e não outra coisa”. Eu não nasci na Mata Norte. Como um típico cidadão classe média, nem deveria gostar de Maracatu, mas fui abduzido pela força expressiva do Baque Solto no meu primeiro encontro mais profundo com a tradição. Desde então, sempre me vi numa situação intermediária, onde faço parte de uma cultura marginalizada e isolada pelo preconceito folclorizante e ao mesmo tempo tenho constantemente oportunidades de intermediar canais de comunicação e encontros, da Mata Norte para o mundo e vice-versa. Nesta posição, sempre nutri uma crença, talvez ingênua, na força da beleza. Sempre acreditei que qualquer pessoa que se aproximasse minimamente do Maracatu e dos Maracatuzeiros seria passível de algum tipo de iluminação similar a que eu mesmo tive vinte e tantos anos atrás. Assim, boa parte do que produzi como artista até antes do De baile solto está repleto deste sentimento. Porém, com o tempo fui aprendendo a enxergar de modo mais concreto as reais barreiras para um entendimento livre de preconceitos para as culturas orais no Brasil. Por aqui, qualquer traço de matriz africana e indígena, qualquer sombra de sobrevivência ibérica pré-industrial tem que se adaptar ao lugar de Folclore, suas formas de expressão se tornam “Manifestações” de um passado distante e seus representantes serão sempre prisioneiros deste tempo antigo, de onde é muito difícil levantar voz ativa no presente. Não é à toa que essa Babel que chamamos genericamente de “cultura popular” está sempre refém do Coronelismo e suas versões similares, raramente conseguindo elaborar um discurso mais afirmativo de enfrentamento. As estratégias da Cultura Popular são, quase sempre, adaptação e reformulação. As duas marchas macias são mesmo uma só e afirmam uma mesma coisa, que está contida no refrão da versão mais recente.

Carlos Gomes: De baile solto foi lido majoritariamente pela crítica como um disco político, pois nascido diante dos embates contra a política segregadora do Estado, sobretudo pelos episódios envolvendo a restrição de horário das Sambadas de Maracatu, em Pernambuco, mas que simbolicamente abrange para questões políticas e culturais discutidas e vivenciadas em muitas das capitais brasileiras, sob o prisma capitalista, vide as reflexões sobre as cidades levantadas pelo Ocupe Estelita, por exemplo. No entanto, uma canção como “Será”, dos versos “Será que ainda vai chegar o dia de se pagar até a respiração?/ Pela direção que o mundo está tomando eu vou viver pagando o ar de meu pulmão”, lançada anos antes, já continha essa mirada crítica. Você percebeu uma diferença de tratamento – ou de recepção – entre as canções dos discos anteriores e as do novo álbum?

Siba: Trocar a guitarra por uma rabeca em 1990, formar coletivamente o Mestre Ambrósio e inverter na música o jogo de forças entre a cultura popular e música pop, deixar São Paulo no auge da visibilidade e ir cantar Ciranda e Maracatu no interior de Pernambuco… Foram sempre posições políticas para mim. O De baile solto é apenas mais politicamente explícito e consciente, tem um tom mais duro e afirmativo, mas eu acho que tenho feito sempre a mesma coisa, a vida inteira…


* Carlos Gomes é pesquisador e crítico. Mestre em Comunicação pela UFPE, com estudo comparado do tropicalismo e manguebeat. É editor dos projetos de crítica cultural dos Outros Críticos, no Recife/PE, responsável pela produção de livros, revistas e debates. Lançou em 2018 os livros Canções iluminadas de sol: entre tropicalismos e manguebeats, e O outro é uma queda (Vários autores).

Referências

CAÇAPA, Rodrigo. “Quanto vale a música tradicional?” Outros Críticos. Disponível em <http://outroscriticos.com/quanto-vale-a-musica-tradicional/>. Acesso em 13 fev. 2017.

MARCONDES, Lula. “Realidades do maracatu rural para além do marketing cultural”. Outros Críticos. Disponível em <http://outroscriticos.com/realidades-do-maracatu-rural-para-alem-do-marketing-cultural/>. Acesso em 13 fev. 2017.

MARCONDES; LIMA; ROCHA. “Índios e caboclos: reencontros”. Recife: O norte – Oficina de criação, 2014.

OLIVEIRA, Bernardo. “Repetir, variar, alucinar: entrecrítica sobre De Baile Solto”. Outros Críticos, Recife, ed. 8, p.58-61, 2015.

SIBA. “Maracatu de baque solto e a cobertura da lei”. Outros Críticos. Disponível em <http://outroscriticos.com/pernambuco-maracatu-de-baque-solto-e-a-cobertura-da-lei/>. Acesso em 13 fev. 2017.

Referências discográficas

BARACHINHA; SIBA. Siba e Barachinha. Recife: Terreiro Discos, 2003.

FULORESTA DO SAMBA. Toda vez que eu dou um passo o mundo sai do lugar. Recife: Produção Independente, 2007.

FULORESTA DO SAMBA. Fuloresta do samba. Recife: Produção Independente, 2002.

SIBA. De baile solto. São Paulo/Recife: Yb Music/Fina Produção/Mata Norte ,2015.

SIBA. Avante. São Paulo/Recife: Fina Produção/Mata Norte, 2012.

Referências filmográficas

FRANCISCHELLI, Pablo; JOBIM, Caio. Siba – Nos Balés da Tormenta, DobleChapa Cinematografia/Fina Produção, Rio de Janeiro/Recife: 2012.

PINHEIRO, Marcelo. Fuloresta do samba. Luni Produções, Recife: 2004.

Notas

[1] A apresentação musical ocorreu no bar Manny Deck, no Carmo, em Olinda, no dia 27 de janeiro de 2017.

[2] In: SIBA. De baile solto. São Paulo/Recife: Yb Music/Fina Produção/Mata Norte, 2015.

[3] Narrativas do documentário Fuloresta do samba (2004), dirigido por Marcelo Pinheiro.

[4] Entrecrítica é uma crítica construída sobre uma conversa entre o crítico e o artista.

[5] “A voz, por não ser macia/ Prefiro chamar de grito/ Mas canto imitando o dia/ Por isso eu acho bonito”, na faixa “Poeta sambador”, de Siba, no álbum Fuloresta do samba (2002).

[6] Narrativas sobre as fotografias de José de Holanda na I Festa da Alvorada com Siba, Maciel Salú e Mestre Barachinha, em Nazaré da Mata – PE, 2015.

[7] Da faixa “Toda vez que eu dou um passo o mundo sai do lugar”, de Siba, do álbum homônimo de 2007.

[8] Narrativas do documentário Siba – Nos balés da tormenta (2012), dirigido por Caio Jobim e Pablo Francischelli.

[9] In: SIBA. Avante. São Paulo/Recife: Fina Produção/Mata Norte, 2012.

[10] Esse tópico foi publicado originalmente no site Outros Críticos, em 10 de dezembro de 2015, com o título “Siba: de baile solto, como ave de rapina”.

[11] Disponível em <http://outroscriticos.com/pernambuco-maracatu-de-baque-solto-e-a-cobertura-da-lei/>. Acesso em 13 fev. 2017.

[12] Disponível em <http://outroscriticos.com/quanto-vale-a-musica-tradicional/>. Acesso em 13 fev. 2017.

[13] Disponível em <http://outroscriticos.com/realidades-do-maracatu-rural-para-alem-do-marketing-cultural/>. Acesso em 13 fev. 2017.

[14] Disponível em <http://www.mundosiba.com.br/discos>. Acesso em 13 fev. 2017.

[15] “O que se quer com essa arbitrariedade? Maracatu no Maracatuzódromo? Carnaval no Shopping? Progresso com mais Ordem?”.

[16] Diálogo presente em entrevista realizada pelo autor com o músico na edição 10 da revista Outros Críticos, publicada em dezembro de 2015.

dossiê
Tempo de leitura estimado: 34 minutos

O RAP (DE ELZA) DA FELICIDADE

Resumo: Este ensaio é a materialização de muitos pensamentos, algumas reflexões, conversas de corredor, reboladas entre uma festa ou um baile e ideias que surgiram entre “uma mão no joelho e outra na consciência”[1]. Objetiva pensar sobre a performance de Elza Soares para o “Rap da felicidade”, originalmente cantado por Cidinha e Doca, e de que forma essa canção em sua voz é um manifesto de resistência de uma mulher que representa várias outras que como ela são negras, pobres, faveladas. E que de um certo modo, em alguma parte de qualquer comunidade carioca clamam por ser felizes na favela onde nasceram, querem se orgulhar e ter consciência que pobre tem seu lugar. Reafirmar que o funk é um manifesto, uma arte que é efêmera, mas que consegue deixar pontuais legados que veiculam mensagens, descrições e reflexos da condição social da favela, que são atemporais.

Palavras-chave: Samba; favela; Elza Soares; música.

Abstract: This essay is the materialization of many thoughts, reflections, conversations on hall’s, rolling between a party or a dance and ideas that suggest between “one hand on the knee and one on the conscience”, thinking about Elza Soares’ performance for “Rap da Felicidade” by Cidinha and Doca and how this song in her voice is a manifest of resistance of a woman who represents several others that like her are black, poor, faveladas and that in some way, in any part of any community in Rio claim to be happy in the favela where they were born, who want to be proud and aware that poor people have their place, showing that Funk is a manifesto, an art that is ephemeral but that can leave punctual legacies that have messages, descriptions and reflections of the condition favela that are timeless.

Keywords: Samba song; favela; Elza Soares; music.

Elza (de Moça Bonita) Soares

Comecei a pensar, após a apresentação de um dos trabalhos no I Minervacon, em como uma mulher negra com tamanha força política como Elza Soares poderia embranquecer um funk, conforme foi afirmado em uma das apresentações na última mesa do evento. Me deparei com a biografia dela: uma mulher negra, nascida e criada na favela Moça Bonita, atualmente conhecida como Vila Vintém, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, que se casou cedo, pois no século passado parecia a pais pobres uma honra casar suas filhas ainda moças com homem de mais experiência; maternidade precoce, que velou dois filhos e o marido com meros 21 anos; aventurou-se no meio artístico em meio a tantas tristezas na vida, vítima do entrelugar em que a mulher negra está fadada a viver[2]; era antes apontada como “a amante que acabou com o casamento de Garrincha”[3] e, recentemente, era muito noticiada ou sempre comentada como a mulher com excesso de plásticas. Como poderia uma mulher negra, com tamanha vivência, tamanha biografia e trajetória de vida, ser uma força de “embranquecimento” do funk?  Apesar de não gostar da palavra, esta que foi utilizada.

Foto promocional do documentário O Gingado da Nega, em que Elza conta parte de sua carreira. Exibido pelo Canal Bis em 07/01/2014. Imagem disponível em: https://vimeo.com/69055991

Ela foi uma mulher sofrida, como muitas nessa sociedade machista, patriarcal e estruturalmente racista são, e, durante seu casamento extremamente conturbado de quase 20 anos com Garrincha, sofreu dos mais cotidianos males que as mulheres sofrem: a violência doméstica. Para além das marcas físicas que as agressões constantes lhe deixaram (segundo ela em várias entrevistas), há também as dores da alma, o psicológico das agressões que ficam como marca para uma vida, angústias que ela só expôs anos depois, quando a coragem foi suficiente e a cicatriz já não lhe torturava. Assim, lançou a canção “Maria da Vila Matilde”[4], presente no álbum A mulher do fim do mundo[5], em que fala abertamente sobre uma agressão doméstica à mulher, no caso a ela mesma, além de denunciar uma série de abusos que acontecem com as suas irmãs de cor, outras mulheres negras que são extremamente silenciadas, como elucida Sueli Carneiro:

Fazemos parte de um contingente de mulheres com identidade objeto. Ontem, a serviço das frágeis sinhazinhas e de senhores de engenho tarados. […] Hoje, empregadas domésticas de mulheres liberadas e dondocas, ou de mulatas tipo exportação (Carneiro, 2003, p. 50).

Não pude crer que Elza, que se tornou símbolo de uma série de discussões com seu álbum intitulado Deus é mulher poderia desmerecer a canção. Resolvi debruçar-me sobre o DVD Beba-me e proponho um caminho de deliciosas músicas para chegar ao “Rap (de Elza) da felicidade”.

Beba-me (ou engula-me) – o DVD de Elza Soares

Em março de 2007, Elza da Conceição Soares subiu ao Palco do Sesc Vila Mariana para gravar o que seria seu primeiro DVD ao vivo. Das 22 faixas escolhidas para o repertório, voltarei a uma faixa em específico, presente tanto no CD quanto no DVD, em ambos os casos como última faixa/ faixa bônus. O que mais me chama atenção são as particularidades nela presentes – que aqui serão apontadas – tais como o arranjo, a citação musical que nela é feita e como isso de certa maneira articula com a realidade que é vivida nas favelas.

Capa do DVD Beba-me, de Elza Soares, lançado pela gravadora Biscoito Fino em 2007. Disponível em: https://biscoitofino.com.br/produto/beba-me/)

Tratarei da faixa “Rap da felicidade”, funk originalmente cantado por Cidinha e Doca, lançado em 1995, que Elza regrava, 12 anos depois, com um arranjo reorganizado, leves alterações na letra original em uma roupagem que, minuciosamente pensada, parece ser algo tão contemporâneo e atemporal que no Brasil de 2018, me é difícil acreditar que já se passou tanto tempo desde a primeira execução do “Rap da felicidade” nas rádios. Levanto aqui duas motivações principais: tentar explicar que não há um “embranquecimento” desse funk (como ouvi há um tempo em um evento na academia) e, principalmente, como essa gravação de Elza parece tão Brasil 2018 pós-desfile da Paraíso do Tuiuti[6], embora existam pequenos rastros deixados, tão mínimos, mas que na pressa pelo instantâneo, nesse perturbado contemporâneo, não estimasse tempo suficiente para dar conta de alguma reflexão.

A composição da performance: o show pelo show

Ora, isso me faz repensar o sentido da performance do show, o sentido do próprio show e da composição performática que se dá com o figurino, a escolha das canções e, talvez intuitivamente, com a ordem em que elas estão dispostas ao longo do show. Apesar das mudanças na ordem das canções do CD para o DVD, proponho um olhar sobre o DVD, que contém o show completo e segue a seguinte ordem, conforme contracapa:

1 – Meu guri
2 – Dura na queda
3 – Estatutos da gafieira
4 – Cartão de visita
5 – Pra que discutir com madame
6 – O neguinho e a senhorita
7 – Exagero
8 – Dor de cotovelo
9 – Volta por cima/ Fadas
10 – Flores horizontais
11 – Pranto livre
12 – Palmas no portão
13 – Lata d’água
14 – A carne
15 – Telecoteco
16 – Telecoteco n°2
17 – Contas
18 – Se acaso você chegasse
19 – Malandro
20 – Beija-me (Beba-me)
21 – Salve a Mocidade
22 – Rap da felicidade (Faixa bônus)
(Faixas obtidas junto a uma cópia original do DVD do show, lançado em 2007 pela gravadora Biscoito Fino).

Existe um diálogo entre as faixas desde a primeira, “Meu guri”, na qual ecoa a voz de uma mãe pobre sobre seu filho, à última, “Salve a Mocidade”, referência à sua paixão, a Escola de Samba Mocidade Independente de Padre Miguel, nascida nas proximidades de onde Elza é “cria”. Esse diálogo se confirma na faixa bônus, última do show, o “Rap da felicidade”, que sintetiza a luta e o grito desta mulher negra, pobre, da favela, da luta e de sonhos. Mas posso dizer que há mais que isso: há uma voz que fala por um povo. Diferentemente do que é defendido por Spivak em seu Pode o subalterno falar (2010), em que o subalterno tem sempre sua fala mediada por outra voz, Elza, graças a sua exposição midiática e grande repercussão de sua figura, parece deslocada do contexto de subalternidade. Ela é a própria subalterna que fala pelos subalternos e, na sua posição ainda mais periférica de mulher subalterna e mais ainda de mulher negra subalterna, fala por sua própria voz, sem precisar de mediação.

Outro fator importante no entrelaçamento e no diálogo que as canções estabelecem entre si, ela expõe outro grande problema social pelo qual a mulher negra passa, como a violência singular que sofre em uma sociedade estruturalmente racista. Muitas vezes, pela condição social à qual é submetida, como a falta de acesso à educação, saúde de baixa qualidade, pouca ou nenhuma qualificação profissional, elas se veem obrigadas, com muita frequência, a ocupar postos como os de empregada doméstica, funcionárias da limpeza, vendedoras ambulantes e demais funções que ficam sempre à margem e por muitos não são olhadas e nem vistas no dia a dia da correria. Elza expõe isso na canção “Pra que discutir com madame”. Também há uma reflexão sobre a mulher negra como corpo-objeto, a serviço do homem. Um trecho do livro Mulheres, cultura e política (2017), de Angela Davis, nos ajuda a ter uma luz sobre o pensamento que entrelaça um conjunto de faixa cantadas por Elza em sequência:

Estupro, intimidação sexual, espancamento, estupro conjugal, abuso sexual de crianças e incesto são algumas das muitas formas de violência sexual explícita sofrida por milhões de mulheres neste país. […] O fato de que praticamente todas nós podemos recuperar episódios similares em nossas memórias de infância é a prova do grau em que a violência misógina condiciona a experiência feminina em sociedades como as nossas (Davis, 2017, p. 41-43).

Após essa leitura breve de um trecho do capítulo “Nós não consentimos: a violência contra as mulheres em uma sociedade racista”, posso refletir, fundamentalmente, sobre algumas alusões presentes no show, das quais considero a mais capital, como caminho que levará às canções “Salve a Mocidade” e, propriamente, ao “Rap da felicidade”.

A trilha musical até “Ser feliz”[7]

Sem desconsiderar as faixas iniciais do show, das quais as mais singulares já foram mencionadas, penso que esse caminho se inicia na faixa de número 12, “Palmas no portão”, trilhado em algumas melodias e letras, os tons melancólicos e destaque para a grande voz de Elza, uma espécie de autocanto de uma realidade outrora vivida e que é revisitada pela sua arte.

Já na primeira faixa mencionada, “Palmas no portão”, há um claro exemplo sobre a solidão da mulher negra, que na canção chora por não ser visitada por seu amado, mostrando o abandono pelo qual muitas dessas mulheres passam. Seguindo para “Lata d’água”, em que uma mulher sofre vivendo em uma comunidade, temos uma transição temporal: em pleno 2018, além da falta de saneamento básico em muitas comunidades, há também a evidência de uma força de trabalho dupla, não só a de carregar água, mas a de ser mãe solteira, realidade muito comum na população brasileira. Em se tratando de mulheres negras, a situação é ainda mais grave: ou elas são abandonadas por seus companheiros por diversos motivos, ou são vítimas da violência e têm seus maridos, também negros, assassinados pelas forças que deveriam dar segurança, mas confundem guarda-chuvas com armas de fogo[8] e assassinam pais de família como Rodrigo Alexandre da Silva Serrano, alvejado em um dia de chuva, 17 de setembro, deixando para trás mais uma mulher negra com sua vida dilacerada e mãe solteira.

Em “A carne”[9], Elza faz o apogeu do show, expondo a negligência do Estado com os corpos negros, com a violência por eles sofrida, com os assassinatos que ficam sem solução, pelas associações ao que é ruim e diretamente feitas ao povo negro, pelo que acontece diariamente e não vemos ou fingimos não ver. Há um lamento de Elza ao dizer que “a carne mais barata do mercado é a carne negra”, porque de fato é.[10] É o corpo que pouco importa, a carne que sofre, que é marginalizada, foi escrava, é jogada ao relento e por fim acaba esquecida, jogada em valas ou simplesmente é um corpo que some, pois afinal “Onde está o Amarildo?” ou mesmo “Quem matou Marielle?”[11].

Em “Teleco-teco”[12], volta-se à situação do corpo-objeto da mulher negra. Nessa canção há um jogo, uma citação a duas outras canções: a primeira, “Praça Onze”[13], de Herivelto Martins, conta a história do fim da Praça Onze, reduto das escolas de samba no início do século XX. Essa música mostra uma profunda tristeza pelo provável fim das escolas de samba, dizendo que, para além do choro dos instrumentos que não serão mais utilizados, há também o choro da favela. Há a memória, as recordações. É o fim de algo que foi bom, que deixará lembranças, a esperança de uma nova praça e um passado que será cantado.

A segunda citação, “foi pra mim”, refere-se à música “Samba feito pra mim”[14], que se justifica pela presença da citação dos versos: “Amei alguém, fui só de alguém, o mundo não procurou me compreender”. Há como referência dessas duas canções, um sujeito que está triste, pois vai deixar algo para trás, um amor, uma grande paixão, seja metaforicamente na figura da Praça Onze na primeira música, seja literalmente se pensarmos na segunda música. Algo que ele deixa por não ser compreendido, algo que ele deixa por não poder mais levar isso adiante, algo que ele espera que um dia volte para cantar o tempo de saudade e celebre a felicidade de um novo tempo. Com a construção dessas metáforas podemos entender que ele deixará a mulher, já que na segunda parte da música: “Você é um homem casado, não tem o direito de fazer carnaval”. Ora, entende-se aqui que a metáfora do carnaval nada mais é que ter relações sexuais com ela.

Há uma clara mensagem nessa canção em específico, um sofrimento de uma mulher que, para além de passar “a noite inteira acordada e a minha bronquite assim comecei”, um rancor, uma mágoa de se sentir usada por um homem que é casado, provavelmente, mente para ela e usa de charme e canções do conhecimento popular para criar uma atmosfera de descontração com essa mulher, com o objetivo de pressioná-la para conseguir o seu perdão. É evidente aqui a relação de poder (com o “jeitinho”) e de abuso que a mulher negra sofre. A mulher que se sente só por sua condição social massacrante, que é diferente da mulher branca, que é cortejada e se sente pressionada a dar o perdão. Parece muito simples, mas só a mulher e principalmente a mulher negra que passou por semelhantes situações sabe a quantidade de significados que esse “jeitinho” tem na relação de manipulação e tentativa de dominação do psicológico para que o homem consiga aquilo que quer.

Em “Teleco-teco n° 2”, há uma continuidade para além do título, uma espécie de justificativa do lamento da primeira música. É possível pensar que o verso “samba nasce em qualquer lugar” seja uma resposta à desculpa que o homem dera para lhe deixar, uma coerente e inteligente explicação de que quando se quer, dá-se um jeito, e que poderia ser encontrada uma maneira para que ele conciliasse a vida com ela e a amante. 

Na faixa “Contas”[15], o lamento da mulher, chefe de família. Contas a pagar, pouco dinheiro, da mulher que convive diariamente com o dilema de trabalhar ou cuidar dos próprios filhos, isso porque muitas delas cuidam mais dos filhos das patroas que dos próprios. E, por mais que ela pense elucidar seu dilema pedindo demissão de seu trabalho para dar “conta das contas do lar”, muito lhe faz recuar quando o pensamento dessa mulher negra é o de que sem trabalho não há dinheiro para as contas, mas com trabalho não lhe sobra tempo para dar conta do lar. E assim segue a vida…

“Se acaso você chegasse” dá início ao último bloco do show, seguido de “Malandro”, “Beija-me”, de Roberto Martins e Mário Rossi, a maior brincadeira do show, que merece um olhar especial, pois durante a performance, Elza altera várias vezes o verso “Beija-me” por “Beba-me”. Nessa canção ela sintetiza o martírio de seu tempo na favela, do tempo de qualquer morador de uma favela, em versos que sugerem que ela seja engolida, algo difícil para quem não gosta dela e não a aceita pelo sucesso que conquistou.

Por fim, antes do encerramento do show, há uma declaração do seu amor pelo Samba, a grande paixão da menina Elza, “Salve a Mocidade” Independente de Padre Miguel, escola de samba que nasce em Padre Miguel, território que antes era a favela de Moça Bonita, onde ela nasceu. Amor tão grande que a fez se declarar apaixonada e sambista por inúmeras vezes, desfilar pela escola e até cantar um trecho do samba-enredo de 2019 na gravação oficial do CD do Sambas de Enredo de 2019.

A sutileza para mandar a grande mensagem do que é esse show fica notável, uma síntese de sua carreira, sem negar de onde ela veio – a favela –, o que ela é – uma mulher negra que luta, que está na luta – e, além disso, uma favelada que quer paz, quer tranquilidade, que não deseja mais ser marginalizada pelo que é e sim respeitada pela luta diária de sua vida. É assim que o show termina com a faixa bônus, com o “Rap da felicidade” coroando a Rainha Elza. Parece que este show, que marcaria uma pausa em sua carreira, já que Elza o lança em CD e DVD em 2007 e só retorna com um álbum novo em 2015, seria a grande virada em sua carreira, despontando-a como símbolo de uma série de discussões contemporâneas.

O Rap

Dupla Cidinho e Doca: intérpretes da versão original do “Rap da Felicidade”, lançado em 2004. Imagem de uma visita feita pelos dois à Cidade de Deus para entrevista ao jornal Extra. Disponível em: https://extra.globo.com/tv-e-lazer/musica/dupla-cidinho-doca-retoma-parceria-grava-disco-para-celebrar-20-anos-de-carreira-11646102.html)

A música “Rap da felicidade” tem uma letra melódica, um ritmo menos acelerado e marcado por uma sequência única de batidas, bem diferente do que conhecemos hoje em pleno 2018 por funk, seja nas comunidades, com o acelerado ritmo em 150BPMs (batidas por minuto), seja pelo funk mais comercial que chega às rádios com 130/135BPMs. Ela ainda carrega o “rap” no nome – já que historicamente, no Brasil, o funk começa com o movimento dos “melôs”, assim como nos EUA, onde o ritmo nasce da mistura de ritmos afro-americanos, depois caminha no sentido de se nomearem “raps”, até que, por fim, os movimentos de antropofagia nas favelas consolidam o que temos hoje pelo nosso único e mundialmente reconhecido funk. E parece que crítica social é mesmo receita de bolo em determinadas épocas. Fosse na música, nas artes ou no carnaval, o final da década de 1990 foi propício às críticas, que obtiveram muito sucesso, e com o “Rap da felicidade” não seria diferente.

Com uma estrondosa repercussão nas rádios, nos milhares de discos vendidos e na participação em diversos programas de TV, Cidinha e Doca se tornaram conhecidos nacionalmente pela música que tinha um singelo pedido, mas que talvez fizesse sucesso, no cenário político da época: a grande parte da população brasileira, a grande consumidora dos meios de massa com rádio e televisão, que se via representada na súplica que a canção entoava “Ser feliz na favela onde EU nasci…”. Esse “eu”, marca de primeira pessoa, com referência indeterminada, um sujeito que não se identifica, mas que pode ser qualquer morador de uma comunidade que é assolada pela violência, é para que cada um que cantasse a música, que tocava exaustivamente nas rádios ou estava em todos os programas exibidos na TV, fosse em uma favela carioca, na periferia de São Paulo, no Nordeste, imensamente esquecido em diversos aspectos, ou por qualquer um que sentisse que aquela fala era sua também.

Não se pode negar o grande sucesso que essa música teve e a atemporalidade que essa espécie de “súplica” das favelas ganhou, o que a fez se tornar trilha sonora do filme Tropa de Elite em 2007 e regravação no DVD de Elza Soares no mesmo ano. Talvez essa música seja um daqueles fenômenos que não conseguimos dizer como se deu, mas é de extrema importância reconhecer essa produção como um manifesto político, uma marca histórica do início do movimento funk no Brasil, que passaria por várias mudanças em sua trajetória, mas nunca perdendo sua essência.

Por dentro do “Rap de Elza”

E para encerrar seu show e DVD, Elza traz a sua versão do “Rap da felicidade”, com uma “citação musical”, uma espécie de abertura que se faz antes da faixa principal, onde um cantor geralmente cita outra canção com a qual ele pensa estabelecer um diálogo (o que aqui realmente se dá), pois a citação escolhida é a cantiga popular “Se essa rua fosse minha”, com uma letra repleta de metáforas que estabelecem uma conexão fortíssima com o “Rap da felicidade”. Apreciemos um trecho da cantiga[16]:

Se essa rua
Se essa rua fosse minha
Eu mandava
Eu mandava ladrilhar
Com pedrinhas
Com pedrinhas de brilhante
Para o meu
Para o meu amor passar
(Cantiga popular)

É notável neste trecho apreciado uma certa melancolia, há na simplicidade de uma canção infantil um gesto muito mais simbólico que o simples arranjo que antecede a canção apresentada por Elza; se ligada ao “Rap da felicidade”, uma simples cantiga popular pode dizer mais que as simples palavras ali expressas.

A citação musical faz uma síntese de tudo que já foi visto no show anteriormente, os personagens citados nas canções, o sofrimento das mulheres e o lamento das mães solteiras, o caminhar de cada morador na singularidade, não só dos seus problemas, mas na coletividade, já que todos que passam por esses problemas encontram um ponto em comum: a rua, essa rua, a rua que pode ser de cada um. E não é difícil repensar a realidade de uma favela carioca quando lemos sobre elas diariamente nos jornais. Claro que muitos têm um olhar de fora, do espectador, não de quem mora, mas com um mínimo de empatia, há que se ter uma mínima noção, uma vez que nem todos moram nas favelas e nem todos as frequentam, muitas vezes por medo. E mesmo com essa luz que a mídia lança sobre essas comunidades, mostrando a violência ou muitas vezes um recorte que interessa ser mostrado, remarcar que cada um tem o seu ideal de lugar de onde vem e o seu pertencimento, uma particularidade que une o indivíduo àquele lugar, e, mais uma vez, a rua é o ponto comum que une a todos.

Insisto nisto, na ideia de que a RUA aqui é decisiva para entender o desfecho do show, direcionando o pensamento a dois casos específicos do retrato das favelas do Rio de Janeiro, apontando sua relação com a rua. O primeiro, de Marcos Vinicius Silva, morto durante um confronto entre policiais e traficantes no conjunto de favelas da Maré[17], quando o menino ia para a escola. A criança foi baleada na rua. Em entrevista à impressa, a mãe declarou[18]:

Quando cheguei na UPA ele estava com vida. Ele falou ‘mãe eu sei quem atirou em mim, eu vi quem atirou em mim’. Eu falei ‘meu filho, quem foi que atirou em você?’. ‘Foi o blindado, mãe. Ele não me viu com a roupa de escola” (Trecho da entrevista de Bruna da Silva, mãe de Marcos Vinícius, concedida ao G1).

O segundo caso é a imagem, capa de diversos jornais no Brasil e no mundo, que chocou ao mostrar crianças vendando crianças mais novas, ao passarem por corpos mutilados e ensanguentados pelo chão, em uma rua na favela da Rocinha[19]. Essas narrativas trágicas têm como pano de fundo a rua, que é um lugar de convívio, de passagem, mas que traz consigo uma tragédia particular, um sentimento de revolta, de dor, particular de cada um.

Por essa razão, os versos “Eu só quero é ser feliz, andar tranquilamente na favela onde eu nasci”, precisavam aqui, expostos por uma mulher negra que sofreu na favela, ser antecedidos pela simples citação musical de “Se essa rua fosse minha”. Mas, e se realmente ela fosse, será que a mãe de Marcos teria o filho nela baleado, uniformizado a caminho da escola? Será que as mães e os pais de cada uma daquelas crianças que passaram por aqueles corpos ensanguentados não gostariam que nela seus filhos tivessem que caminhar por outras ruas que não fossem aquelas com marcas de morte, da violência e de sangue? Elza dá a cada um o poder de ter a rua, de se apropriar dela, para que dela façam um caminho melhor por onde possam passar.

Quando Elza gravou o DVD Beba-me, em 2007, já se tinha um panorama da violência, que só cresceu desde então, e do descaso com as comunidades cariocas. Já se tinha um retrato triste do que era a vida em uma comunidade, mas a imortalidade da obra é tão emblemática que, em 2018, 11 anos depois da gravação, a canção e as reflexões sobre todas as escolhas são tão simbólicas e tão comunicativas, que a intencionalidade ao ser produzida parece ter a vontade de se comunicar com um público específico, o que realmente quer “ter a consciência que o pobre tem seu lugar”.

Ela traz luz à ideia da rua e cria uma noção de diálogo dessa mesma rua, que pode ser de qualquer um, para não ser lugar de tragédia, com os movimentos da música, trazidos pelos verbos de ação. Quando a canção evoca o verbo de primeira conjugação “andar”, o sujeito da canção anda por essa rua, que se fosse dele, mandaria ladrilhar de brilhantes, apagando assim as marcas de sangue de inocentes que sequer têm seus nomes conhecidos, dos Marcos Vinicius da vida, que morrem todos os dias a caminho da escola, a caminho do futebol com os amigos. De Amarildo que não tem corpo, que não tem o lugar físico da memória do homem que deixou a família; de Marielle e de Anderson, que têm seus corpos atravessados por tiros, um caso ainda sem solução.[20]

Trazer essa canção com esse arranjo é mais que um manifesto, é a própria Elza que aqui é o subalterno que tem fala, é aquela que fala por uma realidade que é sua, a do medo, da dor, de quem mora na favela, que é desrespeitado, que pede paz, pede justiça, que não aceita mais que sua carne seja a mais barata, que não quer mais seu corpo tratado como objeto. Aqui temos um fim anunciado da missão desse show: fazer descer goela abaixo a hipocrisia e a intolerância que por anos criticaram essa mulher, a realidade e o lugar de onde ela vem, que ela quer cantar, que ela suplica que mude. É Elza por Elza manifestando por um povo, seu povo, o povo negro, favelado, sofredor.

O lugar teórico de Beba-me e a singularidade do “Rap de Elza”

Para além do que já foi dito, há também para se pensar uma memória de Elza na narrativa desse DVD, não a memória vista, mas uma memória no imaginário. Reflito junto a Hugo Achugar, em seus “Planetas sem boca”, na memória imaterial:

Refiro-me ao lugar teórico a partir de onde se fala, que está configurado, entre muitos outros elementos, pela memória. Uma memória que é local ainda que atravessada pelo nacional, o regional e o internacional. Ou seja, falo a partir de um lugar contaminado pela memória e povoado de monumentos que nem sempre têm a materialidade do mármore, do bronze ou da escrita (Achugar, 2006, p. 179).

Ora, ao pensar acerca disso em um dos ensaios que compõem os “planetas sem boca”, Achugar nos mostra a perspectiva de fala a partir de um lugar que existe apenas na memória, que, ou nunca existiu ou deixou de existir. É muito lúdico pensar que é isso que Elza faz quando refletimos que cada personagem cantado ao logo das 22 faixas representa uma parte do conturbado cotidiano de Elza na favela Moça Bonita. Local do qual Elza fala, e nos fala, nesse DVD. Mas principalmente é pensar em um lugar que agora fica apenas no imaginário de Elza, já que, para além da configuração do espaço e do tempo serem diferentes, a favela agora possui outro nome. E parece pouco possuir apenas outro nome, mesmo que o lugar fosse o mesmo, mas o nome é a primeira parte da nossa construção de identidade, e é assim que vemos Elza, a mulher de Moça Bonita. Ao receber outro nome, além de ser outra favela, da demanda de tempo que os moradores levam para se adequar ao novo nome, a nova identidade, que muitas vezes muitos renegam. Como o caso dos moradores da Vila do João, que tiveram os nomes de suas ruas trocadas pelo então prefeito da cidade do Rio de Janeiro[21], Marcelo Crivella, que, em 2017, seu primeiro ano de mandato, trocou o nome das ruas da comunidade por nomes que sequer a população conhecia. Nome é emblemático, é uma marca, a primeira construção de identidade. A troca do nome da favela de Moça Bonita, leva as memórias de Elza de um lugar material para apenas o lugar memorial que habitam em seu pensamento.

Por um reflexivo desejo: poder se orgulhar

Com tantos pensamentos em diálogo não só com a realidade de 2007, mas com o atual cenário que vivemos em 2018, é categórico afirmar que Elza Soares manifesta toda sua vida e suas memórias de vivência na favela nesse show. Aqui ela saltará de um hiato que dura de 2007 a 2015 para uma grande voz das discussões contemporâneas, do pensamento das mulheres, voz de denúncia que fala por si e por milhares como ela.

A narrativa performática que se desenha no show resgata não só a sua carreira, mas reinventa a Elza que já era aclamada, consolidando-a como a grande artista que ela é, mas também revela diante do público sua vida forte e estilhaçada por uma trajetória em condições mínimas.

Elza Soares afirma nesse DVD sua negritude, seu grito de resistência, de luta, de força e de garra como mulher negra, representante cultural, como voz subalterna de outras subalternas que precisam ter luz jogada sobre suas dores. Ela é essa luz, e mostra com graça, leveza, sutileza e um charme em cada detalhe do show, desde a simples cenografia à singularidade de seu figurino, uma realidade que muitas vezes é jogada para debaixo do tapete, que passa despercebida no cotidiano de pessoas que não vivem naquele lugar que é a favela. Ela reafirma que é preciso ter consciência de classe, reconhecer-se pertencente àquele lugar, orgulhar-se e lutar para ter orgulho dele.

Finaliza o show saudando a Mocidade, sua escola de samba do coração, e a mocidade, a juventude, a esperança dessa luta, semente que aqui ela planta e cujos frutos vemos hoje, seja os que ela plantou, seja de outras mulheres que vêm da mesma luta que ela, mas que são os frutos do progresso.

Enaltecer é preciso. Assim, deixa-se ao fim não o final definitivo, mas ao fim desta página um salve a todas as mulheres negras, cis e trans que lutam todos os dias por sobrevivência, por um mundo mais justo e que muito me enchem de orgulho. Salve a arte, viva a Favela, evoé Elza, Elza de Moça Bonita Soares.

Vanubia Close,
No 29° dia do mês de setembro do ano de 2018,
O dia em que o Brasil uniu forças e disse #EleNão
(E que essa escrita tenha sido lida por você, em um Brasil onde o ódio não venceu).

Samile Cunha,
No 10° dia do mês de dezembro do ano de 2018,
Ele venceu, mas nós resistiremos,
pois “Vai sair, de dentro de cada um, a Mulher vai sair”.


* Heterônimo in persona de Artur Vinicius A. Santos. Vanubia Close é travesti, ativista política de direitos LGBT, escritora, dançarina, psicóloga das ruas, leitora assídua, amante de músicas populares como samba e funk. Esta criação parte de uma série de recortes e referências de Artur em um processo de antropofagia que resulta em Vanubia, este ser que se apresenta como pessoa e divide a identidade com o próprio citado e leva as ruas à academia e a academia às ruas.

** Samile Cunha é a persona que Samuel Abrantes, professor doutor da Escola de Belas Artes da UFRJ assume. Samile nasce como Dalva Garça Dourada, em uma brincadeira para o Carnaval de 2004 da G.R.E.S. São Clemente, no enredo “Boi Voador sobre o Recife – Cordel da Galhofa Nacional”, interpretando uma chacrete, a convite do então carnavalesco da Escola Milton Cunha. Dois anos mais tarde adota o nome de Samile e o sobrenome Cunha em homenagem a Milton. Assim, Samile desfila em diversas escolas todos os anos e toma a academia quando, em 2014, Samuel lança o livro Transconexões, memória e heterodoxia, no qual faz um resgate biográfico de Samile. Desde então, apenas Samile é convidada à academia, o que faz da Travesti do Samba, uma intelectual.

Referências

ACHUGAR, Hugo. Planetas sem boca: escritos efêmeros sobre arte, cultura e literatura. Tradução de Lyslei Nascimento. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.

BHABHA, Homi K. O local da cultura [1949]. Tradução de Myriam Ávila, Eliana Lourenço Reis, Gláucia Renate Gonçalves. 2ª ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013.

CARNEIRO, Sueli.Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. In: ASHOKA EMPREENDEDORES SOCIAIS; TAKANO CIDADANIA (Orgs.). Racismos contemporâneos. Rio de Janeiro: Takano Editora, 2003.

DAVIS, Angela. Mulheres, cultura e política [1994]. Tradução de Heci Regina Candiani. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, 2017.

RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento; Justificando, 2017.

SPIVAK, Gayatri Chakravotry. Pode o subalterno falar? [1942]. Tradução de Sandra Regina Goulart Almeida, Marcos Pereira Feitosa e André Pereira Feitosa. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

Sites consultados:

1. https://www.redbull.com/br-pt/Elza-Soares-e-o-lado-obscuro-do-paraiso (Acesso em 10 set 2018)

2. https://noticias.bol.uol.com.br/bol-listas/curiosidades-que-talvez-voce-nao-saiba-sobre-a-cantora-elza-soares.htm (Acesso em 15 set 2018)

3. http://revistadonna.clicrbs.com.br/gente/em-entrevista-elza-soares-fala-sobre-prazer-violencia-domestica-e-preconceito-quando-ninguem-tinha-coragem-de-assumir-sua-negritude-eu-assumi/ (Acesso em 16 set 2018)

4. https://odia.ig.com.br/_conteudo/diversao/celebridades/2015-11-30/ja-levei-muita-porrada-diz-elza-soares.html (Acesso em 18 set 2018)

5. https://mdemulher.abril.com.br/famosos-e-tv/elza-soares-voce-precisa-conhecer-a-historia-dessa-guerreira/ (Acesso em 21 set 2018)

Outras referências:

Beba-me (CD) – Elza Soares: Gravadora Biscoito Fino; gravado em março de 2007 no Sesc Vila Mariana (SP) em parceria com o Canal Brasil. Tiragem AB2500. 15 Faixas.

Beba-me (DVD) – Elza Soares: Gravadora Biscoito Fino; gravado em março de 2007 no Sesc Vila Mariana (SP) em parceria com o Canal Brasil. Tiragem AA3500. 22 Faixas.

Documentário – O Gingado da Nega – Canal Bis: Exibido em 07 jan 2014.

Disponível em: https://vimeo.com/69055991  

Notas

[1] Frase dita por Vanubia Close (heterônimo in persona), durante a apresentação do trabalho “O som de Preto que conquistou o mundo: a antropofagia da favela nas letras e no baile funk” no I Minervacon: Encontro de Estudos Interdisciplinares de Linguagens, Mídia e a Cultura Pop, realizado no dia 06 de junho de 2018 na Faculdade de Letras da UFRJ na Ilha do Fundão.

[2] Este que é apontado por Sueli Carneiro no artigo “A situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero”.

[3] Quando Elza Soares e Garrincha começaram seu relacionamento ele ainda era casado com sua ex-mulher e Elza estava em seu início de carreira. Muitos da mídia mais conservadora a apontavam como “destruidora de lares”.

[4] Lançado em 11 de agosto de 2015 como primeiro single do álbum A mulher do fim do mundo.

[5] Lançado em 3 de outubro de 2015 pelo selo Circus Produções, com 11 canções.

[6] GRES Paraíso do Tuiuti é uma agremiação do Rio de Janeiro que desfilou em 2018 pelo Grupo Especial das Escolas de Samba com o enredo “Meu Deus, meu Deus, está extinta a escravidão?”. A escola arrebatou a Marquês de Sapucaí em um desfile comovente que lembrava a escravidão chegando até a reforma trabalhista. Com isso, ela que era cotada para ser rebaixada, já que a agremiação com menor pontuação desfila no ano seguindo em um grupo inferior, alcançou o 2° lugar da classificação geral.

[7] Alusão a um trecho do “Rap da felicidade” que diz: “Eu só quero é ser feliz”.

[8] Consultado em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/09/19/politica/1537367458_048104.html

[9] Consultado em: https://www.letras.mus.br/elza-soares/281242/

[10] Refiro-me aqui, em apenas uma frase, a todo um caminho refletido por Achille Mbembe em seu Crítica da razão negra.

[11] Na presente data de revisão deste artigo, aos 10 dias do mês de dezembro de 2018, o crime ainda não havia tido solução. Nesta mesma data, Marielle Franco foi homenageada na ALERJ com a medalha Tiradentes, recebida pelas mãos de seu pai, no dia dos Direitos Humanos.

[12] Consultado em: https://www.letras.mus.br/elza-soares/1280641/

[13] Consultado em: https://www.letras.mus.br/herivelto-martins/386766/

[14] Consultado em: https://www.letras.mus.br/elis-regina/542639/

[15] Consultado em: https://www.letras.mus.br/elza-soares/contas/

[16] Cantiga acessada em: https://www.letras.mus.br/cantigas-populares/134098/ no dia 23/09/2018.

[17] Consultado em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/morre-adolescente-ferido-durante-tiroteio-na-mare.ghtml

[18] Consultado em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/testemunha-que-socorreu-adolescente-morto-na-mare-diz-que-tiro-partiu-da-policia.ghtml

[19] Consultado em: https://oglobo.globo.com/rio/exposicao-de-criancas-violencia-na-rocinha-desperta-preocupacao-de-pais-especialistas-21934661

[20] Leva-se em consideração que o texto foi escrito no mês de setembro do ano de 2018.

[21] Consultado em: https://extra.globo.com/noticias/rio/crivella-muda-nomes-de-ruas-na-vila-do-joao-21905331.html

dossiê
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A FORMA E A INVENÇÃO NA POÉTICA DA CANÇÃO DE MANO BROWN

Resumo: Mano Brown é uma das referências centrais para a música popular brasileira nas últimas décadas, especialmente através das suas canções com o grupo Racionais MCs. A excelência e o nível de inventividade formal da sua poética o coloca na condição de um dos principais poetas da canção brasileira, talvez o último dos grandes mestres da composição em canção popular.

Palavras-chave: Música; invenção; poesia.

Abstract: Mano Brown is one of the central references for Brazilian popular music in the last decades, especially through his songs with the group Racionais MCs. The excellence and level of formal inventiveness of his poetry puts him in the condition of one of the main poets of the Brazilian song, perhaps the last of the great masters of the composition in popular song.

Keywords: Music; invention; poetry.

Mano Brown em 2014 (Foto: Daryan Dornelles/Divulgação)
Mano Brown em 2014 (Foto: Daryan Dornelles/Divulgação)
Fonte: https://portalrapmais.com/mano-brown-diz-que-fas-nao-merecem-um-novo-album-do-racionais/

Mano Brown é, certamente, um dos artistas mais importantes da música popular brasileira em todos os tempos. E não só. A sua inteligência poética o coloca na condição de um pensador da cultura, aquele que aponta balizas, orienta o caminho, persuade, redimensiona o debate público, através de entrevistas ou mesmo falas em meio aos shows. Ele ocupa hoje um papel análogo ao de artistas da canção como Tom Jobim, Caetano Veloso, Chico Buarque, Milton Nascimento, Raul Seixas e, numa dimensão menor, Cazuza, Renato Russo e Chico Science. Mano Brown é um artista que criou uma linhagem própria na música popular brasileira, no mesmo nível dos nossos maiores artistas e pensadores da cultura. O fato de ser oriundo das classes trabalhadoras precarizadas, diferentemente de todos estes artistas, diz muito da sua importância histórica, ao lado da excelência da sua obra artística. Nela, há um senso de totalidade e não de fragmentação. Não se trata de uma perspectiva específica, associada a uma realidade específica, como erroneamente é apresentada em muitas análises, mas de um olhar artístico e crítico totalizante, do lugar do Brasil no espírito do mundo e do espírito do mundo para além do Brasil, tendo a arte – com sua autonomia relativa em relação à sociedade e à política – como mediadora complexa, através de um refinado trabalho estético-formal.

*

O pensamento acompanha a poesia da canção. Ambos potentes e afiados. A maturidade poética e a forma complexa e lúcida com que delineia a relação entre estética e política vem desde o primeiro momento, ainda nas primeiras canções e entrevistas. Holocausto urbano, o primeiro álbum do Racionais Mcs, já era radicalmente inovador dentro do ambiente da canção popular de início da década de 1990, com o ocaso das bandas do chamado “Rock Nacional” e do movimento punk e pós-punk; a emersão de novas movimentações profundas da música popular brasileira com o advento da axé-music; a nacionalização da música sertaneja; o fenômeno dos grupos de pagode romântico e o desenvolvimento ainda regional do funk carioca. O Hip Hop brasileiro nasce neste contexto. Sua complexidade e força derivam daí. Os álbuns posteriores, Escolha seu caminho (1992), Raio X do Brasil (1993), Sobrevivendo no inferno (1997), Nada como um dia após um outro dia (2002) e Cores e valores (2014), deram sempre um passo à frente no contexto poético e musical em que foram lançados. A relação com a MPB dos artistas de classe média da década de 1960 é apenas lateral e só posteriormente vem gerar algumas sugestões de aproximações, com o muito culto Criolo. Em outras palavras, o mais importante da sua grande obra é a relação com um processo histórico e social associado a um contexto em que a inteligência e a vitalidade da música popular brasileira se deslocam para a criação feita pela e para as classes trabalhadoras precarizadas. Ela não é devedora, nem deriva, em nenhum aspecto, das grandes obras e movimentações culturais da classe média da década de 1960, porque abre uma nova fenda, como um clarão, complexo, denso, vigoroso, consistente, cuja potência e força artística começa a ser medida e pensada. E também cria grandes obras, como a do Racionais MCs, de KL Jay, Edy Rock, Ice Blue e Mano Brown.

*

Sobrevivendo no inferno é um clássico e representa a maturação estético-formal de uma ruptura ainda sem precedentes na história recente da música popular feita no Brasil. Representa aqueles momentos em que a arte feita no Brasil concentra as tensões formais, sociais e políticas do momento, e consegue ser, pelo alcance artístico, atemporais. O espanto diante da audição de Sobrevivendo no inferno dentro da sua obra só é comparável à audição de Cores e Valores, a misteriosa suíte poético-sonora lançada em 2014. Entre os dois álbuns, algumas das melhores canções feitas em língua portuguesa, como “Racistas otários” e “Pânico na zona sul” (Holocausto urbano, 1990) “Homem na estrada”, “Fim de semana no parque” e “Mano na porta do bar” (Raio X do Brasil), “Capítulo 4 versículo 3”, “Fórmula mágica da paz”, “Diário de um detento” (Sobrevivendo no inferno, 1997), “Jesus chorou”, “Vida Loka II”, “Eu sou 157”, “Da ponte pra cá” e “Negro drama” (Nada como um dia após um outro dia, 2002). E, em alguma área imprecisa, “Mil Faces de um homem-leal” (Carlos Mariguela) (2012) – mediadora entre a extensão narrativa complexa de “To ouvindo alguém me chamar” (Sobrevivendo no inferno, 1997) e as experimentações de síntese em “Finado Neguin” (Cores e valores, 2014).

Capa de Cores e valores, 2014
Capa de Cores e valores, 2014
Fonte: https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-e-lazer/noticia/2014/11/Racionais-MC-s-voltam-com-musicas-curtas-e-influencias-modernas-em-Cores-Valores-OUCA-4650367.html

A capa de Cores e valores é pedra bruta. A arte é terrível, cruel e difícil. A imagem de símbolos que remetem ao modo como filmes de terror fazem parte do imaginário cultural popular; a figura do palhaço que se parece aqui com um sátiro zombeteiro de algum lugar perdido nas ilhas de Samos, Lesbos, imerso ainda num caos originário de pulsão difusa e potência ameaçadora, na aurora da razão; a roupa de gari; a metáfora do assalto que se relaciona com a mesma imagem do clipe da obra-prima “Mil faces de um homem leal”, no qual o Racionais MCs, ao lado do imenso Dexter, tomam de assalto a rádio nacional (a música popular brasileira) para cantar uma poesia afiada, pesada e estranha, com inteligência formal e capacidade de fazer soar o som de palavras e sílabas recheadas de vertigens e quebras súbitas de sentido. “Mil faces de um homem leal” é uma canção que vale por muitos discos de canção.

*

O labirinto de figuras de linguagem atravessa e molda as canções de Mano Brown. O domínio formal é impecável e profundamente inventivo. A poesia que chega ao coração da linguagem e nasce do espaço impreciso do som das palavras que ainda não ganharam sentido, que ainda não se embrenharam na trama do significado. O labirinto das formas chama para a decifração do enigma que nunca se apresenta na sua totalidade. O som das palavras, a junção entre som e sentido, a palavra como canção, a música das esferas. A aproximação do enigma. Cola-se a boca na borda do Ser.

*

Uma obra de depuração formal da linguagem da canção. Depuração que exige um trabalho permanente, como a confecção demorada de um belo afresco, com suas delicadezas não reveladas explicitamente, que exigem do apreciador o tempo da percepção, da contemplação, da audição repetida, extensa, que vai fazendo aparecer camadas de sentido, tramas sonoras, jogos entre palavras e sílabas, movimentações lancinantes do som em intervalos mínimos de silêncio. Da lapidação sonora e orientação clara da narrativa em “Homem na estrada” para a explosão de narrativas dispersas que se agrupam como estilhaços, sem uma ordem prévia, nem um molde claro, de “Finado Neguin”, a sua obra vai se constituindo fibra a fibra, de ponta a ponta. “Amor distante” e “Boa noite SP”, já sob uma ambiência sonora mais orgânica, misturam ordenações narrativas extensas com variações dispersas de palavras e sons.

*

Além do contexto e da estrutura formal, é interessante delimitar também o quadro de referência cultural e artístico do Racionais Mcs e de Mano Brown. Ele é bem diferente do quadro de referência dos artistas da MPB culta da década de 1960. Os principais artistas, intelectuais e lideranças políticas são outros como Malcolm X, Mariguela, 2Pac, Jorge Ben, Guilherme Arantes, Spike Lee, Tim Maia, Arlindo Cruz, Cassiano, geram uma nova ambiência estética, cuja força vem de um outro lugar e é nela que reside a sua sofisticação, complexidade, densidade, inteligência e potência. Ela criou uma linhagem própria, com seus mitos, suas legendas e selecionou, de forma consciente, as suas afinidades eletivas.

*

Como artista-pensador Mano Brown também se aproxima de pensadores do Brasil, ou melhor, da sociedade brasileira na sua dimensão concreta, imanente, terra-a-terra. Há na sua poética e nas entrevistas que vêm fazendo constantemente uma preocupação e um senso de responsabilidade sobre o destino do país, em especial, das classes trabalhadoras precarizadas. Longe do universalismo postiço da pequena-burguesia culta, que se acredita detentora de um ethos universal, Mano Brown traz para o campo do pensamento crítico uma outra dimensão, mais complexa e real. Não há mistificação pequeno-burguesa. Não há esteticismo superficial, tentando se passar por alta cultura de vanguarda. Há um pensamento afiado que enovela afirmações e negações, e não nega a dúvida.

*

A música popular brasileira bambeia, desde que a canção é canção, entre dois polos. O primeiro é o da contradição sem conflitos, que resulta numa lógica de conciliação de classes; o segundo é o da explicitação dos conflitos, que conduz a uma negação de qualquer forma de conciliação, abre uma fenda e traz à tona singularidades inconciliáveis. A canção e o pensamento de Mano Brown estão no segundo polo. E avançam, arrastando o primeiro. Boogie Naipe, seu álbum solo, é a ponte que sintetiza provisoriamente os dois polos. Cores e valores abre um novo caminho, radicalmente experimental, com sílabas quebradas, traços sonoros, vozes anônimas, como sátiros delirantes vagando no crepúsculo do Ocidente. As figurações que se constroem na sua poética em geral são ameaçadoras e indefinidas, de feições nietzschianas: “Talvez eu seja um sádico, anjo ou mágico, juiz ou réu, um bandido do céu, malandro ou otário, padre sanguinário, franco atirador se for necessário, revolucionário, insano, ou marginal, antigo e moderno, imortal, fronteira do céu com inferno.”

*

Na origem não era o samba. Na origem era a multiplicidade de gêneros e subgêneros. Não há linha evolutiva, nunca houve. Há linhagens paralelas que, ora convergem entre si, ora divergem radicalmente. Quando divergem, se sobrepõem. Quando convergem animam modulações. O tropicalismo foi uma procura por convergência, com um centro balizador: o próprio tropicalismo. Transformou-se rapidamente num parâmetro a um só tempo importante, inevitável, mas também profundamente dogmático e datado. O Clube da Esquina realizou a divergência como convergência e, por isso, superou o tropicalismo. Belchior trouxe à canção mais inventiva a materialidade e a beleza de veludo da vida real, muito além dos delírios e virtuosismos autorreferentes das vanguardas pequeno-burguesas. O rapaz latino-americano da sua canção é o mesmo da canção “Capítulo 4 versículo 3”: Sons, palavras são navalhas.ALira paulistana foi uma afirmação da divergência radical, por isso gerou inovações formais profundas e abriu uma fenda. Clara Crocodilo e Black Navalha descendo a ladeira da memória até o vale do anhangabaú. O Hip Hop do Racionais MCs ampliou essa fenda.

*

Existe uma fortuna crítica sobre os Racionas Mcs. Um tanto irregular, com certas exceções. Entre elas, podemos destacar aqui o trabalho de Walter Garcia e de Francisco Bosco. No primeiro, a canção do Racionais representa não só um apuro formal com o uso complexo de figuras de linguagem, como na alta poesia, ou a intenção de apresentar uma perspectiva política, social e estético-formal do jovem negro das periferias; mas sobretudo uma visão estruturante da violência – em diversos níveis – como expressão da sociedade brasileira, com alto nível de reflexividade e articulação, e a capacidade de aliar tema e expressão. No segundo, o caminho é praticamente o mesmo: o Racionais representa o último grande acontecimento da cultura brasileira na medida em que expressa a voz de trovão anticordial que coloca no primeiro plano da sua sofisticada poética a negatividade da experiência estética e política da sociedade brasileira.


* Marcos Lacerda é doutor em Sociologia, foi diretor do Centro de Música da Funarte e publicou em livro o volume de “Música” da coleção Ensaios brasileiros contemporâneos, uma antologia com alguns dos melhores ensaios sobre canção e música no Brasil, com autores como Roberto Schwarz, José Miguel Wisnik, Luiz Tatit e Cacá Machado, entre outros.

Referências

BOSCO, Francisco. A voz e a música do Racionais MCS. Revista Cult: Dossiê 25 anos de Racionais MCs. No 192, 2014.

GARCIA, Walter. “Ouvindo Racionais MC’s”. Teresa, revista de Literatura Brasileira. No 4/5. São Paulo, 2004. p. 166-180.

GARCIA, Walter. “Diário de um detento’: uma interpretação”. In: NESTROVSKI, A. (org). Lendo música. São Paulo: Publifolha, 2007. p. 179-216.

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KEHL, Maria Rita. “A fratria órfã: o esforço civilizatório do rap na periferia de São Paulo”. In: KEHL. M. R. (org.). Função fraterna. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000. p. 209-244.

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dossiê
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NARRATIVAS NÃO SÃO MENTIRAS

Resumo: O objetivo deste trabalho é problematizar parte do pensamento crítico contemporâneo que tende a qualificar como falsa qualquer narrativa em que haja um procedimento de síntese histórica.  A partir de um mergulho empírico no clássico de Lima Barreto Triste fim de Policarpo Quaresma e da investigação de meu objeto primordial de estudo, que é a Música Popular Brasileira, procuro demonstrar que tal procedimento – quando exercido de modo pouco rigoroso – serve aos que negam o valor cultural das especificidades do desenvolvimento histórico brasileiro, em prol de um pretenso “alto saber universal”. Narrativas não são mentiras; são produção de discursos simbólicos que, quando verdadeiramente amparados em processos sociais legítimos, constroem o peso de um passado real com o qual temos de aprender a lidar.

Palavras-chave: Narrativas; música Popular Brasileira; Lima Barreto; canção; tradição.

Abstract: The objective of this work is to problematize part of the contemporary critical thinking that tends to qualify as false any narrative in which there is a procedure of historical synthesis.  From an empirical digging into the classic of the Brazilian writer Lima Barreto Triste Fim de Policarpo Quaresma and the investigation of my primary object of study, which is the Brazilian popular music, I try to demonstrate that this procedure – when exercised in a very strict way – serves just to encourage those who deny the cultural value of the specificities of Brazilian historical development, in favor of an alleged “high universal knowledge”. Narratives are not lies. They are the production of symbolic discourses that, when truly supported in legitimate social processes, build the weight of a real past which we must learn to cope.

Keywords: Narratives; Brazilian popular music; Lima Barreto; songs; tradition.

A tentativa de implantação da cultura europeia em extenso território, dotado de condições naturais, se não adversas, largamente estranhas à sua tradição milenar, é, nas origens da sociedade brasileira, o fato dominante e mais rico em consequências. Trazendo de países distantes nossas formas de convívio, nossas instituições, nossas ideias, e timbrando em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra. Podemos construir obras excelentes, enriquecer nossa humanidade de aspectos novos e imprevistos, elevar à perfeição o tipo de civilização que representamos: o certo é que todo o fruto de nosso trabalho ou de nossa preguiça parece participar de um sistema de evolução próprio de outro clima e de outra paisagem.
 (Sergio Buarque de Holanda)

Léguas de ser um projeto que eleve à perfeição o tipo de civilização que representamos (se é que representamos alguma fora esta), o processo de desenvolvimento da música popular no Brasil – sobretudo aquele que gira em torno à estranha amálgama a que chamamos canção – provavelmente foi o mais próximo que conseguimos chegar no campo da cultura – ao menos no século XX – de uma “contribuição original”, como diria Caetano Veloso, que enriqueça nossa humanidade de aspectos novos e imprevistos. Embora cada vez menos, apesar da dor, eu vislumbre uma trilha clara para o meu Brasil, tampouco creio que, por causa disso, “devamos tapar o próprio sol com uma peneira rasgada” desconstruindo, seja por vaidade intelectual, seja por necessidade de marcarmos nosso espaço no campo das reflexões críticas, o fato de que a canção no Brasil foi, senão a melhor, uma das melhores, mais contínuas e mais sólidas construções artísticas que conseguimos levar a cabo até hoje, no país.

Se fosse apenas isso, já estaria bom, mas não é. A música popular, seu entorno e seu processo histórico, sobretudo seu desenvolvimento dentro das engrenagens industriais do século XX, pode nos ajudar a entender, um pouco melhor, questões referentes à sociedade brasileira, às formas como interagimos uns com os outros e com as estruturas institucionais, assim como nossas potências, aspirações e fraquezas. Do mesmo modo, a derrocada mercadológica gradativa, intensificada na transição do século XX para o XXI, de um braço da canção – em alguns momentos dominante, todavia sempre presente – que se enxergava (ou melhor, se escutava) como linguagem artística questionadora, sociológica, experimental (sem abrir mão dos privilégios de produto de massa) também é documento vivo para refletirmos sobre o século XXI e a crise dos processos conciliatórios via social democracia que, de forma tácita, sempre pairou sobre as cabeças criadoras e criativas dos artífices da cultura brasileira.

Sei que muitas direções poderiam ser tomadas para refletirmos sobre nós mesmos utilizando como lente a música popular, contudo me aterei especialmente à observação privilegiada de um aspecto que me interessa sobremaneira: as disputas narrativas por um protagonismo simbólico de “representação do nacional”, presente em nossa canção desde antes da fixação do rádio como meio de comunicação de massas. Sem entrar no mérito de qual narrativa possui legitimidade e qual não, quero demonstrar tão somente que esta disputa vem de priscas eras e só abandona a canção em fins do século passado, quando a própria ideia de nacional é violentamente recalcada e reprimida na consciência social coletiva, vindo a tornar-se potência latente no imaginário político, que a ativa e a faz retornar nos tempos atuais sob a égide de preceitos morais extremamente duvidosos.

Assim – ora identificada com regimes autoritários, ora identificada com a resistência e a liberdade de existir enquanto especificidade cultural – a luta pela imagem de símbolo cultural representativo da identidade brasileira (com tudo que isso apresenta de problemático) já é debatida na música popular muito antes da proposição de Sérgio Buarque de Holanda a respeito de uma inadequação entre aquilo que “nas origens da sociedade brasileira” programaticamente aspirávamos a ser e as possibilidades reais, materiais, geográficas daquilo que, de fato, poderíamos ser.

Em Triste fim de Policarpo Quaresma, Lima Barreto nos dá a prova cabal dessa imbricação entre construção da identidade nacional e música popular, viva desde os primórdios da República. Materializada na figura do compositor, cantor e violonista Ricardo Coração dos Outros, personagem documentadamente inspirado no consagrado artista Catulo da Paixão Cearense, as virtudes e contradições de um projeto cultural aos moldes do que mais tarde virá a ser conhecido como nacional-popular são habilmente exploradas pelo escritor, num movimento pendular que inclina-se tanto para o lado de desqualificar a empreitada de Ricardo (problematizando-a quase a ponto de torná-la ridícula), quanto se deixando enredar pelo charme e afeto do músico-artífice (quase a ponto de se deixar cooptar).

No livro de Lima, Coração-dos-Outros é um artista absolutamente apaixonado pelo gênero denominado “Modinha”. O estilo musical, que mobiliza por inteiro a força de seus afetos, impulsiona-o rumo a um ideal claro e transparente: dar forma à alma brasileira ou, nas palavras do Major Policarpo, refletir “a mais genuína expressão da poesia nacional”.  Sarcasmos à parte, não cairei neste artigo na tentação de repetir a operação que – com muito mais perícia e carinho do que a imensa maioria de trabalhos sobre este livro que já me deparei em minhas leituras – o escritor levou a termo: a denúncia do quanto de histriônico existe no recorte do nacional; do tanto de voluntarismo presente no desejo de apontar o autóctone; ou da falta de critérios para julgarmos quando um processo histórico pode definir a solidificação de manifestações artísticas sempre moventes. Prefiro, em vez disso, focar minha atenção na investigação dos processos sociais que legitimam tais narrativas, nas estratégias discursivas que as sustentam e nos argumentos de ordem estética que fundamentam tais escolhas.

Portanto, ao invés de me colocar em contrapelo a essa ou àquela narrativa, desejo investigar de que modo acontecem esses recortes, pois acredito que, boa parte das vezes, dentro do contexto histórico da música popular e da canção, não foi apenas por veleidade oportunista de um punhado de “formadores de opinião” que as narrativas culturais nasceram, cresceram e ganharam fôlego. A bem da verdade, muitas das narrativas sedimentadas na descrição histórica da música popular (por exemplo: a que coloca o choro como uma das matrizes fundadoras da música popular brasileira ou atribui ao samba a capacidade de “encarnar” o Brasil urbano-popular) recuperam processos históricos reais, profundos e legítimos, cuja deslegitimação, embora em um primeiro momento possa ter parecido democratizante, quando não vem acompanhada de rigor histórico, serve apenas para emprestar fôlego a um elã universalizante e conservador, para quem toda especificidade do desenvolvimento cultural e artístico do Brasil não passaria de um delírio sociológico (ou pior, um recorte folclorista), cujo objetivo precípuo seria, em última análise, disfarçar nossa suposta mediocridade perante o concerto das nações.

Obviamente, não estou sustentando aqui que qualquer revisão histórica está eivada de intenções imperialistas (ou fascistas), mas afirmo sim que o revisionismo histórico baseado somente em voluntarismos, opiniões de gosto ou em um desejo mal disfarçado de criar um contracampo no qual o acadêmico contracampista assoma-se como figura de relevo serve aos piores interesses daqueles que, diferentemente de Sérgio Buarque de Holanda, parecem somente desejar “participar de um sistema de evolução próprio de outro clima e de outra paisagem”. Dito de outro modo, o que defendo sem tergiversação é que o ato de denunciar as arbitrariedades de tais narrativas sem apontar suas fragilidades – escorando-se tão somente no fato de tais narrativas haverem sido inventadas, como se alguma narrativa fundadora aqui ou em alhures não fosse uma construção social – é uma forma farsesca de transformar em mentira algo que, na medida do truísmo humano (baseado em evidências históricas impossíveis de serem provadas cientificamente), mostra-se verdadeiro. O que ocorre na realidade é que muitos dos acontecimentos históricos que se fixaram como narrativa na música popular brasileira não pagam tributo a uma operação metafísica que possa ser explicada pela remissão abstrata a algum marco fundador universal (como acontece em inúmeros discursos filosóficos e nos discursos artísticos ligados ao conceito fascista de “alta cultura”), eles são evidências de um embate de forças e vetores oriundos de um processo histórico ativo de sujeitos sociais os quais, mesmo em condição subalternizada, foram capazes de agenciar socialmente suas manifestações e fazê-las valer como símbolo de uma nação, seja pela sua força estética, seja pela resiliência combativa com que moldaram suas inserções culturais. Por certo que tais vitórias foram moldadas com alianças, cooptações, sincretismos e todas as modalidades estratégicas que constituem qualquer movimento político (mesmo que cultural), mas o fato é que tais empreitadas – contínuas e por vezes heroicas – acabaram por sedimentar no tecido social aquela costura inconsútil que, por falta de uma palavra melhor, chamamos de tradição.

Ao me colocar claramente em favor daqueles que reivindicam certos marcos fundadores na tradição da música brasileira, não nego que tais marcos fundadores constituam narrativas específicas criadas por determinados grupos sociais; o que rechaço é que se desautorize tais narrativas pelo simples fato de serem narrativas, como se qualquer atribuição de sentido, mesmo embasada no estudo de longos períodos de desenvolvimento histórico, fosse em si uma desonestidade intelectual. Defendo exatamente o oposto: há um alto grau de desonestidade intelectual em muitos discursos retóricos que, aparentemente, pretendem desconstruir narrativas embasadas em dinâmicas coletivas reais, a partir do argumento falacioso de que são discursos inventados: são discursos inventados apenas na medida em que qualquer discurso é uma construção; contudo, para vários desses mesmos acusadores basta haver um deslocamento espacial e geográfico (e passarmos a falar de Europa ou mesmo dos Estados Unidos) para ninguém duvidar de premissas como as de que o Blues e o Jazz são marcos fundadores do ethos musical norte-americano ou que certas modalidades de música de orquestra representam pilares artísticos próprios da cultura alemã, francesa, russa etc.

Bem aqui neste ponto, gostaria de propor uma digressão do debate teórico puramente conceitual para retornar ao mergulho empírico no clássico de Lima Barreto Triste fim de Policarpo Quaresma. Minha insistência no reexame dessa obra, escrita no início do século passado, mas cuja trama se desenrola no final do retrasado (no período seguinte à proclamação da República), deve-se ao fato de que já estavam colocadas ali, em formato de romance, muitas das questões que ainda hoje debatemos nas humanidades, o que leva a supor que, já em fins do século XIX, havia uma pulsante reflexão, ao menos em determinados setores da sociedade, a respeito do valor ou desvalia da ideia de brasilidade, identidade nacional, cultura local, música popular, cultura brasileira etc. Tal inferência denota, por conseguinte, que os espaços de poder concernentes a tais narrativas também já se encontravam em disputa. Daí, serem tantos os trechos do livro a demonstrar que o nacional-simbólico e a música popular já andavam de braços dados por esta época.

Para fins de exemplificação, começarei amalgamando alguns diálogos em que a importância da música popular na formação cultural do Brasil é reconhecida tanto pelos personagens principais (embora, por vezes, com distanciamento irônico do narrador), quanto questionadas pelos secundários. No exemplo inicial, vemos Adelaide, irmã do major Quaresma, questionando-o em razão de sua decisão de tomar lições de violão, o que, na visão dela, caracterizaria uma conduta moral duvidável. Em seguida, temos a resposta do major que, refutando tal acusação, defenderá a importância do instrumento e da modinha ancorando-se para tanto em seus valores nacionalistas:

– Policarpo, você precisa tomar juízo. Um homem de idade, com posição, respeitável, como você é, andar metido com esse seresteiro, um quase capadócio – não é bonito!

– É preconceito supor-se que todo homem que toca violão é um desclassificado. A modinha é a mais genuína expressão da poesia nacional e o violão é o instrumento que ela pede. Nós é que temos abandonado o gênero, mas ele já esteve em honra, em Lisboa, no século passado, com o Padre Caldas que teve um auditório de fidalgas. Beckford, um inglês, muito o elogia (grifos nossos) (Barreto, 1911, p. 11-12).

O trecho acima é uma condensação das questões fundamentais apresentadas nesse texto; explico por quê. Primeiramente, Policarpo associa um gênero de música, a modinha, ao conceito de “genuinidade”, que difere um pouco do conceito de “autenticidade”, pois enquanto autenticidade está ligada a ideia de originalidade – algo que é único, singular, raro – “genuinidade” aproxima-se da ideia de “tradição” – algo que, por meio de um processo de maturação social e cultural, passa a reunir os atributos necessários para simbolizar no imaginário uma projeção que guarda relação direta com o real. Embora ambas tragam em si a vontade de definir uma verdade objetiva, a diferença principal consiste no fato de que dizer que algo é genuíno implica necessariamente justificar historicamente o porquê. E é exatamente por essa razão que o major, logo em seguida a sua proposição a respeito do caráter genuíno da modinha, fará uma curta afirmação que traz em si o anteparo de uma pesquisa musicológica, etnográfica ou coisa que o valha. Domingos Caldas Barbosa, o “Padre Caldas”, foi de fato um personagem histórico do século XVIII. Cantor de modinhas, empunhava com sua viola de arame, trovas improvisadas que aproximavam o lundu da moda portuguesa e mesmo fundiam-nas, numa amálgama que foi muito apreciada pela corte portuguesa. Filho de um branco português com uma negra angolana, possuía formação acadêmica, tendo se sagrado mestre de Artes no Colégio dos Jesuítas, no Rio de Janeiro, e posteriormente mestre em Leis e Cânones pela Universidade de Coimbra. Boêmio inveterado gozou de vasta popularidade nas terras lusitanas, ajudando a disseminar o gênero em variadas camadas sociais, tornando-se, pois, o primeiro artista brasileiro a alcançar fama internacional e, ao mesmo tempo, um artífice inconteste e documento vivo do poder da tal gaia-ciência da canção de que nos fala José Miguel Wisnik, em seu livro Sem receita: ensaios e canções.

Dito de outro modo, Policarpo não escolhe o gênero que lhe dá na veneta para designar como genuíno: escolhe a historicizada, antropofagicizada e longeva modinha. O personagem escolhe como seu arquétipo de brasilidade um tipo de música que, nas palavras de Mozart do Araújo, deixou “aos poucos a luz dos candelabros, para se expandir sob o céu das noites enluaradas. E desprezava o contraponto do cravo, pelo contracanto dos baixos melódicos dos violões seresteiros”. Se pensarmos que esse “aos poucos” foi um período de dois séculos, durante o qual a modinha – que recebe esse nome, aliás, na Bahia – conseguiu, em meio a tantas influências (a moda portuguesa e o lundu principalmente, mas também a ópera italiana e até a valsa) se estabilizar como gênero; concluiremos que não há nada de absurdo, aleatório ou arbitrário na reivindicação de Quaresma. O que parece haver, já naquele momento, é uma disputa pela narratividade mais adequada a este ou aquele projeto de Brasil, que precisará, exatamente como estratégia de poder, deslegitimar outras narrativas para então substituí-las no campo das ideias. Assim, se há alguma contradição a ser apontada no pensamento de Policarpo não é certamente o recorte que ele faz da modinha como um gênero nacional, e sim sua hesitação em aceitar o valor estético da modinha em sua especificidade, sem precisar recorrer a “valores pretensamente universais” para legitimá-la. Senão, vejamos:

Quaresma estivera muito tempo a meditar qual seria a expressão poético-musical característica da alma nacional. Consultou historiadores, cronistas e filósofos e adquiriu certeza que era a modinha acompanhada pelo violão. Seguro dessa verdade, não teve dúvidas: tratou de aprender o instrumento genuinamente brasileiro e entrar nos segredos da modinha. Estava nisso tudo a quo, mas procurou saber quem era o primeiro executor e cantor da cidade e tomou lições com ele. O seu fim era disciplinar a modinha e tirar dela um forte motivo original de arte (grifos nossos) (Barreto, 1911, p. 31).

Aqui sim, vemos um Quaresma colonizado (talvez um Lima colonizado?) que nos remete à citação de Sérgio Buarque de Holanda, na epígrafe deste trabalho. Disciplinar a modinha não seria, pois, aplicá-la no positivismo branco de Comte, tão em voga em fins do século XIX, subtraindo-a de seu componente mais negro, “deslundunizando-a”, tornando-a mais branca, mais europeia novamente? Será que neste momento nosso herói nacionalista não está exatamente querendo adequar o gênero, que se abrasileirou na fusão de modalidades musicais díspares, em “um forte motivo original de arte” (leia-se arte europeia)? Mais uma vez meu pensamento reafirma uma das forças propulsoras deste trabalho: a atitude contraditória do major reafirma a potência de verdade da narrativa histórica que reconhece a modinha como um gênero nacional, um marco fundador, pois é justamente porque nos sentimos uns “desterrados em nossa terra”, que não conseguimos aceitar quando algo que fazemos coletivamente, ao longo do tempo, adquire uma singularidade que parece não “participar de um sistema de evolução próprio de outro clima e de outra paisagem”.

Ao me propor a escrever o texto que ora redijo, afastando-me um pouco do meu mote de estudo principal que gira sobretudo e com imenso prazer em torno da voz, da vocalidade, da interface música e palavra etc. é porque me incomoda sobremaneira o fato de ainda termos dificuldade para aceitar a responsabilidade de convivermos com um passado histórico, uma tradição. Muitas vezes me deparo com textos que, sem uma pesquisa robusta ou um argumento concreto, desejam, simplesmente por veleidade do autor (ou por uma paradoxal iconoclastia conservadora) derrubar, desconstruir, deslegitimar processos que representaram no plano individual lutas pessoais de vida ou morte; nas dinâmicas coletivas agenciamentos extremamente custosos; no contexto de um país racista como somos dificuldades transpostas a duras penas. O Choro Negro (saravá Paulinho da Viola) do maestro Anacleto de Medeiros, do virtuoso Irineu de Almeida, do mestre dos mestres Pixinguinha não pode, de uma hora para outra, numa canetada e sem maiores explicações, ser transformada em música branca por brancos que não gostam de fixar raízes, porque se sentem aprisionados por dinâmicas sociais que lhes ultrapassam. Do mesmo modo, o samba como identidade nacional não deve virar, somente em razão de uma autoadulação intelectual, um projeto modernista, abraçado politicamente por Getúlio Vargas. O que proponho ao longo deste texto é uma operação intelectual inversa: pensarmos se não foi a negritude do choro que domesticou a música branca. Se não foi a força estética do samba e a capacidade de seus artífices de fazerem valer suas estratégias de inserção que motivaram os modernistas e intelectuais a posteriormente escolher o samba como objeto privilegiado de seus projetos de construção de Brasil.

Ao contrário do que possa parecer, não estou discutindo essas coisas por achar que devamos andar por aí “cultivando tradição embalsamada”, como diria Tom Zé. A razão pela qual me remonto ao período-chave do início da República e do século XX é que nesta janela de duas décadas as contradições de se inventar um país pós-colonial e periférico aparecem com toda força. O livro de Lima é um meta-livro no sentido de, ainda no olho do furacão e em meio ao processo de construção de uma identidade nacional, lançar-se em uma reflexão ferina sobre o próprio processo em andamento. Contudo, a ambiguidade reflexiva presente no livro foi completamente abandonada no imaginário de nós leitores: Triste fim de Policarpo Quaresma aparece sempre apenas em sua primeira faceta, como crítica a um nacionalismo ingênuo (o que de fato é) mas nunca em sua segunda faceta, como denúncia das mazelas, fraqueza e desmandos que impedem, no plano do real, a sólida fixação de uma imagem simbólica de país com a qual possamos lidar de maneira menos traumática e mais bem resolvida.

Daí a razão de ser deste artigo, sua principal motivação: contribuir para um debate acerca dessa dificuldade do intelectual brasileiro (e quiçá também do não intelectual) em se olhar no espelho da história e ser capaz de lidar com o próprio reflexo. Tal dificuldade acaba provocando o desejo incontrolável, maníaco e incessante de trocar (ou quebrar) o vidro do espelho apenas para não ter de lidar com a imagem refletida. Seria desnecessário dizer, mas digo, que a imagem no espelho não é o verdadeiro ser refletido; porém tampouco a quebra do espelho (ou sua troca por outro menos acurado) resolverá o incômodo mental do sujeito que, narciso às avessas, não suporta perceber-se a si enquanto imagem (ainda que projeção), porque não tolera a dinâmica do real que o antecede.

Importa-me, pois, esse debate, embora não seja o meu foco principal nos estudos da canção – como pontuei acima, meu projeto principal é um estudo sincrônico das vocalidades na canção, seja no Brasil ou em qualquer outro país em que os atributos vocais me chamem atenção –, porque percebo que entramos definitivamente no século XXI e no terceiro milênio (não apenas cronologicamente mas de modo definitivo e irrevogável nas formas de se relacionar, consumir e se dispor do corpo, no mundo do trabalho e do lazer). No campo da cultura, após quase duas décadas de muito revisionismo, histeria retrô e uma quase obsessão por passar a limpo o século XX (materializada de muitas maneiras no campo cultural), parece-me que as experiências com as novas formas de sociabilidade (não tão novas para o tempo tecnológico, mas novas do ponto de vista histórico) finalmente estão se impondo de modo definitivo, inviabilizando antigos paradigmas para construir outros (nem de todo bons, nem de todo maus, contudo, diversos).

Hoje, as informações culturais encontram-se na web à disposição de quem delas quiser dispor, em quantidade quase ilimitada, mas a forma de procurá-las na rede mundial e o interesse que despertam (e, portanto, a relevância que possuem) não são simplesmente franqueadas a um ser-humano-tábula-rasa, que faz escolhas livres e conscientes, a partir de um grande cardápio de bens culturais que lhe é oferecido. A coisa é bem mais complexa. Mais uma vez as narrativas disputam espaços de forma estratégica impulsionando conteúdos simbólicos que representam determinadas matrizes culturais mais do que outras e não me parece justo nem honesto afirmar que há um equilíbrio de culturas na produção e difusão de tais conteúdos (isso para não entrar no debate acerca das origens nacionais das plataformas digitais mais acessadas do mundo). A influência dos algoritmos sobre as escolhas estéticas e os modos de transitar na rede já são parte vital de nossa vida cotidiana e ninguém mais que seja minimamente informado pode negar sua importância ou apostar em uma suposta aleatoriedade/neutralidade digital. A aceleração do fluxo de informações e seus novos regimes de distribuição são parte de um enorme processo de mudanças sociais genericamente (e um tanto esmaecidamente) denominado globalização, que interfere tanto nas relações individuais quanto nas construções culturais (o que implica dizer que estamos a reconstruir de maneira radical a nossa imagem simbólica para trás e para frente). Nesse contexto, em que as referências culturais tradicionais, sobretudo as periféricas se enfraquecem e se diluem, perdidas num mar de informações que, longe de boiar no éden, são agenciadas algoritmicamente por superempresas como a Google, o Facebook, a Amazon etc., a especificidade cultural da canção popular no Brasil e o manancial de conhecimento (e sedução) que elas evocam/provocam representam uma possibilidade (sutil mas existente) de desafinar o cybercoro dos neocontentes, matizando outras paisagens com tons randomizados que não fazem parte da palheta das cores eleitas.

Assim, do mesmo modo que está “léguas de ser um projeto que eleve à perfeição o tipo de civilização que representamos (se é que representamos alguma fora esta)”, este exemplo multifacetado de desenvolvimento cultural repleto de especificidades, que alcunhamos com o signo “música popular brasileira”, também está longe de ser um projeto cultural irrelevante, ou mesmo tão somente um patrimônio nacional confinado ao século XX, que possamos seguir brincando de desconstruir, relativizar e em última instância “deixar pra lá”, como se nenhuma contribuição oferecesse para a cultura mundial.  A música popular brasileira é tanto uma matriz de conhecimentos individuais agenciados social e economicamente, quanto a contribuição cultural de uma miríade de artistas, pensadores e público para um projeto coletivo de país.

Pixinguinha, João da Baiana e Donga. Foto de Alberto Jacob Fonte: https://radiobatuta.com.br/programa/donga-e-joao-da-baiana/

Elaborada em sua concretude pelos músicos, ouvintes, produtores, empresários que, mesmo em constante embate e tensão, conseguiram alcançar um ponto de equilíbrio que tornou possível, cerca de 40 anos apenas após a abolição da escravatura no Brasil, viabilizar um complexo sistema de comunicação e arte que reuniu indústria fonográfica e radiodifusão, a música popular brasileira esteve, continuamente e sem jamais perder sua força, atrelada, durante todo o desenvolvimento da república, à ideia de construção de uma identidade (ou de identidades) nacional(ais) repleta(s) de especificidade.

Empreendedores como Frederico Figner, fundador das casas Edison (loja de venda de discos, partituras, artigos eletrônicos e primeira gravadora da América Latina) e mais tarde da Odeon, primeira fábrica de discos do país, deram o pontapé inicial para o surgimento do negócio fonográfico ainda na primeira década do século XX. Se pensarmos que o Brasil daquela época não era mais que um grande exportador de café e que o fonógrafo havia sido patenteado por Thomas Edison somente em 1878, perceberemos que não era uma consequência óbvia de nosso desenvolvimento econômico darmos início a um processo industrial de veiculação musical. É mais curioso ainda, se atentamos para o fato de que que as primeiras gravações fonográficas no Brasil optaram pela produção local, não apenas com músicos locais (o que por si só poderia indicar mais falta de mão-de-obra qualificada do que interesse em privilegiar o autóctone), mas com composições locais. O que, para leitores desinformados pode parecer um mero acidente, em meu entendimento demonstra o “aproveitamento ótimo” de um emaranhado cultural que contava com uma teia já bastante avançada de músicos profissionais e semiprofissionais; e de um público que os prestigiava nos cafés, saraus, festas populares e concertos.

Conquanto eivada de contradições, apropriações e disputas, podemos, ainda assim, perceber na própria estrutura do mercado musical brasileiro e seu desenvolvimento uma porosidade que, mesmo léguas de ser justa e irrestrita, foi durante décadas mais permeável às classes populares do que a imensa outra gama de atividades econômicas (se citarmos as culturais então, como o cinema, a literatura, as artes plásticas nem se fala) que se desenvolveram no Brasil. Desde muito cedo essa porosidade foi percebida por músicos populares e artistas como Donga, João da Baiana, Pixinguinha e uma boa parte dos sambistas e chorões pertencentes às classes média-baixa e classes pobres (mas não miseráveis) que se tornaram sujeitos ativos, como percebido por Muniz Sodré, de uma movimentação estratégica (se é que não poderíamos chamar de movimento) de inserção no mercado nascente. A anedota verídica envolvendo o pandeiro de João da Baiana (autografado pelo senador-general Pinheiro Machado, evitando assim o confisco do instrumento nas constantes batidas policiais), a batalha em torno da autoria de “Pelo telefone”, a busca incessante de Pixinguinha e de muitos outros compositores e arranjadores em alcançar formatos de regionais e formas de arranjo que se coadunassem com o espaço radiofônico mostram que o campo de trabalho para a música popular permitiu, em dado momento, que grupos subalternizados agenciassem uma ocupação de espaço, até então inédita, no tecido cultural brasileiro.

Sem querer me arvorar (mesmo porque seria ridículo) a dar uma “palavra final” sobre um processo histórico-cultural complexo e, portanto, sempre vulnerável à construção de narrativas múltiplas, ponho minha “cara a tapa”, como se diz popularmente, para desafiar os pares que ainda se dedicam ao tema a se deixar transpassar pelo afeto e pela vontade de construir narrativas responsáveis no campo dos estudos da canção, que sirvam de inspiração para as novas gerações.  Não há motivo para taparmos o próprio sol com uma peneira rasgada: a canção no Brasil foi, digo e repito, senão a melhor, uma das melhores, mais contínuas e mais sólidas construções artísticas que conseguimos levar a cabo até hoje. E continua a ser, em pleno século XXI, uma contribuição original (e de fôlego) ao caótico (des)concerto das nações.


* Formado em Comunicação pela UFRJ, Gustavo Sant’Anna (Mouro) é cancionista e doutorando em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela PUC-Rio. Mestre em Letras, também pela PUC-Rio, sua dissertação de mestrado A insurreição da voz tem lançamento em formato livro previsto para março de 2019. Em sua pesquisa, o autor/compositor investiga os elementos não-lexicais, todavia produtores de sentido dentro do campo da canção.

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dossiê
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ARNALDO ANTUNES, CAZUZA E O ROCK NO BRASIL

Resumo: Este artigo[1] tem como intuito analisar como duas figuras paradigmáticas do rock no Brasil – Cazuza e Arnaldo Antunes – constroem suas identidades artísticas em consonância com certas categorias simbólicas do assim chamado “rock brasileiro”. Tendo como pano de fundo a discussão da canção popular em contexto brasileiro pós-moderno, pretendemos observar como, no caso do “rock brasileiro”, também a canção popular tende a articular e mediar as culturas letrada e oral em uma perspectiva crítica de assimilação e reflexão da arte e da cultura.

Palavras-chave: Antropologia; música; arte; Cazuza; Arnaldo Antunes.

Abstract: This study aims to analize how two paradigmatic rock-and-roll Brazilian characters – Cazuza and Arnaldo Antunes – have built their artistic identities based on some symbolic categories of the “Brazilian rock”. Relating this “brazilian rock”, we also intend to observe how the urban popular songs tend to articulate and mediate literary and oral cultures in a critical perspective of assimilation and reflection of art and culture.

Keywords: Anthropology, music; art; Cazuza; Arnaldo Antunes.

O rock and roll não é somente um estilo de música, como também uma forma ativa que solicita de seus ouvintes certas formas de ser, estar e enxergar o mundo. Catarse urbana a expulsar, irremediavelmente, toda previsibilidade cotidiana, o rock transmuta seus berros primitivos em uma língua própria compartilhada por alguma multidão eletrificada. Por ser um gênero musical urbano e um ritmo universal, em sua construção, o rock trabalha com o amálgama de ritmos, gêneros e meios. Nesse sentido, muito da miscelânea do rock and roll vem da miscigenação do blues, das músicas de trabalho (a kind of blue), do beebop, do hardbop, do cooljazz, do rockabilly até chegar a esta música urbana capaz de expandir e ampliar novos elementos numa forma nova de perspectivar o mundo. O folclore urbano do rock se comunica com as cidades e suas tecnologias modernas, impondo sua estranheza em qualquer lugar por onde ressoe; nos espaços por onde os homens dialogam com os deuses e constroem seus destinos.

Devido ao seu alcance mundial, gerado “quase sem origem” e conquistado através de uma gíria universal, o rock pode ser referido como uma música do planeta Terra. Nesse sentido, Augusto de Campos (1968, p. 142) realça a intercomunicabilidade universal do rock and roll como a representação de um movimento artístico internacional. Como exemplo de tal incorporação, Campos afirma que, no caso do rock, foram os Beatles os primeiros a realizar a fusão entre o erudito e o popular, sendo que, ao mesmo tempo em que estavam nos meios de massa, também se comunicavam com músicos de vanguarda (como John Cage e Stockhausen), através das orquestrações de Georges Martin, unindo produção e consumo, laboratório e auditório, numa espécie própria de produssumo. Corroborando com leitura tal, o rock, fenômeno cosmopolita e mundial, deveria ser incorporado de maneira crítica à cultura brasileira, de modo estratégico contra a estreiteza dos exclusivismos nacionais.

Em vista disso, possivelmente uma leitura mais potencializadora do rock seja a que consiga vislumbrar nesta música um campo de trocas simbólicas não cristalizáveis por representações monológicas. Partindo de tal perspectiva crítica, este artigo tem como objeto de estudo a análise de certas narrativas remetentes ao universo brasileiro do rock and roll no século XX. Tendo como pano de fundo a discussão da canção popular em contexto brasileiro moderno e pós-moderno, pretendemos analisar certas narrativas paradigmáticas do rock and roll no Brasil até os anos de 1980. Sendo uma particularidade brasileira o amálgama entre alta e baixa culturas, no caso do rock brasileiro, também a canção popular tende a articular e mediar culturas letrada e oral.

Com suas blue notes, o rock and roll surge do blues rural adaptado pelas guitarras das cidades, fruto da decadência da canção popular norte-americana dos anos de 1950. O termo “rock and roll” foi utilizado pela primeira vez no blues “My baby she rocks me with a steady roll”, cantada por Big Joe Turner em 1922. Todavia, somente nomeado como gênero em 1952 (pelo disc-jóquei Alan Freed, em um programa radiofônico de Cleveland), o rock and roll principalmente se popularizou a partir de Elvis Presley que, com sua dança dionisíaca, sua voz negra e sua aparência branca, reuniu em suas primeiras apresentações o rythm and blues e o country and western, consolidando midiaticamente o estilo musical. Em sua primeira aparição televisiva, os pés e quadris de Elvis chocaram tanto o puritanismo norte-americano que as câmeras só focalizaram a parte de cima de seu corpo durante apresentação no programa de auditório de Ed Sulivan, em Nova Iorque, no dia 9 de setembro de 1956.

Tendo sido a trilha sonora da contracultura, o rock and roll dialoga com um novo tipo de dicção universal. Como observa Eric Hobsbawn (1996, p. 15), uma distinção crucial entre o jazz e o rock and roll é que o rock jamais foi uma música de minorias. Pelo seu caráter potencialmente internacional, ao ser assimilado por cada contexto cultural específico, o universo simbólico do rock tem por predisposição o diálogo entre meios culturais diversos. Multiplicado pela oralidade do blues, o rock pode ser lido como uma poética apropriativa de identidades que se fixam e se desfazem:

Rather than a cycle of authentic and coopted music, rock and roll exists as a fractured unity within differences of authenticity and cooptation that are defined in the construction of affective alliances and networks of affiliation. These alliances are always multiple and contradictory. […]. the history of rock and roll is read as a cycle of cooptation and renaissance in which rock and roll constantly protests against its own cooptation (Grossberg, 1997, p. 486-493).

Tendo isso em vista, levando em conta as múltiplas variações do termo rock and roll apontadas por Lawrence Grossberg (1997), parece inverossímil discorrer sobre uma sóideologia do rock. Mais auspicioso alude ser o caminho indicado por Júlio Barroso (1991) ao narrar o rock como uma música capaz de reunir fragmentos dispersos do cotidiano, antropofagizando-os em novas estratégias de reinvenção da liberdade:

Matriz da cultura e da arte, do samba e do rock, a árvore África não cessa de dar frutos. Lá se faz, hoje, um som violento e único, multifacetado e uno, raiz eterna projetada no futuro. […] Elvis, na verdade, era uma encarnação televisiva de Chuck Berry, que adentrou a sala de jantar da cultura ocidental, com seu gingado insolente que mudou os costumes de todas as futuras gerações. […] Suas raízes cada vez mais fincadas no solo compelem a humanidade em direção ao espaço interior e o exterior na busca dos arquétipos fundamentais, de onde a cultura viva emana, como um ato de testemunho da eternidade, a arte do agora. […] O rock é uma proposição de liberdade. Ele é a trilha sonora de uma época de mudanças globais, contestação a todo um sistema de valores, etc. Lógico: tudo sobre a década de 70 já foi dito, dez anos nos quais toda a experiência da humanidade foi repensada, da postura do corpo à alimentação, ideologia, religião, ciência. E tudo sobre o saudável signo da antropofagia e seu rebento máximo, o rock (Barroso, 1991, p. 92-135).

No Brasil, Nora Ney foi a primeira intérprete de “Rock around the clock”, mas o primeiro rock composto originalmente em português foi “Rock and roll em Copacabana”, cantado por Cauby Peixoto, em 1957. A seguir, surgiram os irmãos Tony e Celly Campello, com suas versões em português de rocks italianos. Por sua vez, os roqueiros da jovem guarda (também conhecida como iê-iê-iê), liderados por Wanderléia, Erasmo e Roberto Carlos, primeiramente cantaram versões traduzidas do inglês, até começarem a escrever músicas próprias para o gênero, apresentando-as no programa da TV Record com o nome homônimo de Jovem Guarda. Em tal época, as canções jovem-guardistas tratavam de temáticas juvenis. Será somente no fim dos anos 60 que, a partir de Raul Seixas, Os Mutantes e Secos e Molhados, surge uma tradição especificamente roqueira no Brasil. Tais manifestações do rock no Brasil serão potencializadas nos anos de 1980 através de um diálogo ampliado entre a literatura e a música popular. Como observado por Arthur Dapieve (em entrevista que me concedeu em 2004), o rock que se desenvolveu no país ao longo da década de 80 foi catalisador de diversas linguagens – entre elas, marcadamente a literária:

Assim como afirma Cazuza, o rock só deixou de ser subproduto quando outros públicos perceberam que o rock dos anos 80 não era um decalque do rock inglês e americano. Não se tratava de uma música feita por adolescentes inconsequentes, mas sim de um movimento que possuía identidade própria. Quem ouvia Arnaldo Antunes e Renato Russo, podia notar ali um grande interesse pelo trabalho da palavra escrita. Que mesmo sem misturar com samba, este rock era música brasileira, devido às letras em português. […]. O BRock foi um movimento político e intelectual. Essa injeção de intelectualidade permitiu que o rock de qualidade não mais fosse feito isoladamente, como era o caso do Raul Seixas e Mutantes, mas que possuísse uma integridade. Foi excludente de um lado, mas positivo do outro. Positivo porque possuía conteúdo intelectual, como o concretismo de Arnaldo Antunes, as influências beatniks de Cazuza, ou a admiração que Renato Russo possuía por Carlos Drummond. E virou popular ao atingir veiculação nos meios de massa. […]. Quando eu primeiro me utilizei da sigla em matéria, no Jornal do Brasil, não pensava em Mutantes ou Raul Seixas. Mas sim, no rock que começou a ser feito a partir do Júlio Barroso e a Gang 90, e depois com a Blitz. Essas foram as duas bandas que iniciaram o BRock. […]. Quando utilizei esse termo, tinha em mente uma afeição gráfica, em que o BRock significaria: ‘O rock é nosso’. Assim como a Petrobrás possui o slogan: ‘O petróleo é nosso’ (Dapieve apud Cavalcanti, 2010, p. 10).

Para Arthur Dapieve (1995), o rock brasileiro (ou BRock), enquanto movimento estético, terminou no dia da morte de seu maior protagonista, Cazuza:

Cazuza reunia todos os principais traços do roqueiro brasileiro da década de 80, os traços que definiram o próprio movimento […]. O que era então esse tal de BRock personificado em Agenor de Miranda Araújo Neto? Era o reflexo retardado no Brasil menos da música do que da atitude do movimento punk anglo-americano: do-it-yourself, faça-você-mesmo, ainda que não saiba tocar, ainda que não saiba cantar, pois o rock não é virtuoso. Era um novo rock brasileiro, curado da purple-haze psicodélica-progressiva dos anos 70, livre de letras metafóricas e do instrumental state-of-the-art, falando em português claro de coisas comuns ao pessoal de sua própria geração (Dapieve, 1995, p. 195).

Tendo no rock and roll um meio de dinamismo vital e existencial, Cazuza considerava esta expressão musical como um afluente de manifestações culturais de sentido ritualístico e transgressor:

O rock é a ideia da eterna juventude. Quando descobri o rock, descobri também que podia desbundar. O rock foi a maneira de eu me impor às pessoas sem ser o ‘gauche’ […]. O rock para mim não é só música, é atitude mesmo, é o novo! Quer coisa mais nova que o rock? O rock fervilha é uma coisa que nunca pode parar. O rock não é uma lagoa, é um rio. O rock é a vingança dos escravos. É porque não é para ser ouvido, é para ser dançado, é uma coisa tribal (Cazuza apud Araújo, 1997, p. 361).

Por outro lado, para Arnaldo Antunes (outro protagonista do BRock), o rock pode ser lido como uma presentidade que beira as margens do inclassificável:

É muito difícil definir o rock hoje. Qualquer generalização classificatória parece insuficiente. O rock é um rio de muitos afluentes. Heavy rockabilly punk tecno hardcore pop rhythm and blues progressivo new wave psicodélico ye ye ye black metal and roll. Muitos grupos que se formam e/ou se extinguem diariamente. Fusões com reggae funk blues soul samba jazz. Nada disso satisfaz. Só uma coisa permanece e permite que continuemos chamando-o de. Uma coisa que não está no som. Está na sede. O rock tem urgência de agora. Presentidade. Vitalidade que assassina a memória. Por isso é tão difícil catalogar. Dicionarizar. Compartimentar. Ao mesmo tempo em que essa impossibilidade se exibe, sentimos que há uma tradição a não passar impune. Onde o passado vale por manter vivo o eterno presente. Só queremos que se faça uma cultura de rock no Brasil se for assim. Não para sedimentar, mas para clarear. Uma cultura que se mova com a mesma agilidade do seu objeto. […]. Não pelo poder paralisador da história, mas pela diversidade simultânea de seus agoras. Não pelo caminho em linha reta, mas pelo registro de seus desvios e fragmentos. Tentativa de fazer o possível, uma vez que o impossível é responsabilidade do som (Antunes, 2000, p. 40).

Utilizando linguagens heterogêneas, entre elas a roqueira, Arnaldo Antunes e Cazuza atuam como intérpretes que se distanciam de um modelo usual de compositor popular, remetendo à um diálogo intertextual entre poesia e música produzido no Brasil, especialmente a partir do disco-manifesto Tropicália ou Panis et circensis (1968). De modo experimental e difuso, os integrantes da Tropicália eram divergentes à oposição entre o rock e a moderna música popular brasileira, operando em ambas as frentes. Enquanto coletivo programático, o tropicalismo foi enterrado simbolicamente pela banda Os Mutantes no programa televisivo Divino Maravilhoso, da TV Tupi, apresentado por Caetano Veloso e Gilberto Gil, na véspera do natal de 1968. Todavia, seus procedimentos continuaram influenciando certas representações da música popular brasileira e do rock produzidono Brasil.

Como aponta Celso Favaretto (1979, p. 18), o tropicalismo foi responsável por efetuar na cultura brasileira a autonomia da canção, realizando a síntese de música e poesia, relação que vinha se fazendo desde o modernismo, embora raramente conseguida, pois a ênfase recaía ora sobre o texto, ora sobre a melodia. Rompendo com certa noção tradicional de canção, os tropicalistas passaram a incorporar o happening e a performance dentro do formato cancioneiro através da inserção corporal do artista como uma espécie de escultura viva capaz de assumir radicalmente o palco através de máscaras diversas. Por ser inseparavelmente musical e verbal – como não é poema musicado, o texto não pode ser examinado em si, independente da melodia –, a canção tropicalista pode ser referida como uma espécie arquetípica de intertextualidade extrema.

Como observa Santuza Cambraia Naves (2001, p. 51), os tropicalistas levam a intertextualidade – a prática de aludir em suas canções a outros textos poéticos ou musicais – às últimas consequências, transformando-a em fundamento de um projeto estético. Nas letras fragmentadas e polifônicas tropicalistas, a ausência de um discurso principal e linear é substituído por impressões e colagens que filtram o país em fragmentos alegóricos e simultâneos. Com indumentária roqueira, os tropicalistas buscam ressignificar termos como “autêntico” e “nacional”, indo contra uma busca por raízes populares de uma arte militante representada pela sigla MMPB (“Moderna Música Popular Brasileira”).Transitando da paródia ao pastiche, certa atitude tropicalista passa a permear o universo da música popular brasileira desde 1968. Como sugere Luiz Tatit (2007, p. 131), através de uma visão de mundo tropicalista, o modo de ser do cantor e do compositor e sua circunstância de produção passam a ter tanta ou mais importância que a própria canção.

Em paralelo, no âmbito do rock, cada música é irredutível à sua melodia e à sua letra. Potencialmente performático e intertextual, o rock trabalha com amálgamas de estranhamentos, mesclando outras linguagens à sua. Partindo dos Estados Unidos dos anos de 1960, através do folk eletrificado de Bob Dylan, a música popular passa a articular e mediar o erudito e o letrado na cultura de massa. Apropriando-se do nome do poeta gaulês Dylan Thomas, Bob Dylan se inscreve numa tradição trovadoresca de ênfase na palavra cantada e entoada. Nutrindo-se da indústria cultural, ao mesmo tempo em que sorri sobre o cadáver desta, o canto dylanesco pode ser aludido como uma espécie de reconquista da poesia para além dos significados estritos de suas letras. Não por acaso, o poeta beat Lawrence Ferlinghetti tenha certa vez comparado as canções dylanescas com extensas colagens surrealistas (Sounes, 2006, p. 140).

Contra a ideia de um público imparcial e de uma plateia desinteressada, o universo simbólico do rock and roll é marcado por uma premissa basilar de estranhamento ritual. Invariavelmente performativo, o universo roqueiro pode ser aproximado de uma esfera provocativa teatral análoga ao Teatro da Crueldade de Antonin Artaud, como propõe Arnaldo Antunes numa entrevista:

Eu acho que tem uma coisa do Artaud do Teatro da Crueldade de uma certa potência associada a você provocar o público, de certa forma procurar empatia com uma postura invocada, eu acho que o rock and roll tem um pouco a ver com isso. Bob Dylan fez muito isso, tem aquela coisa de ele fazer canções com violão em uma linha mais folk de música de protesto e de repente ele pegou a guitarra, aquilo era uma agressão. Tinha um show dele em que ele tocava metade do show no violão e depois pegava a guitarra e o público antigo que gostava das canções no violão vaiava no meio do show a segunda parte, era uma provocação. […]. Acho que o rock é uma linguagem de muita urgência, muita intensidade… (Abujamra, 2008).

A propósito da ligação entre o rock e o teatro, é relevante observar que Jim Morrison, antes do The Doors, teve formação teatral em sua graduação na UCLA, concluída em 1965. Através de afãs dionisíacos e selvagens, Morrison construiu seu personagem agressivo e libertário dentro do palco através de releituras e reapropriações das adaptações do grupo Living Theatre do Teatro da Crueldade de Antonin Artaud. Sobre a ligação entre o universo da poesia e a linguagem roqueira, sendo a esfera performática que permeia o rock convergente com um teatro artaudiano da crueldade, é interessante observar que significação a crueldadetem para Artaud e como tal termo pode ser relacionado com o universo performático e corpóreo do rock:

Não se trata, nessa Crueldade, nem de sadismo, nem de sangue, pelo menos de modo exclusivo. Não cultivo sistematicamente o horror. A palavra crueldade deve ser considerada num sentido amplo e não no sentido material e rapace que geralmente lhe é atribuído. […]. Do ponto de vista do espírito, a crueldade significa rigor, aplicação e decisão implacáveis, determinação irreversível, absoluta. […]. crueldade não é sinônimo de sangue derramado, de carne martirizada, de inimigo crucificado […]. A crueldade é antes de mais nada lúcida, é uma espécie de direção rígida, submissão à necessidade. Não há crueldade sem consciência, sem uma espécie de consciência aplicada. É a consciência que dá ao exercício de todo ato da vida sua cor de sangue, sua nuance cruel, pois está claro que a vida é sempre a morte de alguém. […]. Uso a palavra crueldade no sentido de apetite de vida, de rigor cósmico e de necessidade implacável, no sentido gnóstico de turbilhão de vida que devora as trevas (Artaud, 2006, p.117-119).

Nesse sentido, em acepção próxima à idealizado por Artaud, é possível pensar numa relação de inevitabilidade performática do rock and roll com certa urgência de mundo. Idealizador da crueldade como técnica teatral, o que Artaud propõe é um tipo de teatro plástico capaz de buscar sua própria magia através da participação ativa do espectador na cena que observa. Diante de desafio tal, Artaud visa construir um teatro primitivo que contenha o drama essencial da linguagem e questione, assim, o lugar poético do homem moderno na realidade que o circunda. Propondo a continuidade entre a vida e o teatro, sua definição vital passa por uma concepção antiformalista capaz de reunir espírito e corpo, exigindo que o homem moderno assuma uma posição de ator, não mais sendo mero objeto de sua cultura. Seguindo perspectiva tal, Arnaldo Antunes aponta a importância de uma simbologia ágil roqueira capaz de por sempre reivindicar novas definições. Tal simbologia pode ser aludida através de Jimi Hendrix colocando fogo em sua guitarra:

O rock (considerado no sentido mais amplo do termo) não é música para ser apenas ouvida. É música associada à dança, cena, atitude, performance, comportamento. Hendrix punha fogo na guitarra. […]. O rock assim como as manifestações artísticas que efetivam a interação de códigos, parece nos remeter, dentro do mundo tecnologizado, a um estado mais primitivo. Como nas tribos, onde a música, associada à dança, cumpre sempre uma função vital-religiosa, curativa, guerreira, de iniciação ou para chamar chuva. Essa inocência já foi perdida (o tempo do homem criou a música para ser ouvida, as artes plásticas para serem vistas, a arte para representar a vida). Mas temos outras. Hendrix punha fogo na guitarra. Esse fogo está solto (Antunes, 2006, p. 46-47).

Tal provocação de Arnaldo Antunes possui referências intertextuais com certa leitura do artista plástico Hélio Oiticica sobre o rock como uma linguagem de seu tempo que, mais do que um gênero musical, pode ser associada à um ritmo de vida e uma forma sempre atual e corpórea de percepção do mundo:

A meu ver só existe rock. Tudo é o ritmo, a música. Eu acho que a música não é uma das artes. A música é a maneira de você ver o mundo, de você abordá-lo. É a única maneira que eu entendo, e isso diz respeito a toda uma fase de descobertas minhas […] o ROCK p. ex. se tornou o mais importante para minha posta em xeque dos problemas-chave da criação […] o ROCK é a síntese planetário-fenomenal dessa descoberta do corpo q se sintetiza no novo conceito de MÚSICA como totalidade-mundo criativa em emergência hoje: JIMI HENDRIX DYLAN e os STONES são mais importantes para a compreensão plástica da criação do q qualquer pintor depois de POLLOCK! (Hollanda, 1980, p. 68).

NÃO SERIA ESSA SÍNTESE MÚSICA TOTALIDADE PLÁSTICA A Q TERIAM CONDUZIDO EXPERIÊNCIAS TÃO DIVERSAS E RADICALMENTE RICAS NA ARTE DA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO QUANTO AS DE MALEVITCH KLEE MONDRIAN BRANCUSI?: e porque é q a experiência de HENDRIX é tão próxima e faz pensar tanto em ARTAUD? (Braga, 2007, p. 193).

De modo análogo ao sugerido por Oiticica, também é possível pensar que o teatro universal do rock and roll visa a sensibilidade fisiológica de seu público. Sendo o rocktão norte-americano quanto africano, é possível pensar numa estranheza selvagem e bárbara que perpassa a simbologia universal roqueira. Se a África pode ser aludida como o berço de toda cultura do rock, a transculturalidade é o seu princípio condutor de aproximação com uma linguagem dimensionada para além das línguas e dos conceitos. Não por força ideológica, mas por razão de vida, para Paul Gilroy (2001), a África pode ser referida como um manancial de ficções, uma figura de linguagem capaz de convocar todos os povos desprivilegiados da terra e todos os malditos do planeta. Partindo da noção de que a música negra não pode ser reduzida a uma comunidade racial imutável, a África de Gilroy é ficcional – disposta como uma questão, mas não uma questão em si – e simbolicamente reconstruída em embate com os mercados das conveniências ontológicas. Entendida não como uma identidade fixa e essencialista, mas, antes, como um conceito sempre em reconstrução, passa a ser possível pensar numa analogia da África distante da imutabilidade de uma essência.

De modo análogo, também o etnógrafo e o poeta surrealista Michel Leiris, em África fantasma (2007 [1934]), produz uma leitura espectral da África como um continente ficcional e fantasma, potencialmente avesso a qualquer território ontológico. Em paralelo, próxima da África de Leris e Gilroy, propomos neste artigo pensar, através de Cazuza e Arnaldo Antunes, numa perspectiva crítica de leitura do rock and roll não como um conceito essencialista, mas, antes, como um novo método de vitalidade sobre a cultura. Nesse sentido, propomos dimensionar o universo simbólico do rock brasileiro como uma espécie própria de bricolagem, ampliando, assim, a discussão proposta por Lawrence Grossberg (1997) ao argumentar que o rock n’ roll em muito se aproxima de uma bricolagem pós-moderna descontínua e fragmentária:

Rock and roll is a particular form of bricolage, a uniquely capitalist and post-modern practice. It functions in a constant play of incorporation and excorporation (both always occurring simultaneously), a contradictory cultural practice… […]. It plays with the very practice that the dominant culture uses to resist its resistance: incorporation and excorporation in a continuous dialectic that reproduces the very boundary of existence. […]. It celebrates the life of the refugee, the immigrant with no roots except those they can construct for themselves at the moment, constructions which will inevitably collapse around them. Rock and roll celebrates play – even despairing play – as the only possibility for survival […]. Both the future and the past appear increasingly irrelevant; history has collapsed into the present. […]. Rock and roll’s resistance – its politics – is neither a direct rejection of the dominant culture nor a utopian negation (fantasy) of structure of power. […].  Rock and roll emerges from and functions within the lives of those generations that have grown up in this post-war, post-modern context. It does not simply represent and respond to the experience of teenagers, not those of a particular class. It is not merely a music of the generation gap. It draws a line through that context by marking one particular historical appearance of the generation gap as a permanent one. […]. Unlike other forms of popular culture, the ‘post-modern politics’ of rock and roll undermines its claims to produce a stable affective formation. Rather, it participates in the production of temporary ‘affective alliances’ which celebrate their own instability (Grossberg, 1997, p. 478-486).

Tendo em vista tal potencialidade crítica do rock and roll como uma forma intrínseca e extrínseca de bricolagem inventiva, é importante dimensionar a etimologia do termo que nos interessa incorporar à esta discussão. O pensamento selvagem do bricoleur foi primeiramente caracterizado por Claude Lévi-Strauss (1989) como aquele que trabalha com a colagem de tradições já existentes. Em confrontação ao engenheiro moderno que articula percepção e conceito de modo a criar a partir de uma nova ideia um novo mundo (qual um demiurgo que erguesse algo a partir de um marco zero), o bricoleur opera com signos não subordinados a um só projeto de base. Como propõe Lévi-Strauss:

…a arte se insere a meio caminho entre o conhecimento científico e o pensamento mítico ou mágico, pois todo mundo sabe que o artista tem, ao mesmo tempo, algo do cientista e do bricoleur: com meios artesanais, ele elabora um objeto material que é também um objeto de conhecimento. O cientista cria fatos através de estruturas e o bricoleur cria estruturas através de fatos (Lévi-Strauss, 1989, p. 38).

Aproximada de tal perspectiva crítica, em analogia a tal paradigma de pensamento selvagem narrado por Lévis-Strauss através da figura do bricoleur, é possível observar em Cazuza e em Arnaldo Antunes uma predominância do pensamento nômade do bricoleur ao engenheiro moderno que controla todos os seus meios expressivos de produção; embora, em ambos, experimentalidade e apuro formal estejam presentes. Neles e através deles, o rock no Brasil ressoa como uma ebulição poética e selvática de contornos narrativos performáticos efetuados nas entrelinhas da cultura. Ambos suscitados pela dessacralização da obra de arte em época pós-moderna, Cazuza e Antunes, cada um à sua maneira, ampliam as tradições vivas do rock.

Tendo em vista que, para Merleau Ponty (2002), cada corpo representa um projeto sobre o mundo e cada movimento é imediatamente um conhecimento prático – uma teoria viva aberta para o mundo –, é relevante observar que o corpo de Arnaldo Antunes no palco se constrói como um catalisador de vários códigos, tais como poesia visual, prosa, letras de canções, performances e ensaios. Cantor, compositor, poeta e artista plástico, o condutor de sua obra é a palavra, muitas vezes sob um caráter primitivo e aproximativo de um olhar selvagem e iniciático. Buscando restituir as palavras às coisas, sua produção poética possui algo de um passado pré-babélico, primitivo e tribal que parte de uma relação que foi perdida pela civilização ocidental de um mundo dicionarizado.

Graduado em Linguística pela USP, músico, poeta e artista visual, Arnaldo Antunes integrou a banda Titãs de 1982 a 1992. Com uma formação atípica para uma banda de rock, com a maioria dos integrantes se revezando nos vocais, o Titãs trouxe para o rock no Brasil uma concepção de grupo que mais remete a um coletivo teatral do que a uma banda de rock. Em vista disso, não por acaso, o guitarrista Marcelo Fromer chegou a se referir ao Titãs não como um grupo de rock, mas como um “fenômeno de outra ordem sociológica” (Trotta, 1995, p. 5). A gênese formal do Titãs do Iê-Iê deu-se através das intersecções musicais provenientes da união de integrantes de três bandas distintas: Trio Mamão, Aguilar e Banda Performática e Os Camarões.[2]

Acervo Titãs, divulgação do álbum “Titãs”, 1984
Acervo Titãs, divulgação do álbum “Titãs”, 1984

Assumindo uma atitude que poderíamos designar de tropicalista, no sentido de confundir registros e incorporar os meios de massa em seus discursos, em sua formação inicial, o Titãs do Iê-Iê assumia para si a importância dos programas televisivos de auditório, bem como a valorização do kitsch em sua formação cultural. Sobre um prisma tropicalista, seus integrantes dialogam com a indústria televisiva no sentido de atrelar certas vinhetas de humor paródico à certa agressividade do punk. Potencializando a relação do rock brasileiro com o teatro, em seus primeiros álbuns, Titãs [1984] e Televisão [1985], o Titãs conciliava artifícios tropicalistas aos da new wave, indo do punk até o iê-iê-iê. Tal miscelânea de gêneros, somada à formação atípica para uma banda de rock, trazia ao grupo um senso de performance no palco que articulava métodos/procedimentos tropicalistas de incorporação de elementos estrangeiros com o Manifesto Antropófago (1928) de Oswald de Andrade,no sentido de pensar o “popularesco” e o “estrangeiro” como elementos constitutivos da cultura brasileira. Sendo a antropofagia defendida no manifesto oswaldiano como um método ameríndio de ingerir e devorar somente os inimigos mais inteligentes e os melhores combatentes, a fim de obter seus poderes em um processamento cultural que canibaliza o elemento estranho, Oswald sugere a ideia da identidade brasileira como fruto do amálgama de uma “boa” digestão, tal como a ocorrida através do ato inaugural de deglutição do Bispo Sardinha pelos índios.

Com o vigor vital de quem questiona todas as oposições lógicas de uma tradição, no terceiro disco da banda – Cabeça Dinossauro [1986] –, há uma combinação do elemento primitivo ao tecnológico, a começar, pela mistura de um elemento técnico da modernidade presente na palavra “Cabeça”, com um elemento pré-histórico e bárbaro presente em “Dinossauro”. Partindo de uma mistura do primitivo com o tecnológico à maneira anunciada por Oswald de Andrade (1978) no Manifesto da Poesia Pau-Brasil [1924] – principalmente na afirmação: “A poesia existe nos fatos” –, o Titãs realiza uma espécie própria de bricolagem sonoro-semântica de letras inconformistas e iconoclastas alusivas ao universo de despretensão estética do punk, mas que não rejeitam o apuro formal da canção.[3]

Por sua vez, no penúltimo álbum do Titãs com a participação de Arnaldo Antunes, Õ Blesq Blom [1989], o grupo retornou à aproximação tropicalista de narrativas fragmentárias relativas à incorporação da cultura popular ao universo estrangeiro do rock. A começar pela sua capa, Õ Blesq Blom foi composto através de bricolagens sonoras e urbanas, com a inclusão de vinhetas do casal de repentistas pernambucanos Mauro e Quitéria, descobertos pela banda na praia de Boa Viagem, em Recife, nos anos 1980; mesma cidade em que em menos de meia década depois ocorreriam as fusões rítmicas do Manguebeat (movimento musical recifense idealizado por Chico Science, Fred 04 e Jorge do Peixe no manifesto “Caranguejos sem cérebro” [1992], a partir de referência ao romance de Josué de Castro, Homens e Caranguejos [1967]).

Vinculada ao álbum Õ Blesq Blom,a música “O pulso” (composição de Arnaldo Antunes) trabalha com a quebra atonal de um círculo e de uma repetição propagada, estabelecendo o isomorfismo[4] entre música e letra, fundo e forma, dentro da esfera de uma canção roqueira produzida no Brasil. Tendo por busca desenvolver os conteúdos potenciais de uma dimensão verbivocovisual[5] da linguagem, “O pulso” faz alusão ao poema “Pulsar” de Augusto de Campos, musicado por Caetano Veloso no álbum Velô [1984]. Ao combinar certas doenças do corpo com certas doenças da alma, a letra de Arnaldo Antunes acaba por produzir um espaço sonoro em que o batimento interior de um corpo se correlaciona com o pulsar exterior de uma matéria.

De modo análogo, no mesmo Õ Blesq Blom, a letra da faixa “Palavras” (creditada a Sérgio Britto e Marcelo Fromer)  foi construída a partir de outra referência concretista: os versos “palavras são sombras / as sombras viram jogos”, que remetem à certa técnica combinatória elogiada por Haroldo de Campos, do livro Constelações [1953] de Eugen Gomringer: “palavras são sombras/ sombras tornam-se palavras. // palavras são jogos/ palavras tornam-se sombras. palavras são sombras / jogos tornam-se palavras. palavras são jogos/ sombras tornam-se palavras” (Campos & Pignatari, 2006, p. 203).

Operando com o artesanato da canção e pensando a cultura em termos de consumo midiático, é possível observar em certas letras de Arnaldo Antunes uma associação tropicalista de dissolução das fronteiras hierárquicas presentes em distinções culturais de termos como o erudito e opopular:

Tem essas diferentes vertentes que no caso de muitas pessoas se opõem, mas na minha formação elas se conjugaram e se atritaram de modo a criar curtos-circuitos que para mim são férteis. Um poeta que talvez fosse claro nesse sentido foi o Paulo Leminski, que chegava a minha casa de casaco de couro para ouvir um disco de rock do The Clash, mas era um sujeito que tinha uma cultura dos clássicos enorme. Era leitor de Homero, Dante, Camões, tinha um conhecimento da cultura oriental impressionante, dos poetas da antiguidade chinesa, dos haikais, da tradição da cultura zen ao mesmo tempo em que era faixa preta de judô. Ao mesmo tempo essa cultura clássica convivia e excitava nele o convívio com toda a contracultura, com toda a atitude comportamental irreverente, com a paixão pelo rock e tudo que cercava o universo do rock and roll, eu me sinto muito identificado com ele, nesse sentido (Antunes, 2008).

Bob Wolfenson, capa do álbum Um som [1998]
Bob Wolfenson, capa do álbum Um som [1998]

Para Antunes (2008), a seleção entre o fino e o grosso da cultura representa mais um ato de escolha do que somente uma mistura estratégica de fortalecimento identitário:

Isso de estudar literatura e fazer música, essas coisas andaram juntas desde muito cedo, de forma que essa divisão entre alta e baixa cultura não faz sentido para mim. […]. Claro, que eu não compactuo, nem um pouco, com a ideia de que poesia é diferente de letra de música por uma questão de valor estético. Que é como as pessoas mais preconceituosas querem separar as duas: uma linguagem mais pobre, ligada à cultura de massas; e outras de uma área mais intelectualizada, que é a área literária. Ao mesmo tempo, eu acho que são diferentes, sim. […] acho que existe essa questão da adequação a cada linguagem. Você criar uma peça para ser ouvida no rádio é uma coisa, para ser lida num livro é outra. É outro tempo, outra forma de absorção. […]. Há tempos atrás a poesia era mais veiculada ao cotidiano das pessoas e de certa forma a música popular herdou um pouco da tradição que a poesia tinha na antiguidade. Os poetas gregos e provençais, por exemplo, cantavam seus versos, aquilo era música também. Era uma poesia cantada, que hoje em dia a gente tem essas poesias nos livros e perde um pouco essa noção. De certa forma a canção popular passou a ser uma veiculação da palavra cantada e tomou esse papel de popularizar o convívio de algum trabalho poético cantado, mas a poesia dos livros foi se tornando muito minoritária no sentido de ter um público muito reduzido. Isso acho que não só no Brasil, mas em qualquer lugar do mundo. Tiveram aí vários fatores como a entrada avassaladora dos meios audiovisuais e inclusive a poesia se vale às vezes deles também.

Por sua vez, Cazuza não se considerava um poeta no sentido tradicional do termo, uma vez que sua aproximação com a literatura se dava principalmente através dos escritores beats, que buscavam promover a reintegração da poesia à fala. Crescendo em um contexto de efervescência cultural carioca, Cazuza teve como sua primeira atividade artística a prática de ator de uma oficina no Parque Lage do grupo teatral Asdrúbal Trouxe o Trombone[6], e, depois, no Circo Voador sob a direção de Perfeito Fortuna. O canto de Cazuza começa, portanto, incorporado à técnica teatral.

Primeiro cantor integrante da banda Barão Vermelho, Cazuza assume certa postura combativa do rock em suas performances vocais. Combinando rebeldia com boemia, nas narrativas de suas letras, o cantor propõe observar os bares do Baixo Leblon como um cronista faria em sua tribo. Inscrevendo-se, de certa forma, em certas tradições culturais subversivas, tais como a beat e a do rock and roll, Cazuzatoma de empréstimo certa noção romântica de um artista à margem do mundo, noturno e noir, para quem a noite conflui com a hora do artista:

Acho que o poeta é um insatisfeito. Então a noite, a vida noturna, a vida boêmia, da farra, são geralmente frequentadas por pessoas insatisfeitas… Acho que é a própria insatisfação do artista que o leva a ter uma vida desregrada… Você diz que eu sou poeta, mas eu me considero um letrista, gosto de falar que sou letrista, porque eu acho que tem uma distância entre poesia e música popular… […]. Eu tenho vários lados. O lado escuro é um lado muito forte, porque sou muito boêmio, vivo muito de noite. Gosto muito da noite, acho que ela é um espaço, um território livre para tudo. Não sei… a noite é muito dramática, muito bonita. As pessoas que saem na noite, procuram algo que na verdade não vão encontrar, mas elas curtem a procura […]. Tudo de noite é mais interessante. […]. Os marginais estão mais perto de Deus. Toda ovelha desgarrada ama mais, odeia mais, sente tudo mais intensamente, embora eu mesmo não me sinta assim. Talvez eu seja mais burguês do que transmito em minhas músicas. Eu convivo com essas pessoas e o que faço é uma espécie de defesa deles. Quando a Brasiliense começou a lançar as obras de Kerouac, Ginsberg, Burroughs, eu quase fiquei pirado, porque eu fazia algo ligado a eles e não sabia. Penso que os anos 50 têm muito a ver com os anos 80. Era uma época de repressão que se soltou lá pela década de 60 como agora (Cazuza apud Araújo, 2007, p. 363-96).

Foto: Eliana Assumpção, Folha Press, 1984
Foto: Eliana Assumpção, Folha Press, 1984

Misturando Lupicínio Rodrigues com a melancolia do blues, Cazuza se apropria do kitsch e associa os conteúdos passionais das letras com interpretações viscerais e muitas vezes irônicas daquilo que canta. Para Cazuza construir sua persona na esfera, a influência de Dolores Duran é tão importante, por exemplo, quanto ade Allen Ginsberg. Em algumas das letras de Cazuza (como “Vem comigo”, “Completamente blue”, “Ponto fraco”, “Dolorosa” e “Meu cúmplice”), o bar é tratado como lugar do trânsito e da alta madrugada, espaço em que o poeta espera resgatar algum amor perdido.

Como descreve Benedito Nunes, os românticos são homens do mundo com uma sensibilidade capaz de reunir pensamento e sentimento em seu agir (Guinsburg, 1978). Insatisfeitos com a impessoalidade de uma razão positivista e com a clareza iluminista do dia, a sensibilidade romântica alemã elege a noite e a sombra como extensões de seus pensamentos errantes. Se, a partir do romantismo, passa a ser possível pensar na figura dramática do artista moderno como um herói noturno e incompreendido, as fronteiras identitárias dos poetas beats são construídas por meio de certo elogio neorromântico dos marginais e dos drop-outs da sociedade. A sensibilidade beat[7] radicaliza tal proposição romântica, transformando a noite em um valor positivo da vida e da arte. Para o poeta beat, “pessoa” e persona são indissociáveis.

Em paralelo aos poetas beats, a temática do artista transgressor é estabelecida singularmente por Cazuza, por exemplo, em “Só as mães são felizes”, penúltima música do álbum Exagerado [1985]. Composta a partir de frase homônima do escritor norte-americano Jack Kerouac (do livro Scattered Poems [1971]), a sua letra é desenvolvida a partir de citações imaginativas de poetas e músicos malditos que percorrem um submundo ficcional carioca. Na letra de Cazuza são mencionados Arthur Rimbaud, Lou Reed, Allen Ginsberg e Luiz Melodia, vagando pela noite do Rio de Janeiro e atualizando a categoria do poeta maldito através de autores que o cantor admira, como exemplificou Cazuza numa entrevista, em fevereiro de 1986, para o Jornal da Bahia:

Essa música foi feita a partir de um verso do Jack Kerouac, uma frase de um poema dele que me deixou muito intrigado. A frase é muito radical: ‘Só as mães são felizes’. Dita desse modo parece que ninguém mais é. Eu usei a frase como brincadeira porque na verdade a música é uma homenagem a todos os poetas malditos. As pessoas que, de certa forma, vivem o lado escuro da vida, o outro lado da meia-noite. Eu quis fazer uma homenagem a esse tipo de poeta, de cantor, aos loucos da vida. Gente que barbariza, que é santo e demônio ao mesmo tempo. Então ficou como uma homenagem a esses caras. Minha citação de Kerouac é igual como quando cito Allen Ginsberg, Melodia, Lou Reed e outros […]. Mostrar esses poetas é sofisticado, o grande público talvez nem entenda, mas quem curte esse tipo de poesia vai sacar (Araújo, 1997, p. 203-204).

Mais do que uma homenagem, em “Só as mães felizes”, tal sugere ser o curta-metragem de Cazuza no submundo carioca: “Rimbaud traficando escravas brancas”, “Lou Reed walking on the wild side”, Allen Ginsberg fazendo “michê na (galeria) Alaska” [8]. Em tal supracitada canção, Cazuza transita pelo submundo da noite com auxílio de seus “poetas”, tal como fez Dante Alighieri na Divina Comédia [1321], ao ser guiado no “Inferno” e no “Purgatório” pelo poeta Virgílio. Também, ao invocar tais artistas transgressores em algumas de suas imagens, Cazuza aciona certos traços arquetípicos do rock and roll como música potencialmente subversiva, maldita e marginal.[9]

Em analogia, sobre o artista que interliga intrinsecamente vida e arte, é possível traçar uma linha de diálogo entre as personas do poeta maldito Arthur Rimbaud e de certos roqueiros como Jim Morrison. Com o interesse pelo lado escuro e trágico da vida, a inquietude, a inadequação e a embriaguez dionisíaca, ambos encarnam um mito do artista boêmio, vagante e exilado como um anti-herói moderno[10]. Nesse sentido, Wallace Fowlie (2005) discorre sobre a atração que Rimbaud exerce sobre o universo do rock:

O uso que Rimbaud faz da palavra ‘anjo’ em toda sua obra após o poema de 1870 caiu no gosto dos cantores de rock e dos jovens que cercavam os músicos, a quem chamávamos de flower children. Eles viam em Rimbaud um homem (na verdade, um adolescente) purificado da corrupção do mundo. Esse é o significado da palavra ‘rebelde’ que eles atribuíam a Rimbaud, e mais tarde, a Morrison. Bob Dylan foi um dos primeiros cantores a falar de Rimbaud em suas músicas, a recomendá-lo e a exaltá-lo. Na primeira canção de seu álbum Blood on the Tracks [1975], ele canta: ‘Relationships have all been bad, / Mine’ve been like Verlaine’s an Rimbaud’. A Rolling Stone recentemente reeditou uma entrevista que Bob Dylan concedeu a Allen Ginsberg. Depois de algumas indagações bastante relevantes, Ginsberg finalmente pergunta: ‘Tem algum poeta pelo qual você se interesse de verdade?’. ‘Só dois’, foi a resposta de Dylan: ‘Emily Dickinson e Arthur Rimbaud’ (Fowlie, 2005, p. 30).

Leitura análoga tem Paulo Leminski (2001) na crônica intitulada “Poeta roqueiro”, em que compara Rimbaud a um roqueiro marginal e transgressor: 

Aí vem o primeiro marginal. Vivesse hoje, Rimbaud seria músico de rock. Drogado como o guitarrista Jimi Hendrix, bissexual como Mick Jagger, dos Rolling Stones. ‘Na estrada’, como toda uma geração de roqueiros. Nenhum poeta francês do século passado teve vida tão ‘contemporânea’ quanto o gatão e ‘vidente’ Arthur Rimbaud. Pasmou os contemporâneos com uma precocidade poética extraordinária – obras-primas entre os 15 e 18 anos. De repente largou tudo, Europa, civilização ocidental-cristã, literatura, e cometa se mandou para a Abissínia na África. Lá, longe da Europa branca e burguesa que odiava, levou a vida do mercador árabe, traficando armas, virando desertos nunca antes pisados, vivendo a grande aventura infantil, pré figurada em nome de seu rei lendário. […]. Enfim, como diz o próprio poeta: ‘Eu é um outro’. A melhor poesia de Rimbaud esteve, porém, em seu gesto final: a recusa do ‘sucesso’, a escolha do ‘fracasso’, a derrota da literatura, inimiga da poesia, para que esta triunfasse (Leminski, 2001, p. 110-111).

Por sua vez, em Uma temporada no inferno [1873], Arthur Rimbaud afirmou não ser o poeta prisioneiro de sua razão, sendo somente através de um extenso desregramento dos sentidos que o poeta poderia se tornar vidente[11]. Sobre Rimbaud e o universo do rock, é ainda importante mencionar uma litografia do poeta de antepassados gauleses feita por Pablo Picasso, em 1960, em que a figura do poeta foi representada com uma juventude vigorosa, com seu cabelo assumindo o aspecto boêmio e inconformista dos punks.

“Rimbaud”, desenho de Pablo Picasso, 1960
“Rimbaud”, desenho de Pablo Picasso, 1960

Dessa forma, como procuramos discutir neste artigo, Cazuza e Arnaldo Antunes articulam, cada um à sua maneira, o constructo do rock and roll dentro da cultura brasileira, realizando, assim, certa renovação formal do rock no Brasil. Ampliam, assim, certa aptidão brasileira moderna de íntima articulação entre a canção popular e a linguagem literária, que, além de um modo particular de expressão, vem a ser, também, umas das formas próprias de reflexão da arte e da cultura. Tal é, segundo José Miguel Wisnik (2004), a perspectiva relacional brasileira de correlação entre a canção popular e a literatura, a partir do disco Tropicália: não uma aproximação exterior pela qual as melodias servem de suporte às inquietações cultas e letradas, mas, antes, a demanda interior de uma canção aproximada a um estado musical da palavra, perguntando à língua o que ela pode, e o que ela quer. Partindo de uma multiplicidade tropicalista catalisadora de novas dicções, nos anos de 1980, certo rock produzido no Brasil seguiu certa tradição intertextual da música popular brasileira e a potencializou, como é possível observar particularmente no caso de Arnaldo Antunes e Cazuza.


* Augusto de Guimaraens Cavalcanti é doutor pelo Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio e, atualmente, pós-doutorando no programa do PACC-Letras da UFRJ, sob orientação de Beatriz Resende. Em 2015 defendeu a tese “Surrealismo no Brasil: a origem animal de deus, O púcaro búlgaro e Invenção de Orfeu: Flávio de Carvalho, Campos de Carvalho e Jorge de Lima” sob orientação de Maria Isabel Mendes de Almeida e Paulo Henriques Britto.

Referências

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Notas

[1] Este artigo é um desdobramento da dissertação Arte e vida: Lobão, Arnaldo Antunes e Cazuza, por mim defendida em 30 de abril de 2010, sob orientação de Santuza Cambraia Naves, sendo, também, uma homenagem à memória de Santuza, que veio a falecer em 2012. 

[2] A formação inicial da banda paulistana tinha nove integrantes: Arnaldo Antunes, Branco Mello, Marcelo Fromer, Nando Reis, Paulo Miklos, Sérgio Britto, Tony Bellotto, Ciro Pessoa e André Jung, contando também com participações do artista plástico Nuno Ramos nas primeiras apresentações da banda. Do Trio Mamão faziam parte Tony Bellotto, Marcelo Fromer e Branco Mello. Tal coletivo musical chegou a abrir alguns shows de Jorge Mautner em São Paulo e se inspirava numa certa visão de mundo tropicalista, com roupas multicoloridas e araras decorando o palco. O grupo Os Camarões, por sua vez, do qual participava Nando Reis, tinha um som próximo ao de Bob Marley e Jorge Ben Jor. Já da Banda Performática do Aguilar faziam parte Arnaldo Antunes e Paulo Miklos. Influenciados pelas experimentações de John Cage, este coletivo performático acompanhava o artista plástico José Roberto Aguilar, realizando apresentações teatrais e criando paródias que remetiam às artes visuais, como a música “Monsieur Duchamp” (de Paulo Miklos e Aguilar), que relatava a chegada do dadaísta francês ao aeroporto do Galeão.

[3] Todavia, tal leitura não é aceita da mesma maneira por todos os integrantes da banda. Nando Reis, por exemplo, opõe-se à associação oswaldiana que fazem com suas músicas, afirmando ser “muito mais barroco” do que Arnaldo Antunes e, também, declarando, a propósito: “Eu não sou um manifesto Pau-Brasil. A carnavalização esconde a eterna visão do colonizador” (Reis apud Trotta, 1995, p. 100 & Reis apud Leoni, 1995, p. 261).

[4] O isomorfismo é um termo matemático utilizado para designar o caso de abstração em que duas classes apresentam as mesmas propriedades. Tal termo foi utilizado pelos poetas concretos primeiramente no Manifesto da Poesia Concreta [1958].

[5] Como explicita Augusto de Campos no manifesto Poesia Concreta [1955], verbivocovisual é um termo criado por James Joyce para designar “palavras dúcteis, moldáveis, amalgamáveis, à disposição do poema”. (Campos & Pignatari 2006, p.56).

[6] Dirigido por Hamilton Vaz Pereira, o Asdrúbal Trouxe o Trombone influenciou, de certa forma, a linguagem do rock carioca do início dos anos de 1980, uma vez que também Evandro Mesquita foi ator da companhia teatral antes de formar a Blitz. Não por acaso, Nelson Motta (2000, p. 328) descreve o grupo performático como mais se assemelhando a uma banda de rock do que a uma companhia teatral. Em contexto carioca do início dos anos 80, contribuiu também para o entrelaçamento entre música e teatro o espaço físico da lona cultural do Circo Voador, onde peças de teatro eram intercaladas por apresentações de bandas e happenings de poesia.

[7] O próprio termo beat, em inglês, provém de beated, isto é: “golpeado”, “derrotado” e “batido”. Por seu turno, o termo beatnik foi criado pela mídia norte-americana no final da década de 1950 para designar um fenômeno coletivo de uma geração derrotista que rimava com Sputnik. Indo contra tal acepção, Jack Kerouac, em entrevista de 1959, propôs que o termo beat fosse ressignificado como “beatitude” de uma poesia à margem da literatura. (Willer, 2009, p. 81).

[8] Nome em referência à Galeria Alaska, ponto gay famoso da Copacabana dos anos 80. Na letra de “Só as mães são felizes”, há ainda uma menção à discoteca Barbarella, casa de strip-tease na zona de prostituição da rua Prado Júnior, também em Copacabana. Ainda, na letra de “Só as mães são felizes”, Cazuza afirma, ironicamente, que já bebeu cicuta (veneno que Sócrates tomou para morrer) misturada com champanhe. No ano de 1986, “Só as mães são felizes” chegou a ter sua execução pública proibida pela Censura Federal, devido a alguns versos considerados escatológicos e alusivos ao incesto.

[9] Sobre as categorias marginal e maldito, é importante ressaltar suas diferenças. O termo maldito foi criado por Paul Verlaine em ocasião da antologia Poètes maudits [1884],em resposta ao ato de Anatole France ter recusado um poema de Stéphane Mallarmé e um soneto do próprio Verlaine para uma antologia publicada no terceiro volume da revista Parnasse contemporain [1876]. De outra maneira, o termo marginal remete a uma geração poética brasileira dos anos de 1970 que visou trabalhar a linguagem coloquial na literatura, postulando uma proximidade entre poesia e vida, e incorporando, assim, as conversas do dia-a-dia ao poema. Em período militar, a poesia marginal buscou sobreviver distante do mundo institucionalizado, politizando o cotidiano e misturando certa marginalidade de conteúdo com certa marginalidade ideológica naquilo que versava (Hollanda, 1998 & Pereira, 1981).

[10] Como aponta Wallace Fowlie (2005, p. 134), Arthur Rimbaud teria influenciado de tal maneira Jim Morrison que este teria passado a declarar em seus dois últimos anos de vida que, quando morresse, preferia ser lembrado como poeta e não como cantor de rock. Quatro meses antes de sua morte, o cantor norte-americano se mudou para Paris com o intuito de virar escritor e morar na mesma área em que Baudelaire vivera como um dândi. Através de uma trajetória de vida extremada e transgressora, Morrison se vestia de preto e era contra o flower power dos hippies.

[11] De outra forma, através do eu lírico do poema “O homem justo”, Arthur Rimbaud (1994, p. 173-175) expõe: “Sabes que sou maldito! E louco, e ébrio, e lívido. (…) Ventos noturnos, vinde ao maldito!”. Já nos versos de “A orgia Parisiense (ou) Paris se repovoa”, o poeta de ancestrais gauleses realiza um outro tipo de elegia dos malditos como motivo de poesia: “Eis que o Poeta vos diz: ‘Covardes, sede loucos!’ (…). Sifilíticos, reis, loucos, bufões, ventríloquos, / Que lhe importa, a Paris-puta, os vossos corpos, / Vossas almas, e mais vosso veneno e andrajos? (…). O Poeta irá tomar o pranto dos Infames, / Os ódios do Forçado, as queixas dos Malditos:/ E as Mulheres serão flageladas de amor. / Seus versos saltarão: Ei-los! Ei-los! Bandidos! (p. 157-159).

dossiê
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O MENSAGEIRO DE ÍRIS – A EXPRESSÃO DE LUÍS CAPUCHO

Resumo: Luís Capucho é uma voz singular da literatura e da música brasileira das últimas décadas. Este artigo busca apresentar algumas questões centrais de suas canções e de seus livros, observando elementos temáticos, como o universo maldito e a representação dos cinemas pornográficos, da masculinidade, do homoerotismo e da figura materna, bem como os procedimentos formais de transfiguração do real realizados em sua obra. Assim, refletiremos sobre a relação entre o sagrado e o profano, e o arco luminoso que o artista constrói com suas palavras.

Palavras-chave: Luís Capucho; Cinema Orly; canção popular; literatura LGBT.

Abstract: Luís Capucho is a unique voice of literature and Brazilian music of the last decades. This article aims to present some central questions of his songs and books, observing thematic elements, such as the cursed universe and the representation of the pornographic cinemas, masculinity, homoeroticism and the maternal figure, as well as the formal procedures of transfiguration of the real in his work. Thus, we will reflect on the relationship between the sacred and the profane, and the luminous arc that the artist constructs with his words.

Keywords: Luís Capucho; Cinema Orly; popular song; LGBTliterature.

Morfeu e Íris, de Pierre-Narcisse Guérin (1811)
Morfeu e Íris, de Pierre-Narcisse Guérin (1811) Fonte: https://www.wikiart.org/en/pierre-narcisse-guerin/morpheus-and-iris

Qual costuma pintar Íris teu arco/ No dilatado Céu, quando aos Solares Raios se opõem os líquidos chuveiros:/ Nele brilham mil cores diferentes,/ Mas não podem os olhos enganados/ Discernir onde as cores se terminam:/ Parecem na união, que elas são uma;/ Porém têm (não sei qual) certa diferença,/ Quanto mais vão buscando as tênues orlas,/ Cambiando-se as tintas”(Ovídio)

Primeira luz: a voz capucho

Em 2016, o artista e pesquisador Bruno Cosentino me convidou para fazermos juntos um projeto de audição e entrevistas com artistas da cena musical brasileira contemporânea. Surgiu, assim, a série Escuta, que passou a ser realizada no Núcleo da Canção do PACC[1] da UFRJ. Para a primeira edição, Cosentino sugeriu o nome de Luís Capucho, que eu não conhecia até aquele momento. Na ocasião, escutamos seu álbum Poema maldito.

Luís Capucho aceitou participar do Escuta, mas ficou reticente de como seria se colocar naquela situação, de fazer uma entrevista longa, gravada e com público. Capucho pediu, então, que eu enviasse as perguntas antes, para que ele se preparasse, alegando sempre um receio de não conseguir organizar as ideias com fluidez no improviso. Atendi ao pedido e enviei o roteiro que eu e Isabela Bosi havíamos organizado.

Pouco depois, Capucho me enviou uma mensagem, dizendo que não havia compreendido uma das perguntas. Acontece que o disco começava por uma canção chamada “La nave va”. Convicto de que estava fazendo uma questão inteligentíssima, perguntei da relação do compositor com o cinema de Fellini, já que o álbum se iniciava com uma nítida intertextualidade com o filme homônimo do diretor italiano, de 1983. O fato é que ele desconhecia em absoluto o tal filme. A letra não era dele, mas de Manoel de Barros, segundo me explicou.

Minha amizade com Capucho creio que nasceu desse equívoco. Na entrevista, ele quis falar sobre o filme (que não viu) e de como a sinopse que contei a ele era reveladora de uma coisa do disco. A entrevista, porém, não foi fácil. Lembro-me das longas pausas que ele fazia em diversos momentos e das reiteradas vezes em que se queixou sobre a dificuldade em ordenar o pensamento. Em muitas perguntas que eu formulei, acreditando estar sendo profundo, recebi respostas lacônicas. Em outras, aparentemente banais, obtive respostas bonitas e imprevistas. Em uma delas, eu perguntava sobre a questão da marginalidade, do que representava estar “na beirinha” (como diz a “Música de sábado”) e ele me respondeu que as palavras são essa beira, esse estar no limite da possibilidade de expressão, de comunicação. Essa resposta lançou grande luz sobre a própria entrevista, mas também sobre sua obra e, por fim, sobre sua enigmática figura.

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Luís Capucho é um daqueles artistas cuja história de vida é fundamental para compreender a obra. O artista nasceu em Cachoeiro do Itapemirim no Espírito Santo (tal como Roberto Carlos), em março de 1962. Filho único, foi criado apenas pela mãe, com quem se mudou em 1974 para Niterói, no estado do Rio de Janeiro[2]. Lá se graduou em Letras na UFF nos anos 1980.  

Sua produção musical, no entanto, começou a ser registrada somente a partir da década de 1990, com o álbum Antigo, que apesar de gravado ao vivo no Café Laranjeiras no Rio em 1995, só foi lançado em 2013. O disco apresenta canções emblemáticas como “Máquina de escrever”, “Mamãe me adora”, “O amor é sacanagem” e “Maluca”. Desse trabalho, saíram algumas gravações de artistas de visibilidade, como a versão de Cássia Eller para “Maluca” (no álbum Com você … meu mundo ficaria completo,de 1999), e a de Pedro Luís e a Parede para “Máquina de escrever” (em Astronauta tupy, de 2004).

Vale registrar também que Pedro Luís e Rodrigo Campello produziram em 1996 o álbum coletivo Ovo – novíssimos, que contava com a gravação prévia de “O amor é sacanagem” de Luís Capucho, além de reunir outros compositores, alguns dos quais parceiros do artista, como Marcos Sacramento e Suely Mesquita. Após esse momento embrionário, vieram mais três discos autorais: Lua singela, em 2003 (que traz a canção homônima, além de gravações inéditas de “Sucesso com o sexo” e “A vida é livre”, bem como as regravações de “Máquina de escrever” e “Maluca”); Cinema Íris, em 2012 (com outras tantas canções significativas, como “A música do sábado”, “Cinema Íris”, “Eu quero ser sua mãe” e “A expressão da boca”) e, por fim, Poema maldito, em 2014 (que conta com músicas como “Poema maldito”, “Mais uma canção de sábado”, “Meu bem” e “Cavalos”).  

Cabe pontuar, neste momento, que um dado biográfico é de extrema relevância para a compreensão da trajetória e da estética do compositor. Em 1996, Luís Capucho foi acometido por uma neurotoxoplasmose, que se desenvolveu em função da baixa imunidade decorrente do vírus HIV. Com isso, Capucho ficou em coma durante um mês, e o quadro teve consequências significativas em sua coordenação motora e em sua fala. Essas sequelas impactaram, portanto, diretamente o exercício da composição e do canto do artista. Sua voz tornou-se mais grave e áspera, o que não deixa de ter consequências estéticas (e existenciais) relevantes, na medida em que os traços particulares de sua nova dicção acabaram gerando uma consonância com o espírito “marginal” que caracteriza sua produção artística.

Note-se ainda que o episódio permite dividir sua produção musical, de modo que apenas o álbum Antigo (gravado em 1995) apresenta o registro de sua voz antiga, mais lisa e fluida, enquanto os discos Lua singela (2003), Cinema Íris (2012) e Poema maldito (2014) já apresentam sua nova dicção, áspera, esforçada e, sobretudo, mais densa que a anterior. Em seu programa A voz humana,da Rádio Batuta (em 2016), Eucanaã Ferraz incluiu a canção “Poema maldito” de Luís Capucho no episódio “A voz dos marginais”[3]. No texto de introdução, o apresentador cita um fragmento do livro Mamãe me adora, em que Capucho explica:

Minha voz é muito estranha, por causa da minha incoordenação motora. Tenho dificuldade para pronunciar os fonemas e a força que preciso fazer para dizê-los, incham-me as veias do pescoço. Também para que elas saiam é necessária muita concentração e, desse modo, as palavras ficam lentas, explicadas, com a pronúncia exagerada pelo esforço em dizê-las. E embora saiam explodidas, altas, roucas e arranhadas, são sempre minuciosas em sua pronúncia.

Em seguida, Eucanaã conclui:

A voz de Capucho casa-se exemplarmente com sua música, como se não houvesse sequer separação entre elas. Pode-se pensar em roucos, como Tom Waits ou Leonard Cohen. Penso em Nelson Cavaquinho, na sua aspereza pungente, que como em Capucho, faz inseparáveis canto, composição, instrumento, palavra e vida.[4]

A observação acima faz lembrar os versos de “A expressão da boca”, nos quais Luís Capucho afirma que “a expressão da boca define a pessoa”, “conduz aos outros movimentos dela”, “dá sentido para os olhos”, “centraliza o sentimento”, “revela a pessoa no momento/ e também revela a pessoa mais completamente/ a pessoa fora do momento” e conclui: “é onde sopra o espírito”. A palavra emite-se, portanto, na confluência entre a vida e a voz, encontra no instrumento musical seu suporte, ganha integridade e revela um corpo e um espírito. Arco entre o mundo interior e o mundo exterior, a voz também se desenha em um lugar na beira, e é elemento relevante do processo de transfiguração do real empreendido por muitas de suas canções.

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Além das canções, Luís Capucho também é autor de livros em prosa. Note-se, em primeiro lugar, que as consequências motoras do coma impuseram, incialmente, uma dificuldade para o exercício de composição musical. É justamente neste momento que Capucho migra para a literatura, lançando o livro Cinema Orly (em 1999). Só em 2003 (sete anos após o incidente), ele retornou à música, com Lua singela. O disco seguinte, nove anos depois, foi Cinema Íris, de 2012, curiosamente, um álbum diretamente vinculado ao universo de seu livro de estreia. Nesse intervalo, continuou a desenvolver sua obra literária, com Rato (em 2007) e Mamãe me adora (em 2012). Encerram a linha cronológica o álbum Poema maldito,em 2014, e o livro Diário da piscina,em 2017, consolidando sua dupla inclinação à literatura e à canção popular.

É importante também ressaltar que os livros herdam do universo de sua canção uma proximidade muito estreita entre a arte e a vida, buscando, em microcosmos cotidianos, um espaço onde se encenam as questões humanas (do desejo, do amor, do sexo, da angústia, da doença e da morte), bem como a estranheza do mundo (e do estar no mundo). Isso se relaciona diretamente a uma espécie de pulsão do olhar, que parece à vontade no exercício de transfigurar a vida banal, acentuando seu estranhamento, desdobrando as imagens, dotando-as de uma força paradoxal de materialidade sublime. Na mesma esteira, sua poética (nos livros e nas canções) dá protagonismo a corpos e a espaços, que se projetam e se contaminam reciprocamente.

A partir disso, podemos compreender melhor os quatro livros publicados pelo autor. O primeiro, Cinema Orly (1999), é uma espécie de registro autobiográfico, que oferece um retrato dos cinemas pornográficos do centro do Rio e dos personagens que o frequentavam. Em seguida, publicou Rato (2007), livro ficcional (mas com evidentes traços autobiográficos) que conta a história de um rapaz e sua mãe em uma espécie de casa de cômodos, em que se alugam vagas para rapazes. O terceiro, Mamãe me adora (2012), conta uma viagem entre Rio de Janeiro e Aparecida do Norte em que, mais uma vez, aparecem elementos da vida do autor – a homossexualidade, a recuperação do corpo, a presença da mãe e seu processo de decadência física e morte. Por fim, Diário da piscina (2017) conta o funcionamento cotidiano das aulas de natação nas quais o autor-narrador buscava se recuperar das sequelas motoras do já citado incidente.

Por fim, vale notar que a aproximação entre a arte e a vida, para além de seu lastro romântico e de sua vizinhança com a literatura beat e com os poetas malditos da modernidade, também encontra ressonância no cenário pós-moderno, no qual o rompimento das fronteiras entre o público e o privado, a valorização das narrativas à margem, a centralidade do lugar de fala e das questões identitárias e, por fim, a consciência do corpo como espaço político dão o tom das discussões estéticas, sociais e políticas. Por isso, o sempre tensionamento entre o autobiográfico e o ficcional (que atravessa toda sua produção literária) e o protagonismo da questão do corpo (e, com ela, do desejo, da homossexualidade e, com grande ênfase, da masculinidade) formam traços notáveis de suas obras.   

Segunda luz: o cinema pornô

A produção literária e musical de Luís Capucho aparece profundamente marcada pela sua experiência nos cinemas pornográficos do centro da cidade do Rio de Janeiro, com destaque para o Cinema Orly, o Cinema Írise, em menor escala, o Cine Rex. Na verdade, podemos localizá-los temporalmente na esteira do processo de crise dos cinemas de rua; nos anos 1980, diante da retração do mercado, muitos deles aderiram à programação pornográfica (que era mais barata) e aos shows de strip-tease, atraindo um público majoritariamente masculino e popular. Esses espaços também ficaram conhecidos como “cinema de pegação”, nos quais as experiências homoeróticas, a presença das travestis e da prostituição encontravam espaço, na penumbra das salas e do mundo social, para se manifestar.

Fontes: https://cinemagia.wordpress.com/2013/10/16/cinemas-antigos-orly-e-rex-centro-rj/ e https://medium.com/resvistaverum/cine-%C3%ADris-uma-experi%C3%AAncia-cinematogr%C3%A1fica-intrigante-eaa60bd8b1da

O Cinema Orly, como muitos outros cinemas do tipo (incluindo o Cine Rex), fica na Cinelândia, nas proximidades de onde atualmente está o Teatro Rival, o Bar Amarelinho e a Câmara dos Vereadores. O cinema é de 1934, mas recebeu o nome de Orly apenas em 1974, estreando sua programação pornográfica, como se disse, nos anos 1980, tal como ocorreu ao Cine Theatro Íris, que fica na rua da Carioca (em frente ao extinto Cine Ideal), próximo à Praça Tiradentes. O Íris é ainda mais antigo, de 1909, mas só recebeu este nome após uma reforma em 1921, que lhe deu sua ornamentação art nouveau.

O nome Cine Íris vem do fato de que havia um painel da deusa homônima em sua entrada. Íris, na mitologia grega, é a mensageira de Hera (e comunicação entre os deuses e os mortais, ligando o céu à terra) e personificação do arco-íris (em função do rastro multicolorido que deixava ao cruzar os céus). As luzes e as cores do cinema, bem como sua natureza comunicativa, ajudam a dar sentido à relação (para além de os filmes fazerem a ligação entre o olimpo dos astros e estrelas do cinema e a plateia de mortais). Vale lembrar que, posteriormente, na virada dos anos 1970 para 1980, o arco-íris se consolidou como símbolo dos movimentos LGBTs, acrescentando mais uma camada de sentido na interseção entre o cinema e a entidade.

Esses dois cinemas, em especial, vão inspirar duas obras-irmãs: o livro Cinema Orly (1999) e o disco Cinema Íris (2012), que, tomados em conjunto, permitem algumas miradas esclarecedoras sobre a obra de Luís Capucho. Em especial, podem revelar os ambientes underground que permeiam o universo do compositor “maldito”, e atravessam alguns de seus temas mais recorrentes, mas também alguns de seus recursos estéticos, como a pulsão do olhar, a transfiguração da realidade e a aproximação entre o sagrado e o profano, o sublime e o vulgar, enfim, o céu e a terra, cindidos e ligados por sua expressão luminosa.

Fonte: https://www.luiscapucho.com.br/

Cinema Orly – que ganhou em 2005 o Prêmio Arco-Íris de Direitos Humanos –é uma espécie de livro de memórias sobre a experiência do narrador enquanto frequentador do Cinema Orly. O caráter autobiográfico do livro se confirma segundo o conceito de “pacto autobiográfico” proposto por Philippe Lejeune: observamos uma identidade explícita entre autor e narrador, que é marcada de diversas formas. Nesse sentido, sabemos que o enunciador é um cantor e compositor (são citadas oito composições suas, vinculadas à experiência do cinema, entre elas “O amor é sacanagem”, “Cinema Orly”, “Íncubos” e “Savannah”), que foi criado só pela mãe e que não conheceu seu pai, e que, no momento da escrita, encontrava-se “claudicante, impossibilitado de tocar violão e com a voz do homem elefante”, em evidente referência às sequelas motoras do coma. 

Na narrativa, o Orly é descrito como um espaço de culto, pertencimento e autodescoberta, onde as regras de interação social e os valores morais aparecem em registro bem diverso do mundo exterior. Em outro aspecto, trata-se de um microcosmos onde se projeta determinado ciclo social, pertinente a determinado tempo e espaço histórico, com descrições férteis para miradas de ordem sociológica ou antropológica, mas também para reflexões acerca da formação das subjetividades, das identidades de gênero e dos comportamentos sexuais.

Esse ambiente, em que a sexualidade (e, em especial, o homoerotismo) pode ser exercida de modo mais livre, apresenta-se como espaço do possível, onde se dá a realização consciente de fantasias eróticas e de desejos inconfessáveis. Por outro lado, interessa notar que nesse espaço projetam-se corpos entre as poltronas, que diante da pouca luz e do anonimato, e das conversas muito furtivas, transformam-se todos em imagens, virtualizam-se em pleno terreno do real. A materialidade inconteste dos corpos em exibição e fruição sexual é justamente o que dá uma dimensão transcendente aos seres, que existem para além de se pensarem.

Há ainda mais uma camada de interesse que se vincula ao fato de que há também nesse narrador uma ideia fixa, paralela à da realização do desejo homoerótico. Trata-se da projeção de um namorado, isto é, da possibilidade de dar fim à solidão, que também atravessa todo o livro. Esse desejo aparece aqui como marca subjetiva do narrador e como questão humana, mas também como resultado de uma questão contextual, uma vez que a perseguição contra os afetos gays incide diretamente sobre a dificuldade de relação desses sujeitos.

O livro apresenta uma introdução e seis capítulos, sempre com títulos alternativos: 1) “Os répteis ou O parquinho ou Paus pra toda obra”; 2) “Desconcerto para edipiano e orquestra ou Evolução de amor no trapézio ou O namorado”; 3) “Hotel para cavalheiros ou Traíra ou A festa em que ganhei cestinhas”; 4) “Ainda o namorado ou Os eliminados ou O fugidio périplo da bicha baleira em dia de folga”; 5) “No meu bairro ou O matador ou Renan”; 6) “O templo não para ou A lei do eterno retorno ou Parte final”.

A variação de títulos, que remete vagamente ao exercício clariceano de “A quinta história” ou de A hora da estrela, é, antes de tudo, um procedimento de iluminação. A realidade transfigura-se conforme a incidência maior de luz sobre um fato ou outro. Veja-se, por exemplo, que o primeiro título começa com a evocação dos répteis (animais rastejantes e algo repugnantes), remetendo a um processo de animalização dos frequentadores do cinema; muda logo para o título algo infantil “o parquinho” (metáfora-eufemismo para espaços de “diversão”) e, por fim, termina com o trocadilho malicioso, oriundo da expressão popular “paus pra toda obra”, evocando o objeto de desejo mais adorado ao longo do livro. O exercício se repete nos outros títulos, sempre obscurecendo o elo que dá sentido ao conjunto de nomeações. Observam-se neles a reiteração da procura pelo “namorado”, questões de amor e sexualidade, espaços de entorno e, por fim, a jornada cíclica do narrador no Orly.   

O primeiro capítulo do livro começa com dois fragmentos bastante ilustrativos. O primeiro diz:

Há muito que não vou ao Orly assistir a um filme pornô e pagar um boquete. Ver na tela homens jovens nus com paus grandes, pernas abertas, muito grandes e gostosas, e sacos onde se pressente a umidade e o odor, deixando o nosso peito incandescido e a respiração inflamada. […] Sacos peludos sobre a pele gordurosa, que continuavam em paus engordados pela excitação, que ao invés de me trazerem à lembrança a imagem silvestre de um animal, de um sátiro, faziam com que eu tivesse reminiscências provocadas pelos meus sonhos mais românticos, de quando ainda eram pueris e eu achava possível que meu corpo voasse (Capucho, 1999, p. 17).

O livro começa, portanto, marcando um distanciamento temporal entre o momento da enunciação e os fatos narrados, transferindo a narrativa para o espaço da memória. A forma crua e sem pudor com que se narram, em detalhes, as práticas homoeróticas, com especial ênfase no sexo oral e na masturbação, é um tipo de registro que atravessa todo o livro. O cinema e o sexo, dentro ou fora da tela, apresentam-se como espetáculo de imagens, odores e sensações, que se representam tanto em sua beleza erótica, como também em sua atmosfera grotesca de suor, fumaça e sujeira, formando um conjunto obsceno em que o horror e a maravilha conjugam-se em vez de se dividirem. Do mesmo modo, a aproximação entre o universo pornográfico e os sonhos românticos também impede que se delimitem as cores da pureza e da promiscuidade. Na sequência, o narrador afirma:

No Orly sente-se que somos répteis milenares, e então, a vida na penumbra do porão, do cinema, com sua camada de concupiscência em torno de tudo, é mais espessa: a luminosidade, o movimento, o oxigênio, o odor, tudo é mais espesso, porque os sentidos se aguçam (Capucho, p. 17).

O segundo parágrafo apresenta “a vida na penumbra do porão”, apontando não só para a questão da baixa luminosidade, como também para o fato de o Cinema Orly ser numa espécie de subsolo e, portanto, literalmente um underground, um mundo escondido que serve de exílio para os que o frequentam. Isso reforça também uma atmosfera de realidade paralela, provocada não só pela antítese em relação ao “mundo lá fora”, mas também pelo próprio aguçamento dos sentidos, que dá “espessura” ao ambiente. No conjunto da descrição, o Cinema Orly aparece como ambiente marcado pela luz dos filmes moderando a escuridão da sala, acentuada pela neblina de fumaça, que torna mais denso o cheiro abafado de suor, sexo e cigarro.

Assim, o livro que se abre falando sobre as cenas na tela, imediatamente se volta para seu assunto principal, isto é, o que se passa na contratela, entre as poltronas do cinema. Aqui, o sexo geralmente heterossexual da pornografia (em que homens másculos performam uma sexualidade viril) refrata-se na plateia a partir da experiência homoerótica, que não deixa de carregar em si o culto narcísico e falocêntrico da masculinidade, que é um dos assuntos centrais do livro, e também tema de destaque nas canções de Luís Capucho.

Logo no segundo parágrafo, o ambiente espesso, habitado por répteis, já nos conduz a uma transfiguração, que nos põe diante de uma realidade alternativa, em que o espaço promove a metamorfose das criaturas, envoltas em uma atmosfera de pertencimento. A escolha dos répteis reforça o ambiente pegajoso e os olhos dilatados, em corpos que se arrastam, escalam e se esfregam entre as poltronas. Vale lembrar que nessa classificação biológica se enquadram as serpentes (tão simbólicas do universo do pecado original) quanto os lagartos e as lagartixas, com seus corpos adaptáveis à temperatura do ambiente, sem falar nos camelões, símbolos máximos, no reino animal, da capacidade de transformação adaptativa. De resto, o adjetivo “milenares” também funciona como chave de interseção entre os sentidos abertos pela sexualidade (tanto em seu caráter homoerótico, como em seu exercício promíscuo), que se apresenta tão pré-histórica quanto os dinossauros. O “parquinho” do título é também um parque jurássico, escondido em sua realidade fantástica.

A narrativa se segue sempre em exercício cíclico do “eterno retorno” ao Cinema Orly, numa busca incessante de prazer sexual e de transitividade amorosa (conjugados na reiterada procura de “um namorado”). A cada volta, novas descrições acrescentam camadas de complexidade ao texto, que segue essa espiral, apresentando um mosaico de personagens que definem e são definidos pelo ambiente. Em dado momento, o narrador condensa essa profusão de corpos de homens:

Havia homens muito velhos, mancos, com uma das pernas decepadas, muito gordos com barrigas enormes, homens maravilhosamente altos e magros. Muitos masculinos, muitos femininos, jovem com carisma, com charme, com cara de hospício, homens de bigode, de barba, imberbes, antipáticos, nojentos com cara de idiotas, louros, morenos, negros, mulatos, cabeludos, carecas, homens banguelas, fedidos, com nariz grande, homens robustos, mignons etc. (Capucho, 1999, p. 23).

Esse fragmento é especial, sobretudo, porque faz o vínculo mais literal entre o livro Cinema Orly e a faixa-título do disco Cinema Íris. A letra divide-se em dois focos, começando pela “moça que faz strip-tease no Cinema Íris” e depois, voltando-se para a plateia, onde focaliza o mosaico de homens, claramente transposto do fragmento supracitado do livro. Assim, temos uma primeira parte que diz: “A moça que faz strip-tease no Cinema Íris/ sabe deixar o tempo pra trás/ ela avança o corpo nu/ e o tempo escoa na beira do rio/ seus movimentos voltam-se suspensos no som/ enquanto homens masturbam-se na neblina do cinema”. Esse último verso permite a transição do foco para os homens:

Homens sentados assistem,
Velhos mancos com uma das pernas decepadas
Homens muito gordos, com barrigas enormes
Homens maravilhosamente magros e altos
Muitos masculinos
Muitos femininos
Jovens com carisma, com charme
Com pernas muito gostosas abertas
Aqueles tinham caras de veados
Homens com caras cabeludos
Homens com caras de bigode
Homens com caras travestidos
Homens com caras de hospício
Homens com caras de mal

A semelhança entre as passagens da letra e do livro gera uma confluência entre os dois cinemas que, a despeito de suas particularidades, fundem-se em sua ambiência de neblina e sexualidade, contemplada tanto em relação ao espetáculo do palco (ou da tela), como principalmente, o espetáculo das poltronas. Mais uma vez, a coordenação entre homens belos e horrendos, masculinos e femininos, formam um conjunto imagético aprazível em sua diversidade, unificada pela captura simultânea.

Vale lembrar também que a imagem da dançarina também aparece em outras canções de Luís Capucho, desde antes do disco Cinema Íris. Curiosamente, a primeira gravação do disco Antigo,de Luís Capucho, já fala sobre o universo dos cinemas pornográficos do centro da cidade, dando centralidade à atriz e stripper Savannah, que veio a se suicidar em 1994, um ano antes do show que deu origem ao CD. No livro Cinema Orly, a letra é citada na íntegra, pouco após um comentário sobre a dançarina.

Na canção, seu nome é repetido a todo momento no início dos versos, jogando luz sobre a dançarina, chamando atenção para si e para sua história. Ao longo da letra, as roupas são dados fundamentais da composição da personagem (“luva justa, preta ou branca, ou de cetim”, “dança sobre os saltos/ bico fino de cristal”, que culmina com “capa anágua sutiã baby doll”). Curiosamente, são justamente as roupas a serem tiradas que ajudam a compor o corpo sedutor que promete se revelar.

O corpo, aliás, é revelado também em seu ágil movimento, que se imprime na forma ligeira de cantar os verbos coordenados (“Savannah gira, abre, fecha, cresce, dança, diminui”), reproduzindo o exato movimento da stripper. Há também um misto sagrado-profano em sua adjetivação como “deusa” e “coquete”, seguido imediatamente por um registro privado, íntimo, que transfigura a dançarina e a humaniza, posta em seu estado de solidão, de desejo de transcendência afetiva. A rápida transição da dança pública ao sentimento privado desenha a personagem entre a luz e a sombra, do cinema e da vida, projetando-lhe a dualidade das criaturas marginais. A melancolia do desfecho trágico (“imagina tudo acabado”) parece não enfraquecer a dança mas sublinhar a própria precariedade da juventude, da beleza e da vida, o que, contraditoriamente, torna-a mais bela.  

No mesmo disco há ainda a canção “Romena” (parceria com Suely Mesquita) em que aparece nova referência a uma dançarina: “Eu vi uma menina romena dançando break/ deliciosa uma mínima romena dançando break”, ao que se segue o refrão “Eu quero ter as maravilhas do mundo/ quero viver nas maravilhas do mundo/ quero comer as maravilhas do mundo/ eu quero ser as maravilhas do mundo”.

As repetições do final das estruturas “romena dançando break” e “maravilhas do mundo” encerram os versos, encontrando na repetição do movimento final de cada verso o movimento da dançarina. Seu corpo se constrói, para além do break, pelo adjetivo “deliciosa” e pelo adjetivo “mínima”, que reverbera no substantivo “menina”, acentuando-lhe o traço de juventude e de beleza. Veja-se também a variação e a gradação entre “ter as maravilhas”, “viver nas maravilhas”, “comer as maravilhas” e “ser as maravilhas do mundo”. Assim, começamos no desejo de acesso às maravilhas do mundo, que passam a ser um espaço onde se vive e também uma coisa que se come, o que aqui se desdobra entre o sentido sugestivamente sexual e a própria ideia de ingestão, de introjeção por meio do olhar que devora a juventude e a beleza. Por fim, o ser que tem, está e come as maravilhas contamina-se e torna-se ele próprio as maravilhas do mundo.

Terceira luz: as imagens e o sagrado

Ainda sobre o Cinema Orly, penso que seja importante destacar agora três outros elementos, de algum modo, relacionados: a virtualidade, a masculinidade e o sublime. Em primeiro lugar, há uma recorrência no livro em afirmar que, dentro do cinema, todos se transformavam apenas em imagens. Em dado fragmento, uma batida policial faz com que se acendam as luzes do cinema:

Mesmo porque os veados nada mais são do que abstrações de homens. Um veado é apenas um nome social para um homem que prefere outro homem na cama. Assustados com o corte repentino no nosso ambiente de sexo, estávamos concretamente homens. Com o cinema em funcionamento, éramos outra vez abstratos, e o pau comia (Capucho, 1999, p. 24).

Veja-se que, se os “veados” são apenas “abstrações” de homens, não é a condição concreta do sexo biológico que revela a sexualidade, mas o abstrato desejo de se relacionar com outros homens. Curioso também pensar que aqui, a homossexualidade aparece enquanto performance, tal qual as imagens na tela, e o acender das luzes encerra o espetáculo e devolve ao mundo “real”. Em outras passagens, afirma-se: “[no Orly] Todos poderíamos ser apenas uma imagem, sem alma.” (p. 63) e, páginas depois, “No Orly, éramos todos anônimos, nem mesmo a vendedora de balas tinha um nome pra mim. Éramos apenas uma imagem e estava descobrindo como isso era bom” (p. 73).  Nesses dois fragmentos, o interessante é pensar como, no Orly, sem nomes e sem histórias, em meio a conversas curtas, os frequentadores do cinema estavam protegidos enquanto imagens – era isso que lhes garantia a liberdade necessária para concretizarem o que desejavam ser.

Para além dessa questão da virtualidade, temos também que pensar sobre o problema da masculinidade que atravessa todo o livro. Nos parágrafos finais, o narrador relata que, quando criança, observava um rapaz lindo de vinte anos, sobre o qual afirma: “Para mim esse rapaz era o símbolo da virilidade adulta e sonhava ansioso que eu completasse vinte anos para, enfim, estar possuído da graça de ser um homem”. E conclui:

Pois o Orly trouxe-me, antes do tempo pensado, essa masculinidade adulta tão esperada, embora não passasse de uma bicha. […] No Orly, não era uma bicha feminina nem masculina. Para mim, esse nada que eu era, a ausência de formação de imagens sensuais no meu espírito era a masculinidade, contribuía para ela meu corpo, minhas roupas, meus pelos, minha voz (Capucho, 1999, p. 140-141).

Se pensarmos o romance (tal como Lukács), como uma trajetória em que o herói existe para conquistar sua essência, é fundamental pensar que a masculinidade se revela, nesse fragmento, como ponto de chegada dessa conquista.  O livro Cinema Orly refere-se, portanto, a uma representação da homossexualidade masculina e, sobretudo, da masculinidade homossexual, impulsionada também por um processo de identificação narcísica. E esse exercício só se torna possível exatamente no espaço em que os homens podem se converter em imagens abstratas sob uma forma masculina (“corpo”, “roupas”, “pelos” e “voz”).

Por fim, esse momento sublime de realização do desejo de ter e de ser a coisa desejada (as maravilhas do mundo), aparece em vários momentos do Cinema Orly, não raro ganhando contornos sagrados. Vejam-se as duas citações:

A masculinidade, representada por um caralho, era tudo que eu queria possuir, que eu invejava, que achava bonito, como se eu fosse uma mulher, como se eu fosse uma criança, um anjo, um bicho, uma ave e do que mais gostava era ir ao cinema Orly e, sendo tudo isso, ver minha imagem refletida em sua lagoa, como na história de Narciso, ou de Eros e Psiquê de Fernando Pessoa” (Capucho, 1999, p. 20).

Essa superioridade masculina, a violência e a rudeza com que os homens fodiam, fazia-me pensar no que há de mais delicado, exatamente, como a força violenta das águas produz eletricidade e a eletricidade produz luz, que não é um objeto, mas faz parte do mundo das coisas delicadas e nos é difícil saber de que material é feito seu corpo (Capucho, 1999, p. 96).

O primeiro fragmento reforça a ideia de projeção entre o desejo e a coisa desejada, tanto na referência ao mito de Narciso, como também no “Eros e Psiquê” de Fernando Pessoa, onde a princesa adormecida espera o infante que a despertaria e, no final, descobre que “ele mesmo era a princesa que dormia”. No segundo fragmento, a idealização de uma “superioridade masculina”, marcada pela virilidade, é representada pela violência das águas, que produz eletricidade (em algumas passagens do livro, o prazer do homem que recebe o sexo oral é descrito como um corpo eletrificado pelas sensações) e esta, por sua vez, produz a luz, a luminosidade, a iluminação. Da sombra à luz, do partido ao pleno, do profano ao sagrado, o texto de Capucho vai representando, sob o signo de Narciso, a fruição livre do prazer que conduz o sujeito à sua emancipação, à sua essência.

Por isso, vale pensar também em fragmentos em que o narrador comenta a dimensão divina da experiência homoerótica: “Antes de beijar um homem, achava que vê-lo nu, aberto, os pelos amaciando a atmosfera, saco e pau escancarados junto ao tufo de pentelhos era encontrar Deus” (p. 73). Não por acaso, há muitas referências ao longo do texto que aproximam o cinema Orly a uma igreja ou um templo. Na própria letra de “Cinema Orly”, citada no livro, afirma-se: “o Cinema Orly/ de terça a terça/ de dez às dez/ abre as portas para os fiéis/ seja uma igreja seja um cinema/ o Orly me beija”.

Essa aproximação entre o prazer e o sagrado, que se reforça pela posição de joelhos na qual se reza ou se realiza o sexo oral (já explorada imageticamente pela Madonna de “Like a prayer”), percorre todo o livro por meio de uma espécie de culto falocêntrico, que aparece também em algumas letras de Capucho como “São flores” (“que inferno e que céu/ que diabo de tesão doido em mim/ que tudo são deuses/ os rapazes são deuses pra mim/ que tudo são flores/ os caralhos são flores pra mim/ os deuses com flores/ são flores pra mim/ que horrores-maravilhas”).

Tal arco luminoso entre o divino e o humano, o narrador nos comunica em outra passagem do livro:

Isso me faz pensar nas pinturas renascentistas católicas, onde Cristo, Maria, Maria Madalena, Verônica, ou os anjos, os apóstolos, todos têm cara de prazer ou desejo sexual que se parece muito com a expressão de dor. Tem uma pintura que chama a atenção, porque Cristo, deposto da cruz no chão, com sangrentas feridas sob a coroa de espinhos, nas mãos, nos pés, tem a fisionomia de alguém que, numa cama, sofre de amor ou de prazer. Cristo está lindo nos braços de Maria que também sofre, olhando para o seu pau escondido sob aquela fralda branca. Maria também está linda (Capucho, 1999, p. 100).

Impressiona no fragmento a capacidade descritiva do autor, que praticamente pinta a imagem com palavras. Capucho, por meio da palavra “pau”, tão obscena à referência de Cristo (ainda mais diante da piedade de Maria), devolve ao supliciado seu corpo sensível e humano, escondido por trás da manta (aqui despida por meio da palavra “fralda”). Cristo e Maria estão lindos no que revelam de sagrado e de profano que reside nos corpos que gozam e penam. Isso tudo faz pensar tanto na definição de Mathilda Kóvac sobre o livro de Capucho (“O Cinema Orly é sua via crucis do corpo e do espírito num templo da Cinelândia”), como também em George Bataille, refletindo sobre o erotismo por meio do Êxtase de Santa Teresa ou da expressão de gozo na fotografia do supliciado chinês. A dor e o prazer como expressões dos corpos conectam-nos a todos a nossa dimensão mais humana e, portanto, mais sagrada.

Quarta luz: a transfiguração do real

Convém agora refletir mais detidamente sobre os procedimentos estéticos que permitem a Luís Capucho promover a isso que venho chamando de “transfiguração do real”. Comecemos pela canção “Poltrona”:

Não digo que é só sonhar
Mas nessa poltrona
Me sinto assim um astronauta
Um tapuia e uma princesa
Eu fico assim meio sereia
Meio reumático, paralítico
Assim, meu corpo na poltrona
Enquanto voam passarinhos
Enquanto flores morrem na janela

E a poltrona
Como a cama, como a nave, como o altar
Como o trono, como o mar
Oh, poltrona!
Oh, poltrona!
Oh, poltrona!

Eu não sei viver, não sei viver
Sem teu calor
Eu não sei sonhar, não sei sonhar
Sem ter você
Minha cabeça no seu braço
E meu corpo no seu regaço
Alto do chão

A poltrona que dá título à canção remete a um espaço de inércia, no qual descansamos e, por vezes, assistimos a alguma coisa. A partir desse espaço “parado” é que o sujeito sonha, ou seja, move-se em meio a uma realidade alterada. Vale notar como a ideia da viagem para além, anuncia-se desde o signo do “astronauta”, que é coordenado ao “tapuia”, à “princesa” e, depois, à “sereia”, conduzindo-nos a personagens do imaginário infantil, que, além de se fixarem como imagens, projetam também seus correspondentes cenários de fantasia. A poltrona, por fim, também se transmuta, tornando-se “cama” (espaço do sono e do sonho), “nave” (espaço celeste onde viaja o astronauta), “altar” (símbolo do rito sagrado e da experiência mística), “trono” (que se vincula à princesa) e “mar” (onde vivem as sereias).

Cabe sinalizar que a “poltrona” apresenta também uma interseção com o universo do próprio cinema. Os versos finais da letra permitem essa leitura, na medida em que o sonho precisa de outro sujeito que o dispare. Veja-se que “minha cabeça no seu braço/ e meu corpo no seu regaço/ alto do chão” possibilitam o deslocamento para o universo capuchiano dos cinemas pornográficos e da transfiguração do real que neles se consubstancia. Do chão ao alto, do repouso do colo físico à experiência sonhada, Capucho volta a realizar seu processo de transformação.

Esse processo pode ser encontrado em uma série de outras canções do autor. “La nave va” que abre O poema maldito, embora tenha letra de Manoel Gomes, também se comunica com esse processo. O título, que poderia se traduzir do italiano como “o navio vai” (e que curiosamente toca a proximidade etimológica entre nave e navio ao aparecer em uma canção em português) dá centralidade à janela como esse ponto de deslocamento da realidade por meio das imagens: “eu olho a nave pela janela voando/ e eu parado olhando a nave voando/ nave bela sofisticada e que me leva a outros mundos”.

A janela aqui, tal como a poltrona na canção anterior, permite o processo de viagem para outros lugares, ainda que o sujeito se afirme parado. Vale pensar como a janela é justamente um espaço de beira, de limite, entre o sujeito que olha e o objeto olhado; e a canção é o veículo da viagem, as palavras também postas à beira. Na letra, o deslocamento da nave para a janela, aparece nos versos “janela, objeto comum vulgar/ que não me leva a lugar nenhum/ mas é por causa dela que eu viajo na nave/ é ela que me leva/ é ela que é bela/ eu aprendi a amá-la através dos anos”.  

A canção reverbera também em “Parado aqui” (“O céu estava azul/ o sol tão brilhante/ e eu aqui parado penso, onde vai minha cena”). A letra vai sendo construída em um crescente, em que sujeito pensa “onde vai a semana com tanto acontecimento, com o homem, com a mulher, com a árvore na calçada, com a sombra da árvore na casa…”. Outra vez, o eu-lírico inerte vai capturando o real em movimento. A letra segue anaforicamente: “o céu estava azul, o sol tão brilhante,/ o beija-flor voar/ o céu das janelas abrir/ o céu da árvore crescer da sombra da árvore”. O paralelismo sintático é atravessado por uma transfiguração do céu, que passa a ser um para o beija-flor, outro para a janela e outro para a árvore. Trata-se de uma poesia do olhar, mas de um olhar pensante, que usa a organização sintático-semântica para variar focos e transformar o real no exato momento de sua captura.

Assim, poderíamos elencar como recursos formais recorrentes na obra de Capucho: a centralidade de verbos vinculados aos sentidos (especialmente, “olho”, “vejo”, “ouço” e “escuto”), o registro pictórico de um ambiente no exato momento de sua metamorfose, a coordenação sintática de substantivos ou adjetivos (produzidos não raro por uma sequência de símiles ou metáforas que vão se testando diante do ouvinte), rupturas semânticas ou mesmo sintáticas que deslocam o real e, por fim, um apurado controle da captura das cenas (que se expressa por meio de aproximações ou distanciamentos de foco, variações de iluminação, dualidade entre a inércia e o movimento).

Na representação das cidades, podemos pensar em exemplos, como “Lua singela” e “A vida é livre”, ambas de Lua singela. Na primeira, uma espécie de vampiro se anuncia na primeira estrofe, buscando sangue para se alimentar. Então, afirma, “vocês estão muito mais lindos/ pelas ruas da cidade/ subindo pra os apartamentos/ indo pras suas casas”, enquanto a voz poética reclama: “eu não tenho nada pra comer/ eu vou morrer de fome/ eu não tenho onde morar/…/ Vou andar sem destino/ dormir sob as marquises”. Esse olhar desejante e desabrigado se lança sobre os homens na cidade e, no final, conclui a paisagem: “no céu negro de estrelas/ a lua enorme caindo atrás da cidade/ ê, lua singela!”. A montagem da cena cria, portanto, três núcleos imagéticos: o vampiro desabrigado (na rua), os homens se dirigindo para suas casas (os apartamentos) e, em apenas três versos, um céu negro e estrelado envolve o cenário urbano em uma operação vangoghiana. A lua que era “enorme” atrás da cidade, torna-se singela em seu movimento poente, contaminando toda a cena a partir desse olhar desabrigado. 

Em “A vida é livre”, é a vez do mar ser pintado em verso por Capucho: “a vida é livre/ as ondas batendo na praia/ elas vêm com força/ parece que empurram a cidade pro alto/ parece que querem isso”. A imagem potente das águas empurrando a cidade pro alto (note-se como o caráter verticalizante da cidade ganha sentido aqui a partir de um impulso da natureza), torna-se representativa da própria liberdade da natureza, e portanto, da própria vida. Na sequência, céu, vento, mar, montanhas, luz, aves voando, peixes mergulhando, enfim, o espetáculo da imanência de tudo, da liberdade de tudo, levam ao verso “a vida não para de chegar/ e eu já não tenho medo”. O sujeito, incluso no movimento das coisas, partícipe da beleza das coisas, se integra ao cenário que observa e transforma, atribuindo sentido à vida que chega pela contemplação natureza.

Por fim, valeria indicar como essa pulsão do olhar atua na emblemática canção “Maluca”, que se abre exatamente com um convite para olhar, em uma cena matizada pela chuva e pela tristeza: “num dia triste de chuva/ foi minha irmã que me chamou pra ver/ era um caminhão, era um caminhão/ carregado de botões de rosa/ eu fiquei maluca/ por flor tenho loucura, eu fiquei maluca”. O gesto de olhar (e o encanto com a beleza) provoca a ruptura do dia triste (mas não da chuva, que continua a incidir sobre o dia). A canção se completa:

Saí
E quando voltei molhada
Com mais de dúzias de botão
Botei botão na sala, na mesa, na tv, no sofá
Na cama, no quarto, no chão, na penteadeira
Na cozinha, na geladeira, na varanda
E na janela era grande o barulho da chuva
Da chuva
Eu fiquei maluca
Eu fiquei maluca

O interessante é perceber o próprio sujeito lírico feminino capturado entre a chuva e a as rosas (vale também observar a ambiguidade da oração “quando voltei molhada”, que evoca o registro feminino da excitação). Sujeito e ação se fundem pela proximidade fonética entre “botei” e “botão”, que abrem uma sequência de termos coordenados que transfigura o espaço caseiro convencional que os substantivos evocam – a cama, o quarto, o chão, a penteadeira, a cozinha, a varanda e a janela (ao que vale observar também a mudança de cômodos, intensificando o espalhamento da beleza). A janela é agora o elo para o fechamento do ciclo, retornando à imagem (e, especialmente, ao som) da chuva e da iluminação dessa personagem que ficou “maluca” (e não mais triste em meio a um dia chuvoso). É bonito notar também como é justamente a expressão poética o veículo da transformação: é o compositor Capucho que distribui, com a voz, flores em uma casa num dia chuvoso – as flores, a casa e a chuva, todas feitas de palavras.  

Quinta luz: Mamãe me adora

Outro aspecto importante para compreender a obra de Luís Capucho é a representação da mãe em seus livros e canções. Como já disse, a figura da mãe aparece nos romances Rato (em que o rapaz se muda com a mãe) e Mamãe me adora (que conta a viagem com a mãe para Aparecida do Norte). Antes de tudo, a mãe aparece aqui como interseção entre romance e vida, dado autobiográfico e representação literária. Para além disso, a figura materna, estritamente ligada ao feminino, surge como fonte rica de representações, não apenas sobre o gênero, mas sobre a própria experiência da vida e do tempo, da decadência física e da morte. Nas canções, além das referências em “Música de sábado” (“eu ando com mamãe na lua cheia”) e “Mais uma canção de sábado” (“agora que não tem mais mamãe para me proteger”), a imagem da mãe ganha centralidade em “Mamãe me adora” e “Sua mãe” (de Antigo) e, por fim, em “Eu quero ser sua mãe” (de Cinema Íris).

Em “Mamãe me adora”, a letra joga com as relações edipianas desde os primeiros versos: “mamãe me adora/ profundamente ela me quer/ mais do que quis outros homens/ que ela também amava/ que ela também devorava”. Na segunda parte, o espelhamento com a figura materna, começa por “eu também sou feliz com homens/ como os que amou mamãe” e segue por uma lista de “homens que são/ cheios de tesão/ como diabos/ homens que são/ como aparição/ como nossa senhora/ homens que são belos e bons/ sentados, homens em pé/ fortes, feios, gordos, galantes, machos, motoristas, rudes, ruins/ delicados, generosos, gentis/ bravos, brutos, crespos,/ lisos, presos, soltos/ suaves, sofisticados, simples/ soldados, ciganos, pedreiros, patrões… mamãe me adora”.

No canto, Capucho enfatiza mais lentamente o verso reiterado “homens que são…”, enquanto desliza pelos predicativos, formando novamente uma coordenação de imagens masculinas muito semelhante àquela que já discutimos ao relacionar o fragmento de Cinema Orly à canção “Cinema Íris”. Assim, a discussão sobre a homossexualidade e a masculinidade aparecem já aqui, antes das duas obras, projetando a figura materna como dado importante da formação dessa subjetividade e de seus desejos.

Em “Eu queria ser sua mãe”, novamente as coordenações sintáticas e as anáforas vão desenhando a figura materna, na qual o sujeito se projeta (“eu quero ser sua mãe/ feito ela ser tão bom/ feito ela ser macio/ feito mamãe ser o seu prumo”). A mãe surge aqui como aquela que cuida, veste, arruma, zela, protege (“te fazer vestir a camisa”, “te fazer calçar os chinelos”, “e não esquecer o guarda-chuva”, “pentear os seus cabelos”, “cortar as suas unhas”). A subida do tom em “quero te pegar no colo” (junto ao crescente do desejo), aterrissa em “te colocar na cama”, permitindo a virada para um universo de ambiguidade mais claramente incestuosa – “brincar no seu corpo pelado” e, por fim, “te lambuzar com o meu doce”.

O processo de transfiguração da relação com contornos homoeróticos (que é um dado externo à canção, mas que lhe é pertinente enquanto peça de um conjunto de produções de Capucho) chega ao auge nos versos finais, quando o próprio doce do sujeito contamina seu parceiro, que passa a ser alvo iminente do perigo, da degradação, da destruição (“e ficar matando as baratas (as formigas) que venham te comer”. Assim, o sujeito (projetado na mãe), para que o lar se mantenha em ordem, cumpre seu ciclo de doçura, ameaça e proteção.

Sexta luz: Poema maldito

Em 2009, Ney Matogrosso gravou o álbum Beijo bandido, que se tornou DVD em 2011.Aparentemente, o adjetivo do título desencadeou um processo reflexivo no intérprete, que, nesse mesmo ano, anunciou seu desejo de fazer um disco só com compositores “malditos”, entre os quais destacava Itamar Assumpção, Jards Macalé, Jorge Mautner e Luís Capucho. Do nosso autor, chegaram a Ney as canções “Céu” e “Cinema Íris” como possibilidades. Note-se que, em 2011, os discos Cinema íris e Poema maldito ainda não haviam sido lançados. Em fevereiro de 2011, o jornal O Globo publicou a reportagem “O ‘lendário’ e ‘maldito’ Luís Capucho lança disco e livro e é gravado por Ney Matogrosso”, ajudando a reforçar a imagem de maldito a Capucho, e dando visibilidade ao disco Cinema íris e ao livro Mamãe me adora, ambos lançados, como se sabe, no ano seguinte.

O fato é que Ney desistiu da ideia do disco, conforme registrado na imprensa a partir do final de 2016. No entanto, seu aval ajudou a trazer Luís Capucho para um espaço de maior visibilidade e, ao mesmo tempo, acabou sugerindo um viés de leitura de sua obra por meio do predicativo de marginal. O próprio Capucho se apropriou desse gancho, quando em 2014 lançou o disco Poema maldito, curiosamente transfundido do poeta para o poema a condição maldita.

Os termos “maldito” e “marginal” são férteis no sentido de compreendermos melhor tanto aspectos contextuais como também estéticos que se vinculam diretamente a esses termos. Em primeiro lugar, vale observar como a origem das palavras nos ajuda a inferir os sentidos primários desses termos. Assim, “maldito” é aquele vinculado ao maldizer, isto é, aquele sobre quem se fala mal, aquele a quem se desaprova a forma de existir e a forma de se expressar. Já “marginal” é aquele que se encontra à margem, isto é, aquele que não flui o caminho tradicional e que, por isso, é posto à parte. O termo, evidentemente, pode ser vinculado também àqueles artistas que estão à margem da produção mainstream, da visibilidade das grandes mídias, que estão postos para fora da cena, obscenos que são.

A ideia do poeta maldito também pode ser vista a partir de sua conotação romântica, especialmente na virada do século XVIII para o XIX, quando o culto à subjetividade e a auratização do “gênio” levaram à idealização dos poetas como visionários, assinalados e amaldiçoados, que conseguem ver e sentir além, tornando-se incompreendidos. O poeta desviante num universo de vida intensa, degradação física, loucura, entorpecimento, idealização da morte, e até numa certa atmosfera satânica, iriam contribuir para essa formulação. No final do século XIX, a poesia moderna francesa revisitou o mito do poeta maldito, especialmente em torno de poetas como Baudelaire, Rimbaud, Verlaine e Mallarmé.[5]

Já o termo marginal pode ser mais bem compreendido na linha histórica da virada dos anos 1960 para os 1970, ao que evidentemente contribui a algo esdrúxula contemporaneidade entre o apogeu da ditadura civil-militar e o auge do influxo dos movimentos contraculturais no país. Nesse contexto, Frederico Coelho nos chama atenção para a profusão do rótulo no Brasil da época, quando se começa a falar em “imprensa marginal”, “poesia marginal”, “cinema marginal” e, por fim, em compositores marginais, isto é, os músicos “malditos”, como Jards Macalé e Luiz Melodia.

É também de grande importância pensar que a marginália apresenta vínculos estreitos com a tropicália, compondo um dos intercruzamentos mais férteis para a cultura brasileira na virada dos anos 1960 para os 1970. A incorporação da marginalidade urbana, do desbunde, das posturas libertárias em relação ao sexo e às drogas, a valorização da juventude e do narcisismo e a centralidade do corpo e das lutas identitárias seriam refletidas também nas buscas estéticas do período. Vale lembrar que Luís Capucho se mudou para Niterói, ainda adolescente, exatamente nos anos 1970, tendo vivido direta ou indiretamente os influxos desse momento histórico e estético. Convém também lembrar do disco coletivo Ovo,de 1996, que se pretendeu associado a uma ideia de “retropicalismo”. Talvez, a inclusão de Capucho nesse conjunto sinalize menos uma associação direta com o universo tropicalista do que uma relação estreita com o universo marginal que lhe faz interseção.

A obra de Capucho dialoga com esses sentidos, não apenas ao representar o espaço underground dos cinemas pornô do centro, mas também as criaturas marginais, que carregam consigo a tensão entre o sagrado e o profano, a luminosidade e a escuridão. Além disso, o signo do poeta maldito (ou marginal) parece sempre abrir seus sentidos no tempo (em um processo de ancestralidade de personagens malditos) e no espaço (em um processo de mitificação de lugares alternativos onde vivem, se encontram, gozam e se exilam os marginais). Em canções como “Música de sábado”, “Mais uma canção do sábado” e, evidentemente, “Poema maldito”, encontramos exemplos desse conjunto simbólico.

A “Música de sábado”, que abre o disco Cinema Íris, é uma parceria com a artista Kali C, e trata de um sujeito que se afirma “na beirinha”:

Poucos fazem como eu faço
Que estou sempre na beirinha
Daqui pra lá não existe mais fundo
Daqui pra lá não existe meu mundo
Daqui pra lá é o fim

É a maluquice
Eu ando com mamãe na lua cheia, na noite vazia
Uma jovem bicha triste
Mendiga um trocado pra comer biscoito
Penso um pouco
Olhando para o mar, olho pro vazio, olho para mim
Olho pro rapaz sentado esperando
Olho para o fim

O sujeito da canção já começa se colocando em um espaço de exceção – fazer o que poucos fazem, estar sempre na beira ou, se preferirmos, à margem. A palavra “beira” parece ser ainda mais interessante, não apenas porque demarca um espaço fundo e limítrofe, que encerra os limites do mundo daquele indivíduo. Assim, o sujeito à beira torna-se também um sujeito sempre em perigo, sempre próximo ao fim, ao risco de perder seu mundo. Esse misto de gauchismo e precariedade acabam por defini-lo. A maluquice, evidentemente, reverbera à imagem da “beira” (vale lembrar a célebre frase de Estamira – “Eu sou a beira do mundo”).

A imagem da mãe (e da lua) volta a aparecer em “Eu ando com a mamãe na lua cheia, na noite vazia”, ao que se segue o verso “uma jovem bicha triste”. É curioso como esse verso “uma jovem bicha triste” é cantando logo na sequência do verso anterior, dando impressão que se trata de um predicativo do sujeito da canção. No entanto, a sequência nos leva a entendê-lo sintaticamente como sujeito do verbo “mendiga” no verso seguinte. A confusão, permitida pela oralidade da canção e pela construção da palavra cantada, não deixa de funcionar como registro empático entre o sujeito e a bicha triste que mendiga para comer.

Nota-se também na mesma canção a pulsão do olhar, que tanto caracteriza a expressão de Capucho, o que se observa na reiteração dos verbos “olho” (como em “olho pro rapaz sentado esperando”), “vejo” (como em “vejo calças arriadas no banheiro do Rex”, em nova alusão ao universo dos cinemas). Nos versos “tomo os remédios e continuo/ da beirada vê-se o céu aberto”, a margem abre-se também no sentido da enfermidade e, portanto, da beira da vida, isto é, da experiência da própria precariedade da vida. Apesar de conseguir ver o céu aberto, é notável também que o limite é tênue para aqueles que vivem (e ainda mais para aqueles que vivem à margem). A música completa um arco de caminhada que termina em sua própria casa – “ando até minha casa/ a música do sábado à noite/ me derrete sozinho na cama”.

Assim, a solidão encerra a canção configurando-se como um último registro da beira – o inclinar-se para fora no arriscado desejo da transitividade amorosa. Interessante por fim, registrar a ambiguidade do verbo “derreter”, tão afeito às experiências de sexo (evocando o suor), das drogas (do entorpecimento) e da música (vinculada ao sábado, dia do ócio e do prazer), em contrapartida à solidão da cama, isto é, um gesto de derreter-se que pressupõe a dissolução do sujeito, seu risco de desaparecimento, seu estado à beira.

Essa canção é bom preâmbulo para compreendermos a chegada do disco Poema maldito em 2014, que condensa alguns vetores da obra de Luís Capucho. Vale começar chamando a atenção para a escolha da capa, produzida por Felipe Castro a partir de sugestão do jornalista João Santos. Na fotografia, Capucho aparece deitado no chão, de olhos fechados, de braços abertos, com o violão sobre si. A referência é nitidamente o estandarte de Hélio Oiticica de 1968, que traz a imagem do bandido Cara de Cavalo, amigo do artista, que foi morto pela polícia à época. Completa a obra a inscrição “seja marginal seja herói”, reforçando a relação daquela geração com o universo da marginalidade urbana e com a auratização dos personagens à margem do sistema.

Gonzalo Aguilar, ao comentar o estandarte de Oiticica, nos chama atenção também para a proximidade entre a posição de Cara de Cavalo e o apóstolo Pedro, crucificado de cabeça para baixo, na representação de Michelangelo no século XVI, o que reforça ainda mais a santidade maldita do personagem em sacrifício e redenção, bem como as aproximações entre o sagrado e profano que tratamos. Vale, por fim, observar a curiosa inversão dos braços de Capucho e do bandido – enquanto este apresenta os braços para baixo (mais próximos dos de Pedro) e que parecem mais rígidos e presos, aquele os apresenta mais para cima (mais próximos dos de Cristo), e parecem mais frouxos e relaxados, como quem entrega o corpo à cama, livre e despojado.

Fontes: https://www.luiscapucho.com.br/; http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra2638/bandeira-poema; https://pt.wahooart.com

O disco apresenta duas canções que são pertinentes a nossas reflexões e que, curiosamente, não têm letras originais de Luís Capucho, embora tenham sido compostas em proposital sintonia com seu universo. A primeira delas é a “Mais uma canção de sábado” de Alexandre Magno, que inventa uma espécie de continuidade da “Música de sábado” de Capucho, como também de alguns de seus temas e procedimentos construtivos. A música começa na cama, com o sujeito acordando “babado” e “tarado” de saudade (vale lembrar que a “Música de sábado” termina com o sujeito que “derrete sozinho na cama”). A mãe que aparece na primeira canção (“eu ando com mamãe na lua cheia, na noite vazia”) agora já se configura como ausência (“agora que não há mais mamãe pra me proteger”). Mais uma vez também a janela aparece como núcleo de observação de um real transfigurado – “as coisas belas não sabem onde se esconder”, como se quisessem ou devessem fazê-lo. Assim, as coisas belas tornam-se “frágeis”, “corajosas” e “nuas”, expondo-se sem medo de sua beleza. A descrição subsequente da segunda parte continua a ilustrar processos construtivos semelhantes, nos quais “móveis”, “facas”, “livros” e “plantas” completam o cenário, vendo e sendo vistas pelo sujeito.  

A letra se segue com a reiteração dos versos “vagando pelas ruas e avenidas/ você não pode mais se esconder de mim/ você está em todo lugar”. Veja-se que, se a primeira canção começa em movimento na rua e vai até a cama parada; aqui fazemos o caminho inverso – da cama para a sala e desta para a cidade. A transfiguração do real também presentifica o objeto do desejo amoroso (motor da saudade), que surge como todas as coisas belas que não podem se esconder. A crescente batida do violão e o canto visceral de Capucho nesses momentos de refrão condensam o tom desesperado e assertivo com que se busca, no campo do real, uma beleza que está mais que presente no campo imaginário.

O caráter marginal aqui se sustenta mais claramente pela relação direta com a canção anterior, ainda que se possam encontrar algumas referências nesta própria letra, como o sujeito desejante e solitário que vaga pelas ruas, a cabeça consumida por uma ideia totalizante, que se espalha por todo lugar. Aqui, é impressionante tanto a congruência da letra com o universo capuchiano como a apropriação que Capucho faz dessa letra, tornando-a sua, como faz com tudo que canta.

A música que dá título ao disco Poema maldito tem letra de Tive, mas é inspirada em uma história vivida por Capucho em uma praia de Icaraí. Convém citar a letra inteira:

Estou na praia com um sujeito aleijado
Que busca intimidade comigo
Ele tem os braços atrofiados
E isso faz com que ele se pareça um louva-deus sagrado
Estamos conversando
Ele me diz que vive só
E que prefere assim
Porque gosta de se deitar no sofá
A ver filme pornô

Eu disse: sou o Luís Capucho e escrevi o Cinema Orly
E tenho namorado
Em todo caso ele me chama pra beber
E ver filme pornô na sua sala
Então, se aproxima e trata de sentar-se do meu lado
Mas não sei como aconteceu
Ele caiu no chão
Ele caiu no chão
Com movimentos estranhos que não entendo
Fico um tempo a reparar que não vai se levantar sozinho
E vou embora dali
E o abandono em sua agonia de inseto moribundo

É curioso pensar que essa letra toda se passa no solar espaço da praia. No entanto, os dois personagens ali postos, tal como o diálogo que travam entre si parece contaminar o cenário e, portanto, mais uma vez transfigurá-lo. Primeiramente, o “sujeito aleijado” e solitário que gosta de ver filme pornô já se apresenta como encontro inusitado. A letra, porém, observa seus “braços atrofiados” e o aproxima da imagem de um “louva-deus sagrado”. O inseto acaba por concentrar o paradoxo entre a estranheza de sua forma (para além de sua precariedade) com o caráter sagrado que adquire ao aproximar-se do louva-deus e de seu gesto.

O convite para ver o filme pornô (e o próprio flerte homoerótico), aliás, evoca o universo dos cinemas pornográficos e, assim, as obras-irmãs Cinema Orly e Cinema Íris, devidamente conectadas discursivamente ao presente álbum, condensando o caráter marginal-maldito do compositor. Dessa vez, porém, o verso “E tenho namorado” abre-se em dois sentidos – a negativa da intimidade buscada pelo sujeito, e a própria evocação redundante da busca de um namorado que atravessa todo o Cinema Orly. Com isso, o poeta, de fato, aparece aqui menos maldito que o poema, dando sentido ao deslocamento do título. Já o outro personagem insiste no jogo da sedução, mas acaba se desequilibrando e caindo (o que é repetido na canção), de modo inesperado para o sujeito lírico que, outra vez, observa a cena.

O mais curioso é o esvaziamento de qualquer sensibilidade piedosa por parte do enunciador. Onde esperamos uma oferta de ajuda, um gesto solidário de socorro, encontramos uma indiferença crua, que simplesmente assiste à queda e à impossibilidade de se levantar (tal como se vemos insetos caírem invertidos e não conseguirem se recolocar). A agonia do sujeito aleijado parece realçar, em seu sacrifício, seu caráter sagrado. E a aparente indiferença que poderia nos chocar na cena é facilmente explicada: tal como os répteis do Orly, o personagem havia se convertido em imagem.

Sétima luz: Homens flores

Bruno Cosentino, que me apresentou Luís Capucho, é um importante intérprete de sua obra, tendo gravado belamente as canções “Homens flores” no disco Babies,de 2016, e “Eu quero ser sua mãe” em Corpos são feitos pra encaixar e depois morrer,de 2017. Nos últimos anos, assisti muitas vezes a shows dos dois juntos ou ao menos fazendo participações um no show do outro. Neste ano de 2018, Cosentino fez um espetáculo com canções de Ney Matogrosso e incluiu no repertório “Cinema Íris”, como forma de provocação-homenagem. Ney e Capucho estavam na plateia.

Seria necessário outro trabalho para abordar as relações entre o universo desses dois artistas, embora pareça claro que a questão do corpo seja central para as duas obras. Nos dois últimos álbuns, Bruno Cosentino também explora o jogo entre o masculino e o feminino, em frequentes deslizamentos que aparecem nas letras, no canto, nos figurinos e também na postura cênica do artista. Conversamos muitas vezes sobre a questão da masculinidade e como ela aparece na obra de Capucho, e como ela poderia ser levada também para outros lugares. Tais elementos se consolidaram, afinal, como vetor importante no conjunto dos artistas da música brasileira contemporânea que exploram a questão do gênero e da sexualidade em suas múltiplas conjugações.

Quando conversávamos sobre isso, Bruno Cosentino pensava um nome novo para seu show, que abarcaria majoritariamente as canções de Babies e Corpos…, que são também uma espécie de obras-irmãs no conjunto de sua produção. Eu sugeri Homens flores, que é o título da parceria de Marcos Sacramento com Luís Capucho, que começa dizendo: “os mundos são mais belos/ quando olhados pela janela/ e as colinas estão repletas de homens fortes”. Na sequência, versos paralelos se atravessam de modo especular, alternando o pronome coesivo e interferindo na imagem: “e eu olho pra elas [eles] porque elas [eles] são o mundo inteiro/ e eu olho pra elas [eles] porque elas [eles] são meu terreno/ onde eu vou plantar/ homens flores, flores homens”.

A letra me parece uma chave de leitura poderosa para compreender a obra de Luís Capucho. Novamente vemos aqui as janelas, os homens e as flores. E, sobretudo, o exercício de transfiguração do real que tratamos aqui. A imagem quase classicista de uma colina “repleta de homens fortes” dá centralidade aos corpos masculinos em sua fusão com o cenário. A pulsão do olhar também aparece aqui e é um deslizamento que provoca a subversão da cena – ora as colinas são o mundo inteiro, ora os homens são o mundo inteiro, o que faz confluir o humano e o natural em uma imagem totalizante. Na sequência, os homens e as colinas passam a ser um terreno, onde é possível plantar flores homens e homens flores.

O terreno misto de natureza e humanidade é justamente aquele que permite o híbrido entre as flores e os homens (vale lembrar o verso “caralhos são flores” da outra canção). A flor, curiosamente, em geral, é representada como signo do feminino, muito embora sua forma, seu caule, e a forma que se projeta no espaço poderia também ser vista sob a chave do masculino. De todo modo, o embaçamento entre esses signos permite o nascimento de uma coisa outra, que é homem e flor, e que reflete esse espelhamento na própria inversão dos termos, fazendo das duas palavras, ora substância (substantivo) ora característica (adjetivo). Além disso, é comovente a imagem que transforma os homens em uma coisa (bela e delicada) a se plantar (e a se colher com os olhos). É desse modo que Luís Capucho, homem-flor, nos revela a beleza e traça seu arco iluminado, que sai de sua palavra-voz, a vida.


* Rafael Julião é professor substituto de Literatura Brasileira na UFRJ, onde fez seu mestrado sobre Cazuza e o doutorado sobre o livro Verdade tropical de Caetano Veloso. É também coordenador do Núcleo de Estudos da Canção do PACC e autor do livro Infinitivamente pessoal – Caetano Veloso e sua verdade tropical (2017).

Referências

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BATAILLE, George. O erotismo. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.

CAPUCHO, Luís. Cinema Orly. Rio de Janeiro: Interlúdio, 1999.

CAPUCHO, Luís. Mamãe me adora. Rio de Janeiro: Edições da Madrugada, 2002.

CAPUCHO, Luís. Rato. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.

COELHO, Frederico. Eu brasileiro confesso minha culpa meu degredo – cultura marginal no Brasil das décadas de 1960 e 1970. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Impressões de viagem. São Paulo: Brasiliense, 1980.

FERRAZ, Eucanaã (org). Poesia marginal – palavra e livro. São Paulo: IMS, 2013.

LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico – De Rosseau à internet. B.H.: Editora UFMG, 2008.

LUCÁKS, Georg. A teoria do romance: um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande épica. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2009.

PEREIRA, Carlos Alberto M. O que é Contracultura. São Paulo: Brasiliense, 1983.

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ROSAI, Nathália. Sou o sol: uma investigação heliotrópica da experiência extática em Georges Bataille. Revista Nures, ano III, número 21, maio-agosto de 2013.

SKYLAB, Rogério. O sublime na obra de Luís Capucho. Disponível em: http://godardcity.blogspot.com/2015/04/o-sublime-na-obra-de-luis-capucho.html. Acesso em dez 2018.

Sites pesquisados:

https://www.luiscapucho.com.br/

https://oglobo.globo.com/cultura/o-lendario-maldito-luis-capucho-lanca-disco-livro-e-gravado-por-ney-matogrosso-2819556


Notas

[1] Programa Avançado de Cultura Contemporânea, que funciona na Faculdade de Letras da UFRJ.

[2] Em dada passagem de seu livro Cinema Orly, Capucho afirma: “Na mesa de bar, contei-lhe também a minha história. Tinha uma boa história, quer dizer, eu gostava dela e ele comprazia-se em ouvir-me contar que não tinha conhecido meu pai, era filho único, fora criado sozinho com minha mãe com quem vivia até então numa casa com quintal, cachorros, gatos, bicicleta, televisão, sofá e um pé de carambola” (CAPUCHO, 1999, p. 39).

[3] Os outros artistas que compõem o programa “A voz dos marginais” são Bingo Gazingo, Daniel Jandek, Shooby Taylor, Åke Sandin e Bob Vido.

[4] http://radiobatuta.com.br/programa/a-voz-dos-marginais/

[5] É emblemática nesse sentido a coletânea de Paul Verlaine, de 1884, que se chama justamente Les poètes maudits.

dossiê
Tempo de leitura estimado: 42 minutos

ESCUTA BRUNO COSENTINO

Em 21 de setembro de 2017, Bruno Cosentino, um dos idealizadores do Núcleo de Estudos da Canção do PACC, da Faculdade de Letras da UFRJ, foi convidado a fechar o ciclo do primeiro ano de audições de discos de canção brasileira contemporânea, com seu álbum Corpos são feitos pra encaixar e depois morrer (2017). Na ocasião, conversamos sobre sua trajetória artística, os elementos estéticos e temáticos do disco, e também sobre questões como a natureza da canção, as questões do corpo e da sexualidade, as influências musicais, os problemas da criação artística e a inserção do artista no contexto musical contemporâneo.

Para a escuta:

Bloco 1 – O corpo

Escuta: 1. “É claro que eu queria” (Bruno Cosentino)

Rafael Julião: Bruno Cosentino é cantor e compositor. Tem quatro discos: o primeiro, de 2012, é com a banda Isadora e se chama A eletrônica e musical figuração das coisas; depois Amarelo, de 2015; Babies, de 2016; e o que é assunto nosso hoje, Corpos são feitos pra encaixar e depois morrer, de 2017. Mas eu queria começar falando do percurso que levou você até o Corpos… Então, brevemente, eu queria que você voltasse à banda Isadora e me contasse como você foi parar nisso de gravar disco, de fazer banda, de cantar, enfim, de se descobrir como cantor.

Bruno Cosentino: Então, eu nunca tive banda. Muita gente começa a tocar porque tem banda. Eu sempre toquei sozinho, voz e violão. Só que, depois de um certo tempo, eu decidi ter uma banda, porque queria de fato assumir que queria fazer um trabalho assim. Aí, eu chamei uns amigos pra fazer uma banda, mas isso era mais velho, sabe, já tinha passado da época de ter banda. E foi uma grande descoberta fazer, tocar com banda. Achei difícil, porque eu e violão, eu tinha muito domínio. Porque era só eu ali e o violão. Até hoje, eu tenho um domínio muito maior, quando sou eu e o violão só. E foi muito prazeroso, foi uma descoberta tocar com banda. E foi essa banda que teve, gente que entrou, saiu e tal. Mas que a gente lançou esse disco. Chama-se A eletrônica e musical figuração das coisas; que é o meu primeiro disco, considero meu primeiro disco, meu mesmo também, porque eu fiz muita coisa desse disco.

RJ: E, aí, você passa e faz uma sequência bem anual: Amarelo, Babies, Corpos. Queria que você falasse do Amarelo. Enquanto primeiro trabalho solo. Você ficou três anos sem gravar disco, é isso?

Bruno Cosentino: Ah, então, aí, eu fiquei com a banda. Aí, eu fazia o disco, fiz o trabalho com a banda e aí a banda é complicado. Aí eu falei, vou fazer minha coisa sozinho. E também eu tinha vergonha, na época, de botar meu nome na cara. E, por isso, Isadora, era um nome que ficava na minha frente. E tinha medo, tinha vergonha também de botar minha cara na vitrine. E foi um movimento também pra isso… pra isso acontecer, assim… terapêutico, tipo, botar meu nome na cara e me mostrar mais mesmo.

RJ: É uma produção grande, Amarelo, Babies e Corpos, um por ano, e dá para ver, teoricamente, uma linha entre eles. Uma linha geral de coisas que se repetem, eu digo, de coisas que são suas. O Amarelo, teoricamente, tem uma coisa do amor, que paira em todos eles, como é comum no trabalho da canção popular… Mas o Amarelo, teoricamente, viria de uma ótica mais espiritual e haveria uma ótica do amor mais sublime. Não sei se sublime é a palavra. Você tem que dar a palavra. E o Babies você aterrissou e tem uma coisa mais de um amor mais visceral, terreno.

Bruno Cosentino: É, eu vejo assim: que o Amarelo é, tipo, assim, “estou querendo fazer e não fiz”. O Babies é “fiz”. E o Corpos é “fiz e, aí, o que que eu achei?”. Entendeu? O Amarelo é mais sublimado. O Babies é menos. E o Corpos é menos ainda, eu acho. Mas uma coisa que eu percebi, quando eu fiz o Amarelo, antes da Isadora, no Amarelo, eu me dei conta de que eu queria fazer as letras e as músicas, assim, mesmo que piores. Porque até aí, eu musicava muitos poemas. Por exemplo, no Isadora tem dois poemas do Eucanaã. E são canções lindas. Tem um do Paulo Henriques Britto. Eu musicava muitos poemas, eu não fazia letra, assim, pá… eu queria realmente fazer letra. E, aí, foi uma experiência muito boa. Tanto é que agora tem letras que eu acho que eu não gosto nada, do Amarelo. E na época eu já também não gostava. Achava, assim, meio irregular, meio assim… Só que, ao mesmo tempo, eu precisei bancar isso, porque foi a primeira vez que eu escrevi coisas que de fato eu sentia. Por mais que isso pudesse ser precário e por mais que eu soubesse que ainda não tava, que ainda podia ser melhor, mas era eu fazendo. Mas sempre foi sincero. As letras que eu musiquei, os poemas que eu musiquei, em tudo ali existe uma identificação profunda. Mas com o Amarelo, foi como assim, mais do que identificação, eu sentia muito aquilo e, às vezes, eu não sabia nem explicar, mas eu sentia. Porque foi a partir de uma experiência pessoal muito intensa que foi, tipo, três, quatro anos depois que eu me casei. Então, foi uma mudança na minha vida muito grande, assim, emocional. Então, ele é fruto disso, na verdade.

RJ: É, e logo depois, isso era uma coisa que eu ia comentar. Você tem uma produção anual de disco. Você já tem 2015, 2016, 2017, você já está pensando em fazer um para 2018 ou é um momento de produtividade ou é pressa de expor?

Bruno Cosentino: Os dois. Ah, é pressa porque, em algum momento, eu sou mais da contenção, e eu gosto de ir contrariando o que eu sou. E eu era mais da contenção de só publicar aquilo que eu achava muito legal e tal. Depois, tentando fazer parte do meu tempo, em que tudo você publica muito rapidamente, tudo se esgota e tal, de forma muito rápida também… eu fui tendendo mais a uma produção de quantidade, sabendo que isso poderia me trazer qualidade também. E é assim que eu acho que acontece comigo, a cada disco que eu faço, eu sinto que eu estou melhor, que eu faço as coisas melhor. Eu vou ganhando experiência. Então, gravar disco pra mim é assim, eu sinto que é uma evolução artística. Por isso que eu gravo muito disco. E também porque eu descobri que eu posso cantar músicas de outros compositores. Não que eu já não soubesse disso antes, mas eu sempre fui cantor. De início, eu era só cantor. Até que, na época, quando eu era bem menininho, tipo, o Serginho Natureza, que é um compositor, Elis Regina já gravou música dele e tal. Tem umas canções bem conhecidas, ele é amigo da minha família e produziu um show meu. Escolheu um repertório superbacana, mas que não tinha nada a ver comigo. Foi um fiasco pra mim fazer aquele show. Eu nessa época já cantava bem. Era o que eu sabia fazer. Não compunha. Eu não gostei nada desse show, nunca mais fiz, porque eu queria mesmo compor. Então, essa coisa de gravar disco também, eu já consigo compor e gostar, mais ou menos, do que estou fazendo. Agora, eu posso cantar as músicas que têm a ver com meu universo… o Amarelo tem uma música só, que não é minha, é do Otto, e eu gosto muito. No Babies tem muitas de outras pessoas. E nesse aí, último, tem menos, mas é um pouco mais variado. Tem de colegas de profissão da minha geração que vocês talvez não conheçam, porque não tá na televisão. Então, essa coisa de gravar disco, é isso. Eu sinto que eu melhoro muito. E eu gosto de gravar disco, pensar sonoridades, composições, e é mais fácil gravar disco do que era, então, por causa disso também.

RJ: E o Corpos, quando você estava no show do Babies, as músicas do Corpos já existiam? É com a mesma banda, não é isso?

Bruno Cosentino: Esse disco, meu segundo disco Babies, eu gravei… e, em algum momento ali, quando fiz o show de lançamento, eu já sabia, eu já tinha ganhado um edital pra fazer um disco. Eu tinha prazo pra fazer esse disco. Então, fiz show de lançamento do Babies em maio e tinha que gravar esse disco até o final do ano. Então, não pude fazer shows do Babies. Eu tive que gravar esse disco. O tempo que eu tinha era pra ensaiar e gravar. Aí, eu gravei e agora estou fazendo um show que se chama Homens Flores, que é o nome de uma música do Luís Capucho e do Marcos Sacramento, que eu gravei no Babies e é um show que reúne o repertório dos dois discos anteriores.

RJ: O disco abre com uma citação que diz: “Como siempre, la duda es, que hacer com el cuerpo?” De onde você tirou isso, o que é isso?

Bruno Cosentino: Tem uma música no Isadora, no meu primeiro disco, que se chama “Milagros de um Dios menor”, que é um poema que eu musiquei de um colombiano, um poeta colombiano. Não nesse poema, mas no livro tem um outro poema que, em algum momento, diz assim: “como siempre, la duda es, que hacer com el cuerpo?”. Só que, na verdade, no poema é literal. Existe um crime, matam a pessoa e, aí, tem a pergunta sobre o que faz com o corpo morto, com o defunto. Só que eu acho que destacado assim ganha uma outra dimensão, eu acho que bem mais bonita… [risos] porque, como sempre, a dúvida é o que que você vai fazer, o que que a gente faz com o corpo. E, aí, uma amiga minha equatoriana, ela gravou esse trecho, vários trechinhos desse poema e a gente inseriu nessa música lá do disco Isadora. Aí, eu lembrei e abri esse disco com essa frase, pedi pra ela regravar e botei.

Capas dos discos Amarelo (2015) e Babies (2016)
Capas dos discos Amarelo (2015) e Babies (2016)

RJ: Talvez, seja muito bom começar daí, porque me parece que o corpo tem uma centralidade grande no seu trabalho. Chega a se usar um termo no release que eu li de “poética do corpo”. Bom, no Amarelo, a capa é o dorso dele, nu, o dorso só. E, no show, você recita, entre outras coisas, o “Soneto do olho do cu”. No Babies, você começa o disco com uma música chamada “Eletric Fish” que tem um peixe elétrico nadando na boca. E, você tem versos como “corpos são azuis e nascemos nus e podemos dançar mar adentro”. No Homens Flores, que você citou, tem “as colinas repletas de homens fortes”. Em Babies tem – abro aspas e cito – “se eu não sou mais que um caralho duro, fiquei sabendo que ele é a flor e o fruto, toda pureza de meu coração de homem mau”. No Corpos tem “eu quero morrer em outros corpos”, “corpos são feitos pra encaixar e depois morrer”. Eu queria que você comentasse essa centralidade do corpo.

Bruno Cosentino: É porque eu acho que o que existe de tensão mesmo é o que nosso corpo pede e o que nossa cabeça freia nosso corpo, que freia a todo momento…

RJ: Essa presença acintosa do corpo talvez seja uma espinha dorsal do seu trabalho de forma geral. Mas sempre de formas diferentes. Talvez esse seja um caminho. Esse corpo não se comportou igual ao longo desses discos, né?

Bruno Cosentino: É. Não. Então… no Amarelo eu acho que era um corpo mais retraído, assim, sabe? As coisas que tão aí me seduzindo no mundo. O que é que eu faço com isso? Não que isso tenha tido reflexo na minha vida pessoal. Eu estou falando assim no disco. Porque no disco eu posso fazer o que eu quiser. Essa é a grande liberdade, porque na vida real a gente não pode fazer o que quiser e eu não tenho vocação pra ser marginal. Embora eu transgrida as regras, as convenções, eu gosto de transgredir, mas sem fazer alarde. Então, nas músicas, eu falo o que eu quiser, eu faço o que eu quiser. E isso é uma grande liberdade pra mim, falar o que eu quiser, e fazer o que eu quiser ali dentro.

Essa coisa do corpo é basicamente isso. A atração sexual, o não entendimento das coisas, sabe? Porque o corpo também é o não entendimento. Tipo, o movimento em direção ao que o corpo pede é você não entender o que você está fazendo. Então, eu quero muito não entender o que eu estou fazendo e quero muito tentar descobrir alguma zona mais hermética, mas que vibre. Que seja um hermetismo que fique vibrando, assim, como alguma zona de mistério. Aí, se descolar, se livrar da sintaxe, sabe, porque canção não tem nada a ver com sintaxe no fim das contas. É muito sensação. Então, ir mais para a sensação e sair do intelectual. Tem sido um trajeto que eu tenho feito. Por estar na outra ponta e quero ir pra essa ponta agora do não entendimento…

Bloco 2 – Bicho, homem, mulher

Escuta: 2. “Sou frágil” (Bruno Cosentino); 3. “Tem que ser você” (Caetano Veloso).

RJ: O Bruno pesquisa Vinicius de Moraes aqui na casa.  E eu fico pensando se “eu quero morrer em outros corpos” é parente de algum grau do verso “é que um dia em teu corpo, de repente, hei de morrer de amar mais do que pude”. O amor na sua obra tem algum parentesco com o amor a Vinicius?

Bruno Cosentino: Não, não sei nem explicar porque agora eu estou lendo muito Vinicius. O cara… não sei, não sei… eu vejo semelhanças não. Bom, entre mim e Vinicius há coisas parecidas e coisas muito diferentes… Então, se eu for falar sobre isso, é uma coisa que não tá nada elaborada. Eu não sei. Eu estudo Vinicius, estou lendo, estou pensando ainda as coisas.

RJ: Até uma das coisas que eu tinha colocado do Vinicius é daquela entrevista que a gente gosta, do Vinicius com a Clarice, em que ele fala que tem ciúme de bicho. E eu tinha pontuado aqui, se o ciúme aparece na sua obra ou se o ciúme é uma questão pra você…

Bruno Cosentino: Não era muito, não. Mas, agora, eu me lembrei disso. Você falou da entrevista. A Clarice fala assim: ah, você ama o amor ou você ama as mulheres? Que ele já se separou várias vezes e tal. Ele falou assim: ah, eu amo o amor, é verdade que eu amo o amor, mas eu amo também as mulheres. E eu fiquei pensando muito. Eu não amo nada o amor. Eu amo realmente as pessoas. Tanto é que eu não amo o amor… eu estudo isso, né [riso] mas eu detesto! Estudar o amor é muito sem sentido, na verdade. Eu descobri isso numa aula que eu fiz, e li teorias sobre o amor. É uma coisa que, claro, é teorizável e é teorizado e gosto de ler. Você teorizar a falta de sentido que há numa relação amorosa, quase isso. Você não consegue chegar lá, porque, no limite, é caso a caso, sabe? E cada caso é um caso. Então, é inútil ficar falando sobre isso. Por isso que eu não gosto nada do amor. Eu gosto, realmente, das pessoas. Gosto de amar as pessoas.

E essa coisa de amar o amor, parece que vem de Santo Agostinho. E tem aquela coisa com Camões, que o amante se transforma na coisa amada….  porque amar o amor, há um tanto de egoísmo e eu sou muito pouco egoísta quando o assunto é esse. Se eu amo uma pessoa, eu me importo muito com as pessoas que eu amo, muito mesmo. Então, eu vivo essa tensão muito constante entre o que que eu posso, até onde eu posso alimentar o meu egoísmo e não magoar as outras pessoas, entendeu?

RJ: Você tem versos como “o cheiro no meu dedo ainda é muito forte/ enlouquece minha cabeça de mulher”, a própria questão do “Sou frágil”, “Eu quero a mão do meu homem e o mel da mulher, meu desejo brilha no escuro”. No realese do Corpos diz que além da “poética do corpo”, há uma proposta de uma nova masculinidade. E você faz deslizamentos, nesse sentido, entre o masculino e o feminino. Eu queria que você comentasse isso…

Bruno Cosentino:  O que está para além, o que tá numa zona de mistério é o que me interessa, sabe? O que eu consiga entender me interessa muito pouco. Embora eu tenha prazer, seja capaz de ter prazer intelectual, e muito. O cheiro é um negócio que te tira a razão. Então, por isso que eu botei isso lá. A coisa da fragilidade, eu vi isso agora, recentemente, na minha filha, que tem quarenta dias que ela nasceu. E é assim, é muito diferente do filho que eu tenho de três anos. E ela já fica emanando uma espécie de feminilidade.

E eu acho que, de certa forma, é uma característica feminina, uma coisa que é fragilidade e força, como se fosse uma coisa só. Ao mesmo tempo que é frágil, é forte. Como se isso fosse a mesma coisa. E eu gosto disso. Eu fiz essa música muito antes, antes da minha filha nascer. É um elogio à fragilidade, é um elogio a você assumir que é frágil, assumir as suas fragilidades. Porque é assim que você é forte; sendo frágil, você é forte. Então, é quase que contra essa ideia norte-americana, patológica do vencedor, que você tem que ser o vencedor, então, a pessoa nunca assume suas fraquezas, nunca assume suas fragilidades. E fica sempre passando por cima disso e se ferrando, porque depois vai se ferrar assim, não entende nada, né.  Então, a questão da fragilidade é essa.

A nova masculinidade seria um homem menos machão, um homem que entenda a mulher. E a mulher também que entenda o homem. Um homem menos…. um homem… homens flores, como a música do Capucho. Outro dia, eu vi um filme, um documentário no Netflix, mas que falava disso, como é opressor com a criancinha, os meninos desde que nascem. Então, assim: “não chore, chorar é coisa de menina”. E faz isso. E faz aquilo. Aí, eles vão sendo treinados a serem homens. Isso, assim, é um horror… E você vai virando um homenzinho, como a sociedade quer. Eu lembro de um menino que, quando era adolescente, usava boina, ele era todo bonitinho, meu amigo. E, aí, a partir de um certo momento, virou um marombeiro. E eu vi isso no filme. Vários meninos que não aguentam ser chamados de bichas, de qualquer coisa e, aí, vão tentar prestar contas à sociedade. Aí, vira um marombeiro, um zé mané. Um garoto superbonito, sabe? Gostava de fazer o que ele queria. Então, é muito opressor. Essa história de que você tem que ser homem é muito opressora. A nova masculinidade nada mais é do que você poder ser o que você deve ser. E era para ser assim também com as mulheres. É muito difícil a gente poder ser o que a gente quer ser…

RJ: É que tem a própria macheza e tem a coisa da heteronormatividade também, né? Porque junto é um combo, ser um macho e ser um heterossexual, e se permite pouco deslizamento entre as categorias definidas, da heterossexualidade. A paixão e o amor na sua obra deslizam muito nesse território da sexualidade também…

Bruno Cosentino: É, os homens têm que se tocar mais, entendeu? Então, assim, o meu pai sempre me agarrou muito. E, aí, eu acho que hoje, nunca percebi isso, mas vendo de hoje, eu acho que eu tenho uma sexualidade bem resolvida, muito por causa disso. Meu pai sempre me abraçou, meu pai nunca me cobrou que eu fosse macho.

RJ: É, eu acho que é um preço por ser “homens flor”. Há um preço para bancar a liberdade dos corpos…

Bruno Cosentino: Eu acho que ser gay, socialmente, tem mais preço, paga mais caro do que ser “homem flor”. O Luís Capucho, que é gay, a gente foi fazer um show, ele falou assim: “ah, adoro como você não tem medo”… Nesse show, eu tava me maquiando. “Você não tem medo de que fiquem te chamando de bichinha”… Eu falei assim: não. Justamente, porque eu não sou, eu acho. Porque ele que é, sabe, ele sente no corpo o que é ser. Eu, não.

RJ: E é engraçado no disco, você emenda uma música super deslizante com uma música do Caetano, “tem que ser você, tem que ser mulher”. E, ainda, fala a coisa do “e homens, o amor mentira pode ser tão bonito”.

Bruno Cosentino: Um pouco dessa canção do Caetano, é que ele canta essa música no grave, assim, “tem que ser você”, tipo, ele faz uma voz de machão caricata, pra cantar essa letra que tem um pouco de caricatura também: “tem que ser mulher”. Então, ele ironiza a própria canção dele ao cantar no grave. Eu botei essa música no disco, depois, porque eu percebi que eu cantava várias músicas no eu-lírico feminino, “a minha cabeça de mulher”, e a outra que eu fiz pra minha amiga, que eu falo, assim, “sou homem, bicho, mulher” e, depois, fala no feminino também. Aí, eu falei, tá, essa confusão é interessante, porque também alguém já tinha me dito que minha voz, ela fica num registro no meio, ela não é nem grave nem muito aguda, então, é uma coisa meio andrógina, o registro da minha voz. Eu falei, tá bom, então, eu vou colocar essa música do Caetano que eu adoro. E não vou cantar no machão, não vou cantar no gravão. Vou cantar como se fosse uma mulher, porque aí é uma mulher dizendo pra uma mulher, essa confusão, uma mulher dizendo que tem que ser mulher. E, ainda, botei no falsete, botei mais agudo ainda. Cantei na minha região normal que seria e dobrei uma oitava acima, que fica mais agudo ainda. E fica muito diferente da dele que fica no machão.

Aí, a coisa do amor-mentira, eu acho que, ele gosta muito daquele ensaio do Thomas Mann, que em português foi traduzido como “O casamento em transição” e que no filme dele [do Caetano] é o Cícero que lê. O Antônio Cícero lê esse trecho, porque o Thomas Mann defende que o amor, o casamento homossexual é o amor puro, porque as pessoas, os dois homens ou as duas mulheres, estão de fato se relacionando contra as convenções porque se amam. Mas ele faz uma espécie de ressalva, um comentário de que a relação homossexual tende a uma estetização.

Eucanaã Ferraz: Deixa eu fazer uma pergunta sobre a canção do Caetano. Esse arranjo é muito bom, da canção do Caetano… queria que você falasse um pouco dos arranjos, do pessoal que toca, falar um pouco do som do disco.

Bruno Cosentino: São os meninos que têm uma banda que se chama Exército de Bebês. Eles têm na casa dos seus vinte e cinco anos e eles são muito bons músicos. Têm seu trabalho autoral também e acompanham muitas outras pessoas. Eles tocam comigo desde o disco anterior, que é o Babies. Eu gosto muito desse disco, Babies. É eu e a banda só. E eles acompanham muitas pessoas, muitos artistas também, porque são ótimos, são muito bons de groove. E eu gosto muito de groove (de suingue). E, aí, eu gosto muito de ritmo e gosto muito de dançar. Esse arranjo do Caetano, eu falei para fazer uma coisa groovada, porque tudo eu quero fazer groovado com eles.

E quando eu fiz até esse Babies, você perguntou a coisa do corpo e tal, chegou um momento em que eu achava que as palavras, em música, faziam tão pouco sentido, na verdade, porque tudo que interessava era dançar, entendeu? Eu acho que, assim, a verdadeira poesia na música é, se fez você dançar, aí, você atingiu o nível máximo da poesia universal. Se você ouvir uma música e falar assim, que não precisa nem de letra… eu acho mesmo, porque, aí, você vai pro Matisse, “a alegria de viver”. É o auge, é o ponto máximo. E, aí, não precisa de letra.

E, pra quem gosta de estudar letra na Faculdade de Letras [risos], letra de música sozinha não importa. O que importa é a canção. É a letra com a melodia. E a letra, muitas vezes, importa menos ainda. É, eu estou sendo radical também, porque tem algumas que são assim. Aí, a letra interessa mais, mas nunca é a letra sozinha. Então, não faz o menor sentido você olhar a letra sozinha, assim, não quer dizer nada. Quer dizer a letra na canção, sabe? Mas tem alguns casos que, não, é puro dançar. Porque eu descobri que o que eu gosto mesmo é disso, eu gosto de ritmo, porque isso pra mim é o que mais interessa. Aí, a banda é muito boa de ritmo. Eu adoro essa banda, por causa disso.

EF: Mas como chegou ao desenho dos arranjos?

Bruno Cosentino: Ah, tipo, eles da banda também são muito bons, você passa, assim, e sai tocando e já fica bom. É muito assim. Eu tenho ouvido um disco, até no Spotify, chama-se Negro Prision Blues and Songs. Um cara gravou aquelas canções de trabalho, de blues. Então, é assim: “Ainhenhaêiai PÁ”… e dá uma martelada no chão…  Então essas balizas rítmicas, elas tão sempre ali. Todo canto é o ritmo do canto, a melodia tem um ritmo, que é condicionado por aquelas balizas. Então, o pulso está sempre lá. E, quando o meu filho tava na barriga da mãe, tinha o tamanho de um gergelim, ele já era um coração batendo. Já tinha pulso. Já tinha ritmo. Então, se a gente é do tamanho de um gergelim e já é pulso, é porque a gente é puro pulso. E, aí, tudo é decorrência de ser pulso.

Eu gosto muito do The Last Poets…eu tenho gostado muito de rap, coisa que eu nem gostava muito, mas hoje eu amo. Porque rap é isso. Você vai num flow, que o pessoal chama. Otávio Paz chama de fluxo poético. Mas os rappers chamam de flow, e tá lá a batida. Eles são incapazes de compor alguma coisa se não tiver ritmo. Então, eles vão e as palavras vão vindo. Isso eu percebi no Amarelo também, de como se você vai no flow, as palavras vêm, as rimas vêm. E as palavras que vêm são surpreendentes. Isso tem a ver com o corpo também.

Bloco 3 – Tudo é circular

Escuta: 4. “Obs.” (Bruno Cosentino/ Pedro Dias Carneiro); 5. “Eu quero ser sua mãe” (Luís Capucho)

Bruno Cosentino: Essa é a segunda música que eu gravei do Luís Capucho. A “Homens flores” eu gravei no disco anterior e essa se chama “Eu quero ser sua mãe”.

RJ: Em várias conversas nossas, você disse que o fato de você ter tido filhos mudou a sua percepção sobre o tempo, e eu acho que isso paira aqui, em algum lugar.

Bruno Cosentino: Mudou que fica tudo mais embaralhado. Como se ligasse as pontas. Aí, eu me ligo a meu pai. Me ligo ao que eu era pequenininho, a quando eu era criança. Então, vou ligando as pontas, mas é muito confuso, na minha cabeça. Ficou tudo mais indistinto, não consigo mais ter muita clareza de nada, da vida mesmo. E a vida ficou mais sem sentido depois que eu tive meus filhos. Dizem que fica com mais sentido, né. Mas ficou sem sentido, porque aí que eu passei a entender nada mesmo [risos]. É só que as coisas se confundem. Agora, eu sou pai e tenho o meu pai, e já fui filho, sou filho, sou pai. Tudo fica muito confuso, em suma.

O que isso pode me ajudar é que eu acho que o estado de criação artística é um estado de confusão também, que você tenta canalizar. Então, isso me ajuda. De forma muito arbitrária e aleatória. Aí, isso me ajuda. De juntar tudo de uma forma muito livre, isso me ajuda.

Não tem nada a ver com essas canções que passaram. A primeira, que eu fiz em parceria com Pedro Carneiro, eu fiz a letra e ele fez a música. Eu tava lendo o Mircea Eliade, que ele falava dos ritos de androgenização, e fui vendo como nada faz sentido mesmo. Aí, você volta, aí, tem tudo é circular. Aí, sim, é completamente edipiano. Tipo, o desejo sexual masculino ele quer entrar no buraco de onde ele saiu, da mãe. Isso tem a ver com o Vinicius também que lendo aquele poema da Ariana, ele vai pro ventre da terra… tem muito esse lance nele também. Aí, eu fui… entrei numa… num loop. Gente, nada faz sentido mesmo [risos].

RJ: Eu queria que você falasse desses dois parceiros, o Pedro Dias Carneiro e o Luís Capucho, inclusive, você já fez apresentação com os dois. São dois personagens importantes no seu trabalho, de um modo geral. Eu queria que você falasse dos dois, particularmente.

Bruno Cosentino: Eu tenho uma parceria com o Pedro Carneiro que é essa que a gente ouviu antes, pequenininha. E ele que produziu meu disco anterior, o Babies. Eu gosto muito dele, é um puta compositor, muito sério, muito bom. Gosto, assim, como colega e como artista. Como amigo e como artista. E admiro muito ele.

E o Luís Capucho, eu amo total. Acho que todos vocês poderiam procurar ouvir o Luís Capucho. Ele tem uma voz superestranha. Não saiam correndo. Fica ouvindo… Tem um disco, que é o Poema Maldito, que é o último, que é maravilhoso. Os outros também são ótimos. E, aí, ele eu amo. Me identifico muito com a poética dele, com a maneira que ele diz, com as melodias, com o canto dele, acho que ele canta lindo. É um puta intérprete. É uma grande presença, assim.  É um dos maiores compositores, pra mim. “Homens flores” é maravilhosa, é linda. É uma obra-prima. E essa “Eu quero ser sua mãe” também, é uma coisa linda. É dele, é do Luís Capucho também. “Homens flores” é, assim, uma pérola de linda que é!

EF: Essa canção do Capucho, “Eu quero ser sua mãe”, eu gostei muito da opção que vocês fizeram com um arranjo aparentemente muito convencional, muito adocicado, aquela balada bem “eu quero ser sua mãe”, bem macia. E a canção vai toda nessa direção e tem aquele final surpreendente, que é te lambuzar com o meu doce e até que vem depois “e ficar matando as baratas que venham te comer”. Porque se você vai lambuzar alguém com doce, vem barata pra comer a pessoa [risos]. E se você é a mãe, você vai ficar matando as baratas. Então, é uma coisa esquisitíssima, surrealista, louca e muito violenta. É uma canção que tem uma violência incrível, disfarçada de balada de amor de mãe pra filho, que não é pra filho, que eu quero ser sua mãe, não é a sua mãe. Tem uma coisa erótica, sexualizada. E tem essa coisa muito violenta e disfarçada num canto e numa letra e num arranjo tudo muito adocicado. E, assim, eu gosto muito da sequência que a canção anterior, ao contrário, ele é esquisitíssima, eu amo essa anterior, que é atonal, você não entende direito, tá na cara que ela é violenta e essa finge que não é. Então, acho essa sequência muito bonita…

Bruno Cosentino: O que caracteriza bem o Capucho é isso, é uma mistura de ternura e violência de uma forma muito fluida. E isso que é muito fascinante em várias coisas que ele faz. É muito estranho, você unir ternura e violência. Então, é, isso deixa várias coisas que ele faz bonitas assim.

RJ: A coisa da relação de um desejo de experimentar e um desejo de ser também audível ou de ser também canção numa forma mais palatável, numa forma mais popular, isso também é um problema pra quem faz canção, né. Um problema do cara que compõe e quer experimentar, mas que também quer comunicar. Esse disco mais comunica do que “esquisita”, embora “esquisite” também, não é?

Bruno Cosentino: Claro, se você experimenta muito, você paga um preço de não comunicar. Inclusive, a maré tá baixa pra experimentação. Se você quer que aquilo seja um pouco mais divulgado, claro, que depende muito de dinheiro mesmo, basicamente. É, depende também de você ficar cada vez mais careta. E não foi sempre assim, né. Assim, na década de 1960, tinha muito mais… dentro do esquema musical das gravadoras, você tinha muito mais margem pra experimentação, dentro de um esquema. Hoje você tem muito experimentação fora do esquema total. Ou num esqueminha em que ninguém consegue sobreviver do que faz de música.

A experimentação foi colocada num nicho de mercado. E não consegue mais ter a penetração social e cultural que já teve com esses nossos ídolos, sei lá, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, João Bosco. Todas essas pessoas são altamente experimentais. Djavan, todo mundo. Aliavam experimentação com sucesso artístico mesmo, com comunicação. Então, essas baladas, por exemplo, Luís Capucho é uma balada. A intenção foi essa mesmo. Agora, eu sou cada vez mais pela comunicação, acho que a experimentação pela experimentação, eu sei que isso foi bom, mas eu gostava mais de experimentar. Hoje em dia, experimentar na superfície me seduz pouco. Aquela música anterior que é mais experimental, é porque o Pedro Carneiro é super mais experimental que eu. E gosta de loucurinhas. Eu sou cada vez menos pelas loucurinhas. E mais pelo que vai mais fundo, enraíza mais. Mas, aí, eu posso mudar isso também a qualquer momento… eu já estou mudando… [risos].

Bloco 4 – Muito romântico

Escuta: 6. “Certeza triste” (Bruno Cosentino); 7. “Cara” (Bruno Cosentino); 8. “Meu bem” (Bruno Cosentino)

RJ: Eu vi numa entrevista você dizer que descobriu, recentemente, que é um cantor romântico…

Bruno Cosentino: É porque eu descobri que meu tema é esse, de canção de amor. Eu vou fazendo esses discos e vou me conhecendo, eu descobri que é isso mesmo. Isso vem desde o primeiro disco. Quando eu tava fazendo o primeiro disco, meu só, o Amarelo, eu tava ouvindo muito Marvin Gaye. E, eu falei, cara, é isso. É isso, tipo, porque é o ritmo, é soul. Porque eu descobri o ritmo, essa coisa, né, do gergelim, do ritmo, e que tudo é ritmo. E tem uma passagem do Otavio Paz no “Arco e a lira” linda sobre o ritmo. Fala que o ritmo sempre aponta para algum lugar do desejo. O ritmo sempre suscita alguma coisa que está por vir.  E, aí, a coisa rítmica era uma coisa. E a outra é a melodia, eu sempre gostei de melodia.

Então, o que eu gosto é de R&B, de ritmo e poesia e melodia e tal. E aí eu fui descobrindo também que a coisa da melodia, o Marvin Gaye, ele fala coisas banais, assim: “Te amo, meu amor”, “I love you baby”, só que ele vai falando dentro daquele fluxo. E é maravilhoso. É tipo Tim Maia. Não importa o que você está dizendo, importa muito a maneira como você está dizendo, a sua voz, a sinceridade com que você está cantando; a magia, a poesia tá muito ali e não na letra. Tá naquele balanço “I love you”, ah, aí dá um gemidinho, sabe?

E eu fui descobrindo que o que eu gosto mesmo é disso. E isso é uma descoberta minha. E agora tá ficando mais maduro isso no som. No Amarelo, não era tão maduro. Agora, nesse último, tem músicas que eu já acho mais bem resolvidas. Essa última, passei já o que eu queria pra banda. E essa banda faz bem e eles gostam disso também, de fazer esse tipo de som que eu gosto. Eles gostam e eu gosto. A gente combinou e a gente fez. Por isso que eu gosto tanto dessa banda.

RJ: O pop também te interessa, né…

Bruno Cosentino: O pop super me interessa, é o que mais me interessa. O pop e a canção romântica. Eu acho que tem um apelo emocional…  Aí, eu regravei “Fui fiel”, do Pablo. Que é um hit, que o Gustavo Lima gravou também. Eu não pude botar no disco por problema de direito autoral, mas tem no Youtube. E essa música é muito linda. Pois é, uma música simples… E, aí, o que me interessa é isso. Esse arrebatamento emocional extremo, assim, você corta os pulsos, se chegar lá, com uma letra banal, não tem invenção. Tem invenção, mas não tem essa invenção que a gente diz, você não percebe a invenção. Invenção porque o cara chegou num ponto que poucos chegam. Então, tem muita invenção, mas o propósito não é esse. O propósito é a expressão da música.

RJ: E o que você tem ouvido?

Bruno Cosentino: Agora, eu estou ouvindo Otto. Estou ouvindo um garoto da Bahia que é muito bom, Giovane Cidreira, maravilhoso! Ouço Luís Capucho demais. Ouço muito Al Green. Essa galera de soul americana é, assim, piração. Tipo, Marvin Gaye, Al Green… Al Green, peguei tudo e não paro de ouvir. Já faz mais de um ano que eu ouço direto. Amo! E a canção romântica, né. Al Green. É isso, a canção romântica, Roberto Carlos. Tipo, Roberto Carlos mais suingado, mais preto. É isso que eu ouço.

RJ: Existem clipes vinculados a esse trabalho?

Bruno Cosentino: Vai ter um clipe, agora, da primeira música, “É claro que eu queria”, muito em breve. Até a diretora me mandou mensagem, que ficou pronto. Eu não ouvi ainda. E “Eu quero ser sua mãe”, do Luís Capucho, tem um clipe.

Bloco 5 – A anti-história dos dias

Escuta: 9. “Anti-história” (Bruno Cosentino); 10. “Três (Toque pra nascer)” (Bruno Cosentino)

RJ: Em “Anti-história”, você fala sobre “…a curva decadente da humanidade”, “a democracia ocidental produz tiranos magnatas”… Eu queria saber se política é uma coisa que te interessa.

Bruno Cosentino: Política me interessa muito, mas me interessa onde eu consiga atuar. E eu consigo atuar no meio, na micropolítica da música. Aí, eu consigo atuar e eu atuo muito. Agora, na política institucional, é um registro em que eu não consigo operar, porque é um registro de cinismo, é uma lógica de cinismo tão grande, que eu não consigo. O riso que não reconcilia é o cinismo, né. Isso aí acho que é uma frase do Adorno, que eu peguei de segunda mão também, de um ensaio que eu li. E é o cinismo que impera na política institucional.

RJ: Você acha que a música está mais democrática?

Bruno Cosentino: Em princípio, teoricamente, tá à disposição de todo mundo. Mas só na teoria, porque não tá. Porque só chega a você o que tem muito, um modelo muito bem já estruturado, que faz chegar em você. Aqui, não. Aqui, a gente tá trazendo pessoas que não tão dentro de uma coisa. Porque a universidade ainda é um espaço em que você pode respirar. Eu acredito que você pode furar, mas cada vez é mais difícil furar. Cada vez é mais difícil. Eu acho que já foi mais possível. O projeto tropicalista foi esse. Agora, hoje em dia, acreditar nisso, eu acho ingênuo. Porque, depois de neoliberalismo, depois de Breton Woods, depois de tanta coisa que aconteceu na história, acreditar que você pode furar o sistema, eu acho de uma ingenuidade muito grande. Mas era a passagem, a tensão era muito maior, existe uma tensão. Que podia existir, porque eram outros tempos. Agora… década de 60, 70, e, depois, foi piorando cada vez mais 80, 90, aí, ó, já foi. A racionalidade econômica foi de tal forma minando o espaço de criação. Hoje em dia, existe os I-Tunes, eles não põem um puto de grana pra cobrir, pra fazer o seu CD e são uns magnatas, uns super atravessadores do I-Tunes, Spotify… a gente tá tocando aqui no Spotify. Eu estou tocando o disco no Spotify. Os caras não põem um puto na criação do disco, eu gasto do meu dinheiro, todo mundo gasta do seu dinheiro, os caras não fazem nada pra música e ganham dinheiro em cima de você. As gravadoras faziam.

Então, a margem de manobra do artista é muito menor do que já foi. Ela existe? Existe. Mas é pequeniníssima. É disso que eu estou falando. Eu acho que cindiu. Talvez, seja melhor cindir. Que, aí, cada um dá nome aos bois. O problema é a falta de pluralidade, a falta de diversificar.

RJ: Mas suas canções poderiam estar no mainstream, né?

Bruno Cosentino: Elas podiam estar tocando, mas não tocam. E eu conheço todo mundo das rádios, conheço todo mundo! E não toca. Não toca porque, sei lá, não estou fazendo acordo, não tenho dinheiro. E o espaço que tenho de atuar, os jornais tão acabando. A gente tá numa transição e já tá indo pra algum lugar, já tá se definindo um outro lugar, talvez. Ou não se defina. Mas eu acho bom também.

Eu estou construindo uma carreira fonográfica, eu estou gravando meus discos, entendeu? Agora, o gargalo mudou de lugar. Antes, o gargalo, pra você gravar um disco, era caro, você tinha que entrar numa gravadora. Você entrava ali. Ali era o filtro. Agora o filtro é fazer show… É muito difícil fazer show. Se você não tem um empresário, alguém que vai vender você pro circuito de shows. Então, o gargalo só mudou de lugar. Nada ficou mais democrático, nem nada, não. Ficou mais difícil ganhar dinheiro, agora, você ganha dinheiro com shows, porque você não vende mais CD. Porque os caras te dão um centavo por clique, aí. Inclusive é uma briga da classe artística…

EF: Sobre esses serviços de stream, mesmo os medalhões que são muito ouvidos, estão ganhando uma coisa, tipo, 150 reais … 150 reais se for um megassucesso, se estourou!

Bruno Cosentino: Uma miséria! Uma miséria! Eles ganham uma miséria! Por isso… por isso é que eles estão lutando. E eles têm algum poder de barganha. É um mal, assim. Tipo, a Amazon. A Amazon vende desde batedeira a livro. A Amazon, que vende livros, não gosta de livros. Ela gosta de vender, gosta de ganhar dinheiro. Quer dizer, esses super atravessadores, o Spotify não gosta de música, o I-Tunes não gosta de música. Eles gostam, o objeto deles é o dinheiro, é como se fosse a bolsa de valores. O objeto deles é o dinheiro, não é a música. O objeto da gravadora era a música. Já foi um dia. O objeto das editoras e livrarias é o livro. Então, assim, a Amazon, se ela vender livro ou batedeira, dá no mesmo pra ela. Ela não tem o menor compromisso com livro.

RJ: É… eu queria que você comentasse essa última canção, “Três (Toque pra nascer)”, especificamente. Na verdade, eu queria que você comentasse isso em relação à coisa ritualística que tem na canção mesmo.

Bruno Cosentino: Essa última música é porque minha mulher gravou meu filho, quando ele era bem pequenininho, cantando essa melodia. E eu gostei da melodia. Melodia de quem não sabe nem falar ainda. Aí, eu fiquei decorando essa melodia, porque eu achei que ela é estranha, porque é de alguém que ainda não domina o sistema tonal. Não sabe o que é uma melodia dentro de um sistema que já existe. E esse toque aí é o toque pra Exu. Eu tava lendo aquele livro Os Nagô e a morte, que é um clássico, um livro de estudos sobre candomblé. E eu me identifico muito com a figura do Exu. Que é, assim, dentro da mitologia nagô ou iorubá, é o primeiro nascido. E ele é filho da mãe e do pai primordiais. Mas, então, ele é o andrógino, porque ele carrega um pouco do feminino e um pouco do masculino. E ele também é representado pelo número 3. É o nome da música 3, que se chama “Toque pra nascer”. É a última do disco. Tem uma depois, que é um bônus, que eu botei, mas pra mim o disco acaba aí. E eu me identifico muito porque também é o elemento sexual, é o que atravessa, é um elemento de individuação, de individualidade, de singularidade. Eu coloquei isso aí no disco porque é muito uma coisa minha mesmo também. De fazer sentido pra mim. É um canto do meu filho. Foi uma opção muito pessoal mesmo, que fazia sentido pra mim. E, claro, sempre quero que faça sentido pros outros também, porque não quero ficar explicando também, porque se não, quando você explica, tudo faz sentido, né, você acha lindo.

RJ: É por isso até que a gente ouve primeiro. Me parece que é muito bonito, antes de saber… Eu não sabia de nada disso…

Bruno Cosentino: É, claro, eu só ponho porque eu também acho que vai fazer sentido pros outros. Que nem a outra música lá, a “Certeza triste”, que a gente ouviu antes. É uma música também que minha mulher acordou cantando aquilo. E ela não é compositora, é bióloga. E ela cantou aquilo. Eu achei muito bonito o negócio da certeza triste. E ela foi cantando com essas palavras, assim. E com melodia já: “não quero ter contigo uma certeza triste”. Não foi pra mim, não. Ela acordou cantando aquilo. Aí, eu até fiz um arranjo e complementei uma parte da letra, mas fiz mal. Mas quis botar num fluxo de banda. Eu não gosto tanto, mas muita gente diz que gosta, então, eu acho que a coisa da certeza triste bate em muita gente, muito mais de uma pessoa me disse que gosta dessa música, inclusive você.


* Rafael Julião é professor substituto de Literatura Brasileira na UFRJ, onde fez seu mestrado sobre Cazuza e o doutorado sobre o livro Verdade tropical de Caetano Veloso. É também coordenador do Núcleo de Estudos da Canção do PACC e autor do livro Infinitivamente pessoal – Caetano Veloso e sua verdade tropical (2017).

** Eucanaã Ferraz  publicou livros de poesia, como Desassombro (2002), Rua do mundo (2004), Cinemateca (2008, Prêmio Jabuti), Sentimental (2012, Prêmio Portugal Telecom de Poesia) e Escuta (2015). Organizou vários livros, como Letra só (2003) e O mundo não é chato (2005), ambos de Caetano Veloso; a Poesia completa e prosa de Vinicius de Moraes (2004) e a coletânea de letras de Adriana Calcanhoto Para que serve uma canção como essa? (2016). É professor de Literatura Brasileira na Faculdade de Letras da UFRJ e atua, desde 2010, como consultor de literatura do Instituo Moreira Salles (IMS).