Uma forma, uma figura, talvez sirvam para pôr problemas, nunca para trazer conclusões.
Merleau-Ponty
Quando comecei a pensar sobre a representação do negro e do índio brasileiros, pensei na importância da questão do primitivo para as vanguardas históricas e a questão do modernismo brasileiro. E ao pensar, me veio à tona a memória de dois quadros que trazem o negro à cena: um meio ícone do movimento, que é A Negra, de Tarsila do Amaral, de 1923, bem conhecido, e outro, que precisei ir a Viena para conhecê-lo e que me impressionou muito: Fascinação, de Pedro Peres, de 1902. Nunca o tinha visto, quando deparei com ele em Krems, vilarejo perto de Viena numa exposição muito interessante de arte brasileira, que durou de setembro de 2007 a fevereiro de 2008 e da qual trouxe o catálogo. Fiquei fascinada.
Estava em Viena para um congresso e via o cartaz dessa exposição por todo canto, o quadro Iracema de José Maria de Medeiros. Foi organizada por Carlos Martins, Mônica Xexéo e outros. Gostei tanto da exposição que escrevi uma resenha do catálogo para a revista da Casa de Rui Barbosa. Eu não conhecia vários quadros reunidos lá, como um de Abigail de Andrade, A hora do pão, e este de Pedro Peres.
O foco era a formação do povo brasileiro, apreendida não só nas telas de Almeida Junior, mas também vários outros. Embora um crítico alemão fale na introdução do catálogo da qualidade das pinturas, me parece que a intenção aqui ultrapassava as discussões sobre academicismo ou não, o que marca a leitura habitual do oitocentos pictórico brasileiro.
Os índios, os escravos negros, o branco bandeirante e o trabalhador rural se viam em quadros que vieram da Pinacoteca de São Paulo, do Museu Nacional de Belas Artes e da coleção Sérgio Fadel, dando uma perspectiva antropológica a quase um século de pintura. São três textos que compõem o catálogo, dois de curadores austríacos, e o terceiro, de Valéria Piccoli, que apresenta criticamente a produção brasileira do século 19, desde os viajantes, encantados com a natureza, que se torna o tema principal do projeto de nacionalidade que toma forma com Manuel de Araújo Porto Alegre. Entre os viajantes faz a diferença entre Ender e Chamberlain que pintavam paisagens e cenas distanciadas e Rugendas e Debret que, ao contrário, apresentavam a escravidão mais de perto e sem a ordenação neoclássica. Ressalta a idealização do índio, que deixava de fora o negro na formação do povo brasileiro e vê o mito do embranquecimento no quadro de Modesto Brocos, A redenção de Caim, de 1895. Chega a Belmiro de Almeida e Rodolfo Amoedo como experimentadores que apoiavam os pintores que divergiam do estilo bombástico da Academia.
Mas o que me ficou gravado na memória foi o quadro Fascinação, de Pedro Peres, de 1902, que está na Pinacoteca de São Paulo. Longe dos quadros de batalhas ou históricos, Pedro Peres fala das relações sociais com um quadro sutil e instigante em que uma menina negra olha fascinada uma boneca toda enfeitada, possivelmente da filha dos brancos donos da casa e talvez ex-proprietários de seus pais. Há um conflito visível na tela, estampado no rosto da menina, no vermelho do chão, no luxo da boneca branca – uma cena de interior que problematiza a questão do negro, levanta esteticamente uma questão político-social presente até hoje na sociedade brasileira.
E agora gostaria de trazer as reflexões de Jacques Rancière para me ajudar a olhar os dois quadros, o de Tarsila e o de Pedro Peres. Para Rancière a arte possibilita uma reconfiguração polêmica do sensível. E existiriam três regimes estéticos, o primeiro, o ético da imagem sagrada, o segundo, representativo, que chama de poético e o terceiro, o estético, que vigoraria desde o final do século 18 com a quebra dos gêneros e a atenção ao banal, ao pequeno. Na pintura, o regime estético depunha os quadros históricos e trazia o banal à cena. Não é mais a representação da nacionalidade o que conta, mas as questões que afloram – possibilitando a reconfiguração polêmica do sensível. Passa-se dos grandes acontecimentos e personagens à vida dos anônimos, identificando os sintomas de uma época, sociedade ou civilização nos detalhes ínfimos da vida ordinária. O que acontece já no quadro Fascinação, que gera pensamento, o que se espera da arte.
Para Rancière, estaríamos hoje ainda dentro do regime estético. Com isso ultrapassa os conceitos de modernidade e pós-modernidade. E reavalia as vanguardas. Haveria uma vanguarda estratégica que, como um partido, toma a frente, como as vanguardas históricas e como o modernismo dos manifestos, diz como devem ser a obras, fazendo tábula rasa do passado. A vanguarda que ainda conta é a que traz uma antecipação estética do futuro na invenção de formas sensíveis. Para ele também o pulo pra fora da representação mimética não é a recusa da figuração. A figuração pode não ser mimética.
Rancière retoma Schiller para dizer que a revolução estética é a realização sensível de uma humanidade ainda latente no homem e que a arte é política quaisquer que sejam as intenções.
Creio que o quadro de Pedro Peres pode ser considerado uma cena de pensamento, há nele bastante conflito. O pintor apreende um instante e como diz Rancière, pode ver na coisa um objeto consagrado e uma cicatriz. A Negra, de Tarsila, é uma lição aprendida com a vanguarda europeia, com Léger e adaptada ao contexto nacional. Claro que A Negra, de 1923, que lembra as máscaras africanas das vanguardas, traz uma nova sensibilidade, na quebra da perspectiva, na planaridade do espaço, mas muitas das suas soluções formais ficam meio ornamentais e foram hoje absorvidas no cartaz, na publicidade. E nela há ainda um apelo ao exótico. Li há pouco uma crônica de Tarsila em que dizia que o cubismo era o serviço militar do artista.
O quadro de Peres toca, apenas sugerindo, numa questão social e política ainda não resolvida. Já está dentro do sonho modernista de uma arte capaz de dar ressonância infinita ao momento mais ínfimo da vida mais ordinária. Rancière, num livro recente, Aisthesis, (2011) vê em várias cenas da virada do século 19 para o 20 uma mutação das formas de experiência sensível, da maneira de perceber e de ser afetado que propiciam reconfigurações da experiência e um modo novo de sensibilidade. Fala de cenas de pensamento que acolhem o até ali impensável. “Pois o pensamento é sempre um pensamento do pensável, um pensamento que modifica o pensável acolhendo o que era impensável” (p. 12). E faz uma contra-história da modernidade artística, incorporando episódios que já deslocam a percepção em cenas de pensamento. Rancière vai de 1764 a 1941, de Théophile Gauthier a Ruskin e a James Agee.
Vista ainda hoje como a grande explosão vanguardista brasileira nas artes e na literatura, a Semana de 22 (de 11 a 18 de fevereiro de 1922) marca nosso modernismo como o estopim da ruptura entre passadismo e modernismo. Com o movimento que culmina aí, nos integrávamos ao concerto das nações modernas. Os manifestos tanto ecoavam os europeus, como afirmavam o nacionalismo tupiniquim, inaugurando uma modernização estética que acompanhava uma aposta na industrialização que nos possibilitaria sermos, simultaneamente, universais e nacionais. Numa visão linear exalta-se o novo desse modernismo de acordo com o projeto progressista ocidental.
Mas essa história pode ser contada de outra forma. É o presente que dá sentido ao passado, que vai sendo feito e refeito pelas gerações que se apropriam dele. Primeiro, que passadismo era esse? Os modernistas de 22 queriam romper com românticos, naturalistas e parnasianos e com estes identificavam todo o século 19 até eles. Mas, no seu impulso de romper com o tradicional, não distinguiam os “experimentais” do século passado –Machado, os simbolistas como Cruz e Souza, Sousândrade e outros, e ainda, românticos como, por exemplo, Bernardo Guimarães. Inauguravam, junto com as vanguardas europeias, uma tradição de ruptura, que arrasava o passado recente. Vanguarda é um termo militar, designa os que na frente avançam, numa guerra. Destrói-se o que veio antes, em nome do progresso. Ser moderno é ser atual e aceitar o progresso contra a repetição do passado. Tinham uma concepção de progresso também em arte, que não pode ser pensada em termos de evolução, mas de transformações.
E ainda, num segundo momento, depois do ataque ao passadismo estético, a antropofagia defendia uma deglutição do estrangeiro, mas não criticava a razão técnico-científica que vinha com ele e que pretendia assimilar, sem problematização. Buscava-se a convivência da selva com a escola, a colagem de uma paisagem nacional primitiva com um novo cotidiano, moderno, numa poética do objetivo e do concreto. Sua defesa do moderno era a defesa do atual, do novo imediato que prometia a industrialização. Acreditavam numa síntese da pureza do estado natural indígena com os traços positivos da contribuição da técnica avançada.
A conferência de Menotti del Picchia, de 17 de fevereiro de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo, intitulada “Arte moderna”, tem o tom de manifesto e suas afirmações a aproximam do futurismo de Marinetti: “Queremos luz, ar, ventiladores, aeroplanos, reivindicações obreiras, idealismo, motores, chaminés de fábricas, sangue, velocidade, sonho na nossa arte” (Del Picchia, 2002, p. 289).
Hoje, quando podemos ver os desastres da modernização e sua falência em construir um mundo melhor, podemos ver os limites do modernismo das vanguardas históricas e, olhando as ruínas que ficaram de sua marcha pelo progresso, identificar práticas críticas e experimentais, antes das vanguardas, pensando um modernismo desde a virada do século, pois já se colocava em questão o academismo, a “representação fotográfica”, tanto nas artes plásticas quanto na literatura. Pintores como Castagneto, Helios Seelinger, Visconti e Belmiro de Almeida buscam mais do que imitar qualquer modelo ou representar as coisas “tais como são” e se identificam com impressionistas e simbolistas de todo o mundo. Descontentes com o que existe, seu desejo é tornar visível, algo ainda invisível, mesmo trabalhando com uma figuração. Estão dentro do paradigma estético da nova comunidade, a dos homens livres e iguais na sua própria vida sensível (Rancière, 2005, p. 16).
Pode-se ver, a partir de uma releitura do século 19, um modernismo carioca, desde fins do século, com João do Rio, Gonzaga Duque, Lima Barreto, Benjamim Costallat, Álvaro Moreyra e outros. Capital da República, cidade cosmopolita, pelo Rio de Janeiro passavam as companhias artísticas europeias. E esses escritores, muitos da roda boêmia, eram ambivalentes quanto à ordem que se impunha com a modernização e, às vezes, extremamente críticos. Suas revistas mostram isto: subjetividades errantes, que se disfarçavam sob vários pseudônimos e se articulavam nos cafés e cabarés, dissidentes das iniciativas oficiais, numa cidade em transformação, em que construção trazia também destruição.
A Semana de 22, na então próspera e provinciana São Paulo, apontada como um marco, no entanto, faz esquecer uma fermentação de ideias que se atualizaram em linguagens inquietas e críticas também antes dela. É importante lembrar 22, o grupo de Oswald e Mário de Andrade, Tarsila do Amaral e Anita Malfatti, e outros, mas não enquanto monumentos. Seu papel foi importante ao ampliar as possibilidades de linguagem trazendo as propostas das vanguardas históricas europeias. Mas não só eles problematizaram. Mesmo no movimento há escritores e artistas ainda pouco lembrados como Flávio de Carvalho, por exemplo. E antes e depois das vanguardas estamos dentro do regime estético das artes que, segundo Rancière, incorpora o realismo de Flaubert, por trazer o banal à cena.
Em O cacto e as ruínas, Arrigucci compara o poema “O Cacto” (1925) de Manuel Bandeira com “Pobre alimária” de Oswald de Andrade (comentado por Roberto Schwarz, em “A carroça, o bonde e o poeta modernista”). Enquanto em Oswald, a modernização, apresentada pelo bonde e os trilhos, complica, mas não impede uma solução do conflito, tudo se resolve otimisticamente – a convivência entre a carroça e o bonde é possível; no poema de Bandeira, o conflito é trágico e o cacto, natureza indomável, resiste, áspero e intratável.
pobre alimária
Oswald de Andrade
O cavalo e a carroça
Estavam atravancados no trilho
E como o motorneiro se impacientasse
Porque levava os advogados para os escritórios
Desatravancaram o veículo
E o animal disparou
Mas o lento carroceiro
Trepou na boleia
E castigou o fugitivo atrelado
Com um grandioso chicote
Manuel Bandeira mora no Rio, não vai à Semana paulista, onde, no entanto, lêem seu poema “Os Sapos”, uma crítica aos poetas parnasianos. Bandeira começa simbolista com A cinza das horas (1917) e já como simbolista queria mais do que os versos cinzelados e frios que os parnasianos podiam apresentar.
O cacto
Manuel Bandeira
Aquele cacto lembrava os gestos desesperados da estatuária
Laocoonte constrangido pelas serpentes,
Ugolino e os filhos esfaimados.
Evocava também o seco Nordeste, carnaubais, caatingas…
Era enorme, mesmo para esta terra de feracidades excepcionais.
Um dia, um tufão furibundo abateu-o pela raiz.
O cacto tombou atravessado na rua.
Quebrou os beirais do casario fronteiro,
Impediu o trânsito de bondes, automóveis, carroças,
Arrebentou os cabos elétricos e durante vinte e quatro horas privou a cidade de
iluminação e energia:
– Era belo, áspero, intratável.
O progresso foi o mito fundador do século 20, com seu elogio da máquina. Hoje, no século 21, vemos que a modernização se mostrou catastrófica, a razão da técnica e da ciência não só não domina a natureza, o sonho iluminista, mas leva a novos problemas. O Holocausto superou em horror o genocídio dos índios, pelo cálculo, a objetividade e a frieza que a técnica permitiu e incentivou. E colocou em questão a vontade de ordem da modernidade e sua incapacidade de suportar a diferença e a ambivalência. Os “aeroplanos, motores e chaminés de fábricas” não se impõem sem a violência de uma ordem intolerante com o selvagem, o diferente, cuja forma de vida só pode identificar como ignorância e atraso.
Isso não puderam pensar os modernistas de 22. Hoje, como “modernistas tardios”, vemos seus limites e revemos nossas utopias – nenhum progressismo mais. Podemos recuperar a ousadia das vanguardas, mas exercendo nossas diferenças e singularidades, críticos à sociedade industrial moderna e contemporânea. E podemos reavaliar um quadro como Fascinação como uma cena de pensamento. O que aproxima os dois quadros é o sonho modernista, ou melhor, do regime estético das artes, de uma arte capaz de dar sua ressonância infinita ao momento, o mais ínfimo da vida, a mais ordinária.
* Vera Lins é professora de Teoria da Literatura e Literatura Comparada na Faculdade de Letras, UFRJ, e autora de Gonzaga Duque: a estratégia do franco-atirador (1991) Poesia e crítica: uns e outros (2005), Novos pierrôs, velhos saltimbancos (2009) e Desejo de escrita (2013), entre outros.
Referências
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