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Cinema e arte contemporânea | de Arlindo Machado

De tempos em tempos acontece uma problematização do chamado dispositivo cinema. Esse dispositivo foi magnificamente descrito por Jean-Louis Baudry em dois textos antológicos: Cinéma: effets idéologiques produits par l’appareil de base (1970) e Le dispositif: approches métapsychologiques de l’impression de realité (1975). Conforme a descrição de Baudry, o dispositivo cinema compreende a sala escura que remete à caverna de Platão, o projetor ocultado às costas dos espectadores, as imagens projetadas numa tela branca à frente, as caixas de som também ocultadas etc. Ao longo de mais de cem anos de história, os cineastas sempre quiserem dominar esse dispositivo, fazer filmes para ele e ainda hoje o sonho de todo jovem cineasta é fazer um longa-metragem para entrar em cartaz numa sala de cinema. Mas por que o cinema é como ele é? Não poderia ser diferente?

Na verdade, quando o cinema começa, no final do século 19, ele ainda não havia cristalizado um modelo industrial único; em outras palavras, ele ainda não tinha constituído o seu dispositivo e, portanto, o primeiro cinema se caracteriza por uma certa anarquia produtiva. De fato, na virada do século 19 para o 20, não existia ainda nenhuma forma padronizada de produzir e exibir filmes. O cinema de Thomas Edison, por exemplo, chamado de quinetoscópio, era exibido em visores individuais, num aparelho parecido com a atual televisão, com o filme rodando em loop dentro da máquina e projetado por trás da pequena tela. Talvez tenham sido os irmãos Lumière que tiveram a ideia de associar o cinema à sala de teatro como forma de ganhar dinheiro com a arrecadação das bilheterias, os que introduzem a projeção frontal e a sala escura coletiva. Mas, em 1895, quando os franceses supõem estar inventando o cinema com as projeções dos irmãos Lumière no Grand Café de Paris, William Dickson, funcionário de Thomas Edison, responsável pela primeira invenção do cinema, já estava publicando nos EUA o primeiro livro de história do cinema (Dickson, 1895). Ou seja, o cinema já era tão velho que até já tinha uma história para ser contada.

Durante as primeiras décadas de existência do cinema, a projeção podia ser realizada em várias telas em vez de em uma só, ou então vários projetores diferentes podiam ser apontados para a mesma tela, em front projection e back projection, de modo a possibilitar efeitos de fusão, superposição, janelas simultâneas e inserção de uma imagem dentro de outra. Os filmes eram mais frequentemente exibidos nos vaudevilles ou cafés concerts, que eram ambientes mistos e iluminados para onde as pessoas iam com a intenção de beber, ouvir música ao vivo e dançar. Várias telas podiam ser estendidas ao longo desses ambientes para possibilitar projeções simultâneas, sincronizadas ou não com as músicas executadas ao vivo. Nada muito diferente dos atuais espetáculos de Vjying ou live images, com a única diferença de que naquela época as imagens não eram ao vivo, só a música.

Os filmes dos primeiros tempos não vinham ainda “fechados” numa montagem definitiva e o exibidor tinha tanto poder quanto o produtor de interferir na montagem. Era comum que os planos de um filme viessem em rolos separados: o exibidor comprava quantos rolos quisesse e montava o seu filme na ordem que bem entendesse. O modo de projeção também não estava definido: cada exibidor podia inventar o seu próprio “cinema”, projetando por detrás da tela (back projection), em telas paralelas, ou fundindo duas ou mais imagens simultâneas na mesma tela (efeito de fusão decidido pelo projecionista e não pelo produtor). Essas imagens deslocadas, sem lugar definido na contiguidade da projeção, sempre foram um enigma na historiografia do cinema e somente agora se está começando a entendê-las como sintomas dessa fundamental heterogeneidade dos primeiros filmes.

O cinema, tal como o conhecemos hoje, é uma instalação que se cristalizou numa forma única: um spot de luz situado atrás da plateia, ao atravessar uma película, projeta as imagens ampliadas da película numa única tela à frente dos espectadores mergulhados numa sala escura. Essa instalação foi planejada pela primeira vez quase quatrocentos anos antes de Cristo por Platão, em seu livro A República, mais especificamente na sua famosa alegoria da caverna, mas foi generalizada no século 17 por Athanasius Kircher, com o seu modelo de espetáculo de lanterna mágica. O cinema petrificou esse modelo durante mais de cem anos e constitui mesmo um fato surpreendente que durante esse tempo todo pessoas de todo o mundo tenham saído de casa todos os dias para ver sempre a mesma instalação, ainda que com imagens diferentes.

O modelo de cinema que hoje conhecemos começa a se consolidar na primeira metade do século 20 com o surgimento dos nickelodeons, as primeiras salas dedicadas exclusivamente à exibição de filmes, mas alcança o seu apogeu na década de 1910 com o surgimento dos confortáveis (e caros) palácios do cinema e dos feature films (filmes de longa-metragem). Os filmes passam a ser alugados e não vendidos como antes, o que impede a intervenção do exibidor na película. O tipo de filmes produzido a partir de então (basicamente narrativo e de longa duração), associado ao efeito ilusionista buscado, praticamente exigiam o dispositivo elementar baseado no efeito mimético da fotografia, na ilusão de movimento produzida pela câmera, na sala escura e vedada acusticamente, na projeção numa tela grande e única, e no ocultamento do projetor e das caixas de som.

A primeira problematização desse dispositivo se dá na vanguarda cinematográfica dos anos 1920. Abel Gance faz um filme (Napoléon, de 1927) que, na sua forma original, já não pode mais ser exibido numa sala tradicional de cinema, pois exige três telas colocadas uma ao lado da outra. Nessas três telas são projetadas três imagens sincronizadas que, ora repetem três vezes a mesma figura, ora formam uma única figura extraordinariamente larga, e ora exibem três figuras diferentes. Recordemo-nos, por outro lado, de que o filme mais célebre da vanguarda francesa, Entr’acte (1924) de René Clair, foi feito para ser exibido no intervalo entre os dois atos do balé Relâche, de Francis Picabia, com música de Erik Satie. E o primeiro filme de Serguei Eisenstein – Dnevnik Glumova (O Diário de Glumov/ 1923) – foi feito para ser inserido dentro de uma peça teatral remotamente baseada em Aleksandr Ostróvski e dirigida pelo mesmo Eisenstein. Este último cineasta, aliás, muito frequentemente se indispunha contra o dispositivo standard do cinema, inclusive contra o próprio formato retangular da tela, em posição horizontal, dita “de paisagem”, e contra as cadeiras confortáveis, que convidavam ao sono (talvez seja por isso que Félix Guattari chamava o cinema de divã dos pobres). No entender de Eisenstein, um cinema de agitação política, um cinema militante, como o que ele fazia, devia ser exibido nas praças públicas, numa tela vertical, para um público em pé e que pudesse reagir com indignação, fazer gestos políticos e entoar palavras de ordem durante a projeção.

Essa preocupação volta a se manifestar novamente no seio do cinema experimental, sobretudo o norte-americano, nos anos 1960. Um dos primeiros a evidenciar essa nova mentalidade foi o crítico Gene Youngblood, num livro fundamental, publicado em 1970, chamado Expanded cinema. Observando o que estava acontecendo ao seu redor, principalmente no âmbito do cinema experimental underground, Youngblood percebe que o conceito tradicional de cinema havia explodido. Alguns cineastas faziam filmes para serem projetados não mais em telas, mas nas roupas brancas de bailarinas em situações performáticas; Stam Brakhage realiza filmes simplesmente colando asas de borboletas sobre uma película virgem; Ken Jacobs propõe um filme (Tom Tom, the piper’s son/ 1969) em que parte dele deveria ser projetado com a película fora da grifa e, portanto, sem exibição dos fotogramas; Andy Warhol concebe o seu Chelsea girls para duas telas paralelas e simultâneas, resgatando a famosa experiência de Abel Gance com seu Napoléon; alguns filmes já não eram mais feitos com câmeras, mas diretamente modelados e animados em computadores (como toda a obra dos irmãos John e James Whitney), enquanto outros (os de Nam June Paik, por exemplo) não usavam mais películas, mas fitas eletromagnéticas e eram exibidos em aparelhos de tevê. No entender de Youngblood, o cinema experimental esboçava uma espécie de “retorno” à anarquia inicial do primeiro cinema, quando ainda não havia sido cristalizado um modelo industrial único.

O salto para fora do modelo canônico e platônico de projeção cinematográfica começa a acontecer com as instalações cinematográficas, uma das derivações do conceito mais genérico de instalação que nasce nas artes visuais. A rigor, a história da arte contemporânea registra poucas cineinstalações, pelo menos se compararmos com as videoinstalações e as instalações propriamente ditas e as poucas que existem são iniciativas que partem de gente das artes visuais, raramente de gente do próprio cinema (exceções: Agnès Varda, Eija-Liisa Ahtila, Chantal Akerman, Peter Greenaway e mais alguns).

Duas exposições particularmente me chamaram a atenção para esse filão menos conhecido das instalações. A primeira – Scream and scream again (Film in art) – foi montada no Museum of Modern Art de Oxford em 1996 e incluía trabalhos de, entre outros, Sadie Benning, Douglas Gordon, Tony Oursler e Liisa Roberts. A cineinstalação mais surpreendente foi a da holandesa Marijke van Warmerdam, chamada Kring (Círculo) e compreendia um projetor de 16 mm colocado no centro de uma sala de exibição circular. Esse projetor, colocado sobre uma plataforma móvel, girava em torno de seu próprio eixo fazendo um movimento de 360º, projetando um filme de três minutos, em loop, que se movia ao longo da parede, na sala escura. A impressão que tinha o espectador era a de uma noite escura em que alguém, com uma lanterna na mão, fazendo um movimento circular, iluminava e tornava visível partes sucessivas do cenário ao redor. E o cenário era um mercado em Marrakech onde uma multidão predominantemente masculina olhava estupefato para uma mulher sozinha que se colocava no centro da cena e os encarava com sua câmera (comportamento proibido pelos setores mais ortodoxos do islamismo).

Outra exposição importante foi Projections, les transports de l’image, que ocorreu no Le Fresnoy, Studio National des Arts Contemporains, em Tourcoing, França, entre 1997 e 1998, com cineinstalações de Atom Egoyan, Bill Seaman, Alain Fleischer, entre outros, com destaque para uma obra histórica de Michel Snow, Two sides to every story (1974), na qual uma tela transparente colocada no centro de uma sala permitia ver não apenas as combinações de duas imagens em movimento projetadas nos lados opostos do tecido, mas também a paisagem real (incluindo os espectadores) filtrada pela tela e pela luz projetada. No dizer do próprio Snow (apud Païni, 1997: 196), o objetivo era “trabalhar a natureza ao mesmo tempo opaca e transparente do material fílmico em uma série de variações sobre a realidade e a ilusão de um espaço representado”. Vale lembrar ainda a contribuição de alguns brasileiros ao campo da cineinstalação, notadamente Hélio Oiticica, em suas experiências com o “quase cinema” (projeto Cosmococa), mas também Rosangela Rennó, Paula Trope, André Parente, Kátia Maciel, entre outros.

Recentemente, com o surgimento do digital e da internet, essa ideia de sair para fora do cubo negro (equivalente cinematográfico do cubo branco das artes visuais) ganhou nova força. Em 2008, tivemos em São Paulo um grande evento dedicado a um cinema de tipo instalativo, que exigia novos espaços de exibição. Essa mostra, chamada Cinema sim e com curadoria de Roberto Cruz, contou também com um seminário e um livro coordenados por Kátia Maciel (2009), de que participaram pensadores, realizadores e curadores de várias partes do mundo.

Entre os vários trabalhos exibidos na mostra, destacou-se uma vertiginosa instalação de Julian Rosefeldt, chamada Stunned man (2004). Esse trabalho, filmado em Super-16 mm e transferido para DVD, era projetado em duas telas colocadas lado a lado. O efeito das duas telas é estonteante. Ora as duas imagens são especulares, ou seja, uma é a inversão simétrica da outra, ora elas são diametralmente opostas: uma mostra um homem destruindo a sua casa num acesso da fúria e a outra mostra o mesmo homem a reconstruindo calmamente. Chega um momento em que o homem da tela esquerda atravessa o quadro e entra na tela da direita, enquanto o outro faz o percurso inverso. Então, a casa que estava reconstruída começa a ser demolida, enquanto a outra volta a ser reconstruída. Uma vez que o trabalho está em loop, isso vai se repetir infinitamente: o personagem enfurecido vai sempre destruir a casa e o seu duplo pacífico vai sempre reconstruí-la, apenas invertendo os lados. O resultado é uma estranha forma de caleidoscópio, em que as imagens especulares fundem de forma paradoxal a simultaneidade e a sucessão.

Um outro trabalho visceral mostrado na mesma exposição de São Paulo foi La peau (A pele/ 2007), de Thierry Kuntzel. Um projetor especial, chamado Photomobile, exibe ininterruptamente, em loop, uma película de 70 mm que é, na verdade, uma montagem de fotos de peles das mais variadas pessoas. Como os corpos não são identificados, o que vemos na tela é um traveling infinito sobre um corpo que se confunde com uma película cinematográfica em contínuo movimento. Em um texto escrito em 1973, Kuntzel faz uma distinção entre o filme-película, ou seja, a sucessão de fotogramas fixos, as fotografias que constituem a base física do filme e, de outro lado, o filme-projeção, aquela imagem contínua em movimento que é projetada na tela e que é, por sua vez, resultado de um efeito psicológico (chamado phi em psicologia) da fusão de todos os fotogramas.

O cinema é normalmente entendido como o efeito de projeção, mas o conhecimento do cinema, a sua análise e a sua interpretação são resultados de um jogo entre o filme-película (o cinema entendido com uma fisicalidade constituída de fotogramas e planos) e o filme-projeção (o efeito de realidade produzido pela projeção na sala escura).

O fílmico que estará em jogo na análise fílmica não se encontrará nem do lado da mobilidade nem do da fixidez, mas entre os dois, no engendrar do filme projeção pelo filme-película, na negação desse filme-película pelo filme-projeção (Kuntzel, 1973: 110).

É somente dentro dessa perspectiva que se pode compreender um projeto como The Tulse Luper suitcases (2003), de Peter Greenaway, que é um work in progress, compreendendo (pelo menos no projeto original) três longas-metragens de cinema realizados com tecnologia digital e mais DVDs, livros, blogs, websites, VJ perfomances, games de computador, óperas, séries de tevê, exposições de arte e instalações. A base do projeto é um conjunto de 92 maletas (daí 92 instalações e 92 DVDs) que Luper foi espalhando pelo mundo desde 1928 até 2003. No dizer de Maria Esther Maciel (em conferência de 2007):

são maletas de conteúdo variado e extravagante, que funcionam como arquivos nômades de uma vida e de um tempo, mas que se dão a ver como coleções arbitrárias, subjetivas e heteróclitas, que desafiam os sistemas de classificação legitimados pela lógica burocrática dos arquivos institucionais.

Tudo isso para demonstrar a impossibilidade de se traçar inteira e coerentemente a biografia imaginária de um homem que se confunde com a história do século 20, fazendo multiplicarem-se objetos, arquivos e coleções anárquicas, em estado de dispersão. É como se Greenaway quisesse substituir a ideia de uma síntese de todas as artes (conforme Wagner, a propósito da ópera) pela ideia mais contemporânea de dissolução de todas as artes pela obra pós-midiática.

Mas essa fuga do cinema para fora da sala tradicional de exibição e a migração de alguns cineastas ao espaço expositivo do museu, além de também a migração dos próprios artistas visuais à tecnologia e à linguagem do cinema e do audiovisual, apresentam os seus problemas. Não podemos nos esquecer de que assim como o cinema se cristalizou num modelo único de exibição, as artes visuais também acabaram se cristalizando no modelo canônico e hegemônico da instalação. Fazer arte contemporânea hoje é fazer uma instalação. Uma Bienal é uma grande coleção de instalações, cada uma delas ocupando uma sala específica. Se podemos criticar os cineastas por não conseguirem se livrar do modelo hegemônico do filme de longa-metragem de 35 mm para ser exibido numa sala de cinema, também podemos criticar os artistas visuais por não conseguirem se livrar do modelo hegemônico da instalação.

O problema é que nem todo trabalho audiovisual é adequado ao ambiente instalativo. De um lado porque, muitas vezes, são longos demais e portanto exigem um espaço de recepção mais adequado, com cadeiras para sentar-se. Assistir a uma obra audiovisual de longa duração em pé e com um monte de cabeças na frente, gente entrando e saindo a todo tempo é um pouco torturador. Além disso, com a predominância cada vez maior de obras audiovisuais, produz-se, num ambiente como o das bienais, um problema sério de vazamento de sons. Em cada sala ouve-se os sons de todas as outras instalações. Claro que há solução técnica para isso, mas a solução é cara e em geral restringe a audição a poucos espectadores. O problema maior é que muitos trabalhos audiovisuais exibidos (em geral documentários) são trabalhos argumentativos, discursivos, têm começo, meio e fim e só podem ser devidamente apreciados se vistos por inteiro. Mas nas condições do espaço instalativo isso é quase impossível. Não se sabe quando começam os programas, sempre chegamos no meio da exibição e precisamos depois ficar esperando recomeçar para ver a parte que perdemos. A maioria das pessoas não vê os trabalhos inteiros, até porque as bienais são muito grandes e não dá para dedicar meia hora ou uma hora de atenção para cada trabalho. Uma boa parte desses trabalhos poderiam ser muito melhor apreciados e entendidos numa sala de cinema tradicional, com cadeiras confortáveis e com encosto, com horário para começar e acabar. Não vejo porque eles precisam ser exibidos em forma de instalação se eles não exigem nenhum tipo de interação com o espectador. Para funcionar num espaço instalativo a obra precisa ser curta, de preferência sem desenvolvimento linear (podendo portanto começar a ser vista a partir de qualquer ponto e ser interrompida também em qualquer ponto) e estruturada em forma de loop.

Uma pessoa não pode ver o Citizen Kane (Cidadão Kane/ 1941) entrando na sala de cinema em qualquer momento e vendo apenas uma parte. Se fizer isso, ela não terá visto o filme de Orson Welles. É preciso estar no começo para ver o plano de Kane morrendo depois de dizer a célebre palavra “Rosebud”. É preciso acompanhar os repórteres que vão ouvir os amigos e familiares de Kane para tentar descobrir o significado de “Rosebud”. E, finalmente, é preciso estar presente no final, quando os empregados jogam todos os bens de Kane numa fornalha e a câmera dá um close num trenó infantil onde está escrita a palavra “Rosebud”. O filme tem uma estrutura completa, tem um desenvolvimento planejado para ser fruído ao longo de um tempo e, portanto, não é possível vê-lo num espaço instalativo.

Em 2010, vi em Barcelona duas exposições que estavam acontecendo ao mesmo tempo em dois lugares diferentes e por acaso tinham o mesmo tema: a relação entre televisão e a arte contemporânea. O tema era o mesmo, mas as concepções curatoriais eram diametralmente opostas. A exposição do Centro Cultural Santa Mônica, com curadoria da italiana Valentina Valentini, focalizava os artistas visuais que incorporaram a televisão em suas obras, seja a televisão enquanto aparato ou dispositivo, seja a televisão enquanto iconografia, ou seja, os seus programas. Todas as obras foram concebidas para um espaço instalativo e a televisão era apenas uma presença ali, ligada ou desligada, no ar ou for do ar. Ali tínhamos, por exemplo, o famoso Cadillac de Wolf Vostell, cheio de aparelhos televisores cravados em seu casco, ou os robôs de Nam June Paik construídos apenas com aparelhos de tevê sintonizados em canais quaisquer. A exposição funcionou muito bem porque todos os trabalhos foram feitos para o ambiente de um museu.

Já a outra exposição, montada no Museu de Arte Contemporânea de Barcelona (Macba), com curadoria de Chus Martínez, foi um fracasso. Por quê? A concepção era diferente: não se tratava mais de pôr foco nos artistas que trouxeram a televisão para o museu, mas ao contrário, destacar os artistas visuais que foram à televisão, que foram fazer a sua arte na televisão, para ser exibida na televisão e não mais no museu. Ora, trazer essas obras para o espaço do museu e ainda por cima exibi-las em forma instalativa significava matar as obras, pois elas não haviam sido concebidas para esse modo de exibição. A seleção dos trabalhos era muito boa e bastante abrangente, incluindo também alguns trabalhos brasileiros (por exemplo, os sketches de Glauber Rocha para o programa Abertura, da TV Bandeirantes), mas esses trabalhos não funcionavam projetados num telão numa sala escura sem cadeiras e ainda mais com vazamento sonoro em todas as salas. A maioria dos programas era de longa duração, chegando a até duas horas e ninguém conseguia ficar todo esse tempo de pé numa sala cheia de gente em movimento apenas para ver televisão, mesmo que de boa qualidade. Cada sala tinha um tratamento temático e se dedicava a um assunto, com uma lista de programas para serem exibidos, mas o visitante nunca podia saber quando seria exibida especificamente alguma coisa que ele quisesse ver. Ou seja, esse é um tipo de programação que deveria estar endereçado a uma sala de exibição, com horários marcados para cada sessão e para cada programa. Ali pude entender melhor o meu desconforto com relação a boa parte dos materiais audiovisuais exibidos em bienais. Nem todos os artistas estão sabendo lidar com um espaço instalativo, muitos deles trazem vícios que vêm do cinema ou do audiovisual tradicionais na maneira de narrar ou de estruturar as ideias.

De qualquer forma, o que se vê hoje no cinema é um movimento no sentido de romper com o dispositivo que imperou ditatorialmente por mais de cem anos e buscar inspiração para mudanças no campo das artes visuais. Por outro lado, contraditoriamente, percebemos, no campo das artes visuais, um movimento inverso, no sentido de buscar formas e conteúdos do cinema, como a narração e o documentário, a projeção em sala escura e assim por diante. Se o cinema e a arte contemporânea puderem se encontrar em algum lugar no meio do caminho para trocar experiências, talvez esse encontro seja produtivo para os dois, no sentido de superar os atuais impasses.

* Professor do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) e do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da Universidade de São Paulo (USP). Seu campo de pesquisas abrange o universo das chamadas “imagens técnicas”, as imagens produzidas por mediações tecnológicas diversas, tais como a fotografia, o cinema, o vídeo e as atuais mídias digitais e telemáticas. Autor, entre outros, dos livros Eisenstein: geometria do êxtase (Brasiliense) e Máquina e imaginário: o desafio das poéticas tecnológicas (Edusp).


Referências:

BAUDRY, Jean-Louis (1970). “Cinéma: effets idéologiques produits par l’appareil de base”. Cinéthique, 7/8.

BAUDRY, Jean-Louis (1975). “Le dispositif: approches métapsychologiques de l’impression de realité”. Communications, 23.

DICKSON, William & Dickson, Antonia (1895). History of the Kinematograph, Kinetoscope and Kineto-phonograph. New York: The Museum of Modern Art (facsimile edition).

KUNTZEL, Thierry (1973). “Le défilement”. Cinéma: théorie, lectures. Dominique Noguez, ed. Paris: Klincksieck.

MACIEL, Kátia (org.) (2009). Cinema sim. Narrativas e projeções. São Paulo: Itaú cultural.

MACIEL, Maria Esther (2007). “Cinema as a cross-media project: the experimental archives of Peter Greenaway”. Trabalho apresentado no Ubiquitous Media – TCS 25th Anniversary Conference. The University of Tokyo, Theory, Culture & Society Centre.

PAÏNI, Dominique (1997). “Faut-il en finir avec la projection?” Projections, les transports de l’image. Tourcoing: Le Fresnoy.

YOUNGBLOOD, Gene (1970). Expanded cinema. New York: Dutton.