Resumo: O artigo traça breve panorama da produção contemporânea do romance policial no Brasil e no mundo a partir das múltiplas possibilidades de deslocamento de espaço e de tempo. O ponto de partida é a relação estabelecida entre “crime” e “viagem” por Ricardo Piglia; por meio de exemplos e associações, é possível perceber as mudanças que ocorreram nas duas últimas décadas no tradicional gênero literário, com maior diversidade temática e incorporação de tensões sociais, e também discutir o rótulo de “subliteratura” comumente atribuído ao romance policial.
Palavras-chave: Literatura; deslocamento; romance policial.
Abstract: The article provides brief overview of the contemporary production of the crime novel in Brazil and the world from the multiple possibilities of displacement in space and time. The starting point is the relation between “crime” and “trip” established by Ricardo Piglia; through examples and associations, it’s possible to see the changes that have occurred in the last two decades in the traditional literary genre, with greater thematic diversity and incorporation of social tensions, and it’s also possible to discuss the label “subliterature” commonly attributed to the crime novel.
Keywords: Literature; displacement; crime novel.
En definitiva no hay más que
libros de viajes o historias policiales.
Se narra un viaje o se narra un crimen.
Qué outra cosa se puede narrar?
Crítica y ficción, Ricardo Piglia
Depois de sobreviver a diversas tentativas de assassinato por parte da crítica literária, que tentou também a condenação por irrelevância perpétua, o romance policial decidiu agir em legítima defesa. Escapou do quarto onde foi trancafiado sob a acusação de “gênero menor”, demoliu o muro das convenções rigidamente estabelecidas e ganhou o mundo, ultrapassando os limites aos quais tinha sido confinado desde que passou a ser consumido em larga escala na primeira metade do século 20 a partir da produção incessante de autores como Agatha Christie, Rex Stout, Edgar Wallace e Georges Simenon. Manteve, contudo, a força-motriz: o crime, suas causas encobertas e consequências incontornáveis. “O mistério central de uma história de detetive não precisa envolver uma morte violenta, mas o assassinato continua sendo o crime supremo e traz um peso atávico de repugnância, fascinação e medo” (2012, p. 17), ensina a escritora P.D. James no livro Segredos do romance policial — História das histórias de detetive, antes de definir o assassinato como “o crime definitivo, para o qual jamais haverá reparação” (2012, p. 18).
Considerada uma das grandes damas do suspense, P.D. James conseguiu definir no mesmo livro o motivo de milhões de leitores se sentirem atraídos até hoje por histórias que se passam em grupos sociais impermeáveis às mudanças e com limitações de espaço. “A irritação que pode imergir da intimidade enclausurada e involuntária é capaz de gerar animosidade, ciúme e ressentimento, emoções que, se forem suficientemente fortes, podem ferver e acabar explodindo na destrutiva fatalidade da violência” (James, 2012, p.120). Foi o que fez, por exemplo, Agatha Christie em um de seus best sellers, E não sobrou nenhum (anteriormente editado com o título O caso dos dez negrinhos), no qual uma sequência de assassinatos ceifa vidas de dez personagens isolados em uma ilha.
Mas acontece que a literatura policial não está imune às transformações do planeta. Então, depois da guerra fria, quando houve declínio de interesse pelos romances convencionais na linha “quem-matou?” e ganharam projeção as histórias de espionagem como as criadas pelo inglês John le Carré, o mundo mudou – assim como convenções morais e sociais. Os impasses vivenciados pelos que mergulham em situações-limite, capazes de provocar crimes menos cerebrais e resultantes de explosões súbitas de violência, tiveram como expoentes na literatura os personagens dúbios da norte-americana Patricia Highsmith, em especial o falsário sedutor Tom Ripley, e também as criações do brasileiro Rubem Fonseca, como o advogado criminalista Mandrake, consolidando uma etapa da literatura policial descendente direta do que fizeram Raymond Chandler, Dashiell Hammett e tantos outros expoentes do noir norte-americano a partir da década de 1930, sem tantos pudores nem amarras morais como a produzida pelos europeus da primeira metade do século 20.
Mas, quando parecia que a literatura policial mergulharia no ostracismo, sobrevivendo apenas de reedições ou dos novos títulos dos autores que conseguiram dar nova roupagem a mistérios tradicionais (como o italiano Andrea Camilleri e o espanhol Manuel Vásquez Montalban), nas duas últimas décadas o gênero ganhou surpreendente injeção de vitalidade. E, de novo, as palavras de P.D. James servem como bússola para orientar os caminhos recentemente descortinados, mesmo quando se referem a fórmulas já utilizadas: “A comunidade isolada pode também ser o epítome de um mundo externo mais amplo, e isso, para um escritor, é uma das maiores atrações de uma ambientação ficcional circunscrita, principalmente quando os personagens estão sendo explorados sob o trauma de uma investigação oficial de assassinato, processo que pode destruir a privacidade de vivos e mortos” (James, 2012, p. 120-121).
Para compreender como a literatura policial contemporânea resolveu não mais se isolar, mas enfrentar o “mundo externo mais amplo”, torna-se necessário ressaltar: todo deslocamento tem uma ação como premissa. E, nesse âmbito, faz sentido a associação que Ricardo Piglia estabelece entre a viagem e o crime no ensaio “Sobre el género policial” (2001): os dois atos movem seus protagonistas a lugares diferentes, são capazes de promover profundas e rápidas transformações íntimas. O próprio Piglia, celebrado como um dos grandes pensadores das questões literárias contemporâneas, fez viagem particular em direção ao romance policial e, baseado em fatos reais, voltou com uma obra de grande vigor narrativo: Dinheiro queimado, publicado na Argentina em 1997, adaptado aos cinemas por Marcelo Piñeyro e lançado nos cinemas brasileiros com o título no original em espanhol, Plata quemada. E o fez por meio de prosa límpida, que eleva a tensão, mas não deixa de emitir pertinentes comentários sobre a sociedade na qual o crime emerge:
Matar assim, a frio, porque lhe deu na telha, significava em compensação (para a polícia) que os caras não iam respeitar nenhum dos acordos implícitos que regem a lei não escrita entre a bandidagem e a pivetada, já que estes eram uns pintas-bravas, eram uns bestalhões, uns ex-condenados, uns marmanjos que se arriscam e pouco ligavam se toda a polícia da província de Buenos Aires fosse para cima deles. A confusão indescritível resultante do pérfido ataque não permitiu, nos primeiros momentos, estabelecer o que havia acontecido (diziam os jornais). Foi uma rajada de violência brutal, um estrondo cego. Uma batalha concentrada, que durou o tempo que leva um semáforo para passar do verde ao vermelho. Foi um instante, e depois a rua ficou cheia de cadáveres (Piglia, 1998, p. 32).
A incursão bem-sucedida do escritor argentino no gênero é apenas um dos exemplos contemporâneos das mudanças no romance policial depois das décadas de imobilismo. São diversidades de três naturezas: geográfica, temporal, temática. O deslocamento no mapa-múndi da literatura policial, antes quase que exclusivamente restrito a Estados Unidos, França e Grã-Bretanha, foi percebido em larga escala a partir do êxito do sueco Stieg Larsson (1954-2004) com o primeiro volume da trilogia Millenium, Os homens que não amavam as mulheres. Sucesso no mundo inteiro, com mais de 60 milhões de exemplares vendidos da trilogia, Larsson engendrou uma trama que obedece aos cânones do mistério – um investigador, ainda que informal (o repórter Mikael Blomkvist), ao menos uma revelação capaz de surpreender o leitor e provocar uma reviravolta no desfecho do livro –, mas adicionou doses de contemporaneidade ao trazer para o protagonismo uma forte personagem feminina (a hacker Lisbeth Salander) e adicionar comentários a respeito de crises financeiras por meio do ponto de vista da vivência e das reflexões de Blomkvist, jornalista especializado em economia.
Muitos críticos, surpresos com a popularidade de autores como Larsson, a norueguesa Anne Holt e o islandês Arnaldur Indridason, arriscaram teorias sobre o êxito escandinavo: a mais recorrente estabelece conexão com o fato de os países nórdicos apresentarem índices reduzidos de crimes violentos. Por isso, o homicídio nestes países europeus é considerado um ponto fora da curva da dinâmica social; não foi banalizado e incorporado à banalidade do cotidiano, como ocorre no Brasil. Em entrevista a José Figueiredo, publicada em 10 de setembro de 2011 no caderno Prosa e Verso do jornal O Globo para divulgação do lançamento da edição nacional de O silêncio do túmulo, Arnaldur Indridason assume a busca de um diferencial inusitado para as suas histórias (“Leitores estão sempre procurando algo diferente, e o que é mais diferente do que um detetive em Reykjavik, Islândia?”) e arrisca uma explicação para a popularidade dos escandinavos: “Na Islândia, alguns dos escritores de livros policiais vêm do jornalismo, e talvez a literatura criminal, com questões sociais, seja uma espécie de jornalismo. Romances policiais oferecem uma excelente maneira de se examinar todos os aspectos das sociedades, e acho que é isso que os escritores escandinavos estão fazendo tão bem. Os leitores estão captando isso”.
As “questões sociais” citadas por Arnaldur Indridason estão presentes de forma consistente na obra do sueco Henning Mankell (1948-2015). Em Assassinos sem rosto, Mankell enxerta o clima de desconfiança em relação aos refugiados de setores conservadores da sociedade sueca em drama criminal ambientado no sul do país. Elementos de xenofobia (“Quando a gente não consegue nenhuma pista, bota a culpa nos finlandeses”; Mankell, 2001, p. 76) também são inseridos de forma harmoniosa em narrativa que segue o cânone policial, com a apresentação de um protagonista (o detetive Kurt Wallander) capaz de despertar empatia pelas virtudes e fragilidades, tiros e perseguições, mais reviravoltas, pistas falsas e resultados surpreendentes. “Todas as investigações criminais bem-sucedidas chegam a um ponto em que o muro se abre. Na verdade não sabemos o que vamos encontrar do outro lado. Mas a solução está lá, em algum lugar” (Mankell, 2001, p. 83).
Ao embutir na trama policial de Assassinos sem rosto as tensões sociais contemporâneas, Mankell incrementa enigma à moda antiga, que poderia estar nos livros de Agatha Christie: o misterioso assassinato de um casal de agricultores que moram em um local isolado no interior do país.
A vinte quilômetros de Lenarp havia um enorme campo de refugiados que em várias ocasiões fora alvo de ataques. Cruzes haviam sido queimadas à noite, no pátio, pedras atiradas contra as janelas, os prédios tinham sido pichados com slogans contra estrangeiros. O campo de refugiados no velho castelo de Hageholm entrara em operação, apesar dos protestos veementes das comunidades vizinhas. E os protestos continuavam. A hostilidade contra os refugiados estava aumentando. (Mankell, 2001, p. 50) investigação de Wallander considera também a hipótese de ódio racial (“Presumo que vamos ter de começar a fuçar esses grupos neonazistas suecos”; 2001, p. 185) e não deixa de levar em conta a percepção de mudanças na realidade sueca: “A insegurança no país é enorme. As pessoas estão com medo” (2001, p. 233).
O escocês Ian Rankin, sucesso na Europa com série de romances protagonizada pelo policial John Rebus, também traz as questões sociais relativas ao seu país para as histórias, como ele revela no livro Rebus’s Scotland – A personal journey:
Os temas que estão na maioria dos meus livros são questionamentos que passam pela cabeça dos leitores escoceses: quem somos, de onde viemos, como nós reagimos ao racismo, ao sectarismo, à anglofobia, à questão da identidade, ao processo político, qual lugar que ocupamos em um cenário maior (Rankin, 2005, p. 121).
O racismo e a imigração ilegal ocupam espaços importantes na trama de um dos romances recentes de Rankin, Fleshmarket Close (lançado no Brasil como Beco dos mortos), refletindo as tensões que ocorrem em outros países. “O que os escritores de policiais podem fazer é explorar não só as razões e as consequências dos crimes, mas também o que estes crimes podem nos dizer sobre a realidade em que vivemos. Sendo um país relativamente pequeno e relativamente reservado, a Escócia pode funcionar como microcosmo de um mundo maior” (Rankin, 2005, p. 129).
No Brasil, deslocamentos capazes de aguçar tensões sociais são especialmente marcantes em O invasor, de Marçal Aquino. Com personagens mais próximos do universo amoral de Patricia Highsmith do que dos convencionais romances policiais britânicos, O invasor explora, de forma notável, as consequências da aproximação problemática (motivada pelo planejamento de uma ação de violência) de personagens de classes sociais distintas, assim descrita no parágrafo inicial do primeiro capítulo: “Mesmo seguindo as indicações de Anísio, demoramos um bocado para encontrar o bar, numa rua estreita e escura da Zona Leste. Um lugar medonho” (Aquino, 2002, p. 7). A chegada dos dois engenheiros no bar para o encontro com o homem que eles irão contratar para executar o terceiro sócio numa construtora é imediatamente percebida pelo matador: “Quando vocês entraram, nem precisei olhar duas vezes, Anísio disse. Estava na cara que eram os dois bacanas que eu estava esperando” (Aquino, 2002, p. 9). A inversão de papéis, com os dois representantes de classes sociais elevadas “invadindo” o espaço dominado pelo “invasor” Anísio, é uma das armas de Aquino na criação de uma trama em ritmo de thriller, adaptada com êxito para os cinemas pelo autor, Renato Ciasca e Beto Brant, com direção deste último.
Ainda na produção contemporânea nacional, os deslocamentos impulsionam Bellini e o labirinto, mais recente aventura do personagem criado pelo paulistano Tony Bellotto. Depois de nove anos, Bellotto voltou a lançar romance protagonizado pelo detetive particular Remo Bellini. Mas fez um movimento importante: levou a ação, quase sempre transcorrida em território paulistano, para o Centro-Oeste, mais precisamente para Goiânia, capital pouco explorada na ficção nacional.
“Goiânia é uma cidade louca. Eu a visito desde os anos 1980, quando comecei a fazer apresentações com os Titãs por lá e sempre observei que se trata de uma capital cosmopolita com ar de província: carrões convivendo com carroças”, explicou Tony Bellotto, em entrevista ao repórter Ubiratan Brasil, publicada no jornal O Estado de S. Paulo em 30 de agosto de 2014.
Com o deslocamento, o personagem Bellini ganha força e a narrativa, intensidade. Assumidamente inspirado no cinismo anti-heroico de Philip Marlowe, de Raymond Chandler, Bellini mergulha de corpo e alma em trama ambientada em universo estranho ao personagem e aparentemente pouco familiar ao guitarrista dos Titãs: a música sertaneja. Na mesma entrevista a O Estado de S. Paulo, Bellotto contou que seu conhecimento do mundo sertanejo vem das excursões que faz com sua banda pelo Brasil. Nasce, portanto, da observação, não necessariamente da vivência. E o olhar é carregado de mordacidade, evidenciando ausência de envolvimento emocional.
Marlon & Brandão grafados em letras gigantes e douradas, simulando a grafia boçal de uma menina apaixonada de treze anos de idade, estampavam uma parede inteira na recepção do escritório da dupla. Sob os nomes, uma foto imensa dos dois irmãos cantores sorrindo, com seus hilariantes cabelos de bagaços de cana, oferecia as boas-vindas a quem entrasse no escritório da M&B Produções, que ocupava um edifício de quatro andares no centro de Goiânia (Bellotto, 2014, p. 25).
A visão irônica de Bellini para o que parece estranho se impõe na construção de um ponto de vista narrativo simultaneamente próximo e distanciado do mundo retratado por Bellotto. Tal decisão autoral contribui para que Bellini e o labirinto explicite, logo no início do romance, o desejo de mudança. Trata-se do trecho no qual Bellini observa, pouco antes de embarcar para a capital goiana para investigar o sequestro de um integrante de dupla sertaneja: “uma das poucas coisas imutáveis em São Paulo é o aeroporto de Congonhas” (Bellotto, 2014, p. 18). E, logo depois de relembrar momentos marcantes da infância paulistana, evidenciando o vínculo com a cidade natal, o investigador anuncia: “Se a montanha não vem a Maomé, Bellini vai a Goiânia” (Bellotto, 2014, p. 19).
Em Bellini e o labirinto, o fascínio do jogo de espelhos estabelecido entre dois gêneros musicais influenciados pela cultura internacional passa pelo detalhamento de excessos – sexo, drogas – usualmente associados aos roqueiros até chegar ao ponto máximo que ilumina o título do livro. Longe de casa, desorientado e perseguido pelos homens que tentava perseguir, Bellini se vê perdido em um imenso canavial – na imaginação do autor, versão contemporânea do labirinto grego. Atingido por um tiro, o detetive caminha por horas até encontrar uma saída diretamente ligada à outra feliz decisão do autor, a de assombrar a sua trama realista com toques fantásticos imaginados a partir das consequências da contaminação de populares pela radiação do Césio 137, ocorrido na capital de Goiás em 1987. A decisão foi explicada por Bellotto na mesma entrevista a O Estado de S. Paulo: “Foi a maior tragédia nuclear acontecida fora de uma usina atômica e, apesar de ter causado problemas de contaminação e afetar a saúde de diversas pessoas, tornou-se um assunto esquecido”.
Depois de escapar da morte no “âmago do canavial”, o investigador particular admite que a proximidade da morte, catalisado pelo estranhamento do ambiente, teve o efeito de mudança. A partir do episódio longe de casa, o urbano Bellini passa a carregar uma cicatriz interior. “De certa forma, aceitei que Goiânia vai fazer parte da minha vida para sempre. Não, não acredito que a terrível estadia no labirinto tenha me transformado num sentimental. Mas com o passar do tempo as coisas vão adquirindo outros significados, não tem jeito”, explica Bellini, antes de concluir de forma propositalmente ambígua: “Quando saí dali já era noite, e do crepúsculo só restava a escuridão. Caminhei ao seu encontro”.
Ponto alto na trajetória do personagem surgido pela primeira vez em Bellini e a esfinge (1995), Bellini e o labirinto sintetiza tipos de deslocamento que permeiam a produção contemporânea do romance policial. Mas também, como demonstra o trecho reproduzido no parágrafo anterior, exemplifica o principal objetivo dos autores ao investir em deslocamentos: a transformação decisiva de seus personagens. É o que faz o carioca Raphael Montes no romance Dias perfeitos, lançado no Brasil em 2014 e traduzido em diversos idiomas. A ação da história de “amor, sequestro e obsessão”, como o livro é apresentado na orelha, começa no Rio de Janeiro, passa por Teresópolis e chega a momento crucial em praia deserta na Ilha Grande. Lá, os protagonistas, Téo e Clarice, experimentam sentimentos extremos a partir de ações irreversíveis. “Sabia que era uma revelação que poucos experimentavam: amor em estado bruto; a essência da vida. Tudo se reordenava e ganhava sentido” (Montes, 2015, p. 205). Neste momento, Téo abraça Clarice: “Aquele era o momento mais importante da sua vida, ele tinha certeza”. Instantes depois, enterra uma faca nas costas da mulher. “Havia um contraste vibrante: o sangue que saía das costas de Clarice e o sono inabalável dela (…). A faca tremeu dentro da carne e ele teve a impressão que o corpo dela relaxou” (Montes, 2015, p. 207). A decisão do autor de isolar os personagens em lugar ermo, portanto, torna-se essencial para amplificar a radicalidade do ato, ainda mais com a exploração do contraste entre uma paisagem idílica e um acontecimento perturbador.
Mas há outro tipo de deslocamento que chama atenção e não está relacionado com fronteiras geográficas ou ações físicas. São as narrativas que, com habilidade, deslocam aspectos essenciais da trama para a psiquê de seus personagens. E, ao adotar tal procedimento, colocam sob suspeita os próprios fatos apresentados, quando confundidos com versões produzidas pelas imperfeições da memória. No Brasil, as armadilhas do passado são enfocadas de forma exemplar pelo escritor e psicanalista carioca Luiz Alfredo Garcia-Roza no romance Um lugar perigoso. Em mais uma aventura do delegado Espinosa, um professor universitário se apresenta à polícia e faz declaração inusitada: está disposto a confessar um assassinato que não sabe se cometeu, “convencido que a imagem repetitiva do corpo desmembrado de uma mulher que lhe aflora à memória é o corpo de uma mulher morta por ele há cerca de dez anos” (Garcia-Roza, 2014, p. 96).
O professor de Um lugar perigoso é diagnosticado com uma doença neurológica, a Síndrome de Korsakov, capaz de causar amnésia e provocar consideráveis lapsos de memória. Na inspirada descrição de Garcia-Roza:
A memória do professor Vicente é como uma estrada malconservada, com grande quantidade de buracos, alguns capazes de engolir um carro, o que a torna perigosa e, em certos trechos, intransitável; o professor Vicente é o operário que, solitariamente e com uma máquina de asfalto já danificada pela própria estrada, preenche os buracos refazendo sua suposta continuidade. Não o vejo como um indivíduo perigoso, o que vejo como perigosa é a sua memória (Garcia-Roza, 2014, p. 184).
Os perigos escondidos no que ficou (ou deveria ter ficado) para trás também são um dos temas caros ao cubano Leonardo Padura Fuentes. Logo em Passado perfeito, primeiro volume da coleção As quatro estações, ele conduz o seu personagem, o policial Mario Conde, para uma trama que envolve personagens marcantes na adolescência do investigador. Mas não fica por aí: Padura Fuentes utiliza músicas conhecidas (Strawberry fields forever) como alavanca de lembranças, madeleines proustianas em formato de canções pop:
E agora a estava cantando outra vez e não sabia por quê: queria negar que aquela melodia era a bandeira de suas saudades de um passado onde tudo foi simples e perfeito, e, embora já soubesse o que a letra significava, preferia repeti-la sem consciência e sentir apenas que estava caminhando por aquele campo de framboesas que jamais tinha visto, mas que suas lembranças conheciam tão bem, somente ele e aquela música. “Strawberry fields” vinha sempre assim, sem se anunciar, e empurrava todo o resto (Fuentes, 2005, p. 82).
Em outro romance protagonizado por Mario Conde, O rabo da serpente, Leonardo Padura Fuentes explora o estranhamento que seu protagonista sente ao percorrer o bairro chinês de Havana durante a investigação do assassinato de um idoso oriental:
O mais doloroso seria comprovar como, ao fim daquelas jornadas intensas e suadas no Bairro, o chinês típico e exemplar que Conde fora capaz de conceber se transformaria na imagem de um ser repleto de cicatrizes abertas e de caráter insondável, como as águas profundas de um mar do qual emergissem velhas, mas ainda lancinantes, histórias de vingança, ambição, fidelidade e as borbulhas de inúmeros sonhos frustrados: quase tanto quanto os chineses que chegaram a Cuba (Fuentes, 2015, p. 12).
Em nota assinada pelo autor em 2011 e publicada em 2015 na edição brasileira de O rabo da serpente, Padura Fuentes conta que seu interesse pelo bairro chinês de Havana começou em 1987, quando trabalhava como jornalista e escreveu uma grande reportagem sobre o local. Depois da publicação, continuou fascinado pelos mistérios do bairro e “sua história de rupturas e fidelidades a certas tradições” (p. 158). Decidiu, então, promover mais um deslocamento: transportar para a ficção a sua visão realista da região.
A narrativa é ficcional, embora tenha um forte conteúdo de realidade. Aqui, por trás da aventura policial, está a história de um desenraizamento que sempre me comoveu: o dos chineses que vieram a Cuba (…). A solidão, o desprezo e o desenraizamento são, pois, os temas desta história que não ocorreu na realidade, mas poderia muito bem ter ocorrido (Fuentes, 2015, p. 158).
Mas é em A neblina do passado, lançado em 2005 e no Brasil em 2012, que Leonardo Padura Fuentes mergulha de cabeça no memorialismo para construir um romance que evoca mais claramente o tom proustiano no turbilhão de lembranças trazidas à tona depois que o investigador Mario Conde, agora afastado do cotidiano policial, entra em um dos cômodos de um casarão decadente:
Logo que se abriram as portas da biblioteca, ele foi invadido pelo cheiro de papel velho e recinto sagrado que pairava naquele cômodo alucinante, e Mario Conde, que nos seus distantes anos de investigador policial tinha aprendido a reconhecer os reflexos físicos de suas salvadoras premonições, teve de se perguntar se alguma vez havia sentido um tropel tão avassalador de emoções como o desse instante (Fuentes, 2012, p. 11).
Leonardo Padura Fuentes não se destaca apenas por ser um dos responsáveis pela inserção de Cuba no mapa-múndi da literatura policial. Também brilha ao trafegar com desenvoltura em outras estradas. Assim, tornou-se um dos exemplos contemporâneos representativos de escritores que escapam do confinamento do gênero.
Dotado da mesma capacidade de insurgência, ganhou projeção nas duas últimas décadas o norte-americano Dennis Lehane, autor de uma série de romances protagonizada por um casal de detetives (Patrick Kenzie e Angela Gennaro), mas também romances “independentes”, nos quais explora a diversidade de seu repertório, entre eles uma releitura do terror psicológico (Paciente 47, adaptado aos cinemas por Martin Scorsese e lançado em 2010 com o título Ilha do medo) e um caudaloso romance histórico (Naquele dia, ambientado em Boston, cidade natal do escritor, logo depois do fim da Primeira Guerra Mundial).
Sobre o lugar a ser ocupado pela ficção de Dennis Lehane no mundo literário e o sucesso das adaptações cinematográficas dirigidas por gigantes como Clint Eastwood e Martin Scorsese, o escritor gaúcho Antônio Xerxenesky estabelece análise pertinente:
O fato de ele (Lehane) ser um escritor tão “adaptável” é um indicativo certeiro de que sua ficção não é muito experimental em termos narrativos, nem tão composta de ação interna (duas coisas que não são bem transferidas para o cinema). De fato, Lehane é um autor comportado. E se tornou um dos maiores nomes da ficção policial contemporânea e, em minha opinião, por um bom motivo: pela sua elegância. Dennis Lehane encarna um tipo de escritor que é simples, acessível e nem por isso simplório ou banal. No grande esquema de classificações hierárquicas e elitistas dos americanos, ele provavelmente seria categorizado como middlebrow. No Brasil, não temos uma palavra específica para este termo (Xerxenesky, 2012).
O próprio Lehane parece ter superado tal dicotomia como demonstrou em entrevista. Ele revelou que, fortemente influenciado por Raymond Carver, tentou escrever contos no início da carreira. “Mas eu estava fingindo. Eu não passava de uma imitação de Don DeLillo. Ele é um gênio. Eu era um imitador” (apud Kidd, 2011), reconhece, com franqueza. Encontrou o veio quando descobriu o que gostaria de explorar: utilizar as palavras para narrar, em nível dramático, histórias marcadas por dilemas irreconciliáveis. E, a respeito da série que criou protagonizada pelo casal Kenzie-Gennaro, Lehane comenta que enxergou com maior nitidez o seu caminho depois de devorar as obras de três escritores, “os três James”: Crumley, Ellroy, Lee Burke. “O que eles me disseram (nos seus livros) foi: ‘Não precisa ficar constrangido. Tudo o que nós fizemos foi pegar todas as questões que estão na ‘grande literatura’ e colocar dentro do gênero” (apud Kidd, 2011).
De fato, não parece fazer muito sentido condenar a produção de Lehane a rótulos como subliteratura quando o autor demonstra pleno domínio da técnica narrativa em passagens como a seguir, retirada de A entrega.
Havia duas fotografias da igreja no jornal, uma delas tirada recentemente, a outra cem anos atrás. O mesmo céu acima. Mas ninguém que estivera sob o primeiro céu ainda estava vivo no segundo. E talvez eles estivessem contentes de não se encontrar num mundo tão irreconhecível comparado àquele em que tinham vivido. Quando Bob era criança, sua paróquia era seu país. Tudo aquilo de que você necessitasse e precisasse saber estava contido nela. Agora que a arquidiocese tinha fechado metade das paróquias para pagar pelos crimes dos padres molestadores de crianças, Bob não podia escapar do fato de que o tempo da hegemonia das paróquias tinha acabado. Ele era aquele tipo de cara, de certa meia geração, uma quase geração – e embora ainda tivessem sobrado muitos deles, agora estavam mais velhos, mais grisalhos, tinham tosse de fumantes, iam fazer checkups e não voltavam mais (Lehane, 2015, p. 97).
Para Xerxenesky, as leituras de Naquele dia, de Lehane, e também dos livros de contos Amor e obstáculos, de Aleksandar Hemon, e Tudo destruído, tudo queimado, de Wells Tower, provocam indagação que surge acompanhada pela possibilidade de resposta: “Será que obras como a de Lehane, Hemon e Tower não representam uma espécie de vanguarda? Em dias caóticos, recuperar o prazer de narrar e buscar uma conexão sincera e direta com o leitor pode muito bem ser um dos caminhos da literatura do futuro” (Xerxenesky, 2012).
O escritor e tradutor paranaense Rodrigo Garcia Lopes segue na mesma trilha do gaúcho Antônio Xerxenesky. Em entrevista para divulgação do romance O trovador, ao ser perguntado sobre a produção do gênero policial no Brasil, Garcia Lopes analisou o posicionamento do romance policial no Brasil e as múltiplas possibilidades inerentes ao gênero:
Embora a situação tenha melhorado nos últimos anos, o policial brasileiro ainda tem pouca tradição no nosso sistema literário e encontra resistência por parte da crítica, ora considerado como subliteratura ou mera literatura de entretenimento. Acho que o gênero permite levantar importantes reflexões históricas, questões de identidade, moral, corrupção política, relações internacionais, colonialismo, propondo, ao mesmo tempo, uma reescrita da história (apud Portella, 2013).
No romance O trovador, Rodrigo Garcia Lopes demonstrou que é capaz de colocar em prática sua visão sobre o gênero. A partir de uma minuciosa pesquisa histórica sobre a colonização do norte do Paraná na década de 1930, o autor engendrou uma trama que também nasce de um deslocamento. O ponto de partida está na viagem de um tradutor britânico, Adam Blake, que desempenhará a função de detetive, depois de deixar a Inglaterra e chegar ao Brasil. Os sucessivos estranhamentos de Blake diante de uma realidade desconhecida são utilizados por Garcia Lopes para incrementar uma história pontuada pela inserção de personagens históricos e cenários reais, reconstituídos com impressionante riqueza de detalhes, como destacou na orelha o escritor Joca Reiners Terron: “O cenário importa tanto a esta trama quanto seus personagens”.
O viés histórico, utilizado tanto por Rodrigo Garcia Lopes em O trovador quanto pelo carioca Alberto Mussa no inovador e ensaístico A primeira história do mundo (2014), mostra que a pesquisa pode contribuir para a expansão e a renovação da literatura policial. Mas não necessariamente é preciso voltar ao passado para estabelecer diálogo com o público de hoje. Em tempos de narrativas fragmentadas e feéricas, as que são arquitetadas de forma sólida funcionam como antídoto, espécie de “porto seguro” destinado aos que tentam escapar de uma realidade tão estilhaçada. Por isso, de tempos em tempos, o romance que consegue capturar a atenção de leitores cansados de tanto imediatismo, de tantas “novidades”, tem como alicerce a estrutura narrativa policial. E nem é necessário trabalhar com personagens conhecidos para atingir tal status. Coincidência ou não, tanto Lehane (com o drama psicológico Sobre meninos e lobos) como Padura Fuentes (com o romance histórico O homem que amava os cachorros) não precisaram lançar mão de seus personagens mais famosos para atravessar as fronteiras do gênero e da geografia, alcançando repercussão mundial.
Nenhum deles, porém, ainda atingiu o patamar alcançado pelo italiano Umberto Eco com O nome da rosa, nos anos 1980. Quando perguntado sobre a surpreendente decisão de escrever um romance histórico com uma trama de mistério, Eco assim definiu o seu ímpeto, inesperado para um acadêmico já internacionalmente conhecido pela sofisticação de suas análises semióticas: “Eu queria envenenar um monge”. A imagem de um monge envenenado rondava a cabeça do intelectual desde os 16 anos, quando visitou um mosteiro beneditino, como descreve em Confissões de um jovem romancista:
Atravessei os claustros medievais e entrei numa biblioteca sombria onde me deparei com o Acta sanctorum aberto sobre um atril. Folheando o imenso volume em profundo silêncio, com alguns raios de luz filtrados pelos vitrais, devo ter sentido uma espécie de emoção. Aquela foi a imagem seminal. Mais de quarenta anos depois, esse sentimento emergiu de meu inconsciente (Eco, 2003, p. 20).
De certa forma, o sentimento que aflorou em Umberto Eco para escrever O nome da rosa responde ao chamado de Dostoiévski no seminal Crime e castigo, expresso no conselho de Porfiri Pietróvitch a Raskólhnikov durante o embate verbal do juiz de instrução com o universitário: “Deixe-se levar francamente pela corrente da vida, sem raciocinar, afugente as inquietações, que ela mesma o conduzirá diretamente à margem e o porá de pé novamente” (Dostoiévski, 2008, p. 497). E, aos autores contemporâneos de romances policiais, o mestre russo ainda deixou outro conselho nas páginas finais de Crime e castigo: “Já que passou a fronteira, não pense em retroceder”. Uma lição simples sobre a forma mais eficiente de enfrentar uma situação de avanço sem retorno. Tão irreversível quanto a morte.
* Carlos Marcelo é jornalista e escritor, formado em Comunicação Social pela Universidade de Brasília. Autor dos livros Nicolas Behr – eu engoli brasília (2004, edição do autor), Renato Russo – O filho da revolução (Agir, 2009, terceira edição em 2015 pela Planeta), O fole roncou! Uma história do forró (Zahar, 2012, com Rosualdo Rodrigues) e do romance policial Presos no paraíso, com lançamento previsto para 2017.
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