Resumo: Este texto é uma leitura de duas partes do livro de Roberto Bolaño, 2666: “La parte de los críticos” e “La parte de los crímenes”. A tese que defendemos é: 2666 constitui uma experiência do limite, abre um espaço vazio entre representação e mundo, entre ficção e realidade. Essa experiência permite, do nosso ponto de vista, um descentramento da crítica literária e a individuação de uma nova tarefa para o pensamento: uma crítica que dê conta da ficção através de um pensar ficcionalmente e que abra mão, assim, de constituir-se referência do texto literário. Assim como as leis que regem a literatura são profundamente desestabilizadas, a lei como instituição também o é. Nesse sentido, a literatura desafia o direito e é desafiada por ele.
Palavras-chave: 2666, crítica, direito, vida, poder.
Abstract: This article aims to comment on certain premises of literature and law through the experience of reading two parts of Roberto Bolaño’s 2666: “La parte de los críticos” and “La parte de los crímenes”. We believe that 2666 provides a liminal experience, that is, it opens a void between representation and world, fiction and reality. This experience forces literary criticism to decenter and acquire a new duty: a criticism that accounts for fiction through a fictional way of reading and gives up being the reference to the literary text. As the literary institution and its laws are deeply destabilized by 2666, it follows that law as an institution is problematized as well. Literature defies law and is defied by it. In the friction appears a kind of reference that does not make a proper reference. Language – the language of law as well as the language in literature – does not describe, nor it represents anything but itself and limitless violence. In the frontier between literature and law, language and reality, life itself emerges.
Keywords: 2666, criticism, law, life, power.
1. O monstro latino-americano
Neste artigo[1], propomos uma reflexão sobre “La parte de los críticos” e “La parte de los crímenes” de 2666, do escritor chileno Roberto Bolaño. Acreditamos que o livro de Bolaño se constitua um espaço de experiência. O texto, como espaço de experiência, se torna possível quando a relação entre o plano da representação e a ordem do mundo enfraquece a ponto de desaparecer. Nesta abertura, a experiência se dá como pura imanência, além e aquém de qualquer juízo de valor. Em outras palavras, a experiência não remete a algo que a transcenda e, desse modo, a justifique. A experiência que o texto de Bolaño propõe tem a ver com o impossível, o impossível da representação, ou seja, aquilo que a representação deve excluir para constituir-se como tal. Esse impossível é a experiência como pura imanência. O que 2666 relata é a repetição infinita dessa experiência. Um relato que não pode ter fim e tampouco início, porque fim e início se dão somente dentro de uma temporalidade que se pensa teleologicamente. O relato se abre, em vez disso, na dobra de um início que é já iniciado e de um fim constantemente adiado.
A experiência, no momento em que se subtrai da ordem da representação, é uma experiência do limite. 2666 é um texto sobre a literatura na medida em que a literatura, distintamente da linguagem reflexiva redobrada na interioridade do “eu penso”, é capaz de levar o limite ao seu próprio limite (Foucault, 2004b). Quando as palavras e as coisas não coincidem mais, quando a representação não é capaz de corresponder à indeterminação do mundo, aquilo que surge é a experiência da linguagem como devir metamórfico. A ordem da representação se rompe e surgem as forças que existem somente em estado de agitação, remanejamento, mutação (Deleuze, 2002, p. 117). O limite é o lugar, ou melhor o não-lugar, onde as forças que Deleuze define como “forças do fora” emergem determinando outros compostos, outras possibilidades, outras experiências. A literatura, diz Deleuze, é uma prática do informe, da incompletude. Escrever é “caso de devir, sempre em via de fazer-se, e que extravasa qualquer matéria vivível ou vivida. É um processo, ou seja, uma passagem de Vida que atravessa o vivível e o vivido” (Deleuze, 1997, p. 11). Em 2666, a linguagem é levada ao seu limite, num “fora de si” que se manifesta na forma de uma dispersão e não de uma dobra, em um retorno dos signos sobre si mesmos. A palavra se torna transgressiva não pelo conteúdo de sentido que expressa mas porque chega ao próprio limite, ao ponto onde aceita dissolver-se no rumor, na negação daquilo que disse, no silêncio de um fora onde as palavras se seguem infinitamente (Foucault, 2004b). A realidade, em 2666, não é representável, surge somente sob a forma de um ruído mudo, como imagem de um sonho que desaparece apenas acordamos, como os risos que vêm do escuro das ruas das periferias que dão no deserto. Em um diálogo de “La parte de los crímenes”, é exatamente o ruído, o signo sem significado, que funciona como abertura do significado para além do signo. Haas, o gigante “gringo” acusado pelos crimes de Santa Teresa explica a Sergio González, o jornalista vindo da Cidade do México para uma entrevista, que a prisão conhece a sua inocência.
Y cómo lo saben? […] Es como un ruido que alguien oye en un sueño. El sueño, como todos los sueños que se sueñan en espacios cerrados, es contagioso. De pronto lo sueña uno y al cabo de un rato lo sueña la mitad de los reclusos. Pero el ruido que alguién ha oído no es parte del sueño sino de la realidad. El ruido pertenece a otro orden de cosas. Me entiende? Alguien y luego todos han oído un ruido en un sueño, pero el ruido no se produjo en el sueño sino en la realidade, el ruido es real. Me entiende? (Bolaño, 2009, p. 614).
O ruído, como o sonho, como o deserto de Sonora, não é uma metáfora, não representa nada além de si mesmo. É a realidade que se apresenta como excesso em relação à linguagem que tenta representá-la, como violência indiferenciada que suspende o sentido.
Em “La parte de los crímenes”, a violência surge por meio de uma linguagem voluntariamente burocrática. A descrição é aparentemente precisa: diz-se a idade, o peso, a cor dos cabelos, as feridas que são encontradas, as causas prováveis da morte, o lugar onde foram encontrados os corpos das mulheres assassinadas. Ao mesmo tempo, a descrição não descreve nada que não ela mesma, que não a violência da linguagem da descrição que repete, para cada cadáver, o mesmo macabro ritornelo.
Se o conhecimento, o saber, em “La parte de los crímenes” se dá através do sonho e do ruído, através de uma língua e uma linguagem que repete uma verdade que não é representação da realidade; se, enfim, o sentido é interrompido, é porque a língua à qual apela Bolaño é uma língua menor, desterritorializada, linguagem do sonho, do ruído no sonho individual ou coletivo que nos diz do mundo. Ao contrário de certa tendência crítica, pensamos que 2666 não se afirma ao afirmar-se numa relação dialética entre a ficção e a realidade; 2666 não é a denúncia da violência causada pelo capitalismo contemporâneo, neoliberal, patriarcal e político, e nem a representação do fracasso da modernização, e, nesse sentido, das estruturas do Estado e do direito. Mas abre um espaço de ruptura com qualquer narrativa política teleológica e progressista e demonstra o lado normalmente encoberto e desdiferenciado do direito e da literatura[2]. Por isso afirmamos a descentralização do olhar sobre o mundo que 2666 pode operar. Esse movimento, além de uma passagem em direção aos limites da América colonizada e terceiro-mundista, exige o abandono de noções pré-determinísticas de compreensão da literatura como instrumento de uma improvável revanche histórica[3]: a superação, no nível cultural, do atraso ao que o processo de colonização lhe haveria submetido.
Ao mesmo tempo, esse movimento nos conduz ao coração do direito moderno. A violência não é a negação do direito, mas aquilo que pertence ao direito, à sua origem e à sua história. Com uma expressão cheia de significados e à qual voltaremos, Walter Benjamin diz que “Das Drohende”, aquilo que ameaça, pertence ao direito, no sentido que o direito se debruça sobre o abismo da sua origem (Benjamin, 2012). A história do direito que podemos ler nas dobras de 2666 não é aquela que o direito conta sobre si mesmo, uma história gloriosa, de progresso, de reconhecimento, de realização do direito. É, ao contrário, a história da origem do direito moderno, a história de uma violência colonial que se repete em formas e modos distintos no presente pós-colonial.
Bolaño se identifica como escritor latino-americano e isso o insere num grupo bastante heterogêneo que herda a literatura com toda a sua ambiguidade: instrumento do poder, arma contra o poder ou, ainda, literatura como o contrário do poder: “Los que tienen el poder (aunque sea por poco tiempo) no saben nada de literatura, sólo les interesa el poder” (Bolaño, 2011, p. 333). Nossa leitura não adere à crença no caráter emancipatório que imputa à literatura uma certa tradição de pensamento e respeita unicamente “el lenguaje”, “las estructuras” e “la forma de mirar” (Bolaño, 2006, p. 107).
Faz sentido então afirmar que os elementos internos à 2666 e sua relação problemática com a realidade fazem da obra um tipo de monstro. Um monstro bem próprio à América Latina, uma ficção que não pode ser medida pelo seu grau de realidade, mas que não deixa de interrogar a realidade. Ciudad Juárez, a Santa Teresa, cidade vértice de 2666, como o inferno: “nuestra maldición y nuestro espejo, el espejo desasosegado de nuestras frustraciones e de nuestra infame interpretación de la libertad y de nuestros deseos” (Bolaño, 2011, p. 339). Como é típico do monstro, 2666 foge à representação, desativa as categorias do pensamento e os códigos da linguagem com os quais se gostaria de domesticá-lo, torná-lo inofensivo. Desse modo, como um monstro, o que produz é um excesso, que confunde a distinção entre ficção e realidade, entre sentido e não sentido, forçando os fins da literatura e abrindo-a para o impensado. Assim, em “La parte de los críticos”, os quatro modelos europeus da linguagem representativa, depois de uma longa peregrinação que os leva das salas de aula europeias a Santa Teresa, cidade de fronteira circundada pelo deserto, experimentam a aporia da crítica, a diferença irreconciliável entre pensamento e mundo, entre a linguagem e a vida. Amalfitano, “un náufrago, […] un profesor inexistente de una universidad inexistente, el soldado raso de una batalla perdida de antemano contra la barbarie” (Bolaño, 2009, p. 152) busca explicar a fenomenologia do intelectual e da sua sombra. Em um relato delirante, que parece uma paródia do mito da caverna, Amalfitano explica como o intelectual não é mais seguido da sua sombra, “en algún momento te ha abandonado silenciosamente. Tú haces como que no te das cuenta, pero sí que te has dado cuenta, tu jodida sombra ya no va contigo […]” (p. 162). As palavras de Amalfitano re-velam o caráter parasitário da crítica, o seu sonho, a sua impossibilidade:
en ocasiones sólo hay visto a su propia sombra que regresa a casa cada noche para evitar que el intelectual reviente o se cuelgue del portal. Pero él jura que ha visto a un escritor alemán y en esa convicción cifra su propia felicidad, su orden, su vértigo, su sentido de la parranda (Bolaño, 2009, p. 164).
Mas os críticos não compreendem, porque a aporia não se compreende, somente se experimenta. Liz Norton, a crítica inglesa, de fato, diz “No entiendo nada de lo que has dicho”. Amalfitano responde: “En realidad sólo he dicho tonterías” (Bolaño, 2009, p. 164).
Essa mesma impossibilidade, de reduzir o mundo à sua representação, encontramos em “La parte de los crímenes”. Ao trazer para dentro da obra os relatos policiais dos corpos das mulheres mortas, o livro demonstra os limites da literatura: precisamente, o ponto onde esta encontra o direito e o poder. O direito é o limite da literatura ali, o que está do outro lado. Mas a literatura também é o limite do direito. “La parte de los crímenes” é, do nosso ponto de vista, a materialização textual deste limite, uma vez que introduz na linguagem literária e na linguagem do direito um tipo de distúrbio no sistema da referência (Derrida, 1985). A linguagem não descreve nada, não representa nada além de si mesma, nada além da violência ilimitada do limite.
É também nesse encontro, nesse espaço fronteiriço de desafio daquilo que estrutura a realidade e o poder, que podemos imaginar um povo que falta. Os corpos das mulheres mortas no deserto de 2666, lugar fictício na fronteira não-fictícia do México e Estados Unidos, descritos como num relatório policial, povoam o que é, avante de nós[4], um vazio, a ausência das mulheres. Não se trata de pensar uma ausência que pertence ao passado, a falta das mulheres nos discursos sobre a literatura, a sociedade e o direito. Trata-se, ao contrário, de sugerir a não presença do gênero feminino num porvir em aberto, (somente) imaginável pela política, pela história, pela literatura. Trata-se, portanto, de vincular, como faz Derrida, o logocentrismo ao falocentrismo e de compreender a América Latina como espaço desse laço e desse ônus.
Os corpos das mulheres assassinadas surgem diante de nós com todos os machucados e todos os hematomas que são virtualmente permitidos, perpetrados, estimulados, amenizados e disfarçados pelo poder e também pelo micropoder latino-americanos. A crítica Sol Peláez sugere, com razão, que as várias leituras do livro de Bolaño que focalizam as consequências do neoliberalismo, com as maquiladoras funcionando como caso paradigmático, exaltam a violência econômica como explicação para as mortes das mulheres em “La parte de los crímenes” e tornam invisível a violência contra a mulher (Peláez, 2014, p. 36). Segundo essas leituras, o monstro 2666 funcionaria ou incomodaria por sua lucidez histórica e seu poder denunciatório. Para nós, 2666 faz mais do que isso e faz melhor.
2. Os críticos, a crítica
Em “La parte de los críticos”, há três críticos e uma crítica. Quatro europeus. Um italiano, um espanhol, um francês e uma inglesa que estudam a obra do misterioso escritor alemão Benno von Archimboldi, que nenhum deles, nem ninguém que lhes era próximo havia jamais visto. Os quatro, pode-se dizer, passam boa parte da trama de “La parte de los críticos” buscando conhecer pessoalmente Archimboldi. Desejam saber quem era o autor, onde estaria vivendo, que aparência teria. A cada congresso de literatura alemã, a cada candidatura do prêmio Nobel de literatura, uma esperança e uma decepção.
Durante unos meses se había hablado de que el propio Benno von Archimboldi pensaba acudir a esta magma reunión que congregaría, además de los germanistas de siempre, a un nutrido grupo de escritores y poetas alemanes, pero a la hora de la verdad, dos días antes de la reunión, se recibió un telegrama de la editorial hamburguesa de Archimboldi excusando la presencia de éste (Bolaño, 2004, p. 24).
“A hora da verdade” é uma expressão comum, mas que não foi ingenuamente escolhida por Bolaño. A hora da verdade não é só retórica, mas, ao contrário, alude à fome de verdade dos críticos e à identificação da verdade com o autor, com sua materialidade, com seu corpo físico, sua presença e sua voz. Os críticos, então, agem como detetives policiescos que buscam a verdade da obra que leem, buscam a essência daquilo que acreditam analisar. Essa atitude crítica, “sócio-psico-historicista”, tende a avançar contrariamente àquilo que Derrida entende ser a tarefa da crítica literária, a desconstrução “da solidariedade da literatura com a tradição metafísica” (Derrida, 2014, p. 81-82). Nesse sentido, ainda, a postura de Archimboldi, do autor que nunca responde, nunca comparece e simplesmente foge a qualquer possível responsabilidade em relação à sua obra é, paradoxalmente, a atitude mais responsável, posto que clama pela contra-assinatura dos seus leitores e deixa a literatura existir.
Mas os críticos interessados na verdade e nas referências externas que apaziguam a leitura e domesticam a obra não parecem querer lidar com uma instituição sem leis. Não são os quatro archimboldianos protagonistas de “La parte de los críticos” que enunciam, mas o narrador dá voz à ideia difundida entre eles e os demais archimboldianos das razões para, então, daquela vez, um Nobel ser concedido a Benno von Archimboldi:
Y tal vez los académicos suecos tenían ganas de un cierto cambio. Un veterano, un desertor de la Segunda Guerra Mundial que sigue huyendo, un recordatorio para Europa en tiempos convulsos. Un escritor de izquierdas al que respetaban hasta los situacionistas. Un tipo que no pretendía conciliar lo irreconciliable, que es lo que está de moda (Bolaño, 2009, p. 142).
E é por conta dessa veia investigativa, mas também por uma vaidade que se liga ao desejo de andar lado a lado com o autor, a autoridade e a origem que os críticos decidem ir à Santa Teresa, no México, em busca de Archimboldi: “Imagínate, dijo Pelletier, Archimboldi gana el Nobel y justo en ese momento aparecemos nosotros, con Archimboldi de la mano” (Bolaño, 2009, p. 142).
As estratégias detetivescas dos críticos archimboldianos, ao contrário do que se poderia assumir, não estavam em ler e reler seus livros, mas em ouvir relatos, depoimentos, conhecer conhecidos de conhecidos, viajar, perguntar, visitar, conjecturar, seguir pistas. É assim que juntam as escassas informações que têm sobre a suposta ida de Archimboldi ao México e decidem partir em sua busca. É com esse espírito que, juntamente a Amalfitano, resolvem percorrer todos os hotéis da cidade e das redondezas. É assim que chegam a um circo que teria empregado um alemão cuja nacionalidade, de fato, era americana. E se essa estratégia não dá em nada – posto que os críticos não encontram Archimboldi – é a metodologia crítica per se, o ler e reler a obra, que parece gerar em Pelletier e Espinoza, pouco antes de que partissem de volta à Europa, a ciência da impossibilidade e da inutilidade da busca pela essência.
No vamos a encontrar Archimboldi.
Hace días que lo sé – dijo Espinoza. […]
Sin embargo – dijo Pelletier –, estoy seguro de que Archimboldi está aquí, en Santa Teresa. […]
Créeme – dijo Pelletier con una voz muy suave, como la brisa que soplaba en ese instante y que impregnaba todo con un aroma de flores –, sé que Archimboldi está aquí.
En donde? – dijo Espinoza.
En alguna parte, en Santa Teresa o en los alrededores.
Y por qué no lo hemos hallado? – dijo Espinoza. […]
Eso no importa. Porque hemos sido torpes o porque Archimboldi tiene un gran talento para esconderse. Es lo de menos. Lo importante es otra cosa.
Qué? – dijo Espinoza.
Que está aquí – dijo Pelletier, y señaló la sauna [….]
Te creo – dijo, y en verdad creía lo que decía su amigo.
Archimboldi está aquí – dijo Pelletier –, y nosotros estamos aquí, y esto es lo más cerca que jamás estaremos de él (Bolaño, 2009, p. 206).
Se a empreitada dos críticos termina assim, podemos afirmar, por outro lado, que toda a busca por Archimboldi se conformava numa potente empresa com vistas a domesticar o escritor. Os críticos, mais especialmente o espanhol, o francês e a inglesa, se imbuem de um tipo de missão de resgate do escritor que “equivocadamente” se encontrava em território americano. Esse movimento de recuperação toma ares de uma dupla expedição colonial. Primeiro e mais obviamente porque Espanha, França e Inglaterra formaram as três principais potências colonizadoras do continente americano. As nacionalidades escolhidas por Bolaño para os críticos não nos permitem seguir a leitura senão por aí. Mas, além disso, Espanha, França e Inglaterra também são consideradas o berço da literatura ocidental moderna. Isto é, se a literatura é uma instituição moderna, ela tem sua origem na Europa (Derrida, 2014). Origem e essência, contudo, não se identificam. Os críticos buscam a essência da literatura, confundindo-a com sua origem. Ainda mais porque a essência, compreendida como origem (sempre deslocada – Archimboldi, entendido como origem da obra, nunca foi acessível), haveria, dessa vez, se movido em direção à América. De qualquer forma, podemos afirmar que se trata de três críticos (Morini, o crítico italiano, nunca havia deixado o velho continente) numa missão que viria cobrar e recobrar a origem da literatura (de Archimboldi), de forma muito parecida às expedições europeias que, além da conquista num primeiro momento, buscavam na América a origem de espécies naturais e a essência da vida em geral.
A crítica, como modalidade de pensamento tipicamente moderna, assim como a colonização, portanto, não pode não se assumir colonizadora; paradoxalmente, subordinada ao território a que se dedica e no qual se embrenha. Se, como diria Deleuze, o escritor está preocupado não com a literatura, mas com a vida, os críticos, por sua vez, veem o sentido das suas vidas na literatura, desenvolvendo uma espécie de relação de dependência, quando não parasitária. Derrida diria que “a ‘boa’ crítica literária, a única que vale a pena, implica um ato, uma assinatura ou contra-assinatura literária, uma experiência inventiva da linguagem, na língua, uma inscrição do ato de leitura no campo do texto lido” (Derrida, 2014, p. 78). Mas esse é precisamente o ponto limítrofe da crítica. Momento em que a oposição entre crítica e literatura não faz mais sentido.
Os críticos archimboldianos – Espinoza e Pelletier (Norton já havia partido de volta à Europa) – adeptos de uma prática crítica fundada sobre a diferença entre o ser e a representação, só podem terminar sua missão crítica melancolicamente, afrontando o limite que em última instância os paralisa. É o reconhecimento dessa aporia que faz com que Pelletier não saia mais do hotel, não se mova mais em direção alguma em Santa Teresa e somente espere que Espinoza volte de suas investidas ao mercado e aos bares locais.
A veces Pelletier estaba en la piscina, abrigado con un suéter o con una toalla, bebiendo whisky a sorbitos. Otras veces lo encontraba en una sala presidida por un paisaje enorme de la frontera, pintado, eso se adivinaba en el acto, por un artista que no había estado nunca allí: la industriosidad del paisaje y su armonía revelaban más un deseo que una realidad (Bolaño, 2009, p. 199).
A crítica, a crítica moderna eurocêntrica de Pelletier e Espinoza, não pode contra-assinar o texto, como descreve Derrida, até borrar o limite que separa a crítica da literatura. Não se trata de uma crítica somente inventiva, mas de uma crítica que, diante do inconcebível e incognoscível ser do Outro descobre seu próprio limite. É quando, como explica Bolaño, a paisagem real da fronteira se deflagra diante dos críticos que se compreende que a representação, no quadro, revelava “más un deseo que una realidad”. Não há correspondência possível entre a obra e o escritor, entre “representação” e vida. Ler os livros de Archimboldi em Santa Teresa era o mais próximo ao escritor que os críticos haveriam de chegar, era o mais próximo à vida.
É aqui que a anedota em “La parte de los críticos” sobre o artista plástico Edwin Johns, cuja obra-prima consistia num quadro que colava à tela sua mão direita, cortada pelo próprio artista, além de funcionar como uma espécie de catalizador da experiência de Liz Norton no México, adquire plena significação. Em sua correspondência com Pelletier e Espinoza, Norton conta que, ao voltar a Londres, havia estado numa exposição de Johns.
Me detuve delante de una especie de paisaje, un paisaje de Surrey, de la primera etapa de Johns, que me pareció melancólico y a la vez dulce, profundo y en modo alguno grandilocuente, como sólo pueden serlo los paisajes ingleses pintados por pintores ingleses (Bolaño, 2004, p. 195).
Em contraste com a grandíssima paisagem da fronteira mexicana, idealizada e artificial, no quadro do hotel em Santa Teresa, a paisagem pintada que descreve Norton tem as qualidades do comedimento e da perspicácia inglesas. O interessante é que, nesse caso, não só o retrato seria dotado de tais qualidades, mas também a paisagem em si e o próprio pintor. Todos ingleses. O que invoca Norton é a sensação da medida certa, das proporções exatas entre objeto representado, sujeito representante e meio de representação. O sentimento de familiaridade se confirma porque Norton afirma que “con ver ese cuadro ya tenía suficiente” (Bolaño, 2009, p. 195) e se dispunha a partir. A doçura da obra que tão harmonicamente mostra o que vê o artista inglês e o que veem todos os ingleses, no entanto, foi bruscamente interrompida pela visão, no outro lado da galeria, do quadro “con la mano cortada, la pieza maestra de Johns, y en donde con números blancos se señalaba su fecha de nacimiento y su fecha de muerte” (Bolaño, 2009, p. 195). O reconhecimento de que Johns estava morto e não onde pensava a crítica inglesa: num manicômio na Suíça rindo de si mesmo e dos outros; essa crise instaurada pela diferença entre representação e vida ou a ideia que havia da vida que levava Johns e a morte do artista é, ainda, aumentada por sua obra-prima, o quadro com sua mão decepada. Esse quadro já operava naquele limite de confusão entre ficção e realidade, vida e obra, literatura e crítica, verdade e representação. Essa fronteira, que nunca havia sido o lugar que ela e os críticos archimboldianos haviam habitado, esse espaço de algum desentendimento (onde se inventa algo, se contra-assina uma obra), essa faixa de indiscernimento a que a obra-prima de Johns tão bem alude, cria um significado para a experiência no México dos críticos que a crítica não pode suportar. Norton deixa o México por não conseguir e não querer habitar aquela fronteira incerta. É a incerteza da vida que ela deixa para trás ao retornar à Inglaterra e ao afirmar, no final do seu relato sobre Johns, que muito mais real que Johns, sua mão e sua morte era a paisagem suíça que ela imaginava a partir do relato de Pelletier e Espinoza sobre quando ambos haviam estado, com Morini, no “manicomio civilizado” onde Johns vivia internado. Mas, àquela descrição, Norton adicionaria os detalhes contados por Morini sobre o acidente que causara a morte de Johns: a queda em um abismo. Johns, acompanhado por um auxiliar e por uma enfermeira que usou de modelo, desenhava uma paisagem que “comprendía la cascada, las montañas, los salientes de roca, el bosque y la enfermera que ajena a todo leía el libro” (Bolaño, 2009, p. 197), quando haveria escorregado e caído. Entre a morte e a representação da paisagem, Norton não hesita na sua escolha, mas a estada no México talvez tenha transformado sua capacidade de experimentação. Talvez, até, Norton já estivesse se endereçando à vida ao rasurar uma representação “sob medida”, incorporando os contornos da morte: “mucho más real resultaba el paisaje suizo, ese paisaje que vosotros visteis y que yo desconozco, con las montañas y los bosques, con las piedras irisadas y las cascadas de agua, con los barrancos mortales y las enfermeras lectoras” (Bolaño, 2009, p. 198).
3. Os crimes, a violência e o poder
“La parte de los crímenes” é, seguramente, a aposta mais alta de Bolaño numa escrita do limite, é seu investimento mais robusto em uma zona onde ficção e realidade não funcionam como categorias independentes. Sol Peláez (2014) vê a impossibilidade de um julgamento definitivo sobre o estatuto, ficção ou realidade, da narrativa. Ela chama nossa atenção para a expressão que as mulheres que haviam encontrado o corpo da jovem morta, o primeiro corpo encontrado na narrativa, utilizam para dizer que não a conheciam: “Esta criatura no es de aquí” (Bolaño, 2009, p. 443). Peláez alude, por meio da expressão que Bolaño escolhe colocar na boca das mulheres, ao outro lugar de onde aquela criatura poderia ser: não a obra literária, mas a realidade.
Santa Teresa, lugar imaginado no real deserto do norte do México e do sul do Novo México, estado norte-americano, é o nome em 2666, de Ciudad Juárez. Assim como os corpos das mulheres assassinadas, esse local nos coloca na aporia da situação limite, quando nenhum juízo é claramente possível e o que há é indiscernível. Os contornos da cidade nunca parecem ser estabelecidos. Narrativamente somos conduzidos à sempre maior periferia da cidade, aos seus incontáveis parques industriais e lícitos e ilícitos basureros. As mulheres mortas muitas vezes não são identificadas, muitas outras não são sequer reclamadas por qualquer familiar ou amigo. O tempo é incerto: quando começaram as mortes, quando ocorreu uma específica morte, quando nasceu ou quantos anos tinha uma menina ou uma mulher morta. Quando o primeiro corpo aparece, na primeira página de “La parte de los crímenes”, o narrador nos diz que o ano é 1993, “enero de 1993” (p. 444) e que a partir de então se começou a contar os assassinatos de mulheres. Mas é esse mesmo narrador quem nos lança, já aí, no absurdo:
Pero es probable que antes hubiera otras. La primera muerta se llamaba Esperanza Gómez Saldaña y tenía trece años. Pero es probable que no fuera la primera muerta. Tal vez por comodidad, por ser la primera asesinada en el año 1993, ella encabeza la lista. Aunque seguramente en 1992 murieron otras. Otras que quedaron fuera de la lista o que jamás nadie las encontró, enterradas en fosas comunes en el desierto o esparcidas sus cenizas en medio de la noche, cuando ni el que siembra sabe en dónde, en qué lugar se encuentra (Bolaño, 2009, p. 444).
Essa indeterminação, tão real quanto o livro e as reportagens do escritor e crítico literário Sergio González Rodriguez que Bolaño leu, se instala em todos os níveis da narrativa de Bolaño sobre o feminicídio em Ciudad Juárez. Aqui, o que se gostaria de manter separado, claro e distinto é violentamente confuso, nada pode ser decidido, nem julgado.
“La parte de los crímenes” é uma aposta alta, um passeio na borda de um precipício. Seu estilo, suas repetições, o mantra das mortes e dos encontros dos corpos. O refrão dos casos encerrados sem resolução, sem identificação, sem compreensão. Um sem número de assassinatos aos quais não se dedica atenção policial suficiente. Montanhas de corpos mortos virtualmente permitidas, omitidas e estimuladas pela violência econômica (o neoliberalismo, as maquiladoras e o narcotráfico); sociocultural (o patriarcalismo); física (do homem sobre a mulher). Mas essa macro violência se inverte, funciona e reproduz-se internamente às relações cotidianas, familiares, determinando uma violência difusa, que passa através dos corpos, os constitui e destitui como objetos de uso e de abuso. Sol Peláez (2014) fala de “violência menor” quando pensa “La parte de los crímenes”. O certo é que a violência é ostensivamente efetuada contra a mulher, com exceção, talvez, dos crimes cometidos na prisão, quando a narrativa se dedica a Haas, possível bode expiatório que a polícia local incrimina e mantém detido, ainda quando os crimes seguem sendo cometidos.
Os corpos encontrados estabelecem o compasso e o ritmo da narrativa de “La parte de los crímenes”. É o único tema que retorna, diferente mas repetido, enquanto outras pequenas histórias se desenvolvem e são deixadas: o caso do penitente, o caso de amor entre um judicial e a diretora do hospital psiquiátrico, a chegada de um sherif americano, a eventual cobertura da imprensa, a vinda do ex-agente do FBI. Com Deleuze e Guattari (1997 [1980]), diríamos que o ritornelo dos corpos encontrados pela/na narrativa cria um território e que este é expresso tanto porque os corpos são corpos de mulheres (um território das mulheres) quanto pela linguagem forense (o território da lei). E esta última, ainda que normalmente utilizada no sentido da desambiguação e clarificação, participa, em vez disso, do intenso absurdo que é “La parte de los crímenes”. Se a linguagem forense é expressão do território da lei, sua incapacidade de julgamento e sua impotência num julgamento resulta na e da (in)operância de um suposto direito.
Os corpos das mulheres assassinadas desenvolvem uma função determinante em 2666. São capturados na linguagem que descreve a morte e nas práticas de um poder que extrai o seu valor de uso dentro de uma economia política da exploração, econômica e sexual. Ao mesmo tempo, porém, constituem o espaço de emergência tanto da aporia do direito moderno, do seu paradoxo constitutivo, quanto de um dispositivo de poder intrinsicamente violento, que funciona mais e mais independente da lei e que se manifesta na sua suspensão, no seu silêncio e na sua incapacidade de decidir. Santa Teresa, já dissemos, constitui o limite de um discurso moderno, das categorias sobre as quais ele é construído e das distinções que usa para poder funcionar. Em “La parte de los críticos”, o limite é aquele entre ficção e realidade. É o limite com que opera a crítica como discurso que reivindica um estatuto de verdade. Em “La parte de los crímenes”, ao contrário, o limite tem a ver com a relação entre direito e violência, o limite com o qual opera o direito moderno como mecanismo social de neutralização do conflito.
Em 2666, Santa Teresa é Ciudad Juárez, mas Ciudad Juárez é Santa Teresa. A ficção da realidade não é distinguível da realidade da ficção. Nessa duplicação da ficção através da realidade e da realidade através da ficção, não é possível distinguir platonicamente a cópia do simulacro, não é possível distinguir o verdadeiro do falso. Porque, na ausência de uma metafísica de uma ontologia do modelo, cópia e simulacro não são distinguíveis. É aqui que o discurso dos críticos chega a tocar o próprio limite.
Crítica na tradição moderna, com Kant, significa determinar as condições para um uso correto da razão a partir da definição dos limites. O limite na tradição filosófica moderna indica aquilo que é necessário reconhecer e determinar para poder responder às três questões que fundam a empresa crítica de Kant: o que posso conhecer? Como posso agir? O que posso esperar? A crítica tem por objeto não o dado, mas o modo com que algo é dado. Ora, em Santa Teresa, os críticos experimentam o limite: a distância do mundo, segurança e garantia da crítica, esvanece e, pela primeira vez, eles se encontram imersos no mundo. É assim que se torna cada vez mais complicado pressupor uma consciência correlata ao mundo, porque falta a distância que separa o pensamento e o mundo. A consciência não é mais a condição de “pensabilidade” do mundo, mas é somente uma sua dobra. A condição que os críticos experimentam em Santa Teresa é a impossibilidade da crítica como mimesis. Os pressupostos do dizer e do fazer parecem frágeis e sem fundamento. Como disse Amalfinato, alguém acredita ver um escritor alemão, mas é somente uma sombra, a sombra de quem acredita ou quer crer que é ainda possível distinguir entre aparência e realidade, entre cópia e simulacro.
Em “La parte de los crímines”, nós dizíamos, os corpos das mulheres são capturados na linguagem, são corpos falados. Se manifestam no burburinho desse encontro com a linguagem que os (de)nomina. A listagem, página após página, dos nomes e dos modos como foram assassinadas as mulheres, apesar da aparente precisão do relato, tem, entretanto, um efeito alucinatório, em que cada singularidade é perdida, um nome é equivalente a outro. Esperanza Gómez Saldana, Luisa Celina Vázquez, Isabella Urrea, Isabel Cansino, Guadalupe Rojas, Emilia Mena Mena, Margarita Lopez Santos, todos diferentes e todos iguais, indistinguíveis apesar dos nomes, todos destinados a serem nada mais que uma marca de tinta sobre um relatório policial, ou em um artigo de jornal, ou em um livro, evidentemente. Nomes que são a repetição, cento e oito vezes, do “mesmo” nome: corpo de mulher que pode ser violentado, mutilado, assassinado e, enfim, abandonado num “lixão”, em uma rua empoeirada de uma periferia que se perde no deserto. O que emerge desse ritornelo macabro do nome é a impossibilidade de nominar, o vazio que se abre entre a linguagem e aquilo que se quer descrever. Os corpos estão dentro da linguagem, eles existem somente na trama de um poder que lhes plasma como corpos dóceis a serem explorados nas maquiladoras, como corpos-órgão: corpo ânus, corpo vagina, corpo seio. Corpos organizados hierarquicamente dentro de relações patriarcais que estabelecem as normas para seu uso e abuso. Ao mesmo tempo, o corpo constitui aquilo que excede a linguagem que o nomina, hierarquiza e plasma. Os corpos das mulheres assassinadas são nomeados e permanecem inomináveis. Nesse excesso, as mulheres assassinadas nos conduzem à aporia do direito moderno.
No espaço poroso da fronteira, o direito é indistinguível da violência, no sentido em que o direito se manifesta como violência e a violência se coloca como direito. Entre a cidade e o deserto, lixões e maquiladoras, em uma periferia que não começa e nem termina, justamente como o ar do deserto que cobre tudo, a tradição jurídica moderna experimenta a própria impossibilidade de fundar a diferença entre violência e direito. O pensamento jurídico-político moderno, tanto com Hobbes e a antropologia política, quanto com Weber e Schmitt, havia visto na violência aquilo que deveria ser domesticado e neutralizado para tornar possível o estado, a sociedade civil, a liberdade. O direito se configurava como o dispositivo através do qual a violência vinha excluída por meio da sua inclusão na ordem do direito como violência legítima. “La parte de los crímenes” constitui uma radical desconstrução de tal tradição. Trata-se de uma viagem ao coração do direito moderno. Em Zur Kritik der Gewalt, o jovem Benjamin escreveu que havia algo de podre no direito, etwas Morsches im Recht (2012, p. 68). O cheiro de podre que o direito emana diz respeito ao direito, à sua origem e sua conservação. O direito funda a si mesmo, constrói continuamente a própria diferença ocultando, nessa operação, o “infundamento” da origem. Atrás do direito tem um vazio que Derrida chama, retomando Benjamin, de violência: “Já que a origem da autoridade, a fundação ou o fundamento, a instauração da lei não podem, por definição, apoiar-se finalmente senão sobre elas mesmas, elas mesmas são uma violência sem fundamento” (Derrida, 2010, p. 26). A violência é, em um certo modo, o signo da aporia e um nome para o indecidível (La Capra, 1994). A violência é o conceito designado a resolver o paradoxo da origem. A origem, o não-fundamento do direito, reaparece como aporia em cada decisão jurídica. Em cada evento-decisão, em cada diferença, em cada operação do direito reside um espectro substancial, o indecidível (Derrida, 2010). Os casos das mulheres assassinadas não são resolvíveis, não só por causa da corrupção e desinteresse da polícia, mas porque remetem a um modelo de poder no qual o direito, como sistema de neutralização da violência, não funciona mais.
Ao final de um caso, o narrador declara: “Vanos fueron todos los intentos de identificarla y el caso se cerró” (p. 630); no seguinte: “El caso lo llevó el judicial Carlos Marín y no tardó en clasificarse como caso no resuelto” (630); em outro, próximo: “El caso lo llevó el judicial Lino Rivera, quien inició y agotó sus pesquisas interrogando a las compañeras de trabajo y tratando de encontrar a un novio inexistente. No se rastreó la zona del crimen ni nadie tomó moldes de las numerosas huellas que había en el lugar” (p. 631). E no seguinte: “No tenía papeles que facilitaran su identificación y nadie acudió a reclamar el cadáver, por lo que su cuerpo fue enterrado, tras una espera prudencial, en la fosa común” (p. 631). Dos corpos, muitas vezes, esclarece o narrador, não se sabe nem há quanto estariam sem vida: “Según el informe forense se trataba de una mujer, y las causas de la muerte, debido al tiempo transcurrido, quedaron sin determinar” (p. 775). Ainda quando o suposto assassino, o gigante loiro Haas, é preso, o processo é sempre adiado, mês a mês.
Mas, na “indecidibilidade” jurídica dos casos, na impossibilidade de finalizar um processo, surge o outro lado do direito, o direito da violência (e o direito que a literatura tem de incluir a violência). Uma das passagens mais violentas de “La parte de los crímenes” é um “suplício”. Na lavanderia da prisão de Santa Teresa, os membros de um grupo, os Caciques, são literalmente empalados. A lei da prisão é clara a todos. Os presos esperavam os membros do grupo: “Klaus Haas sentió la excitación delas crujías y se preguntó si cuando él llegó había pasado lo mismo. No, esta vez la expectación era distinta. Tenía algo de espeluznante y algo que alivianaba” (Bolaño, 2009, p. 651). Os carcereiros, quando os três membros estão na lavanderia sob tortura e diante da morte,
desde una ventana […] observaban la escena que se producía en la lavandería. La luz que salía de aquella ventana era amarilla y débil en comparación con la luz que irradiaban los tubos fluorescentes de la lavandería. Los carceleros, notó Haas, se habían quitado las gorras. Uno de ellos llevaba una cámara fotográfica (Bolaño, 2009, p. 652).
Quando Haas conta à sua advogada o que havia acontecido, a resposta é: “Y tú crees, dijo la abogada, que afuera no lo saben? Ay, Klaus, qué ingenuo eres” (p. 655). A violência não opera aqui como o momento de fundação da ordem, mas como instrumento ordinário de gestão das relações sociais. Na parte dos crimes, no silêncio do direito, emerge o direito da violência não como exceção soberana e fundadora, mas como práxis de governo de toda a economia, textual e não. Mas 2666, como dissemos, não é representação da violência, da violência do direito sem direito que se manifesta e funciona no espaço da fronteira real e imaginária. Não é uma crítica do direito e da violência. “La parte de los crímenes” rompe o quadro da representação e conduz a linguagem mesma do direito ao seu próprio limite. O que surge é a violência do direito sem direito, mas mesmo isso foge, inquieta e desativa a linguagem do poder. Quando o poder se torna poder da vida, poder sobre os corpos, a resistência ao poder se torna resistência da vida contra o poder. Os corpos das mulheres assassinadas, dissemos, estão presos na linguagem, linguagem do texto, do poder econômico, do direito; mas, ao mesmo tempo, a multidão dos corpos mutilados, machucados, cortados constitui, apesar de tudo, um excesso, inapagável e inassimilável. Um excesso espectral que implica a abertura ao fora da representação, àquele fora sempre irrepresentável. Os relatos dos corpos são uma abertura constante ao fora e a escrita de Bolaño se apresenta como escrita da resistência.
4. O povo que falta
O personagem de “La parte de los crímenes”, o jornalista Sergio González, é especialmente eficaz no estabelecimento da confusão das fronteiras entre realidade e ficção, complicando, assim, a possibilidade de um juízo crítico. O caos se instaura a partir do fato de que o jornalista do DF, cujas reportagens sobre mulheres mortas em Ciudad Juárez Bolaño efetivamente seguia, se chamava Sergio González Rodriguez. Os dois Sergios eram jornalistas de cultura e escritores. Os dois passam a investigar os crimes contra mulheres no norte do México. González Rodriguez escreveu um livro e tornou-se o grande e melhor denunciador do feminicídio que assola o norte do país latino-americano desde, “pelo menos”, 1993. O personagem Sergio, nesse sentido, também funciona como um excesso, algo que não cabe totalmente em 2666, um personagem cujo nome nos remete ao fora da linguagem e à vida mesma. Não se trata de imaginar um como referência do outro, mas, ao contrário, de suspeitar que um e outro se conduzem em direção aos limites da realidade e da ficção, insinuando-se em ambas e tornando-se, portanto, e por conta do mesmo nome, uma espécie de nó indesatável, que resiste e perdura. Contudo, se a engenhoca “La parte de los crímenes” de Bolaño faz algo que seja diferente da contínua supressão das mulheres na história, nos imaginários e na economia latino-americanos, isso acontece não somente pelos corpos encontrados que povoam 2666. Bolaño, ademais, situa duas mulheres, duas personagens mulheres que veem, denunciam e estão, de certa maneira, por trás das ações investigativas do Sergio-personagem: Florita Almada e Azucena Esquivel Plata.
Florita Almada é uma yerbatera que tem visões das meninas e das mulheres mortas em Santa Teresa. Ela, porque fala disso num programa de TV, é a primeira a falar em mortes em série, a falar das mortes como assassinatos, numerosos e repetidos assassinatos de mulheres, chamando a atenção do público de TV, de uma massa, portanto. Não que sua denúncia tenha sido levada a sério. Não que ela tenha efetivamente mudado o rumo dos assassinatos. O próprio Sergio-personagem a visita, mas segue descrente no seu confronto. Mas Bolaño cria uma vidente, uma mulher de setenta anos que num transe durante a emissão televisiva declara “a verdade”: “Cerró los ojos. Abrió la boca. Su lengua empezó a trabajar. Repitió lo que había dicho: un desierto muy grande, una ciudad muy grande… Es Santa Teresa! Es Santa Teresa! Lo estoy viendo clarito. Allí matan a las mujeres. Matan a mis hijas. Mis hijas! Mis hijas!” (p. 546).
O ventríloquo, a atração anterior a Florita no programa televisivo de variedades, sentiu o cheiro do perigo:
la revelación no solicitada y posteriormente tampoco entendida, esa clase de revelación que pasa frente a nosotros dejándonos sólo la certidumbre de un vacío, un vacío que muy pronto escapa hasta de la palabra que lo contiene. Y el ventrílocuo sabía que eso era muy peligroso. Sobretodo peligroso para las personas como él, hipersensibles, de espíritu artístico y con heridas aún no cicatrizadas del todo (Bolaño, 2009, p. 546).
O que Bolaño faz aqui é criar uma relação, uma zona de vizinhança, entre Florita, os artistas e os Sergios, que, de verdade e na ficção, se põem a investigar e a escrever sobre as mortes. É Florita quem começa essa relação, através, precisamente, de um transe, da sua sensibilidade, da sua hipersensibilidade, como pensa Bolaño e o ventríloquo. É uma mulher, uma vidente com o espírito sensível e com feridas ainda não cicatrizadas que pode dar ouvidos às mortas. Pode, até, dar seu corpo e sua língua, como no transe. González e González Rodriguez também têm esse ponto fraco, essa debilidade. Eles eram escritores e jornalistas de cultura, mas são os dois que se colocam a investigar as mortes. Deleuze (2001 [1993]) diz que o escritor é alguém com uma “frágil saúde irresistível, que provém do fato de ter visto e ouvido coisas demasiado grandes, fortes demais, irrespiráveis” (p. 14). “O escritor – de novo Deleuze (2001, p. 16) – vidente e ouvidor, finalidade da literatura: é a passagem da vida na linguagem que constitui as Ideias”. É a revelação de Florita Almada à que González dá continuidade.
A outra mulher seria o oposto de Florita, em um certo sentido. E é ela quem mobiliza efetivamente González. Ela lhe fornece informações e segredos. Garante proteção, sustento e mobilidade ao jornalista e escritor do DF. “Por supuesto, no va a estar solo. Yo estaré siempre a su lado, aunque usted no me vea, para ayurdalo en cada momento” (Bolaño, 2009, p. 790). Assim termina a longa conversa que mantêm e na qual a poderosa diputada Azucena Esquivel Plata conta sobre sua amiga Kelly Rivera, desaparecida, possivelmente assassinada como as outras mulheres, de forma ainda misteriosa, mas cujo sumiço, de acordo com o detetive que Esquivel Plata contratou, mistura os mais importantes narcos do norte mexicano, um empresário do ramo de transporte de lixo e que trabalhava com a maioria das maquiladoras de Santa Teresa, um outro empresário, um banqueiro e meninas pobres, “una colección de próceres. Y una mañana o una noche mi amiga se desvanece en el aire” (Bolaño, 2009, p. 786).
O ódio que sentira Esquivel Plata a mobiliza, a faz contratar Loya, o melhor investigador privado, e a leva até Sergio González.
Qué es lo que quiero que usted haga?, dija la diputada. Quiero que escriba sobre esto, que siga escribiendo sobre esto. He leído sus artículos. Son buenos, pero a menudo golpea allí donde sólo hay aire. Yo quiero que golpee sobre seguro, sobre carne humana, sobre carne impune y no sobre sombras (Bolaño, 2009, p. 788-789).
Dizíamos, no início deste artigo, e com Deleuze, que a literatura inventava um povo que falta. Bolaño, especialmente em “La parte de los crímenes” de 2666 investe num povo de mulheres, as mulheres que faltam, cujos corpos, incompletos, e cujas identidades foram capturadas pela linguagem e também pelo logos. Dizíamos de uma tradição (literária, mas não só) que não se identifica com as mulheres, que é incapaz mesmo de identificá-las ou nomeá-las ao atribuir a razão das suas mortes à ordem neoliberal ocidental. E eis que Bolaño inventa um povo, na literatura, mas não sem mostrar suas marcas, os machucados expressivos de uma tra(d)ição. “A saúde como literatura, como escrita” afirma Deleuze, “consiste em inventar um povo que falta. Compete à função fabuladora inventar um povo. Não se escreve com as próprias lembranças, a menos que delas se faça a origem ou a destinação coletivas de um povo por vir ainda enterrado em suas traições e renegações” (2001, [1993], p. 14). Se é a vida que interessa, e não exatamente o escrever, Bolaño escreve sobre carne humana, sobre carne impune y no sobre sombras.
“Caitlin Macnamara”, “Portrait of a Chinese woman”, “Head of a Jamaican girl”, “Josepha” e “Portrait of Muriel Grant”. Todos os retratos são de Augustus Edwin John e estão disponíveis em: https://www.pinterest.com/slaviolamore/rt-john-augustus-edwin/ e https://www.pinterest.at/nicokeus1/augustus-edwin-john-art/.
* Carolina Correia dos Santos é pesquisadora em pós-doutoramento FAPERJ-10 no departamento de Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: caro.corre.san@gmail.com
** Luciano Nuzzo é professor de filosofia do direito na Università del Salento, doutor em filosofia do direito e pesquisador visitante na Faculdade Nacional de Direito / UFRJ. E-mail: lucianonuzzo@unisalento.it
Referências
BENJAMIN, Walter. “Sobre a crítica do poder como violência”. In: O anjo da história. Trad. e org. João Barrento. São Paulo, Belo Horizonte: Autêntica, 2012. p. 57-82.
BOLAÑO, Roberto. 2666. Nueva York: Vintage Español, 2009.
BOLAÑO, Roberto. “Preliminar. Autoretrato”. In: Echeverría, I. (ed.), Entre Paréntesis. Barcelona: Editorial Anagrama, 2004.
BOLAÑO, Roberto. “Carmen Boullosa entrevista a Roberto Bolaño”. In: Manzoni, C. (ed.), Roberto Bolaño: la escritura como tauromaquia. Buenos Aires: Corregidor, 2006.
DELEUZE, Gilles., GUATTARI, F. Mille Plateaux. Paris: Les Éditions Minuit, 1980.
DELEUZE, Gilles. Foucault. Napoli: Cronopio, 2002.
DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. São Paulo: Editora 34, 2011.
DERRIDA, Jacques. Essa estranha instituição chamada literatura: uma entrevista com Jacques Derrida. Trad. Marileide Dias Esqueda. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.
DERRIDA, Jacques. Préjuges. Devant la loi. Paris: Éditions de Minuit, 1985.
DERRIDA, Jacques. Força de lei. Trad. Leyla Perrone-Moyses. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
LA CAPRA, Dominick. Gerechtigkeit und Gesetzeskraft. In: Anselm Haverkamp (ed.), Gewalt und Gerechtigkeit. Derrida- Benjamin. Frankfur a. M.: Suhrkamp, 1994.
PELÁEZ, Sol. “Counting Violence: Roberto Bolaño and 2666”. In: Chasqui, n. 43, 2014. p. 30-47.
FOUCAULT, Michel. “Prefazione alla trasgressione”. In: Scritti letterari. Milano: Feltrinelli, 2004a. p. 55-72.
FOUCAULT, Michel. “Il pensiero del fuori”. In: Scritti letterari. Milano: Feltrinelli, 2004b. p. 111-134.
Notas
[1] Este artigo foi pensado e elaborado conjuntamente. Apesar disso, podemos atribuir a Carolina Correia dos Santos as partes 2 e 4 e a Luciano Nuzzo, as partes 1 e 3.
[2] A crítica Sol Peláez, em “Counting Violence: Roberto Bolaño and 2666“, traça um quadro geral da fortuna crítica sobre 2666. De acordo com Peláez, os críticos que lêem “La parte de los crímenes” como a denúncia e a representação (boa ou má) da violência compartilham a fé na literatura como instrumento de emancipação. A literatura, nesta concepção, é compreendida como lócus privilegiado de superação de um atraso e uma desvantagem históricos. Segundo nossa leitura, 2666, ao contrário, não se relaciona dialeticamente com uma sociedade indígena que poderia ser salva – ainda que somente discursivamente – pela e na literatura, crença sustentada por uma importante parcela da crítica literária latino-americana (ver nota 2). Tampouco se relaciona com o passado histórico, ainda que estejam presentes, no texto de Bolaño, os elementos de uma violência “originária”.
[3] A crítica literária latino-americana construiu uma forte tradição de pensamento da literatura como salvaguardas de valores da cultura ocidental. Ver, neste sentido, os trabalhos de críticos como Angel Rama e Antonio Candido; em especial: “Os Processos de Transculturação na Narrativa Latino-Americana” (1974), do primeiro, e Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos (1959), do segundo. Ver, ainda, Silviano Santiago, “O entre-lugar do discurso latino-americano” (1972). Santiago modifica as condições da relação entre literatura europeia e latino-americana, sugerindo, a “revanche histórica” que mencionamos, ou a rasura da literatura da metrópole, sem, contudo, abalar o conceito notadamente positivo da literatura: “O silêncio seria a resposta desejada pelo imperialismo cultural, ou ainda o eco sonoro que apenas serve para apertar mais os laços do poder conquistador. Falar, escrever, significa: falar contra, escrever contra” (Santiago, 2000 [1972], p. 16-17).
[4] Avante aqui tem a o sentido de reforçar aquilo que está diante de nós e que precisa ser visto, assim como a possibilidade de um porvir que desminta o que está.
Recebido em: 16 de novembro de 2017
Aprovado em: 26 de novembro de 2017