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Duas entrevistas: Milton Santos e Joel Zito Araújo

Um intelectual brasileiro educado para o mando: uma conversa com Milton Santos

Entrevistadoras: Azoilda Loretto da Trindade e Katia Santos*
Introdução e edição: Katia Santos

No dia 23 de junho de 1998 fui com minha colega Azoilda Loretto da Trindade a São Paulo para entrevistar o intelectual Milton Santos. Queríamos ouvir o que ele teria a dizer sobre educação, pois à época pensávamos em organizar uma publicação sobre a trajetória educacional de pessoas negras famosas no Brasil. Acreditávamos que seria interessante saber como um cidadão tão singular no contexto brasileiro percebia sua própria trajetória educacional até vir a ser o intelectual que se tornara. Nós o encontraríamos na Universidade de São Paulo, seu local de trabalho.

Chegar à USP não foi uma tarefa simples. Aliás, nada que passa pela Rodoviária Novo Rio é simples. Ou melhor, as pessoas que a frequentam são na sua maioria simples, mas o ambiente é um tanto complexo. E assim, enquanto aguardávamos o horário do nosso ônibus, um senhor muito simples sentou-se ao meu lado e logo contou-me sua triste história. Ele estava há dias tentando chegar em casa, em outro município, mas não tinha dinheiro porque o patrão o enganara. Comovida com tão tocante caso, dei-lhe alguns trocados. Mas pensei que certamente ele precisava de mais ajuda. Cutuquei Azoilda, que estava sentada ao meu lado, e fiz com que ela também fizesse algo por aquele homem tão necessitado. Como não concordava com o valor que ela oferecia olhei-a com ar reprovador e a fiz aumentar o valor da ajuda. Até hoje não consigo lembrar do momento em que o homem recebeu a nossa doação. Ele desapareceu tão rápida e faceiramente que não deu nem para vê-lo rindo-se de nós. Duas mulheres simples, que ainda caem no conto do vigário das rodoviárias da vida. Essas mesmas mulheres estavam indo para a Universidade de São Paulo para entrevistar um renomado geógrafo que era também um intelectual consagrado. Conseguimos com isso aumentar nossa ansiedade. E demos boas gargalhadas também, claro.

Ao chegarmos à rodoviária de São Paulo, descobrimos que caíra como uma bomba no local a notícia de que o cantor de música sertaneja Leandro acabara de falecer. Havia muita gente paralisada e comovida diante da TV exposta na rodoviária. As pessoas estavam simplesmente comovidas, tristes. Não tivemos como não nos sentirmos tristes, também. Eram tão de verdade a tristeza e compaixão à nossa volta que acabamos nos deixando levar por aquela dor coletiva.

Mas ao chegarmos à USP percebemos logo que o mundo dos simples havia ficado para trás. Como boas persistentes, enrijecemos nossos estômagos e seguimos adiante. E assim também nos travestimos da couraça necessária à intimidante missão de tentar colher uma entrevista original com uma das pessoas mais entrevistadas do meio intelectual/acadêmico. Falamos primeiro com a secretária e logo em seguida fomos recebidas pelo Dr. Milton Santos. E assim voltamos ao mundo dos simples.

Milton Santos: o importante geógrafo brasileiro sempre conectado à dimensão simples da vida.
Milton Santos: o importante geógrafo brasileiro sempre conectado à dimensão simples da vida.

Ao longo de nossa conversa ficamos totalmente encantadas com o cidadão que nos falava de coisas tão sérias e doloridas de forma articuladamente simples. Foi comovente vê-lo falar, para a minha surpresa, do falecido pai da Azoilda com o afeto dos que falam dos saudosos amigos. Era a tradição familiar afro-baiana se encontrando na USP, e de forma muito inusitada. Parodiando o próprio Milton Santos, poderíamos dizer que era a África, uma vez mais, colorizando a Europa, só que agora por vontade própria e por uma necessidade premente.

Enquanto fazíamos a entrevista, bateu à porta uma senhora negra, bem simples, que tinha vindo esvaziar a lata de lixo. Ela entrou se desculpando por estar interrompendo. É mesmo interessante ouvi-la dizer, na gravação, “com licença, professor, desculpe incomodar, obrigada”; e o professor na sua educação de homem de boas maneiras e admirador das gentes simples responder naturalmente, como quem sabe que aquela mulher negra simples existe, apesar de ser ele uma pessoa importante e que estava sendo entrevistada em seu escritório na USP: “obrigado a você, não é incômodo algum”. Diante de tal quadro, mais uma vez, Azoilda e eu nos tornamos as simples do momento. Empolgamo-nos, emocionamo-nos, e calamo-nos para ouvi-lo. E sem as suas interlocutoras, só lhe restou nos incentivar: “Vamos, perguntem. Desafiem-me, eu gosto de ser desafiado.” Fizemos o melhor que a situação e o tempo permitiam e despedimo-nos do nosso entrevistado como quem se despede de um parente muito querido.

Infelizmente não conseguimos publicar a entrevista enquanto ele ainda vivia – Milton Santos faleceu em 24 de junho de 2001. Ouvir a gravação da entrevista anos depois de sua morte foi voltar àquele dia, àquele escritório, àquele sorriso de Zezé Mota. A sensação de perda foi ainda maior. Só nos restava, então, fazer uma edição do texto transcrito de forma que ficasse retratada a atmosfera do nosso encontro. O tempo dessa entrevista foi totalmente marcado pela presença dos simples, das coisas simples, que podem nos atirar em dilemas bastante complexos. É assim que o apresentamos aqui, em uma conversa amigável, sobre temas complexos, doloridos, polêmicos, e às vezes divertidos, também. Tudo muito simples e estimulante.

Katia Santos – Vamos começar falando de sua história de vida, e a partir daí o senhor conduz como achar melhor.

Azoilda Trindade – Nesta nossa conversa entra um pouco da minha própria história, da história do meu pai que, como o senhor sabe, teve uma morte bruta. E ele é um bom exemplo de que, mesmo tendo êxito, não é fácil ser negro no Brasil. Ele sabia que não era fácil. E ainda assim não aguentou as pressões.
Milton Santos – Você conheceu o Edson Nunes da Silva? O professor Edson Nunes?

Azoilda Trindade – Não.

Milton Santos – É um meu primo longínquo, possivelmente de seu pai também – não sabemos até que ponto somos primos. Ele é dez anos mais velho que eu, era muito amigo do seu pai, Ubaldino, também. E esse é um caso interessante porque é um homem de grande cultura. Foi, talvez, um dos primeiros negros de minha geração a ir com bolsa de estudos para o estrangeiro, mas que nunca decolou. Sempre foi conhecido como homem de valor, respeitado, mas nunca chegou a nenhum cimo. Eu, a essa altura da vida, acho que a história do fracasso é mais importante do que a história do sucesso. Eu dei uma entrevista para a revista da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) que eu lhes recomendo ler. Gostei muito dessa entrevista porque foi muito bem feita, e lá eu falo nisso. Falo sempre para os meus alunos: são os fracassos que conduzem, porque o sucesso entorpece. A gente fica dominado pelo sucesso e imagina que já chegou. E a gente nunca chega. Então, não é a história do fracassado. É a história ao longo da vida do fracasso, como dor.

No meu caso, creio que o fato de ter tido que começar a minha vida várias vezes foi importante. Tive que várias vezes recomeçar, ainda que dentro da mesma coisa, porque a minha vida é essencialmente uma vida de um intelectual, apesar de eu ter sido político um pouquinho, jornalista um pouquinho… Mas o que é central mesmo na minha vida, o que me dá prazer e orgulho, e humildade ao mesmo tempo, é ser intelectual. E eu recomecei várias vezes. E começo todos os dias.

Katia Santos – Pelo que vi nas suas entrevistas, parece que o senhor teve uma situação na infância um pouco atípica para os negros da época. Como foi isso?

Milton Santos – Na Bahia não era tão atípica. E não ouso classificar sociologicamente, como hoje se faz, porque era outro mundo. A Bahia não era um mundo industrial, quando eu era menino jovem. Era uma cidade de comerciantes, de funcionários, e por conseguinte tudo isso girando em torno do mundo agrícola. Não havia essa classificação tão rígida como acontecia em São Paulo na mesma época, que já era o mundo da indústria.

Então, como os meus pais, havia um número razoável de negros que constituía uma espécie de elite negra, que cultivava as letras, que se reunia para recitar, para ouvir música, que se cultivava mutuamente, que se visitava, que ia às festas uns dos outros, que ficava feliz quando o filho de um terminava o ginásio, depois a faculdade, os casamentos, etc. Quer dizer, se você faz uma relação com a sociedade negra em geral, era limitado. Mas se você compara com outras cidades brasileiras, era relativamente melhor. Ou relativamente menos ruim. Com outro aspecto que é o fato de ser uma coisa familiar. Já havia uma descendência. Meus avós maternos, por exemplo, eram professores primários antes da Abolição. Eles eram professores primários diplomados no círculo operário. Ainda não havia sindicatos. Era no círculo operário do Pelourinho. Meus avós do lado do meu pai eram pobres. Eram agricultores urbanos. Tudo isso em Salvador. Então, essa geração nasce já num clima de gosto pela cultura, de obrigação pela cultura, de obrigação de estudar. Que era o caso do seu pai, Azoilda, o Ubaldino Barbosa, cujo pai também era… O pai do Ubaldino era o quê?

O gosto pelo estudo: fruto do ambiente familiar privilegiado na Bahia.
O gosto pelo estudo: fruto do ambiente familiar privilegiado na Bahia.

Azoilda Trindade – O meu avô era alfaiate.

Milton Santos – O alfaiate também fazia parte desses artesãos, que eram a burguesia. Que se frequentavam todos. O alfaiate era um centro porque não havia confecção. A confecção – roupa já feita – chega muito depois.

Katia Santos – Era uma forma de poder, também, ser alfaiate?

Milton Santos – Era forma de relacionamento, e relacionamento é poder.

Azoilda Trindade – E isso de educação era muito forte, porque quando eu era pequena meu pai sempre dizia: “Você vai ser professora”. Era um valor isso.

Milton Santos – Era mesmo um valor, porque o professor era considerado, não era como hoje. No interior o professor era notável. Era um dos notáveis, juntamente com o tabelião, com o juiz, com o promotor…

Katia Santos – Em uma de suas entrevistas, o senhor disse que no colégio que estudava havia judeus, espanhóis, etc. Pensei que de repente podia fazer diferença a sua presença nesse colégio. Mas dentro desse contexto, pelo que estou vendo, não era assim tão diferente para eles, tê-lo como colega de classe.

Milton Santos – Era. Era, porque há uma herança de casa. Quer dizer, tinha os apelidos… A mim chamavam, por exemplo, de “noite ilustrada”, entende? Era o apelido que eu tinha, e devia ter outros. Bem, a gente sabia navegar nesse oceano. Mas como fui interno – porque meus pais ensinavam no interior – então se criavam laços, que eram amplos. Crescemos juntos, de qualquer forma.

Katia Santos – Se frequentavam, apesar de tudo isso.

Milton Santos – Os internos se frequentavam. Não tinha jeito.

Azoilda Trindade – Como era a infância? Como foi o brincar?

Milton Santos – Minha infância foi protegida. Primeiro porque meus pais não me mandaram à escola, à escola primária. Eles me educaram em casa. Então, foi uma infância muito protegida até os dez anos, quando fui para Salvador, para ser interno. Os brinquedos eram em casa, já que os meus pais eram professores primários, então não era difícil ter camaradinhas, que eram alunos dos meus pais e que frequentavam a casa. E que eram, naturalmente, todos brancos. Ou quase, porque a minha infância foi no sul da Bahia, de brancos ou mestiços.

Boas lembranças da infância na casa dos pais, em Salvador, onde Milton Santos recebeu sua educação primária.
Boas lembranças da infância na casa dos pais, em Salvador, onde Milton Santos recebeu sua educação primária.

Azoilda Trindade – E quando o senhor sai dessa infância mais protegida e vai para um colégio interno. Como é essa passagem, como foi a adaptação?

Milton Santos – O dono do colégio, o diretor do colégio, era um colega de meu pai. O meu pai havia trabalhado com ele quando mais jovem. E repito, eu era um bom estudante, um bom aluno, e isso tinha valor. Tinha importância. Criava uma espécie de simpatia, de admiração mesmo. E o fato de a Bahia não ser uma sociedade industrial tem um papel. A cultura é mais valorizada numa sociedade civilizada, como a Bahia sempre foi, e não industrial. Porque a industrialização, a indústria, ela já põe na frente outros valores. Valores culturais são justapostos, eles não são superpostos. Então, a Bahia teve essa grande sorte – para nós negros, também – de entrar no século, e caminhar no século, sem indústria. Acho que isso tem um papel no tipo de sociedade que se estabelece na Bahia. E urbana. São Paulo vira cidade urbana muito depois. A Bahia é urbana desde o século XVII. Tinha uma vida urbana. Isso tem importância.

Katia Santos – Sua infância toda foi na Bahia?

Milton Santos – Toda.

Katia Santos – Adolescência também?

Milton Santos – Adolescência também. Estudei Direito lá.

Katia Santos – Então em 1964, quando o senhor vai para o exílio, o senhor ainda morava na Bahia.

Milton Santos – Em 1964, eu morava na Bahia. Eu já tinha saído antes, para fazer o Doutorado. Fiz o meu Doutorado na França, terminei em 1948.

Azoilda Trindade – Como foi isso? Como se constitui isso para o senhor, essa possibilidade?

Milton Santos – Fui um bom aluno. Eu terminei o primário com oito anos e fiquei dois anos em casa porque não podia entrar no ginásio antes de dez anos. E meu pai era um homem muito bem educado, muito fino. Ele me pôs para estudar francês, álgebra e boas maneiras.

Katia Santos – Boas maneiras?

Milton Santos – É, estudava. E ele mesmo, ele próprio fazia essas coisas.

Katia Santos – Como comer, como sentar-se…

Milton Santos – Como sentar-se, como sair na rua com a senhora, quem cumprimentar antes, o lado em que a senhora anda na calçada…

Doutor em gentileza: o valor das palavras e dos gestos.
Doutor em gentileza: o valor das palavras e dos gestos.

Katia Santos – E isso ficou no senhor? O senhor ainda carrega esses ensinamentos?

Milton Santos – Ah, continua. Continua. Mas as pessoas não entendem mais. As pessoas não sabem mais. Os gestos, que eram muito importantes, hoje, as pessoas não sabem o valor dos gestos. Eu vou lhe contar uma coisa, entre parênteses. Quando eu tinha uns seis anos, ou oito, estávamos eu, uma colega e um jovem. Então caiu uma coisa das mãos da moça, e eu abaixei para pegar. O outro jovem disse à moça: “Caiu o seu lápis”. E eu não sei se ela valorizou o meu gesto. Você veja, as duas coisas: ele não abaixou – e eu acho que tem que abaixar, não importa meus reumatismos, se eu não abaixo, peço desculpas – e ainda disse que caiu. Então não sei se ela entendeu meu gesto. Mas fui educado para o gestual, as palavras, e tudo isso faz parte de uma educação. Os gestos no lugar certo, as palavras no lugar certo…

Katia Santos – Percebe-se mesmo que o senhor é um homem fino. Eu achava que o senhor havia adquirido tais maneiras na França.

Milton Santos – Não, foi com meu pai. Meu pai não aparecia para ninguém sem paletó, em casa. Ele tinha esse gestual. Então, isso tinha um papel. Hoje eu posso dizer “eu quero”, que nada mais vai acontecer. Eu fui educado para mandar. Quer dizer, eu fui educado para o mando. Então, na sociedade dos brancos eu não chocava. A educação para o mando também supõe recato. Você tem um mandão tipo Antônio Carlos Magalhães, mas também tem outras formas de liderança política fina. A educação para o mando é uma característica dessa minha geração, não se aplica só a mim.

Azoilda Trindade – É uma postura.

Milton Santos – É uma postura. Meu pai, por exemplo, me ensinou a nunca olhar para o chão. Sempre assim [ergue a cabeça], a cabeça assim. A cabeça não cai. O corpo não cai para comer. Quem abaixa a cabeça para comer são os porcos.

Katia Santos – E eu acho que essa coisa da cabeça, assim [baixa], é muito a marca do negro brasileiro…

Milton Santos – Talvez seja uma marca não só do negro, mas também dos humilhados, de um modo geral. Tudo isso tem um papel, viu, minha filha. Eu creio. Hoje, olhando para trás. É evidente também que meu pai não discutia comigo a questão do preconceito. Podia aparecer em filigrana, mas não era um tema, e imagino que era uma coisa deliberada, para me dar armas. Quando digo hoje, filosoficamente, que olho para frente, não olho para trás, é possível que a raiz seja esta, de que ele me ensinou, sem me dizer nunca isto, que olhar é para frente, não é para trás. Eu não saberia fazer a interpretação científica, mas sei que tudo isso tem um papel. E o fato de eu ser educado não era ausente da comunidade negra, porque nós tínhamos a comunidade negra nossa (risos).

Azoilda Trindade – O senhor estava falando da entrada no doutorado, dessa influência.

Milton Santos – Fui para a faculdade de Direito, que era a elite. E eu era líder estudantil, também. Frequentava os colegas de famílias prestigiosas. Não os mais ricos, esses eu não frequentava. Mas as relações eram razoáveis. Vão fazer cinquenta anos, agora, da minha formatura.

Azoilda Trindade – De Advocacia?

Milton Santos – É, foi em 1948. E aí comecei a ensinar geografia. Fiz concurso com 22 anos, para um colégio de Ilhéus, e fui ser catedrático do colégio de Ilhéus. Depois fui para Salvador, comecei a trabalhar no jornal A Tarde, depois passei a ensinar na faculdade católica, e depois fui para a França me doutorar em geografia.

Katia Santos – Ser negro na França era muito diferente de ser negro no Brasil?

Milton Santos – É sempre diferente. Sobretudo, porque naquele momento, quando fui fazer doutorado, não havia muitos negros na França. Não havia essa invasão.

Katia Santos – “Agora nós os estamos colorizando” (risos).

Milton Santos – Colorizando. Você vê isso também?

Ideias fora do lugar no pensamento renovador de Milton Santos.
Ideias fora do lugar no pensamento renovador de Milton Santos.

Katia Santos – Eu estava lá no Planetário da Gávea quando o senhor disse isso.

Milton Santos – Nós os estamos colorizando (risos). Quando fui não era assim. Então, você tinha aquele montinho negro, que era identificado com o poder na África. Se você estava ali, era porque seu pai era príncipe, era ministro, era rico ou era culto, já.

Katia Santos – Para ter chegado até lá tinha que pertencer a uma dessas classes?

Milton Santos – No imaginário das pessoas. Enquanto que aqui o imaginário é outro. Há duas semanas, quando estava voltando da França, estava cansado, e então preferi tomar a classe executiva. A aeromoça era oriental, de descendência oriental, japonesa, talvez. Eu não sei. Elas falam apenas para encher a coisa. “O senhor fala português?”, ela disse. “Mas é claro que eu falo português, o que a senhora queria que eu falasse?” E aí ela disse assim: “Mas eu não podia imaginar que o senhor falasse português”. Se eu estava no avião, que já não é tão lugar para negro assim, e se eu estava na classe executiva, eu só podia ser americano (risos).

Sexta-feira, estava dando conferência em Campo Grande e fomos jantar em um restaurante. E o dono do restaurante veio, porque eram todas pessoas conhecidas, aí ele trouxe o menu e disse assim: “Ele fala português?” Quer dizer, é o oposto. A minha experiência lá e as experiências aqui. Naquele momento. Hoje é diferente.

Azoilda Trindade – Mais colorido.

Milton Santos – É, mais colorido (risos).

Azoilda Trindade – Eu quero fazer uma pergunta com relação à educação e à questão de ser negro. Porque a gente sempre ouve críticas justamente às boas maneiras, como sendo um valor europeu. E aí o senhor traz essa questão da educação, das boas maneiras, como um valor positivo. Então, o que o senhor acha, o fato de ter boas maneiras implica na anulação da sua qualidade de ser negro? É uma discussão.

Milton Santos – Talvez a gente tenha que colocar as coisas no tempo e no lugar. Quer dizer, como eu vivi muito, vivi várias épocas e vivi vários lugares. O que eu disse há pouco, primeiro se aplica a um tempo e um lugar, que é a Bahia, nos anos 1910, não é isso? Bom, então vamos por partes. Essas boas maneiras são as boas maneiras europeias que me foram ensinadas. Mas há outras boas maneiras. Há outros códigos. Não há um só. Os ingleses põem a mão debaixo da mesa, os franceses põem aqui, não podem pôr o cotovelo, podem pôr isto, e os ingleses põem aqui [mostra todos os gestos]. Qual é o mal educado? Qual é o bem educado? É relativo. Nesse sentido, pode-se dizer, “bom, seguir as boas maneiras é uma alienação”. Nesse sentido. As boas maneiras do outro. Não é isso? Mas quais são as nossas boas maneiras? Então seriam gestos, palavras, que são indutos da generosidade, da consideração com o outro, do respeito ao outro, e de respeito a mim mesmo. Tudo isso junto. O vestir são boas maneiras. Eu raramente ando sem gravata. Esse conjunto de gestos, palavras e tons de voz – músicas, né? – tem uma inspiração que tanto pode ser puramente formal, “tem que fazer o que eu faço”, mas que também tem um conteúdo íntimo. Aquilo que vem de dentro, e que é o bom, que é o belo. Acho que é isso. Mas a verdade é que as boas maneiras, como são códigos, elas facilitam a vida em comum. Porque elas estabelecem o que eu posso e o que eu não posso fazer. O respeito pelo outro passa pelas boas maneiras. Mas talvez isso é que tenha me ajudado. O fato de que eu sabia até aonde ir, a não invasão do outro. É a certeza do outro de que eu não o iria invadir, que cria, digamos, um diálogo. A possibilidade do diálogo vem também daí.

Outro dia apareceu um rapaz negro aqui, começou me chamando de “você”, que tenho horror, e eu lhe digo porque. Um grande amigo meu me disse há uns 50 anos, “Você será o que você quiser na vida: senador, presidente do Congresso, presidente da República, mas você não vai escapar, na rua, de ser chamado de você”. Me disse esse rapaz branco. E aí isso me marcou. Então, quando alguém me dirige “você” eu digo, “Olha!” É a falta de respeito compulsória, imediata.

Em Campo Grande, apareceu uma moça da televisão e começou a me dizer “você”. Eu disse, “como?”. Ela ficou… Um dia um rapaz da televisão me disse “você”. Eu disse, “Não, o tratamento vai ser senhor”. O Roberto D’Ávila me perguntou, “Como é que eu vou lhe tratar”. Eu lhe disse, “quem sabe, vamos ver…” Ele aí entendeu e disse “não, não é durante a entrevista. Durante a entrevista vou lhe chamar de senhor, mas na nossa relação, quem sabe”. Eu disse, “está bem”. Já imaginou se apareço na televisão com o sujeito me chamando de você? Não tinha o mesmo efeito. Quer dizer, tem essa atitude.

É possível que a minha educação meio francesa também tenha tido um papel nisso, porque na França tem uma gradação. Você chama o outro de vous, e depois de meses, anos, é que se decide, “agora vamos usar tu”. Porque não adianta você ficar dizendo que é íntimo sem ser. A intimidade é um processo. Assim como a amizade. A amizade é um processo, não se dá… Pode se dar à primeira vista. Mas isso não é frequente na vida.

Azoilda Trindade – Isso é importante até para apontar… É que a gente não valoriza essas coisas.

Milton Santos – Mas as pessoas vão dizer, “ele é muito besta, muito pedante”. Mas eu sei o que estou fazendo. Entendeu ? (risos)

Azoilda Trindade – Mas é uma forma de respeito. É importante, sabia, essa coisa? Olhar pro outro e … “Peraí!”

Milton Santos – “Calma!”, né?

Azoilda Trindade – Calma.

Katia Santos – Essa semana eu estava vendo uma entrevista num canal qualquer da TV a cabo, com um negro norte-americano em que ele dizia exatamente isso, que hoje em dia dá briga de quebrar bar, entre negros e brancos nos Estados Unidos, se um homem branco chamar um homem negro de boy.

Milton Santos – “Hey, boy!”

Katia Santos – Porque essa coisa do boy, pelo que entendi da entrevista, é essa questão do “você” que o amigo do senhor especificou.

Milton Santos – Esse homem evidentemente era um brilhante homem, brilhantíssimo. Preguiçoso. Escrevia melhor do que Rubem Braga, mas era preguiçoso. Então não saía nada. Só conversa (risos).

Katia Santos – O senhor tem irmãos?

Milton Santos – Eu tenho uma irmã. Na realidade, considero que tenho duas. Tenho uma que veio morar em casa quando eu tinha oito anos, e que está viva ainda. Tenho uma irmã, que é dez anos mais moça do que eu. E tinha, até janeiro [de 1998], um irmão oito anos mais novo do que eu, que morreu.

Katia Santos – Todos eles passaram pelo mesmo processo educacional que o senhor?

Milton Santos – Meu irmão estudou Direito, também, como eu, e virou meio economista, se tornou uma pessoa muito importante. Foi Secretário de Estado do governo de Miguel Arraes, foi diretor da Sudene com Celso Furtado, viveu vinte anos no estrangeiro. Se exilou também. Foi diretor da Unicef. E minha irmã estudou Medicina, mas não terminou, por razões de saúde.

Azoilda Trindade – Eu tenho uma curiosidade. A questão do trabalho. Como se dá a sua inserção nesse mercado de trabalho?

Milton Santos – Nos mercados. Porque eu passei por vários. Por exemplo, o meu primeiro emprego foi via concurso. Professor catedrático num colégio municipal de Ilhéus. Na escola de Direito, os professores empregavam os filhos deles, mas nos ensinavam que era feio ser funcionário. Então, quando terminei a faculdade o governador me ofereceu emprego. E eu não aceitei. E aí fiz concurso para ser professor porque o professor não era burocrata como ele é hoje. Então eu achava que era a maneira de ser livre. Vim a ser professor mediante concurso. As outras coisas eu conquistei. Na católica fui convidado para ensinar. Fiz o concurso para ser professor da Universidade Federal da Bahia. Depois de brigar, porque não queriam me deixar fazer o concurso. Mas ganhei na Justiça e fiz o concurso. Depois de ter ganho na justiça, decidi buscar o doutoramento, para não ser apenas por vitória judicial. Cheguei com um título que ninguém tinha, que era o título de doutor. Porque na Bahia não havia muita gente saindo para estudar no estrangeiro. Então, foi assim.

Quando eu era jovem não havia falta de emprego para quem terminava a faculdade. O que é uma outra coisa importante a mostrar. Quando conseguia sair da faculdade você estava empregado. Hoje é que o negro deixa a faculdade e não tem… O que é um problema diferente. E tem um papel, eu acho. Os negros se tornaram mais ativos. Porque descobriram que a educação não é a saída. Para nós podiam dizer, “está vendo ele estudou, triunfou”. Hoje os negros sabem que não é bem assim. Que isso não basta. Sobretudo porque você tem diversos tipos de ensino. Os  negros não vão para os melhores ensinos, não têm a melhor educação. Isso acontece muito raramente. Basta ver aqui, a USP, que é um deserto de negros. Então, acho que isso tem um papel na pugnacidade atual dos negros. São muito mais pugnazes, muito mais batalhadores do que nós éramos.

Katia Santos – A própria condição obriga.

Milton Santos – A própria condição, a própria dificuldade de inserção, que é maior.

Katia Santos – Acho que essa situação toda, ao mesmo tempo que obriga o negro a ser mais lutador, também assusta muito uma grande parcela que prefere nem tentar. Eu quero muito estar errada nisso, mas acho que a gente tem muito medo.

Milton Santos – É a pressão. Quando eu era jovem a solidariedade social era maior, e mais possível, do que hoje. Porque não havia tanto consumo. Então a gente podia ser mais ajudado pelos pais, pelos avós, pelos irmãos mais velhos. E ajudar depois. A minha formação intelectual se deve em boa parte ao fato de que minha mãe completava meu orçamento. Mesmo depois do meu primeiro casamento eu não dava muitas aulas. Isso me permitia estudar, ler, comprar livros. Hoje é impossível. Nesse tipo de classe média, quem é que pode ajudar o outro? E isso é um fantasma para todo mundo. O fato de vocês estarem falando comigo, fazendo essas perguntas para mim, é um complicador porque venho de diversos tempos. Vivi diferentes momentos. E agora quando vocês me forçam a reinterpretar, vocês me obrigam a rever, a fazer a teoria do que era simplesmente a vida. Explicar aquilo que era simplesmente vivido. Eu vejo um pouco isso. Quer dizer, para os mais jovens, você não pode ajudar tanto quanto a gente foi ajudado, o quanto os meus pais me ajudaram.

Katia Santos – Entendi. Porque se trata de uma situação bem específica. O senhor já era formado, trabalhava. E hoje estamos falando de pessoas que não conseguem nem chegar a isso.

Milton Santos – Isso. E que também não podem ser ajudadas. E vai ser pior ainda porque com essa coisa de não ter mais aposentadoria… porque não vai ter. Quando eu disse que os negros vão ficar numa situação pior, é isso. E que eles não vão ter acesso à melhor educação. Vão ter uma educação, na sua maioria, medíocre. E essa rede de ajuda vai ficar enfraquecida, porque os velhos não terão aposentadoria, ou terão uma aposentadoria irrisória. É outro mundo, né?

Azoilda Trindade – Essa coisa da perspectiva do futuro, a gente fica pensando… Eu trabalho com crianças e adolescentes em escola pública. É justamente isso. Vai a uma escola particular – não precisa nem ser de uma classe média alta – e vai a uma escola pública. É um choque.

Milton Santos – É sim.

Azoilda Trindade – E aí, o que eu vou propor? Isso me sensibiliza. O que eu, como educadora, como cidadã, posso oferecer para essas crianças?

Milton Santos – O caminho, eu acho, é político. Tem um curso de vestibular lá em Campo Grande que tem meu nome. E eles foram lá me ver, sexta-feira, sábado, e eu estava dizendo a eles, “o negócio é andar para frente”. A cultura negra é importante, ela é um cimento. Olhar para trás nos une, amplia esse amálgama, esse cimento. Mas não é ele que vai melhorar a nossa vida. O que vai melhorar a nossa vida é a política. É por isso que é olhar para frente. Quer dizer, desenhar o futuro e não ficar olhando apenas para trás.

Katia Santos – Ter uma meta, eu acho, é importantíssimo nesse nosso processo. Mas tendo muito claro que a passagem pelo mundo acadêmico, no caso, não nos…

Milton Santos – …abrirá todas as portas. Que tenha a meta e também tenha a consciência de que vai ter tropeços.

Azoilda Trindade – Uma outra pergunta: o pai do senhor foi uma pessoa marcante na sua vida?

Milton Santos – A minha mãe também. Cada um de um jeito.

Azoilda Trindade – Existiriam outras pessoas, assim, importantes que o senhor poderia destacar como influentes na sua trajetória?

Milton Santos – Olhe, eu vou dar um nome, que é Simões Filho. Ele foi Ministro da Educação do Getúlio Vargas e era o dono do jornal no qual trabalhei na Bahia. Ele me tinha muita estima e eu, também, olhava para ele com muita admiração. As maneiras dele, as boas maneiras, a forma de se vestir, que é uma coisa que eu até hoje gosto, de me apresentar bem.

Katia Santos – Aliás, a camisa que o senhor veste na foto do site do cantor Gilberto Gil é muito bonita.

Milton Santos – É uma bordô, né? (risos) Pois é, é a coragem intelectual. Um certo gosto pela ironia, que também vem do meu pai, mas que vem [de Simões Filho], também. E a relativização das coisas, a capacidade de relativizar. Hoje vejo que ele teve uma forte influência na minha vida pública. E o meu professor francês, meu diretor de tese, foi também uma grande influência. Pelo rigor, o gosto pelo trabalho, a filosofia de que o trabalho se faz todos os dias. Nunca o que a gente faz é perfeito. O rigor com os outros e consigo próprio. Tudo isso aprendi com ele. Afora outras pessoas. Você fala de pessoas com as quais eu tive comércio pessoal, não é isso? E não autores.

Azoilda Trindade – Isso. Por exemplo, Amílcar Cabral foi uma influência muito grande na minha vida, na militância.

Milton Santos – Mas é mais distante, né?

Azoilda Trindade – É isso. Mas, enfim, um parêntese: a gente prometeu não falar em militância para o senhor, e agora que eu falei…

Milton Santos – Eu fiz crítica à militância?

Azoilda Trindade – Não, é que lembro que uma vez assisti, pela primeira vez, num encontro de negros em Marília, uma conferência em que o senhor dizia, “eu não gosto dessa coisa de militância, me lembra militar, me lembra uma coisa… prisão…” E aquilo ficou na minha cabeça, me torturou, no sentido de que realmente pode ser uma prisão. O senhor falava agora há pouco da coragem intelectual…

Milton Santos – É incompatível com a militância.

Azoilda Trindade – Isso. Tem que ousar, tem que ser criativo, tem que estar atento.

Milton Santos – Mas as pessoas às vezes não entendem quando eu digo isso. Porque imaginam que sou contra. Eu não sou contra a militância. Tem que ser militante. Tem que ter militância. Mas se não tiver o sujeito livre, você não cria. Porque acho que o problema do Movimento Negro é que a gente tem que criar novos discursos, novas frases, novos slogans… Na entrevista com o Roberto D’Ávila falei no ressentimento de certos grupos brancos contra os negros. Eu não disse o contrário. Quer dizer, é outro discurso que a gente tem que produzir.

Azoilda Trindade – Brilhante. Aquela foi muito boa, sim. Bem, depois de passarmos pelas pessoas que foram influentes na sua vida, há algum outro fato importante ligado a sua história de vida que o senhor gostaria de comentar?

Katia Santos – Só uma curiosidade. O senhor conseguiu sair da Bahia antes de se casar?

Milton Santos – Casar? Não, eu  já estava descasado (risos).

Katia Santos – Então já tinha sido fisgado (risos).

Milton Santos – Já estava descasado. E depois casei de novo, lá no estrangeiro.

Katia Santos – O senhor teve filhos?

Milton Santos – Eu tive dois filhos. Agora só tenho um, o outro morreu há dois anos. Fatos importantes? A formatura, o dia em que recebi o diploma de bacharel em Direito…

Azoilda Trindade – Pode parecer que não mas a nossa formatura tem um peso. A minha, de professora primária, foi um negócio. Eu queria ser aquilo. Sou eu. Meu pai me chamava de professora. Então, a formatura era a conquista disso. Este gosto da profissão. Eu sou professora. Financeiramente é o caos, mas assim… A possibilidade de alguns exercícios…

Milton Santos – Mas havia a coisa simbólica, também. Quando entrei na faculdade, eu subi as escadas carregado. A maior ovação foi para mim. Era um sinal baiano, né? Quer dizer, “tem um negrinho aí, vamos aplaudi-lo”.

Azoilda Trindade –  Podemos tirar uma foto sua?

Milton Santos – Sim, é melhor que seja espontânea. Pelo menos aparentemente espontânea (risos).

Azoilda Trindade – Tem um assunto do qual queremos falar. O racismo no Brasil. Qual a sua opinião sobre essa questão?

Milton Santos – Ele é bem brasileiro, né? É bem brasileiro. Você não pode comparar. Teria que distinguir, talvez, entre discriminação e preconceito. O preconceito vem do fato de que se criam estereótipos, e você vai conviver com esses estereótipos o tempo todo. É aquela coisa que a gente distingue entre o cotidiano e o programado. Cada vez que eu, ou qualquer pessoa, estou em uma atividade programada, o preconceito tende a não se manifestar. A questão é a surpresa do outro.

Katia Santos – A situação que o senhor nos contou, no avião, por exemplo, não foi uma situação programada. Foi do cotidiano.

Milton Santos – É a surpresa do outro, que é o cotidiano. E daí o preconceito. Aí você pergunta, mas o preconceito não é obrigatoriamente uma discriminação? Será uma discriminação? E aí tem toda a questão sociológica. O sujeito que recebe e o sujeito que é alvo. É diferente, não é? Para você é. Para quem é objeto de preconceito, é uma discriminação. O Brasil naturaliza essa relação. Essa relação não é equilibrada. Essa relação…

Azoilda Trindade – É hierárquica.

Milton Santos – É hierárquica, mas não é bem isso, é outra palavra. Ela é naturalizada, é normal. O que é uma das coisas terríveis da sociedade brasileira. Essa rapidez com que a gente naturaliza. Passa a incorporar como um dado natural, e não histórico, o que conduz à ausência de culpa. As pessoas não se sentem culpadas. Eu imagino que os americanos, de alguma forma, alguns deles, se sentem culpados. Basta ver a atitude do presidente Clinton em relação aos negros e a do nosso presidente, Fernando Henrique, que diz que é interessado etc. Acho que é isso. Agora, isso faz com que, acho, ser negro no Brasil seja muito duro. Eu acho. Não vou comparar com outros países. Mas acho que é muito duro porque você não tem como… É muito difícil você exprimir sua indignação, ou esboçar sua defesa, sem ser tomado de forma ridícula.

Katia Santos – Ficamos sempre a um passo disso, né? Nos colocam sempre a um passo disso.

Milton Santos – Do ridículo. Eu creio que muita gente prefere emudecer ou esperar uma outra oportunidade, porque qualquer manifestação – estou generalizando – vem com a certeza de não ter solidariedade.

Katia Santos – A pessoa fica sozinha.

Milton Santos – Acaba sozinha.

Katia Santos – O preconceito é muito perverso, principalmente, quando o negro faz esse deslocamento, como no seu caso. Porque quando ele fica quietinho no lugar designado historicamente para ele na sociedade brasileira, ele não é fustigado por isso tudo. Mas quando ele faz esse deslocamento, aí ele já vira um alvo.

Milton Santos – Exato. Ele aparece como o diferente. O que já é desagradável,  esse negócio. Porque o que todos queremos é sermos iguais a todos. Então quando você é apontado, ou aceito, ou tratado como o diferente, é incômodo.

Azoilda Trindade – Deixa eu só perguntar uma coisa. O senhor estava falando da sua trajetória, fiquei curiosa. Eu, por exemplo, tinha muito medo de me envolver, de me apaixonar, porque queria concluir os meus estudos. E aí fiquei com a curiosidade: o senhor conseguiu isso? Se formou primeiro…

Milton Santos – Sim, consegui, sim (risos).

Azoilda Trindade – Outra coisa: como se davam as relações afetivas na Bahia quando o senhor era rapaz? Como era essa coisa do jovem baiano? Meu pai, por exemplo, era meio mulherengo, né?

Milton Santos – Não sei, não. Não sei disso, não (risos).

Katia Santos – “Não sei, não”, é ótimo (risos). Pode falar. Ele era baiano, ninguém vai estranhar.

Milton Santos – Era, sim (risos).

Katia Santos – É, imagino que sim. O meu pai era baiano também (risos).

 

 

 


Joel Zito Araújo: um cineasta e sua missão

Entrevistadora, introdução e edição: Patrícia Farias*

Nascido em Lajedão, na fronteira de Minas Gerais com a Bahia, formado em Psicologia, com mestrado em Sociologia da Educação, doutorado pela ECA/USP e pós-doutorado pela Universidade de Austin, Texas, onde frequentou tanto os cursos de rádio, cinema e TV como os do departamento de Antropologia (que diz adorar), o cineasta Joel Zito Araújo fez um percurso próprio dentro do audiovisual brasileiro. Diretor e roteirista, autor de 13 filmes na questão racial, além dos livros A negação do Brasil (de 2000, sua tese de doutorado) e O Negro na TV Pública (Org., 2010),  Joel lança este ano o documentário Raça, em parceria com a norte-americana Megan Mylan, no qual acompanha a trajetória de três personagens negros – um político, um artista e uma líder quilombola.

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Raça, 2013

 

Em conversa com Patrícia Farias, Joel Zito Araújo relembra a experiência de viver numa família inter-racial, fala sobre a descoberta de sua negritude, sobre cinema e sobre seus filmes, comenta a presença forte das mulheres em sua obra, celebra a nova geração de ativistas negros e indígenas, declara seu interesse renovado sobre a África, e afirma que seu trabalho tem uma missão: confrontar o racismo à brasileira.

Patrícia Farias – Como foi seu caminho até o cinema?

Joel Zito Araújo – Desde pequeno eu era encantado com cinema. Quando mudamos de Lajedão para Nanuque eu era criança, mas logo comecei a curtir as três salas de cinema que tinha lá. Tinha um tio que era ator de teatro e dono de uma sala de cinema e eu fui mascote da companhia de teatro dele. Lembro de ter visto em Nanuque um monte de filmes importantes para a história do cinema, desde Primeira noite de um homem até a obra de Fellini. É engraçado, porque, já em Belo Horizonte, aos 26 anos, redescobri um diário que mantive quando tinha 13 anos e, quando reli, vi que só tinha anotações dos filmes que tinha visto e pequenas críticas a respeito – nada de amor, angústia ou dramas, como seria de se esperar de um adolescente! Desde que me entendo por gente gosto de cinema.

Patrícia Farias – A preocupação com a questão racial, como surgiu?

Joel Zito Araújo – Minha família paterna é branca; a família materna, negra. Vim de uma família semialfabetizada. Meu pai havia sido saxofonista e dono de um bar clube, mas aos 30 anos desistiu, comprou um caminhão para trabalhar (chegou a ter sete caminhões), vendeu tudo e comprou um sítio. Meus pais se separaram quando eu tinha seis anos e isso me trouxe muito sofrimento. Minha mãe perdeu o que tinha e virou empregada doméstica, lavadeira; meu pai também não tinha muito, mas tinha o valor da educação, então me manteve num bom colégio em Nanuque mesmo, até que nos mudamos para Linhares, no Espírito Santo, e fui para um colégio estadual, fraco.

Na adolescência, eu tinha vergonha da mãe – nada melodramático, nada ostensivo. Era mais uma atitude de ocultá-la para meus amigos, não queria ser visto com ela. Em 1974, quando entrei numa universidade para cursar Psicologia, foi que a preocupação com a questão racial apareceu com força: percebi na universidade que não era somente minha mãe que era negra – eu também era negro. É claro, a angústia estava lá, desde antes, desde sempre, mas foi nesse momento que eu compreendi isso. Cursando a faculdade e fazendo terapia, comecei a resgatar a minha mãe. Até então tinha essa vergonha social, de mostrar a minha origem negra, esse distanciamento com relação a ela. Entendi que só a resgataria completamente se confrontasse o ideal de branqueamento que eu tinha internalizado. Era fundamental assumir minha negritude. E isso trouxe uma descoberta inesperada: foi o momento em que resgatei minha autoestima; perdi a vergonha que a sociedade brasileira internaliza no mulato e no negro. Eu reli minha mãe. Não foi lendo Fanon, nem nada disso – foi um processo pessoal. Uma parede foi rompida e explodiu em afeto; passei até a endeusar minha mãe. E minha postura mudou diante de meus colegas, de meus amigos, em todo lugar. Minha autoestima foi resgatada.

Patrícia FariasA negação do Brasil tem a ver com esse processo, não? Você já disse em entrevistas que esse filme resume sua própria trajetória e suas preocupações com a imagem e a participação dos negros no processo social brasileiro.

Joel Zito Araújo – É, nessa época da faculdade eu trabalhava como bancário e fazia parte do movimento cineclubista mineiro, isso já em Belo Horizonte. Passávamos filmes em bairros operários, tínhamos compromisso político ligado ao cinema. O meu cinema negro começou a ser gestado em 1984, quando fui para São Paulo. Fiz mestrado em Sociologia da Educação na UFMG e depois fui para lá. E foi em São Paulo que conheci muita gente, tive muitas trocas com intelectuais negros: Hédio Silva Jr., Cida Bento, Arnaldo Xavier, poeta concreto negro, Sueli Carneiro, Matilde Ribeiro…. Antes, em Belo Horizonte, eu tinha entrado para o PT, fui integrante do grupo de Criação do PT em Minas, e quando fui para São Paulo fui trabalhar no Dieese, coordenando a parte de audiovisual da entidade.

No meu primeiro trabalho, em 1989, o filme Memórias de classe, sobre o movimento operário paulista, já introduzo o questionamento: e o negro, onde está nesta história? Esse trabalho é um docudrama e já apontava para a participação do negro no movimento operário. Porque a visão que se tinha era que o movimento operário havia sido formado a partir dos imigrantes brancos, dos operários anarquistas vindos da Europa. Mas pesquisando, vendo fotos, eu via que havia líderes negros nas manifestações, atuando com liderança. Então passei a desconfiar dessa história: o resultado é esse docudrama.

Em 1988 deixei de ser militante do PT, queria ser um artista e intelectual independente, e virei sócio da produtora de Renato Tapajós e Olga Futema, a Tapiri Cinema e Vídeo. A partir de então, passei a me dedicar totalmente ao cinema.

Joel Zito: “Meu papel é confrontar o racismo.”
Joel Zito: “Meu papel é confrontar o racismo.”

Meu segundo trabalho, Retrato em preto e branco, foi na verdade produto do impacto de uma viagem que as lideranças negras brasileiras que eu conhecia fizeram aos Estados Unidos. Lá eles encontraram com ativistas negros americanos e voltaram chocados pois viram que os negros de lá achavam que aqui era realmente um grande exemplo de “democracia racial”. Lembro deles me dizendo: “Temos que fazer alguma coisa!”. Em resposta, eu fiz esse filme, que é um documentário com um personagem de ficção, um negro brasileiro que escreve uma carta para um amigo do exterior sobre sua vida, suas reflexões sobre o mito de nossa democracia racial.

Em 2004, ganhei uma bolsa da Fundação MacArthur para estudar a história do negro no cinema e na TV norte-americana, e fui pesquisar nos Estados Unidos. Lá, vi um documentário sobre esse tema, Color Adjusment, e fiquei bastante impressionado. Pensei em fazer o mesmo aqui para o Brasil. Escolhi a telenovela, pelo seu impacto na nossa cultura. De volta à USP, concluindo meu doutorado na ECA com Solange Martins Couceiro como orientadora, mudei o tema para fazer um filme e consegui apoio da Fapesp. Fiz um enorme levantamento sobre a história do negro na telenovela brasileira. Portanto, primeiro veio o projeto do filme, e enquanto eu pesquisava surgiu a ideia de transformar aquilo também na minha tese, o que fiz, e depois virou o meu livro A negação do Brasil.

Patrícia Farias – Você já disse que esse filme é quase que sua proposta de cinema, a de discutir a inserção do negro na sociedade brasileira.

Joel Zito Araújo – Exato. Ali está a plataforma que me orientou nos projetos futuros, já tem as duas questões a que eu sempre volto: discutir a participação do negro na sociedade, confrontando a ideologia do branqueamento, o racismo, o pensamento colonialista; além de estar atento à questão de gênero. Quanto ao lugar do negro sempre foi uma reflexão intencional, racional, e quanto ao gênero, não foi intencional; simplesmente é uma questão que me acompanha. Mesmo no filme Raça tem uma figura feminina forte, uma líder de uma comunidade quilombola. O longa de ficção que realizei, Filhas do vento (2004), é sobre isso, a relação de mães e filhas, de mulheres, assim como outro documentário meu, que tem o mesmo tema: Cinderelas, lobos e um príncipe encantado (2009). Fiz também o documentário Eu, mulher negra, em 1994… E o curta ficcional Vista minha pele em que esse tema também aparece.

Patrícia Farias – Chico Buarque, em entrevista, perguntado pelas suas músicas compostas no feminino, e confrontado com a afirmação de que era um expert na alma feminina, respondeu que pelo contrário: ele escrevia muito sobre isso justamente porque era um ignorante no assunto, porque tinha curiosidade, porque queria saber mais sobre esse outro universo, o universo feminino.

Joel Zito Araújo – Exatamente isso. Tenho filhas, estou rodeado de mulheres, minhas ex-esposas, minha namorada…. Minha mãe, figura fortíssima em minha vida. Acho que vivo a mesma coisa ao retratar esse universo, é uma forma de saber mais sobre ele.

Patrícia Farias – Voltando ao cinema, eu vejo atualmente nos documentários uma oscilação pendular entre um polo, digamos, mais Eduardo Coutinho, mais de compor um retrato, de intervir menos, e outro, tipo Michael Moore, mais histriônico, de uma figura que intervém no que retrata, deixa sua opinião evidente. Como você vê o cenário do documentário hoje, e como você se vê nisso, como você enxerga seu próprio cinema nesse panorama geral?

Joel Zito Araújo – Gosto muito dos dois documentaristas que você citou, principalmente do Coutinho, acho Cabra marcado pra morrer, uma obra-prima. Mas um desses polos, o do Moore, é muito narcísico para meu gosto; e o outro às vezes peca por sacrificar o conteúdo ao método. E para mim o conteúdo é fundamental. O método é puxado pela necessidade narrativa de apresentar o conteúdo.

Viajando com os meus filmes, descobri que tenho um papel, incorporo uma necessidade que ultrapassa o Brasil, que vai além da interpelação sobre a inserção do negro na sociedade brasileira, simplesmente; esse papel é o de confrontar o racismo, a própria ideologia colonialista do branqueamento que é um problema de muitos países. Meus colegas brasileiros estão imobilizados por essas “categorias coloniais” que minimizam a consciência negra em nossa sociedade, essa separação de pretos, mulatos, pardos, mamelucos e etc. Os negros norte-americanos, por exemplo, inverteram a linha de cor, a ideologia racista, com o “black is beautiful”, por exemplo, e isso foi benéfico para eles. Temos uma hierarquia racial que nunca foi questionada. Todos os meus contemporâneos abraçam isso de uma maneira acrítica. Comecei a perceber que esse questionamento e esse conteúdo são mais importantes que o método.

Claro, gosto e tento me atualizar com novas formas narrativas, formas de contar próprias do cinema e do documentário. Por exemplo, no meu filme Raça, agora, o que tento captar é o debate nacional sobre a questão racial que está acontecendo neste momento, eu e a norte-americana Megan Mylan (que conheci num evento, aqui, em 1995) concordamos que a melhor maneira de fazer isso era acompanhar algumas trajetórias no método do cinema direto. Então, cada proposta, cada conteúdo, pede um método e estou ciente disso. Mas não sacrifico o conteúdo pelo método.

Gosto também, por exemplo, de uma outra experiência narrativa diferente dessa, inspirada no método e estilo do Coutinho, que foi a abordagem que fiz em Cinderelas. Para mim, uma das melhores partes é a reunião do cabelereiro e do travesti em que eles se sentiram tão à vontade pelas minhas perguntas e com a minha atenção ao ponto de se mostrarem racistas. Ali, eu como realizador deixava eles à vontade, tinha uma participação como estimulador, ao ponto deles não se constrangerem ao revelar o pior do ser humano.

Patrícia Farias – Vejo você como um tipo de meio termo entre esses dois polos que citei, justamente porque você intervém, dialoga, e no Cinderelas isso fica mais explícito, mas também em A negação do Brasil.

Joel Zito Araújo – Sim, isso acontece em minha carreira. Mas, claro, também me vejo como um cineasta de documentário e de ficção, embora tenha uma visão muito diferente do papel de um e do outro. Quero coisas diferentes de um e de outro. Na ficção acho que devemos mergulhar mais nas emoções, abandonar uma perspectiva mais racional e reflexiva como faço nos documentários.

Acho que o documentário é produto de e para reflexão; embora tenha determinadas regras de dramaturgia, em comum com a ficção, embora também flerte com a emoção, é um produto que deveria criar um distanciamento, que deveria provocar uma reflexão. A ficção, não: acho que devemos buscar mergulhar numa narrativa mais sensorial. Gostaria de fazer mais ficção, certamente farei assim que for possível. Minha questão central, porém, sempre está nos meus filmes, tanto nos documentários como na ficção, que é a busca de uma estética da diversidade brasileira, destacando a experiência de ser negro, rompendo com a invisibilidade dele. Lembro aqui de elementos estéticos que coloquei no Filhas, que nenhum crítico parece ter percebido, e que quero trazer em outras experiências de cinema: a estética e a dramaturgia por trás dos mitos dos orixás, os tipos psicológicos que encontramos no panteão africano e que inspiram a construção dos personagens. Em Filhas tem Oxum, tem Iansã, tem muitos orixás por trás de cada um daqueles personagens. A mitologia dos orixás traz muito das experiências e dramas humanos: sexualidade, amor, intrigas, inveja, ressentimento… Gostaria de explorar mais isso. É um outro olhar, é o que eu chamo de buscar uma estética da diversidade típica de um país multirracial como o nosso, cheio de outras narrativas e povos, além dos europeus.

Patrícia Farias – Você falou de uma história da presença negra na TV, nas novelas, até um determinado momento: o livro e o filme são de 2000. Você vê alguma mudança em relação a hoje?

Joel Zito Araújo – Em termos de novela, estamos vivendo um momento muito interessante: no horário das 18h, a novela Lado a Lado tem temática e estórias onde os negros jogam um papel muito importante. Inclusive com a novidade de se ter a novela conduzida por um casal branco e um casal negro, com espaço praticamente igual. A série Subúrbia tem também um enorme elenco com atores negros e Glória Perez já disse que a inspiração para Salve Jorge, a novela das 20h, vem das mulheres guerreiras das favelas pacificadas pelas UPPs.

Essa quantidade de atores e personagens negros é inédita. Temos que pensar nisso. Isso é fruto de uma luta longa, nossa, dos atores, dos militantes negros, mas também acho que tem um fator novo: a emergência da chamada classe C. Ela quer ver histórias de seu cotidiano, quer ver personagens iguais a ela na TV e está conquistando espaço. A Globo está apostando nisso, não é à toa que Lázaro Ramos vive o protagonista na novela das 18h. Claro que ele é grande ator, muito carismático, mas há um momento muito favorável também. Estou vendo isso como um novo momento, como um novo tempo em que finalmente o povo negro vai fazer parte das imagens do país que a TV representa.

Mas o cinema não está acompanhando isso. Não tenho uma reflexão tão apurada como tenho sobre a telenovela, confesso. Talvez porque minha atenção esteja sempre voltada para a TV como objeto de pesquisa. Mas de uma coisa tenho certeza: o cinema blockbuster brasileiro é fiel à ideologia do branqueamento: são as mesmas categorias calcadas no colonialismo, com os mocinhos e mocinhas quase arianos, não sai daquilo. O cinema de autor, sim, já está sinalizando outra coisa. Há uma nova geração de cineastas que está se descolando disso, que tem mais consciência da questão racial.

Patrícia Farias – Quando você aponta este momento como interessante, me parece que sim, há um “momento interessante” no que diz respeito a atores e personagens. Mas não sei até que ponto isso é verdade no que se refere a realizadores negros, autores, roteiristas…

Joel Zito Araújo – Acho que a iniciativa da ministra da Cultura, Martha Suplicy, de lançar no Dia da Consciência Negra um edital para artistas e criadores negros e com projetos que tematizem a matriz africana é bem interessante nesse sentido. Ela vai criar um grupo de autores e novos cineastas, que poderá ter outro olhar.

O cinema norte-americano que revela os problemas de sua cidade, por exemplo, demonstra um pessimismo em relação à linha de cor que os separam. Eles parecem acreditar que os brancos estão de um lado da linha, os negros de outro, e que não tem como mudar, vai ser sempre desse jeito. Os filmes de Spike Lee por exemplo têm muito disso. Nós, não; nós estamos buscando a diversidade, estamos preocupados em apresentar o Brasil como ele é: branco, negro, indígena, oriental e misturado. Acho, portanto, que essa iniciativa será positiva para a indústria do cinema e da TV como um todo, formando novos realizadores negros, com um novo olhar. Então estou otimista, sim, com este momento na TV, acho que é interessante. Mas você tem razão, faltam diretores, realizadores negros por trás das câmeras, com um olhar diferente, dando visibilidade ao negro como parte deste país tão diverso.

Vou dar um exemplo desta mudança que está se passando no Brasil. Fui ao congresso da Associação dos Pesquisadores e Pesquisadoras Negros e Negras, o Copene; sempre vou. Havia 2.500 pessoas: jovens, universitários, todos preocupados com a questão racial. Aí pensei: “o Brasil vai mudar”. Daqui a dez anos, teremos uma nova geração fora dessa ideologia do branqueamento, do racismo, com uma outra perspectiva sobre a autoestima, sem tanta vergonha de ser o que é. É uma geração que não é a minha. Esse pessoal vai ser o avatar de uma grande mudança. Hoje começo a acreditar que em um futuro não muito distante seremos uma democracia racial (risos) graças ao protagonismo negro.

Ah, e também indígena! Preciso falar disso. No ano passado, comecei a ter contato, descobri um novo foco, uma geração indígena de realizadores, pessoas comprometidas com seus grupos étnicos, que vão para as universidades e passam a dominar as técnicas e os saberes de um olhar de fora sobre eles. E já, já, isso vai gerar um impacto, uma presença. Já temos cidades com educação bilíngue, trilíngue. Estamos tendo essa experiência aqui. Tem um novo Brasil da diversidade sendo construído  por estes antigos atores que estão virando protagonistas, negros e indígenas.

Joel Zito: “Precisamos de filmes e novelas que aproximem Brasil e África.”
Joel Zito: “Precisamos de filmes e novelas que aproximem Brasil e África.”

Patrícia Farias – E como você se coloca nesse contexto que está desenhando?

Joel Zito Araújo – Dentro desse universo, tenho o desejo de que meu cinema seja apreciado e absorvido por militantes, que vejam nele um instrumento que possa ser usado nas universidades, nos sindicatos, nos movimentos, para discutir o papel do negro na sociedade brasileira, o racismo, a discriminação. E também quero falar para os não-militantes, quero tocar essas pessoas, quero convencê-los que viver na diversidade é muito melhor do que debaixo de uma visão colonial.

Patrícia Farias – Seu último filme, Raça, fala sobre três personagens, três trajetórias da chamada “vida real”. Como foi a escolha dessas pessoas? Por que o Netinho, por exemplo?

Joel Zito Araújo – Eu e Megan fizemos um filme não sobre personagens, mas sobre a ação de personagens. Então o Netinho entra pelo projeto dele, a sua tentativa de construir a TV da Gente, a primeira TV negra no Brasil. Foi o impasse desse projeto que o levou à política e eu queria retratar isso. Da mesma forma, o filme não é sobre o Paulo Paim, é sobre a luta dele em aprovar o Estatuto da Igualdade Racial. E também não é sobre a líder quilombola, é sobre o movimento do qual ela faz parte. Isto é o que eu quis mostrar: realidades diferentes, mas o mesmo problema.

Patrícia Farias – Dentro desses movimentos e fluxos transnacionais, vejo que você também tem uma participação e uma conversa com o cinema africano, por exemplo. Você dá cursos de cinema em países africanos de língua portuguesa, é curador de um festival de cinema na África do Sul… O historiador, sociólogo e Dj negro Paul Gilroy fala desses fluxos da diáspora africana, cunhando a expressão “Atlântico negro”. Qual a importância disso para você?

Joel Zito Araújo – Realmente, de uns seis, sete anos para cá, passei a circular nesse universo. Passei a viver um conhecimento ao qual não tinha acesso. Tenho procurado participar cada vez mais. Dei um curso de cinema em Cabo Verde em setembro passado, em julho vou participar de uma associação de realizadores e produtores negros da África e da Diáspora. Sou também amigo dos realizadores africanos de maior visibilidade no período atual, como Zezé Gamboa, de Angola, ou Abdahamane Sissako, do Mali. A África tem três realidades distintas, quando falamos de cinema, o cinema maghrebiano e o subsaariano francófono e anglófono que são muito produtivos. A África do Sul tem uma gramática cinematográfica muito parecida com a do cinema americano, o que é típico do cinema anglófono africano. É um cinema de temática mais urbana, mais preocupado com o desenvolvimento e a manutenção de um mercado interno para o cinema. Já o cinema da área francófona tem mais influência da vanguarda francesa, de um cinema que renega a gramática americana. Mas o cinema africano em geral ainda é muito dependente de recursos de fora, o que tem impedido de surgir narrativas mais originais. Nós temos dinheiro interno, e também temos o mesmo problema.

Patrícia Farias – No cenário afrodiaspórico, como você situa o atual cinema norte-americano?

Joel Zito Araújo – O cinema negro americano, aliás, o norte-americano, é muito autocentrado, então é um pouco distante do resto. Apesar dos meus vínculos com os Estados Unidos, estou muito encantado com a África; penso que uma hora dessas vou começar a fazer filmes por lá. O Brasil é também muito autocentrado, afastado da discussão mais geral do cinema negro, africano, sem projetos de coprodução com África ou Ásia. Então, as agências financiadoras e outros possíveis financiadores dos projetos de cinema não compreendem bem quando proponho filmes que deem visibilidade a esse fluxo tão rico e importante que é o da África e Brasil. Precisamos de filmes e novelas que nos aproximem. Temos de sair da postura de deslumbrados em filmar apenas na Europa ou nos Estados Unidos. Mas eu chego lá.

Patrícia Farias – Uma preocupação da gente na revista também é com a circulação digital, muito presente na vida das pessoas hoje. Nossa revista é on-line. E como estamos pensando esse número sobre o mote de constituir caminhos, de traçar e mapear alguns deles, ficamos com a ideia de perguntar a nossos entrevistados e colaboradores se eles navegam, e por onde. Enfim, por onde você navega?

Joel Zito Araújo – Sou um navegador. Perco tempo com bobagem, com Facebook – para mim é o correio do momento, é o retrato do dia a dia, são amizades virtuais que ultrapassam o espaço físico de uma cidade. É a notícia do primo, a foto do amigo cujo filho nasceu, mas também é a informação do novo amigo de outro canto do país, de outro lugar do mundo. Também sou leitor de jornais e sites, especialmente de Portugal e Espanha. Ah, e para sugerir um link de algo original, acho que tudo mundo deve dar uma olhada no www.buala.org. É uma revista de cultura editada por portuguesas super vinculadas à África e ao Brasil. É de cultura e de arte sobre África e sua diáspora.

Vou muito a Portugal, França e Estados Unidos e me impressiona essa nova geração, de 30, 35 anos, especialmente em Portugal, que é muito cosmopolita. Como as duas Martas editoras da revista Buala, que são muito atentas à África, que já não têm aquela nostalgia colonial, salazarista. Essa geração está fora desse mundinho universitário brasileiro, que infelizmente ainda é muito restrito e estruturado na branquitude, no desejo de parte das turmas de jovens ingleses ou norte-americanos. Já esse site das portuguesas expressa uma geração europeia que rompeu com a estrutura colonialista, que ainda persiste na cabeça de muito brasileiro de classe media que se acha moderno e metropolitano.


Joel Zito Araújo: filmografia negra

Raça (2012)

Cinderelas, lobos e um príncipe encantado (2009) – Menção honrosa no Festival Internacional de Cinema de Brasília (2008), prêmios de melhor filme e melhor diretor (indicação do público) no Festival Ibero-Americano de Sergipe e no III Afro-Festival Film da Bahia (2010).

As filhas do vento (2004) – Prêmios de melhor filme, melhor ator (Milton Gonçalves), melhor diretor, melhor atriz (Ruth de Souza e Léa Garcia), melhor ator coadjuvante (Rocco Pitanga), melhor atriz coadjuvante (Thaís Araújo e Thalma de Freitas) na Mostra de Cinema de Tiradentes (2005).

Vista a minha pele (2003) – curta-metragem.

A negação do Brasil (2000) – Prêmio de melhor filme no Festival É Tudo Verdade (2001); Prêmio de melhor roteiro de documentário no V Festival de Cinema de Recife (2005).

A exceção e a regra (1997) – média metragem.

Ondas brancas nas pupilas negras (1995) – média metragem.

Eu, mulher negra (1994) – média metragem.

Retrato em preto e branco (1993) – média metragem.

Almerinda, uma mulher de trinta (1991) – média metragem.

São Paulo abraça Mandela (1991) – média metragem.

Alma negra da cidade (1990) – média metragem.

Memórias de classe (1989) – média metragem. Prêmio de melhor roteiro no Festival Ford/Anpocs, 1989.