Montoneras, Peronismo, Montoneros, Kirchnerismo
(…) se os signos não enganam, todo o aparato filosófico começa a ser uma casca vazia de vida
(Simmel, 2008, p. 219).
O peronismo não é compreensível para alguém que não seja peronista. A frase anterior pode parecer um absurdo do ponto de vista da ciência política, mas sob a ótica peronista é a mais acabada das verdades. No entanto, por menos que creiam os peronistas, como todo movimento político o peronismo é compreensível e passível de análise. Neste ensaio é explorado um dos aspectos mais marcantes desse movimento: a relação entre o peronismo e a cultura de massas. O objeto de estudo é a apropriação do personagem El Eternauta pelo kirchnerismo1 na criação da figura de El Nestornauta. São exploradas também as mudanças na representação do herói Juan Salvo nas duas HQs de El Eternauta, que propiciam essa apropriação.
O peronismo nasce marcado por um aspecto típico da cultura política argentina: o personalismo. Na longa guerra civil que ocorre após a libertação do domínio Espanhol os diferentes caudilhos disputam o poder em uma luta na qual há largo emprego da mais popular formação militar argentina: la montonera.
O individualismo constituía sua essência, o cavalo sua arma exclusiva, o pampa imenso seu teatro. (…) Massas imensas de ginetes que vagam pelo deserto, oferecendo combate às forças disciplinadas das cidades (…), presentes sempre, intangíveis por sua falta de coesão, débeis no combate, porém fortes e invencíveis em uma longa campanha, na qual, ao fim, a força organizada, o exército, sucumbe dizimado pelos encontros parciais, as surpresas, a fadiga, a extenuação. A montonera, tal como apareceu nos primeiros dias da república sob as ordens de Artigas, já apresentou esse caráter de ferocidade brutal e esse espírito terrorista (Sarmiento, 2010, p. 59).
A montonera, tropa de cavaleiros hábeis na guerra e incivilizados nas maneiras, marca a formação de tropas militares das primeiras disputas na Argentina. Lideradas por nomes como Artigas, López, Ibarra, Facundo e Rosas, essas massas de ginetes determinam a forma de disputa pelo poder que se instaura no começo da nação, a disputa do poder pela força e o culto ao líder que engendra o personalismo platino.
Fundamentado na liderança, na força política e nas formulações ideológicas de Juan Domingo Perón, e extremamente vinculado em seu imaginário à figura de Eva Perón, o peronismo nasce com as marcas tradicionais da política argentina: um forte personalismo e a constante tentativa de imposição de seus princípios. Sua doutrina é o justicialismo e, segundo os escritos de Perón (2007), representa uma terceira posição do espectro político, distante tanto do capitalismo como do comunismo. Do ponto de vista da tradicional tipificação política entre direita e esquerda o peronismo pode ser catalogado como um projeto político de centro, com movimentos pendulares ao longo da sua história, tendendo ora à direita, ora à esquerda, em função dos fatos históricos com os quais se confronta e dos apoios que encontra na sociedade argentina.
Perón é o primeiro político argentino a efetivamente compreender o papel que a comunicação de massa exerce nas sociedades modernas. Investe pesadamente na construção de um imaginário que vincule o peronismo, e sua inicial proximidade com a doutrina social-cristã, com aspectos como valorização da família, justiça social, distribuição de renda, melhora das condições de trabalho e do operariado e construção de um país rico economicamente e de uma sociedade sem conflitos de classes.
A tendência ao movimento pendular na política faz com que o peronismo seja complexo em seus aspectos ideológicos, e que seu percurso histórico como movimento político seja marcado por oscilações quase incompreensíveis para quem o estuda a partir de uma visão mais ortodoxa e com pouco conhecimento da história argentina.
O peronismo é dividido em períodos de acordo com a situação política do país. Surgido dos eventos de 17 de outubro de 19452, o chamado peronismo clássico compreende os dois primeiros mandatos presidenciais de Perón e se encerra com a sua deposição em 1955. Nesse período a progressiva perda de apoio dos oficiais militares, do empresariado e das antigas lideranças políticas leva o peronismo a uma aproximação das classes populares e do operariado. Os discursos em tom inflamado de Eva Perón contra as oligarquias e os “vendepátrias”, seu acercamento com a população mais carente, somados à perda de apoio de Perón entre as elites, levam o governo peronista a um movimento pendular à esquerda, com ações de cunho mais populistas. Desse quadro resulta um processo de crise, agravada pelos aspectos da economia mundial após 1950, que deixa de favorecer ao tipo de pauta de exportação da Argentina e dificulta o ingresso de recursos no país.
Em 1955 ocorre um golpe de Estado, há a proscrição legal do justicialismo e o peronismo passa por um período de mais de 18 anos de ilegalidade. Essa fase se encerra com o retorno de Perón em 1973 e sua terceira eleição para a presidência da Argentina, o que configura um segundo período de exercício do poder para o general. A aproximação progressiva com os seguimentos mais conservadores do peronismo leva a uma ruptura no movimento e a criação de um conflito com a chamada esquerda peronista, com a qual se alinha Oesterheld. A morte de Perón em 1974 leva ao poder sua esposa María Estela Martínez de Perón e o agravamento da crise política iniciada ainda com Perón vivo e os confrontos entre grupos armados de extrema direita e extrema esquerda levam a Argentina a um golpe de Estado e a instauração de novo período de ditadura militar.
É entre meados dos anos 1960 até a luta armada de enfrentamento com a ditadura militar liderada pelo general Jorge Videla que a organização Montoneros3 atua. Inicialmente fundada na ideologia social-cristã, aos poucos se converte em um grupo marxista que prega o socialismo nacional, teoria política própria da chamada esquerda peronista que mescla aspectos do socialismo com o justicialismo e as características específicas do processo sócio-político argentino. Com o afastamento de Perón de sua “juventude maravilhosa”4 o grupo segue se autoidentificando como peronista, mas passa ao confronto armado, intensificando as contradições ideológicas internas e se aproximando cada vez mais do socialismo utópico, que acredita na luta armada como único caminho para a resolução da luta de classes.
Devido ao forte personalismo da política argentina, no peronismo as correntes internas são identificadas através do nome de seus principais expoentes. Se, em seu começo o peronismo é profundamente identificado com as figuras de Perón e Evita, na década de 1970 essas mesmas figuras identificam dois ramos internos, com a imagem de Perón mais colada à fração conservadora e Evita identificada como o grande símbolo da denominada esquerda peronista, que se autoidentifica como evitista.
Nos anos 1990 o peronismo ressurge vinculado à figura de Carlos Menem e o menemismo faz com que o peronismo seja vinculado às políticas neoliberais que grassam no cenário político mundial da época. O começo do século XXI na Argentina é marcado por uma profunda crise econômica, política e social, resultante do fracasso das políticas econômicas do menemismo e da inabilidade político-administrativa do seu sucessor, Fernando de la Rúa. Em um breve intervalo a Argentina tem cinco presidentes diferentes, terminando o processo na assunção do poder por Eduardo Duhalde, um peronista que consegue estabilizar a política e a economia do país.
Nas eleições de 2003 o peronismo apresenta várias candidaturas e um candidato que parecia improvável em um primeiro momento se torna presidente da Argentina: Néstor Kirchner ganha o primeiro turno das eleições com 22% dos votos e, em função das pesquisas de opinião apontarem sua vitória com ampla margem no segundo turno, a desistência de Carlos Menem do pleito leva Kirchner à vitória definitiva.
O governo kirchnerista pode ser analisado como um prosseguimento da tradição personalista da política argentina. Constrói sua representação política ligada ao pensamento da juventude peronista dos anos 1970. O discurso oficial e toda a prática comunicacional do governo argentino de Néstor Kirchner e, posteriormente, de sua esposa Cristina Fernández de Kirchner é amparada na visualidade do peronismo clássico e da juventude peronista setentista5. É dentro da construção desse imaginário político e através das formas de representação identitária na sociedade de massas que surge a possibilidade da sobreposição entre a figura do presidente e a do herói da história em quadrinhos.
El viejo, sus historietas y su amigo
Héctor Germán Oesterheld nasce em Buenos Aires no ano de 1919. Apesar de ter formação profissional em geologia é a escrita que o atrai, publica contos infantis e histórias em quadrinhos desde o começo dos anos 1950. Já com histórias em parceiras com Paul Campani, Solano López e Hugo Pratt, em 1957 Oesterheld funda a editora Frontera e passa a publicar seus trabalhos nas revistas Hora Cero e Frontera. É através das páginas de Hora Cero que é publicada a primeira história de El Eternauta, entre 1957 e 1959, exatamente no momento de maior intensidade da repressão ao peronismo pela ditadura liderada pelo general Pedro Eugenio Aramburu.
Em fins dos anos 1960, Oesterheld se compromete politicamente ainda mais com os movimentos da chamada esquerda peronista. Escreve, junto com Alberto e Enrique Breccia, a biografia de Ernesto Guevara, um roteiro para filmobiografia de Eva Perón, faz os roteiros da história em quadrinhos La guerra de los Antartes, publicada no jornal Noticias, e a série Latinoamerican y el imperialismo, esta publicada nas páginas do semanário montonero El Descamisado.
A década de 1970 reserva para Oesterheld um roteiro nada amistoso. Na ilegalidade desde meados da década, o roteirista se isola em um refúgio no rio Tigre. Escreve o roteiro de El Eternauta II (ou El Eternauta segunda parte) entre 1976 e meados de 1977. Em função das atividades políticas da família, os órgãos de repressão e grupos paramilitares promovem o assassinato ou a desaparição de três de suas filhas entre junho e novembro de 1976. Além disso, como duas delas estavam grávidas, há o desaparecimento de dois de seus netos. Oesterheld é igualmente sequestrado e ilegalmente detido em abril de 1977. Há registros de suas passagens pelos centros ilegais de detenção do Campo de Mayo, “El Vesubio” e “El Sheraton”. Dados obtidos pela Conadep (Comissão Nacional de Desaparição de Pessoas) asseguram que o escritor é visto vivo em janeiro de 1978, após essa data não há registros relativos ao escritor e seus restos mortais seguem desaparecidos. A revista Skorpio publica as tiras da história entre dezembro de 1976 e abril de 1978.
O coautor de El Eternauta, Francisco Solano López nasce em Buenos Aires em 1928 e começa a desenhar profissionalmente no começo dos anos 1950. Desenha para a editora Frontera Rolo el marciano adoptivo, Amapola negra e Ernie Pike, entre outros. Em 1957 e em 1976 é o desenhista responsável por dar forma visual ao roteiro de Oesterheld para El Eternauta. Seu filho Gabriel é ilegalmente detido pelos órgãos de repressão em meados de 1977. Em função de suas relações pessoais, Francisco Solano López consegue sua libertação e a família segue para o exílio na Espanha, onde o desenhista finaliza as artes da segunda história.
El Eternauta e o peronismo clássico
O imaginário do peronismo é perpassado por referências contraditórias. Primeiro movimento político que sabe como lidar com a comunicação em uma sociedade de massas, o peronismo constrói todo um discurso para difundir suas ideias. Perón e Evita elaboram formas de argumentação para validar o imaginário constituído a partir de uma interpretação da realidade histórica e política da Argentina: o justicialismo desenvolvido por Perón.
Nessa construção de imaginário se desdobra uma identidade nacional forte, calcada no discurso de uma sociedade sem disputas entre suas classes, e completamente com base na intermediação do Estado para resolução de quaisquer conflitos, sempre em nome do bem comum e da vocação pacífica do povo argentino (Perón, 2007). A produção da comunicação do Estado é centralizada e fortemente organizada no sentido de influir na compreensão da realidade pelo povo argentino de acordo com a ideologia justicialista.
A necessidade de estabelecer uma doutrina única, gerada desde o Estado e que fixaria os objetivos da nação toda, se converteria durante o governo de Perón em um dos componentes cruciais do discurso peronista. O Estado deveria inculcar essa doutrina ao ponto de convertê-la em uma espécie de “marco mental coletivo” através do qual a realidade deveria ser interpretada. A doutrina devia unificar as leituras da realidade e, ao mesmo tempo, fixar claramente os limites do dissenso (Plotkin, 1994, p. 45).
Os papéis de gênero igualmente estão claramente definidos. Aos homens cabe prover o lar e às mulheres os cuidados com a casa e os filhos. Qualquer complementação de renda que as mulheres possam obter deve ser fruto de trabalhos que não a afastem fisicamente do lar. “E cada dia o mundo necessita em realidade de mais lares e, para isso, mais mulheres dispostas a cumprir bem seu destino e sua missão” (Perón, 2010, p. 137).
No campo visual o discurso desenvolvido é curiosamente vinculado ao imaginário socialista e a do New Deal, apesar de erroneamente se vincular o peronismo com os movimentos fascistas em função dos anos de formação de Perón na Itália de Mussolini.
Enquanto a propaganda nazista e fascista apelava às construções ideais míticas com o fim de legitimar a nova base das grandes tradições nacionais, a gráfica soviética e a do New Deal, assim como a do peronismo na década seguinte, glorificavam o presente superador do passado de atraso tecnológico e desigualdade social, mediante um clichê que é comum aos três casos. Representados conjuntamente e sem distinções hierárquicas, o operário fabril e o camponês referiam simultaneamente às categorias de “trabalhador” e “Nação” (Gené, 2005, p. 96).
O enfrentamento com o imperialismo, o desenvolvimento de uma indústria de capital argentino e a independência econômica da nação são as metas propugnadas, a família é a base de tudo, e os descamisados de Evita são convertidos em um exército a serviço dos propósitos políticos do justicialismo e do bem da Argentina, e de Perón.
Com a morte de Evita, em 1952, o regime sofre um profundo baque. Perde não só sua primeira dama, mas aquela que era a figura de proa e o motor da política assistencialista do Estado. Em 1955, muito em função das contradições internas, mas também em função da mudança do quadro econômico externo, Perón é derrubado do poder por um golpe de Estado. A violência da oposição anti-peronista chega ao ponto da promulgação de leis de desperonização da Argentina. Uma verdadeira fúria iconoclasta dos golpistas promove a destruição maciça de imagens e signos peronistas. A resistência dos peronistas passa ao campo do sutil, e é nesse quadro que a primeira historia de El Eternauta se enquadra.
Juan Salvo é constituído como uma referência ao homem peronista típico, chefe de família, trabalhador e com um pensamento voltado às ações empreendedoras que levariam a Argentina a se consolidar como uma sociedade justa, livre e independente. Ele é um profissional que constrói sua pequena “fábrica de transformadores”, o que permite que se conceda “aquele tipo de prazeres simples”, e este é seu horizonte.
Na primeira história, o heroísmo é de certa forma coletivizado. Se cabe a Juan Salvo um protagonismo outros personagens (como Favalli ou Franco) assumem atitudes similares. Ao final, quando se vê só, após a queda de seus amigos, é à proteção da família que Juan se volta, o mesmo que ele busca em desespero no começo da história. Ao final do relato retorna aos braços de Elena e de Marta e é apagado de sua memória tudo o que viveu.
Nesse quadro a narrativa de cunho peronista se dilui em uma alegoria humanista, típica do próprio movimento, e o personagem assume uma postura coletivista, de um homem que, apesar de viver uma incrível aventura, retorna à sua função social de chefe de família e se esquece de sua participação direta na defesa da sociedade espelhando um anonimato que dissolve a individualidade em benefício do grupo social.
El Eternauta II e a juventude peronista
Em El Eternauta II o quadro narrativo se altera. A história é escrita com Oesterheld vivendo na clandestinidade e a visão de mundo do autor perpassa todo o relato. O personagem assume um protagonismo que fundamenta a narrativa; a família já não é o foco central, mas sim a salvação do “povo das covas”, uma alegoria relativa ao povo argentino em si; a postura de Juan Salvo não é de quem compõe um grupo, mas de quem lidera um grupo e está disposto a tudo para vencer os invasores, inclusive ao autossacrifício.
Essa transformação do personagem pode ser lida como uma alegoria sobre a situação da militância da Juventude Peronista. A mesma que para Perón passa de uma “juventude maravilhosa” a um grupo de “imberbes e estúpidos”6, a que se lança em uma luta feroz contra os grupos paramilitares que promoverão assassinatos e desaparecimentos durante mais de uma década. São grupos que propugnam o socialismo nacional, como as FAR (Forças Armadas Revolucionárias) e Montoneros, que após a decepção com Perón (e especialmente após a sua morte) assumem a luta armada como caminho para a construção de outra sociedade. É à ideologia desses grupos que Oesterheld e sua família se vinculam.
Mais que em qualquer sequência são os três quadros destacados acima de El Eternauta II que expõem essas mudanças. Enquanto na primeira história Juan Salvo é movido pela solidariedade aos seus companheiros e é representado como mais um no grupo, aqui seu protagonismo e sua liderança se tornam evidentes. Enquanto no quadro mais ao alto sua figura se impõe em meio ao grupo pela postura, pela centralidade de sua imagem no quadro e pelo tratamento do claro-escuro que a destacam, nos dois quadros seguintes o diálogo estabelece o tipo de relação e de prioridades que a luta contra a dominação dos invasores determina em seu caráter. O sacrifício pedido ao primeiro grupo do comando para possibilitar a infiltração do segundo é visto como uma obrigação necessária pelo salvamento do “povo das covas”. Essa passagem expressa de forma cabal o tipo de pensamento que movia os jovens montoneros que lutavam pela “libertação do povo argentino”. Os paralelos são inevitáveis, ainda que esse tipo de interpretação dependa do conhecimento das condições sociais, políticas e culturais da Argentina do período.
Nessa segunda narrativa Juan Salvo se transmuta de um homem peronista clássico em um líder montonero. O chefe de família dá lugar ao homem capaz de abandonar os seus para partir em uma missão que permita “libertar o povo”, mesmo que isso implique sua morte; o seu empreendedorismo abandona o egoísmo e passa a servir os interesses coletivos e da resistência; seus planos passam a ser os que lhe permitirão a consecução de objetivos políticos e militares, não mais almeja “aquele tipo de prazeres simples” resultante da vida familiar em um bairro de classe média em Buenos Aires.
Em resumo: em El Eternauta II há uma permuta no caráter de Juan Salvo, a personagem passa da representação do ethos do peronista típico do período clássico do movimento, do peronista ortodoxo e conservador, ao ethos do militante da juventude peronista dos anos 1970.
El Nestornauta
Nestor Kirchner é um jovem estudante na Universidade de La Plata nesse período. Como muitos, participa de grupos militantes e se envolve com a política. Seu grupo de amigos e companheiros de política nessa época é composto fundamentalmente por pares da geração setentista. É nesse imaginário que seus discursos vão beber e é no ethos dessa militância que o kirchnerismo se apoia para elaborar o seu próprio imaginário.
As características de coragem, capacidade de liderança, autossacrifício em favor da sociedade e de fidelidade a causas maiores que o personagem El Eternauta assume na segunda narrativa são oportunamente bem-vindas para a representação de um político cujo discurso se articula muito ao redor das expressões e representações que esse universo discursivo pode vincular à sua imagem.
É nesse quadro que o estêncil de El Nestornauta surge. Interessante perceber que a imagem selecionada para a criação do desenho é originária da primeira história, na qual o personagem ainda mantém características mais coletivistas e uma postura menos heroica com relação ao enfrentamento dos invasores. Uma vez que o lapso de tempo entre a publicação das duas narrativas é de quase 20 anos, as imagens da primeira narrativa são as que mais profundamente se consolidam como parte do imaginário peronista da Argentina, e com muita amplitude. A segunda narrativa, apesar de não mais apresentar a imagem com a roupa isolante que permite sua circulação em meio à nevasca radioativa que tudo mata, não substitui a imagem tradicional de Juan Salvo que é utilizada na criação de El Nestornauta.
Alguns autores afirmam que há uma predominância do ethos militante setentista na formação do imaginário kirchnerista, o que efetivamente permite a construção de um paralelo entre o discurso de Néstor Kirchner e a figura de Juan Salvo na segunda história, uma vez que no período de sua juventude, quando se forma como quadro da militância da juventude peronista “(…) a prática política implicava uma dimensão de sacrifício, audácia, voluntarismo e alto compromisso pessoal e político, compromisso que se figurava como um mandato, um legado ou uma missão herdado de lutas históricas precedentes” (Montero, 2012, p. 131, grifos do original).
No entanto, alguns aspectos denunciam o quanto o ethos kirchnerista mescla as heranças peronistas. O uso de uma imagem que se origina da primeira história é um primeiro fato que aproxima o personagem criado do peronismo clássico, assim como a supressão do rifle. Essas características acentuam a vinculação com uma dada versão do peronismo como força política que vai bem além da herança setentista.
El Eternauta é parte de um corpus de imagens que vinculam o peronismo setentista ao peronismo clássico, centrado na doutrina justicialista e com uma reinterpretação relativa dos seus preceitos básicos. A complexidade e as contradições do peronismo plasmam a construção do imaginário do kirchnerismo, que não nega suas vinculações, por mais que as dissimule em determinados momentos através da valorização da memória geracional na qual se inscrevem tanto Néstor Kirchner quanto Cristina Fernández de Kirchner. Esse movimento engendra a seleção de imagens que viabiliza a formação de um imaginário com múltiplos vínculos com diferentes fases do peronismo, o que viabiliza as diferentes leituras necessárias para a identificação por diferentes frações do peronismo. Daí a utilização de uma imagem de um Juan Salvo clássico e não da sua versão montonera.
Considerações finais
Dentro da realidade política do peronismo, a mescla de quadrinhos e poder é uma combinação absolutamente compreensível. Primeiro movimento político argentino a se confrontar seriamente com as necessidades do processo da comunicação em uma sociedade de massas, a adoção da história em quadrinhos como forma de expressão do pensamento político se torna um caminho natural para seus simpatizantes e partidários.
Para as gerações de argentinos nascidos após 1945 as HQs de El Eternauta constroem um discurso positivo sobre o peronismo e antagônico aos seus perseguidores, uma vez que nas duas épocas em que são publicadas o movimento está sob repressão de governos autoritários. O personagem Juan Salvo passa por um processo de ressignificação que o adapta às diferentes realidades sócio-históricas com as quais o movimento se confronta. A criação de uma figura como a de El Nestornauta é mais uma ressignificação e em seu bojo vincula o peronismo clássico, o peronismo de esquerda setentista e o kirchnerismo, os associando a ideias positivas da doutrina justicialista como nacionalismo, humanismo, justiça social e idealismo.
Nesse contexto, os quadrinhos finais da segunda história, já plenos de significação uma vez que a ação se passa em um suposto dezembro de 1976, ressignificam o peronismo e o inserem em um todo discursivo que reforça seu confronto e a luta contra os regimes autoritários que provocaram tantas decepções e dores ao povo argentino. Assim como Germán, Nestor se alia de forma definitiva a Juan Salvo na luta contra a dominação alienígena.
Voltando ao pensamento de Simmel, se El Nestornauta não nos enganasse e vinculasse o imaginário kirchnerista com uma visão totalizante do peronismo, não exerceria sua função sígnica plenamente, pois deixaria de ser uma parte axial da elaboração desse discurso complexo e não nos brindaria com uma expressão visual plena de vida.
*Amaury Fernandes é diretor da Escola de Comunicação da UFRJ, professor do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da EBA-UFRJ, pós-doutor em Economia-Política da Comunicação pela Universidad Nacional de Quilmes, doutor em Ciências Sociais pelo PPCIS-UERJ, mestre em História da Arte pelo PPGAV-UFRJ, designer pela EBA-UFRJ. Autor do livro Fundamentos de produção gráfica para quem não é produtor gráfico e de diversos artigos sobre artes gráficas, imagem, design e comunicação.
Referências
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SIMMEL, Georg. De la esencia de la cultura. Buenos Aires: Prometeo, 2008.
Notas
1 Kirchnerismo é a designação que agrupa os seguidores políticos de Nestor Kirchner e Cristina Fernández de Kirchner na Argentina contemporânea. Sobre o assunto ler Sarlo (2011) e Feinmann (2011).
2 Através de sua participação no golpe de Estado de 1943, Perón ascende ao cargo de Secretário de trabalho e Previdência. No exercício dessa função consegue angariar apoios políticos de militares, empresários e trabalhadores e ascende à vice-presidência. Esse aumento de poder gera receio em outras frações do exército que conseguem seu aprisionamento no começo de outubro de 1945. Na noite de 17 de outubro de 1945 centenas de milhares de manifestantes ocupam a tradicional Plaza de Mayo, em Buenos Aires e exigem sua libertação. Desde então o 17 de outubro é considerado a data natal do peronismo e esse dia é conhecido como “Dia da lealdade” (Romero, 2012). Sobre a história do peronismo, ler Galasso (2011).
3 Sobre o grupo Montoneros ler Pollastri (2004) e Bonasso (2011).
4 Em 1969 o grupo Montoneros sequestra o general Aramburu (líder do golpe de Estado de 1955) e o executa por ter ordenado o fuzilamento de peronistas que resistiram ao golpe. Perón, desde o exílio, qualifica esse agrupamento de “juventude maravilhosa” e os reconhece como “formações especiais do movimento peronista” (Pollastri, 2004, p. 16).
5 Sobre o setentismo ler Amato e Bazán (2008).
6 Na festa do 1º de maio de 1973 houve um confronto entre Perón e os grupos de jovens que se alinhavam sob as bandeiras da Juventude Peronista e dos Montoneros no tradicional ato na Plaza de Mayo. Enquanto Perón defendia as lideranças sindicais, mais vinculadas ao peronismo ortodoxo e ao conservadorismo, os jovens cobram com seus cânticos o reconhecimento de sua militância que havia contribuído para o retorno de Perón do exílio. Ao final Perón qualifica esses jovens de “imberbes e estúpidos” e os grupos de jovens se retiram da praça em meio ao ato entoando cânticos de protesto.