Ano XII 0201
2º semestre de 2017
dossiê
Tempo de leitura estimado: 13 minutos

ENTREVISTA COM ANDREAS FICKERS

Andreas Fickers é professor de História Contemporânea e Digital na Faculdade de Linguagem, Literatura, Humanidades, Artes e Educação, além de diretor do Centro de História Contemporânea e Digital (C2DH) da Universidade de Luxemburgo. O Centro visa a desenvolver novas ferramentas e tecnologias no campo da história digital contemporânea e promover uma abordagem prática na experimentação e reflexão criativa sobre a dimensão hermenêutica da história contemporânea e da história na era digital. Doutorou-se em 2002 na Universidade RTWH Aachen e trabalhou como professor assistente de história da televisão na Universidade de Utrecht (2003-2007) e professor associado da história da mídia comparada na Universidade de Maastricht (2007-2013).

Como foi a sua “entrada” no universo das Humanidades Digitais? Como você explicaria o termo para um público que está ouvindo falar sobre isso agora? O que seriam as Humanidades Digitais e como você localizaria a História Digital dentro desse campo?

Andreas Fickers: Entrei em contato com o campo das Humanidades Digitais (HD) um tanto atrasado (cerca de sete ou oito anos atrás). Como não é uma disciplina, mas sim um campo em emergência e constante negociação, percebi que estava ativo nele mesmo antes de saber que havia um campo específico. A minha entrada foi por intermédio de um projeto de pesquisa europeu denominado Video Active (2006-2009) nos quadros do FP7[1], que mais tarde se tornou o EUscreen (www.euscreen.eu). A ideia era construir uma plataforma europeia para o patrimônio audiovisual digitalizado de instituições de radiodifusão na Europa e, assim, promover pesquisas sobre a história transnacional e da televisão europeia. Assim, desde o início, meu papel foi o de construir pontes entre o mundo arquivístico e a rede de pesquisadores que trabalham na história transnacional da televisão. Por essa razão, criamos a Rede Europeia de História da Televisão em 2005, que, consequentemente, organizou workshops, conferências e livros publicados, além de números especiais sobre essa temática. De certa forma, eu comecei minha “carreira” em HD em um domínio que ainda é bastante marginal: história audiovisual.

O termo Humanidades Digitais conquistou mais e mais estudiosos em todo o mundo. No entanto, sabemos que o financiamento, as tecnologias e outros elementos estruturantes das condições de construção de um programa ou de um laboratório dedicado às Humanidades Digitais já estão disponíveis e acessíveis assimetricamente, apesar da diversidade presente no cenário global. Em uma perspectiva crítica, como lidar com esse fato?

Andreas Fickers: Uma maneira de lidar com essa assimetria ou desigualdade é promover o compartilhamento de ferramentas/recursos através de plataformas online. Plataformas como o Github estão visando ao compartilhamento de software de código aberto para aplicações HD; então, a comunidade HD deve aproveitar ao máximo as políticas e iniciativas de dados abertos. Por outro lado, iniciativas como “DARIAH-EU” visam e compartilham melhores práticas e ferramentas entre diferentes plataformas nacionais – basicamente com a ambição de evitar (custosas) “reinvenções da roda” e de construir as competências e lições aprendidas uns com os outros. Um grande problema de muitos projetos de HD é a característica do projeto, que é um tempo de vida limitado do financiamento associado a um projeto, fazendo de muitos investimentos de curto prazo um negócio arriscado em termos de sustentabilidade e impacto no longo prazo. Com base nas infraestruturas/ferramentas/tecnologias existentes, a adição de recursos específicos com base em necessidades concretas de pesquisa é, certamente, uma estratégia mais sustentável e provavelmente ajudará a desenvolver alguns “padrões ouro” ou “melhores práticas” em longo prazo.

É um fato relevante que o Centro de História Contemporânea e Digital de Luxemburgo possui métodos e ferramentas digitais para pesquisa e ensino de história como um dos seus principais objetivos. Você acha que o exemplo do C2DH, bem como de outros centros, contribui para uma mudança epistemológica no campo específico da História e lato sensu no campo das humanidades?

Andreas Fickers: Nosso Centro se concentra na reflexão crítica dos desafios epistemológicos e metodológicos ligados ao desenvolvimento e uso de novas ferramentas e tecnologias digitais para fazer história na era digital. Em vez de desenvolver/inventar novas ferramentas, tentamos colocar as mãos sobre ferramentas já existentes para testar sua usabilidade para pesquisas históricas. O Centro visa, portanto, promover uma abordagem experimental que descrevemos como thinkering – aproximando o “pensar” e o “brincar” para avançar tanto a nossa “literacia digital” quanto para atualizar a hermenêutica clássica das humanidades na era digital. A hermenêutica digital é necessária para refletir criticamente sobre as possibilidades e limitações das ferramentas e tecnologias digitais e para expandir o nosso conjunto de ferramentas metodológicas – a crítica algorítmica, crítica de ferramentas, crítica de fontes digitais e críticas de interface precisam se tornar parte do repertório hermenêutico em humanidades.

Em uma pesquisa que fiz, fiquei muito interessado no valor estético por trás da disseminação e produção de informação e conhecimento nas Humanidades Digitais. Busco uma tentativa de elaborar um pensamento crítico sobre as HD, chamadas por alguns de transdisciplina. Você diria que a narrativa do historiador também vem desenvolvendo cada vez mais um valor estético para sua legitimação e circulação em uma era de “curtidas” e compartilhamentos?

Andreas Fickers: Definitivamente sim! Eu não uso o termo “valor estético”, mas em minha própria prática de ensino e pesquisa busco experimentar novas estratégias de narrativas online, especialmente a transmedia storytelling. Usando diferentes tipos de fontes digitalizadas (textual, visual e oral), ela pede por uma melhor compreensão das narrativas convencionais relacionadas a mídias específicas, e sua combinação (na transmedia storytelling) é um desafio real para os historiadores (geralmente treinados para escrever artigos e livros!). Assim, as convenções narrativas e as expressões estéticas da narrativa histórica online diferem drasticamente das narrativas das escritas clássicas. Mas a maioria dos historiadores está mal preparada para aproveitar ao máximo o potencial narrativo da transmedia storytelling.

Outro elemento crítico na produção de novos conhecimentos em HD é a tendência crescente de visualizações de dados (redes, nuvens de palavras, simulações etc.). Estou preocupado com o fato de que muitos especialistas em humanidades tomem as “evidências visuais” de tais apresentações, valorizando-as em vez de serem capazes de “desconstruí-las” como representações baseadas em algoritmos, aproximações estatísticas e desenhos embasados em gráficos ou vetores. A “confiança nos números” (Ted Porter) pesa muito e os estudiosos das humanidades muitas vezes têm medo de questionar / interpretar a natureza construída de muitas dessas visualizações de dados.

É possível que algum dia naturalizemos em nossos currículos e praxis de pesquisa e ensino o digital como aspecto sine qua non para nosso ofício. Nesse contexto, seria possível considerar que um dia a História Digital, assim como as Humanidades Digitais, não suportará mais esse nome? Será apenas história novamente?

Andreas Fickers: Espero que sim! A literacia digital é para mim uma parte de uma “literacia multimodal” mais ampla. Formas específicas de expertises e conhecimentos agora ligados ao surgimento de novas ferramentas e tecnologias digitais certamente se tornarão parte do “cânone” das humanidades mais cedo ou mais tarde.

 

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How was your “entry” into the universe of Digital Humanities? How would you put it to an audience that is hearing about it just now, what would Digital Humanities be, and how would you locate the Digital History there?

Andreas Fickers: I came in touch with the field of Digital Humanities quite late (some 7 or 8 years ago). As it isn’t a discipline but rather a field in emergence and constant negotiation, I was actually active in the field before knowing that there was a specific field. My entry was through a European research project called “Video Active” (2006-2009) in the FP7 framework, which later became EUscreen (www.euscreen.eu) The idea was to build a European platform for digitized audiovisual heritage from broadcasting institutions in Europe and thereby promote research on transnational and European television history. So, from the very beginning, my role was to build bridges between the archival world and the network of scholars working on transnational television history. For that reason, we created the European Television History Network in 2005 which consequently organized workshops, conferences and published books and special issues on that topic. In a way I started my “career” in DH a domain which still is rather marginal: audio/visual history.

The term Digital Humanities has conquered more and more scholars around the globe. Nevertheless, we know that financing, technologies and other structuring elements for the construction of a program or a laboratory dedicated to the digital humanities are already available and accessible asymmetrically more for ones despite others in the global scenario. In a critical perspective how to deal with such a fact?

 Andreas Fickers: One way to deal with that asymmetry / or inequality is to promote the sharing of tools / resources through online platforms. Platforms like Github are aiming at sharing open source software for DH applications; so the DH community must take full advantage of open data policies and initiatives. On the other side, initiatives like “DARIAH-EU” aim at sharing best practices and tools among different national platforms – basically with the ambition to avoid (costly) reinventions of the wheel and in building on each other’s competences and lessons learned. One big problem of many DH projects is their project character – that is the limited lifespan of funding associated with a project, making many short-term investments a risky business in terms of sustainability and long-term impact. Building on existing infrastructures / tools / technologies and adding specific features based on concrete research needs is certainly a more sustainable strategy and will probably help to develop some “gold standards” or “best practices” in the long run.

If this fact is relevant. The Luxembourg Centre for Contemporary and Digital History has digital methods and tools for research and teaching history as one of its main objectives. Do you think that the example of the C2DH, as well as of other centers, contributes to an epistemological change in the specific field of History and lato sensu in the field of the humanities?

Andreas Fickers: Our Centre focuses on the critical reflection of the epistemological and methodological challenges linked to the development and use of new digital tools and technologies for doing history in the digital age. Rather than developing / inventing new tools, we try to put our hands on existing tools in order to test their usability for historical research. The Centre thereby aims at promoting an experimental approach that we describe as “thinkering” – bringing thinking and tinkering together in order to advance both our digital literacy and to update the classical hermeneutics of humanities to the digital age. Digital hermeneutics are needed to critically reflect on both the possibilities and limitations of digital tools and technologies and to expand our methodological toolkit – algorithmic criticism, tool criticism, digital source criticism and interface criticism need to become part of the hermeneutic repertoire in humanities.

In a research I have been doing, I have been very interested in the aesthetic value behind the dissemination and production of information and knowledge in the Digital Humanities. An attempt to elaborate a critical thinking about this, called by some as a transdiscipline. Would you say that the historian’s narrative has also been increasingly developing an aesthetic value for its legitimation and circulation in an era of likes and sharing?

Andreas Fickers: Definitely yes! I don’t use the term “aesthetic value”, but in my own teaching and research I try to experiment with new narrative strategies online, especially transmedia storytelling. Using different kind of digitized sources (textual, visual, aural) asks for a better understanding of the narrative conventions of specific media, and their combination (in transmedia storytelling) is a real challenge for historians (which are generally trained to write articles & books!). So, the narrative conventions and aesthetic expressions of historical storytelling online differs drastically from classical written narratives. But most historians are badly prepared to make full use of the narrative potential of transmedia storytelling.

Another critical element in the production of new knowledge in DH is the growing trend towards data visualizations (networks, word clouds, simulations etc.). I’m concerned that many humanities scholars take the “visual evidence” of such presentations for face value rather than being able to “deconstruct” them as representations based on algorithms, statistical approximations and graph – or vector –based drawings. The “trust in numbers” (Ted Porter) weighs heavily and humanities scholars are often afraid to question / interpret the constructed nature of many of such data visualizations.

It is possible that someday we will have naturalized in our curricula and praxis of research and teaching the digital as an aspect sine qua non to our craft. In this context would it be possible to consider that one day Digital History, like Digital Humanities, will no longer bear this name? It will only be history again?

Andreas Fickers: Yes, I hope so! The digital literacy is for me one part of a broader “multi-modal literacy”. Specific forms of expertise and knowledge now closely tied to the emergence of new digital tools and technologies will certainly become part of the “canon” of humanities sooner or later.


* Ricardo M. Pimenta é pesquisador 2 do CNPq (bolsa de produtividade) e Jovem Cientista do Nosso Estado FAPERJ (2018-2020). Pesquisador Associado do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT) do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). Professor Permanente do Programa de Pós-graduação em Ciência da Informação (PPGCI/IBICT-UFRJ). Historiador pela Universidade Gama Filho (UGF) com pós-graduação em História do Brasil. Possui mestrado em Memória Social e Documento e doutorado em Memória Social pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), com estágio doutoral na École des Hautes Études en Sciences Sociales – EHESS de Paris. É líder do grupo de pesquisa Informação, Memória e Sociedade (http://www.memoriaesociedade.ibict.br), registrado no diretório do CNPq, e coordena o Laboratório em Rede de Humanidades Digitais do IBICT (Larhud/COEPE/IBICT – disponível em http://www.larhud.ibict.br). Pesquisador associado do Laboratório Interdisciplinar sobre Informação e Conhecimento (LIINC/UFRJ) e membro da Rede Latino-Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade (LAVITS).

 

[1] O FP7 é o 7º Quadro do Programa de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico, que abrangeu o período de 2007 a 2013. O programa busca construir e viabilizar oportunidades para a União Europeia combinar a sua política de investigação com as suas ambições em termos de política económica e social por meio da consolidação do Espaço Europeu da Investigação (ERA).