entrevista
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ENTREVISTA COM JOSÉ LUIZ PASSOS

Nascido em Catende, Pernambuco, em 1971, José Luiz Passos publicou, em 2009, seu primeiro romance, Nosso grão mais fino, selecionado para o prêmio Zaffari & Bourbon de literatura. Com O sonâmbulo amador, de 2012, foi vencedor do Prêmio Brasil Telecom de 2013. É também autor dos ensaios Ruínas de linhas puras (1998) – sobre as viagens de Macunaíma – e Machado de Assis, o romance com pessoas (2007), que interpreta a influência de Shakespeare na imaginação moral do realismo brasileiro.

Vivendo atualmente nos Estados Unidos, onde é professor na Universidade da Califórnia, em Los Angeles, veio ao Brasil em novembro de 2016 para lançar seu mais recente romance O marechal de costas e, gentilmente, atendeu ao chamado de um grupo de professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) para participar de uma conversa sobre seus livros e sua trajetória no projeto Poesia, ficção e crítica. Ninguém ignora a atual situação da Uerj. No dia de sua fala houve um “piquete”, os alunos fecharam as portas da universidade logo pela manhã, numa forma de protesto contra o governo estadual pela falta de repasse das verbas de manutenção, pelo não pagamento das bolsas de permanência aos alunos e dos salários dos professores. Foi impossível realizar a conversa, mas José Luiz Passos, generosamente, concedeu uma entrevista, que publicamos a seguir.

José Luiz Passos na Flip de 2013
José Luiz Passos na Flip de 2013

Como forma de apresentá-lo aos alunos do curso de Letras da Uerj, e agora aos leitores da Revista Z Cultural, pedimos que nos conte um pouco de sua carreira literária: quando começou, como, se algo especial motivou sua escrita.

José Luiz Passos: Comecei a escrever quando cursava Sociologia na UFPE. Eram, em geral, crônicas e, em menor medida, poemas e contos para as revistas universitárias editadas pelos estudantes. Sempre adorei livros. Lia pouca ficção; lia muita filosofia e história da ciência. Comecei um mestrado em Sociologia na Unicamp e, lá, morando em São Paulo, surgiu uma vontade maior de escrever ficção. Mas foi a partida para fora do Brasil, mais especificamente para Los Angeles, onde fiz o doutorado, que me levou a pensar mais seriamente em tentar escrever um romance. E me parecia óbvio que o romance deveria ser sobre Pernambuco, sobre a nostalgia; uma saga sobre a morte de linhagens familiares ligadas ao açúcar. Isso tudo me soava ao mesmo tempo tão familiar e tão distante. Nasci numa usina de açúcar, onde meu avô trabalhava como químico. Passei anos juntando coragem e material, tomando notas, para esse romance. Quando meu pai faleceu e concluí meu PhD, comecei a vida como professor, em Berkeley, com isso na cabeça: havia algumas histórias que eu gostaria de contar. Entre elas, a primeira de todas, era a relação entre Ana e Vicente; uma relação incestuosa e mediada pela triangulação amorosa. Ambos sentem pena um do outro e se recusam a abandonar os seus mortos. Dessa ideia surgiu Nosso grão mais fino (2009). Tenho imenso carinho por esse romance. Estou contente com o fato de que ele chega à segunda edição, revista e modificada, este ano.

Como se conjugam – ou se tensionam – a escrita literária, a atividade docente e crítica?

José Luiz Passos: No início, era um problema. Escrevia com medo ou com vergonha, à noite, nos fins de semana, escondido dos meus colegas, dos professores e alunos da universidade onde ensinava. Tive uma depressão, e isso me ajudou bastante. Ficou claro que precisava seguir escrevendo textos que não seriam publicados em revistas acadêmicas; que, talvez, jamais fossem publicados em lugar algum. Mas a escrita deles me trazia um alívio imenso. Só muito depois, quase quinze anos depois, com a carreira acadêmica já trilhada e mais ou menos consolidada, isso deixou de ser um obstáculo. A principal arena de disputa é o tempo. Cada minuto dedicado a tarefas acadêmicas (aulas, pesquisa, reuniões, bancas, comissões, conferências) some das mãos do escritor, cuja relação com o tempo é mais plástica e lúdica. Outro desafio é não deixar que as convicções do scholar e as teorias do professor colonizem a escrita, a ponto de ela se tornar uma vitrine para essas ideias. É preciso ter a coragem de abandonar as ideias corretas, convicções bonitas ou plenamente inteligíveis e mergulhar num poço onde estão situações e pessoas que ainda não conhecemos. E nisto há grande risco.

Ter ganhado o Prêmio Portugal Telecom (hoje Oceanos) com O sonâmbulo amador influenciou na recepção dos seus livros no Brasil? E no exterior, teve alguma repercussão?

José Luiz Passos: Acho que sim. Meu nome passou a ser associado à ficção contemporânea, tanto quanto ou talvez mais do que aos pequenos círculos de estudos machadianos. O prêmio também fez com que o romance fosse reimpresso, e que minha proposta de um terceiro romance com a mesma casa fosse levada a sério. O prêmio foi um fim de semana, após uma semana de trabalho de cinco anos. Os prêmios não tornam as obras melhores ou piores, mas são uma colher de chá para o autor. Em alguns casos, o livro passa a caminhar com pernas próprias. No exterior, a repercussão foi limitada. O sonâmbulo amador saiu em espanhol e deve sair este ano em norueguês. Os editores de língua inglesa ainda acham o romance, com ou sem o prêmio, difícil de ser traduzido.

Você acha que isso de alguma maneira criou expectativas ou angústias na escrita de seu novo livro?

José Luiz Passos: Há as expectativas próprias e as alheias. Entre as alheias está, com maior frequência, a pergunta: “E aí, quando é que vem o próximo?”. Há também, creio eu, a expectativa de que o próximo de alguma maneira continue o projeto (o tom, a forma) do anterior, mesmo que a história seja diferente. E que ele seja “bom”, tão bom quanto o outro etc. Mas a expectativa própria, com a qual me enfrentei, era de outra ordem; era parte de um bloqueio. Passei quatro anos escrevendo O sonâmbulo amador. A vozinha de Jurandir não me saía da cabeça. Foi difícil abraçar outro projeto de longo fôlego e deixar essa vozinha para trás.

Listo as epígrafes dos capítulos de O sonâmbulo amador:

O que nos leva a tentar novamente? uma telefonista / É preciso andar com um pouco de tudo um sorveteiro / O horror, o horror um renegado / Tirar o pó da cara cansa um palhaço

O tempo, o que é o tempo? um padre / Os brutos amam brutalmente um advogado / A sorte é o último fim das coisas um bicheiro / Quase nos reduzimos a simples espíritos um fiel / Bebemos sempre dos mesmos copos uma garçonete. Aforismos, alta filosofia, saber popular? Fale dessa coleção da qual você desloca (ou apaga) o lugar de autoria.

José Luiz Passos: O sonâmbulo amador ocupou várias cadernetas nas quais ia anotando ideias, frases, citações etc. Relendo esse material, percebi que algumas das frases tinham uma força particular, como aquelas pérolas saídas dos para-choques de caminhão. Passei, intencionalmente, a colecionar pouco a pouco uma lista delas. Com exceção das duas que vêm de Joseph Conrad e Santo Agostinho, essas frases são de minha autoria. Quis expressar, em epígrafes a cada capítulo, uma ideia-síntese ou abstração enunciada por uma pessoa comum, num gesto semelhante à situação narrativa do próprio Jurandir, um homem sem educação superior que filosofa e se arrisca numa trilha psicanalítica de autoanálise.

O “Acordar fora de mim” da epígrafe de João Cabral dá mesmo o tom do livro. Como leitora me encantei pelo não-dito, pelo não-mapa do livro, por esse lugar informe, por vezes desconfortável, de estar num monólogo em que a memória, a vivência, o sonho e o trabalho do personagem aparecem misturados. Temos a impressão de estar instalados na mente de Jurandir, perdidos sem um mapa. Como foi encontrar a forma desse romance?

José Luiz Passos: Quando escrevo um texto de prosa mais longo, gosto de me impor certos limites ou desafios. Mais ou menos em 2008 comecei a trabalhar na história de um homem ao mesmo tempo culto e inculto, rural e urbano, soldado e filósofo, um tipo “quadrado”, um tio de todos nós, que, na iminência de se aposentar, passa a prestar mais atenção aos seus sonhos e se dá conta de que não viveu a vida justa que gostaria de ter vivido. A ideia do tema dos sonhos me foi dada pela descoberta de cadernetas e diários em que o meu pai anotava e interpretava os próprios sonhos dez anos antes do meu nascimento. Então me impus o seguinte método. Para que os sonhos de Jurandir não parecessem meras ilustrações dos dilemas vividos no seu dia a dia, decidi primeiro escrever todos os sonhos. Passei mais ou menos oito meses compondo, diariamente, sonhos e memórias desconectados, até ali, de qualquer vivência real do personagem. Quando cheguei a pouco mais de sessenta sonhos, passei a redigir a vida diurna de Jurandir e interpolar os sonhos e memórias que já estavam prontos. O romance exige do leitor mais atenção, mas o resultado, em minha opinião, vale a pena, porque dá a Jurandir um adensamento psicológico maior.

Ao abordar de forma concomitante a trajetória de Floriano Peixoto como vice que se torna presidente e a derrocada do mandato de Dilma Roussef, que é forçada a dar lugar a um vice, em O marechal de costas você obriga a pensar uma janela aberta de um modo em que o passado, o começo de nossa República, se conecta com o agora de uma forma nova. Como os dois perfis, as duas histórias, os dois momentos se conectam pra você?

José Luiz Passos: Vejo nos dois momentos uma situação de grande polarização política e enrijecimento no debate político. O início da nossa democracia (pós-Império) nos foi imposta. A transição pela qual passamos também é fruto de uma perda de tração entre a classe política e o povo que ela representa. Há muito desencanto no ar diante da falta, talvez, de uma visão clara daquilo que pode ser tomado como esquerda ou direita. No embaralhar das coisas, creio que em ambos os momentos houve maior espaço para certo oportunismo político, sem compromisso nenhum com a vontade popular. Comecei a escrever o romance como uma resposta a essas impressões. Não sou historiador nem cientista político. Mas posso imaginar ecos entre os períodos e me divertir com a descontextualização das vozes, dos documentos e dos eventos.

Quando leio esse romance, tenho a impressão de que você trabalhou com uma montagem: escreveu duas histórias e depois produziu uma montagem que fez dialogar uma com a outra. E que são mais que duas histórias (a de Floriano e daquele Brasil + a de Dilma e desse Brasil) também a de migrantes pobres, de famílias influentes de ontem e de hoje. Foi mesmo uma montagem? Como foi o processo de escrita desse romance?

José Luiz Passos: Montagem é a palavra certa. Quis montar um painel, a partir de leituras, vozes, impressões e opiniões desencontradas, presentes nos dois momentos. A primeira ideia para o romance surgiu de um conto chamado “Marinheiro só”, publicado na revista Granta n.13, dedicada ao tema da traição. Ali exploro a história da execução de um marinheiro mulato, pernambucano, à época da Revolta da Armada, no Rio, em 1894. Um dos personagens secundários é Floriano. Meu editor gostou e perguntou se eu não pensava em escrever uma narrativa maior, sobre o período. Eu disse que não. Mas as coisas começaram a acontecer. De 2013 a 2015, a política ocupou o noticiário e a minha imaginação. Eu já havia escrito outro conto, sobre uma cozinheira que passa por dilema trabalhista nos dias de hoje. A ideia de juntar as duas narrativas foi ganhando força. Parei de escrever o romance no qual vinha trabalhando e me dediquei a O marechal de costas.

Como é se pensar um escritor brasileiro que vive há mais de 20 anos nos EUA? Em que medida você se sente também um escritor americano? A questão da identidade na literatura ainda se coloca hoje?

José Luiz Passos: Acho que a questão da identidade se coloca de diferentes maneiras, para diferentes autores, a depender de como cada qual decide dar um sentido ou falar de sua obra. No início foi difícil. Mas, hoje, acho útil a distância que me separa do meu lugar de origem; pelo menos, no que diz respeito à escrita. Pessoalmente, me defino como um autor que escreve em português e reside na Califórnia. Por incrível que pareça, a ideia de Pernambuco ou da Califórnia é para mim mais palpável e inteligível do que a de Brasil ou Estados Unidos. O que me separa, aqui, como autor, é o fato de que escrevo numa língua estrangeira e publico fora do país onde resido. Vejo outras relações entre o Brasil e os EUA, na minha escrita e fora dela, mas isso é matéria para outras – várias – páginas.

Como o seu trabalho é influenciado ou não pela outra língua?

José Luiz Passos: Sinto grande influência do inglês e da literatura que leio em língua inglesa. William Faulkner foi fundamental para a escrita de Nosso grão. A dicção de Jurandir é baseada na do narrador-mordomo de Kazuo Ishiguro, em Vestígios do dia (Remains of the Day). Além disso, creio que a parcimônia com relação às gírias e expressões do momento; a frase mais articulada, menos oral; o uso ostensivo do pronome sujeito são, talvez, sintomas de uma longa convivência com a língua inglesa. Mas pode ser que não; que isso tudo seja apenas um traço estilístico que sempre me acompanhou. Seja como for, acho relevante o fato de serem de língua inglesa mais da metade dos livros que leio por puro prazer, no meu tempo livre.

A literatura brasileira ocupa algum lugar, tem alguma relevância nos EUA hoje? Que literatura interessa por lá?

José Luiz Passos: Ela se restringe quase que exclusivamente ao âmbito universitário, com poucas exceções. O lançamento dos contos completos de Clarice Lispector, traduzidos por Katrina Dodson, que foi minha orientanda de PhD em Berkeley, é um exemplo disso. O projeto de tradução de Clarice, editado por Benjamin Moser e publicado em Nova Iorque pela New Directions, é verdadeiramente excelente, mas não põe a literatura brasileira necessariamente nas prateleiras das livrarias e nas listas dos mais vendidos ou dos prêmios. Raduan Nassar foi recentemente publicado em inglês, após 30 anos! As traduções recentes de Michel Laub e Daniel Galera são excelentes, mas circulam pouco. A música e o audiovisual brasileiro são mais consumidos do que a literatura. E da literatura se espera que ela aborde temas e tipos semelhantes a essas mídias.

Tem algo que você considera essencial dizer aos estudantes de Letras hoje? Aos estudantes da Uerj?

José Luiz Passos: Infelizmente, as Letras vivem um momento de desprestígio institucional e sociocultural. Tenho a impressão de que a crise nas Humanidades, vivida aqui nos Estados Unidos, também se faz presente no Brasil e em Portugal. É importante lembrar a todos que o entendimento e a representação de situações humanas complexas, em toda sua minúcia e contradições, é tarefa da imaginação literária. O letramento literário e a garantia de expressão artística são direitos fundamentais nos campos da educação e da liberdade de expressão. O estudante de Letras vive hoje um período de transição potencialmente rico para a literatura: o surgimento de novas mídias e gêneros, a plataforma digital, o estoque verbal da internet, a circulação global de histórias as mais diversas; isso tudo me anima. Mas também é fundamental que os alunos e os profissionais de Letras resistam ao encantamento da validação fácil, que acompanha a troca apressada de opiniões nas mídias sociais, por exemplo. A literatura oferece uma gama variada de experiências com o tempo, e, entre elas, uma relação marcada pela pausa e pela verticalidade no trato das coisas humanas. Esse tempo de espera e condensação é uma forma de resistência. A imaginação literária é, por definição, uma recusa a satisfazer-se com o que está dado. A todos os alunos, e em particular aos da Uerj – que em tempo recente anda tão ameaçada por desmandos políticos –, faço votos de que sigam lendo e escrevendo com um justo sentido de urgência, como se disso mesmo dependesse o sol de amanhã.


* Ieda Magri é professora adjunta de Teoria Literária na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e autora dos livros Ninguém (7 Letras, 2016), Olhos de Bicho (Rocco, 2013) e Tinha uma coisa aqui (7 Letras, 2007).

Recebido em janeiro de 2017
Aprovado em fevereiro de 2017