Nós, mulheres negras, fazemos parte de um contingente de mulheres, provavelmente majoritário (…). Fazemos parte de um contingente de mulheres que trabalharam, durante séculos, como escravas nas lavouras ou nas ruas, como vendedoras, quituteiras, prostitutas… Mulheres que não entenderam nada quando as feministas disseram que as mulheres deveriam ganhar as ruas e trabalha! Fazemos parte de um contingente de mulheres com identidade de objeto. Ontem, a serviço de frágeis sinhazinhas e de senhores de engenho tarados. Hoje, empregadas domésticas de mulheres liberadas e dondocas, ou de mulatas do tipo exportação. Quando falamos em romper com o mito da rainha do lar, da musa idolatrada dos poetas, de que mulheres estamos falando? (Carneiro, 2003, p. 50)
Por uma nova perspectiva de análise
Ao trazer à tona o racismo no feminismo, o Feminismo Negro vem sendo responsável, nos últimos anos, por uma específica etapa da chamada revisão historiográfica porque intersecciona os conceitos de gênero, raça e classe. Nesse sentido, recentes estudos vêm se dedicando à compreensão do modo de funcionamento das sociedades marcadas pela experiência da escravidão, priorizando análises sobre as vivências e agências de mulheres negras e suas relações com o racismo e o sexismo, fundamentais para pensar a dinâmica da exclusão capitalista (Davis, 2016).
Como resultado do descrito, estão sendo revistas, desde a onda de publicações dedicadas aos estudos sobre a temática iniciada nos idos anos 1970, análises sobre escravidão que não visibilizaram as mulheres, camuflando muitas realidades, destacadamente suas experiências e vivências. No âmbito de uma nova tendência historiográfica cuja violência contra as populações negras na escravidão e pós-abolição tem sido ressaltada, a despeito do convívio com uma literatura moderno-hegemônica-branca, o protagonismo da mulher negra vem sendo tema de diversas pesquisas que escrutinam os mais variados contextos diaspóricos sob várias perspectivas (Xavier, Farias e Gomes, 2012).
O significado das experiências de mulheres negras no trabalho escravo, em contrapartida, tem sido importante para o Feminismo Negro. Fundamentalmente porque possibilitam visualizar condições similares pós-abolição. Donde se conclui que a abolição não significou, de fato, o fim das relações abalizadas na escravidão. Além disso, o contexto chama a atenção para o fato de a negra escravizada ser a primeira categoria de mulher no trabalho fora de casa.
Ainda que haja um legítimo uso político da História – pela introdução de novos temas, fontes e problemas, bem como pelo reconhecimento de novos protagonistas como sujeito das análises históricas –, o sentido do uso de novas ferramentas e de novas perspectivas teóricas e metodológicas para reinterpretar os acontecimentos do passado não é outro senão o de dar maior volume à história das sociedades. Enriquecendo, assim, com novas versões, a chamada história oficial.
Especificamente em relação aos estudos sobre os processos históricos que envolveram as relações entre indivíduos escravizados e os demais membros de sociedades escravistas, as novas interpretações têm tido como resultados análises que alteram principalmente as perspectivas predominantes em diversos trabalhos sobre a temática, por colocar em evidência a insubmissão de populações negras durante a vigência da escravidão e pós-abolição. Em verdade, por colocar em evidência as vivências e experiências de novos sujeitos da História, a tendência teórica que tem origem a partir dessas novas versões são apontadas como marco de movimentos como o antiescravagista e o antirracista que deram origem a movimentos políticos como o feminismo negro, não obstante a inclusão de mulheres brancas nestes movimentos (Davis, 2016, p. 47).
O feminismo, enquanto movimento político cujo principal objetivo é a luta para abolir as desigualdades que as mulheres enfrentam, tem sua historicidade. Estavam entre os principais objetivos políticos das primeiras feministas responsáveis pela primeira “onda” de manifestos, que teria ocorrido no século XIX e início do século XX, certos direitos negados às mulheres filhas do patriarcado, que lhe faziam oposição. Assim, o foco original do feminismo era a promoção da igualdade nos direitos contratuais e de propriedade para homens e mulheres, e na oposição de casamentos arranjados e da propriedade de mulheres casadas (e seus filhos) por seus maridos. Ainda no último quartel do século XIX, o ativismo por parte desse grupo de mulheres passou a focar principalmente na conquista de poder político, especialmente o direito ao sufrágio feminino (Krolkke e Sorensen, 2005, p. 1-23).
Como não eram cidadãs daquela categoria, a agenda de reivindicação de mulheres pobres e negras não consta nas primeiras ondas dos movimentos feministas, que dão demasiado ênfase a experiências de mulheres brancas. A própria historicidade do feminismo, portanto, coloca em xeque as especificidades que o movimento carece de considerar. Mesmo porque a heterogeneidade da categoria “mulher” apenas começou ganhar notoriedade histórica em meio aquela onda já comentada de publicações dedicadas aos estudos sobre a escravidão e, também, sobre as sociedades pós-coloniais iniciada nos anos 1970. Com ela, novos sujeitos ingressam no imaginário acadêmico (Chalhoub e Silva, 2009, p. 13-45).
É no bojo dessas perspectivas que surgem feminismos alternativos que tratam de questões que são percebidas como limitando ou oprimindo outras dimensões da vivência de específicas mulheres, bem como de identidades marginalizadas. Este é o caso do Feminismo Negro. Diversas feministas, destacadamente negras, vêm procurando negociar um espaço dentro da esfera do feminismo para a consideração de subjetividades relacionadas à categoria “raça” (Hall, 2009, p. 66).[1]
A percepção do direito à liberdade como um dos objetivos do ativismo
Historicamente falando, como havia diferença de objetivos no interior da categoria mulher, o não reconhecimento das mulheres negras como sujeito das análises históricas fazia com que suas causas ficassem subsumidas, enfraquecidas mesmo, ante aos desígnios das brancas. Por exemplo, ainda que as mulheres negras, independente de sua situação civil, fossem forças atuantes nos mundos do trabalho ao longo de vários séculos, na França, as mulheres casadas receberam o direito de trabalhar sem a permissão de seu marido apenas em 1965. Reflexões sistematizadas por Sueli Carneiro, conforme destacado na epigrafe deste texto (Carneiro, 2003).
Em se tratando da estrutura do ativismo da mulher negra que a conjuntura do sistema escravista formatou o que prevaleceu foi uma luta por melhorar a condição do cativeiro e, destacadamente, para obter a almejada alforria. Peculiarmente, nos objetivos de melhorias das cativas consta a luta por algum grau de autonomia na produção, pela criação de laços familiares e pela escolha ou aceitação de padrinhos e/ou senhores. Especialmente quanto à alforria, chama a atenção o fato de estudos sobre o tema ter confirmado a prevalecia de manumissões gratuitas e agenciadas pelos próprios escravizados. (Florentino, 2002, p. 9-40; Chalhoub, 1990) Destacadamente nas últimas décadas do período escravista, e em áreas urbanas. Fundamentalmente para o Município Neutro da Corte, nesse que foi o último período de vigência legal da escravidão no Brasil – o recorte dado por este texto –, os números dos censos realizados apontam para um significativo decréscimo no número de cativos, que vinha sendo potencializado nas duas décadas anteriores (Chalhoub,1990, p.148).
Conforme os números dos censos realizados no período, em 1849, havia 110.602 homens e mulheres mantidos sob o regime da escravidão nas freguesias urbanas do Rio de Janeiro. No recenseamento de 1872, foram computados menos da metade. Em verdade, foram contados 48.939 africanos e crioulos escravizados. E, da finalização desse que foi o último censo realizado acusando a presença da categoria até a abolição total da escravidão, o número de alforrias na província do Rio de Janeiro continuou a aumentar de forma expressiva. Segundo Robert Slenes,
Os negros da cidade do Rio nas últimas décadas da escravidão sempre tiveram uma chance mais do que razoável de conseguir a liberdade: nada menos do que 36,1% da população escrava da matrícula de 1872-1873 receberam liberdade até a matrícula de 1886-1887 (Chalhoub, 1990, p. 158).
As pesquisas sobre o tema indicam que essas “chances mais do que razoáveis” foram resultados de específicas negociações. Que foram utilizadas naquele objetivo as mais singulares estratégias: desde um comportamento específico e calculado até ajuizamento de ações visando à liberdade. O significado disso é que, por esses e outros meios, africanas/os e crioulas/os cativas/os procuraram formas de mudar seu estatuto jurídico, elevando-se socialmente à condição de libertas/os. Representam um contingente de homens e de mulheres que não permitiram que suas aspirações fossem frustradas pelas exigências do sistema escravista. Defendendo ser este um comportamento político essencial na reivindicação por direitos, destacando o de liberdade como um dos fundamentais – uma vez que ser escrava/o significava antes de tudo um estatuto jurídico, que se caracterizava por não ter o indivíduo a sua posse – este texto terá como eixo principal à análise de específicas estratégias utilizadas por mulheres negras para a conquista da alforria no perímetro urbano do Rio de Janeiro – o Município Neutro – no período entre 1870 e 1888. Estratégias que configuram, em verdade, um prenúncio da via parlamentar de luta.
Fontes diversas contribuem na análise, mas se dará destaque a ações cíveis de liberdade levadas a cabo por mulheres escravizadas na capital do Império, através de seus curadores. Destacadamente a documentação que chegou à segunda instância de apelação – o Tribunal de Relações – nas décadas de 1870 e 1880. Registros que permitem elucidar diversas estratégias escravas para a conquista da liberdade e, ainda, realizar uma sumária investigação sobre como as mulheres negras aprenderam a extrair das circunstâncias opressoras a força necessária para resistir ao cotidiano da escravidão no seu próprio rescaldo.[2]
Pode-se falar em rescaldo por que o sistema escravista, sobretudo em perímetros urbanos na segunda metade do século XIX, sofrera várias adaptações para atender uma agenda de reivindicações imposta pelos próprios escravizadas/os. O que resultou em maior autonomia dos mesmos no trabalho e até mesmo na possibilidade de alguns homens e mulheres sujeitas/os ao regime morarem por suas contas em cortiços ou casas de cômodos. O que tornava difícil o intenso controle por parte de seus senhores. Analisando um contexto mais alargado, Keila Grinberg argumenta que “o que fazia a diferença na vida de um escravo de qualquer meio urbano das Américas de fins do século XVIII e meados do século XIX era o próprio fato de estar vivendo em uma cidade, tendo acesso a tudo o que a vida urbana proporcionava” (2002, p. 57).
A possibilidade, e oportunidade, de atuar nos mundos de trabalho urbano possibilitou a alguns escravizados uma economia a título de pecúlio para promover a autoindenização. De acordo com a avaliação de Manolo Florentino, a despeito de considerações que argumentam ser a liberdade comprada uma “conquista escrava por excelência”, nas negociações para a manumissão “concorria grande dose de concessão levada a cabo de acordo com as vicissitudes do cálculo senhoril”. No entanto, considerando os ajustamentos do sistema escravista, vale anotar que tal cálculo tinha a ver com a avaliação da possibilidade real de se perder o controle total sobre os escravizados. Daí se observar maleabilidade no trato social da parte de proprietários de escravos que buscavam se adaptar às novas circunstâncias. Diante das circunstâncias, sobressaíram as modalidades de alforrias classificadas como “gratuitas”, “de serviço” ou “condicionais”.
Na escravista sociedade do Município Neutro nos anos 1870 e 1880, o aumento de alforrias gratuitas e de serviço, ou “sob condição”, refletiu estratégias utilizadas tanto pelas/os escravas/os quanto por seus senhores, para conquista e concessão da liberdade, respectivamente. Estratégias mais “políticas”, segundo Florentino. Por exemplo, o predomínio absoluto das alforrias gratuitas, que em verdade, era um panorama observado desde a segunda metade dos anos 40, para o autor
Assinalou a chegada ao auge da “politização” na busca da liberdade. Tratar-se-ia do ápice de um longo processo em que, esquematicamente, a conquista da liberdade deslocou-se da esfera da formação do pecúlio (i. e., do mercado) para a órbita intrínseca da negociação entre o escravo e o seu senhor, sem, contudo, esterilizar por completo a possibilidade de que alguns pudessem comprá-la (Florentino, 2002, p. 20-21).
Dois fatores teriam contribuído, na avaliação de Florentino, para que o ato de alforriar fosse investido de novos sentidos em meados do século XIX.: o preço do escravizado[3], que passou a ser avaliado pelo valor de mercado, verificado no momento da compra, e “a crescente recusa senhorial em aceitar a liberdade mesmo dos escravos que, as duras penas, ofereciam pelo seu resgate o valor corrente de mercado”.
Nesse sentido, se houve um declínio da compra de alforria pelos escravos, ele deve ser pensado dentro do panorama geral vigente em meados do século XIX. Momento em que a questão da reposição da mão-de-obra ensejava estratégias mais “políticas” também por parte de senhores. Modalidades de alforrias como as gratuitas e as de servir, de acordo com um novo ideário da sociedade imperial, permitiria a reprodução dos laços de dependência e que novas políticas de controle fossem instituídas nas relações escravistas. Podiam ter o efeito de transformar ex-escravos em negros libertos, mas fiéis e submissos a seus antigos proprietários.[4]
A vida urbana, entretanto, proporcionava outras coisas, como o acesso a informações. No objetivo de instituir novas políticas de controle social foram elaboradas as leis abolicionistas. Assim, como seus senhores, africanas/os e crioulas/os mantidos em regime de escravidão estiveram atentos às transformações sociais em curso, inclusive as legislativas. Não apenas percebiam o movimento das mudanças da estrutura da conjuntura como atuaram significativamente em todas as etapas em um processo que deslegitimava a anteriormente estabelecida. Interessados em alterar suas condições de vida, perceberam a via judicial como um componente fundamental na luta contra a escravidão e, destacadamente, um instrumento político de limitação da dominação senhoril.
As Ações Civis de Liberdade como instrumento formalizador do direito à liberdade
Entre os anos de 1850 e 1879, cerca de 70 escravos residentes na Corte tiveram seus nomes arrolados, por outrem, como apelantes ou apelados em processos que chegaram tanto à Corte de Apelação como ao Supremo Tribunal de Justiça.[5] Neste texto, será feita uma reflexão a partir da análise do conteúdo de 14 processos envolvendo casos de mulheres negras escravizadas. Constam da amostragem referente àqueles que chegaram ao tribunal de segunda instância de apelação na década de 1870. Trata-se de casos de mulheres escravizadas que apelavam fundamentalmente por seu direito à liberdade.
A maioria dos processos arrolados na amostragem, 23 ações civis ou criminais, tratava-se de ações de liberdade movidas contra aquilo que a/o escravizada/o considerava injusto na relação imposta pelo sistema escravista e que, por isso, via como necessária a intervenção judicial do Estado para forçar seus proprietários, ou seus herdeiros, a concordarem com as adequações que aquele sistema vinha sofrendo. Destacam-se nas ações os casos em que a principal demanda era a recusa dos mesmos em conceder a alforria, em muito dos casos já conquistada por ter sido comprida uma condição pré-determinada ou por ter sido saldado o seu valor aberto a título de indenização.
Ao longo de uma pesquisa realizada no Arquivo Nacional foram localizados os vinte e cinco processos que chegaram a Corte de Apelação. Dois deles, os de Delfina e Júlia, entretanto, não foi possível a localização. Os aqui analisados são aqueles envolvendo mulheres negras escravizadas demandando as suas liberdades.[6] Retrataram experiências de luta vividas por africanas/os e crioulas/os para conquistarem suas alforrias e ingressarem nos mundos dos libertos, galgando, assim, degraus significativos na escala social possível de ser trilhada por aqueles que tiveram a escravidão como experiência de vida. Casos que são os últimos que a documentação tem registrado para os períodos finais da escravidão para as mulheres dessas categorias (ver quadro abaixo).[7]
Quadro Fontes – Referências de processos
Nome da ré | Proc. núm. | caixa | ano | Natureza da ação | Tipo de Apelação |
Francelina | 7633 | 3699 | 1870 | Ação de Liberdade | Contra a reescravização |
Carolina | 12888 | 3682 | 1870 | Ação de Liberdade | Cumprimento de condição |
Geraldina e outras | 7553 | 3691 | 1870 | Ação de Liberdade | Contra a reescravização |
Delfina | 13747 | 3695 | 1871 | Doc. não localizado | |
Eulália | 14181 | 3683 | 1871/72 | Ação de Liberdade | Escravidão injusta |
Efigênia | 14298 | 3687 | 1872 | Ação de Liberdade | Escravidão injusta |
Rosa | 14273 | 3680 | 1872 | Ação de Liberdade | Cumprimento de condição |
Josefa | 14198 | 3693 | 1872 | Ação de Liberdade | Escravidão injusta |
Eva | 14133 | 3686 | 1872 | Ação de Liberdade | Escravidão injusta |
Joaquina | 14149 | 3688 | 1872 | Ação de Liberdade | Escravidão injusta |
Marcelina | 8293 | 3683 | 1873 | Ação de Liberdade | Escravidão injusta |
Rita | 14206 | 3684 | 1872 | Ação de Liberdade | Escravidão injusta |
Francisca | 14652 | 3688 | 1873 | Ação de Liberdade | Direito à autoindenização |
Benta e outras | 2623 | 3689 | 1879 | Ação de Liberdade | Prazo de matrícula |
Fonte: acervo do Arquivo Nacional
É importante ressaltar que, apesar de esses processos chegarem de fato à Corte de Apelação ou ao Supremo Tribunal de Justiça década de 1870, tratam-se de apelações referentes a processos abertos em datas anteriores, que tramitaram por instâncias jurídicas inferiores. O fato em si faz com que as experiências representem um retrato do ápice de negociações. Especialmente porque a mediação do aparato institucional nos acordos envolvendo a alforria despolarizava um processo que podia envolver tão somente proprietário e propriedade.
É verdade que as várias mulheres que recorreram aos tribunais para terem a posse de sua liberdade, no mais dos casos, já a julgava conquistada. Isso por terem cumprido a condição imposta por cláusula testamentária, por força de específicas leis, por terem adquirido o pecúlio necessário à suas indenizações ou mesmo por terem sido submetidos a uma escravidão injusta. A tese defendida aqui é que suas experiências são indícios do modo operante do ativismo de mulheres negras escravizadas em suas lutas pelo direito à liberdade, sobretudo. Informam, ainda, os meandros das negociações necessárias à sua obtenção e algumas das dimensões das relações sociais de uma específica sociedade escravista que, apesar de sua força, tinha que se adequar aos princípios de legalidade que as leis abolicionistas instituíam.[8]
As ações de liberdade
Em uma sociedade escravista, do ponto de vista dos escravizadas/os, o status de livre pode ter sido percebido como um direito a se adquirir. E perseguido mesmo por escravas/os urbanas/os, que gozavam de certa liberdade e autonomia. Afinal, no caso da que se desenvolveu no Brasil, em geral, e no Rio de Janeiro, em particular, as distinções legais entre escravos, libertos e livres estabeleciam uma hierarquia até mesmo entre africanos e afrodescendentes. Aos escravizados não era permitido possuir sobrenome, firmar contratos, dispor de suas vidas, testemunhar contra homens livres, escolher seu trabalho ou empregador. Somente após a lei de 1871, por exemplo, foi-lhes possível firmar legalmente contrato com terceiros.[9]
Quanto às/aos libertas/os, apesar de a primeira Constituição do Imperial, de 1824, classificá-las/os como cidadãs/ãos brasileiros, os indivíduos dessa condição não gozavam das mesmas prerrogativas dos livres. Além disso, havia distinções legais que se somavam a outros tipos de ultrajes decorrentes do tratamento dispensados aos dessas condições jurídicas. No trato social, observava-se uma gradativa intensificação do processo de racialização das relações. O reconhecimento daquelas distinções pode ter funcionado mesmo como estímulo para muitos buscarem galgar degraus sociais. Impulsionando-os a esforçarem-se, até mesmo com sacrifícios, para conquistar sua liberdade e a de seus familiares, com prioridades para as mulheres cujo ventre determinava a condição sociojurídica dos descendentes de escravizados.
Diante da necessidade da intervenção do Estado no poder senhorial, a via judicial se apresentou, pelos exemplos encontrados, como um instrumento com o qual podiam contar não somente aqueles que as “duras penas” teriam conseguido acumular pecúlio, mas, também aqueles que tinham interrompido as negociações de compra por parte de seus proprietários ou de seus herdeiros.[10] Como já destacado, a despeito das transformações sociais que sinalizavam o fim da escravidão, alguns senhores desejavam prolongar o domínio sob sua propriedade ou mesmo tirar vantagens econômicas do esforço de seu cativo para conquistar a liberdade ou para melhorar sua condição social. Foi esse o dilema enfrentado pela crioula Francisca de 36 anos, escrava do senhor Francisco Raimundo Correia, narrado no relato feito por seu curador Graciliano Aristides de Prado Pimentel quando, em 1873, elabora a petição inicial em do processo aberto em sua defesa:
Diz a preta Francisca, por seu curador, que, achando-se depositado por mandato de V. Ex.a, a fim de resgatar a sua liberdade, e tendo depositado em mão de José Patrício de Castro Pereira, a quantia de 600$ para esse fim destinado, requer à V. Ex. a se digne mandar citar ao seu senhor Francisco Raymundo Correia de Faria Sobrinho para vir receber em juízo na primeira audiência a referida quantia e passar carta de liberdade à suplicante ou nomear e aprovar peritos que avaliem a suplicante sob pena de revelia.[11]
A curta narrativa do dilema enfrentado por Francisca, que a impeliu travar uma batalha judicial contra o seu proprietário, possibilita atentar para o fato de que nas últimas décadas em que a escravidão vigorou nem sempre prevalecia o “cálculo senhoril”, como argumentou Manolo Florentino referente a algumas décadas anteriores. A despeito da concessão do proprietário, era uma época em que a via judicial, como outros tipos de atos de resistência, favorecia aos cativos em suas agências pela liberdade.
A leitura do processo informa que o senhor Francisco Raymundo Correia de Faria Sobrinho, o proprietário de Francisca, alegou em juízo tê-la comprada por R$ 1:600$000 (um conto e seiscentos mil-réis) – valor bem mais alto do que o de mercado à época da tentativa de autoindenização de sua escrava – e, segundo os argumentos do curador, pretendia repor esta quantia sem considerar a desvalorização e, também, os anos de exploração nos quais a escrava esteve “arruinando a saúde”. A despeito da vontade do proprietário, Francisca em uma primeira avaliação, tem estipulada sua indenização em R$ 700$000 (setecentos mil-réis). Alegando estar sendo prejudicado, o senhor Francisco consegue que seja feita uma segunda avaliação de preço de sua cativa. Como resultado, o valor da indenização é aumentado para R$ 1:200$000 (um conto e duzentos mil-réis). Dando prosseguindo ao litígio, o curador de Francisca entra com um pedido de reforma desta segunda avaliação alegando ser ela ilegal.
Os bastidores do processo e os argumentos utilizados pelos advogados do senhor Francisco, que levaram os peritos, em uma segunda avaliação, aumentar em quase 80% o valor da indenização de Francisca, são detalhes que escapam ao nosso conhecimento. Mas cabe ressaltar a coragem de uma escravizada ao enfrentar seu proprietário em um tribunal. Afinal, o que estava em jogo no processo era o seu valor no mercado de carne humana. O seu direito à liberdade que Francisca garantiria mediante ao pagamento de um valor acordado. Não pode haver dúvida quanto o interesse dessa mulher nesse processo. Este fato parece ser de conhecimento do proprietário de Francisca que busca tirar o máximo de vantagens do projeto da visão de liberdade de sua escrava.[12]
A documentação colabora para dar visibilidade à dinâmica da relação envolvendo senhores e escravizados naquele período. O resgate do drama enfrentado por Francisca é importante fundamentalmente para destacar que a alforria forçada já era uma prática costumeira nas negociações judiciais por liberdade. Fato que tem relação direta com o texto final da redação da Lei 2040, que reconheceu uma série de direitos dos escravizados. Mas o seu significado é mais amplo, por indicar que os escravizados souberam extrair diversos significados daquela lei. Em verdade, foram bem além de sua intencionalidade para que o texto fosse revestido em conquistas rumo à aquisição da liberdade.
As/os africanas/os e seus descendentes, cativas/os, utilizaram as ações de liberdade, enquanto instrumento legal, como prerrogativa quando da impossibilidade de chegar a um acordo com seus senhores. Em verdade, o caso de Francisca apresenta uma situação limite, quando a via “política” não dava conta das negociações e a ganância dos senhores impulsionava-os até mesmo a burlar leis preestabelecidas no intuito de não conceder a tão almejada alforria a seus escravos. Porém, o que se tem tentado ressaltar é que o que foi recuperado da leitura da documentação, que revela a atuação política pela via legal como uma ação tática daquela mulher negra, pode ser considerado um modelo daquilo que Edoardo Grendi cunhou como “excepcional normal”. Uma experiência que é aparentemente excepcional, mas que se constitui como uma prática comum no cotidiano social.[13]
Foram muitos os cativos que, não tendo conseguido acumular pecúlio para elevar-se á condição de liberto e, atentos às transformações culturais de sua época procuravam meios legais obterem a sua alforria e para que seus descendentes desfrutassem desta condição. Outros casos analisados deram conta de demonstrar essa que parece ter sido uma norma do cotidiano social. A pesquisa documental permitiu trazer a tona experiências como a de Eva, escrava de Antônio Francisco Couto. Tudo leva a crer que, durante sua gestação, a escravizada, atuando em favor da liberdade, conseguiu acumular um pecúlio de R$ 70$000 mil-réis para comprar a alforria da filha que carregava em seu ventre logo após o seu nascimento. Ao nascer, a criança recebeu o nome de Francelina. A ação, calculada, de Eva garantir-lhe-ia a consecução de um projeto familiar: ver livre a sua descendência. Afinal, segundo o que parecem ter sido os seus cálculos, os futuros filhos de sua filha não nasceriam sob o julgo da escravidão.
A parda Francelina nasceu em três de abril de 1860, no Rio de Janeiro. Foi liberta na pia de batismo por sua senhora, D. Joana, em maio do mesmo ano. Entretanto, em 1870 teve sua liberdade contestada pelo senhor Couto, marido de dona Joana, que utilizando como argumento princípios como o de “o parto segue o ventre” e, denunciando o machismo daquela sociedade, o da “incapacidade da mulher”. Consegue, assim, a reescravização da menina. Era outro tempo. Segundo o resultado da apelação proferido pelo juiz responsável pelo julgamento da ação: “não pode a mulher casada conceder liberdade a um escravo do seu casal”. Apesar do argumento do procurador Domingos Custódio de Souza – que a soma auferida com a liberdade da escrava teria servido à subsistência de ambos – em conclusão, o juiz argumentaria que “a tese jurídica, discutida nestes autos é a incapacidade da mulher do recorrido para conceder liberdade a uma escrava do casal”. A pequena Francelina, aos 12 anos de idade, deixa de pode ostentar o estatuto de liberta.
Se naquele tempo, naquela sociedade escravista, os esforços de Eva para obter a soma necessária para ver sua filha Francelina crescer como liberta não foram bem-sucedidos, o fato, em si mesmo, já é significativo. A experiência dessa mulher negra é um indicativo da complexidade das estratégias de lutas por direitos, pela liberdade e por melhoria das condições de vida e de um tipo de ativismo que as/os escravizadas/os protagonizavam no objetivo de defender e proteger direitos duramente conquistados. Um tipo de fenômeno que transcorria até mesmo de forma ascendente e geracional, ou seja, mãe lutando para que seus descendentes tivessem uma experiência de vida em melhores condições que a sua. Vale anotar, no entanto, que, tendo em vista a diversidade de relações sociais possíveis e a complexidade das relações escravistas em áreas urbanas, nem sempre foi este o movimento observado nos processos de aquisição de alforria. Sua conquista era algo que dependia da experiência individual e de circunstâncias específicas.
Uma dessas circunstancia era o caso de ser considerado injusto o preço proposto pelo proprietário quando da oferta de indenização da/o escrava/o de sua propriedade. Era uma prática comum no cotidiano que foi legitimada com as determinações da lei 2040. A partir de sua promulgação, nesses casos, seria instituído arbítrio para avaliar o justo valor a ser negociado na transação de transferência da posse de liberdade. No trato social, antes da lei, uma intervenção desse tipo podia ser feita até mesmo por um delegado de polícia, como se deu no caso envolvendo Francisca Rosa. A senhora de uma escravizada de nome Rufina, reconsiderou e prometeu, na presença da dita autoridade, conceder a alforria de sua escrava pelo valor de um conto e quinhentos, “pedindo tão somente que não demorasse a conclusão do negócio por mais de oito dias”.
O caso foi relatado em um recurso de apelação interposto pai da escravizada, o africano Francisco Diogo, da nação cabinda[14].Provavelmente, percebendo a importância de um ventre livre, após ter conseguido obter sua própria alforria, trabalhou duro para comprar libertar sua filha. Infelizmente o projeto familiar não foi bem-sucedido. O caso foi ajuizado por que proprietária nem mesmo deu atenção ao prazo proposto pelo delegado de polícia. Francisca Rosa, apesar de ter sido chamada a delegacia várias vezes, por se recusar a concluir as negociações, acabou fazendo com o que poderia ser uma rápida negociação se estendesse por muitos anos.
A abertura do processo se deu no ano de 1856. Mesmo ano em que o preto Francisco Diogo, no intuito de negociar a liberdade de sua filha, procurou a senhora Francisca Rosa para que esta “abrisse o preço” para a venda de sua cativa, o valor apresentado foi a quantia de dois contos de réis. Valor considerado abusivo pelo pai da apelada. Em julgamento de primeira instancia, em 1856, Francisco Diogo teve seu pedido deferido. Segundo as autoridades: “Vista do exposto sendo evidente que o suplicante tem legitimo direito de libertar sua filha, visto que a suplicante abriu preço à liberdade prometendo-o positivamente perante pessoas respeitosas”.
No entanto, Francisca Rosa recorre da decisão, saindo vitoriosa em um segundo julgamento em 1859. O resultado que foi contestado por Francisco que diz ser a filha,
Vitima da caprichosa bronca de uma mulher rancorosa, que depois de ter formalmente prometido conceder a alforria de uma sua filha, depois de ter aberto preço, retratou-se por ciúmes que teve de um seu amasio que fora um dos protetores da misera escrava, e a conseqüência de tudo, e que o recorrente depois de ter esgotado todas as suas economias, tudo quanto possuía, tem de ver sua filha voltar a um cativeiro bárbaro, a fim de cevar (?) a vingança por muito tempo comprimida por sua senhora.[15]
Pode ser que pai e filha tenham, de alguma forma, se beneficiado com o entendimento judicial sobre a questão. Uma vez que, em 1869, treze anos após a abertura do processo, o caso continuava sem resultado. É o filho Francisca Rosa, Antônio Gomes Pereira, quem neste ano reivindicava a posse de Rufina.
Se no caso da crioula Francisca, exposto acima, a questão provavelmente envolvia o desejo do seu senhor em lucrar ao conceder a liberdade a sua escrava, o caso da supervalorização do preço da indenização de Rufina envolvia relações pessoais mais complexas. Segundo se verifica na documentação, um dos “protetores” que financiou o valor da pleiteada indenização de Rufina era ou fora amásio de dona Francisca Rosa. Segundo o pai da Crioula Rufina, este teria sido o principal motivo de o processo se arrastar nos tribunais do Império por mais de uma década. É importante ressaltar que mesmo tendo recentes estudos destacado a autonomia e a liberdade de movimentos dos escravos urbanos, Francisco Diogo foi enfático em desqualificar a condição de vida da filha, classificando-a de “mísera” e chamando de “bárbaro o seu cativeiro”. Condições que as/os escravizadas/os tinham por objetivo mudar através de atos individuais e coletivos de resistência diários, que podem ser organizados e entendidos, destacadamente o seu caráter de ativismo, para uma maior compreensão de suas lutas.
Lutas que vêm de longe
Eva e Francisco Diogo não representam casos excepcionais de escravos fluminenses que conseguiram acumular pecúlio. Através de seu senhor, ou de um protetor de melhor condição social, vários escravizados depositaram judicialmente somas auferidas com o seu trabalho no objetivo de se autoindenizar. Só para exemplificar, e voltar às narrativas das experiências de atuação políticas pela via judicial por parte de mulheres negras escravizadas, verificou-se que, em outubro de 1876, quando a Junta Classificadora de Escravos[16] concluía o trabalho de seleção daqueles seriam contemplados para, com os recursos arregimentados, receberem a sua alforria, pelo menos 127 escravos residentes no Município Neutro foram identificado como possuidores de depositário.[17]
Trabalhar por anos para obter o pecúlio necessário para sua própria indenização e/ou a de seus entes queridos foi escolha estratégica daqueles que as circunstâncias assim permitiram. Estratégias mais “políticas”, no entanto, tiveram que adotar aqueles que ou não tinham um ofício, ou não tinham a permissão para andar ao ganho, ou que sofreram qualquer tipo de impedimento de acumular um pecúlio. Estratégia desse tipo seria, por exemplo, se fazer merecedor da concessão da liberdade por parte do proprietário. Como já foi anotado, os modelos de alforrias gratuitas e de servir predominaram em meados do século XIX, destacadamente Corte, o que para Manolo Florentino representou uma etapa mais politizada das negociações entre senhores e escravos. É preciso ainda ressaltar que, em ambos os casos, podia estar em jogo tanto a reprodução das relações escravistas quanto uma possibilidade real de deixar para trás o “misero” cativeiro.
Nos casos de concessão da alforria por condicionalidade, a condição para a liberdade podia ser a de servir por longos anos a um proprietário ou a seus herdeiros. Como se corria o risco de uma eventual impossibilidade de efetivação do acordo, assumir a/o escravizada/a uma postura dócil e obediente até que decorressem os anos estipulados por promessa ou em testamento, era uma escolha estratégica e calculada de muitos cativos. Fazia parte dos cálculos políticos, afinal, foram vários os casos em que se observavam esses projetos serem interrompidos por herdeiros ou tutores, atingidos pela crise econômica da época ou desejosos em ampliar seus lucros, para o que já chamou atenção Sidney Chalhoub. Circunstancias que não frustraram as expectativas de muitos escravizados fluminenses, não colaborou para desistirem de obter a liberdade e melhorar sua condição social, como comprovam os números recenseados.[18]
O caso da crioula Rosa, de 29 anos por ocasião da abertura de seu processo, é um exemplo de uma mulher negra escravizada que obteve a liberdade condicionada a um comportamento dito adequado. E foi exatamente este o argumento apresentado pela cativa ao curador para que ele construísse a narrativa de sua defesa. Em 1872, o processo de Rosa chega à Corte de Apelação. Nele, a apelada reclama por ter sido vendida, pela viúva de seu falecido proprietário, o senhor José Bento, ao senhor João Batista de Oliveira Ferraz. Segundo Rosa, seu falecido proprietário, em seu testamento, teria lhe concedido a liberdade sob a condição de servir a seu sogro enquanto este vivesse. O senhor Bento estabeleceu o seguinte no documento: “Se falecesse em época que seu sogro ainda vivesse, ficariam livres seus escravos com a obrigação de o servir, durante a sua vida, isto no caso de que tais escravos procedam bem”.[19]
Segundo o curador, a “autora sempre procedeu bem, obediente, sossegada, humilde e ativa nos serviços que lhe eram ordenados”, tal qual a exigência do falecido. Uma vez falecido o sogro do senhor Bento e tendo Rosa “procedido bem” em servi-lo enquanto este vivia, considerou a mulher negra que a condição de sua liberdade já estava satisfeita. Supunha que poderia, então, gozar totalmente de sua liberdade. Entretanto, viu-se em meio a uma negociação que envolvia a sua venda e resultaria na continuidade da sua condição de cativa. Rosa, então, muda a sua tática e recorre aos tribunais.
Muito provavelmente o comportamento obediente, sossegado, humilde e ativo na execução dos serviços demonstrado por Rosa ao longo dos últimos anos de vida do sogro do senhor Bento, fazia parte de uma estratégia para a obtenção de sua liberdade e melhoria de condição social. Podendo mesmo ser interpretado como uma prática individual e efetiva de transformação da realidade. Do tipo possível de ser acessado nas circunstâncias em que aquela mulher vivia. Estratégia parcialmente vitoriosa, uma vez que teve ela sancionada a sua liberdade em primeira instância. Infelizmente, o senhor João Batista recorreu. O resultado final deste libelo não foi possível constatar na documentação, mas vale o resgate da forma de luta dessa mulher negra pela causa da liberdade.
“Viver em conformidade” foi também a estratégia da escrava Carolina. Com o falecimento de dona Maria Felizarda do Nascimento, foi ela doada à sua filha Maria Felizarda da Cruz, em 1855. Isso por que teve sua liberdade condicionada a servir a proprietária, a mãe, e a seus donatários – marido, filhos e netos – enquanto esses vivos fossem. O Conhecimento minucioso da cláusula testamentária que narrava a condicionalidade proporcionou a construção do argumento que serviu de base à ação de liberdade movida contra o contestador Felicíssimo Antônio Gomes, em 1870, quando morre sua esposa, a donatária. O que rezava o documento, estabelecido no testamento deixado por Dona Maria Felizarda do Nascimento, sogra do réu, era que a liberdade plena da escravizada Carolina estava condicionada “aos serviços da A., à donatária já referida, e por morte d’esta donatária à seus filhos, e caso não os tenha, ao seu marido, e caso faleçam os donatários, ficaria liberta a A.”[20]
Segundo a autora do processo, a escrava Carolina, a donatária Maria Felizarda da Cruz tivera um filho, de nome Fructoso, e ele teria morrido em idade tenra. A morte imatura do filho da donatária, provavelmente, criou na cativa a expectativa de se ver alforriada ao término do cumprimento da condição relacionada à filha de sua falecida proprietária. Não contava que o marido de Dona Maria Felizarda da Cruz se tornasse um impedimento ao usufruto pleno de sua liberdade. Em contrapartida, o senhor Felicíssimo Antônio Gomes, possivelmente, também não contava que a experiência do cativeiro pudesse ter produzido em Carolina algumas percepções acerca de seus direitos.
Carolina percebeu que as coisas estavam fora do lugar, uma vez que o que ficava definido pelo testamento que os donatários seriam, então, a filha, os netos e o marido da proprietária. Na ação judicial movida, a cativa reivindica não somente o seu direito à liberdade plena, como também indenização, pelos anos que serviu indevidamente ao genro de sua ex-senhora. A questão da rede de sociabilidade que favorecia aos cativos obterem acesso a informações contidas nos testamentos de seus falecidos senhores permanece como um importante tema que envolve rever não somente alguns de seus significados, mas, também, o grau de autonomia e mobilidade das/os cativas/os.
A luta legal pela causa da liberdade
A manutenção do compromisso da concessão da alforria mediante indenização ou por ter a/o escravizada/a comprido a “condição” pré-estabelecida, mesmo em cláusula testamentária, se apresentou como um aspecto de uma luta no âmbito de uma “cultura legal”, que tinha por objetivo a conquista da liberdade pelos próprios escravizados. O conhecimento do conteúdo dos testamentos de seus falecidos senhores foi imprescindível nas batalhas judiciais para forçar supostos donatários ou herdeiros a manter o acordo feito pelo proprietário. Mas é necessário destacar que trabalhar além do necessário para se obter um jornal que excedesse o exigido pelos proprietários, ou em atividades extras – no caso dos escravos ganhadores – que possibilitava acumular um pecúlio, foi sim um dos modos operantes das estratégias utilizadas pelos escravizados urbanos nas últimas décadas de vigência da escravidão para transformar suas condições de vida, de maneira geral. A historiografia sobre o tema é ampla. Porém, foram relacionados para a reflexão proposta com este texto, processos e ações judiciais que tratam de específico ativismo de mulheres negras escravizadas, ou seja, do uso de uma “cultura legal” em suas práticas efetivas de transformação da realidade em que elas viviam.[21]
O texto será concluído com a abordagem de ações judiciais que chegaram à instância de apelação cujas autoras eram mulheres negras exclusivamente exploradas na prostituição. Trata-se da análise de Ações de Liberdade que chegaram aos tribunais do Município Neutro na defesa da liberdade com base no argumento de submissão a uma “escravidão ilegal e infame”. Todos foram abertos a partir do início da década de 1870. Envolviam até mesmo escravas pretas e pardas que se alojavam em casas montadas pelos seus próprios senhores que as obrigavam ao pagamento de uma diária bastante elevada. Aqui trataremos dos casos de sete mulheres negras que aparecem como autoras em processos, cuja referência já foi pontuada, a parda Rita, moradora da rua carioca nº. 103; a preta Efigênia de 24 anos; a parda Joaquina de 25 anos, moradora da rua das violas nº. 91; a crioula Josefa; Marcelina, escrava de José Vás da Costa; Eulália, moradora da rua do Hospício; e a quitandeira Eva.
De acordo com Sidney Chalhoub, as ações judiciais movidas na Corte em favor das negras exploradas na prostituição foram resultadas dos esforços conjuntos de um chefe de polícia e do juiz municipal da Segunda vara municipal de nome Miguel José Tavares. Fizeram no sentido de combater “o imoral escândalo da prostituição escrava”. No entanto, é possível perceber as agências das cativas no processo de construção de suas defesas por seus curadores. O acordo entre as duas autoridades, provavelmente feito com base no Direito Romano segundo o qual o senhor que forçasse a uma escrava a se prostituir era obrigado a libertá-la, se deu em 1871. Entretanto, nos anos 1867 e 1869, dois chefes de polícia – Conselheiro Luiz de Paiva Teixeira e Francisco de Faria Lemos, respectivamente –, teriam tentado criar posturas públicas com o mesmo objetivo: diminuir o contingente de mulheres negras que se prostituíam pelas ruas do Rio. (Macedo Junior, 1869).
Nos processos, os advogados aparecem na condição de curadores. Como curadores, requeriam a remoção de suas curateladas para depósitos particulares ou públicos, onde aguardariam o julgamento da ação sumária de liberdade que era impetrada sob a alegação de má utilização da propriedade privada. Mau uso que rendia considerável lucro. Explorando suas escravas na prostituição os proprietários, em sua maioria mulheres, podiam obter uma renda diária de até quatro mil réis. Antes de se verem envolvidos em diligências judiciárias, muitos senhores libertaram as escravas que possuíam no exercício da prostituição. O que pode ter contribuído para um considerável aumento no número de cartas de alforria registradas nos cartórios da Corte no ano de 1871.
Em 1871 cerca de 200 escravas sexualmente exploradas estavam em litígio através de seus curadores. Todas enfrentaram judicialmente seus proprietários, questionamento o direito de propriedade, afirmando terem eles perdido o direito sob suas pessoas por aquela prática. Por exemplo, o curador da preta Efigênia alegou que a perda de direitos de seu proprietário se dava por infame procedimento, por prática de atos contra a moral e bons costumes. Em defesa de suas curateladas os advogados explicitavam as condições em que eram submetidas. Segundo eles, as escravas eram obrigadas a receber todos e quaisquer tipos de indivíduos. Também declararam que o trabalho causava sérios danos à saúde das cativas, que a atividade era proibida por leis nacionais e internacionais, não podendo uma escrava estar a ela submetida. Que o valor pago era todo entregue aos proprietários. Afirmavam, também, ser a prostituição uma atividade bastante lucrativa.
O processo da parda Joaquina, aberto em 1872, nos permite entrar um pouco no cotidiano de uma destas mulheres. A mulher negra chegou ao Município da Corte vindo da província de Santa Catarina a bordo de um vapor de nome Imperador na condição de escrava de José Bonifácio Caldeiras de Andrade. Foi vendida na Corte à dona Florinda, moradora na rua da Viola nº. 91, que logo se dedicou a explorá-la na prostituição. Mais tarde, Joaquina foi vendida para dona Amélia Carolina Garcia, filha do Conselheiro Thomas Xavier Garcia de Almeida. Enquanto vivia o Conselheiro, a integridade de Joaquina foi preservada. Após a sua morte, provavelmente por estar enfrentando os problemas econômicos do período, sua filha Amélia passa a alugar a escrava à dona Francisca, moradora à rua do regente nº. 24, que também passou a explorá-la sexualmente.
De acordo com a própria Joaquina, cobrava-se aos clientes, por visita, R$ 5$000 (cinco mil-réis). E ela recebia até oito homens, diariamente. O que significava que uma escrava submetida à exploração sexual poderia render ao seu proprietário até R$ 40$000 (quarenta mil-réis) diários, algo em torno de R$ 1200$000 (um conto e duzentos mil-réis) mensais. Importa anotar que, quando entra com processo, exigindo a sua alforria, a mulher negra possuía alguns graus de autonomia sob sua vida. Na qualidade de escrava de ganho, já havia trabalhado no bordel de dona Valquíria Adelaide Belford, que lhe dava alimento e onde conseguia até R$ 50$000 (cinquenta mil réis) diários. Seu bom desempenho pode tê-la favorecido na negociação com sua senhora.
Um acordo entre as duas tornou possível a escrava viver por sua própria conta, pagando um aluguel de trinta mil-réis mensalmente, mais o jornal exigido por sua proprietária, pois ela relata que:
Em março de 1871, dali saíra (do bordel de Dona Valquíria) e foi viver em casa de sua própria conta a rua de São Joaquim nº.49 – o que comunicou a D. Amélia, já então casada com o R. (o réu seria o atual marido de D. Amélia o senhor José Júlio da Silva) e a quem entrega o jornal.[22]
O nome de Joaquina provavelmente figurava entre os, aproximadamente, duzentos processos de liberdade ajuizados nos anos de 1871 e 1872. Foi por ter sido sua primeira ação rumo à aquisição da liberdade frustrada por sua ex-proprietária que seu processo chegou à corte de apelação. Pelo depoimento de Lionídia Rosa de Jesus, uma das testemunhas de defesa arrolada no processo, dona Florinda, primeira proprietária de Joaquina na Corte, só teria vendido a escrava ao saber que ela estava juntando pecúlio para remir-se da escravidão, disse ainda que o dinheiro vinha de donativos de “pessoas que compadeciam de sua sorte”. Dona Florinda, no entanto, apossou-se da soma e vendeu a dita escrava.
Nota-se que, apesar das circunstâncias, a escravizada lutava efetiva e insistentemente para transformar a realidade em que vivia. Apesar da autonomia e da provável melhoria da condição de vida, ter posse de sua liberdade era algo imprescindível para Joaquina. E, atenta à dinâmica do jogo político, viu na iniciativa daquelas autoridades uma possibilidade real de obtê-la, legalmente. Declarou em juízo já possuir o direito a usufruí-la desde que fora explorada sexualmente por dona Florinda, logo que veio província de Santa Catarina para o Rio de Janeiro. Concorria para sua defesa o fato de também estar sendo exposta à exploração sexual por seus proprietários por ocasião da abertura do processo. No entanto, a condição de “explorada” não fica muito clara no caso de Joaquina, as testemunhas arroladas não contribuíram muito para sua defesa. Foram, inclusive, desqualificadas pelo advogado de defesa do réu.
O desfecho do caso de Joaquina será analisado um pouco mais adiante. Mas até onde o seu processo permite recuperar, a escravizada não era “constrangida a deixar que o seu corpo fosse devassado e o seu pudor ultrajado, já por ameaças, já por efetivos castigos”,[23] como fora o caso de da escravizada de nome Josefa. Assim descrita a sua experiência de exploração sexual, esta curatelada, após passar por uma série de “constrangimentos”, foi também arrolada entre as prostitutas da Corte e o advogado designado para ser seu curador entra com uma ação de liberdade. Em 1872, manda citar como réus Caetana Rosa, Manoel Marquês de Carvalho Alvim e Matilde Rita do Nascimento. Todos com efetiva participação na trajetória de exploração sexual daquela mulher negra. A primeira por haver lhe iniciado no exercício da atividade e explorado, por três anos, seu corpo na prostituição, o segundo e a terceira teriam comprado a escrava para submetê-la ao mesmo tipo sujeição. Ainda assim, Josefa extrai das circunstâncias forças para lutar pela sua liberdade.
A preferência sexual de senhores por belas escravas pretas e pardas é tema recorrente na historiografia. Como se pode inferir, explorar economicamente tais mulheres representou um excelente negócio para senhores ávidos de aumentar seus rendimentos. Alternativamente – ou por não ter alternativa –, para algumas cativas, como parece ter sido o caso de Joaquina, a atividade se apresentou como oportunidade para obtenção de melhor condição de vida. Afinal, quando sua proprietária, dona Amélia Carolina Garcia, comunicou à Joaquina a necessidade de empregá-la ao ganho nas ruas do Rio de Janeiro, segundo teria confidenciado à sua amiga Lionídia, a própria cativa teria exposto as dificuldades de atuar como ganhadeira exercendo outras ocupações e teria sugerido ganhar por meio do exercício da prostituição.
A atividade parece ter estado nos cálculos de Joaquina, entendeu que se entregando à prostituição poderia amealhar o suficiente para juntar o pecúlio necessário à autoindenização. Isto ficou evidenciado também no caso de Marcelina, escrava de José Vás da Costa, cujo processo chegou à Corte de Apelação em 1873. A escravizada declarou em juízo que, por cinco anos, vinha empregando-se nesta atividade. Declarou também viver “sob si” e que “para esse efeito recebeu de seu senhor autorização escrita para fazer economias separadas, e até para promover um benefício em seu favor”. O problema foi que “apesar de todos os lucros colhidos nesta torpe indústria não quis o seu senhor conduzi-la a liberdade”.[24]
Marcelina era um sobrevivente ao regime de opressão do escravismo. Vivia com sua mãe, era responsável pelo pagamento de seu próprio aluguel e remetia mensalmente ao senhor José um jornal de R$ 60$000 (sessenta mil-réis). Chegou até mesmo a ser citada nos autos como “chefe de família”. De acordo com os argumentos do advogado de defesa da mulher negra escravizada, a condição de vida da cativa poderia se “nivelada” aos livres da cidade. E para viver como se livre fosse, tinha que se submeter, a contragosto, a uma atividade que classificou como “torpe indústria”.
Entretanto, o círculo do trajeto percorrido pela informação sobre a decisão do delegado de polícia e do juiz da Segunda Vara de promover as ações de liberdade envolvendo as escravas submetidas à prostituição por seus senhores, iniciada a pelo menos dois anos antes da abertura do processo em seu favor, chegou à Marcelina. Como a liberdade estava no horizonte de suas expectativas, a estratégia utilizada por aquela mulher negra naquela conjuntura foi a de também recorrer, em seu próprio favor, “à humanitária providência tomada por esse juiz para arrancar do cativeiro algumas escravas”. Também no seu caso, o pecúlio oferecido ao seu senhor não foi aceito. A via legal da autoindenização não fora bem-sucedida. Apesar da abertura de seu preço pelo proprietário, e de a escrava já possuir pelo menos R$ 400$000 (quatrocentos mil-réis) a título de pecúlio, o senhor Vás se recusou a finalizar a negociação.
Mas foram deverás vários os casos bem-sucedidos. Segundo relatório enviado pelo Chefe de Polícia da Corte ao Ministro da Justiça, somente no ano de 1871 teria sido expedido 186 cartas de alforrias motivadas por haver os proprietários de escravas explorando-as sexualmente.[25] Nessas circunstancias, é bastante plausível que a difusão da decisão judicial em favor das negras escravizadas exploradas na prostituição possa ter, de fato, aberto brechas para algumas escravas tentarem obter suas alforrias acusando indevidamente seus senhores. Foi o que concluiu o juiz que indeferiu a ação de liberdade movida pela suposta quitandeira Eva.
Assim como Marcelina, Eva teria procurado, em 1872, as autoridades judiciais para acusar seu proprietário, o senhor Eduardo Xavier dos Santos Lima, de explorá-la na prostituição pelo menos um ano antes. Segundo sua declaração, ela se prostituía em uma casa da rua Estreita de São Joaquim. Seu proprietário alegou em sua defesa que tinha a negra em ganho lícito, recebendo por dia o “módico jornal de mil duzentos e oitenta réis” proveniente da venda de quitandas e que não era culpado se ela, sem o seu consentimento e em virtude de sua “ninfomania”, se entregava à prostituição. O curador, entretanto, retrucou dizendo ser impossível que o senhor de Eva desconhecesse sua verdadeira atividade. Além disso, a atividade de quitandeira não poderia render o acerto que lhe era pago.
Dessa feita, a balança da justiça pendeu em favor do réu. O juiz em sua sentença considerou que Eva tinha apenas licença para quitandar e que se prostituía sem o conhecimento ou responsabilidade do proprietário. O argumento vencedor foi o produzido pelo advogado de defesa do senhor Eduardo. Ele teria se apresentado em juízo e afirmado que seria o exposto pelo curador teria sido “invento para ver a autora se consegue a liberdade envolta com essas outras que têm sido depositadas”. Segundo ele, seu cliente teria a apelada em “ganho lícito, que provendo trabalho auferindo de seus jornais unicamente quatro patacas (1$286 mil-réis) por dia. Além disso, segundo as testemunhas arroladas, até mesmo para a defesa da autora, a escrava nunca tinha sido vista dedicando-se à prostituição, apenas souberam do fato por terem ouvido a confissão da própria boca de Eva.
Pode não ter sido esse aquele caso, mas explorar as belas cativas em atividade sexual rendia aos senhores uma pequena fortuna que significaria, em pouquíssimo tempo, a quantia suficiente para a compra de uma nova escrava. Considerando que o aluguel de uma escrava variava de R$ 30$000 (trinta mil-réis) a R$ 50$000 (cinquenta mil-réis) mensais, para alguns proprietários, não preocupados com a “moral e os bons costumes”, este tipo de atividade, na qual se podia empregavam sua escravaria feminina, era uma excelente fonte de lucro. Donas de bordéis, como Valquíria Adelaide Belford Silveira, podiam enriquecer com tal atividade. Segundo a preta escrava de nome Efigênia, sua falecida proprietária, Eva Joaquina de Oliveira, tinha cativas pelo menos oito escravas, todas sendo obrigadas a se prostituir.
Algumas donas de bordéis podiam mesmo funcionar como “testa de ferro” de proprietários ambiciosos. De acordo com o processo da parda Eulália, escrava de propriedade do senhor Antônio Pereira Liberato, quando veio da província do Paraná para supostamente ser negociada por Francisco José Pereira Liberato – irmão do proprietário contra quem, indevidamente, é movida a ação de liberdade – teria sido explorada na prostituição no bordel de Dona Corina, uma parda moradora da rua do Hospício. Eulália, no entanto, declarou que a diária de 15$000 mil-réis que obtinha por ser explorada nesta atividade não era destinada à Dona Corina antes, “a uma moça que lá ia buscar”. A “moça” em questão podia ser um membro da alta sociedade fluminense, como dona Amélia Carolina Garcia, filha de um renomado político brasileiro, o Conselheiro Thomas Xavier Garcia de Almeida. Como já anotado, após a morte do pai, ela passou a alugar a negra escrava Joaquina à dona Francisca que a explorava sexualmente. A herdeira do conselheiro pode ter feito parte de uma categoria de mulheres daquela sociedade que, pela pouca habilidade em lidar com um mundo dos negócios eminentemente masculino, e por considerarem mulheres de uma categoria superior, estiveram mais afeitas a encaminhar suas escravas ao ganho através da arte de seduzir. Provavelmente a prática se dava com os seus consentimentos.
Como relatado, quando chamado a depor como réu no processo, o proprietário de Eulália, alegou desconhecer que sua cativa estivesse em uma casa para ser explorada na prostituição. Identificava a casa de Corina como tão somente uma casa para venda de escravos. Assim como dona Francisca, dona Corina e seu estabelecimento poderiam estar colaborando para que pessoas da alta sociedade, como os irmãos Pereira Liberato e dona Amélia Carolina Garcia, pudessem estar aumentando seus lucros explorando o corpo de negras escravizadas, sem o prejuízo de serem vistos como transgressores da “ordem e dos bons costumes”.
E o processo histórico aqui analisado também envolveu a desumanização da mulher negra. Quiçá para que a sua exploração sexual, mesmo por outras mulheres, não entrasse em desacordo com o ideal de feminilidade vigente à época – que procurava destacar o papel da mulher como o de mães protetoras, parceiras e amáveis donas de casa. Um dos chefes de polícia do período, o senhor Francisco de Faria Lemos materializou a ideologia ao dizer em seu relatório que “a escrava posta à janela, não é uma mulher, é uma máquina que se move ao aceno da senhora, que a faz rir para os transeuntes com medo de ameaças das lágrimas de dor do azorrague”. [26] Importa ressaltar que o mesmo deixava transparecer no seu relato a prevalência do elemento feminino nesse tipo de exploração.
Como já destacado, aquela não era apenas uma sociedade com escravo. Era uma sociedade escravista. Como tal, produzia diferentes estruturas de acordo com específicas conjunturas. Assim, nem sempre pardas e pretas donas de bordéis foram apenas “testas de ferro” de conceituados membros da Corte. Em alguns casos explorar sexualmente negras escravas foi estratégia de sobrevivência àquele mundo. Tendo em vista a dinâmica de exclusão capitalista, a performance pode ter sido o caminho encontrado também por mulheres negras alforriadas para extrair das circunstancias opressora de sua vida um arranjo econômico plausível. Por exemplo, no caso da crioula Efigênia, sua falecida proprietária de nome Eva Joaquina de Oliveira era uma preta forra. Na condição de curatelada, Efigênia declarou que a mulher negra tivera a propriedade de pelo menos oito escravas, todas exploradas na prostituição. Na ação que move contra seus herdeiros e o senhor Manoel Furtado de Mendonça – testamenteiro, inventariante e ex-amásio –, afirma que foi comprada pela preta aos catorze anos de idade e explorada na prostituição por pelo menos seis anos.
Difícil saber se a condição racial dos réus interferiu no desfecho do caso da crioula Efigênia. O que temos como fato é que, entre sucessos e fracassos judiciais, pode-se destacar o resultado da sentença que se pode ler no seu processo, que tramitava na Corte de Apelação em 1872, como uma das poucas Ações de Liberdade examinada a constar a imputação dos envolvidos na exploração sexual daquelas mulheres negras. Nela se lê:
Por este procedimento (i.e., o de obrigar a escrava a atos contra a moral e os bons costumes), segundo o direito romano, subsidiário do nosso, perderão os réus o direito sobre a autora, que deve ser declarada livre, sendo eles condenados nas custas.[27]
Considerações finais
A análise sobre o papel e as experiências da mulher negra, destacadamente no trabalho escravo, de fato, tem sido um dos temas essenciais para a compreensão dos modos de funcionamento das sociedades marcadas pela tragédia da escravidão. E tema é caro ao feminismo negro. Ao defender que as mulheres negras são posicionadas dentro das estruturas de poder de maneiras fundamentalmente diferentes das mulheres brancas, o movimento encontra a legitimidade argumentativa em análises históricas como a feita nas páginas anteriores.
Destacadamente, o feminismo negro busca demonstrar que as relações racializadas, produzidas em contextos como aquele em que a escravidão vigorou como sistema que organizava a ordem social, influenciaram diretamente na feminilidade negra. Fundamentalmente por razão de serem as mulheres negras escravizadas percebidas como unidades de trabalho, unidades estas desprovidas de gênero. Mulheres cuja desumanização resultava em que aspectos da existência fossem ofuscados mesmo em análises sobre o trabalho compulsório. Os debates e discussões sobre a promiscuidade sexual obscureciam a situação das mulheres negras durante a escravidão, resultando na invisibilidade de suas agências.
A se permitir acompanhar reflexões como as de Sueli Carneiro a respeito de um provável majoritário contingente de mulher que não constituem parte do mito da rainha do lar, o feminismo negro remonta as vivências de ume grupo específico de mulheres e recuperam os sentidos de suas lutas enquanto sujeitos que, de fato, protagonizaram suas histórias. Conforme sugestões de Angela Davis, a partir desta perspectiva teórica e de específicos procedimentos metodológicos, é possível, então, deslocar olhares viciados sobre o tema do feminismo hegemônico e atribuir centralidade ao papel da mulher negra na luta contra as explorações que se perpetuam no presente.
Quando a documentação permite adentrar mais incisivamente nas redes sociais tecidas mesmos em contextos onde a opressão sobre os corpos femininos negros foi mais intensa, percebe-se que a as donas desses corpos, ou as que tiveram de lutar para que eles fossem seus, não permitiram que suas aspirações fossem frustradas. E quando o próprio sistema produziu oportunidade de corroê-lo, estiveram ali, atentas.
* Lucimar Felisberto dos Santos é pós-doutora pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2015); Doutora em História Social do Brasil pela Universidade Federal da Bahia (2013); Mestra em História pela Universidade Federal Fluminense (2006) e Graduada em História pela Universidade Federal Fluminense (2003). Experiência em pesquisas e estudos sobre História, Historiografia e Relações raciais no Brasil Imperial, com ênfase nas especificidades da história do Rio de Janeiro, escravista e urbano; sobretudo nas mudanças conjunturais ocorridas na virada dos séculos XIX ao XX.
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Notas
[1] Aqui, considera-se uma construção política e social. Seguindo a linha analítica proposta por Stuart Hall, utiliza-se “raça” como uma “categoria discursiva em torno da qual se organiza um sistema de poder socioeconômico, de exploração e exclusão – ou seja, o racismo” (Hall, 2009, p. 69).
[2] Em verdade, a Corte de Apelação do Distrito Federal foi criada posteriormente, em 1890, em substituição ao Tribunal das Relações do Rio de Janeiro estabelecido em 1751. Representou um órgão de Segunda Instância aonde eram julgados recursos dos diversos tribunais civis de todas as províncias brasileiras
[3] Segundo cálculos de Pedro Carvalho de Mello (1984) o preço de um escravo no mercado do Rio de Janeiro variou de R$ 627$000 (seiscentos e vinte e sete mil-réis) em 1835, para aproximadamente R$ 1008$000 (um conto e oito mil-réis) em 1870. Nos anúncios de venda de escravos analisados no Jornal do Commercio, no início da década de 1870, os preços variavam de R$ 300$000 (trezentos mil réis) – um escravo de meia idade – a R$ 1:200$000 (um conto e duzentos mil réis) – no caso de um escravo de 36 anos “acostumado ao serviço de ganho, ou para outros serviços”. O preço de venda dos escravos na década de 1870, seguiu em ritmo ascensional, sendo um cativo vendido, em 1880, por até R$ 1:600$000 – um conto e seiscentos mil-réis.
[4] Refletindo sobre o assunto, Sidney Chalhoub (1999, pp. 96-98) se utiliza da análise do caso do escravo Pancrácio, personagem de uma das obras de Machado de Assis. Utilizando como fio condutor para conduzir sua reflexão a narrativa criada para o personagem pelo literato, comenta as mutações das relações sociais na Corte no período que precedeu a abolição
[5] Em 18 de setembro de 1828, é criado o Supremo Tribunal de Justiça, como órgão de última instância, substituindo o Tribunal da Mesa do Desembargo do Paço, Mesa da Consciência e Ordens e a antiga Casa da Suplicação do Brasil. A Relação do Rio de Janeiro voltou a atuar como órgão de primeira e de segunda instâncias.
[6] A listagem constituiu parte de uma amostra das fontes escritas analisadas para a produção de um capítulo da minha dissertação de Mestrado defendida, em 2006, no Programa de Pós Graduação da Universidade Federal Fluminense (Santos, 2016).
[7] Processos que chegaram à Corte de Apelação, a 2ª vara cível do Município da Corte e fazem parte do acervo do Arquivo Nacional.
[8] Muitas das estratégias levadas a cabos por escravizados entraram para a legalidade após a publicação da Lei de 1871. Por exemplo, a lei, em seu artigo 4.º, regulamentou a prática do pecúlio, obrigando os senhores a concederem liberdade ao escravo que tivesse em sua posse o valor de sua indenização.
[9] Ao se referir Lei de 1871, está tratando-se da chamada Lei do Ventre Livre, também conhecida como “Lei Rio Branco”. Foi uma lei abolicionista, promulgada em 28 de setembro de 1871, assinada pela Regente em exercício, a Princesa Isabel. A principal disposição do instrumento legal foi tornar livres (ou ingênuos – categoria criada com a lei) todos os filhos de mulheres escravas nascidos a partir da data de sua promulgação. Mas a dita lei tinha seus meandros. Teve a função de regulamentar relações de trabalho aos libertos e escravizados, por exemplo. Quanto à criança nascida do “ventre livre”, como seus pais continuariam escravos (a abolição total da escravidão só ocorreu em 1888 com a Lei Áurea), a lei estabelecia duas possibilidades: poderiam ficar aos cuidados dos senhores de sua mãe, servindo-os, até os 21 anos de idade ou entregues ao governo para que o mesmo depusesse de seus serviços. Ao fim e ao cabo, o principal objetivo do instrumento legal foi o de possibilitar a transição, lenta e gradual, no Brasil do sistema de escravidão para o de mão de obra livre
[10] Sobre a flutuação dos preços do cativo, ver Mello, 1984, p. 104.
[11] Processos crimes da Corte de Apelação, 2ª vara cível, processo 14652, cx. 3688, Arquivo Nacional, 1873.
[12] De acordo com os números utilizados por André Boucinhas (2006) em sua dissertação de mestrado para analisar o consumo e comportamento no Rio de Janeiro na Segunda metade do século XIX, os trabalhadores urbanos e artesãos auferiam uma renda média anual de R$ 721$000 (setecentos e vinte e um mil-réis) ou R$ 60$000 (sessenta mil-réis) mensais.
[13] Edoardo Grendi (1977, pp.506-520), no artigo “Micro-analisi e storia sociale”, propôs um paradigma, baseado no oximoro “excepcional normal”. Sua reflexão era em torno da questão do uso das fontes históricas como “testemunhos indiretos”. Chamou a atenção para o fato de que qualquer documento aparentemente excepcional pode resultar, na realidade, “excepcionalmente normal” por, na verdade, revelar fatos comuns à realidade que o pesquisador tem por objetivo se aproximar
[14] Ações de liberdade da Corte de Apelação, 2ª vara cível, processo 7809, cx. 3798. Apelada: Rufina, crioula por seu pai o preto Francisco Diogo, Arquivo Nacional, 1856
[15] Idem.
[16] A Junta foi um órgão veiculado ao Fundo de Emancipação de Escravos, instrumento jurídico instituído pela lei “do ventre livre” que regularizava a lenta e gradual abolição no Brasil. O artigo 4º da lei nº 2.040 tratava sobre a obrigatoriedade de concessão de liberdade aos escravos que apresentassem “seu valor de compra” (Santos, 2009, pp. 18-39).
[17] Junta Classificadora dos Escravos, notação 6-1-39, Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro.
[18] Ver CHALHOUB, Visões da Liberdade, op. cit.
[19] Ações de liberdade da Corte de Apelação, 2ª vara cível, processo 14273, cx. 3680. Apelada: Rosa, Arquivo Nacional, 1872.
[20] Idem
[21] Daí defender Chalhoub que “o texto final da lei de 28 de setembro foi o reconhecimento legal de uma série de direitos que os escravos haviam adquirido pelo costume e a aceitação de alguns objetivos das lutas dos negros” (Chalhoub, 1999, p. 159).
[22] Ações de liberdade da Corte de Apelação, 2ª vara cível, processo 14149, cx. 3688. Apelada: Joaquina, Arquivo Nacional, 1872.
[23] Ações de liberdade da Corte de Apelação, 2ª vara cível, processo 14198, cx. 3693. Apelada: Josefa, Arquivo Nacional, 1872.
[24] Ações de liberdade da Corte de Apelação, 2ª vara cível, processo 8293, cx. 36883. Apelada: Marcelina, Arquivo Nacional, 1873.
[25] Relatório do chefe de Polícia da Corte ao Ministro da Justiça, Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1871.
[26] Relatório do chefe de Polícia da Corte ao Ministro da Justiça, Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1871.
[27] Ações de liberdade da Corte de Apelação, 2ª vara cível, processo 14298, cx. 3687. Apelada: Efigênia, Arquivo Nacional, 1872.