Resumo: Este texto tem como objetivo transportar o conceito de sobrevivência do historiador de arte Aby Warburg (1866-1929) para o espaço literário, em que se valoriza a inserção de formas do passado no presente, por meio da estratégia de rompimento do modelo de temporalidade cronológica, articulado como começo e fim, declínio e progresso. O ato de escrita se configura como ato de leitura da experiência autobiográfica, por meio da transposição ficcional aí processada, o que resulta nos gestos relativos à superação e ao suplemento da vida e à condensação de tempos heterogêneos. Relatos autoficcionais comprovam esse gesto de sobrevivência da vida pelo processo de escrita/leitura.
Palavras-chave: Jacques Derrida; Aby Warburg; arquivo; Silviano Santiago.
Abstract: This text aims to relocate Aby Warburg’s (1866-1929) concept of “survival” into the literary space. The said concept valorizes the insertion of past forms into the present by means of strategies of rupture with the model of chronological temporality, which is predicated on the notion of start and finish, decline and progress. The act of writing is effected as an act of reading of the autobiographical experience by means of the fictional transposition processed therein, which results in the gestures pertaining to superseding and supplementing life and to the condensation of heterogeneous times. Autofictional accounts corroborate this survival gesture of life through this writing/reading process.
Keywords: Jacques Derrida; Aby Warburg; archive; Silviano Santiago.
A grande fantasia (…) é que todos esses papéis, livros ou textos, ou disquetes, já me sobrevivem. Já são testemunhas. Penso o tempo todo nisso, no que virá após a minha morte, quem viria, por exemplo, olhar esse livro que li em 1953 e se perguntará: “Por que ele assinalou isso, colocou uma flecha aqui?” Sou obcecado pela estrutura sobrevivente de cada um desses pedacinhos de papéis, desses traços (Derrida, 2001, p. 31).
Inicio este texto com a citação de Derrida a propósito do rastro de vida e obra deixado nos “pedacinhos de papéis” e nos livros marcados de seu arquivo particular. Trata-se de um recado que assinala sua sobrevivência tanto como leitor quanto como escritor, na esperança de ser lido por gerações futuras que irão revitalizar sua escrita e possibilitar a permanência do traço e da assinatura autoral. Mesmo antes da morte física, o desejo de sobrevivência do escritor diante do legado intelectual já se apresenta como projeto fantasista de perpetuar-se para além da morte. Morte e vida são componentes indissolúveis para o entendimento da sobrevivência, à medida que esta é entendida, segundo Derrida, como sendo “a vida para além da vida, a vida mais do que a vida”. Com esse raciocínio, a dimensão temporal da existência – e do arquivo – rompe com as oposições entre antes e depois, entre vida e morte, pelo aspecto anacrônico conferido às categorias relativas ao passado e ao futuro.
Se, no pensamento de Derrida, o arquivo não trata do passado, mas é questão de futuro, na ação do arquivista em selecionar o que é preciso guardar, corre-se sempre o risco de se estar violentando algo, destruindo o que deveria permanecer arquivado. Nesse sentido, a reconstituição fragmentária do percurso da escrita/leitura do filósofo de seu arquivo não poderá omitir a lição desconstrutora do “mal de arquivo”, a constatação de ser a tarefa infindável, sem limite de tempo e espaço. Como destino, o arquivo se sustenta pela interpretação que lhe propiciará uma sobrevida, por reunir nessa operação o movimento simultâneo de acender/apagar certezas, de ser fiel/infiel às palavras do autor. A própria noção de futuro precisa ser redimensionada no vocabulário de Derrida, à medida que se descarta a divisão temporal entre os períodos, contaminados pela sobrevivência simultânea de passado, presente e futuro. O conceito de devir, instaurado tanto por Derrida quanto por Deleuze e Guattari, responde melhor por esse movimento filosófico no qual “futuro e passado não têm muito sentido; o que conta é o devir-presente: a geografia e não a história, o meio e não o começo nem o fim, a grama que está no meio e que brota no meio, não as árvores que têm um cume e raízes” (Deleuze, Parnet, 2008, p. 33).
O arquivo poderia ser entendido, igualmente, na linha semântica da sobrevivência, como espectral, por se situar entre a vida e a morte, o visível e o invisível, o real e o ficcional. Espectro que se sustenta pelo paradoxo, por se caracterizar além do presente, sempre por vir, sem se prender às instâncias de passado e futuro. Situa-se no limiar do acontecimento, aparecendo e desaparecendo no momento de sua aparição. Nas palavras de Derrida, no livro Espectros de Marx, “Moment spectral, un moment qui n‘appartient plus au temps, si l’on entend sous ce nom l’enchaînement des présents modalisés (présent passé, présent actuel: “maintenant”, présent futur).(…) Furtive et intempestive, l’apparition du spectre n’appartient pas à ce temps là, elle ne donne pas le temps, pas celui-là” (Derrida, 1993, p. 17). Heterogêneo, intempestivo e deslocado em relação ao presente, o tempo do espectro, como da sobrevivência, legitima a existência da leitura como gesto em contínua transformação. Os rastros de Derrida no seu arquivo, a herança legada aos leitores e seguidores de sua obra se constituem como desafio à prática desconstrutora, no sentido de se levar em consideração que no processo de revitalização da escrita exige-se também o deslocamento de saberes instituídos. Cito a passagem de Pensar em não ver, livro de entrevistas feitas com Derrida e publicado pela Editora da UFSC:
Quanto a mim, posso morrer a cada instante, o rastro fica aí. O corte está aí. É uma parte nos dois sentidos do termo: ela procede, ela emana de mim, mas ao mesmo tempo separando-se, cortando-se, desligando-se de mim. (…) O rastro é a definição de sua estrutura, é algo que parte de uma origem mas que logo se separa da origem e resta como rastro na medida em que se separou do rastreamento, da origem rastreadora. É aí que há rastros e há começo de arquivos. Nem todo rastro é um arquivo, mas não há arquivo sem rastro. Portanto, o rastro, isso sempre parte de mim e sempre se separa (Derrida, 2012, p. 120-121).
Percebe-se a associação realizada pelo filósofo entre sobrevivência, rastro e espectro, por constituírem o movimento anacrônico da origem, o ir e vir de acontecimentos que não cessam de deslocar lugares e de incentivar o distanciamento do sujeito perante si próprio. Nesse gesto sobrevivente deixado pelo rastro, o sentido de pós-vida ressurge na sua caracterização espectral, como um fantasma, por mobilizar vida e morte como instâncias inseparáveis. Estanca-se a vida e a morte, num processo simultâneo de sobrevivência, em que se apaga a noção de fim último das formas, assim como se desloca o suposto início dos acontecimentos. Se a vida refere-se ao início, a morte, ao fim, é preciso embaralhar e anacronizar passado e futuro. Palavras, textos, traços desse arquivo exposto à visitação insurgem no presente da leitura efetuada por futuros estudiosos da obra de Derrida. Em resumo, essa proposta de leitura desconstrutora deveria obedecer a determinados princípios inaugurados por uma geração de pensadores que desestabilizaram a compreensão positivista dos saberes e a prisão à ordem sucessiva do tempo. Para Derrida, em particular, a sobrevida corresponde à ideia de se manter, sem vida, num estado de puro suplemento à vida, mas, sobretudo estancar a morte, ação que não a estanca, permitindo, ao contrário, que ela dure: “mais plutôt arrêter le mourir, arrêt qui ne l’arrête pas, le faisant, au contraire, durer.” (Derrida, 1986, p. 152).
Seria ainda pertinente associar o conceito de escrita como morte, desenvolvido por Derrida ao longo de sua reflexão teórica, com o intuito de desfazer essa dicotomia entre vida/morte. Uma homenagem feita por um de seus amigos por ocasião de seu falecimento ressalta essa preocupação em seus escritos, por considerar a morte mola propulsora da própria vida e vive-versa. Não haveria, portanto, razão para celebrar o fim do filósofo, uma vez que sua escrita já anunciava esta ausência como forma de sobrevivência e não de desaparecimento total. Como a escrita, o legado de Derrida funciona como esta meia-presença, comparável ao espectro, à lembrança, ao texto escrito. Nas palavras de Charles Ramond, no texto em homenagem a Derrida, todo texto escrito tem valor testamentário, o que redimensiona a morte para além de sua natureza puramente factual. Na interpretação filosófica, conviver com a morte seria uma forma de relegá-la ao seu lugar de espectro e não de finitude: “En ce sens, tout écrit, comme le dit Derrida, dans La voix et le phénomène, a une valeur testamentaire. Toute la culture est comme un immense testament, tout lecteur est en position d’héritier, et tout auteur à la place d’un mort (Ramond, 2007, p. 88).
Warburg e a sobrevivência das formas
Mais de um século antes da presença de Derrida no gesto desconstrutor da filosofia, Aby Warburg, historiador da cultura e da arte, nascido na Alemanha em 1866 e morto em 1929, em momento importante de proliferação das ideias vanguardistas e revolucionárias – modernidade que se impunha nas várias áreas do conhecimento – recupera o conceito de sobrevivência, o “pós-viver”, entendido como “um ser do passado que não para de sobreviver” (Didi-Huberman, 2013, p. 29).
Como historiador da arte, sua preocupação é menos existencialista e mais metodológica e epistemológica, uma vez que se insurge contra o conceito evolucionista da história, a qual se desloca para a compreensão heterogênea e intervalar dos períodos e das hierarquias culturais. Para Derrida, o conceito de sobrevivência respondia por uma indagação filosófica da existência, ampliando-se para a construção da obra como legado espectral, a partir da ponte entre obra e vida, justapondo morte e vida. Para Warburg, a sobreposição de tempos artísticos e de valores culturais responderia pela construção do arquivo/biblioteca como montagem de livros e de formas distintas.
A reflexão de ambos, no entanto, se apresenta em concordância, no sentido de apontar a importância da concepção de arquivo como sobrevivência e do aspecto anárquico, heterogêneo e fantasmal de saberes que resistem ao tempo e se insurgem, intempestivamente, no nosso presente. Contemporâneo de Nietzsche, Warburg comungou com o filósofo a concepção da arte como potência e força vital, como reflexão sobre o tempo histórico desprovido de seu aspecto positivista e historicista. O intempestivo, em Nietzsche, aproxima-se do conceito de sobrevivência e de devir, por remeter ao ato de agir contra o tempo, levando em conta o gesto de estranheza temporal. O devir não se caracteriza por uma linha contínua e, segundo Didi-Huberman, “precisa, pois, do movimento, da metamorfose: fluxos, refluentes, pretensões sobreviventes, retornos intempestivos” (Didi-Huberman, 2013, p. 29).
É necessário acrescentar que um dos leitores principais de Warburg, o filósofo e historiador da arte Didi-Huberman, desenvolve o conceito de sobrevivência (Nachleben) segundo o trabalho realizado pelo teórico alemão das formas artísticas do Renascimento como revitalização de formas da Antiguidade Clássica. Seu pensamento põe em dúvida a consideração do passado como letra morta, desprovido de força, por estar constantemente emergindo no presente. Os rastros no arquivo de cada época passam a ser citados em momentos distintos, movimento de resistência à noção conservadora de tradição, influência e herança. Rompida a cadeia linear na recepção desses conceitos, elimina-se a certeza de que o que vem depois seria influenciado pelo que veio antes, ou que o progresso cultural dependeria de novas descobertas do presente. A crítica literária há muito tem se desvencilhado dos preconceitos de ordem evolutiva, por não considerar a morte das teorias e seu desaparecimento como condição de seu abandono, desuso ou finitude. Essa posição investe na releitura do presente como meio de apontar o que ainda merece ser reintroduzido como reflexão na contemporaneidade. Torna-se evidente, contudo, a dependência que a academia tem dos manuais escolares com os quais os atuais e futuros professores irão ter de conviver, como a prisão aos estilos de época, a continuidade histórica se instalando como força evolutiva e o emprego da noção de influência como condição de fidelidade a modelos culturais hegemônicos.
A construção do arquivo de Warburg – uma biblioteca com 60 mil volumes e um atlas de imagens intitulado Mnemosyne – contracena com o de Derrida, desta vez por ser dotado, diferentemente, de obras de diversas disciplinas e de conceber um atlas na forma de montagem heterogênea de fotos de peças artísticas e de outra ordem. Se para Derrida, a leitura de seu arquivo pessoal estava vinculada à desconstrução da razão filosófica ocidental, por assinalar a concomitância de vida e morte segundo a proposta existencialista e estética, para Warburg, o interesse seria o legado de uma biblioteca heterogênea e reveladora da visão antropológica/artística de seu proprietário. Em ambos nota-se a preocupação com os deslocamentos dos campos de saber, dos períodos históricos e da ausência de hierarquia dos lugares geográfico-culturais.
Esse raciocínio que incide no gesto de deslocamento é praticado por Warburg em vários sentidos: seja por meio da noção de impureza encontrada nos registros artísticos, indo contra uma “história da arte estetizante”, seja pela montagem de seu arquivo como anarquivo de objetos e materiais que não pertenciam ao cânone estético ocidental. Ao lado de reproduções de fotos de obras da arte, por ex., se expunham em telas de tecido preto selos postais, baixos-relevos antigos, recortes de jornais, moedas com efígies, gravuras, montagem que não obedecia a ordem linear de leitura, por sustentar um espaço híbrido de significação. Mas o principal movimento teórico/vital efetuado por Warburg para o aprimoramento do conceito de deslocamento reside na viagem realizada ao Novo México, nos Estados Unidos, no final do século XIX. Nessa aventura antropológica, o pesquisador se interessa pelo estudo dos índios hopi e dos rituais da serpente entre os índios pueblo. Extrapola, assim, o quadro estetizante da arte e se lança na descoberta de associações entre imagens artísticas da ninfa europeia e da serpente ameríndia, ao condensar a velha Florença com o Novo México. Nessa proposta de construir um determinado saber-montagem, nas palavras de Didi-Huberman, tem-se a abertura para a constituição de um arquivo que aponta as limitações do historiador de arte e acena para as pesquisas pós-colonialistas da atualidade. Essa viagem ao território dos hopi propicia a montagem entre antiguidade, indianidade e cultura popular; embora o pesquisador tenha se pautado pelo encontro de vestígios do Renascimento no universo indígena, recupera sinais de culturas marginalizadas, num gesto de deslocamento do cânone artístico ocidental inaugurado pela cultura europeia.
A experiência da alteridade praticada pelos teóricos os quais desenvolveram as concepções de arquivo cultural encontra no escritor brasileiro Silviano Santiago uma de suas manifestações exemplares. Conhecedor da obra de Derrida, tendo sido o divulgador no Brasil de sua teoria, em várias de seus livros, entre eles, Em liberdade, de 1981, se apropria do conceito de suplemento, ao ficcionalizar o suposto diário do intelectual Graciliano Ramos, ao sair da prisão. Suplemento no sentido de que não pretendeu adicionar à obra de Ramos uma leitura de natureza binária e complementar, mas promover seu descentramento no ato de leitura/escrita. Trata-se de um procedimento que não consiste em adicionar um texto ao outro, mas em suprir sua falta. O conceito de entre-lugar de 1972 será determinante para o entendimento desse espaço intervalar que desloca e movimenta as heranças literárias, revivendo acontecimentos do passado e reintegrando-os ao presente. O crédito do crítico literário a Derrida pela criação do conceito é devidamente afirmado em seus depoimentos, em que conjuga a herança teórica europeia com a lição latino-americana de Borges: “o lugar de observação, de análise, de interpretação não é nem cá nem lá, é um determinado “entre” que tem que ser inventado pelo leitor” (Santiago, 2013, p. 4).
Da obra de Warburg, o escritor brasileiro não tinha conhecimento quando escreveu Viagem ao México, embora convivesse com a obra de Walter Benjamin, herdeiro declarado das teorias anti-historicistas do teórico alemão, principalmente quanto ao desdobramento do conceito de tradução como sobrevida conferida ao original: “Do mesmo modo que as exteriorizações vitais se mantêm intimamente relacionadas com os seres viventes, sem todavia os afetar, a tradução nasce também do original, procedendo neste caso não tanto da vida como antes da “sobrevivência” da obra. Isto porque a tradução é posterior ao original, e, como os tradutores predestinados nunca a encontra na época da sua formação e nascimento, a tradução indica, no caso das obras importantes, a fase em que se prolonga e continua a vida destas” (Benjamin, 2008, p. 27).
Recentemente, em dois artigos publicados no Estado de S. Paulo, no Suplemento Sabático e posteriormente em livro, Aos sábados, pela manhã, Silviano aponta a importância da obra de Warburg para o avanço dos estudos pós-coloniais. Destaca a viagem ao Novo México e recoloca a questão do deslocamento cultural como abertura para reflexões sobre a quebra da hegemonia do pensamento europeu. Não é sem razão que o interesse do escritor brasileiro pelo historiador das artes se justifique pela trajetória ficcional realizada no seu livro sobre Antonin Artaud, em que se ficcionaliza o encontro do ator/autor europeu com a magia dos rituais indígenas do México. O seu descontentamento com o ambiente artístico e intelectual europeu na década de 1930 motiva o encontro com a “terra do sol”, as drogas e o conhecimento de outras realidades até então desconhecidas do continente americano. Pela mediação de um autor francês em viagem à América Hispânica, Silviano ficcionaliza o entre-lugar do escritor latino-americano, à medida que não só escreve o romance/ensaio, como também se insere na narrativa como duplo de Artaud. Ou vice-versa. No artigo citado sobre Warburg, o ensaísta assim se expressa:
Warburg importa o Ocidente clássico para fotografar as imagens sacrificiais da dança da chuva no Novo México e no Arizona. Exporta o Novo México e o Arizona para fotografar as imagens artísticas do ocidente dionisíaco e cristão. O bônus – dado de presente por Michelangelo – é a revista à Renascença florentina. Examina no Museu do Vaticano a escultura grega em que Laoconte e seus dois filhos são estrangulados por serpentes marinhas. (…) Transmite ao leitor efeitos de superposição e de deslocamentos imaginários de imagens. Leiam-se os intervalos. (…) A teoria é o entre-lugar ficcional que reposiciona as imagens do Novo Mundo no ocidente e as deste nas Américas (Santiago, 2013, p. 179-180).
Ao conceito de entre-lugar se justapõe o de intervalo, montagem que aproxima e separa as imagens postas em confronto, formando uma construção compósita feita de associações, deslocamentos e distorções. A “iconologia dos intervalos” em Warburg responde pelo rompimento com a causalidade e a continuidade entre imagens distanciadas no tempo. A posição de Silviano frente à obra de Warburg reside na coincidência em relação ao processo intercultural pautado pelo descentramento e pelo extremo reconhecimento da alteridade. Embora a viagem tenha sido realizada com diferenças – o escritor brasileiro elege um artista francês para chegar ao México, assim como o teórico alemão vai até a América – o diálogo de culturas responde pela defesa de sobrevivência das formas esquecidas e recalcadas. O que o Silviano acrescenta a esse diálogo seria a encenação, pelo romance, da experiência vivida por um europeu em terras do considerado Novo Mundo, com o objetivo de apontar os esquecimentos e desastres provocados pela ação colonizadora.
No intuito de deixar uma reflexão para os leitores deste breve ensaio de sobrevivências, cito uma passagem de Didi-Huberman com vistas a iluminar e servir de ponte para os textos aqui enunciados:
(…) o que sobrevive numa cultura é o mais recalcado, o mais obscuro, o mais longínquo, e o mais tenaz dessa cultura. O mais morto, em certo sentido, por ser o mais enterrado e o mais fantasmático; e igualmente o mais vivo, por ser o mais móvel, o mais próximo, o mais pulsional. É essa, de fato, a estranha dialética da Nachleben (Didi-Huberman, 2013, p. 136).
*Professora emérita da UFMG. Pesquisadora do CNPq. Autora, entre outros livros, de Modernidade toda prosa (em coautoria com Marília Rothier Cardoso), Janelas indiscretas, correspondência entre Mário & Henriqueta (Org.), Crítica cult, Crítica & Coleção (Org. com Wander Melo Miranda) e Sobrevivência e devir da leitura (Org. com Dylia Lysardo Dias e Gustavo Bragança).
Referências
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