dossiê
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FORNICAR E MATAR – O PROBLEMA DO ABORTO

Tradução: Mariana Teixeira**

A poeta e ensaísta argentina Laura Klein
A poeta e ensaísta argentina Laura Klein

Este livro[1], como defesa da legalização do aborto, é uma calamidade: desativa os argumentos para legalizar o aborto como direito humano e repudia – não desautoriza – suas razões. Sob a mesma pauta se congregam distintas lutas cujos objetivos transcendem o do aborto na lei. Porém, confluir em uma medida não significa compartilhar os mesmos valores; certamente sabemos que uma coisa é coincidir em uma reforma jurídica pontual, e outra é comungar com o espírito com todos os aliados nessa conjuntura. E não deveríamos nos confundir. Se, para sermos operativos, me somo a quem diz que o embrião é como intruso ou uma mera célula, todo o sentido da minha luta se perde neste argumento.

Então, em vez de buscar acordos, melhor encontrar e consolidar afinidades. Porque calamidade é acreditar que um acordo consegue determinar um “nós” sem saber se há um nós ou de qual constelação fazemos parte.

Calamidade é confiar que o direito pode resolver as tragédias da vida.

Calamidade é supor que não deve haver dor e que se existe há alguém culpado.

Calamidade é pensar que viver é sempre bom e que morrer é sempre mau ou que seria melhor a vida sem a morte.

Calamidade é sentir que o passar do tempo é uma maldição.

Sartre escreveu no prefácio de Os condenados da terra: este livro é perigoso, não fala a seus inimigos, mas a seus companheiros. Fanon é perigoso: aumenta a distância entre os condenados e seus opressores, quebra esse diálogo sempre repressivo. Muitos dos modos em que se apresentam as defesas do aborto legal não são perigosos: tentam convencer o inimigo, pegá-lo em flagrante contradição, demonstrar sua má fé.

Em 1994, em um programa de televisão, um grupo de profissionais discutia veementemente sobre o aborto. Uns opinavam que era um crime, pois os não nascidos são tão humanos como os nascidos e com igual direito de vida, deste modo não haveria diferença entre abortar e assassinar. Outros replicavam que não é a biologia que outorga valor à vida humana, e que abortar não é equiparável a matar uma pessoa. O debate era áspero, mas com fundamentos; os convidados mostraram um grande lastro de conhecimentos científicos, dados de investigação sociológica e interpretações políticas e éticas.

Em segundo plano, separadas do centro da mesa, algumas mulheres calavam e escutavam. Eram as que iriam testemunhar sobre seus abortos. Elas tinham sido convidadas também para falar, mas não para dizer o que pensavam, senão para testemunhar o que haviam feito. Com o tom da controvérsia já elevado, a apresentadora do programa se dirigiu a essas mulheres e perguntou a elas o que opinavam a respeito do que se estava discutindo. Uma delas respondeu, enquanto as outras assentiam: “Não entendo do que estão falando”.

Não entendo do que estão falando: a frase reflete mais perplexidade do que incompreensão. Essas mulheres se negavam a reduzir sua experiência aos termos com os quais os especialistas pretendiam explicá-la. Para elas o conflito não era definir o ser humano, mas sim decidir se teriam ou não um filho. Cada uma, em distinta circunstância, havia tido relação com um homem, havia engravidado e havia decidido abortar. Os interesses políticos ou as definições da ciência nesse momento ficam eclipsados. É que a experiência de abortar está tão longe do debate de ideias, que as mulheres que abortam não se reconhecem nos termos dessa controvérsia onde uns as acusam de criminosas e outros as perdoam por serem ignorantes. Desse modo, aquelas que poderiam, com a razão que é dada pela experiência, ser chamadas de “especialistas” não são consideradas assim por ninguém nem sequer por elas mesmas.

Pensar o aborto é sempre se mover um uma zona fronteiriça. Se um embrião tem direito a viver ou se uma mulher tem ou não o direito de escolher ser mãe é uma forma de canalizar tematicamente o escuro magma da reprodução sexual e da morte. Não se pode falar ou entender o aborto sem refletir sobre a maternidade. A maioria das mulheres que abortam são ou serão mães, uma altíssima porcentagem delas estão casadas, são de meia idade e já tem filhos. Como dizer então que abortar é a via para ocultar uma sexualidade ilegítima ou para desobrigar a maternidade?

Abortar é uma experiência complexa que tem que ser pensada no singular e seu sentido é ambivalente, inclusive para quem se decidiu por ela. A pergunta pelo sim ou pelo não ao aborto não convida à reflexão. Qualquer resposta deixa de fora a experiência definida pelo conflito entre não querer abortar e não querer ter um filho. Sobre essa problemática, hoje, cada um toma uma posição pessoal e todos nos sentimos – e estamos – autorizados a opinar. Saber de ninguém, matéria para todos, no cruzamento das verdades da moral, da ciência, do direito, da filosofia, abortar nos fala de sexo, de vida e de morte. Legal ou clandestino, abortar significa decidir sobre uma possível vida, não dá-la à luz. É nesse sentido que todos somos sobreviventes do aborto.

Não há ninguém que não teve em sua vida ou próximo um caso de aborto, e teve que se enfrentar, portanto, com a rigidez de suas próprias posições ideológicas e encontrou razões para matizá-las. Histórias e opiniões, produto pessoal da experiência, são falados em casa ou no mercado, mas não são levados ao cenário da opinião pública. As pesquisas de opinião não revelam esses matizes, os excluem pela raiz do interrogatório. Ao perguntar “a favor ou contra?” consideram o aborto uma questão de princípios e não como uma experiência. Em muitos casos, a enorme diferença entre a quantidade de pessoas que realizaram ou participaram de um aborto e as que apoiam sua legalização é interpretada como hipocrisia. No entanto, esse juízo é algo apressado; muito frequentemente essa disparidade se deve ao fato de que cada qual considera o seu próprio caso como excepcional enquanto mantêm para o resto a regra geral. Em tais condições, que os princípios resistam à experiência não diz nada contra os princípios, mas sim contra a experiência.

Se vivemos os acontecimentos de nossas vidas de uma maneira um pouco diferente de como supomos que o fazemos e persistimos em acreditar que coincidimos com nós mesmos ainda que a angústia nos devore a alma, pior para a vida: apropriar-se da própria experiência é mais difícil e doloroso que desprender-se da própria imagem.

Nas últimas décadas, o debate sobre o aborto cresceu: o tema se globalizou em toda a sociedade, se converteu em uma problemática sobre a qual cada um toma uma posição, mas, ao passar para a cena pública, o antagonismo parece passar apenas por um lugar: como conseguir ou impedir que o aborto se legalize.

Você é contra ou a favor do aborto? A pergunta é à queima-roupa e nem sempre queremos responder. É pedido um sim ou não sem voltas. Além disso, essa não é uma pergunta; não há ninguém “a favor” do aborto. Todos estão “contra”, quem o condena se opõe ao aborto legal – e favorece, de fato, sua clandestinidade – e quem defende sua legalização, se opõe ao aborto clandestino. Neste livro chamaremos o primeiro de antiabortista e o segundo de pró-abortista, deixando claro que esta convenção responde à pergunta real do debate: a favor ou contra o aborto legal?

O debate sobre o aborto já não tem a forma clássica de moral sexual, agora está colocado como um conflito entre o direto à vida ou o direito à liberdade. A pergunta crucial, então, parece ser se é possível falar de assassinato, isto é, se existe pessoa desde antes de nascer. Seja qual for a resposta, esse debate se esquiva do centro do problema, o afasta de nós e da experiência. Porque todos conhecemos, ainda que seja de ouvir falar, alguma mulher que abortou, mas muito poucos conhecem alguém que já matou  alguém. Assim mesmo, todos sabemos que, inclusive em países onde abortar é totalmente proibido pela lei, qualquer um consegue o telefone ou o endereço de  alguém que faça um aborto clandestino.  Mas são muito poucos (e estão, sobretudo entre os marginais ou os poderosos), em troca, os que têm a possibilidade de entrar em contato com um assassino de aluguel, um profissional desconhecido, que em troca de dinheiro, está disposto a nos prestar o serviço de matar um inocente.

Tomemos nota, então, ao começar este livro (que não tenta convencer nem desautorizar ninguém, não convida a concordar, mas sim a pensar), destas especiais características que privam o aborto de nossas experiências no mesmo momento em que se propõem a encarar sua discussão.

Perturbações

O aborto é uma matéria moralmente problemática, pastoralmente delicada, legislativamente espinhosa, constitucionalmente insegura, ecumenicamente conflituosa, sanitariamente confusa, humanamente angustiosa, racialmente provocativa, midiaticamente explorada, pessoalmente tendenciosa e amplamente executada.

John Mc Cormick

O aborto se converteu em uma peça chave no xadrez político de muitas nações. Nos Estados Unidos, “a guerra entre os grupos antiabortistas e seus adversários – assevera Ronald Dworkin – é a nova versão americana das terríveis guerras de religião da Europa do século XVII. Os exércitos enfrentados marcham pelas ruas e se aglomeram para protestar nas clínicas onde se praticam abortos, nos tribunais e na Casa Branca, gritando, insultando e odiando uns aos outros. O aborto está lacerando os Estados Unidos” (Dworkin, 1998, p. 312). O aborto é talvez a conduta mais discutida e polêmica do Direito Penal. Em 1973, no caso Roe vs Wade, o mais famoso da história jurídica norte-americana, a Corte Suprema interpôs a Constituição no debate. O caso era o de uma jovem garçonete de Dallas que, não podendo custear os gastos da viagem a outro estado para abortar sem violar a lei, questionou diante do Supremo Tribunal a legislação do Texas que somente permitia o aborto se a vida da mulher estivesse em perigo. A demora do veredicto obrigou a Jane Rose a prosseguir com a gravidez e quando deu a luz entregou à adoção o seu filho. Mas o resultado do seu caso mudou a vida de milhões de mulheres; dois anos depois, a lei era modificada, proibir o aborto foi declarado inconstitucional em todos os estados da União.

Em 1992 o aborto foi um ponto essencial nas plataformas eleitorais de Clinton e Bush. E no ano 2000, o primeiro pacote de medidas tomadas por Bush filho foi retirar os subsídios das fundações que apoiaram esta prática no resto do mundo. Antes da reunificação alemã, o aborto livre era um método comum de controle de natalidade na Alemanha Oriental, enquanto na Ocidental sua prática era mais restrita, e exigia às mulheres a apresentação de um certificado médico que as autorizassem. Depois da queda do muro, esta divergência entorpeceu a tal ponto o processo de reunificação, que se decidiu manter transitoriamente as velhas condições em cada território.

A questão do aborto é uma espécie de fissura nos alinhamentos políticos convencionais, as posições a favor ou contra legalizá-lo excedem o marco de coincidências ideológicas que caracterizam as alianças entre os grupos de direita ou os de esquerda, entre as potências imperialistas e as instituições religiosas. O debate sobre o aborto trava a homogeneidade no seio de cada postura frente à sociedade: ideologias políticas, decisões legislativas, instituições religiosas, movimentos sociais, disciplina científica etc. As tendências de conservadores e liberais se confundem aqui, e dentro de cada partido político existem ácidos desacordos mas também conciliadoras estratégias. Reagan, expressamente a favor da cruzada antiaborto, nomeou em 1981 como juiz do Supremo Tribunal uma mulher, Sandra Day O’Connor, conservadora em outros aspectos, mas decididamente liberal na questão do aborto. Também dentro do bloco comunista se viu a crescente ambiguidade poderosa do aborto. Se a Alemanha Oriental manteve o aborto legalizado até a queda do muro, a Romênia de Ceaucescu o castigou com a morte. Lênin o havia legalizado em 1922 e Stalin voltou a proibi-lo em 1936. Na Argentina, o ditador Videla e o democrata Alfonsín apresentavam posições inversas às esperadas (Villalobos, 1994): o militar era mais flexível na hora de condenar o aborto de uma mulher que engravidou após uma violação – é uma questão de honra – enquanto o político da democracia não tolerava exceções ao direito à vida. As mesmas leis que o proíbem autorizam, segundo a reforma trabalhista de 1999, os empresários a realizar um teste de gravidez antes de contratar uma mulher,que se estiver grávida ficará fora da concorrência no mercado de trabalho.

Os motivos pelos quais o aborto foi proibido ou permitido em distintos países e em distintos momentos são também diversos, quando não contraditórios. Francisco Carrara, o penalista mais importante do século XIX, o tipifica como “delito contra a ordem da família”. Com o mesmo argumento de defesa da família se procedeu a despenalizá-lo em 1934 no Uruguai: reduzir o número de nascimentos significava “no contexto de uma sociedade ameaçada pelo desemprego e pela crise econômica”, proteger a “mulher e a família”. De maneira alguma isto significava sua aceitação moral, segundo afirma o mesmo redator da lei de despenalização uruguaia, o aborto é “um dos atos mais repulsivos, vexatórios e contra a natureza” que se pode cometer; e ainda que não fosse “juridicamente um delito”, o homem que o comete deixa de ser um homem de honra e a mulher se rebaixa ao nível de “uma prostituta” (Goyena, 1937). Na China o aborto legal também não foi uma conquista das liberdades individuais, se impôs frente ao risco de superpopulação um estrito controle de natalidade penalizando as famílias que tivessem mais de um filho, fazendo do aborto não um direito, mas quase uma obrigação.

O “aperfeiçoamento da raça” ou “eugenia” serviu tanto para proibir o aborto em geral como para permiti-lo. Hitler o condenou severamente entre os arianos, mas era indiferente frente ao aborto de judias ou ciganas. O código fascista italiano retirou o aborto dos delitos comuns contra a vida e colocou-o entre os cometidos “contra a integridade e a saúde da espécie”. E ainda que resulte inacreditável, o “aperfeiçoamento da raça” foi na Argentina de 1913 o motivo para excetuar (por meio do Inciso 2 do art. 86 do Código Penal argentino) de penalização os abortos realizados em mulheres com deficiência mental.

Na Argentina tenta-se que a condenação obtenha um fundamento na letra da Constituição Nacional. Os Estados Unidos, ao contrário, obteve sua credencial legal como assunto constitucional. Foi evocando em sua defesa a emenda 14 da Carta Magna que estabelece o direito de todo o indivíduo a sua vida privada, e, portanto ao sexo e à reprodução, que o uso de contraceptivos e a liberdade de escolha entre o aborto e a maternidade foram considerados assuntos privados sobre os quais são os indivíduos e não o Estado os que têm direito de julgar.

Até mesmo no seio da Igreja Católica não há consenso, nem entre teólogos nem entre crentes. Ao longo da história do cristianismo as posturas sobre a imoralidade do aborto sofreram mudanças radicais. Até 1869 o embrião não era considerado vida humana até os 40-90 dias da concepção – quando a alma animava o corpo – e a principal culpa do aborto não consistia em matar, mas sim em fornicar. Hoje o Papa condena o aborto apelando aos direitos humanos e afirma que este respeito pela vida se nota na origem do cristianismo. Por outro lado, o grupo Católicas pelo Direito de Decidir, surgido nos Estados Unidos e que se expandiu por todo o mundo, destaca que a posição do Papa sobre o aborto não constitui “doutrina infalível” na Igreja. Apoiam-se em uma interpretação não sexista dos Evangelhos para mostrar que abortar deve ser uma decisão pessoal e nunca um crime ou pecado em geral.

Ante o caos de opiniões, pede-se à ciência que julgue. Mas nem os cientistas conseguem chegar a um acordo. As disciplinas científicas que rodeiam o aborto – medicina, biologia e genética – apresentam o mesmo campo de conflitos internos. A partir dos conhecimentos mais avançados da embriologia e da genética não se depreende uma posição unívoca a respeito de como se define a vida humana, a “verdade objetiva” parece ser difícil de encontrar a respeito do aborto, ainda que os dados sejam precisos. Frente a essa situação, alguns juízes optaram, às vezes assumindo que são arbitrários e outras se amparando na objetividade da ciência, por uma ou outra posição. Por exemplo, Harry Blackmun, o juiz que presidiu a Corte Suprema dos Estados Unidos quando na sentença de 1973, disse que “o feto não é uma pessoa”. Enquanto que, em uma medida sem precedentes, um fiscal italiano reconheceu a personalidade jurídica de um feto em um processo por indenização de danos e preconceitos. Em cada um de nós se reproduz de alguma maneira esta dissonância.

Em outro nível, muitos que se opõem publicamente ao aborto legal, no seio de sua vida privada aplicam princípios menos contundentes ou absolutamente opostos. Durante a campanha presidencial de 1992 tanto o presidente Bush como o vice-presidente Quayle, havendo expressado suas opiniões contrárias à legalização do aborto em termos mais ortodoxos e duros, disseram que apoiariam sua própria filha ou neta se decidissem abortar. Em 1999, depois de propor ao Sumo Pontífice a ideia de fazer de 25 de março o Dia da Criança por Nascer, Carlos Menem lançou sua campanha parlamentária acusando a oposição de “pró-abortista” e teve que abandonar essa causa quando sua ex-esposa, Zulema Yoma, declarou à imprensa ter sido apoiada e induzida por seu marido a abortar. No outro extremo, Pier Paolo Pasolini, cujas obras e escritos subversivos incentivaram muitos jovens a se oporem à sociedade de consumo e à lógica capitalista de uma moral sexual reguladora e triunfante, resistiu às pressões de seu próprio espectro ideológico com as seguintes afirmações, que valem a pena citar por extenso:

Está no meio da vida humana – falo dessa vida humana, essa individual e concreta vida humana – que nesse momento se encontra no ventre da mãe… Em sonhos e no comportamento de todos os dias – como se passa com todos os homens – vivo minha vida pré-natal, minha feliz imersão nas águas maternas: sei que existia ali. Me limito a dizer isso porque, sobre o aborto, tenho coisas mais urgentes a dizer… É popular estar com os abortistas de modo acrítico e extremista? Não tem nem que dar explicações? Se pode passar por cima de um caso de consciência pessoal que afeta a decisão de fazer ou não fazer vir ao mundo alguém que quer vir (ainda que logo será um pouco mais que nada)? Há que se criar a todo custo o precedente incondicional de um genocídio só porque o status o impõe?… considero que o aborto é uma culpa, mas não moralmente, isto não se pode discutir. Moralmente não condeno nenhuma mulher que recorra ao aborto e nenhum homem que está de acordo com isso. Não trato de fazer nem fiz disso uma questão moral, mas jurídica. A questão moral afeta somente os ‘atores’, é um assunto entre quem aborta, entre quem ajuda a abortar, entre quem está de acordo a abortar com a própria consciência. No que não quero entrar e, se o fiz, escolhi sempre o mal menor, ou seja, o aborto. Ou seja, cometi uma culpa. Na vida, no pragmático, a moralidade é prática, não há mais alternativa… Não há nenhuma boa razão prática que justifique a supressão de um ser humano nem nas primeiras etapas de sua evolução. Sei que em nenhum outro fenômeno da existência há uma vontade essencial de vida tão furiosa e total como no feto. Sua ânsia de exercer sua própria potencialidade, recolhendo nova e fulminantemente a história do gênero humano, tem algo de irresistível e por isso também de absoluto e de alegre. Ainda que logo nasça um imbecil… o aborto é uma culpa ainda que a prática aconselha despenalizá-la” (Pasolini, 1983).

Diz-se que abortar é ruim e em consequência deve proibir-se. Ou se diz o contrário, que se deve legalizá-lo uma vez que nada tem de imoral. Em ambos os casos o conflito fica suprimido. O que diz Pasolini é que o aborto é uma culpa, um homicídio, e que apesar disso ele deve ser legal. Poucos admitem isso? A separação entre moral e direito. O suposto comum é que as leis são – ou deveriam ser – uma medida de moral social, apoiar o bom e condenar o mau e o prêmio significa ausência de castigo. No entanto, todos sabemos que o fato de um ato ser imoral não implica que seja punível. Exemplos sobram: a exploração capitalista com toda a sorte de apoios legais, a traição de um amigo etc. Tampouco legalizar um ato garante sua justificação ética; o foi, então, anistiar a todos os genocidas? Nem todo ato penalizado pela lei resulta necessariamente imoral; Simón Wiesenthal “caçava” nazis, as Mães da Praça de Maio surgiram como tais violando os regulamentos da ditadura militar. Que um ato seja imoral não implica que deva sancionar-se como ilegal: esta é a base do sistema democrático, isso significa liberdade de culto, de opinião e de pensamento. Ainda que a premissa fundamental da democracia diga que o que está mal pode ser legítimo e o que está bem, criminal, o piso social teme e treme. Que um ato não seja imoral tampouco implica em que seja bom. Bom e mau talvez não sejam, ao fim e ao cabo, questões de categoria geral.

Atualmente, o debate se moveu para o terreno dos Direitos Humanos. Mas também estes são ambíguos. Na Argentina se dá por sensato que entram em oposição o direito à vida (do feto) e o direito à liberdade (da mulher). Nos Estados Unidos ou na França se legalizou o aborto pelo direito individual à privacidade ou à livre escolha. Mas onde está proibido, esse mesmo direito se move das mulheres para os embriões e se recicla o conflito a partir da perspectiva da mulher como cidadã e ser moral, entendida como direito à qualidade de vida e à dignidade humana. Aqui é onde o debate sobre o aborto alcança seu paradoxo. Em tal terreno se enfrentam a morte, a vida e a liberdade. Dito de uma maneira mais íntima de enlace, o direito do feto à vida e o direito da mulher à livre escolha sobre sua própria vida. Os reclamos que nos interpelam desde ambos os dramas são justos. O conflito é tão irresolúvel como inesperado. Como compreender que o mesmo fundamento sirva para avalizar proibição e legalização do aborto? Opor-se à imoralidade do inimigo não é se opor ao inimigo.

A esfinge dos direitos humanos

Em geral, os defensores dos direitos humanos são também defensores da legalização do aborto. Esse duplo pertencimento é conflituoso. Contra o aborto legal, se esgrime o descobrimento das qualidades sem dúvida humanas do embrião, como prova concluinte de sua dignidade e se denuncia que o direito a matá-lo legitima a violação do direito à vida. Frente a essa acusação, toda posição a favor do aborto legal se encontra em um conflito: como defender o direito a destruir a vida humana sem impugnar automaticamente o “Não Matarás”.

Lutar por despenalizar o aborto força a enfrentar o ônus de violar o direito à vida. A alguns, isso parece um sofisma, a outros um mal-entendido, a uns terceiros uma carga injusta e infame. No entanto, a simultânea denúncia contra o terrorismo de Estado e contra a opressão das mulheres leva a um dilema autêntico. Não se trata de um obstáculo argumentativo que pode ser resolvido por lógica. Trata-se de um desafio do pensamento, um desafio que implica um tremendo risco político.

Para fazer falar a Esfinge, há que se interrogar a lógica discursiva dos direitos humanos. Em um país como a Argentina isso é difícil. Qualquer tentativa de questioná-los pode ser lida ambiguamente como uma justificativa dos genocidas. Mas sua interrogação é necessária, precisamente, para que os direitos humanos deixem de ser um discurso da derrota. Onde buscar o gérmen que justifica abortar sem violar os direitos humanos? Paradoxalmente, nos mesmos direitos humanos. Mas esse recurso implica compromissos que a experiência do aborto recusa suportar. Os direitos humanos não têm sexo nem idade. Não toleram os matizes que o senso comum reconhece entre perder uma gravidez e perder um filho. Esses princípios não têm “mãe”, são o motor imóvel do Estado. Sob sua mira, ser humano antecede a ser filho, a vida como direito não supõe nem o sexo nem a morte.

Aqueles que desejam fundir em um mesmo nó a liberdade política e a liberdade sexual ficam enredados em argumentos nos quais não acreditam. Lançam mão de categorias liberais como liberdade pessoal, autonomia individual ou vida privada; e por uma espécie de mimetismo de jargões acabam acreditando nelas. Acabam excluindo o corpo, o sexo e a morte, as coordenadas essenciais do aborto, e se veem obrigados a separar o ato de abortar do ato de matar.

A tentativa com frequência se dobra diante da Esfinge, porque apelar aos Direitos Humanos implica dizer que abortar não ataca a vida. Trata-se de persuadir a quem? Não às mulheres que abortam, mas aos que as acusam. Os que defendem a legislação do aborto como direito humano são advogados das mulheres que abortam, não seus aliados. Justificam-nas (como vítimas de uma lei sexista, pouco democrática ou classicista), as representam (elaboram projetos de lei e traduzem a termos políticos experiências que os excedem). Não fazem perigar o sistema, querem ser reconhecidos por ele. E então?


*Laura Klein é poeta e ensaísta argentina. Publicou os livros de poemas A mano alzada, Vida interior de la discordia, Bastardos del pensamiento, La bruta bruz e La comédia de los panes. Em 2016 recebeu o segundo prêmio Ensayo Fondo Nacional de las Artes com o livro Las máscaras de Descartes.

**Mariana Teixeira é mestre em História Social pela UFRJ e doutoranda em Estudos da Literatura na UFF, com pós-graduação em estudos da tradução pela Estácio de Sá.

 

Referências

DWORKIN, Ronald. El dominio de la vida. Una discusión acerca del aborto, la eutanasia y la libertad individual. Barcelona: Ariel, 1998.

GOYENA, José Irureta. Diario de Sesiones de la Cámara de Representantes, Año 1937. Montevideo, Uruguay.

PASOLINI, Pier Paolo. Escritos corsarios. Barcelona: Planeta, 1983.

VILLALOBOS, Enrique Veras. La política del avestruz. Buenos Aires: La Nación, 19/8/1994.

 

Nota

[1] Prefácio de Laura Klein a seu livro Fornicar y matar – el problema del aborto, Buenos Aires: Planeta, 2005; reeditado e ampliado com o título Entre el crimen y el derecho, Buenos Aires: Booket, 2013; La Paz, Bolivia: Plural Editores, 2013. Este artigo faz parte de uma edição que está sendo preparada pela editora Circuito sob o título Tentativas de fuga das prisões binárias, com publicação prevista para maio de 2017.