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Francisco Iglésias e a literatura | Silviano Santiago*

Francisco Iglésias é um rapaz alto, muito magro, que pega sempre o último bonde Horto. Não dança, não fuma, não bebe, não namora. Com vinte e dois anos de idade. Sua letra é quase ilegível. Apesar de sério, como acontece com as pessoas magras, não usa cartolas. Sua elegância vem mais do pensamento maledicente. Mesmo desafinado conhece quase todos os sambas e tangos que pululam pelos bairros. Embora ele anuncie constantemente seu desejo de deixar as montanhas, há alguma coisa na paisagem que nos segreda que ele ficará para sempre aqui. Há uma lenda a seu respeito que vale a pena ser contada: dizem que, manhãzinha ainda, quando vem do subúrbio para lecionar, o Iglésias vem conversando franciscamente [sic] com as aves e frutas (Anônimo, Edifício, número 2, fevereiro, 1946).

A relação de Francisco Iglésias com a literatura não é passageira, nem estritamente profissional ou disciplinar. Não é tampouco acidente tardio na sua vida nem consequência de viés inesperado na sua pesquisa historiográfica. A literatura faz parte da sua formação de historiador, ou, de maneira mais ampla, da sua “educação sentimental”, para retomar o título do famoso romance de Gustave Flaubert. Não terá sido por coincidência que, no ano seguinte ao em que se gradua em História pela Universidade (Federal) de Minas Gerais, em 1946, aproxima-se do grupo de jovens ficcionistas e poetas mineiros que idealiza e publica a revista Edifício, tornando-se presente nas páginas dos seus poucos e sucessivos números.

Com capa de Heitor Coutinho, a revista traz epígrafe ? “E agora José?” ?, tomada de empréstimo ao poema de Carlos Drummond de Andrade. O primeiro número da revista estampa a data de janeiro de 1946. No Índice, os nomes de jovens e promissores talentos estão associados aos de escritores já conhecidos. Citemos alguns: Valdomiro Autran Dourado, Vanessa Neto, Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, Wilson Figueiredo, Jacques do Prado Brandão, Otávio Alvarenga, J. Etiene Filho. O título de uma das colaborações se destaca pelo insólito: “Os pensamentos perigosos”. Autor: Francisco Iglésias. O nome da revista era também óbvia alusão a versos de outro poema de Drummond, “Edifício esplendor”. Ao final deste, podemos ler os seguintes versos: “ ? Que século, meu Deus! Diziam os ratos./ E começavam a roer o edifício.” De Drummond são ainda as palavras que abrem o primeiro número: “Esboço para apresentação de EDIFÍCIO”.

Tomada de um dos mais famosos poemas do itabirano, a epígrafe da revista, “E agora, José?”, constata e enumera as frustrações de uma geração diante do legado que recebem dos mais velhos e, pela interpelação à queima-roupa a cada um dos seus leitores, conclama-o à ação lúcida no presente: “o dia não veio,/ o bonde não veio,/ não veio a utopia/ e tudo acabou/ e tudo fugiu/ e tudo mofou,/ e agora, José?” Mais velhos e mais moços, os leitores do poema são todos artistas e intelectuais sobreviventes dos anos de chumbo do Estado Novo e, como tal, ainda podem caminhar. Insiste o poeta de A rosa do povo, transformando o tom pessimista em abertura para a esperança: “José, para onde?” Caminhos não há, há que inventá-los. Se o desesperançado Mário de Andrade foi o patrono dos jovens da revista Clima (maio de 1941 a novembro de 1944), o esperançoso Carlos Drummond o foi da revista mineira.

Os Josés mineiros, à semelhança do seu homônimo acariocado, tinham saído, na pátria, da repressão e da censura impostas pelo Estado Novo e, lá fora, dos horrores causados pela Segunda Grande Guerra. A luta contra o nazi-fascismo dentro e fora do país foi a tônica da revista. Drummond é o poeta que elegem como salvo-conduto para exercer o trabalho estético e político no difícil e lento processo de redemocratização por que deveria passar a nação. Amaro de Queiroz, tomando assento ao lado dos jovens autores brasileiros presentes na Plataforma da nova geração, conjunto de entrevistas publicadas por Mário Neme em 1945[1], escreve no número 2: “A novíssima geração, ao contrário da modernista, é muito mais política do que estética”. Não é de se estranhar que, no número da revista publicado em fevereiro do mesmo ano, Francisco Iglésias proclame: “Agora não tenho dúvidas em afirmar que foi a leitura dos autores marxistas o que mais me marcou no sentido de orientação”. Aquele “agora” era, ao mesmo tempo, sinal de alívio e afirmação tardia de um pensamento enfim liberto. O “sentido da orientação” no presente, suas leituras, era a resposta que o talentoso licenciado em História dava à indagação do poema e à epígrafe da revista.

Naquele momento histórico, Drummond foi unanimidade nacional. Em resposta à enquete feita por Mário Neme, o então jovem Antonio Candido se entusiasmava: “Carlos Drummond representa essa coisa invejável que é o amadurecimento paralelo aos fatos; o amadurecimento que significa riqueza progressiva, e não redução paulatina a princípios afastados do Tempo. Por isso, Mário [Neme], eu acho que tem mais sentido a maturidade de um homem como Drummond do que o verdor quase sempre desnorteado e não raro faroleiro de todos nós”. Antes afirmara: “Carlos Drummond é um dos homens da ‘outra geração’, da tal que você quer que nós julguemos. No entanto, não há moço algum que possua e realize o sentido do momento como ele” (Neme, 1945, p. 31-32). A lua de mel de Drummond com a esquerda iria terminar durante o 2º Congresso Brasileiro de Escritores, iniciado no dia 12 de outubro de 1947, em Belo Horizonte. Segundo o testemunho do poeta, nas reuniões o “espírito sectário” levou de vencida o “espírito democrático”. Sobre o racha ideológico e a sua opção, informa Drummond em páginas do diário: “Nenhum de nós queria impedir o direito de os comunistas se manterem organizados em Partido e exercendo atividade política renovadora. Mas eles pouco entendiam o nosso ponto de vista, se é que, entendendo-o, preferissem fingir o contrário.”[2]

Diante do quadro sumariamente esquematizado, era de se esperar que Carlos Drummond fosse a figura literária que iria absorver a preocupação do jovem historiador, às voltas com o “sentido” ? para retomar um vocábulo caro a Caio Prado Jr. e aos seus discípulos ? do momento político e social. Basta lembrar poemas como “Nosso tempo”, ou “Os bens e o sangue”, para dar-se conta de que cairiam como a sopa no mel sobre as preocupações confessadas de Francisco Iglésias – a História econômica, a História de Minas Gerais, com algumas incursões na História do Brasil (Iglésias, 1971, p. 11). Possíveis e necessários ensaios sobre o poeta de A rosa do povo dariam continuidade às preocupações mais legítimas do historiador e, indiretamente, aos ensaios selecionados para a sua primeira grande coletânea.

Iglésias opta pela solução de continuidade. Confessa ele em prefácio de História e ideologia: “Não se veja, no caso dos autores [estudados], busca de identificação pessoal: com dois deles, por exemplo, temos mais distância que proximidade [grifo meu] – como se dá com Fernando Pessoa, ou, sobretudo, Jackson de Figueiredo, com os quais, ideologicamente, nada temos a ver” (1971, p. 11). No primeiro caso, sobressaem “o misticismo e o messianismo, modos irracionais, ainda que expressos por um poeta de gênio como Fernando Pessoa”. No segundo caso, “o pensamento reacionário, fruto da falta de sentido histórico – expresso por Jackson de Figueiredo” (1971, p. 14). Os dois autores estudados optam por temas e pela defesa de ideias que contrastam com o abecedário historiográfico marxista do autor e contra ele se chocam.

Francisco Iglésias
Francisco Iglésias

De onde o fascínio pela distância em relação ao objeto? De onde o interesse profundo pela face derrotada da moeda ideológica? Qual a razão para se escrever criticamente sobre o avesso do sentido da história?

A primeira resposta às perguntas foi enunciada, ainda que de maneira imprecisa, pelo próprio historiador. Em dado momento, diz que messianismo e irracionalismo políticos “são momentos para a compreensão do presente”; em outro, acrescenta que o pensamento reacionário de Jackson “exerceria influência em seus dias e mesmo depois” (1971, 14). O gosto pela atualidade, que ecoa em nota pessimista o Drummond do poema “Mãos dadas”[3], é a coordenada comum na resposta dada pelo historiador. Iglésias, no entanto, não tematiza a simpatia entre sujeito e objeto, antes a antipatia, ou seja, o alvo da sua escrita ensaística é a distância, ou seja, um entrelugar entre pontos de vista opostos. As exigências da atualidade se esbatem contra o legado de muitos dos melhores. Iglesias tematiza a memória do arcaico e a diferença, a fim de extrair delas tanto o sumo da dificuldade de análise, quanto as forças para transpor obstáculos concretos e instaurar a racionalidade histórica. A análise do presente em vias de transformação não prescinde do conhecimento e estudo da face derrotada da moeda política e do avesso político progressista. Tese incômoda, sem dúvida, para os simpáticos fogueteiros de plantão e, mais incômoda ainda, para os festivos esquerdistas que seriam legião no pós-64, como tão bem retratou Antônio Callado no romance Bar Don Juan.

Segundo o colega de geração e amigo Jacques do Prado Brandão, no mesmo ano em que Iglésias se insere no grupo Edifício, ele se aproxima do universo acadêmico paulista e nele tenta inserir-se. Por um golpe do acaso transfere-se para São Paulo e passa a trabalhar na prestigiosa Livraria Jaraguá, então de propriedade de Alfredo Mesquita, fundador da Escola de Arte Dramática (EAD). Este, em texto memorialista, lembra os áureos tempos da livraria. Escreve Alfredo: “Durante a longa viagem aos Estados Unidos e à Europa, substituiu-me na direção [da Livraria] o amigo Francisco Iglésias, mineiro, bolsista da USP, posteriormente professor da Universidade de Minas, considerado por um dos seus Reitores como a maior cabeça daquela instituição” (Mesquita, 1979, p. 43). Os melhores amigos paulistas de Iglésias, segundo Jacques, são Antonio Candido, Lourival Gomes Machado e Paulo Emílio Sales Gomes. Trata-se de matéria ainda nebulosa, mas depreendemos das poucas informações que seus novos amigos são escritores, críticos e jovens professores, que fizeram parte da revista Clima.[4] Se a hipótese for verdadeira, teremos de dar conta, na formação intelectual de Iglésias, de outras relações perigosas, para usar adjetivo do seu agrado ? as que ele mantém com os jovens intelectuais e universitários paulistas e o seu ideário político.

Tomemos Antonio Candido como guia, já que antes o fora na compreensão do peso e valor da poesia de Drummond nos dois anos que se seguiram à derrocada da ditadura Vargas. Ele nos vai fornecer valiosa pista para mostrar como um quartel de século depois da formatura e da experiência Edifício, em dois ensaios da coletânea História e ideologia, Iglésias se apega às suas origens pelo viés paulista[5]. Responde Candido a Mário Neme:

Aliás, se você me perguntar qual ‘o’ dever específico de nossa geração, eu não saberei responder. Mas se me perguntar qual poderia ser, no meu modo de sentir, um rumo a seguir pela mocidade intelectual no terreno das ideias, eu lhe responderei, sem hesitar, que a nossa tarefa máxima deveria ser o combate a todas as formas do pensamento reacionário. Nos domínios da inteligência, Mário Neme, a Reação assume os aspectos mais díspares e mais cavilosos. Se insinua por todo canto. E, num trabalho monumental de obstrução, ? tanto mais monumental quanto exercido inconscientemente por muitos intelectuais,? breca em todas as curvas a expansão do progresso humano e da inteligência livre” (Neme, 1945, p. 37, grifos nossos).

Em seguida, Candido declina os três caminhos do pensamento que, no Brasil, são altamente tendenciosos: “as filosofias idealistas, a sociologia cultural e a literatura personalista”. Sobre a segunda, personificada pelas últimas obras de Gilberto Freyre, dirá uma das suas frases de maior efeito político: “aí está um caso em que o método cultural carrega água para o monjolo da Reação” (Neme, 1945, p. 39).

Para finalizar, isolemos o caso Fernando Pessoa (1888-1935) tal como visto por Iglésias. Tentaremos depreender do pioneiro ensaio escrito sobre o programa político do poeta luso uma metodologia de leitura da obra literária pelo historiador Francisco Iglésias.

A originalidade da abordagem do texto literário por Iglésias reside no fato de que, na análise e avaliação do fenômeno artístico, ele inverte os procedimentos tradicionalmente estabelecidos pelos cientistas sociais. O texto propriamente literário ? para nos restringir aos limites deste artigo ? é sempre lido por eles a partir do contexto econômico, social e político que o informa. É difícil encontrar um cientista social que, diante do levantamento e análise de um contexto retrógrado que, numa obra literária, alicerça ideologicamente o drama poético, julgue a esta digna de interesse para os contemporâneos e os pósteros. É dura e contundente ? muitas vezes definitiva ? a avaliação que fazem do autor e da obra. O adjetivo que apõem tanto a um quanto à outra é sempre o de reacionários. Romancistas e poetas de pensamento reacionário são dignos do desprezo da História e de todos.

Iglésias inverte os procedimentos. Ele contextualiza a leitura da História pelo texto literário para salvar a este de intromissão duvidosa. Em lugar de nos levar a concluir que Fernando Pessoa é apenas mais um moderno escritor reacionário, à semelhança do que foi dito e escrito, por exemplo, sobre o poeta Ezra Pound ou o romancista Louis-Ferdinand Céline, afirma que é ele “o maior poeta da língua portuguesa”. Ao inverter os procedimentos clássicos dos cientistas sociais, Iglésias pode ser impiedoso, e o é, na análise do reacionarismo de Fernando Pessoa sem, no entanto, arranhar ainda que de leve a alta qualidade da sua poesia[6]. A fim de operar a inversão metodológica, Iglésias assume, num primeiro momento, restrições que devem ser interpretadas com certo cuidado. A primeira restrição aparece sob a forma de exclusão. Diz ele que não vai abordar a poesia de Fernando Pessoa; tratará, antes, do seu pensamento político, ou melhor, corrige-se ele, vai tratar dos “estudos e anotações de natureza política que deixou ou [das] atitudes políticas que assumiu” (Iglésias, 1971, p. 236. Também p. 245 e p. 290)[7]. A segunda restrição aparece sob a forma de limite disciplinar. Diz ele que, diante da complexa e multifacetada obra de Fernando Pessoa, não trabalhará como crítico literário, mas como “estudioso da história das ideias”.

Ambas as restrições são em parte verdadeiras e em parte falsas, mas fazem parte de uma sofisticada estratégia de leitura do texto literário por um historiador. Tanto é verdade que as duas restrições não são totalmente verdadeiras, que começa a análise do seu objeto pela famosa heteronímia do grande poeta cuja origem, como se sabe, é de fundo histero-neurastênico. Iglésias afirma com tranquilidade que iniciará o seu estudo sobre o pensamento político de Pessoa por abordar a questão de maneira paradoxal, ou seja, pelo modo como o poeta encontrou na multiplicidade dos nomes a sua unidade. É, pois, pelo viés inusitado da produção literária que começa a “explicar as ideias e posições políticas” do pensador português. Em página posterior consignará de maneira definitiva o modo como encara a identidade do poeta: “Em vez de significar limitação – a falta do encontro da Unidade –, traduz riqueza – a multiplicidade coerente e autêntica. Na divisão é que [Fernando Pessoa] se encontrou e se afirmou” (1971, p. 242-3).

Antes de pôr as ideias políticas reacionárias de Pessoa contra a parede, Iglésias analisa a questão dos heterônimos, valendo-se da melhor bibliografia então à disposição do historiador. Dessa forma, pôde o historiador estabelecer com toda clareza o princípio da contradição entre discursos dogmáticos como traço fundamental para explicitar o contraste irremediável que existe entre os valores estéticos do discurso poético e os valores ideológicos do discurso político. São duas entidades discursivas que não se casam na obra de Fernando Pessoa e, pelo tom de cada uma delas, guardam autonomia ao mesmo tempo que se afirmam pela contradição[8]. A avaliação delas pelo historiador virá posteriormente. Aproveitando-se da famosa dicotomia estabelecida por Oscar Wilde, Iglésias concluirá que o gênio de Pessoa está na obra poética, já o talento e certa originalidade, no desenvolvimento das ideias sociais (1971, p. 246). Cita Iglésias trecho de carta que o poeta escreveu a Miguel Torga: “Nunca sou dogmático, porque o não pode ser quem de dia para dia muda de opinião […]”, para em seguida comentar: isso não impede que “o tom dogmático seja o que mais frequentemente usa, na prosa e até na poesia” (1971, p. 238)[9].

De posse desses dados conflituosos e com a ajuda de confissões do poeta e de leituras próprias, Iglésias desce ao profundo da crise existencial do autor moderno, cujas raízes se encontram em Shakespeare e ganham viço em poetas como Antero de Quental, cujo “mal era a histeria”, ou em prosadores como o suíço Amiel, que consignou em diário as tramas que “a impotência da vontade” maquina. A Amiel Pessoa dedicará significativo poema, onde se lê: “Inúteis dias que consumo lento/ No esforço de pensar na ação”. Interessava-lhe o político, mas não a vida partidária (1971, p. 252). Importante notar que, se no plano literário a “ansiedade de influência”, de acordo com a fórmula de Harold Bloom, é enorme, já no plano dos escritos econômicos, constata Iglésias, “não há citações ou apelos à autoridade de quem quer que seja” (1971, p. 266). “Meus autores, minhas autoridades”, afirmou Norman O. Brown. Sem autores citados, sem autoridades, o discurso político de Fernando Pessoa é autofágico. O mesmo não acontece com o discurso poético, que se apoia numa erudição monstruosa do legado lírico ocidental.

Antes de ser portanto matéria de importância, antes de ser explicitação do contexto para a leitura dos textos poéticos de Fernando Pessoa, o levantamento feito por Francisco Iglésias extrapola o leito propriamente literário que o torna sedutor e abre as comportas da interpretação para a visualização de um fim mais meritório. A análise do contexto econômico, político e social conduz a ele, historiador, e a nós, leitores, ao melhor conhecimento da cultura em que se inserem Fernando Pessoa e a sua obra poética. Fecha-se o círculo hermenêutico sem se que ofenda o brilho literário, embora grande parte da produção discursiva de Fernando Pessoa tenha sido posta à mostra e explicada pelo historiador das ideias[10]. Fernando Pessoa nada mais seria do que um exemplo a mais na longa história da decadência econômica, política e social portuguesa. Escreve Iglésias: “A nação [portuguesa], que teve a sua plenitude no século XV, quando foi pioneira no mundo, mostrando os mais largos caminhos, não se preparou para aproveitar o que conquistara, não se adequou à nova realidade, mantendo-se presa a velhos padrões; regrediu mesmo, como assinalam os seus melhores intérpretes” (1971, p. 292). E continua: “Portugal e Espanha é que mais contribuíram para construir a riqueza do período conhecido por Mercantilismo, mas não tiraram da situação criada o devido proveito, que foi para outros – notadamente a Inglaterra e os Países Baixos. É esse um dos momentos e fatos mais importantes da História Moderna” (1971, p. 292).

Diante de tal realidade, é compreensível “o saudosismo [do poeta], como é explicável até que se apresentem doutrinas salvadoras fundadas em mitos, que têm acolhida pelo povo e são elaboradas por intelectuais” (1971, p. 293, grifo nosso). O reacionarismo do intelectual, transparente nas formas como elabora doutrinas salvadoras para a nação lusa, antes de ser motivo para a explicação e avaliação da sua obra poética é razão para o historiador investigar e denunciar o contexto retrógrado que paradoxalmente tornou possível aquela vida e aquela obra. Historiador brasileiro e pensadores portugueses se entregariam à mesma tarefa intelectual no plano ideológico: a de “desmistificar – e desmitificar – seu presente e sua História, dando-lhe acento de racionalidade, mas o êxito [da tarefa] ainda não foi obtido”. Daí o retorno à questão do pensamento reacionário em 1971, questão que ainda nos incomoda nos anos 2000, brecando a expansão do progresso humano e da inteligência livre, para retomar as palavras de Candido.

Iglésias nos diz que o discurso poético e o das ciências sociais coexistem como discursos dogmáticos em Fernando Pessoa, mas não se situam no mesmo plano. São autônomos e vivem separados. A obra poética não é a causa do reacionarismo, é antes a consequência acidental dos condicionamentos econômicos e sócio-políticos. Iglésias reconhece, como assinalamos, o valor do primeiro discurso pela alta voltagem lírico-sentimental que o poeta conseguiu imprimir aos versos. Quanto às ideias de Fernando Pessoa sobre as ciências sociais, elas “pouco ou nada representam. Se não chegam a existir para a ciência social, também não contam para Fernando Pessoa enquanto autor – a não ser no aspecto de esclarecimento de sua posição ante problemas sociais. Não lhe enriquecem a obra criadora, mas, para os que amam a sua poesia e se interessam por sua personalidade, a leitura é feita com paixão” (1971, p. 272). Fascínio pela distância, interesse pela face vencida da moeda ideológica e razão para escrever criticamente o avesso do sentido da História encontram o seu fundamento no amor do historiador pela extraordinária obra poética de Fernando Pessoa.

Como um poeta tão extraordinário pode ser tão reacionário nos seus escritos políticos? Eis o enigma Fernando Pessoa, que só um historiador apaixonado pela literatura pode começar a deslindar.

Alguns dos antigos integrantes da revista Edifício com o autor do artigo: sentados, Wilson Figueiredo, Autran Dourado e Jacques do Prado Brandão; de pé, Silviano Santiago
Alguns dos antigos integrantes da revista Edifício com o autor do artigo: sentados, Wilson Figueiredo, Autran Dourado e Jacques do Prado Brandão; de pé, Silviano Santiago

* Silviano Santiago (1936) é professor, romancista e crítico literário. Foi três vezes vencedor do Jabuti – com Em liberdade (romance, 1982), Uma história de família (romance, 1993) e Keith Jarrett no Blue Note (contos, 1997). Seu romance mais recente, Heranças, recebeu o Prêmio ABL de Ficção 2009. A coleção de ensaios O cosmopolitismo do pobre (2005) recebeu o prêmio Mário de Andrade da Biblioteca Nacional. É professor emérito da Universidade Federal Fluminense e escreve nos principais veículos da imprensa brasileira. Em 2013 lançou Aos sábados pela manhã, coleção das colunas publicadas em O Estado de São Paulo, recebeu o Prêmio Machado de Assis pelo conjunto da obra, dado pela Academia Brasileira de Letras, e lhe foi outorgado pela Universidade do Chile o título de Doutor Honoris Causa. Livros seus estão traduzidos ao inglês, espanhol e francês.


Referências

ANDRADE, Carlos Drummond de. O observador no escritório. Rio: Record, 1985.

ANDRADE, Oswald. Ponta de lança. São Paulo, Globo, 1991.

CANDIDO, Antonio. “Clima”, in Teresina, etc. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.

COSTA PINTO, Antônio. “Modernity versus Democracy? The mystical nationalism of Fernando Pessoa”, in: The intellectual revolt against liberal democracy 1870-1945. Jerusalém, The Israel Academy of Sciences and Humanities, 1996.

IGLESIAS, Francisco. História e ideologia. São Paulo, Perspectiva, 1971.

MESQUITA. Alfredo. “No tempo da Jaraguá”, in Esboço de figura, homenagem a Antonio Candido. São Paulo: Duas cidades, 1979.

MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da cultura brasileira. São Paulo, Ática, 1977.

NEME, Mário (org.). Plataforma da nova geração. Porto Alegre, Globo, 1945.

PONTES, Heloisa. Destinos mistos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

Notas

[1] Para uma leitura daquele momento histórico, no campo das artes, leia-se do autor: “Sobre plataformas e testamentos” (Andrade, 1991, p. 7-22).

[2] Continua Drummond: “A ideia de uma associação de escritores livres, sem direção sectária, parece inconcebível para eles [comunistas], que, em vez de convivência pacífica, preferem assumir o domínio pleno da agremiação” (Andrade, 1985, p. 78).

[3] Os versos finais do poema, “O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,/ a vida presente”, esclarecem os iniciais, “Não serei o poeta de um mundo caduco./ Também não cantarei o mundo futuro”. O poema se encontra no livro Sentimento do mundo.

[4] Para o melhor conhecimento da geração, consultem-se Candido, 1980 e Pontes, 1998. Numa primeira versão do seu depoimento, posteriormente corrigida, informa Candido: “Éramos ligados também com rapazes de Belo Horizonte [que depois constituíram o grupo da revista Edifício], tendo Fernando Sabino sido nosso colaborador” (p. 170). Entre uma versão e a outra, percebe-se o dedo zeloso de algum mineiro.

[5] Para o estudo da pista que Candido nos fornece, deve-se consultar o capítulo III Ideologia da cultura brasileira (Mota, 1977), em particular a seção “Antonio Candido e o combate às formas de pensamento reacionário”, p. 126-132.

[6] As últimas linhas do ensaio esclarecerão de vez a posição do historiador: “Fernando Pessoa foi poeta e por sua obra deve ser julgado. Tudo o mais é acidental e de importância secundária, comparado à poesia que deixou” (Iglésias, 1971, p. 298).

[7] Em datas posteriores ao trabalho de Iglésias, foram publicadas duas coletâneas com os artigos políticos de Fernando Pessoa. Uma em três volumes, sob a responsabilidade de Joel Serrão [1979-1980] e a outra, em dois volumes, sob a responsabilidade de Antônio Quadros [1986]. Para informações sobre estas e para uma leitura menos “literária” e menos contundente da problemática ideológica pessoana, consultar: Costa Pinto, 1996, p. 343-355.

[8] O tom dogmático no poema e na reflexão social se dobra em Fernando Pessoa pelo elogio da matemática como lógica superior e transitável por cima das diferenças discursivas. Segundo Iglésias, “um poeta que saiba o que são as coordenadas de Gauss tem mais probabilidade de escrever um bom soneto de amor do que um poeta que o não saiba” (Para este e outros exemplos: 1971, p. 270).

[9] A contradição entre discursos dogmáticos, por sua vez, tornará pouco eficientes, ou inúteis, outras formas de discurso praticadas pelo poeta, por exemplo o jornalístico. Pessoa “não se definia, ou era contraditório e paradoxal, impróprio para o jornalismo, para o doutrinário ou proselitista” (1971, p. 250). O discurso jornalístico, acrescentamos, torna-se panfletário e o doutrinário, partidário.

[10] Ver, a propósito, a leitura que faz do livro Mensagem (1971, p. 287-291).