Resumo: As sociabilidades religiosas de africanos e crioulos são fios condutores, não só da resistência, mas também de uma cultura que organiza a população negra na sociedade e no território urbano. Por outro lado, as movimentações de feiticeiros(as), curandeiros(as), catimbozeiros(as), são importantes enquanto mecanismo de resistência dos egressos da escravidão. As experiências de vida de livres e libertos, como de Feliciana Maria Olimpia, a Iaiá de Ouro, nos permitem entrar no mundo das negociações nos espaços urbanos do Recife do século XIX, por caminhos diferenciados daqueles que privilegiam as análises estruturalizantes do impacto da abolição no desenvolvimento econômico. O presente artigo traz para o debate, portanto, as ações de livres e libertos – praticantes das religiões afro-brasileiras – como mecanismo de resistência para assegurar seus espaços sociais, religiosos, culturais na cidade nas últimas décadas da escravidão.
Palavras-chave: feitiçaria; escravidão; espaço urbano; Recife; século XIX.
Abstract: The religious sociabilities of Africans and Creoles are the guiding threads not only of resistance, but also of a culture that organizes the black population in society and urban territory. On the other hand, the movements of sorcerers, healers, catimbozeiros(as), are important as a mechanism of resistance of the graduates of slavery. The experiences of free and liberated life, such as those of Feliciana Maria Olimpia, the Iaia de Ouro, allow us to enter the world of negotiations in the nineteenth-century Recife urban spaces, by differentiated paths from those that favor the structural analysis of the impact of abolition in the economic development. The present article brings to the debate, therefore, the actions of the free and free – practitioners of Afro-Brazilian religions – as a mechanism of resistance to ensure their social, religious, and cultural spaces in the city in the last decades of slavery.
Keywords: witchcraft; slavery; urban space; Recife; nineteenth-century.
A[1] presença de africanos(as) e crioulos(as) praticantes de feitiçarias e mandingas, no Recife, como a parda Iaiá de Ouro, que burlava a vigilância e o controle das autoridades eclesiásticas e civis, e assim, garantiam seus espaços de liberdade na sociedade da época, foi registrada por memorialistas e viajantes. Segundo o memorialista Francisco Augusto Pereira da Costa, foi a tal Iaiá uma “afamada bruxa do Largo do Forte das Cinco Pontas”, que, por meio da indústria da feitiçaria, conquistou grande clientela e acumulou fortuna legada a seus devotos protetores. Chegou a viver no Recife até os primeiros anos do século XX e exerceu forte influência sobre policiais, políticos, inspetores de saúde e comerciantes da época (Pereira da Costa, 1974, p. 120-121).
No dia 28 de janeiro de 1873, foi enviada ao Comendador Henrique Pereira de Lucena (posteriormente Barão de Lucena), então presidente da Província de Pernambuco, uma carta anônima pedindo que fosse remediado um grande mal. Curiosamente, tal malefício que pairava sobre a Cidade do Recife de Pernambuco era a presença de uma moradora do Largo da Fortaleza das Cinco Pontas: “parda de nome Feliciana Maria Olímpia, conhecida por Iaiá de Ouro, ou feiticeira, que intitulava-se viúva, mas que sempre foi e é prostituta”[2]. Possuidora de escravos, costumava aplicar golpes e furtos em comerciantes, tendo como cúmplice um sujeito de nome João Nepomuceno. Teve relações estreitas com pessoas de influência na sociedade da época, como o Secretário da Chefatura de Polícia, o senhor Eduardo de Barros. Foi acusada ainda de estar envolvida no assassinato de algumas de suas escravas. Era de tão má conduta que chegou a ser presa dez ou doze vezes, sendo algumas dessas prisões por crime de ferimentos, outras por injúria e outras ainda por furtos e golpes.[3]
O Presidente da Província parece ter levado muito a sério as denúncias contra Feliciana Maria Olímpia, a Iaiá de Ouro, pois, cinco dias depois da referida carta, estava nas ocorrências da Polícia Civil um ofício que dizia estarem sendo tomadas as “precisas providências sobre a prisão dos criminosos” citados na carta.[4]
Na tentativa de percorrer a trajetória dessa mulher parda, feiticeira, criminosa e, como relata seu algoz anônimo, pessoa de má conduta, procuramos pensar como as ações cotidianas de pessoas livres e/ou libertas: africanas, crioulas ou mestiças; em especial, praticantes de feitiçarias, mandingas, catimbós, xangôs – práticas afro-religiosas[5] – se constituíram em mecanismos de garantia de seus espaços na cidade, tornando bairros e logradouros áreas de suas relações de poder. A exemplo do bairro de São José, que foi sendo reconfigurado por escravizados e egressos do cativeiro, tornando-se, segundo Marcus Carvalho, lugar de reconstrução de laços sociais, culturais e religiosos esgarçados pela violência do tráfico transatlântico de africanos (Carvalho, 1998, p. 87).[6]
O objetivo deste artigo, portanto, é por meio da trajetória da Iaiá de Ouro coteja as ações de livres e libertos – praticantes de feitiçaria, curandeirismo, catimbós, ou seja, práticas afro-religiosas – os mecanismos de resistência utilizados para assegurar seus espaços sociais, religiosos, culturais na cidade nas últimas décadas da escravidão, por caminhos diferenciados daqueles que privilegiam as análises estruturalizantes do impacto da abolição no desenvolvimento econômico.
Iaiá de Ouro à época do Recife das Maxambombas
A cidade do Recife, na segunda metade do século XIX, assistiu à chegada do progresso, experimentado na expansão de sua área urbana e nas ações dos “homens de negócios”, que, preocupados com a industrialização e a reforma da cidade, investiam na edificação de prédios públicos, como a construção do Mercado Público de São José, inaugurado em 1875; no alargamento de ruas e largos; no transporte coletivo, com o aparecimento das maxambombas – bondes que circulavam na Cidade, ligando o centro a seus arrabaldes. Por outro lado, o progresso do Recife, na proporção em que se expandia urbanisticamente, tentava conter o fluxo de pessoas egressas dos engenhos, normatizando a utilização das ruas, controlando as idas e vindas dos transeuntes, principalmente a movimentação cotidiana de escravos e libertos que circulavam nas ruas, seja à luz do dia ou à noite.
O Largo das Cinco Pontas, localizado no bairro de São José, onde morava Iaiá de Ouro, foi um desses lugares de vigilância e controle das autoridades civis e eclesiásticas da época. Era o Cinco Pontas visto pelas instâncias púbicas – policiais e administrativas – como reduto de vadios, malandros, ajuntamento de negros escravizados, livres e libertos: “rixa entre moleques e pretos que alli vão estacionar com o fim de conduzir as bagagens dos passageiros. Da lucta resultou ferimentos feitos á pedradas e até canivete”.[7] Também a violência era registrada nas ocorrências dos chefes de polícia:
Hotem às 8 horas da noite, na ocasião em que dous Bondes se encontraram na curva que forma as linhas na Praça do Conde d’Eu, João José Nepomuceno, passageiro do Bonde que vinha da Magdalena, estendendo a cabeça para fora da plataforma, onde vinha, recebeu uma forte pancada no rosto pelo bonde que ia para a passagem. Este facto foi e deste modo informado por Pedro Luiz de Oliveira, empregado na Estação das Cinco Pontas que presenciou.
As 11 horas da noite de 2 do corrente os dous vigias, q’rondam a Estação das Cinco Pontas, perceberam q’ uma canoa atracara aos cães do lado interior da estação. Dos dous indivíduos, q’ vinham em dita canoa, um saltou á terra e travou uma lucta a faca com os vigias, não podendo esse indivíduo tirar vantagem nessa lucta, retirou-se á canoa, e com o outro fez-se ao largo. Quatro horas depois apareceu outro individuo q’ sorphehendido pelos vigias, retirou-se depois de desparar sobre os mesmos um tiro.[8]
Mais uma vez, ambos os relatos policiais mostram a área como violenta e perigosa para os que nela labutavam, a exemplo dos vigias da Estação, que arriscaram sua vida para garantir o patrimônio do estado, como para aqueles que precisavam ir e vir, como João José Nepomuceno, que saía da Madalena para ir ao Cinco Pontas, talvez no caminho de seu trabalho. Ou ainda para aqueles que escolhiam residir nessa parte do Recife, como Iaiá de Ouro que, ao sair da comarca de Nazareth, chegou a essa localidade no final da década de 1860. Ali se estabeleceu, tirando feitiços, praticando curandeirismo, envolvendo-se em furtos e golpes, acusações de assassinatos, muitas vezes em parceria com seus amigos, clientes ou domésticos. Chegou a ter doze registros na Casa de Detenção, devido às estratégias de sobrevivência, que passou a engendrar nesse lugar[9].
Disputas acirradas por trabalho entre moleques e pretos, furtos, roubos, assassinatos cometidos por ex-cativos, foram alguns exemplos elucidados por Walter Fraga ao analisar as ações da população livre e liberta às vésperas do movimento de 1888, que culminou na abolição do sistema escravocrata. Para ele, são exemplos que podem ser lidos como experiências com a liberdade e estratégias de sobrevivência dos egressos da escravidão na sociedade pós-emancipação. Análises importantes também para perceber como outros libertos ou livres, assim como a parda feiticeira Feliciana, criavam mecanismos para garantir seu espaço na cidade (Fraga Filho, 2006).
Feliciana Maria Olímpia, muitas vezes era ela “Maria da Conceição”, “Maria Conceição”, “Maria Olímpia Floresta Brasileira”. Isto é, na tentativa de escapar da vigilância e do controle policiais, utilizava um nome para cada momento, talvez delegacia, chefe de polícia, circunstância, conteúdo do crime. Os jornais da época, no Recife, estão cheios de anúncios à procura de cativos(as) que, em seus momentos de fuga, costumavam mudar de nome, como Severino, que, quando fugia, segundo seu senhor, mudava seu nome para Francisco Antônio (Carvalho, 1998, p. 184).
Feliciana Maria Olímpia, Maria Floresta Brasileira, Maria da Conceição, ou Iaiá de Ouro, também era tida como parda. Talvez uma liberta ou, quem sabe, parda livre. Enfim, Feliciana trazia na cor de sua pele as marcas comuns ao cativeiro. Pelas informações documentais não foi possível precisar sua condição de experiência com a liberdade. Mas, assim como tantos que carregavam na pele a cor do cativeiro, Feliciana negociava, criava estratégias para inserir-se no mundo “branco” e escravocrata. Sobre suas estratégias de inserção nessa sociedade e de garantia de sua sobrevivência na cidade, discutiremos, a princípio, sua identidade étnica e/ou de cor, ou melhor, sua meta-etnia, uma vez que sua classificação de cor/etnia é dada por terceiros.[10]
No final do século XIX, as classificações de cor e raça passaram a ter uso científico e de vinculação com a sociedade brasileira. No cotidiano da sociedade, as classificações de cor/raça seguiam padrões múltiplos desde o século XVIII, podendo representar desde características físicas, relações de parentesco até sinalizadores de redes sociais. Desse modo, o que era ser pardo(a) como a feiticeira Feliciana nas últimas décadas do oitocentos? Ou melhor, de que critérios a sociedade se utilizava para classificar uma pessoa como negra, crioula, parda, mulata, cabra, enfim, das mais variadas matizes de cor/etnia?[11]
No Brasil escravista, mais que a condição de cor e social, a condição jurídica era a balizadora das diferenças entre livres e escravizados; desse modo, negros, pardos, mulatos, cabras, poderiam ser juridicamente tanto escravizados como libertos. O termo negro era utilizado juridicamente como sinônimo de escravo, não sendo possível encontrar designações do tipo “negro livre” ou “negro liberto” no século XIX. Seguindo o mesmo raciocínio, era a classificação de crioulo tida como referência de escravizado nascido no Brasil, ou seja, filho de africanos cativos. Quando alforriados, os crioulos seriam designados como pardos forros, enquanto seus filhos seriam pardos, independentemente da cor da pele. Ou seja, os termos classificatórios: negro, crioulo e/ou pardo para designar escravizado não significavam cor de pele, mas origem de nascimento.
A cor da pele entre os livres e libertos, por sua vez, indicava outros níveis de diferenciação social para os homens e as mulheres coloniais/imperiais que não eram submissos pelas distinções entre livres, forros e escravos. A cor da pele era um fator de reconhecimento social de determinada situação que caracterizava o status dos livres e dos escravizados e não a condição jurídica desses ou ainda sua ascendência étnica (Machado, 2008, p. 123). O termo pardo, portanto, recebeu conotação mais variante/ampla, poderia indicar tanto os recém-libertos filhos de africanos, libertos, filhos de crioulos e seus descendentes livres. Para Sheila Faria, pardo seria um termo para indicar a mestiçagem. Até meados do século XIX, a cor parda era triplamente qualificada: “pardo cativo”, pardo forro” e “pardo livre”. Quando forro, pardo adquiria o mesmo sentido que mulato; quando livre, seria então não-branco (Faria, 2004, p. 69; Mattos, 1998, p. 96). Isto é, a cor parda depois da segunda metade do século XIX tornou-se um critério de diferenciar o liberto do escravizado. Segundo Hebe Mattos, a cor era ainda um indicativo de lugar social, signo de cidadania no Império. Dessa forma, seria a cor parda, no final do século, também um indicativo de inserção no “mundo do branco”; era, pois, uma identidade de negociação no mundo escravocrata.
No dia 12 de fevereiro de 1873, ou seja, 12 dias do surgimento da carta anônima na mesa de Henrique Pereira de Lucena, foi também entregue ao referido Presidente um oficio do promotor público da comarca de Olinda, ministro Gaspar de Vasconcelos Mendes de Drummond, a resposta ao ofício datado de 17 de janeiro do mesmo ano, referindo-se à apuração do inquérito sobre o assassinato de Madame Luiza Boltine, tendo como principal suspeita do crime, Feliciana Maria Olímpia.[12] Pelo conteúdo da carta, a investigação sobre a morte de Madame Boltine estava sendo minuciosa, segundo palavras do próprio promotor Mendes de Drummond, que ainda não tinha chegado a conclusões mais precisas sobre se Feliciana era ou não a autora do crime. Desejando dar ao Presidente da Província resultado do que lhe foi pedido, iria usar o máximo de sua autoridade enquanto Promotor Público, investigando, indagando testemunhas envolvidas no processo, até extrajudicialmente. Ou seja, Mendes de Drummond, ao dizer que iria utilizar extrajudicialmente sua autoridade, provavelmente se valeria de ações no âmbito do privado para resolver uma questão de ordem jurídica – pública.
Investigando o cotidiano do bairro de São José, na época em que morou ali Feliciana, através dos registros policiais, observamos ainda que dez dias após as denúncias feitas anonimamente a ela, foi presa uma africana liberta de nome Josepha. O alferes do 9º Batalhão da Delegacia do 1º Distrito do Recife, delegacia que respondia pela localidade onde morava Feliciana, João Bernardo do Rego Barros – comandante da guarda na época – deixou de registrar os motivos que levaram à prisão de Josepha. Seria ela uma “transgressora da ordem e dos bons costumes”, assim como Feliciana? Teria sido presa por praticar algum furto, tirar feitiço, ferir, espancar ou assassinar alguém? Provavelmente foi Josepha presa apenas pelo fato de sua procedência étnica e condição social, visto que foi “reconhecida ao torreão desta casa [Detenção] em a noite de hontem”.[13] Historiadores da escravidão já se comprometeram com análises sobre as posturas municipais e leis provinciais que controlavam a movimentação de escravizados e libertos à noite nas ruas da cidade sem bilhetes que assegurassem sua condição jurídica, enfatizando que, para os africanos, uma linha muito tênue dividia a condição de escravização daquela de liberto, quando o assunto era vigilância e controle policiais (Maia, 2008; Reis, 2008).
Vale ressaltar que Feliciana, “a título de tirar feitiços, vai-se locupletando com o alheio dos incautos”.[14] Ou seja, as práticas de feitiçaria da parda moradora do Largo das Cinco Pontas, além de terem lhe rendido algum cabedal, por meio de uma clientela que a procurava sem cautelas ou medidas, enriqueceu. Provavelmente a clientela de Feliciana era considerável não só entre a polícia, visto que o local onde morava foi registrado nas delegacias da Cidade do Recife como violento e perigoso. Mas, sobretudo, estavam seus clientes, entre as altas cúpulas policial e jurídica, que provavelmente iam buscar os trabalhos de Feliciana ou de outras pessoas que oferecessem os mesmos serviços que a parda feiticeira no referido logradouro, área de furtos e roubos, malandragem, assassinatos, prostituição. Reduto de negros, como afirmamos no início da narrativa; espaço de exercício da negociação entre a vigilância e o controle policiais e as práticas de sobrevivência dos moradores da área. Desse modo, as relações estabelecidas entre a parda Feiticeira e seus “protetores” da polícia se constituíram em redes de poder, de (inter)dependência.[15] Ela se empoderava por meio de suas práticas de feitiçaria, curandeirismo ou até mesmo pelas redes sociais que articulava com policiais.
Por outro lado, mesmo não tendo tantos subsídios para uma análise da trajetória de Feliciana sobre a leitura de gênero – classe – etnicidade, arriscaremos fazer algumas considerações sobre o assunto em torno dos mecanismos utilizados pela sociedade patriarcal a partir do silenciamento de Feliciana na documentação. Por meio de sua trajetória, é possível ler estratégias sócio históricas de produção das desigualdades não só de gênero, como também de cor e classe. Sua experiência não é só de uma praticante de feitiçaria, mas de uma mulher dentro de uma sociedade de “voz e mando” masculinos, cujos estigmas negativos sobre sua condição social, econômica e cultural lhes eram atribuídos por homens e mulheres de sua época. A carta anônima traz a informação de que ela “se intitulava viúva, mas que sempre foi e é prostituta”. Aqui, talvez seja possível que não só classificaram Feliciana de algo que ela não era, como também negaram sua própria condição de existência. As origens do acúmulo de seu dinheiro, que a levou a ficar rica, foi uma das questões que mais incomodaram as pessoas de seu convívio cotidiano, motivo no meio de outros, que impulsionou a escrita da tal carta anônima. Para seus algozes, eram chocantes os meios pelos quais a fortuna de Feliciana, vinda da prática de feitiçarias e curandeirismo foi gerada. Talvez o(a) autor(a) da carta anônima também quisesse dizer que não só de feitiçaria mais também de prostituição a parda feiticeira afortunou-se. Por outro lado, ao estigmatizarem Feliciana de prostituta, feiticeira, sinalizavam condição de sua cor/etnia, ou seja, prostituição e prática de feitiçaria seriam sinônimos de representação de mulher negra. Classificações, designações, “estigmas” elaboradas ainda no século XIX para diferenciar, naturalizar, legitimar as desigualdades de gênero e etnia.
Feiticeira escravocrata
Até o momento, foram feitas algumas análises acerca de denúncias contra Feliciana, suas redes sociais, possíveis motivações de suas ações. Mas, quem foi o autor da carta anônima contra ela? Quem eram as pessoas de que esse seu algoz trata na carta que também queriam ver a Feiticeira ser punida pelas autoridades provinciais?
Pelo conteúdo da carta e da forma como vêm sendo descritas suas ações, provavelmente foi alguém próximo a ela, que também fez parte de suas redes de sociabilidade. Cliente para os trabalhos com feitiçarias e mandingas? Amigo, vizinho, ex-amante? Comerciante da redondeza do bairro de São José? Ou quem sabe se esse algoz era, na realidade, uma das consortes dos amigos íntimos de Feliciana? Difícil saber! O fato é que a pessoa que escreveu a carta sabia da trajetória de vida dela. Sabia possivelmente como ela conquistou sua riqueza, e até como a parda Feiticeira tratava sua escravaria, pelo visto deve até ter presenciado a morte de uma de suas cativas pois, segundo o autor, ou autora da carta anônima, foi Feliciana a assassina de uma de suas escravas. No entanto, o atestado médico dizia “ter morrido a negra de apoplexia”.[16] Isto é, no óbito da cativa de Feliciana, constou que a causa do falecimento foi um infarto fulminante, ou seja, o coração parou, levando à morte a desvalida. É plausível que a morte da cativa esteja até relacionada com a truculência que comumente Feliciana tratava sua escravaria. Uma de suas escravas foi vista, outro dia, fugindo em estado de quase nudez e ferida nas mediações do Campo das Princesas, no vizinho bairro de Santo Antônio.[17]
O algoz de Feliciana ainda cita vizinhos que estavam ansiosos por ver a feiticeira por traz das grades, como o português Antônio Maria Reis “e um indivíduo de nome Carvalho”, que também eram testemunhas do trato de Feliciana para com suas escravas. Carvalho e Reis também chegaram a presenciar os espancamentos noturnos que Feliciana costumava dar às suas cativas. Mas por que os referidos vizinhos estavam tão “preocupados” com o trato que uma senhora dava a sua escravaria, visto que se tornou prática corriqueira a correção – coerção pela violência – para assegurar a autoridade senhorial?
Decerto alguns desses vizinhos de Feliciana estivessem dando guarida ou apadrinhando as escravas fugidas da casa da feiticeira. Comumente, os escravizados buscavam auxílio, apadrinhando-se na vizinhança. A rede de apadrinhamento, segundo Paulo Moreira (2008), foi um traço cultural presente no escravismo brasileiro, cujo objetivo era atenuar, ou até mesmo, resolver os conflitos que poderiam ter desfechos violentos. Prática comum, entre os escravizados fugidos, apadrinharem-se com pessoas vizinhas aos seus senhores, negociando a volta para seu cativeiro de origem. Havia também casos em que os cativos revoltados pelos “castigos injustos” recebidos procuravam padrinhos que lhes dessem condições de trocar de senhor por meio da venda. A busca por apadrinhamento, em casos de fugas, adquiria maior sucesso quando os escravizados jogavam com as redes de poder de seus senhores. Não adiantava pedir proteção a qualquer padrinho, pois seus senhores só negociaram com pessoas de seus mesmos ou superiores valores sociais e/ou econômicos. Ressalta-se também que se corria riscos ao apadrinhar-se com inimigos políticos de seu senhor. Isto é, cabia ao escravizado realizar uma avaliação política antes desta empreitada, visto que tinha muito a perder (Moreira, 2008, p. 212).
Em meados do século XIX, dar guarida, acoitar cativos fugidos se tornou corriqueiro em Pernambuco. Mesmo sendo crime, referida ação na época era mais uma estratégia que os senhores utilizavam para assegurar a exploração da mão-de-obra que estava se tornando cada vez mais difícil com a Lei de 1831, colocando empecilhos na posse de cativos. Acreditamos que a Lei de 1871, esse problema teria aumentado, visto que a transação para o trabalho livre ainda estava sendo teorizada, sendo culturalmente muito mais desesperador para os senhores escravocratas perderem a “peça” da engrenagem de seu poder. Enfim, para o escravizado que encontrava na fuga que culminava em seu acoitamento na casa de um vizinho de seu senhor, era mais uma tentativa para melhorar sua condição, buscando por um senhor menos tirânico e/ou que viesse respeitar alguns direitos que pensava o escravizado ter conquistado ou adquirido.[18]
Suspeitamos ainda que os senhores Carvalho e Reis, vizinhos de Feliciana, estavam se beneficiando das cativas da feiticeira. Ou quem sabe se não eram simpatizantes da causa abolicionista que tomava maiores proporções entre a população na época? Vale ressaltar que os movimentos abolicionistas e a mentalidade da população em relação a escravidão estavam mudando entre as décadas de 1870 e 1880. Portanto, os vizinhos de Feliciana que estavam acompanhando, pormenorizadamente, o que acontecia com suas cativas, poderiam ser adeptos da causa abolicionista.
Nos relatos dos viajantes que estiveram no Brasil no século XIX, alguns como Maria Graham, mencionaram como a população negra – crioulos, mulatos, pardos – já era expressiva demograficamente desde o início do século. Graham deixou em seus relatos suas impressões sobre a esperteza e as habilidades de crioulos, mulatos e pardos. Quando libertos, muitos chegavam a acumular fortunas, montando comércio, ostentando sua riqueza através de joias, tecidos de seda, etc. (Graham, 1990, p. 157). Feliciana era uma parda que fez sua fortuna através de sua prática de feitiçaria, chegando também a investir na propriedade de escravos. Na sociedade escravocrata em que ela viveu, a escravidão era mais do que um sistema de sustentação econômica, tornou-se também uma instituição social – implicando práticas sociais correspondentes, ou seja, a posse de escravos representava simbolicamente poder, status social, riqueza, passaporte para a ascensão social. Até mesmo o próprio escravizado, na primeira oportunidade, virava um proprietário de cativos (Carvalho, 1998, p. 273).[19] Nossa feiticeira escravocrata era, nada mais nada menos, que sujeito social das relações produzidas na sociedade de sua época, suas cativas representavam seu capital simbólico de poder no âmbito no qual estava inserida.
Feiticeiros, bruxos, curandeiro, catimbozeiros e os espaços citadinos
“Os feiticeiros formigam no Rio, espalhados por toda a cidade, do cais à estrada de Santa Cruz” (Rio, 2008, p. 51). Assim, João do Rio mostrou a cartografia da cidade do Rio de Janeiro por meio das ações dos últimos africanos feiticeiros, com suas casas de candomblés que demarcavam ruas e bairros como espaço de seu poder. Na visão de João do Rio, a feitiçaria seria então as práticas religiosas de herança africana, isto é, por nós conhecidos como cultos afro-brasileiros.
Luís da Câmara Cascudo definiu em Meleagro, feitiçaria e bruxaria como sinônimos de catimbó, termo popular para designar as práticas de manipulação de ervas, defumações com cachimbos e charutos, orações e rezas invocativas para resolução de problemas ligados a dinheiro, casamento, trabalho. Seria então o feiticeiro ou catimbozeiro “quem mestra a ‘mesa’, usando a ‘marca’ fumegante ou isoladamente atendendo aos clientes, vendendo ‘orações fortes’, fazendo muambas na intenção do amor e morte” (Câmara Cascudo, 1978, p. 21-22). Assim, amalgamaram-se as orações poderosas e magias europeias à ciência das ervas indígenas, ficando o velho africano com maior prestígio enquanto místico/feiticeiro. Nessa narrativa sobre a parda Feliciana Maria Olímpia, a Iaiá de Ouro, sua condição social, ou melhor, sua cor de pele e sua área de moradia apresentavam-se como indícios para conjecturarmos seu perfil de feiticeira dentro das denominações de Câmara Cascudo e João do Rio.
Iaiá de Ouro viveu no espaço tempo da cidade do Recife nas décadas de 1870, momento de tensões políticas e sociais que concorreram para a fragmentação do patriarcalismo e dos movimentos para o fim do sistema escravagista, como já mencionamos em outros momentos. Nas acusações que sofreu, não havia nenhuma ligada à prática de feitiçaria, e sim por crimes de roubo, ferimentos, injúrias. Nos relatórios do Presidente da Província de 1873, ano das denúncias sobre a parda feiticeira Feliciana, foram listados os seguintes casos de crimes na província de Pernambuco: 16 furtos, 57 tentativas de furto, 19 roubos, 46 homicídios, 18 ferimentos e ofensas físicas leves e 66 ofensas à religião. Esse último tipo de crime perdeu apenas para 153 quebras fraudulentas, ou seja, eram as “querelas” ligadas à religião, uma preocupação considerável para a polícia e a justiça provinciais da época. Feliciana foi indiciada por vários desses crimes listados nos Relatórios do Presidente da Província, alguns até explicitados na carta anônima.[20]
Possivelmente por ter sido indiciada por vários desses crimes se tornou alvo do cólera de pessoas de todas as estratificações sociais, como Manoel Pinto Ribeiro da Silva que, embora não sabemos qual o grupo social o qual pertencia, conjecturamos que fazia parte de algum grupo privilegiado. Isto devido a defesa que o mesmo terá, como veremos adiante. Ele atentou contra a vida dela usando um clavinote e uma faca de ponta. Tendo esta última arma ferido Feliciana, no dia 18 de agosto de 1872 na casa que ela possuía em Porto da Madeira, Beberibe, enquanto ela “admoestava um caboclo”.[21] Ou seja, quando Feliciana exercia suas funções religiosas e/ou de feitiçaria. Embora Manoel Pinto tenha sido preso, recebeu um habeas corpus, o qual veio ela a contestar junto ao juiz de Direito da cidade de Olinda que estava à frente do caso naquela ocasião. Referido Juiz chegou a dar atenção a solicitação de Feliciana em relação ao habeas corpus de Manoel Pinto. Em carta de 14 de setembro de 1872, a feiticeira pedia ao juiz de Direito de Olinda que não atendesse ao pedido de relaxamento da prisão de Manoel Pinto, pois
A concessão de habeas-corpus animou o perverso, e assustou a suplicante sobre a maneira que desde logo se tem conservado trancada, vendo a cada instante repetir-se aquela scena (sic) de horror: porquanto o perverso passeia impune por toda parte dizendo que levará a efeito o que na outra vez não conseguiu.
Portanto, à vista do que fica podendo e consta das provas dos autos, espera a suplicante da indefectível justiça de Vossa Magnificência Ilustríssimo que tomando conhecimento do dito recurso reforme a sentença recorrida para efeito de ser capturado o dito perverso, como autor de tão qualificada e horrorosa tentativa de morte, que escapou ao demasiado escrúpulo daquele integro magistrado.[22]
Não sabemos quem foi atendido pelo Juiz de Olinda. Se Feliciana ou Manoel Pinto. O fato é que Feliciana apelou ao juiz de Direito de Olinda não só por temer por sua vida, mas também por ter alguma certeza de que seu pedido iria ser apreciado pelo Magnífico Juiz. Estrategicamente, ela se valeu da imprensa, a carta foi publicada no Jornal do Recife como uma forma senão de comover a sociedade, ao menos de deixar o Juiz em evidência e em situação delicada perante o caso. É possível também que alguma ascendência Feliciana tinha sobre essa autoridade, do contrário não utilizaria de tal audácia para atingir seu objetivo que era impedir o habeas corpus de seu verdugo.
O impacto de sua carta de apelação contra o habeas corpus de Manoel Pinto entre seus algozes foi tamanho, assim como sua atuação, enquanto feiticeira, o era na cidade. Três dias depois da publicação da carta de Feliciana, ou seja, no dia 17 de setembro de 1872, um Redator anônimo escreveu no Jornal do Recife, saindo em defesa de Manoel Pinto, afirmando que “o juiz de direito, não fez mais do que executar a lei, tornando-se garantidor da liberdade individual injustamente ameaçada.”[23] Ainda acusou Feliciana:
Maria Olympia invertendo a história do tiro que sofrera, santifica-se e mandou narrar, a bel prazer seu, o fato, para calar no espírito dos membros da Relação e na opinião pública, de que foi selváticamente agredida, sem ofender, pelo abaixo assinado. Entretanto, quem tem conhecimento de Yayá de Ouro, sabe quanto insólita e ousada é esta feiticeira, que não respeita a honra das senhoras casadas, das solteiras, dos homens, etc. etc.[24]
Este algoz da Iaiá de Ouro não só defende o seu agressor como a acusa de feiticeira ousada que não respeita a honra e a moral das famílias da cidade. Mas, o que torna esta acusação interessante é o fato do temor que Feliciana, a Iaiá de Ouro causava em um seguimento da “gente grã-fina” do Recife.
Desde a década de 1860, já estavam sendo registradas nas Delegacias de Polícia da Cidade do Recife pessoas praticantes de feitiçaria ou simplesmente por serem feiticeiros que roubaram, como Manoel Matheus dos Anjos Fernandes, conhecido como Manoel Feiticeiro, autor de um crime de roubo com agravante de incêndio no Forte do Mattos – bairro do Recife, zona portuária da Cidade.[25] Não temos muitas informações sobre Manoel Feiticeiro, salvo a ocorrência da Delegacia do bairro de São José, onde foi preso. Seria ele um orientador espiritual dos escravos, libertos e livres que labutavam no porto? O crime por ele cometido não seria parte das várias ações dentro do movimento abolicionista que cativos e libertos acionavam? Por outro lado, era também comum escravizados, tanto crioulos como africanos, serem acusados de praticar feitiçaria, quando o assunto era assassinato do senhor ou de seus empregados. Para Luiz Alberto Couceiro, ainda neste período, as acusações de feitiçaria só apareciam como crimes quando ligados à classe senhorial, vistos sob a ótica das autoridades imperiais como crimes de “sedução” (Couceiro, 2008).
A feitiçaria ou as práticas religiosas africanas não eram prescritas como crimes pelo Código Criminal de 1830, ao contrário do que veio a ocorrer posteriormente na República. Francelino Correia da Silva, conhecido como Pai Velho,[26] foi acusado por crime de homicídio em 1902. Encontramos, nas petições de presos da Detenção do Recife, uma apelação ao Supremo Tribunal de Justiça, na qual Pai Velho apelava para que sua prisão e sua condenação fossem revistas. Não sendo possível saber se realmente Pai Velho foi o autor do crime pelo qual estava sendo preso e julgado, permanece para nós a pergunta: será que a polícia e a justiça republicanas continuaram com as mesmas prerrogativas utilizadas no Império? Ou Pai Velho foi tido como principal suspeito de um crime por ser feiticeiro, catimbozeiro ou xangozeiro? – denominações utilizadas pela polícia nos primeiros anos da República, de forma pejorativa, para designar os praticantes das religiões afro-brasileiras.[27]
Portanto, a estatística de 66 crimes por ofensa à religião, apontada no Relatório do Presidente da Província de Pernambuco em 1873, pode ser o fio de Ariadne para nos conduzir no labirinto da documentação policial e judiciária, para chegarmos até os sujeitos sociais das práticas de feitiçaria e suas estratégias de apropriação dos espaços citadinos no Recife, como no caso de nossa Iaiá de Ouro. Teria ela seduzido o delegado Martins, que, ao indiciá-la, acabou se tornando seu amigo, assim como Eduardo de Barros, chefe de polícia, que passou a ser seu testamenteiro? Uma vez que ambos passaram a pertencer às redes sociais tecidas pela feiticeira o que seria na realidade um crime de “sedução” cometido por feiticeiros e/ou catimbozeiros no final do Império é o argumento central que conduziu o trabalho de Coceiro (2008).
Mas, não só foram o delegado Martins e o chefe de política Barros que passaram a fazer parte das redes políticas da Iaiá de Ouro. Além desses ela obteve também a proteção do Dr. Moscoso, Inspetor de Saúde Pública do Recife em 1874. No dia 11 de junho de 1874 foi publicado no Jornal do Recife, uma carta denúncia assinada por um tal Dr. Murilo contra o Inspetor de Saúde Pública da Província:
O que tem feito e Sr. Dr. Inspetor de Saúde Pública em relação a uma celebre feiticeira Yaya, que recebe doentes e dá consultas em sua casa no Largo das Cinco Pontas?
Nada absolutamente. Ou Sua Senhoria ignora a existência dessa feiticeira que especula com a boa fé e credulidade pública e outras, fazendo profissão de curar a loucura e outras moléstias com benzeduras, feitiços, etc. e nesse caso Sua Senhoria não cumpre os seus deveres, por que não procura conhecer as infrações constantes e repetidas do regulamento, ou não tem se importado absolutamente com esse fato, como se ele não fosse gravemente criminoso, e nesse caso faz mais do que não cumprir os seus deveres, os ignora. É ainda verdadeira a nossa asserção: O Sr. Dr. Inspetor de Saúde Pública não tem cumprido com o seu dever.
O Sr. Dr. Inspetor de Saúde Pública só se lembra infelizmente que é Inspetor de Saúde Pública, quando deseja dizer alguma couza em desabono de algum seu colega.[28]
O curandeirismo foi prática corrente no Brasil imperial, tendo nos africanos e seus descendentes os principais alvos da perseguição policial e médica. Por outro lado, constantemente procurados pela população escrava, livre e liberta. Segundo Maria da Vitória de Lima (2016), os curandeiros exerciam atuação mais direta no meio da população pelo fato de irem até o domicílio para atender aos que o procuravam, além do que, havia entre essa população e os curandeiros uma identidade de solidariedade que passavam por experiências comuns e pela condição social (Lima, 2016, p. 276).
Iaiá de Ouro estava sendo acusada de curar as moléstias de loucuras de seus consulentes, cuja medicina da época certamente não atendia. O saber médico se consolidava, em meados do século XIX, anulando o conhecimento popular, sobretudo de manipulação de ervas, plantas medicinais, benzeduras, as chamadas “mesinhas” que a população se valia para curar suas enfermidades. Lidos como charlatanismo, como nomeou o dr. Murilo ao acusar o dr. Moscoso de não exercer devidamente suas funções quanto a tal assunto que “alça o solo e a todos ameaça a dominar”.[29] Não obstante, foi a partir do conhecimento das plantas e ervas medicinais que a farmacologia e a medicina buscaram as bases para o saber científico. Todavia, o saber médico, a impressa, a igreja, a polícia e as elites articulavam discursos que deslegitimavam a atuação dos curandeiros em meio aos populares, em particular, aos escravizados, negros livres e libertos cuja medicina e a farmacologia não alcançavam.
Para o Dr. Moscoso a ilegalidade não estava na prática de curandeirismo de Iaiá, mas sim nos médicos, como o dr. Santos Mello que estava com seu registro irregular na Inspeção. Iaiá, dentro de seu saber, era bastante procurada pela população, assim como outros tantos curandeiros e curandeiras que existiam na Província. Alguns ficaram deveras afamados como o preto Manoel, escravo do engenho Guararapes, curandeiro que atuou em 1856 no combate à epidemia do cólera no Recife. Pai Manoel, como era popularmente conhecido, chegou a ter autorização para ter “mezinha” no Hospital de Marinha do Recife, onde atendia os achacados pelo cólera (Farias, 2012). Era bastante procurado pela população devido a sua fama de cura do cólera e de outros malefícios.
O sucesso de pessoas como Pai Manoel, Iaiá de Ouro, entre outros que se tornaram afamados nas práticas de cura não se deu apenas pela falta de médicos, cirurgiões ou porque a maioria da população não podia arcar com os custos de um serviço médico. A bem da verdade, os curandeiros e as curandeiras eram solicitados por serem mais eficientes para tratar tanto as moléstias leves quanto as mais sérias e também por estarem mais próximas as pessoas. Percebemos pela denúncia do dr. Murilo que Iaiá de Ouro tinha a confiabilidade não só da população consulente, mas também da própria autoridade de inspeção de saúde da província, dr. Moscoso, que não desabonava o exercício de seu curandeirismo. Por outro lado, Recife já era uma afamada capital, desde a década de 1850, de atuação de afamados curandeiros e curandeiras que exercitavam o curandeirismo concorrendo com a medicina alopática (Farias, 2012).
Breves considerações finais
Para finalizar, as ações dos egressos do cativeiro na garantia de seu espaço na cidade e as ações da parda feiticeira, curandeira Feliciana Maria Olímpia, a Iaiá de Ouro foram aqui pensadas em torno das teorias de resistência – concepções tão caras à historiografia da escravidão dos anos 1980, que trazem os escravizados e seus descendentes como sujeitos sociais de suas próprias histórias. Segundo Michael Brown, pensar nas ações de pessoas dentro da dicotomia subserviência-resistência estaria um tanto demasiada, perdendo-se de vista as dimensões antropológicas que privilegiam a existência em detrimento da resistência (Brown, 1990). Portanto, a trajetória dos atores sociais que acompanhamos, muitas vezes, são traduções de suas experiências de vida, de como o mundo é concebido em seu cotidiano. Isto é, as práticas de feitiçaria de Feliciana podem ser lidas como um mecanismo pelo qual ela conseguia não só se inserir em determinados espaços na cidade, todavia, sua própria maneira de conceber sua existência e traduzir a sociedade na qual vivia.
Assim, por meio das conjecturas sobre a parda feiticeira Feliciana e suas redes sociais tecidas no bairro de São José na Cidade do Recife, cotejar os mecanismos de garantia de sua sobrevivência na área urbana. Seguindo as hipóteses de Carlo Ginzburg sobre as ações dos praticantes da feitiçaria no século XVI como meios de combater a ordem vigente, ele pensou os sujeitos sociais praticantes de feitiçaria nos quinhentos como articuladores de armas de “defesa e ataque nas lutas sociais” (Ginzburg, 1989, p. 21). Ou melhor, seriam as movimentações dos feiticeiros estudados por ele, meios de inserção e garantia de espaços na cidade, formas de redesenhar as áreas citadinas sob o olhar das camadas subalternas. Iaiá de Ouro, mesmo não sendo do século XVI e também não estando mais inserida nas camadas desfavorecidas – por sua situação econômica, pode ser exemplo de uma subalterna buscando inserção nos espaços sociais do Recife no final do Império.
* Valéria Costa é autora de É do dendê! História e memórias da nação Xambá no Recife, 1950-1992 (2009); co-organizadora de Religiões negras no Brasil: da escravidão à pós-emancipação (2016); publicou o capítulo 7 (Mônica da Costa e Teresa de Jesus: africanas libertas, status e redes sociais no Recife oitocentista) em Mulheres negras do Brasil escravista e do pós-emancipação (2012) e o capitulo 10 (Os libertos no Recife: os mundos de João Joaquim José de Santa Anna) em História da escravidão em Pernambuco (2012). Doutora em História Social/UFBA e professora do IF Sertão PE/Campus Serra Talhada.
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[1] Parte das discussões aqui presentes foram previamente elencadas em um trabalho preliminar apresentado no IV Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional.
[2] Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano (doravante APEJE), Diversos Avulsos, vol. II, n. 28 (1872-1873), fl. 336.
[3] APEJE, Diversos Avulsos, vol. II, n. 28 (1872-1873), fl. 336.
[4] APEJE, Polícia Civil, 03 fev. 1873, fl. 40.
[5] Em Pernambuco, são chamados xangôs os cultos de orixás, tidos como formas mais africanizadas de religião. Enquanto as designações de catimbó e feitiçaria seriam para as formas mais hibridizadas de culto, amalgamando elementos da feitiçaria europeia e do catolicismo popular com a manipulação de ervas e defumações utilizadas pelos indígenas e os rituais africanos. João Reis, analisando a Revolta escrava de 1835 na Bahia – Levante dos Malês – trouxe para o debate a utilização de bolsas de mandingas (espécie de patuás contendo pedaços de orações do Alcorão) que os africanos carregavam consigo. Ficaram as bolsas de mandingas como marca do islamismo entre os africanos envolvidos na referida Revolta. Posteriormente, tornaram-se as bolsas de mandingas um objeto de identidade entre os praticantes das religiões africanas no Brasil.
[6] Utilizamos também os conceitos sobre práticas culturais de espaços de Michel de Certeau, nos quais concebe as ações de transeuntes, pessoas comuns, como formas de ressignificação de áreas citadinas, ou seja, criação de mecanismos para assegurar seu espaço na cidade (Certeau, 1991).
[7] Diário de Pernambuco (doravante DP) 16 out. 1871 – APEJE apud ARRAIS, 2004, p. 418.
[8] Relato 1: Fundo da Casa de Detenção do Recife – CDR (doravante FCDR), 24 mar. 1872, fl. 13. Relato 2: AEJE, Fundo Secretaria Segurança Pública (doravante FSSP), 5 jul. 1872, fl. 49 v.
[9] APEJE, Diversos Avulsos, vol. II, n. 28 (1872-1873), fl. 337.
[10] Sobre o conceito de meta-etnia ou meta-narrativa, isto é, das construções de identidades que são elaboradas no jogo entre os sinais diacríticos, preferenciais e interesses dos atores sociais e o olhar da alteridade foram discutidas por F. Barth, retomadas por Luís Nicolau Parés. Este utilizou o conceito de meta-etnia e/ou meta-narrativa, para considerar as configurações de identidades étnicas e de procedências que africanos e seus descendentes foram elaborando no período do tráfico e escravização, rememoradas nas religiões africanas da atualidade (Barth, 1997; Parés, 2006).
[11] Para uma leitura sobre teorias racializadoras que são embutidas no Brasil no final do século XIX, ver Schwarcz, 1993. Ver também Santos, Jocélio Telles dos. De pardos disfarçados a brancos pouco claros: classificações raciais no Brasil – XVIII-XIX, Revista Afro-Ásia, Salvador, n. 32, 2005, p. 115-137.
[12] APEJE, Diversas Autoridades, vol. 16, 12 fev. 1873, fl. 71.
[13] APEJE, FCDR, 7 fev. 1873, fl. 41.
[14] APEJE, Diversos Avulso, vol. II, fl. 336.
[15] Sobre relações de poder, ver Ginzburg (2002).
[16] APEJE, Diversos Avulsos, fl. 336v.
[17] O campo das princesas na atualidade é uma área que compreende do Palácio do Governo do Estado e a Praça da República.
[18] Sobre fugas e crimes de acoitamento em Pernambuco, ver Carvalho (1998, p. 276-283). Ver também Chalhoub (1990) e Lara (1988).
[19] Para o debate sobre escravidão na África e a atuação dos africanos nessa agência ver Thorton (2004).
[20] Falla com que o exm. sr. comendador Henrique Pereira de Lucena abrio a sessão da Assemblêa Provincial no 1º de março de 1873. Pernambuco, Typ. de M. Figueiroa de F. & Filhos, 1873, Relatórios do Presidente da Província, http://www.crl.edu/content/brazil/pern.htm.
[21] Fundação Joaquim Nabuco (doravante FUNDAJ), secção de microfilmes, Jornal do Recife, n. 213, 14 set. 1872.
[22] Idem.
[23] FUNDAJ, secção de microfilme, Jornal do Recife, n. 215, 17 set. 1872.
[24] Idem.
[25] APEJE, Fundo CDR – 24 mar. 1864, fl. 10.
[26] A liderança espiritual, ou seja, o sacerdote – cargo mais alto na hierarquia de uma casa de culto africano, popularmente denominado de “pai-de-santo”, é chamado pelos adeptos das religiões afro-brasileiras de tatá (língua bantu), baba (língua iorubá), palavras que significam “pai” (Castro, 2001; Slenes, 1991, p. 48-67).
[27] APEJE, Coleção Petições de Presos, FCDR, 8 ago. 1902, fl. 268.
[28] FUNDAJ, secção de microfilmes, Jornal do Recife, n. 131, 11 jun. 1874.
[29] Idem.