Resumo: Este texto tem por objetivo traçar um panorama da literatura produzida no Brasil abordando o tema do HIV/AIDS, destacando a importância da obra de Herbert Daniel e Caio Fernando Abreu na desconstrução dos discursos sensacionalistas e folhetinescos construídos nos textos jornalísticas dos anos 1980 e 90, bem como o ressurgimento, nos últimos anos, de uma literatura sobre o HIV/AIDS, como reação ao emudecimento imposto por setores conservadores a partir da introdução dos medicamentos antirretrovirais, e que busca se desvencilhar de imagens datadas da doença, retratando o que significa, hoje, descobrir-se soropositivo.
Palavras-chave: HIV/AIDS; epidemia; literatura pós-coquetel; sobrevivência.
Abstract: The objective of this text is to present an overview of the literature produced in Brazil regarding HIV/AIDS, stressing the importance of the works produced by Herbert Daniel and Caio Fernando Abreu for the deconstruction of the sensationalist speeches arising from journalistic texts in the 80’s and 90’s, as well as the resurgence, in the last years, of an HIV/AIDS literature, as a reaction to the silencing imposed by conservative sectors with the introduction of the antiretroviral therapy (ART), seeking to depart from dated images of the disease and portraying what means to be HIV seropositive today.
Keywords: HIV/AIDS; epidemics; post-ART literature; survival.
Introdução: como sobreviver numa epidemia discursiva[1]
Desde que os primeiros casos de AIDS começaram a ser noticiados no início dos anos 1980, surgiu uma corrente literária que veio a ser conhecida como “literatura da AIDS”. De um ponto de vista acadêmico, poderia haver a impressão de que este seria um novo gênero literário. Entretanto, quando analisamos esses textos, fica claro que envolviam uma gama muito ampla e diversa de estilos, gêneros e propósitos. Dito de outra forma, não havia unidade estilística clara que conectasse tais obras. Como bem coloca Marcelo Secron Bessa (2002, p. 9), o principal ponto em comum entre elas era que todas abordavam, sob um viés explícito ou implícito, o tema da AIDS.
No Brasil, o crescente número de casos de AIDS nos anos 80 revelou aos poucos que a situação ia muito além de uma epidemia sob um ponto de vista médico-científico. Para usar a expressão de Bessa, a AIDS deu origem a uma “epidemia discursiva” (1997, p. 19).
Aqui, como também no exterior, um ponto chave para entendermos essa “epidemia discursiva” pode ser encontrado nos textos jornalísticos, que reportavam em tons folhetinescos, de forma sensacionalista e muitas vezes preconceituosa, os casos de AIDS. Até o ponto em que Herbert Daniel chegou a afirmar que “ninguém poderá escrever a história da doença no Brasil sem recorrer ao noticiário da imprensa” (Daniel apud Bessa, 2002, p. 21).
Naquele momento, não se sabia as causas da doença, que por longo período foi referenciada como “câncer gay”, havendo muita especulação sobre a sua origem. Mesmo quando as notícias da mídia eram aparentemente envoltas numa roupagem científica, havia claros elementos melodramáticos e preconceituosos: falava-se em peste homossexual, vírus produzido em laboratório, em guerra bacteriológica entre potências mundiais (estávamos ainda na guerra fria), doença misteriosa da África, sangue, saunas gays e darkrooms, promiscuidade, sexo anal, oral e grupal, drogas injetáveis e inaláveis (p. 23), dentre muitos elementos que povoaram o imaginário popular da época.
Essas matérias jornalísticas exerceram influência sobre textos literários que abordaram a AIDS, tendo contribuído para a formação de um público fiel dessas narrativas melodramáticas e sensacionalistas. Tais textos contribuíram para instaurar uma onda de pânico sexual e preconceito no Brasil e deram ao público as primeiras histórias e faces dos “doentes de AIDS”, trazendo imagens chocantes de indivíduos à beira da morte, que ajudaram a construir o estereótipo do doente de AIDS, mais tarde personificado na figura de Cazuza na capa da Revista Veja de 26 de abril de 1989.
A reação literária
Em meio a essa proliferação de representações midiáticas da doença, aos poucos começou a surgir uma produção literária relacionada à AIDS que se opunha à visão do discurso dominante. Uma das primeiras vozes da doença no Brasil foi Herbert Daniel, um importante militante de esquerda e precursor no país da defesa dos direitos LGBT. Daniel foi um dos primeiros autores a tratar do tema num ensaio publicado ainda em 1983, intitulado “A Síndrome do Preconceito”. Já nesse momento, Daniel deixou claro seu descontentamento com a forma pela qual a mídia tratava a epidemia da AIDS, buscando em seus textos se contrapor enfaticamente aos estereótipos amplamente difundidos.
Daniel se insurgiu contra o uso do termo aidético, sempre empregado de forma pejorativa e condenatória. Sobre o tema, ele disse certa vez: “(…) quando se tem AIDS, dizem as más e poderosas línguas que a gente é ‘aidético’. (…) Eu, por mim, descobri que não sou ‘aidético’. Continuo sendo eu mesmo. Estou com AIDS” (Daniel apud Bessa, 2002, p. 71). Ao seu descolar da personagem criada pela mídia, e ao reforçar uma condição transitória e instável, Daniel deixa claro seu desejo de se contrapor ao discurso dominante e tomar as rédeas da sua própria narrativa.
Daniel é autor, ainda, do romance Alegres e Irresponsáveis Abacaxis Americanos (1987), um dos primeiros a ter a AIDS como tema. Embora tenha inicialmente optado pela ficção, Daniel se afastou dela após tomar conhecimento de sua soropositividade, passando a buscar uma produção mais ensaística e não-ficcional. Daniel passou a priorizar, então, uma linguagem mais direta e informativa, por vezes pedagógica, com o objetivo de desmistificar a doença e combater a visão preconceituosa difundida pela mídia.
Importante destacar, ademais, que Daniel, além de participar da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA), foi um dos fundadores do Grupo Pela Valorização, Integração e Dignidade do Doente de AIDS (Grupo Pela VIDDA) (p. 86). A ideia foi criar um grupo no qual as pessoas com AIDS não fossem apenas destinatários de um serviço, mas sim forças ativas nas decisões e ações a elas relacionadas, o que estava em consonância com a filosofia adotada em seus escritos.
Além de Daniel, falar desse momento da literatura da AIDS no Brasil é impossível sem mencionar Caio Fernando Abreu. Caio foi um dos primeiros autores brasileiros a citar a palavra AIDS em sua obra, na novela “Pela noite”, incluída no livro Triângulo das águas, de 1983, mesmo ano em que foi diagnosticado o primeiro caso da doença no Brasil.
Na obra de Caio, é recorrente a ideia de dificuldade ou mesmo impossibilidade de consumação da realização amorosa. Para o autor, a AIDS teve um papel importante em estabelecer esse contexto de paranoia sexual, como demonstrava, perplexo, em 1985:
Não quero falar de podres poderes. Há coisas mais graves no ar. São Paulo atualmente é uma cidade tomada pela paranoia da AIDS. Pelo menos na faixa de gente-como-a-gente: essa parcela mínima da população que não só come e mora (coisa rara), como ainda por cima lê, vai ao cinema, essas coisas. Conheço pessoas que não se tocam mais. O que é que se faz quando aquilo que era possibilidade de prazer – o toque, o beijo, o mergulho no corpo alheio capaz de nos aliviar da sensação de finitude e incomunicabilidade – começa a se tornar possibilidade de horror? Quando amor vira risco de contaminação (Abreu apud Bessa, 2002, p. 120).
É nesse contexto que Caio entendia a doença como uma dupla epidemia: a “AIDS do corpo” e a “AIDS psicológica”. Esta última é evidenciada pela onda de paranoia, preconceito e isolamento que foi causada pela doença física. Por assim dizer, a AIDS representou o momento em que, nas palavras do autor, “o amor vira risco de contaminação”, o que Bessa bem qualificou como um “estado de sítio afetivo-sexual” (p. 120). Como decorrência, é possível notar na sua obra um claro tom de desesperança e pessimismo em relação à realização amorosa, adiada por prazo incerto pela epidemia, bem como uma nostalgia pela época em que o prazer sexual não era visto como perigo de vida.
Na novela “Pela noite”, por exemplo, dois homens se encontram na noite paulistana e acabam no apartamento de um deles, onde passam longas horas conversando. Não revelam para o outro seu nome verdadeiro, assumindo pseudônimos: Pérsio e Santiago. Ao mesmo tempo que a conversa deles mostra um claro jogo de sedução, também transparece uma inquietação em relação ao sexo, reveladora de um contexto em que se aproximar do outro se torna perigoso, representando, até mesmo, um risco de vida.
Ao final da novela, contudo, ainda parece haver algum resquício de esperança para o desenlace amoroso, já que, ao final, Pérsio e Santiago se libertam de seus codinomes inventados, tornando-se mais abertos a uma aproximação, driblando a onda de paranoia instalada com o advento da epidemia:
– Resolveu aceitar aquele chá, Santiago?
– Eu não me chamo Santiago – ele disse.
Não afastou o corpo para que o outro entrasse. Mas ele entrou. Fechou a porta às suas costas. Estendeu as duas mãos. Tocou-o nos ombros. De frente.
– Eu também não me chamo Pérsio. Portanto não nos conhecemos. O que é que você quer?
Ele sorriu. Estendeu as mãos, tocou-o também. Vontade de pedir silêncio. Porque não seria necessária mais nenhuma palavra um segundo antes ou depois de dizerem ao mesmo tempo:
– Quero ficar com você.
Provaram um do outro no colo da manhã.
E viram que isso era bom (2012, p. 216).
A temática da AIDS continuou surgindo na obra ficcional de Caio produzida após a novela “Pela noite”, com destaque para Os dragões não conhecem o paraíso, coletânea de contos publicada em 1988, e seu único romance, Onde andará Dulce Veiga?, de 1990.
É interessante notar que, apesar de a temática da AIDS estar presente em tais obras, a sua produção literária é marcada por poucas menções expressas às siglas HIV e AIDS, que quase sempre aparecem de forma elíptica e sugerida. Tal recurso, como defende Bessa (p. 115), consistia numa forma de conferir à doença novas percepções e imagens, afastando-se dos estereótipos e preconceitos então correntes.
Esse recurso à elipse pode ser encontrado nas “Cartas para além dos muros”. Essa série de quatro crônicas em forma epistolar foi escrita durante sua internação no hospital de infectologia Emilio Ribas, situado na capital paulista, e publicada no jornal O Estado de São Paulo entre 1994 e 1995. Foi a partir delas que Caio tornou pública a sua soropositividade, e buscou, pelo gênero epistolar, uma comunicação mais direta com seus leitores. Não significa dizer, contudo, que há assertividade e clareza nas cartas, que se valem de linguagem velada e cifrada para atingir novas formas de falar sobra a AIDS, como deixa claro o início da primeira delas:
Alguma coisa aconteceu comigo. Alguma coisa tão estranha que não aprendi o jeito de falar claramente sobre ela. Quando souber finalmente o que foi, essa coisa estranha, saberei também esse jeito. Então serei claro, prometo. Para você, para mim mesmo. Como sempre tentei ser. Mas por enquanto, e por favor, tente entender o que tento dizer (1996, p. 102).
Caio só deixa de lado esse recurso à elipse na “Última carta para além dos muros” (que, na verdade, é a terceira epístola). Nesta, Caio adota um tom mais confessional, colocando de forma expressa a sua sorologia, e, distanciando-se da abordagem sensacionalista e preconceituosa existente na época, assume a narrativa da sua condição de sujeito assumidamente homossexual e soropositivo.
Outras obras que têm o HIV/AIDS como tema publicadas no Brasil nesse período incluem Risco de vida, de Alberto Guzik (1995), A doença, uma experiência, de Jean-Claude Bernardet (1996) e Depois daquela viagem, de Valéria Polizzi (1997).
O livro de Polizzi teve um forte impacto na época de seu lançamento. Em 1997, a AIDS no Brasil passava por uma mudança do perfil epidemiológico, com estatísticas que revelavam a crescente infecção por mulheres e heterossexuais (p. 325). O livro de Polizzi foi importante para desmistificar, ainda que parcialmente e de forma limitada, a ideia da AIDS como uma doença circunscrita aos gays. Seu livro, assumidamente autobiográfico, teve grande repercussão num contexto de campanhas de prevenção, sendo inclusive adotado como paradidático em colégios do ensino básico e médio (p. 326), e expandiu a discussão sobre o tema no Brasil para setores da sociedade que ainda não tinham se aproximado da questão.
A literatura pós-coquetel
Por volta da época de lançamento de Depois daquela viagem, mudanças importantes no cenário da epidemia estavam ocorrendo. Em 1997, já havia começado a ser implementado o coquetel antirretroviral, que conferiu aos doentes de AIDS um tratamento eficaz e a possibilidade de sobrevivência. Aos poucos, a AIDS e a sua percepção começou a se modificar, passando de uma sentença de morte a uma doença crônica, que se não pode, ainda, ser curada, na maioria dos casos pode ser mantida sob controle.
Paradoxalmente, a partir desse momento, as discussões públicas sobre AIDS começam a diminuir, encaminhando-se para a periferia do discurso. As notícias, antes constantes e numerosas, se tornam esparsas na mídia, pondo fim à espetacularização das histórias dos soropositivos iniciada ainda nos anos 1980. De maneira similar, as obras literárias que abordam a AIDS diretamente começam a se tornar cada vez mais raras.
Uma hipótese é que o controle da doença proporcionado pelo coquetel antirretroviral poderia ter dado a ideia de que o HIV não seria mais um problema digno de atenção. Trata-se de uma visão muito questionável, uma vez que o referido controle é circunscrito àqueles que têm acesso e aderem ao tratamento antirretroviral, o que infelizmente está longe de ser a totalidade dos casos. Não por coincidência, a mídia começa a se afastar do tema, e as campanhas de prevenção, antes diversas e ousadas, tornam-se cada vez mais tímidas, o que pode ser, em parte, explicado pelo lobby conservador e do fundamentalismo religioso exercido com cada vez mais força na esfera política.
Nesse contexto de desaparecimento de esforços governamentais e campanhas de conscientização, três situações bem demonstram esse emudecimento forçado. Em 2011, houve a suspensão da divulgação de material educativo para as escolas, parte do Programa Brasil Sem Homofobia (divulgado pela imprensa como kit anti-homofobia ou kit gay); em 2012, foi cancelada a campanha de prevenção de carnaval voltada ao público de jovens gays; e em 2013, vetou-se a campanha voltada a profissionais do sexo, que buscava unir prevenção com autoestima na prostituição (Seffner e Parker, 2016, p. 29).
É diante desse cenário que as estatísticas mais recentes divulgadas no Boletim Epidemiológico HIV/AIDS-2016 do Ministério da Saúde revelam que a infecção entre homens jovens de 15 e 19 anos triplicou, e dobrou entre aqueles de 20 a 24 anos, entre 2006 e 2015, dentre outros dados alarmantes.
Essa situação tem levado, nos últimos anos, a uma reação da sociedade a esse novo levante conservador, que tem se tornado cada vez mais intenso, com atitudes que visam a promover uma discussão atual e contemporânea sobre o HIV/AIDS. Colocado de outro modo, a imposição de um emudecimento discursivo, em contraste com a epidemia discursiva que se verificou nos anos 1980 e 90, tem gerado um ressurgimento da discussão sobre o HIV/AIDS. As repercussões são sentidas também no campo da literatura, o que se revela pelo aparecimento de uma nova geração de autores que tratam do tema, em sua maioria jovens. É essa literatura que vem sendo chamada de “pós-coquetel” (Sousa, 2015).
Além dos recentes dados que mostram aumentos nos níveis de infecção e o desaparecimento de campanhas de conscientização imposto por setores conservadores, um dos motivos que pode ser identificado para isso é que o discurso criado nos anos 1980 sobre o HIV/AIDS, muito marcado pela questão da morte, pela conexão com a homossexualidade e a promiscuidade, e pelo reforço de estereótipos através de, por exemplo, imagens como a foto de Cazuza à beira da morte, ainda é muito presente nos dias atuais. Apesar de todas as evoluções da doença, da constatação de que o vírus atinge a todos independentemente de orientação sexual e da introdução do coquetel antirretroviral, esse discurso preconceituoso e nocivo ainda é dominante no país.
Nesse contexto, nos últimos anos há alguns exemplos marcantes de livros publicados que abordam a questão do HIV de uma forma moderna e contemporânea. Buscam trazer a questão para os dias atuais e se desvencilhar de imagens já datadas da doença. Um exemplo desse contexto são alguns livros que têm sua origem numa forma de comunicação fruto das evoluções tecnológicas das últimas décadas: os blogs.
Os livros de Rafael Bolacha, Uma vida positiva (2012), e de Gabriel Abreu, pseudônimo de Salvador Corrêa, O segundo armário: diário de um jovem soropositivo (2016), são exemplares desse caso. Ambos têm sua origem em blogs publicados na internet, iniciados imediatamente ou logo após a descoberta da soropositividade por seus autores, e possuem um viés assumidamente autobiográfico. Os relatos são valiosos para se tentar entender o que significa no Brasil de hoje se descobrir soropositivo.
Uma questão que atravessa esses relatos é a confrontação inicial com as imagens e visões do HIV/AIDS dos anos 1980 e 90, que, como venho afirmando, ainda é muito forte. O medo da morte e o sentimento de culpa, que são marcas do discurso inicial da AIDS, atravessam ainda hoje as vidas de quem se descobre soropositivo e representam um obstáculo importante a ser superado.
As questões que perpassam esses relatos são as mais diversas: o confronto e a desvinculação dos estereótipos e imagens da doença, o relacionamento afetivo e sexual após o diagnóstico, o medo do preconceito, como contar aos familiares, a busca pelo tratamento adequado, a relação com os médicos, que nem sempre é fácil, os efeitos colaterais dos remédios, a espiritualidade, a autodescoberta, dentre outros.
Tais questões revelam uma mudança de paradigma em relação à doença, também presente na literatura pós-coquetel. O foco deixa de ser a iminência da morte e um inevitável senso de urgência e imediatismo, e passa a ser como encarar a vida com HIV, em suas mais diferentes facetas. O coquetel antirretroviral, que representou a possibilidade de sobrevivência e de construção de um porvir com o vírus, torna-se uma presença marcante nos textos, que passam a se debruçar em planos para o futuro, o que muitas vezes era impensável nos anos 1980 e 90.
Outro exemplo marcante dessa literatura é o livro de poesia de Ramon Nunes Mello, Há um mar no fundo de cada sonho (2016). Ramon tornou pública a sua soropositividade em artigo publicado na coluna de Jean Wyllys na Carta Capital no Dia Mundial de Luta Contra a AIDS, em 2015, intitulado “O sentido de urgência: a necessidade de se conversar sobre o HIV”.
Nesse artigo, fortemente inserido num contexto que o autor descreve como “viver de forma política”, ele fala sobre a importância de levantar a voz contra visões preconceituosas e retrógradas sobre o HIV, reconhecendo que a grande cura da AIDS é o combate ao preconceito. Ramon reconhece a luta daqueles que vieram antes dele, inserindo-se na tradição daqueles que chama de seus “irmãos de luta”, dentre os quais Cazuza, Herbert Daniel, Caio Fernando Abreu, o sociólogo e ativista Herbert de Souza (Betinho) e o poeta português Al Berto.
Nesse intento, nenhuma arma é mais poderosa do que a linguagem, como Ramon coloca em seu poema “diálogo com william s. burroughs”:
ser
extraplanetário
eu sou o outro vocêin lak’ech ale k’in
transformo
objeto em sujeitoa linguagem
o verdadeiro
vírus (2016, p. 68)
Se a linguagem é o vírus, como afirma Ramon, nada mais importante do que tomar a linguagem para si, tirando o seu monopólio dos institutos de saúde, do governo e da grande mídia, permitindo que novos significados sejam conferidos ao HIV, e dessa forma subvertendo e desconstruindo o discurso dominante, numa atitude de desconstrução de traços marcantemente queer.
Em seu livro, Ramon nos convida a um mergulho sem proteção na sua lírica, marcada por uma jornada de autocompreensão, como ele coloca no poema “kundalini”[2] (2016, p. 19), de forte espiritualidade, que pulsa ao longo das páginas, de estreitamento da relação com a natureza, de amor e de contemplação. No poema “luz”, Ramon fala sobre essa jornada:
quando a saúde é um grito ao sol
tudo é possível
até mesmo vencer o medo que silenciosamente destrói minhas defesasenxergar apenas um filete colorido
guia de passos
tortuososexistir é um grito mudo e constante
aprende-se aos tombos
a ser grato por tudo
o que dói (2016, p. 58)
É importante mencionar, ainda, outras duas obras recentes relevantes que abordam a questão do HIV nesse momento pós-coquetel. A primeira é o romance Mamãe me adora (2012), do autor Luís Capucho. Capucho é também cantor e compositor, e publicou outros dois romances: Rato (2007), e o seu transgressor romance de estreia Cinema Orly (1999).
Em Mamãe me adora, que tem toques autobiográficos, o narrador, soropositivo como o autor, narra uma viagem que fez com a sua mãe à Aparecida do Norte. Numa certa passagem, ele fala sobre a presença marcante dos medicamentos na sua rotina e na sua vida, e da relação de amor e ódio que trava com eles:
Desde que comecei a tomar os terríveis remédios do coquetel para Aids, ouço dizer que a tecnologia médica é rápida, que logo surgirão remédios melhores e tudo, mas engulo, todos os dias, nos mesmos horários, há anos, essas ratazanas nojentas.
E, desde então, tenho sido terrivelmente domesticado por elas, por seus horários.
É certo que estou aproveitando a liberdade da viagem sem tomá-los, mas não saberia mais estar fora de sua disciplina, fora de sua grade.
Não tenho medo do vírus HIV.
Tenho medo é de não saber administrar o meu tempo e medo de me perder em sua grandeza.
Os remédios deram-me determinação. Através deles, fragilizado, determino meus dias, o tempo, meu cotidiano. E são bons (2012, p. 80).
Capucho explora em sua obra a centralidade e o destaque das medicações na vida de um soropositivo, que parece ser uma marca da literatura pós-coquetel. O narrador afasta o medo do vírus, e levanta o medo da domesticação e controle do tempo imposto pelos medicamentos, dos quais não pode se libertar inteiramente. Não é a morte física que perpassa as preocupações do narrador, mas sim a morte da autonomia, de um certo controle do corpo imposto pelos rígidos e inafastáveis horários dos antirretrovirais.
Outra questão importante dessa literatura do HIV/AIDS mais recente são os relacionamentos sorodiscordantes. Um autor também jovem, Felipe Barenco, escreveu sobre essa questão em seu romance de estreia, intitulado Fake (2014). De acordo com o que consta na própria orelha do romance, o livro faz parte da literatura Young Adult, voltada para adolescentes e jovens adultos. O romance de Barenco fala com muita leveza e bom humor sobre questões relevantes, como sair do armário e o processo de descoberta da sexualidade. Seu romance, escrito numa linguagem acessível e moderna, é importante por trazer a discussão do HIV para as gerações mais novas, que não conviveram com o período da epidemia dos anos 1980 e 90.
Considerações finais
O tortuoso caminho trilhado no âmbito da epidemia do HIV/AIDS desde os anos 1980 sempre passou, de uma forma ou de outra, pelas diferentes formas de apropriação da linguagem. No seu início, o total desconhecimento sobre a doença e suas causas, o desejo de apontar culpados e o imenso número de mortes, que tornava impossível ignorar a questão, levou ao que se chamou de “epidemia discursiva”. Cristalizou-se, a partir da predominância de uma forma de linguagem pretensamente científica, sensacionalista e folhetinesca, estigmas e estereótipos ainda hoje muito fortes.
Com a introdução dos medicamentos antirretrovirais, contudo, veio não apenas a possibilidade de sobrevivência, mas também a reação dos setores mais conservadores da sociedade, cada vez mais representados na esfera governamental, com a imposição do emudecimento das campanhas de conscientização e da discussão ampla e aberta sobre o vírus e seus riscos, possivelmente contribuindo para os dados alarmantes refletidos nas estatísticas mais recentes.
Em um momento como em outro, a literatura se viu num cenário de confrontação com discursos retrógrados. Paradoxalmente, apesar das diversas mudanças atravessadas pela epidemia, com destaque para a introdução do coquetel antirretroviral na segunda metade dos anos 1990, muitas das questões iniciais se mantiveram. Se Herbert Daniel se insurgia contra a forma pela qual os doentes de AIDS eram retratados, e Caio Fernando Abreu falava da “paranoia sexual” e buscava fugir dos estigmas construídos em torno do vírus, as obras mais atuais revelam que essas visões datadas ainda hoje impõem sua força.
Por outro lado, questões que nos anos 1980 e 90 eram presentes, porém eclipsadas pelo espectro da morte e pela improbabilidade de um futuro de longo prazo, passaram a ser mais destacadas no âmbito da literatura pós-coquetel. Desse modo, a vida com o vírus do HIV, e não mais a morte por AIDS, passa a ser o enfoque dessas obras, que passam a se debruçar sobre questões como a presença e importância dos medicamentos antirretrovirais nas vidas dos soropositivos, os relacionamentos sorodiscordantes, a autodescoberta e a espiritualidade, dentre tantas outras.
Nessa busca por novas abordagens e por conferir novos significados ao HIV, a literatura não tem sido o único veículo utilizado, contando também com o auxílio de outras formas de expressão, como, por exemplo, os blogs e os canais do Youtube. Pode-se citar, nesse contexto, o canal “Chá dos 5”, do qual participa Rafael Bolacha, que já produziu alguns vídeos sobre o HIV, e o “HDiário”, de Gabriel Comicholi, que se descobriu soropositivo e começou a relatar a sua experiência em vídeos postados em seu canal. Tanto as obras literárias como os testemunhos nos blogs e os canais do Youtube são exemplos de ressignificação dessas experiências e de desconstrução do discurso dominante sobre o HIV/AIDS. Assim, com a apropriação da linguagem, abre-se a possibilidade de modificar o próprio vírus.
* Danilo Rodrigues Melo é mestrando em Literatura Comparada, pelo Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura da UFRJ, com bacharelado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ (2012).
** João Camillo Penna é professor da UFRJ, vinculado ao Departamento de Ciência da Literatura da Faculdade de Letras, com pós-doutorados no Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC-UFRJ; 2002) e na Universidade Paris Diderot-Paris VII (2012). É autor, dentre outros, do livro Escritos da sobrevivência (7Letras, 2013).
Referências
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BESSA, Marcelo Secron. Histórias positivas: a literatura (des)construindo a AIDS. Rio de Janeiro: Record, 1997.
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CAPUCHO, Luís. Mamãe me adora. Rio de Janeiro: Vermelho Marinho, 2012.
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MELLO, Ramon Nunes. Há um mar no fundo de cada sonho. Rio de Janeiro: Verso Brasil Editora, 2016.
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SOUSA, Francisco das Chagas Alexandre Nunes de. Literatura e cinema pós-coquetel: da epidemia discursiva aos silenciamentos nas narrativas. Minicurso no II Seminário Internacional Desfazendo Gênero, realizado na Universidade Federal da Bahia, em 6 de setembro de 2015.
Notas
[1] Agradecimento especial a Alexandre Nunes de Sousa (UFCA), de quem ouvi pela primeira vez a expressão “literatura pós-coquetel” num ambiente acadêmico, e cujas considerações sobre o tema no II Desfazendo Gênero (2015) serviram de inspiração para esse texto.
[2] “(…) serpente / das águas divinas / nagayana / unifica as energias / dos corpos nessa jornada de / autocompreensão”