Não é fácil escrever neste momento contando o que estamos vivendo na Itália, contando com um estado de suspensão. A cada dia que passa se torna claro que é o começo de uma nova normalidade que não conhecemos. Na verdade, o que posso fazer é escrever o que estou vivendo, me posicionando, como aprendi a fazer sempre enquanto antropóloga feminista.
A minha experiência do isolamento é determinada por minha cor branca, por minha classe média, por meu emprego público e por meu gênero, mas no começo foi antes de tudo situada geograficamente.
Moro em Roma, mas trabalho numa universidade em uma das regiões mais atingidas pela epidemia, a Emilia Romagna. Antes que Roma parasse, assim como o resto do país, eu parei de pegar o trem para ir trabalhar, recebi indicação de começar a gravar as aulas em casa, quando as escolas de Roma ainda estavam abertas.
Experimentei antes das pessoas que conheço em Roma a dimensão prevalente desta epidemia: não enfrentamos essa emergência toda/os da mesma condição. Há quem sofre mais no isolamento, quem sofre menos, há quem pode continuar trabalhando, quem não pode, quem perde o emprego, mas mesmo assim estamos juntos, de uma forma única e nova para nós. A saúde de um cidadão qualquer é importante para a minha saúde, o coletivo se tornou prioridade sobre as individualidades e para o que muitos concebem simplesmente como “minhas liberdades”.
Relembrando o que aconteceu: dia 21 de fevereiro é descoberto o primeiro paciente Covid-19 no Norte da Itália, a partir daquele momento algumas cidades são fechadas, ninguém sai, ninguém entra, mas o resto do país continua normalmente. Dia 4 de março fecham todas as escolas do país, dia 8 o país inteiro se torna “zona vermelha” e o primeiro-ministro pede para os italianos ficarem em casa. Dia 11 todos os estabelecimentos comercias não essenciais são fechados, ficam abertas lojas de comida e farmácias. Dia 22, frente ao crescimento dos contágios e das mortes e com as greves espontâneas do/as trabalhadoras dentro de várias fábricas, o primeiro-ministro decide fechar a produção de bens não essenciais e não estratégicos para a economia do país.
Essas datas não são suficientes para entender o tempo psicológico de uma experiência completamente nova, em que cada um demorou o seu próprio tempo para entender realmente o que estava acontecendo, como essas decisões iam afetar a própria rotina. Coisas banais, que fazíamos automaticamente, não são mais banais nem permitidas. Desde dia 11 de março já foi mudado quatro vezes o modelo de declaração necessário para sair de casa, há controles da polícia nas ruas de carros e transeuntes.
Os primeiros dias foram marcados pela campanha #euficoemcasa, a que todos foram chamados a aderir com senso de responsabilidade, fazendo um esforço coletivo para limitar os contágios e aliviar o fluxo de doentes para os hospitais. Fomos bombardeados por mensagens, áudios, entrevistas, artigos e vídeos nos contando a tragédia dos hospitais, onde médicos deviam escolher (e ainda devem) quem entubar e quem não entubar, quem poderia viver e quem não. Mas é possível falar em uma comunidade nacional que, coletivamente, cada um fazendo sua própria parte, enfrenta o contágio? Por quem é formada essa comunidade nacional?
A responsabilização dos indivíduos que não devem sair de casa, que não devem passear, foi logo tema de reflexões e alvo de críticas: e quem não pode deixar de sair? Quem precisa trabalhar, ou ajudar uma pessoa dependente? A lei prevê e autoriza esse tipo de motivação para os deslocamentos, mas o que acontece com quem não tem casa, ou com os/as que estão presos nos centros de detenção para pessoas estrangeiras consideradas “ilegais”. O que acontece com as mulheres que vivem violência doméstica? O que acontece com as pessoas com transtornos mentais, ou com equilíbrio mental que requer um momento diário fora de casa e afastado das relações familiares? A retórica #euficoemcasa exclui quem não pode ficar em casa de forma segura e saudável, narra uma realidade parcial, tentando produzir um sentimento de coletividade a que muitos/as aderiram com convicção, inclusive pelo alívio psicológico por se sentir parte de uma coletividade, enquanto estamos numa condição de solidão e isolamento forçados, prolongados e sem saber quanto tempo vai durar.
Outro momento de produção de união que encheu muitos corações de força foi quando os/as italianas tocaram ou cantaram música nas janelas abertas no mesmo horário (18 horas). Em muitos casos foi tocado o hino nacional, mas aconteceram variações interessantes, como “Bella Ciao”, a música da Resistência ao fascismo. Mas quem está na condição de poder tocar uma música, de cantar? Enquanto na minha cidade, em muitos bairros, esse foi um momento de união e solidariedade entre pessoas que não se conheciam, para os habitantes das cidades mais atingidas não era imaginável ter um momento de música. O luto, a morte e perda de pessoas queridas ou conhecidas, a angústia pelas contagiadas, pelas muitas pessoas com febre e tosse em casa sem ser devidamente atendidas, e o medo pelos trabalhadores nos hospitais, tudo isso podia tornar o espaço da música coletiva uma farsa. E o que dizer das revoltas nos cárceres depois que foram vedadas as visitas como medida para conter o propagação do vírus, durante as quais morreram detidos, muitos por overdose de remédios que foram roubados da farmácia da prisão. De novo, nos perguntamos por quem é formada essa comunidade nacional.
Quando, apesar das restrições aos movimentos individuais, o número dos contágios continuava subindo, sobretudo nas regiões mais ricas do país, que são as mais atingidas, e aumentavam as notícias sobre greves auto-organizadas nas usinas e fábricas, ficou claro que responsabilizar o indivíduo contribuía para esconder, disfarçar duas questões:
1. O sistema da grande produção não queria parar de produzir – o capitalismo não quer parar – e a rede de saúde pública dessas regiões, sobretudo da Lombardia, que se definia como “excelente”, não estava preparada para lidar com essa situação.
2. A configuração de uma realidade em termos de saúde versus capitalismo, que também outros países (fora a China) estão enfrentando, demonstrou as resistências dos proprietários dos meios de produção em parar de produzir e se concretizou na persecução individual de quem está fora de casa, aparentemente sem motivo.
Como se toda/os pudéssemos da mesma forma contribuir para a diminuição dos contágios. A prefeitura de Roma chegou ao cúmulo de lançar um aplicativo para que os cidadãos possam denunciar, em forma de verdadeira delação, grupos de pessoas na rua.[1] Nas cidades, carros da polícia circulam com megafones mandando ficar em casa. Enquanto isso, há pessoas que devem ir trabalhar sem as devidas medidas de segurança, porque a economia não pode parar.
O desafio então em que me encontro, junto a muitas outras pessoas, é procurar o equilíbrio necessário entre participar individualmente com os nossos atos ao esforço de conter o contágio através do isolamento e distanciamento social, mas também reconhecer como esse esforço, sem adequadas medidas, se transforma em um mecanismo de reprodução das opressões e das desigualdades de classe, raça e gênero.
Se de um lado esse vírus parece ser democrático na sua forma de contagiar (quem mais tem vida social, mais é exposto), do outro sabemos que ser curado depende de outros fatores: o acesso aos serviços médicos, e antes de tudo a presença de serviços médicos adequados.
A Itália, como outros países, está experimentando os resultados de décadas de cortes à saúde pública praticados por governos de esquerda e de direita. A escassez de recursos públicos para a área da saúde é o resultado da adesão incondicional da classe que nos governou à economia neoliberal, propagada pela União Europeia. Médicos e enfermeiros são a categoria mais atingida em termos de mortes pelo vírus, por falta de medidas de segurança. Se nos parece impossível pensar que pode existir uma alternativa a esse sistema, então temos que reler Mark Fisher. O medo que os mais poderosos têm de perder os privilégios é para nós o motor para pensar que outra sociedade é possível, para mudar.
Uma das questões sobre as quais temos que refletir, e que é resultado da produção feminista, é o quanto o doméstico é político, o quanto o espaço doméstico é central na reprodução de relações de opressão de raça, gênero e classe. As mulheres são as que estão pagando o preço mais alto da emergência, tendo que fazer frente a todas as necessidades que antes eram organizadas fora de casa ou através da ajuda de pessoas externas ao núcleo doméstico.[2] Se parece que as mulheres morrem menos do que os homens, a suspensão da normalidade (como por exemplo o fechamento das escolas) implica em aumento do trabalho e cuidados feito pelas mulheres.
Calcula-se que na Itália há 2 milhões de trabalhadoras domésticas, na maior parte estrangeiras e não regularizadas, que não foram até agora incluídas nas medidas tomadas para ajudar quem ficou sem poder trabalhar.
Como no resto do mundo, também na Itália o trabalho doméstico tende a não ser formalizado e é exposto a diversas formas de exploração. Não incluir nas medidas de compensação salarial as trabalhadoras domésticas é uma escolha política que atinge de forma violenta as mulheres de classe popular e muitas vezes de origem estrangeira, na base do argumento, mais ou menos implícito, que trabalho doméstico não é trabalho como os outros. Esse argumento, que afeta de forma diferente a vida de todas as mulheres que cumprem trabalho doméstico, nesse momento específico tem como consequência também invisibilizar o trabalho das mulheres que vão assumir “naturalmente” as tarefas que não são mais cumpridas pelas trabalhadoras domésticas[3]. Há quem considere que a própria trabalhadora doméstica deve continuar trabalhando nesses dias de isolamento, porque a limpeza da casa não pode ser organizada de uma forma nova e mais igualitária dentro da família. Temos que registrar como é difícil para muitos empregadores aceitar pagar o salário e deixar a trabalhadora também cumprir o isolamento.
Nessa nova vida, como é o tempo de trabalho dentro de casa de um casal heterossexual com filhos? Quem atende às necessidades das crianças? Quantas interrupções no trabalho de cada um dos parceiros? Quem cuida da casa quando todos estão sempre em casa? Se essa experiência de isolamento, de suspensão da economia e da rotina poderia representar um momento de transformação radical, isso não pode ser afirmado só em relação à economia global capitalística, porque sabemos que não existe a dicotomia produção/reprodução.
A revolução radical que muitos dizem podermos realizar a partir desse momento de crise do capitalismo globalizado (penso por exemplo em Žižek[4]) não pode acontecer se não focarmos também na revolução dentro das nossas casas, nas nossas unidades domésticas, onde o trabalho repetitivo, cansativo do ponto de vista físico e psicológico, deve ser repensando numa perspectiva feminista.
Como sabemos, a casa não é um lugar seguro para muitas mulheres, apesar de ser um abrigo para muitas frente à opressão de raça, classe e religião que vivem na sociedade. Os dados dizem que, desde a atuação das medidas de isolamento, caiu brutalmente o número de crimes na rua, e aumentou o número dos crimes dentro de casa. Para as mulheres e crianças que sofrem violência doméstica, para as pessoas LGBTQ que vivem em famílias que negam suas escolhas, ficar em casa significa não poder ter acesso às relações sociais que reconhecem a violência que estão vivendo. Para essas pessoas são as relações fora de casa que representam justamente uma segurança. As feministas de “Non una di meno” (“Nem uma a menos”, movimento nascido em 2016) lançaram uma campanha, #euficoemcasamas, para denunciar as implicações para muitas mulheres de ficarem dentro de casa.[5]
A campanha visa abrir espaços virtuais em que se possa comunicar o que as mulheres vivem, as mudanças na relação com o espaço e o tempo, denunciar e conseguir apoio para sair da violência doméstica entrando em abrigos institucionais e denunciar as formas de legitimação da violência de gênero e homo-transfóbica a que assistimos no Facebook e em outras redes sociais. Além da questão da violência sexual e física, o isolamento forçado aumenta a dependência econômica de muitas mulheres, o que por sua vez as torna mais vulneráveis do ponto vista da autonomia sexual.
Não podemos aceitar que haja mulheres que devem escolher entre defender a própria saúde e defender a própria pessoa da violência de gênero. O que vemos nessa crise mundial é que falta uma análise adequada de como sexo e gênero impactam nos contágios, nas mortes e na vida de quem enfrenta a existência na epidemia. Na Itália se calcula que as mulheres representam 1/3 das mortes por Covid-19, mas não sabemos o porquê, inclusive porque a cada dia que passa fica mais claro que os dados que temos não são confiáveis (como, quem recolhe os dados?). Falta saber também como origem nacional e classe impactam nos contágios. Precisamos de uma análise e de uma política de intervenção que considerem a imbricação das relações sociais em que vivemos.
Outro aspecto impactante desses dias é o fato de que muitas pessoas estão lidando com o luto sem poder se despedir de quem morreu. Os doentes que entram nos hospitais não recebem visitas, os médicos ligam para as famílias para dar notícias, inclusive para informar sobre a morte. Quando isso acontece, a família não pode recuperar o contato com o morto, os enterros são proibidos para evitar concentrações e às vezes não há espaço suficiente para guardar todos os caixões.[6]
É comum acontecer da família não saber para onde o corpo foi levado, onde foi enterrado. Em muitos casos não há notícias, o que leva a uma relação com o luto completamente nova, que se caracteriza por ser uma experiência ao mesmo tempo individual e coletiva, feita em ausência de relações e contato físico.
Como sabemos, por lei hoje não podemos nos abraçar, nos tocar, chorar no ombro de alguém, não é possível a experiência concreta do carinho. Ainda não sabemos os efeitos desta nova maneira de viver o luto nas comunidades mais atingidas, a falta de relações e de um ritual culturalmente reconhecido como apropriado para se despedir do morto é uma novidade para a nossa sociedade. Neste momento de emergência e crise é possível que as pessoas que perderam alguém querido se concentrem no presente, nas necessidades atuais, inclusive a de não serem contagiados, mas quais os efeitos no tempo de um luto sem relações, sem rituais de despedida?
Muitos apontam para o fato de que na maior parte os mortos são pessoas idosas, como se essa informação nos ajudasse a resistir e ter esperança, e racionalmente isso faz sentido (e essa é a lógica que levou os médicos a considerarem, em falta de recursos para todos, optar por curar os pacientes mais novos). Mas o sofrimento invade nossos corações.
Surpreendi-me ao ouvir umas das mensagens que o presidente da República enviou aos italianos nesse momento, dedicada exatamente à importância que as pessoas idosas têm nas famílias, sobretudo para as crianças. Em que sentido os idosos são importantes para nós? Não é só uma questão de afetos, é também uma configuração de práticas cotidianas, que são feitas de afeto, de presenças nos espaços públicos e privados, um modo para todas as gerações de imaginar o que significa “vida”. Fora das escolas primárias vemos um grande número de avós esperando a saída dos netos, e há quem chame atenção sobre a intensidade de contato entre crianças e idosos na nossa sociedade para explicar o alto número de mortos e contagiados em comparação a outros países europeus. A presença dos avós para cuidar das crianças aponta como a organização do trabalho produtivo e reprodutivo determina que não seja previsto para os pais (sobretudo os homens) o tempo do cuidado, o tempo para a reprodução da vida.
Enfim, não podemos deixar de lembrar também que muitos desses idosos recebiam uma aposentadoria, que talvez ajudasse membros da família mais novos que sobreviveram ao contágio.
O que estamos vivendo é certamente uma experiência que nos permite entender, de uma forma nova e dramática, algo que ensinamos nos cursos de antropologia: a nossa vida biológica, que tanto queremos proteger, não pode existir sem nossa vida social e sobretudo relacional. Somos humanos porque feitos de relações e de cultura, a nossa vida é feita de relações, e está sendo muito difícil proteger a vida de um vírus através do isolamento, da falta de contato físico.
Nessas semanas, descobri que a casa pode não ser mais o lugar da intimidade: o que me falta é a intimidade que experimento quando ando na rua, nos trens, quando cruzo pessoas, quando os olhares não são o meio para calcular quantos metros temos entre nós.
Sinto falta da minha cidade onde as relações anônimas, mas sempre sociais, constituíam também a minha intimidade.
* Valeria Ribeiro Corossacz é professora associada de antropologia da Università degli Studi di Modena e Reggio Emilia, Itália.
Notas
[1] Cf. https://www.romatoday.it/politica/coronavirus-segnalazioni-assembramenti-comune-roma.html.
[2] Esse aspecto não é específico da Itália, ver “COVID-19: the gendered impacts of the outbreak”, em https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(20)30526-2/fulltext.
[3] Cf. https://elan.jus.unipi.it/blog/towards-a-caring-democracy/
[4] ŽIŽEK, Slavoj. Um golpe como “Kill Bill” no capitalismo. In: DAVIS, Mike et al: Coronavírus e a luta de classes. Terra sem Amos, 2020.
[5] Cf. https://nonunadimeno.wordpress.com/2020/03/28/iorestoacasamalotto-tutti-i-giorni-lancio-della-campagna-di-non-una-di-meno/.
[6] Na cidade de Bergamo, a mais atingida, 310 foram os mortos levados para fora da cidade para serem cremados (notícia no Rádio Jornal RAI1 do dia 29 de março de 2020).