O que é Wold Newton e quem o inventou
Em seus livros seminais, Tarzan alive e Doc Savage: his apocalyptic life, o recentemente falecido Philip José Farmer, considerado um mestre da ficção científica, pretendeu contar as histórias reais dos homens a respeito de quem os autores Edgar Rice Burroughs e Lester Dent, criadores de Tarzan e Doc Savage, escreveram em suas séries de aventuras muito populares nas primeiras décadas do século 20. Indo além do pastiche1, ele confeccionou uma vasta árvore genealógica, na qual não apenas o Rei das Selvas e o chamado “Homem de Bronze” eram aparentados, como também diversos dos grandes heróis e vilões da literatura popular, os chamados pulps, romances de aventuras e mistério2.
A hipótese de Farmer era que, em 1795, um grupo de pessoas estaria em carruagens, atravessando o vilarejo de Wold Newton, em Yorkshire, quando um meteoro atingiu a terra não muito longe dali (o evento da queda do meteoro em Wold Newton é real, mas todas as pessoas identificadas por Farmer eram ficcionais). De acordo com Farmer, a ionização e radiação decorrente da queda do meteoro teriam afetado os homens e as mulheres próximos ao impacto, muitos dos quais já possuidores de excepcionais características hereditárias. Algumas das mulheres estariam em estado adiantado de gravidez e suas proles resultariam em indivíduos extraordinários e essa nova geração, graças a casamentos entrecruzados, também produziria uma descendência fora do comum, possuidora de habilidades físicas e mentais muito acima do homem comum.
Além dos já mencionados Tarzan e Doc Savage, Farmer incluiu dúzias de heróis e vilões ficcionais àquilo que batizou de Wold Newton Family, incluindo Sherlock Holmes e seu arqui-inimigo, professor Moriarty; A.J. Raffles; Professor Challenger e seu amigo Lord John Roxton; Nero Wolfe; Bulldog Drummond e o vilão Carl Peterson; Dr. Fu Manchu e seu adversário Sir Denis Nayland Smith; o Sombra; o Aranha; G-8; o Vingador; Travis McGee; C. Auguste Dupin; Lord Peter Wimsey; Arsène Lupin; Ludwig Horace Holly; Monk Mayfair, um dos cinco auxiliares de Doc Savage; John Clay, aka Colonel Clay; Dr. Caber; e muitos mais.
O exercício de Farmer em “mitografia criativa” (usando um termo cunhado por ele próprio)3 inspirou outros autores, tais como Alan Moore e Kim Newman. Moore admitiu abertamente a influência dos preceitos de Farmer em sua série As aventuras da Liga Extraordinária4, produzida em parceria com o ilustrador Kevin O’Neill, que apresentava um grupo de personagens originários de um número incontável de obras ficcionais convivendo num mesmo universo.
Philip José Farmer foi uma influência seminal (sobre a Liga Extraordinária). Quer dizer, li seus Tarzan alive e Doc Savage: his apocalyptic life, que têm toda aquela árvore genealógica da família “Wold Newton” conectando todos os heróis de aventuras pulp. Apesar de termos ido um pouco mais longe que isso com a Liga, não sei se teríamos sequer pensado nisso se não fosse o exemplo primordial de Philip José Farmer (Moore, s/d).
Por diversas vezes Kim Newman declarou seu respeito por Farmer pelo fato de ter sido um antecessor para sua série literária Anno Dracula5, uma audaciosa história alternativa na qual o Conde Drácula triunfa sobre o grupo liderado pelo professor Van Helsing, contrai matrimônio com a rainha Vitória e revela ao grande público a existência de vampiros. Anno Dracula é cheio de participações especiais e referências a diversos personagens históricos e ficcionais.
Não faço questão de ser considerado o inventor desse estilo – Philip José Farmer fez isso nos anos 70, Howard Waldrop criou uma tonelada de histórias e consigo pensar em muitos, muitos outros precedentes, de Henry Fielding a Nicholas Meyer, chegando a uma temporada do seriado televisivo Doctor Who, nos anos 60 (Newman, s/d).
Um grupo inspirado pelos textos de Wold Newton foi o Wold Newton Meteoritic Society, que publicou cinco números de um fanzine chamado The Wold Atlas, responsável por expandir conceitos de Farmer. Durante o processo, o grupo também incluiu personagens que não constavam da “família Wold Newton”, mas que estariam associados por aproximação. Em 1997, um admirador de Farmer chamado Win Scott Eckert, a princípio desconhecendo a existência da Wold Newton Meteoritic Society, criou o primeiro website dedicado à família Wold Newton. Uma parte do site era dedicada à “cronologia do universo de Wold Newton”, onde um tipo de artifício parecido com o jogo conhecido por Six degrees of separation, que estabelece seis graus de separação entre todas as pessoas do mundo, foi usado para importar personagens de outros trabalhos ficcionais por intermédio de histórias que demonstrassem a possibilidade de sua convivência com personagens já considerados como membros da família Wold Newton. Um dos exemplos favoritos de Eckert é o romance de David McDaniel, The rainbow affair, baseado na série de TV O agente da U.N.C.L.E., muito popular nos anos 1960. Nesse livro, os agentes Napoleon Sole e Illya Kuryakin encontram versões disfarçadas ou não diretamente mencionadas de Sherlock Holmes, Sir Denis Nayland Smith e Fu Manchu, John Steed e Emma Peel, o Santo, Miss Marple, Padre Brown, Tommy Hambledon e inspetor Roger West. O Departamento Z, James Bond e Neddie Seagoon também são mencionados.
De acordo com a metodologia de Eckert, já que Holmes, Smith e Fu Manchu são estabelecidos como membros da família Wold Newton, os elementos de outros personagens envolvidos na trama necessariamente fazem parte do mesmo universo ficcional, que Eckert batizou como “The Wold Newton Universe”, ou WNU (Eckert, 2010, p. 2). Encontros subsequentes (ou, em inglês, crossovers) entre personagens “de fora” com os membros da família, automaticamente importava os novatos para dentro desse universo. Isso, porém, não significa que esses recém-chegados sejam também parte da família. Para usar um exemplo do próprio Farmer, em Doc Savage: his apocalyptic life é revelado que o herói teria desenvolvido as bombas de gás que foram usadas para capturar King Kong. Em seguida, Farmer escreveu o conto “After King Kong fell”, onde Doc Savage, seus cinco auxiliares, juntamente ao Sombra e sua parceira Margo Lane (nenhum diretamente nomeado para evitar processos), testemunham a queda fatal de Kong do topo do Empire State Building. Já que o gorila gigante não é humano ou sequer um descendente de europeus, parece extremamente improvável que os progenitores do símio tenham sido expostos à radiação do meteoro de Wold Newton.
Diversos sites dedicados ao Wold Newton Universe surgiram na esteira da página de Eckert, que, em 2010, transformou a Crossover Chronology em uma obra em dois volumes publicada pela Black Coat Press e intitulada Crossovers: a secret chronology of the world. Como muitos dos crossovers no livro envolvem personagens que não foram incluídos na árvore genealógica de Wold Newton por Farmer, Eckert batizou esse plano onde acontecem os encontros de Crossover Universe. Este artigo discorrerá sobre algumas das histórias em quadrinhos incluídas em Crossovers, assim como outras que se encaixam na continuidade e nos personagens estabelecidos por Farmer no universo de Wold Newton.
A mitografia em quadrinhos
Um número considerável de membros da família Wold Newton tem aparecido em crossovers de histórias em quadrinhos. Tarzan tem sido o protagonista de muitas histórias publicadas pela editora Dark Horse Comics. Le monstre apresenta Tarzan em conflito com o Fantasma da Ópera, mas também é inserido nos eventos ocorridos durante o primeiro romance de Burroughs. A mesma equipe criativa produziu The modern Prometheus, história na qual o Senhor da Selva enfrenta o monstro de Frankenstein. Já em Tooth and nail, que sucede o encontro com a criatura de Shelley, Tarzan duela com o Mr. Hyde, de Robert Louis Stevenson. Em Tarzan vs. the Moon Men, Lord Greystoke e seu filho Korak são transportados para o futuro retratado na trilogia Moon, também escrita por Edgar Rice Burroughs, criador de Tarzan. Deve-se notar que, já que os livros da série Moon descrevem uma versão alternativa do final do século 20, muito diferente daquela que vivenciamos em nossa realidade, alguns pesquisadores do universo de Wold Newton argumentam que aquela talvez deva ser considerada uma realidade alternativa6 e não o futuro direto de Tarzan e seu filho. A minissérie em quatro partes Batman/Tarzan: Claws of the Cat-Woman, da dupla Ron Marz and Igor Kordey, colocam Tarzan em parceria com o Cavaleiro das Trevas (deve-se perceber, porém, que Eckert e alguns outros pesquisadores são da opinião que crossovers entre personagens que não são superpoderosos e os super-heróis das tradicionais editoras DC e Marvel Comics não necessariamente atraem outros supers para o universo de Wold Newton, já que eles necessariamente eclipsariam os mais tradicionais personagens dos pulps e dos romances de aventura. Além disso, a noção de centenas de super-heróis pelo mundo violaria a premissa de que o WNU se parece com o mundo que vemos através de nossas janelas. Ainda assim os supers incluídos na cronologia geralmente assumem uma versão muito menos poderosa que suas contrapartes nos quadrinhos e operam por um tempo muito menor que aquele sugerido por suas histórias. Tarzan/Carson of Venus mostra o Homem Macaco unindo forças com outro herói criado por Burroughs, assim como acontece em Tarzan/John Carter: warlords of Mars. Talvez o eclético dos crossovers da Dark Horse envolvendo Tarzan tenha sido Tarzan vs. Predator at the Earth’s Core, que reuniu tanto os filmes da série Predador, quanto os romances de Burroughs sobre Pellucidar, uma terra selvagem no centro da Terra, que também já havia sido cruzada com Tarzan pelas mãos do próprio autor no romance Tarzan at the Earth’s Core. Fechando o ciclo com Tarzan, Tarzan in The land that time forgot inseriu o Lorde das Selvas no cenário das novelas de Burroughs sobre a ilha de Caspak, situada na Antártida e lar de diversas raças que derivam da pré-história.
Foi nos quadrinhos que Doc Savage encontrou por duas vezes seu parente woldnewtoniano, o Sombra. Em The conflagration man, uma história em quatro partes dentro dos títulos The Shadow strikes! e Doc Savage, publicados pela DC Comics, fica implícito que ambos aprenderam a arte marcial conhecida como baritsu com o criador do estilo. Baritsu, um tipo de boxe japonês, foi na verdade inventado pelo escritor Arthur Conan Doyle em uma aventura de Sherlock Holmes chamada The adventure of the empty house. Outra minissérie, dessa vez em dois episódios, The Shadow and Doc Savage, lançada pela Dark Horse, mostrava os heróis encontrando o mesmo Dr. Reinstein que mais tarde seria o responsável pela criação do “soro do super-soldado” que transformaria Steve Rogers no personagem conhecido como Capitão América. Além de si próprios, o Sombra e Doc Savage encontraram outros heróis dos quadrinhos e dos pulps em narrativas ilustradas. Nas histórias Who knows what evil—? e The night of the Shadow, Batman e o Sombra juntaram forças, e o Cavaleiro das Trevas revelou que o herói mais velho foi uma de suas grandes inspirações. Em The night of the Avenger, o Sombra trabalhou com o herói dos pulps criado por Paul Ernst, Richard Henry Benson, mais conhecido como o Vingador, também identificado por Farmer como membro da famíllia Wold Newton. Em Body and soul, um arco de histórias criado por Andy Helfer and Kyle Baker para a controversa série do Sombra da década de 1980, que adequava o personagem para a contemporaneidade, uma versão envelhecida de Benson aparecia e os encontros anteriores entre os personagens eram citados.
Quando a Marvel Comics tinha os direitos de publicação de Doc Savage, na década de 1970, produziram dois crossovers entre ele e os personagens de seu catálogo. Em The yesterday connection, o Homem-Aranha resolveu uma ameaça com a qual Doc havia lidado anteriormente, em 1930. Em Black Sun lives, Doc Savage e seus assistentes Monk Mayfair e Renny Renwick são lançados no futuro até os dias atuais, onde combatem um vilão ao lado do Tocha Humana e do Coisa, dois membros do Quarteto Fantástico (apesar de alguns estudiosos do universo de Wold Newton não incluírem equipes de super-heróis, o Quarteto Fantástico é, geralmente, considerado aceitável, e, com exceção do Coisa, todos têm laços de parentesco, o que vai de encontro ao foco de âmbito genealógico do universo ficcional. Eles também têm uma origem em comum, enquanto outros grupos como os Vingadores, a Liga da Justiça ou os X-Men possuem diversos membros que começaram suas carreiras sob circunstâncias diferenciadas).
The Rocketeer, de Dave Stevens, apresenta um anônimo Doc Savage como o inventor da mochila a jato usada pelo personagem principal, Cliff Secord. Na sequência, The Rocketeer: Cliff’s New York Adventure, o protagonista encontra um homem chamado Jonas, que é o Sombra disfarçado. Um crossover incluindo Doc Savage que não é geralmente aceito como parte da continuidade do universo Wold Newton Universe é a série de curta duração produzida pela DC, batizada como First Wave. Tais histórias, que mostravam Doc Savage coexistindo com o Vingador, Batman e o Spirit, criação de Will Eisner, e tendo como cenário um século 21 alternativo com ares da década de 1930. Como argumento para a rejeição da parte dos críticos, é o fato de muitos dos personagens terem sido desnecessariamente alterados, sendo o Vingador, em particular, o que mais sofreu mudanças radicais, transformando-se em um anti-herói matador de criminosos, em lugar de armar situações para que os bandidos fossem vítimas de seus próprios esquemas, como acontecia em suas aventuras originais, nas revistas pulp.
Além de uma série de romances e novelas, incluindo algumas de autoria de estudiosos de Wold Newton, tais como Eckert ou Matthew Baugh, a editora Moonstone publicou diversas revistas em quadrinhos com personagens já estabelecidos, assim como crossovers que introduziram outros ao WNU. Sherlock Holmes and the Clown Prince of London mostrou o maior de todos os detetives encontrando o Ladrão de Casaca criado por Maurice Leblanc, Arsène Lupin, outro membro da família, de acordo com Farmer (sempre cabe notar que Leblanc fez com que Lupin encontrasse Holmes em diversos romances anteriores, sendo que no primeiro deles Holmes foi rebatizado como “Herlock Sholmes” ou “Holmlock Shears”, nas traduções inglesas, por questões de direitos autorais). Sherlock Holmes & Kolchak the Night Stalker, uma minissérie em três números, apresentava Holmes e o investigador vivido por Darren McGavin no seriado televisivo homônimo dos amos 1970 investigando o mesmo evento em séculos diferentes. Tanto Blooded quanto a história em dois números Domino Lady/Sherlock Holmes mostravam Sherlock colaborando com a heroína mascarada dos pulps “picantes” escritos por Lars Anderson. O especial Kolchak: the night stalker and Dr. Moreau tinha Carl Kolchak encontrando o herdeiro do cientista louco de H.G. Wells e outra edição única, Honey West & Kolchak, mostrava Carl em parceria com a sexy detetive criada por G.G. Fickling. Já Honey West/Captain Action/That man Flint: Danger-A-Go-Go apresentava Honey cruzando o caminho dos agentes secretos Derek Flint (interpretado por James Coburn nos filmes O Homem chamado Flint e Flint contra o gênio do mal) e Miles “Captain Action” Drake (herói de uma série de brinquedos dos anos 1960).
A graphic novel Return of the originals: battle for L.A. era estrelada por Domino Lady unindo forças com diversos heróis dos pulps, tais como o Phantom Detective, de Robert Wallace, Black Cat, de G. Wayman Jones, G-8, piloto aventureiro criado por Robert J. Hogan e Secret Agent X, de Brant House. A edição especial The Spider and Domino Lady mostrava a heroína curvilínea enfrentando as forças do mal ao lado de outros personagens incluído na árvore genealógica de Wold Newton por Farmer. Phases of the moon, minissérie que se passava em diferentes décadas, encabeçada pelo Aranha, Domino Lady, Honey West, Kolchak, a rainha da selva Sheena e Buckaroo Banzai (do filme australianoThe adventures of Buckaroo Banzai across the 8th dimension). Domino Lady’s threesome mostrava a protagonista combatendo um alienígena ao lado de Golden Amazon, criação de John Russell Fearn, e The Veil, personagem criado por Hopkins e que teve sua primeira e única aparição, devido à morte do autor em 2012. Três dentre os quatro Return of the monsters especiais publicados pela editora Moonstone apresentaram crossovers. Domino Lady vs. Mummy fazia referência a Ravenwood, personagem de Frederick C. Davis’. The Phantom Detective vs. Frankenstein mostrava o combate do protagonista com o monstro de Mary Shelley. Na mesma história aparecia um descendente de Victor Frankenstein e são mencionados Domino Lady, Black Bat, o Aranha e I.V. Frost (um dublê de detetive e cientista criado por Donald Wandrei). Black Bat and Death Angel vs. Dracula, escrito por Mike Bullock, tinha Bat e o personagem de Bullock enfrentando o mais famoso vampiro da literatura7.
Nas décadas de 1970 e 1980, Marvel publica a série O mestre do Kung Fu, que apresentava Shang Chi, filho de Dr. Fu Manchu, outro dos membros da família Wold Newton. Diversos personagens dos romances de Sax Rohmer apareceram na série, com destaque para Sir Denis Nayland Smith, identificado por Farmer como sobrinho de Sherlock Holmes. Outro coadjuvante, Clive Reston, foi apresentado como filho de James Bond e sobrinho-neto de Holmes. Eckert optou por não considerar os crossovers entre Shang Chi e os super-heróis da Marvel se não fizessem referências diretas a Fu Manchu ou Smith. Isso incluiu os encontros de Shang Chi com o Homem-Aranha, Nick Fury e a Viúva Negra, além de sua aventura ao lado de Rom, Cavaleiro Espacial. Em um especial Shang Chi encontrou o Punho de Ferro e, na edição 19 de Master of Kung Fu, dividiu a cena com o Homem-Coisa, criação de Steve Gerber. A edição 19 também mostrou o encontro com o andarilho filósofo e praticante de rates marciais identificado como Kwai Chang Caine, herói da série televisiva Kung Fu. Os números 85 e 86 de O Mestre do Kung Fu mostraram Shang Chi e seus companheiros visitando uma casa noturna em Casablanca cujo dono se chamava Richard. Com certeza, Richard representava Rick Blaine, personagem do clássico filme dirigido por Michael Curtis, Casablanca, apesar da história não explicar a discrepância da aparência jovial do personagem.
Casos pontuais: a Liga Extraordinária e Vampirella
The League of Extraordinary Gentlemen, de Alan Moore e Kevin O’Neill, é um interessante exemplo de crossover em quadrinhos que apenas pode ser parcialmente inserido no WNU. Os diversos volumes de Liga Extraordinária acontecem em um mundo onde todos os personagens ficcionais já criados existem. Diversos personagens também incluídos por Farmer na família Wold Newton aparecem, entre eles Allan Quatermain, capitão Nemo, Mycroft Holmes e o Professor Moriarty, respectivamente irmão e nêmesis de Sherlock Holmes. Há ainda outro, Campion Bond, um provável antepassado vitoriano de James Bond. Apesar de os dois primeiros volumes de League se encaixarem de maneira cômoda nos parâmetros do WNU, os subsequentes se tornaram problemáticos e são quase sempre considerados como pertencentes a um universo alternativo. The black dossier acontece em um 1958 diferente do nosso, pouco depois dos acontecimentos narrados no romance 1984, de George Orwell, referidos no álbum como The big brother years, nos quais a Inglaterra possui um imenso, ativo espaço, o que não condiz com o conceito adotado por Eckert e outros, que o WNU, ao menos na superfície, é bem próximo de nosso mundo. Igualmente problemáticos são os personagens Jimmy e Hugo Drummond, que correspondem aos membros da família woldnewtoniana James Bond e Hugh “Bulldog” Drummond. Ambos são retratados em The black dossier de uma maneira bem pouco elogiável que amplifica alguns aspectos politicamente incorretos que apareciam de maneira mais discreta nos romances nos quais foram apresentados: Jimmy é um espancador de mulheres que não vê problemas em assassinar um homem inocente para favorecer a América num contrato de venda de armamento em lugar dos ingleses, o que tornaria os eventos narrados no romance O satânico Dr. No, de Ian Fleming, nada além de uma mentira inventada para encobrir suas atividades. Drummond é descrito como um racista raivoso que, ao final da história, é morto por Jimmy quando descobre os atos de traição do colega.
Century, cujos três capítulos acontecem nos anos 1910, 1969 e 2009, constrói um perfil do jovem mago Harry Potter que é incompatível com a obra de J.K. Rowling. O capítulo 1910 possui diversas referências ao 14 Duque de Gurney, do filme The Ruling Class; porém, o filme mostra o Duke se referindo a Mao Tse-Tung e Timothy Leary, o que sugere que a história se passa na contemporaneidade, além do fato do vestuário no filme parecer mais próximo daquele usado em 1972, ano de sua produção. Em 2009, Jimmy é retratado como um idoso decrépito, sofrendo de sífilis e cirrose hepática, tendo sido substituído por uma série consecutiva de agentes mais jovens, uma referência aos diversos atores que representaram Bond no cinema. Nada disso bate com o que os escritores John Gardner e Raymond Benson, responsáveis pela continuidade das histórias de Bond, retrataram em suas obras. A personagem M, que nos filmes é vivida por Judi Dench, revela-se como Emma Peel, uma agente secreta da série televisiva britânica The avengers, enquanto Raymond Benson, no romance Os fatos da morte, diz que o nome real da personagem é Barbara Mawdsley. Finalmente, os Estados Unidos e o Reino Unido são descritos, nas HQ, travando uma guerra com Qumar, um país ficcional do Oriente Médio, em lugar do Iraque.
A pequena graphic novel Nemo: Heart of ice descreve o personagem do menino inventor Tom Swift, de Victor Appleton (nome cuja grafia foi alterada por Moore para “Swyfte”), de uma maneira tão agressiva quanto o tratamento dado a Bond e Drummond. “Swyfte” é um racista que atira na perna de seu colega inventor Frank Reade apenas para diminuir a velocidade do ataque de um shoggoth, abandonando-o para morrer.
O caso de Vampirella, cujas aventuras têm aparecido em histórias das editoras Warren, Harris Comics e Dynamite Entertainment, é um desafio para qualquer estudioso de mitografia, pois as tentativas de organizar uma lógica interna sempre esbarrou em dificuldades organizacionais, fazendo dela um dos personagens mais confusos das HQ americanas, às vezes vilã, outras heroína, e até uma alienígena. A vampira encontrou-se diversas vezes com Drácula, o que, já que ela não é uma super-heroína, serviu para trazê-la para o WNU e, a partir daí, a vampira sexy serviu de ponte para que diversos personagens de editoras menores também entrassem na família Wold Newton. Em sua primeira passagem pela Warren, Vampi encontrou em mais de uma ocasião com Restin Dane, também conhecido como The Rook, cujo avô, o viajante do tempo de H. G. Wells, foi elencado por Farmer como membro da família ficcional (Farmer deu um nome ao personagem, não revelado no romance A máquina do tempo, de Wells, que seria Bruce Clarke Wildman, enquanto nos quadrinhos The Rook foi apresentado como Bruce Dane. Porém, apesar desses fatos, a genealogia de Adam Dane, pai de Bruce Dane, diverge da história da família de Bruce Clarke Wildman de acordo com Farmer. O pesquisador Dennis Hager resolveu o conflito de dados identificando o viajante do tempo como Adam Bruce Clarke Wildman, cuja conexão com a família Dane aconteceria por intermédio de sua esposa, Louise Dane). A história Vampirella and the Time Force mostra Vampi encontrando the Rook e um grupo de outros personagens da Warren, notadamente Dr. Richard Harris, da tira em quadrinhos “Pie.”
The thing in Denny Colt’s grave estabeleceu Vampi como existindo no mesmo universo que o Spirit, herói mascarado criado por Will Eisner. The headless Horseman of All-hallows eve levou Vampi e seu ajudante Pendragon a visitar a cidade de Sleepy Hollow, cenário da novela homônima de Washington Irving. Os crossovers continuaram depois que a personagem foi adquirida pela editora Harris, na década de 1990. Na minissérie de 1997, Catwoman/Vampirella: the furies, Vampi uniu forças com a ladra com um coração de ouro e tradicional inimiga/aliada de Batman (Eckert argumenta que o manto do morcego, sua tradição em combate ao crime e consequente mitologia seguiu com diversos sucessores depois da aposentadoria de Bruce Wayne, o Batman original dos anos 30. John Allen Small teorizou que a Mulher-Gato que encontrou Vampirella seria a filha de Batman com a Mulher-Gato mostrada em Claws of the Cat-Woman, o já mencionado crossover com Tarzan). Ao final da década de 1990 e durante a primeira década do século 21, foram publicados diversos crossovers de Vampirella com personagens da editora Top Cow Comics, como Magdalena, Witchblade e The Darkness. Em 2012, Dynamite Entertainment lançou uma minissérie chamada Dark Shadows/Vampirella, na qual Vampi conheceu os personagens do seriado televisivo de mesmo nome, num combate contra a vampira Elizabeth Bathory.
Além de Vampirella, a vigilante Painkiller, criada por Jimmy Palmiotti, também cruzou os caminhos de The Darkness, Ariel Darkchylde, Hellboy e do Justiceiro. Por sua vez, the Darkness encontrou Batman, os cinematográficos Aliens e Predadores, Lara Croft, Hulk, Wolverine (cuja contraparte woldnewtoniana jamais fez parte dos X-Men), Eva, Daughter of Dracula, Pitt, e Darkchylde. Hellboy, o demônio, conheceu Ghost, que também encontrou o Sombra. Hellboy já fez parceria com Batman e Starman em uma história que sugeria que os mitos de Cthulhu, de H.P. Lovecraft, tinham fundamento na realidade.
Apesar de existirem mais crossovers que se encaixariam no esquema do universo Wold Newton, este artigo visa prover um guia de encontros entre personagens que serviram para expandir o conceito cunhado originalmente por Farmer. O artifício do crossover tem sido usado na ficção por séculos e os quadrinhos utilizam essa ferramenta constantemente. Mesmo depois de quarenta e dois anos da publicação de Tarzan alive, ainda atestamos novas adições à família Wold Newton e o universo expandido não mostra sinais de exaustão. Este admirador e estudioso do conceito de Wold Newton não poderia estar mais feliz.
* Sean Lee Levin é um pesquisador norte-americano de cultura pop especializado na obra do escritor Phillip José Farmer, com ênfase nos trabalhos que envolvem a construção de uma narrativa pós-moderna relacionada ao universo ficcional de Wold Newton, criado pelo autor e desenvolvido por outros artistas. É também editor assistente do site de cultura pop She never slept (http://sheneverslept.com/newsandreviews/) e desenvolve um novo volume da série Crossovers: a secret chronology of the world, com base na obra de Win Scott Eckert.
Referências
CLUTE, J. & NICHOLLS, P. The encyclopedia of science fiction. New York: St. Martin’s Griffin, 1995.
ECKERT, W. S. Crossovers: a secret chronology of the world. Volumes 1-2. USA: Black Coat Press, 2010.
FARMER, P. J. Tarzan alive: a definitive biography of Lord Greystoke. USA: Bison Books, 2006.
______. Doc Savage: his apocalyptic life. USA: Meteor House, 2013.
______. “After King Kong fell”. In: ECKERT, W. S. & CAREY, C. P. Tales of the Wold Newton Universe. USA: Titan Books, 2013.
HAGER, D. “The great danes”. In: An expansion of Philip José Farmer’s Wold Newton Universe, aka The Wold Newton Universe. Disponível em http://pjfarmer.com/woldnewton/Articles8.htm#Danes
McDANIEL, D. The man from U.N.C.L.E. #13: the rainbow affair. USA: Ace Books, 1967.
SCHOLES. R. Structural fabulation – an essay on fiction of the future. USA: University of Notre Dame Press, 1975.
MOORE. A. Dark is the sun, by Philip José Farmer. Disponível em http://www.librarything.com/topic/116336.
NEWMAN. K. Casting a play. Entrevista disponível em http://intemblog.blogspot.com.br/2008/05/casting-play-interview-with-kim-newman.html
SMALL, J. A. “Kiss of the Vampire”. In: ECKERT, W. S. Myths for the Modern Age: Philip José Farmer’s Wold Newton Universe. USA: MonkeyBrain Books, 2005.
Notas
1 De acordo com Win Scott Eckert, os livros de Farmer inseridos na série Wold Newton seriam pastiches, a princípio e apesar de sua qualidade, por não contarem com a aprovação dos autores ou de seus representantes legais (Eckert, 2010, p. 3).
2 O conceito de mitografia, biografias de personagens fictícios como se fossem reais, é anterior a Farmer, sendo que as obras que influenciaram o autor americano, não apenas em Tarzan alive como também no conceito da “família” woldnewtoniana, foram as biografias Sherlock Holmes of Baker Street (1962) e Nero Wolfe of West 35th Street (1969), escritas por William Stuart Baring-Gould, que estabeleciam um parentesco entre os dois detetives.
3 A mitografia poderia ser considerada uma variação do conceito de “Fabulação Estrutural”, desenvolvido pelo teórico Robert Scholes, segundo o qual o grande trabalho do escritor é desafiar as interpretações “confortáveis” por parte do leitor por intermédio de uma estrutura narrativa convincente, apesar de fantástica. Assim, a mitografia, por criar um paradoxo crível (o relato biográfico de seres inexistentes) desafia o leitor e cria um novo senso de realidade com base em uma estrutura (logo, um elemento crível, mensurável) fabular (logo, uma fantasia, um devaneio) (Scholes, 1975, p. 46).
4 Disponível em http://www.librarything.com/topic/116336. Acesso em 20 fev. 2014.
5 Disponível em http://intemblog.blogspot.com.br/2008/05/casting-play-interview-with-kim-newman.html. Acesso em 20 fev. 2014.
6 Realidade paralela é um conceito oriundo da física, que postula a possibilidade de universos fractais derivados do nosso e nascidos de toda e qualquer opção, criando infinitas possibilidades de histórias. Logo, toda vez em que um indivíduo se vê diante de uma escolha, automaticamente dois ou mais universos surgem, um no qual a atitude foi tomada, outro onde nada foi feito, um terceiro onde se optou por uma ação conciliatória, um quarto onde a solução foi o conflito e assim infinitamente (Clute e Nicholls, 1995, p. 23).
7 Para conciliar as diversas versões de Drácula, Chuck Loridans propôs que o Rei dos Vampiros teria a capacidade de criar “clones de almas”, implantando suas memórias e alguns poderes em determinados seres humanos, que se tornariam vampiros comandados à distância pelo próprio Drácula, temporariamente afastado ou incapacitado. Disponível em http://www.pjfarmer.com/secret/contributors/Children-of-the-Night1.htm. Acesso em 21 fev. 2014.