Entrevistadores: Alexandre Graça Faria*, Érica Peçanha do Nascimento**, Fernanda Pires Alvarenga Fernandes***, Ricardo Ibrhaim Matos Domingos**** e Waldilene Silva Miranda*****.
Introdução: Fernanda Pires Alvarenga Fernandes***
Escritor, ativista social, colunista, repórter e cineasta, o polivalente Alessandro Buzo recebeu um grupo de pesquisadores de literatura[1] em sua livraria Suburbano Convicto, no bairro do Bixiga, em São Paulo. Era outubro de 2011 e a Cooperifa celebrava uma década de existência, o que motivou o grupo a sair da Universidade Federal de Juiz de Fora e ir conhecer presencialmente alguns dos autores que haviam despontado na cena da Literatura Periférica, como Buzo. Daquele encontro, surgiu esta entrevista, da qual participou a anfitriã dos mineiros na capital paulista, Érica Peçanha.
Buzo lançou seu primeiro livro em 2000 com o nome O trem: baseado em fatos reais. Cinco anos depois, acrescentou mais dados à história e publicou O trem: contestando a versão oficial. Na entrevista, ele conta como a literatura entrou em sua vida e avalia a formação do cenário em torno da Literatura Marginal. Nosso entrevistado também é autor de Suburbano convicto: o cotidiano do Itaim Paulista e Guerreira, entre outros livros, dirigiu o filme Profissão MC, de 2006, organiza a coletânea literária Pelas periferias do Brasil e escreve para jornais e revistas. Na TV, Buzo fez parte do programa Manos e minas da TV Cultura, onde apresentava o quadro “Buzão” e, desde outubro de 2011, apresenta o quadro “SP Cultura”, às sextas-feiras, no telejornal SPTV 1ª edição, da Rede Globo.
Como se deu o seu envolvimento com a literatura?
Alessandro Buzo – Foi, podemos dizer, por acaso. Por acaso eu escrever. Eu ler foi por conta da minha mãe, porque mesmo tendo pouco recurso financeiro – era dona de casa até meu pai ir embora e, com dois filhos pequenos, eu com 12 anos, meu irmão com 8 ou 9 – ela teve que se virar. Depois eu comecei a trabalhar muito cedo aqui no Centro de São Paulo, porque meu pai deixou a gente na mão financeiramente. Então minha mãe passou a ser empregada doméstica e depois funcionária pública, trabalhando em hospital, em creche. E a gente morava no Itaim Paulista, morei a vida inteira lá. São 38 km aqui do Centro, no último bairro da Zona Leste de São Paulo, que já é gigante. E nada indicaria que eu fosse ter alguma ligação com cultura, diretamente como é hoje. Nada levava a isso, mas a literatura chegou. Minha mãe comprava revista da Turma da Mônica e me dava; pro meu irmão, uns livros. Tinha O menino maluquinho, entre outros. Então eu conhecia os livros. Aí veio outra fase, a da adolescência. Mesmo nunca tendo feito nada de errado, no sentido de cometer um delito, um crime, eu nunca roubei, nunca vendi droga, mas usei muita droga. E não comecei, como diz a lenda, com a maconha, para depois usar outras drogas mais pesadas. Eu já comecei direto na cocaína, e fui usuário por alguns anos. Por alguns anos eu fui um usuário controlado e, depois, comecei a usar droga todo dia. Mesmo trabalhando. E parei por conta própria, por vontade própria. Parei porque a responsabilidade de um casamento e a vontade que eu tinha de viver uma vida tranquila dentro desse casamento falou mais alto. Casei em 1998 e lancei meu primeiro livro em 2000, e, em seguida, o que fortaleceu isso foi o hip hop e a literatura que surgiu. Eu já estava há dois, três anos sem usar drogas, então…, fez com que percebesse que eu realmente não ia usar drogas nunca mais, foi o meu envolvimento com a cultura.
E nesse período das drogas você parou de ler?
Alessandro Buzo – Eu voltei a ler [ainda] usuário de drogas. Trabalhava num escritório na Praça da Sé e no meio de um monte de senhorinha de idade já. Eu era o doidão lá no meio. Logo no horário do almoço, chegava um cara que ia numa sala, que era de um amigo meu, e a gente ia lá e já no meio-dia a gente começava a vida louca, e eu voltava para o escritório e ficava lá no meio de duas senhoras, parecendo um doido. E um dia, nesse escritório, entrou uma mulher do Círculo do Livro. Quem é mais velho conhece. Eram uns livros de capa dura, que você encomendava, pagava, naquela época com boleto bancário, e o livro chegava pelo correio. E aí ela chegou no escritório, explicou, mas ninguém comprou nenhum livro. Falou que ia deixar o catálogo, caso alguém mudasse de ideia e ia saindo quando eu vi um livro que me identifiquei, assim, pelo título, que eu desconhecia. Na época nunca tinha ouvido falar. É o Eu, Christiane F, 13 anos, drogada, prostituída... Achei o título interessante e encomendei o livro. Falei: “Volta aqui, eu quero encomendar um livro”. Achei o livro muito louco. Depois descobri que tinha um filme, acabei assistindo ao filme também. Tenho o livro guardado até hoje, tanto que esse que é um dos livros que eu tenho de cabeceira. E aí eu falei: “Caramba, o livro pode ser muito louco, pode falar de uma história doideira”. Mesmo a história sendo na Alemanha, em Berlim, e a droga sendo heroína, era parecida com a minha história doida. Só mudava o país e a droga, mas era uma história muito louca. E eu vi que um livro poderia servir para falar de qualquer coisa. E continuei comprando livro no Círculo do Livro. Comecei a ver que a gente poderia falar de tudo. Mas a escrita veio um pouco depois. Casei e comecei a frequentar um sebo que tem até hoje no Itaim Paulista. Já era de um amigo meu e um outro, mais chegado, virou sócio. O meu amigo pegava e dizia: “Poxa, esse livro aqui é muito louco”. Eu falava: “Poxa, legal”. Olhava na primeira página, onde ele escrevia o preço a lápis, e falava: “Poxa, cara, mas eu não tenho dinheiro agora”. E ele falava: “Não. Pega emprestado, depois você me devolve”. E comecei a ler um monte de livro nesse “pega emprestado, depois você me devolve”.
E como você começou a escrever?
Alessandro Buzo – Um dia esse cara chegou e falou assim: “Vou fazer um fanzine. Sabe o que é um fanzine?”. Aí eu falei: “Não.” E ele: “Pô, é uma revistinha de Xerox. A gente coloca uns textos, umas paradas, tira Xerox e distribui pra galera aqui na livraria. Quer escrever um texto?”. Falei: “Pô, mas eu não escrevo, cara.” E ele: “Como não escreve? Você lê pra caramba, escreve um texto, fala aqui do bairro, fala alguma coisa”. Aí fiz um texto qualquer, uma cronicazinha e tal. Não sei se foi junto ou um pouquinho depois, eu comecei a mandar umas cartas para um jornal de esportes, porque eu era muito fanático por futebol. Hoje eu ainda gosto, mas o fanatismo era maior naquela época. Era a Gazeta Esportiva, depois veio o Lance! E o jornal parou, hoje é um site só. Comecei a mandar carta para “Voz da Arquibancada”, que era uma coluna de leitores. E puxava a brasa pra minha sardinha. Falava do meu time, era assunto supérfluo. Aí puxava sardinha, tirava um barato de outra torcida e tal. E as cartas começaram a ser publicadas, lembro que saiu uma grandona. E aí eu estava no trem, (eu pegava trem para ir trabalhar, que é o jeito mais rápido de transcorrer 38km) e chegou um cara pra mim: “Pô, eu acho da hora aqueles negócios que você escreve na Gazeta Esportiva”. Cara, eu pensei que só eu lia a Gazeta Esportiva no Itaim Paulista. Não sabia que outras pessoas liam. Nunca via as pessoas com jornal no trem. Eu sempre estava com jornal. Tenho hábito de ler jornal até hoje. Se eu ficar 24 horas na internet, leio jornal. Esse meu amigo lia também o jornal e sabia que Alessandro Buzo era eu. Acho que eu assinava Alessandro Buzo de Souza, que é meu nome completo. Ele falou que tinha ficado muito interessado e eu respondi: “Poxa, legal, as pessoas lerem”. E comecei a escrever no fanzine, e essas cartas eram publicadas, e um jornal do bairro falou: “Meu, o Jonilson me mostrou os baratos que você escreve lá na Gazeta Esportiva, por que você não faz uma coluna de futebol de várzea no jornal?”. Era um jornal de bairro, que circulava de graça. E aí comecei a fazer matérias com os times antigos do Itaim Paulista, que tinham mais de 20 anos; hoje eles têm mais de 30. Comecei a fazer matéria com esses times e saía meia página. E fui indo. As pessoas começaram a comentar das coisas que eu escrevia. Um dia, eu estava muito incomodado com o trem, que estava muito ruim e a gente estava sofrendo feito um diabo. E aí resolvi escrever um texto denunciando a situação, porque sempre saía na mídia quando alguém depredava o trem, quando quebravam, queimavam. Uma vez incendiaram vários trens e saiu na mídia que “Vândalos destroem os trens”. Nunca saiu em nenhuma dessas matérias o que aconteceu antes, o tanto de porrada que o povo tomou antes de se rebelar e fazer isso. Não que eu ache certo queimar o trem, mas no dia em que queimaram os trens, a gente estava tentando desde 17h30 pegar o trem para ir embora e eram 22h e a gente estava no escuro, entre uma estação e outra. Foi nessa hora que queimaram os trens. Virou um caos. Eu lembrava de protestos que não tinham resolvido e resolvi escrever um texto. Pensei: “Pô, quem sabe a imprensa não vê o meu texto e publica e, sei lá, alguém, alguma autoridade vê o meu texto”. Fiz um texto chamado “Ferrovia nua e crua” e digitei no meu trabalho. Não tinha computador naquela época. Digitei e distribuí no próprio trem. Para cerca de 50 pessoas. E ninguém comentou nada no dia em que eu distribuí. Foi todo mundo embora, as pessoas guardaram o texto, outras até jogaram fora. No dia seguinte, quem não se lembrava do texto era eu, porque já tinha passado mais um dia de trabalho e tal. Uma pessoa chegou pra mim e falou: “Cara, eu me senti representado pelo que você escreveu naquele texto”. Achei legal o cara falar, mas quando eu cheguei mais próximo, vi que se reunia a maior galerona que ficava esperando juntar mais gente para poder ir todo mundo junto, e todos estavam elogiando o texto. Fiquei muito satisfeito com a repercussão. Achei que as pessoas compreenderam. Camelôs – tinha muito camelô naquele tempo – vieram me abraçar: “Poxa, nunca ninguém falou nada a nosso favor”. Os dias continuaram normais, de trabalho, eu indo e voltando de trem, e as pessoas começaram a dizer: “Por que você não escreve um livro do trem?”. E foi assim que eu virei escritor. Escrevi o livro do trem, não tinha a mínima ideia de como publicar. Nessa época não existia sarau, não existia nenhuma referência. O Ferréz era uma referência distante. Porque eu estava no Itaim e ele no Capão. Do Itaim para o Capão são mais de 50km. Mas aí eu acabei conhecendo o Ferréz, depois que o meu livro já tinha saído. Lancei independente. Se eu for contar a dificuldade que foi para lançar o livro, teria que ter muito mais tempo. Mas, assim, foi a maior luta. Descobri que só dava pra lançar independente, que ninguém lançava livro nenhum de ninguém. Fiquei frustrado, pois não ia ter dinheiro nunca para lançar 500 livros, que era o mínimo para os outros lançarem. Não ia ter essa grana nunca porque eu ganhava mal, estava endividado e enrolado. E aí eu acabei tendo o apoio de uma empresa em que eu trabalhava: dei 1/3 de entrada e fiz o livro. Como eu não tinha experiência de lançar livro, fiz na véspera do Natal, mas foi uma galera. E depois que vendi para os parentes, os amigos e os vizinhos, sobrou uns 400 e tantos lá em casa. E, fazer o que com esses livros, né, mano? Aprender sozinho a ir nos lugares. E aí eu comecei a ir nos shows de Rap, para divulgar, em todo lugar que pintava para ir. Os saraus ainda não existiam. A Cooperifa tem dez anos, estava surgindo. Os outros também não existiam. Não tinha nenhuma cena literária que tem hoje. Hoje o cara lança um livro, chega aqui e diz: “Buzo, tem como fazer meu lançamento?” Pô, tem! O cara já arruma livraria no Centro pra fazer um lançamento. Naquele tempo era surreal imaginar uma livraria com esse monte de livro da periferia. Então, nos últimos dez anos, surgiu um exército de pessoas escrevendo.
Os novos escritores estão conseguindo tirar os escritos da gaveta?
Alessandro Buzo – Todo dia surge um cara novo. Até ontem eu nunca tinha ouvido falar do Fábio Mandingo. Agora ele veio lançar o livro dele aqui. O livro é um barato, um tesão de ler, Salvador Negro Rancor. É muita luta, sabe? Não é a Bahia da Ivete Sangalo. É a Bahia de verdade. Então, quer dizer, está surgindo gente de todos os lados. Por muito tempo foi apenas São Paulo. Todo mundo que lançava era de São Paulo. E eu ia nos outros estados – já fui em dez estados fazer debates, palestras ou fazer matéria para a revista Rap Brasil, que eu era repórter – e em todo lugar que eu ia, alguém falava: “Olha, eu também escrevo, eu tenho uns textos, eu tenho uns contos, umas poesias”. Poxa, por que ninguém publica, né, cara? Um dia eu fui numa reunião na Ação Educativa que era para anunciar que eles iam apoiar alguns livros. Sugeri fazer uma coletânea com autores de vários estados. E surgiu Pelas periferias do Brasil, com autores de sete estados na sua 1ª edição. A Ação Educativa continuou apoiando o custo da gráfica na 2ª edição e, depois, arrumou outro patrocinador, que acabou ficando com a gente, que é o Centro Cultural da Espanha. E o livro é anual, não repete autores de um ano para o outro. Tem algumas coletâneas literárias que eu gosto muito, mas que repetem muito os autores. Prefiro não citar nomes, mas não acho muito legal. Desde o começo a gente decidiu que não podia repetir os autores. Em cinco volumes saíram 80 autores, né? É muita gente. Todos são escritores? Não. Tem gente que publicou o único texto que escreveu, ou um que estava na gaveta. Mas o cara teve o prazer de publicar alguma coisa. A gente não espera que todos saiam da coletânea e virem escritores, mas, cada vez mais pessoas que estão na coletânea acabam lançando seu primeiro livro. E assim, a cena é legal? A cena tem prestígio? Ter ficado desse tamanho, ter trazido vocês a São Paulo para ir na mostra é muito louco. Porque, vamos supor que só tivesse eu, o Ferréz, o Sérgio Vaz e o Sacolinha, quatro pessoas, nós iríamos ser considerados ETs. “Olha, surgiram uns ETs”. Mas não. Tem um monte de gente escrevendo, porque esse negócio que o povo não gosta de livro, que o povo não gosta de ler… Distribui livro de graça para ver se o povo não quer? O povo quer, cara, só que assim, a gente vê aqui aquela prateleira ali, média de R$ 15, R$ 20, R$ 25 a maioria dos livros. Tem até de R$ 30. Cara! Você vai na livraria Cultura e o livro mais barato custa R$ 40, tá ligado? Você cata qualquer livro lá e é 45, 50 paus. As editoras falam para o povo: “Não leia! Deixa para ler quem tem dinheiro para ler!”. Então o povão não lê, mano, porque os caras não têm 40 conto pra comprar um livro. Meu! A gente está publicando alguns livros pelo selo da Suburbano [Convicto], por enquanto são livros meus, o Buzo 10, o infantil, Pelas periferias… A gente quer vender o livro o mais barato que a gente conseguir, mano, que se dane se um dia a gente incomodar qualquer pessoa com isso, entendeu? O negócio é as pessoas lerem, cara! Sabe!? Quando vai fazer um evento, a gente já leva o Pelas periferias e meto a R$ 10, então, quer dizer, você tirou o fator caro, ficou possível ler, e o cara vai ler se quiser. Aí já é um problema dele, também ninguém vai pegar ninguém pela mão para sair lendo.
Tirar da gaveta tem sido um passo relativamente mais acessível, mas conquistar o público leitor parece ser mais complicado. Além de baratear o livro, como você se aproxima do seu público? Que estratégias estão envolvidas na criação de um espaço como a Suburbano Convicto?
Alessandro Buzo – A livraria surgiu há quatro anos, ela era bem pequenininha, uma garaginha de uma casa lá no Itaim Paulista. Um dia eu estava passando e tinha uma placa de aluga-se, era caminho da minha casa, e eu bati palma e perguntei para a mulher quanto era o aluguel. Ela falou que era R$ 150. Achei muito barato. Daí ela falou: “Olha, tem a água que é ligada como comércio que é mais R$ 50. Mesmo se você usar a água muito pouco vem R$ 50”. Eu tinha uns livros meus amontoados lá em casa, doido para expor eles ali. E tinha outras coisas, por exemplo: aqui a gente vende roupa, eu era patrocinado por uma marca, ainda sou, e tinha muita roupa dela nova, que nunca tinha usado. Daí falei: “Pô, podia montar uma lojinha, coloco algumas roupas”. Porque eram umas roupas da moda, da conduta que o pessoal do hip hop gostava de usar. E pensei: “Ponho umas roupas que eu tenho novas, ponho à venda, ponho os livros que tenho meus. Vou montar uma livrariazinha ali e tal e aí vai ser nosso escritório”. O motivo de querer ter o meu escritório é porque eu morava numa casa de dois cômodos, que era muito apertada. Meu filho cresceu e eu não podia mais morar nessa casa, não estava dando mais. Estava dando muita entrevista e com muita reportagem na televisão. Eles queriam ir no Itaim Paulista, porque eu era um escritor da periferia. Ficava incomodado quando eles iam na minha casa e ela virava o centro da matéria, e não o meu trabalho. Começavam a falar do córrego que estava passando atrás. O cara começava a falar do grafite que tinha na parede da cozinha, que era a sala, a cozinha, o escritório, era tudo. E, assim, eu estava achando chato levar as pessoas na minha casa. Aí montei a loja para ser meu escritório. Quando alguém quisesse me entrevistar, ia na livraria. E a livraria ficou dando prejuízo por três anos. Eu já estava começando a trabalhar na TV Cultura e tirava um pouco do que ganhava para bancar o prejuízo de R$ 300 a R$ 400 por mês. Achava que ela um dia ia decolar, só que essa decolagem nunca veio, porque ia muita gente lá, só que as pessoas não compravam, meu! As pessoas não tinham dinheiro no bolso sobrando. Era mais as pessoas do hip hop. Tinha gente que frequentava a livraria, mas nunca comprou nada e eu vou falar o que pro cara? “Ah, não vem aqui?”. Sabe, não dá. O cara era mó gente boa, batíamos altos papos. Ele ia no bar comprar cerveja para nós, mas não comprava um livro. Fazer o quê? É lógico que vendia alguma coisa, mas não o suficiente para pagar o aluguel e as outras despesas. Antes de falir eu montei a loja dois, aí minha mulher falou: “Meu! Uma loja não está dando, vai montar duas e uma perto da outra?”. Eu disse: “Não, mas é outro público”, porque tinha um cabeleireiro e eu pensei que o pessoal que frequentava o lugar geralmente tinha uma graninha a mais. Fiz a inauguração, que acabou virando um churrasco. O cara tinha mais uma sala mais para o fundo e, nas primeiras duas semanas de trampo, de repente ele fechou tudo. Mas um dia a gente começou a tomar uma cervejinha, eu fui lá no fundo e descobri que o cara tinha montado um bagulho de maquininha de caça-níquel. Falei: “Puta cara! Como é que você botou o caça-níquel aqui sem me falar? Tá maluco, meu? Vem aqui uma porra de uma polícia, estoura isso aqui, vem com o Datena. Os cara vão me fritar, mano, perco meu emprego lá na TV Cultura envolvido com essa merda aqui que eu nem sabia que você montou”. Aí cheguei na minha mulher e falei: “Ó mano! Vou fechar a loja lá”. Olha que tinha duas semanas. Eu tinha gastado pra fazer a festa de inauguração, pra fazer um grafite gigante na parede e o primeiro aluguel, uns R$ 700. Aí eu cheguei na minha mulher e falei: “Mano, vamos fechar, porque se o bagulho cai, nós cai junto e não temos grana pra repor”. Ela falou: “Sabe de uma coisa? Vamos fechar as duas”. Eu trabalhava aqui em cima [no prédio da livraria no Bixiga], no terceiro andar, que é a produtora que fazia o meu quadro na TV Cultura, a DGT Filmes. Quando saí do meu último emprego, comecei a fazer um frila aqui, de 14h a 19h. Eles me davam uma merreca por semana, pagavam minha condução e eu vinha mais cedo para o trampo. Só precisava estar aqui às duas horas, mas vinha mais cedo para o Centro, fazia outras coisas e depois vinha para cá. E quando eu ia fechar as duas lojas do Itaim, surgiu uma sala aqui no primeiro andar. A sala era menor que essa, e falei: “Pô, mano, daria uma livraria”. E tinha uns carinha aqui nesta sala que não estavam conseguindo pagar o aluguel. Eles ficaram de dar a resposta se desciam. Se ficassem aqui, eu iria alugar a sala de baixo, e era a resposta que estava esperando, porque aqui em cima era caro demais. Os caras resolveram descer, e a única sala que ficou vazia foi esta. Aí o Toni falou: “Buzo, já que você quer montar a parada, monta na grande mesmo! A gente faz um valor menor do que o normal, e aí depois se você estiver estabilizado a gente aumenta um pouco”. Combinei um valor com ele que era alto para mim, mas: vamos tentar? Vamos tentar! Foi no carnaval de 2010. E como que eu vou trazer as pessoas aqui para a livraria se ela não é na porta da rua? Sabe? É difícil, poxa. Enxergar eles não vão. O que eu comecei a fazer? Comecei a fazer evento aqui. O evento é por quê? A livraria sempre teve isso, né? Lá no Itaim Paulista a gente fazia o Encontro com o autor: a Érica [Peçanha], o Ferréz, o Sacolinha, todo mundo já foi lá como convidado. E aí eu comecei a fazer o Encontro com o autor aqui, que depois virou Sarau Suburbano, porque no final a gente sempre declamava as poesias. E aí o pessoal falou: “Mas por que você não faz um sarau?” Eu não queria fazer, porque eu ia em outro sarau e já estava contemplado. Ir nos outros saraus já estava de bom tamanho pra mim. Ter um sarau, eu imaginava como um trabalho a mais, mas acabei fazendo o Sarau Suburbano. Esses eventos, lançamentos de livros, CDs, outros saraus e debates que a gente faz é que trazem as pessoas pela primeira vez. Elas muitas vezes conhecem a livraria por causa do Sarau Suburbano e depois voltam pelo conteúdo da loja. Nesse ritmo, a gente graças a Deus tem conseguido se manter. Aqui continua sendo meu escritório, então durante a semana o movimento é menor, aparece uma pessoa ou outra. Tem o pessoal do prédio que frequenta por causa da bombonière para tomar um refrigerante, comer um chocolate, e fica um movimento mais tranquilo do que nos dias de evento. Em dias de evento lota! O cara chega aqui e fala: “Puta! O Buzo estourou, está vendendo horrores!”. Mas pô, é nos dias que tem evento. No dia a dia as pessoas vêm esporadicamente. Tem gente que vem aqui e compra um livro, tem gente que vem aqui e compra uma camiseta e tem gente que vem aqui e faz compra grande. A Ação Educativa compra livros em quantidade para os educadores, para usar na Fundação Casa. Hoje a livraria está empatando. Começou a empatar. Se eu dependesse da livraria para sobreviver, já teria falido lá no Itaim Paulista, né? Mas aqui no Centro eu já teria falido também. É muito triste saber que dificilmente outra livraria com esse perfil vai sobreviver. É antes de tudo uma guerrilha para manter isso aqui. E aí virou uma questão de honra, a gente não fecha isso aqui nem se… pode esquecer. A gente vai ficar aqui.
Você não falou em movimento da Literatura Marginal. Do jeito que você conta a história, que vai surgindo um aqui e outro ali, não é exatamente um movimento, mas vem um de cada lado e compõe uma cena literária da periferia, que é a grande novidade.
Alessandro Buzo – Não era o que os outros esperavam.
Isso diferencia uma geração que passa a se identificar com a literatura, a querer se tornar escritor? Para seus pais ou avós era muito mais inacessível?
Alessandro Buzo – Primeiro fator é: há dez anos começaram a surgir os livros pioneiros, que foram realmente de pessoas que, como eu, bateram em porta, derrubaram porta para fazer seus primeiros livros. E, depois, começaram a surgir outros. Eu acho que sempre… não diria sempre, mas há muito tempo tem pessoas que escrevem. Essas pessoas só tinham os seus textos engavetados. As pessoas escreviam e não mostravam para ninguém. Então, por que nos últimos dez anos mudou? Porque começou a surgir a internet. A internet começou a ficar viável, então o cara começou a escrever no blog, o cara começou a publicar no site, os textos começaram a circular. Já existia uma cena que circulava, antes da internet. Tinham os fanzines. Eu fazia fanzine, Sacolinha fazia fanzine, a Elizandra [Souza] do livro Punga fazia fanzine, o Dimenor (que é autor do Pelas periferias do Brasil vol. 5) fazia fanzine, um monte de gente fazia fanzine. O Oliveira, de Guaratinguetá, que está no Volume 5, fazia fanzine. Ele veio aqui comprar 30 livros fora a cota que recebeu para o lançamento hoje lá em Guará. Existe uma cena, porque as pessoas viram que, primeiro, começaram a surgir os saraus e as pessoas poderiam falar, então pô: “As pessoas já vão saber o que eu escrevo”. Quando eles viram que as pessoas começaram a publicar, eles falaram: “Porra, é possível publicar?! E antes de ser possível publicar eu já posso publicar na internet, eu já posso fazer meus contos circularem”. Então um foi virando referência para o outro: “Pô, mano, o cara fez daquele jeito”. “O cara lançou com o dinheiro do próprio bolso”. “O outro fez um projeto para o Vaz e lançou vários livros”. “O outro é o Allan da Rosa, lançou vários livros”. Começaram a surgir os “Allan da Rosa” da vida, começaram a surgir os “Ferréz” da vida, que começaram a reproduzir, até eu, começando da periferia. Então, eu acho que antes da nossa geração já tinha um monte de gente que escrevia, acho que desde os anos 60/70 já tinha muita gente que escrevia. Era uma minoria? Era uma minoria! Hoje tem mais gente? Hoje tem mais gente porque existe toda essa cena, pô! O cara tem onde mostrar, o cara existe! Por exemplo, Manda busca, um livro do Luan [Luando], do Sarau do Binho; a história dele de vida e a trajetória dele… ele era mais um cara comum de periferia: um cara negro, pobre, com defeito na mão. Pô, cara! Tudo isso, sabe? Mas a sociedade recrimina tudo, preconceito racial e mais o preconceito dele ser deficiente. Era para ele ser um cara comum da periferia, só que a literatura trouxe outras coisas para ele. Ver o Luan declamando é a coisa mais linda do mundo, ele declama com a alma. E o Luan é uma peça de uma engrenagem. Essa engrenagem tem vários saraus, e tem o Sarau do Binho. O Luan é frequentador do Binho, mas vai a vários outros. Ou seja, os caras circulam, vira uma rede, sabe? Hoje você vê o cara! Você pode ver o Luan na Brasilândia, você pode ver o Luan aqui no Bixiga, você pode ver ele na casa dele, que é o Sarau do Binho. Daí, depois de tanto mostrar a cara e mostrar talento – tem várias pessoas que admiram ele, pois ele lançou o seu livro –, é meio que passar para um patamar seguinte, entendeu? Porque pô, poeta bom declamando em sarau tem um monte. O cara vai ser poeta de sarau, sabe? É maravilhoso! Ter sarau e ir lá declamar. Só que ao lançar um livro, ele passa a ser dos autores publicados. E por que o Luan virou escritor? Do mesmo jeito que eu. Pegando o trem lotado, ganhando pouco, usando droga. Não era para ter virado escritor. A gente é meio que defeito de fabricação, entendeu? Mas por que a gente começou a escrever? A maioria dos escritores periféricos? A gente usou um texto para fazer protesto, cara, porque tomava porrada de todo o lado.
Essa literatura me faz lembrar do caso do Ferréz, que foi processado por aquele conto que escreveu na Folha de São Paulo, sobre o assalto sofrido pelo Luciano Huck. Essa literatura pode ser fora da lei também. Ela pode interferir?
Alessandro Buzo – Ah sim! Pode ser fora da lei, pode ser marginal. Os nomes são muito contraditórios dentro dessa cena. É porque tem gente que não gosta do nome literatura marginal, o Sacolinha não gosta, o Sérgio Vaz não gosta e não usa. Outros chamam de literatura periférica, né? Outros chamam de divergente e tal, eu não me incomodo com nenhum dos nomes. Para mim, é marginal porque é marginal mesmo, porque a gente está à margem da sociedade; é periférico porque é periférico mesmo e divergente, qualquer outro nome que surgiu, nenhum deles me incomoda. Todos cabem na nossa literatura.
Literatura brasileira te incomoda?
Alessandro Buzo – Não, literatura brasileira é maravilhoso! Eu acho que o que a gente faz é só literatura. Pode chamar do que quiser, eu gosto de literatura marginal e uso, não tenho nenhum problema com isso.
Há influência do hip hop na sua produção literária?
Alessandro Buzo – Ah, tem total! Antes de começar a escrever, eu comecei a ouvir rap. E aí comecei a ouvir letra de rap e tal. Pô, os caras falavam as coisas que eu queria falar, sabe? As músicas! Tem um texto que chama “Facção Central, Papa, Bush…”. O Papa não era o Bento XVI… era o Bento XVI, né? Sei lá se era o Bento XVI ou era outra pessoa. O Papa veio noBrasil. O Bush, que era presidente dos Estados Unidos, veio no Brasil, muito próximo. E eu estava ouvindo um rap lá na livraria Suburbano de Itaim. Tava um frio! Imagina um dia frio. E eu ouvindo Facção Central e lendo, no jornal, a visita do Bush, o protesto que teve e tal. E comecei a lembrar, a música falava assim: “Hoje Deus anda de blindado, cercado e protegido por dez anjos armados”, queria dizer que Deus tinha que hoje andar com segurança. Aí eu pensei, poxa, se Deus precisa andar de segurança… e comecei a lembrar do Papa que andou no meio do povo num carro blindado e apareceu no mosteiro de São Bento, com uma tela blindada na frente dele. Se o Papa é o que mais se aproxima de Deus – pelo menos para quem acredita nisso –, então o Papa tem que andar blindado, né? Então era uma verdade o que eu estava ouvindo na música. Pensei, mano, mas o Bush, que era o diabo; Papa é Deus, Bush é o diabo. O Bush também tem que andar armado com segurança. Então falei assim: “Poxa, pelo menos no tratamento, aqui em São Paulo, Deus e o diabo têm o mesmo peso. Os dois têm que andar armados”. Daí saiu o texto que chamava “Facção Central, Papa, Bush…”. E comecei a usar várias vezes música de rap para influenciar um texto. E o livro dotremtambém teve uma influência da música do RZO, O trem. Coloquei a música no meu primeiro livro, sem pedir autorização para o grupo. Aí eu saí numa matéria na revista Rap Brasil, que depois virei repórter. Hoje conheço todo mundo, todos os grupos, e acho que me fiz conhecer por eles também. O livro Hip hop dentro do movimento só pode existir porque eu conheço essa gente. Entrevistei 70 pessoas do Brasil inteiro, entre artistas e militantes. Tem gente do Acre, da Bahia, do Rio de Janeiro, de São Paulo. É um livro de entrevistas e eu costuro por assuntos.
Como a relação com outros escritores altera a sua escrita?
Alessandro Buzo – Ah! Eu leio muito, né, cara? Li quarenta livros este ano. Então é lógico que, quanto mais você lê, mais te influencia. Alguns te influenciam mais diretamente e outros indiretamente.
Estou falando mais do movimento mesmo. Do Sérgio Vaz, do Ferréz. Se vocês realmente conversam sobre o tipo de escrita?
Alessandro Buzo – A gente tem um respeito mútuo, sabe? Uma admiração cada um pelo outro. Eu sou muito amigo de todos eles assim. Me dou bem com todo mundo. Sou um cara muito fácil de se relacionar e tal. Cada um tem sua particularidade. Sérgio Vaz fica mais lá no quilombo dele, sabe? Ele nunca frequentou aqui, por exemplo. A gente tem um distanciamento que às vezes é porque estou fazendo um milhão de coisas e ele está fazendo um milhão de coisas também. A gente está bem afastado por causa disso. Agora, com outros a gente acaba ficando mais próximo porque tem feito, ultimamente, juntos. O Ferréz veio aqui na livraria, fez leitura do livro dele que ainda nem foi publicado. O Sacolinha, uma vez ou outra. A gente se fala se precisar, se tiver alguma coisa para somar para o outro e tal, a gente se fala. A falta de proximidade… pô, eu passo um tempão sem ver o Sacolinha e sou super amigo dele. Mas, pô! O Sacolinha está lá em Suzano, sabe? Então, ele está fazendo o corre dele lá, o Sérgio Vaz está fazendo o dele, eu estou fazendo o meu, o Ferréz está fazendo o dele, o Allan da Rosa, que era muito presente no sarau, sumiu, foi resolver outras coisas. Mas a gente sabe o que o outro está fazendo pela internet. Existe o respeito mútuo e uma admiração mútua entre todos nós. Briga não tem, briga declarada com ninguém. Assim, o movimento é de conciliação e não de separação. Uma coisa que faz que o outro não acha legal, sabe? Isso é coisa da vida mesmo. Então, se falta um pouco de proximidade é porque também a gente está fazendo coisa demais. Eu mal dou conta da minha agenda. Ah, meu! A Mostra da Cooperifa vai ter um monte de coisa, mas eu não sei em que dia eu vou poder ir. Porque se eu olhar minha agenda, amanhã estou de folga, porque caiu uma gravação no dia e pode ser que tenha outra, mas, se eu folgar amanhã… faz mais de três semanas que eu não tiro um dia de folga, porque eu gravei para a TV nos últimos fins de semana. Eu mal consigo cumprir minha agenda que é coisa pra caramba, cara. Então pô, se amanhã eu conseguir ficar de folga, se não confirmar a gravação, eu poderia ir em algum lugar, mas não vou, porque eu preciso descansar, sabe? Então, assim, hoje está bacana? É legal? Está, mas é cansativo. Então, se existe algum distanciamento é porque todo mundo está trabalhando muito. É o momento de trabalhar mesmo.
* Alexandre Graça Faria é professor de Literatura Brasileira na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e pesquisador do CNPq.
** Érica Peçanha é doutora em Antropologia Social e pós-doutoranda em Educação pela USP. Autora de Vozes marginais na literatura e diversos artigos sobre produção cultural da periferia paulistana.
*** Fernanda Pires Alvarenga Fernandes é doutoranda em Estudos Literários na UFJF e autora do livro Ponto de partida, um país em cena: identidade e cultura contemporânea no teatro musical.
**** Ricardo Ibrhaim Matos Domingos é doutorando em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e Mestre em Estudos Literários pela UFJF.
***** Waldilene Silva Miranda é doutoranda em Estudos Literários pela UFJF. É autora do artigo Intelectuais “da periferia”: uma análise das performances de Ferréz e desenvolve estudos relacionados à cultura brasileira contemporânea.
Nota
[1] Colaboraram na transcrição: Bruna Garcia, Márjori Mendes e Monique Ivelise.