Ano XII 0201
2º semestre de 2017
dossiê
Tempo de leitura estimado: 34 minutos

NARRATIVAS AUDIOVISUAIS ENTRE COLETIVOS ARTÍSTICOS

Resumo: Este texto objetiva discutir os filmes criados por dois coletivos artísticos de São Paulo e do Acre durante o projeto Correspondências. Realizado pela Garapa, o projeto levou oficinas multimídias para cinco capitais brasileiras, as quais operaram como um coletivo de comunicadores, arquitetos, fotógrafos, artistas e videomakers. Como foram construídos os filmes pelos coletivos de São Paulo e de Rio Branco, dentro do projeto? De que modo o sentido de correspondência dialoga com o conceito de dispositivo fílmico? Recorte de uma pesquisa que abarca o fenômeno do coletivismo artístico no Brasil, analisamos as imagens originárias dessas correspondências à luz de metodologia fundamentada no campo da Cultura Visual, que considera, além delas, o contexto de produção e se referencia na cultural turn para interpretação do visível. Por meio de entrevistas com participantes dos coletivos do projeto, pretendemos contribuir com pesquisas que discutam sobre coletivismo e suas apropriações audiovisuais, considerando ambos como práticas midiáticas da cultura contemporânea.

Palavras-chave: Coletivo, multimedia, vídeo.

Abstract: This paper aims to discuss about multimedia mailing between the collective of São Paulo and Acre, which it was created for the realization of Mailing Project. This project was organized by Garapa and it offered workshops for five Brazilian cities and it worked like a collective formed by communicators, architects, artists, photographers and video-makers. How was worked the mailing between the São Paulo collective’s and the Acre’s on this project? What means their multimedia mailings? This paper is a fraction of a search that discuss about collective phenomenon in its multimedia uses. We analyses the visual mailing created for the project looking for methodologies that dialogue with Visual Culture. This study area has found references in ‘cultural turn’ studies to analyze and to interpret the meanings of visible. For this paper, we use interviews with the participants of the Mailing Project and we analyze the program and the videos of its workshops. As results, we intend to contribute with searches that investigate collective and its multimedia uses because we consider them a habitude of contemporary culture.

Keywords: Collective, multimedia, video.

 

Apresentação

Este texto tem como objetivo refletir sobre um projeto chamado Correspondências. Para tanto, selecionamos duas correspondências em vídeo construídas pelos seus participantes. A figura 1 é uma montagem de frames da experimentação artística intitulada Rio Branco // São Paulo (lê-se: Rio Branco em correspondência com São Paulo), de autoria de um coletivo criado sob a coordenação da empresa de produção audiovisual Garapa, na capital do Acre.

Figura 1: Acre // São Paulo (Autoria coletiva, 2013)
Figura 1: Acre // São Paulo (Autoria coletiva, 2013)



Rio Branco // São Paulo from Garapa on Vimeo.

A figura 2 é, por sua vez, uma montagem de frames de outra experimentação artística diretamente relacionada com a primeira, mas inversamente intitulada São Paulo // Rio Branco (lê-se: São Paulo em correspondência com Rio Branco), de autoria de outro coletivo, também sob a coordenação da Garapa, mas, nesse caso, na capital de São Paulo. A Garapa, nesse contexto, também se apresenta como um coletivo: são fotógrafos, realizadores e artistas cuja sede de trabalho se encontra na capital paulista.

Figura 2: São Paulo // Acre (Autoria coletiva, 2013)
Figura 2: São Paulo // Acre (Autoria coletiva, 2013)



São Paulo // Rio Branco from Garapa on Vimeo.

 

Observamos essas duas figuras para pensar sobre a produção multimídia – termo usado pelos autores – que esse coletivo brasileiro realizou em seu projeto envolvendo audiovisual e plataformas digitais, tanto para a produção dessas imagens quanto para a sua difusão. Especificamente, nos interessa investigar como foram construídas as correspondências audiovisuais entre os coletivos de São Paulo e de Rio Branco, dentro do projeto. E, ainda, observar quais sentidos elas produzem.

A metodologia de análise das figuras 1 e 2 parte de Rose (2001), com a qual observamos o contexto da produção das imagens em coletivos organizados em São Paulo e Rio Branco. Além disso, a análise dialoga também com os espaços de difusão delas: um canal próprio do projeto Correspondências, na plataforma digital Vimeo[1].

Realizamos entrevistas com participantes do projeto e analisamos documentos referente a ele: o texto submetido à Funarte, o site de divulgação e o programa das oficinas. Adotamos essa perspectiva metodológica por compreender que, para a problematização que guia esse recorte, foi necessário analisar tais imagens considerando seus contextos de produção e difusão.

O dispositivo como estratégia narrativa

No documentário brasileiro contemporâneo, observamos a presença do dispositivo-fílmico como uma estratégia narrativa. Lins (2007) argumenta que cineastas como Eduardo Coutinho, João Moreira Salles, Sandra Kogut, Kiko Goifman têm em comum a adoção do dispositivo-fílmico na concepção de alguns de seus documentários, o que implica a feitura de filmes prescindindo de roteiros em nome de estratégias de filmagem que têm como pano de fundo uma concepção que rompe com a tradição documental.

Mesquita exemplifica que, em produções sob a égide do paradigma documental clássico, dominante no Brasil em certa medida até 1984, já reconhecem “a voz do povo”,  não ainda como “elemento central” da narrativa, mas “mobilizadas na obtenção de informações e ilustrações que apoiam o documentarista na estruturação de um argumento (via de regra elaborado de antemão)” (2007, p. 10). O período classificado pela autora de tempos de vídeo, de 1984 a 1999, torna-se gradualmente um terreno fértil para aflorar a noção de filme-dispositivo no Brasil, afinal, trata-se de um período em que os discursos documentais buscam uma perspectiva mais de dentro dos grupos sociais retratados. Nesses tempos de vídeo, a produção documental apresenta relações com os movimentos sociais, sendo possível observar “a grande influência (temática, estética e de produção) do vídeo popular sobre o documentário independente” (Mesquita, 2007, p. 11).

Nesse sentido, Lins (2007) afirma que, no filme-dispositivo, as imagens são criadas em virtude de determinadas estratégias e as filmagens não refletem uma realidade pré-existente, tampouco se submetem a um argumento preexistente. Por isso, trata-se de uma ruptura sobre a concepção de documentário partilhada pela tradição documental. Por isso,

Para esses diretores, o mundo não está pronto para ser filmado, mas em constante transformação; e a filmagem não apenas intensifica essa mudança, mas pode até mesmo provocar acontecimentos para serem especialmente capturados pela câmera (Lins, 2007, p. 45).

A autora argumenta ainda que a noção de dispositivo no contexto da produção documental independente no Brasil não se vincula diretamente às instalações que se utilizam de vídeo, computador ou cinema de galeria e museu, nos quais o espectador frui a obra por meio de interações em circuitos fechados. Também não se trata da concepção de cinema como dispositivo abordado pela crítica francesa da década de 1970, a qual abrangia a captação de imagens e a exibição em uma sala escura, “imobilizando o espectador entre a imagem e o projetor, favorecendo a identificação dele com os heróis na tela e com o que produz o espetáculo, a própria câmera” (Lins, 2007, p. 43-44).

Assim, afirma que a noção de dispositivo como estratégia narrativa se inspira no realizador, crítico e pesquisador Comolli. A concepção comolliana de filmar sob o risco do real implica o desejo do cineasta de estar no comando da realização e na explicitação das condições da experiência documental. Segundo Comolli, “ao abrir-se àquilo que ameaça sua própria possibilidade (o real que ameaça a cena), o cinema documentário possibilita ao mesmo tempo uma modificação da representação”, uma vez que os filmes documentais “não são apenas ‘abertos para o mundo’: eles são atravessados, furados, transportados pelo mundo. Eles se entregam àquilo que é mais forte, que os ultrapassa e, concomitantemente, os funda” (2008, p. 169).

A noção de dispositivo no documentário independente brasileiro dialoga com a genealogia do poder de Foucault (1979), que fundamentou sua discussão no estabelecimento de uma rede conceitual, optando deliberadamente por análises diversas da tradicional relação entre o poder, as estruturas econômicas e políticas. Nesse sentido, sua contribuição desloca a investigação sobre o poder das ciências políticas, evitando o sinônimo entre Estado e poder. Tal inovação evidencia formas e exercícios de poder diferentes daqueles praticados pelo Estado, articulando-os de modos variados e discutindo suas mecânicas de expansão na sociedade de modo a observar seu alcance na realidade mais concreta dos indivíduos, seu corpo. Desse modo, considera-o nem acima, nem abaixo, mas ao nível do corpo social e suas imbricações nos jogos de poder da vida cotidiana, classificando-os de micropoder.

A partir desse pano de fundo teórico, o documentário independente se apropria da discussão foucaultiana, fazendo uso de seus termos como estratégia, dispositivo, relações de força, jogos de poder, agenciamento. Almeida (2016) sugere ainda que outra referência teórica para tais práticas documentais seria Deleuze (1996) a partir de quem,

Temos que o dispositivo, possuindo uma natureza essencialmente estratégica, sempre lidará com relações de força, instaurando um jogo de poder, com interesses diversos. Ou seja, poderá ser definido como um conjunto de ‘estratégias de relações de força sustentando tipos de saber e sendo sustentadas por eles’, atuando dessa maneira como máquinas, ‘máquinas de fazer ver e de fazer falar’ (Almeida, 2016, p. 13, grifos do autor).

Nesse sentido, o conceito de dispositivo praticado no documentário independente brasileiro dialoga com a terminologia teórica foucaultiana e deleuziana, pois, à medida em pensa a relação entre quem filma e quem é filmado por ‘máquinas de fazer ver e de fazer falar’, busca evidenciar os jogos de poder presentes na produção. Desse desejo de explicitar os jogos de poder presentes na imagem documentária, ou seja, do interesse por ressaltar a opacidade do registro é que pode emergir a narrativa como estratégia.

Migliorin (2005) afirma que o conceito de dispositivo tem sido recorrente em dois campos específicos do audiovisual contemporâneo, no documentário e em produções ligadas à videocriação. O autor pensa no dispositivo como o deflagrador de um processo narrativo, como um jogo ou estratégia que gera acontecimento no mundo e, por conseguinte, na imagem.

O artista/diretor constrói algo que dispara um movimento não presente ou pré-existente no mundo, isto é um dispositivo. É este novo movimento que irá produzir um acontecimento não dominado pelo artista. Sua produção, neste sentido, transita entre um extremo domínio – do dispositivo – e uma larga falta de controle – dos efeitos e eventuais acontecimentos. O dispositivo é a introdução de linhas ativadoras em um universo escolhido. O criador recorta um espaço, um tempo, um tipo e/ou uma quantidade de atores e, a esse universo, acrescenta uma camada que forçará movimentos e conexões entre os atores (personagens, técnicos, clima, aparato técnico, geografia etc.). O dispositivo pressupõe duas linhas complementares: uma de extremo controle, regras, limites, recortes; e outra de absoluta abertura, dependente da ação dos atores e de suas interconexões; e mais: a criação de um dispositivo não pressupõe uma obra. O dispositivo é uma experiência não roteirizável, ao mesmo tempo em que a utilização de dispositivos não gera boas ou más obras por princípio (Migliorin, 2005, p. 3).

Assim, o dispositivo de criação é pensado em termos de instrumentos (as regras para o jogo narrativo, o uso de ‘novas’ tecnologias de imagem e do audiovisual) e de funcionamento (o deslocamento da direção do autor na narrativa, a abertura da condução narrativa aos participantes dela, a definição do processo pelo tempo ou espaço, a supremacia do processo em detrimento do resultado, a imprevisibilidade do resultado dada a abertura do jogo narrativo aos agentes).

No Correspondências, o dispositivo de criação narrativa foi um jogo cartográfico entre as cidades participantes, envolvendo a temática da mobilidade urbana. Inicialmente, os participantes, sem o saber, escolheram um ponto aleatório da sua cidade para captar uma paisagem visual, em uma filmagem fixa do movimento urbano. Essa filmagem foi postada por cada autor em uma plataforma digital, como por exemplo, o Youtube ou Vimeo, e o seu link foi compartilhado entre todos os participantes do projeto por meio de outras plataformas digitais, um grupo fechado no Facebook e um microblog no Tumblr.

Essas mídias sociais serviram aos participantes do Correspondências como mediadoras de conteúdos e comentários sobre esse processo, sobre as diferenças entre as cidades e as perspectivas dos realizadores. Embora já tenhamos discutido, em outro momento, que nem todos os participantes se atentaram para as potencialidades desses meios, essas mídias operaram como redes mediadoras de relações e correspondências.

Observemos o termo correspondências dentro desse projeto. Quando éramos jovens, tínhamos como hábito escrever cartas e enviá-las a amigos, tios e primos. Algumas vezes, quando a distância se prolongava pelo tempo, nos fotografávamos, revelávamos o filme e incluíamos uma foto no envelope. Postar um vídeo, pelos Correios, era quase inimaginável. Ainda não existiam as facilidades do e-mail, Facebook, WhatsApp, Skype, Youtube etc. E só se passaram cerca de 30 anos. Nós nos correspondíamos, mas por meios bem distintos. A partir disso, temos que o termo “correspondências”, no projeto investigado, tem o sentido de carta endereçada a alguém.

Lins (2006, p. 1) classifica a obra Salut les cubains (Agnès Varda, 1963) como “uma espécie de filme-carta endereçada aos cubanos e ao mundo por uma viajante seduzida por tudo que viu”. O projeto do seu documentário nasce de um convite à cineasta francesa pelo Instituto Cubano da Arte e da Indústria Cinematográficas (ICAIC) para passar alguns meses em Cuba.

Agnès Varda faz uso de um dispositivo formal para criação do seu documentário: das três mil fotografias capturadas na ilha, surgiria o documentário, que “extrai ‘cinema’ de imagens paradas através de uma montagem que nos faz ‘ver’ o movimento, mostrando já no início dos anos 60 o quanto o cinema tem a ganhar associando-se a outros procedimentos técnicos” (Lins, 2006, p. 1). Além disso, a narração em off nega o tom professoral que se propõe a explicar o mundo – característica do documentário clássico. Ao invés disso, é composta por saudações a cubanos conhecidos e anônimos que ela viu com suas lentes. Faz sentido, portanto, pensar sobre a noção de filme-carta.

Almeida (2016) utiliza a noção de carta em vídeo ao tratar da obra Rua de mão dupla (Cao Guimarães, 2002). Criado inicialmente para a videoinstalação na 25ª Bienal Internacional de São Paulo, em 2002, duas telas foram colocadas paralelamente, ideia mantida no formato em filme. Em cada lado da tela, vemos imagens em vídeo feitas pelos personagens participantes de um jogo proposto pelo artista-cineasta, que consistia em trocar de casa com um desconhecido por 24 horas, buscando vestígios de quem é esse outro a partir do seu ambiente domiciliar. Tem-se aqui, mais uma vez, a questão do ‘outro’ tão cara à tradição documentária, mas agora subvertida por um dispositivo de criação, filiado a práticas artísticas contemporâneas. Então,

Acreditamos que, em Rua de mão dupla, o registro da casa do outro funciona como uma espécie de carta em vídeo, na qual os indivíduos apresentam-se a seu correspondente, estando na casa dele sem o conhecer, no desdobramento daquelas 24 horas. E, assim, narram audiovisualmente o seu dia, revelando, para além de seu próprio modo de ser, ao operar a câmera, aquele eu que veem no outro (Almeida, 2016, p. 18).

Se a câmera não é transparente nem imaterial, ou seja, se suas imagens são fruto do que foi colocado em cena, como argumenta Comolli (2008), ela materializa o corpo, simboliza o olhar, apresentando-o como relação daquele que olha e é olhado pelo outro.

O contexto da produção do filme-dispositivo no projeto Correspondências

Antes de analisarmos os dispositivos fílmicos, faz-se necessário pensar o contexto de suas produções. O projeto Correspondências é criado pela Garapa, que, afinada com a terminologia contemporânea do coletivismo artístico, da qual faz uso recorrente no seu discurso, pode ser compreendida como um estúdio, bureau ou miniprodutora que articula colaboradores em seus trabalhos comerciais e autorais. Além da apropriação de uma terminologia atual, há outra questão observada: na Garapa há um esforço em se obter o reconhecimento das instituições de arte para o financiamento e distribuição dos trabalhos realizados pelo coletivo. Em decorrência desse esforço, o projeto Correspondências, campo que originou este texto, foi aprovado e financiado pela Fundação Nacional de Artes, Ministério da Cultura.

Desenvolvido em 2013, com o apoio financeiro da 9ª edição do Programa de Rede Nacional Funarte Artes Visuais[2], pela Garapa, o projeto Correspondências levou oficinas de produção multimídia a cinco capitais brasileiras: Curitiba, Fortaleza, Goiânia, Rio Branco e São Paulo. As oficinas, como explicou Fehlauer (2013a), durante uma entrevista realizada na sede da Garapa em São Paulo, não eram técnicas, antes tinham como objetivo “jogar fagulhas de produção coletiva em outros cenários” e produzir “a partir do encontro”.

No projeto Correspondências, ele argumentou, os documentários foram produzidos coletivamente e em rede. A rede aqui tem um sentido de teia (abrangendo geograficamente o Brasil por meio de correspondências com participantes de cinco capitais de regiões distintas), mas também de internet, uma vez que os primeiros contatos e trocas ocorreram por meio de redes sociais nas plataformas digitais.

Assim, dentre o público esperado para essas oficinas multimídias estavam “artistas, estudantes e profissionais do campo das artes visuais, do audiovisual e da comunicação” (Garapa, 2013b). Os objetivos do projeto submetido à Funarte eram “explorar as possibilidades narrativas da linguagem audiovisual nas redes virtuais” (Garapa, 2013b).

Nesse sentido, observamos que as oficinas, nesse projeto, funcionaram como o situacional, nos termos de Hollanda (2013), ou seja, o espaço para o encontro que resultou na produção documental. Desse modo, elas funcionam como um coletivo que se encontra para realizar. As dúvidas técnicas, de linguagem ou de estilo narrativo, foram abordadas caso os participantes perguntassem, durante esses encontros. Assim, temos ainda que as oficinas possibilitaram os coletivos existirem, foram alegoricamente pretextos para que os grupos se articulassem e realizassem os documentários juntos.

A prática de oficinas por meio de projetos financiados pelo Estado, institucionalizadas nas políticas públicas de incentivo à cultura no Brasil do tempo presente, já existia desde a década de 1980 e possibilitou aproximações entre cineastas e alguns movimentos sociais, tais como o do vídeo popular. Segundo Mesquita, “no chamado ‘movimento do vídeo popular’” nota-se com frequência “o projeto de elaborar, ‘de dentro’, as identidades dos grupos sociais retratados, em oposição ao estigma; de dar-lhes visibilidade de uma perspectiva que se propõe ‘interna’” (2007, p. 11). Costumeiramente, tais imagens documentais eram construídas em oficinas em associações de bairro, cineclubes e entidades relacionadas ao movimento popular.

Notamos que a noção de coletivo defendida pela Garapa dialoga com o que Mesquita nomeia de “movimento do vídeo popular” (2007, p. 11), visto que considera a horizontalidade das relações entre seus participantes, mas também a perspectiva de elaborar “de dentro” as identidades dos grupos sociais retratados. No entanto, observamos que a mudança da década de 1980 para esse projeto, realizado em 2013, é dissolução da identidade de grupo social. No Correspondências, não há um grupo social, os participantes não se conheciam antes das oficinas se realizarem, o que possibilitou representações identitárias (de Rio Branco e São Paulo) mais próximas do senso comum do que dos membros do coletivo.

Importa-nos esclarecer que houve, com o projeto, o interesse em abarcar as subjetividades e as autorrepresentações dos realizadores que compunham cada coletivo em correspondência. E, mesmo que o projeto não pretendesse ser lançado em salas de cinema, ele dialoga com o que Mesquita classifica de documentário da ‘retomada’ (2007, p. 12).

Verticalizando nessa direção, além da diversidade de conhecimento técnico e estético dos participantes, nosso argumento se fundamenta na premeditada indistinção sobre as funções específicas que cada um desempenhou na realização dos documentários. Inspirado no modo organizacional da Garapa, que opera a partir de certa horizontalidade das relações, também os coletivos no projeto Correspondências assumem essa disposição. Quando questionado sobre por que produzir documentários em rede e em coletivo, Fehlauer responde que “no nosso trabalho a gente se autodenomina um coletivo e é um trabalho que pressupõe uma horizontalidade nas realizações dos projetos” (2013a).

Desse modo, os coletivos constituídos dentro do Correspondências apontam para a mesma característica organizacional da Garapa. E além das oficinas servirem de pretexto para o encontro, caracterizando-se muito mais como um grupo de trabalho do que como espaço de aprendizagem tradicional, elas traduzem ainda uma organização de certo modo não disciplinar, sem o desígnio de funções específicas ou papéis determinados para cada participante. Assim, “na hora de produzir e montar os grupos de produção mesmo não existia necessariamente uma função, todas as pessoas passavam por todas as etapas” (Fehlauer, 2013a).

Além do Correspondências ter operado como a Garapa, isto é, horizontalmente sem funções pré-determinadas ou fixas, os cinco coletivos criados pela Garapa nas cinco capitais realizaram quatro produções cada, resultando em 20 documentários ao final do projeto. Embora o Correspondências tenha sido unicamente composto por 60 participantes, 12 por cidade, mais os membros da Garapa e alguns parceiros locais durante os diálogos e trocas por meio das redes digitais, no encontro presencial os grupos se constituíram distintamente. A relação estabelecida resultou em caminhos narrativos diversos sinalizando diferentes escolhas, dentro de um mesmo tema a ser trabalhado.

Contudo houve uma opção deliberada por parte da Garapa para construir uma unidade narrativa, sem interferir nas escolhas de cada coletivo. A saída encontrada foram as vinhetas de abertura e finalização. Elas foram editadas pela Garapa e segundo Fehlauer (2013a) cumpriram o papel de dar unidade narrativa para os 20 documentários originados nas oficinas. Essas vinhetas narram o dispositivo do projeto: um jogo cartográfico que a Garapa propôs aos participantes de cada coletivo criado.

O jogo cartográfico como dispositivo fílmico do Correspondências

Quanto ao dispositivo do projeto Correspondências, notamos aí também uma espécie de filme-carta construído desse modo: quando a Garapa se reúne com o coletivo de cada capital, leva mapas impressos de cada uma das cinco capitais. Os mapas utilizados foram os disponibilizados gratuitamente pelos serviços de satélite da Google Maps. Eles foram impressos em papel vegetal em uma mesma escala e já tinham os pontos de todas as paisagens visuais demarcados nos seus respectivos locais de captação, isto é, cada participante teve seu ponto numerado no mapa da sua cidade. A partir disso, iniciou-se o processo de correspondência.

O ponto A é aquele que o Google Maps indica como o centro da cidade; assim, todos os mapas tinham o seu próprio ponto A. Para que o coletivo de Rio Branco fizesse a correspondência com o de São Paulo, o mapa de Rio Branco foi sobreposto ao da capital de São Paulo, de modo que o ponto A das duas capitais fossem coincidentes. A partir disso, o coletivo de Rio Branco definia com qual ponto das paisagens visuais de São Paulo iria se corresponder.

O coletivo de Rio Branco se correspondeu com apenas um ponto de São Paulo. O mesmo processo ocorreu com o coletivo de São Paulo, mas, nesse caso, o mapa dessa capital é que estava sobreposto, de modo que este se correspondeu com apenas um ponto dentre todos os disponíveis no mapa de Rio Branco.

Dentro do coletivo de Rio Branco (bem como no de São Paulo) ocorreu uma negociação sobre qual ponto escolher, a qual segundo Fehlauer (2013a) variou em critérios em cada coletivo. Contudo, de certo modo, perguntas guiaram esse agenciamento, as quais giraram em torno de pensar na mobilidade que um morador de Rio Branco teria, saindo do ponto A para chegar ao ponto B.

Assim, o jogo consistia em deflagrar narrativas em torno de como sair do ponto A e chegar ao ponto B. De bicicleta? De carro? De ônibus? De metrô? De catraia? A pé? Quais eram os desafios do percurso: a distância, a condição das estradas/trilha/caminho, a falta ou abundância de meios de transporte, o tempo gasto para realizar o trajeto, os acidentes geográficos, a questão da segurança, entre outros.

Com o ponto B negociado e definido, cada coletivo se propôs a percorrer o trajeto, filmando-o e construindo a narrativa. Por parte da Garapa, na condição de coletivo proponente do dispositivo, não havia o controle narrativo, sendo impossível prever se os membros de Rio Branco ou São Paulo teriam um filme naquele percurso.

Retomando as figuras 1 e 2, nos perguntamos se, apesar da imprevisibilidade do dispositivo narrativo possibilitado pelo jogo cartográfico, a experimentação construída pelos dois coletivos considerou a perspectiva da correspondência para além dos mapas, isto é, no sentido de se corresponder um com o outro, Acre com São Paulo, este com aquele.

Se nas nossas cartas juvenis, havia um remetente e um destinatário, em que medida o coletivo acreano se considerou remetente de uma narrativa sobre sua mobilidade urbana destinada ao coletivo paulistano e vice e versa? Essa questão torna-se fundamental diante da produção de sentido que essas duas narrativas nos apresentam. Observemos as imagens.

A figura 1 traz frames da narrativa produzida pelo coletivo acreano. Ela apresenta uma duração de 6’52. Em relação à trilha que envolve este experimento, temos ruídos de caminhão (apesar da ausência visual do veículo), moto, carro, mas também uma abundância de grilos e pássaros. Membros do coletivo acreano interagem com as imagens deixando seus ruídos na montagem final, algo como “agência dos correios aqui? Funciona?” denotam que ponto B escolhido está em um local distante do convívio dos autores, que moraram em Rio Branco.

Há um diálogo com a estética da fome (Rocha, 1995), apresentando um misto de cine-denúncia e fragmentos de ativismo, embora sem vínculos explícitos de politização. Imagens denunciam a distância, apresentando ruas fantasmas e um sol escaldante. O coletivo inicia seu trajeto em uma via cujo fluxo de carros é tranquilo e há uma ponte. A denúncia da água cuja força exige que moradores constituam residências móveis, isto é, vivenciem uma espécie de mobilidade residencial, uma vez que a cada enchente precisam mudar-se reaparece no percurso, durante as interações com moradores. Composições que enfocam o lixo, a ladeira filmada do alto, o remendo das paredes e a lama do caminho se estendem pela narrativa.

Nela há a interação com alguns personagens. Na fala dos personagens aparecem temas como desemprego, pobreza, polícia, insegurança, erosões, prostituição, drogas, religiosidade. Dois deles estão em um bar, à contraluz, denunciando que é dia lá fora. Calmamente narram para a câmera que aquele lugar para onde o coletivo vai já foi a diversão de todo homem da região; que ali era “decente, não era vulgar como hoje em dia”, pois cada um tinha seu próprio quarto; mas que “das 8 da noite até ao amanhecer do dia” a farra estava garantida a todo homem que viesse à Rio Branco.

Nesse mesmo lugar, um pastor e ex-usuário de drogas testemunha sobre sua nova vida “resgatando vidas”. Esse personagem demonstra seus conhecimentos ao apontar para as cavernas verdes de uma paisagem vigorosa ladeira a baixo onde usuários se escondem para o vício. A iluminação caminha de modo predominante para tons tropicais.

Quanto ao ritmo da narrativa, temos uma evidência explícita do tempo do sertão, que é o tempo da conversa de bar, da interação que testemunha a fé a estranhos abrindo sua própria casa para o filme acontecer. São três inserções da primeira interação com os personagens profanos e cerca de três com o ícone do sagrado. Os quadros são longos e esperam o ritmo do pedestre chegar de um ponto ao outro dos limites do campo visual. Há cortes secos, mas há também as fusões.

O ponto B que o coletivo acreano selecionou para fazer a correspondência com São Paulo é uma periferia onde a enchente exige mais do que mobilidade urbana, exige a mobilidade residencial. Nesse ponto B escolhido pelo coletivo acreano para se corresponder com um dos pontos de São Paulo há a distância não apenas dos paulistanos, mas também dos autores rio-branquenses. Havia outros pontos possíveis para apresentar na sua correspondência com os destinatários de São Paulo, mas os remetentes acreanos optaram por um que denuncia a periferia. O que isso significa?

Vejamos se a análise sobre a narrativa construída pelo coletivo paulistano nos apresenta pistas para essa problemática. A figura 2 é um mosaico de frames da narrativa construída pelo coletivo paulista cuja duração é de 2’32, cerca de quatro minutos e vinte segundos a menos que a anterior. Quanto à trilha sonora, temos ruídos de um trânsito nervoso, ônibus, buzinas, pingo de água sugerindo goteiras ou vazamentos e, somente no final, sons sinistros do órgão da Catedral da Sé.

Embalada por essa sonoridade sombria, há um diálogo com a estética noir com cenas explorando a luz noturna, composições com predomínio de tons que variam dos acinzentados aos pretos. Os corpos nessa narrativa são, em alguns momentos, partes: apenas pernas, pés ou bustos que sobem e descem escadas apressadamente, sem interação com a câmera; em outros momentos, são silhuetas na contraluz do túnel, cenário predominante da narrativa.

De dentro do túnel, a narrativa emerge subindo as escadas rumo a uma luz naturalmente cinzenta embebida pela “feia fumaça” cantada na poesia de “Sampa” (Veloso, 1978). A presença do verde aparece pela primeira vez em um close, cuja cena enfoca uma mirrada vegetação que insiste em brotar da concretude das escadarias. Nesse deselegante cenário, lemos um “foda-se” grafitado nos muros, só lido entre um e outro transeunte que passa apressado na frente. O ritmo da narrativa é expresso pelo borrão que a velocidade dos carros deixa na fotografia do frame. Os quadros são de curta duração e seus cortes secos, ao estilo de montagem de um videoclipe.

Retomando a problemática, havia outras abordagens possíveis para o coletivo paulistano explorar na sua narrativa. Apesar disso, o grupo remeteu como mensagem ao coletivo de Rio Branco aquilo que compreende ser sua identidade como metrópole. Em resposta, mesmo que as narrativas não tenham operado literalmente como uma carta que se respondeu, o coletivo de Rio Branco remeteu ao de São Paulo uma identidade de periferia, miserável e atrasada. Woodward (2012) argumenta que as identidades se articulam por meio de símbolos e linguagens que as representam e que elas são marcadas pela diferença.

Quando o coletivo de São Paulo se afirma como metrópole, ao se utilizar de uma estética noir, está se diferenciando de Rio Branco por meio de todas as representações simbólicas que a linguagem do cinema, da televisão e do vídeo já construíram em nosso imaginário de representações. O experimento referente à figura 2 se assemelha a muitos filmes de suspense captados nos becos de Londres, Nova York, Paris. Tal associação imprime na mensagem que o coletivo destina ao Acre uma identidade que representa o progresso na cultura ocidental, mesmo que vista na perspectiva do underground. Aliás, toda a produção dos experimentos em coletivo goza, mesmo nas ruas paulistas, de uma identidade underground, fora da lei, por andar na contracorrente do mainstream da cinematografia e do vídeo hegemônico.

Apesar disso, a narrativa da figura 2 constrói uma identidade afirmando elementos reconhecíveis ao imaginário coletivo e, portanto, aos acreanos – seus destinatários – sobre sua exuberância civilizatória, seu progresso e sua modernidade. De modo sofisticado, a narrativa elege o lado sombrio da cidade grande para se representar. Em contrapartida, a narrativa da figura 1 constrói uma identidade do exótico pela contradição do sagrado versus o profano da periferia de Rio Branco. Se Woodward (2012) nos apresenta que a identidade é sustentada pela exclusão, temos aqui um exemplo de que o coletivo acreano se viu como atrasado em relação ao civilizado paulista.

A disponibilização dessa mensagem no espaço público das plataformas digitais aliado ao dispositivo do jogo cartográfico e às mídias que o envolveram parece ter confundido os coletivos quanto à apreensão de que se tratava de uma correspondência tanto quanto as das cartas juvenis de que tratamos no início do texto. Essa mensagem diz respeito ao modo como se identificam, como uma metrópole concreta, ágil, cinzenta, sombria, fria, desenvolvida versus uma periferia pobre, atrasada e lenta. Não nos pareceu que os dois coletivos intencionaram afirmar essa identidade, no entanto, as escolhas estéticas têm sentido mesmo que os autores não tenham tido interesse deliberado de construir tal sentido.

Considerações finais

A Garapa, coletivo proponente do projeto Correspondências, criou coletivos em cinco capitais brasileiras para que cada um deles recebesse uma oficina multimídia presencial. Essas oficinas não operaram como espaços de aprendizados no sentido tradicional dos termos ensinar e aprender, mas como pretextos para o coletivo se reunir e produzir experimentos a partir do encontro. Para fins dessa reflexão, recortamos duas narrativas: construídas pelos rio-branquenses em correspondência com os paulistanos e vice-versa.

Observamos que houve dois coletivos distintos, um em Rio Branco e outro em São Paulo, capital, apesar de a Garapa tê-los coordenado e, ao mesmo tempo, ser parte de ambos. Mas sabíamos sobre São Paulo, a capital? E sobre Rio Branco? E como foram construídas as correspondências entre os coletivos de São Paulo e de Rio Branco, dentro do projeto?

A Garapa, para deflagrar essas correspondências, propõe um dispositivo narrativo, que foi um jogo cartográfico no qual os dois coletivos se corresponderiam em vídeo sobre a mobilidade urbana, tendo dois pontos a percorrer: o ponto A, eleito pelo sistema de mapeamento do Google, e o ponto B, escolhido da sobreposição de mapas impressos em papel vegetal. O jogo cartográfico não se concentrou no ponto B de cada cidade isoladamente, antes, buscou relacioná-las de modo que: o ponto B de São Paulo corresponde a que local no mapa de Rio Branco? Como um rio-branquense vai do centro da sua cidade até o ponto correspondente em São Paulo?

Dessas perguntas emergiu a narrativa centrada em um percurso que elegeu a distância, os meios de transporte e outras histórias que surgiram no caminho para que o experimento se tornasse filme. Observamos, no entanto, que o coletivo de Rio Branco constrói uma narrativa que reafirma sua identidade de lugar nenhum, de periferia atrasada, denunciando os problemas reais que possui uma periferia, mas sem problematizar essa representação. Essa identidade ficou mais evidente quando o coletivo paulistano elege uma identidade metropolitana, cosmopolita e underground para se remeter à correspondência com Acre, também sem problematizá-la.

Se quase ninguém sabe sobre o Rio Branco, no Acre, São Paulo tem sido cantado e propagado hegemonicamente há tempos. Desse modo, a ausência de um questionamento dessa diferença identitária representada e reforçada na estética dos dois experimentos nos mostra uma correspondência em que remetentes e destinatários pouco sabem sobre si e sobre o outro.


* Lara Lima Satler é doutora em Arte e Cultura Visual (PPGACV/ FAV / UFG, 2016), professora e pesquisadora na Universidade Federal de Goiás (UFG). Organizadora do livro Imagens, olhares, narrativas (2016) e autora de “Diários de aula como deflagrador de uma pesquisa com experimentações audiovisuais”, Revista Digital do LAV (2016), “O método cooperação dos Amigos do Cinema”, Visualidades (2016) e “O cinema feito em coletivo”, Artefactum (2015).

** Alice Fátima Martins é bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq – Nível 2. Tem pós-doutorado no Programa Avançado de Cultura Contemporânea da UFRJ (2010), com o projeto de pesquisa Catadores de Sucata da Indústria Cultural, cujo resultado foi publicado, em 2013, com o título Catadores de sucata da indústria cultural, pela FUNAPE/Editora da UFG. É professora na Faculdade de Artes Visuais da UFG e atua no curso de Licenciatura em Artes Visuais e no Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual.

 

Referências

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Notas

[1] GARAPA. Correspondência no Vimeo. Mar. 2013d. Disponível em: <https://vimeo.com/channels/correspondencias>. Acesso em: 22 nov. 2015d.

[2] A Fundação Nacional de Artes (Funarte), Ministério da Cultura, divulgou, via portaria nº 366, de 22 de novembro de 2012, o resultado dos projetos aprovados pelo Edital Programa Rede Nacional Funarte Artes Visuais, no qual o projeto Correspondências ocupa o 7º lugar. Disponível em: < http://www.funarte.gov.br/wp-content/uploads/2012/08/Resultado-final_Programa-Rede-Nacional-Funarte-Artes-Visuais-9a-Edicao_2012_Portaria-366.pdf>. Acesso em 04 jan. 2014.