O artigo trata sobre processos de composição visual realizados para o filme O bloqueio. Propõe reflexões sobre a influência das montagens cinematográficas, colagens bidimensionais, esculturas tridimensionais e os hibridismos das mídias digitalizadas no processo de criação contemporâneo da imagem em movimento.
A composição visual é um dos processos de criação mais utilizados na produção de conteúdo cultural do nosso tempo. Híbridos por natureza, possuem como princípio básico a colagem ou a edição de objetos, imagens, textos, sons, em um determinado espaço de tempo ou de tela, compondo um novo objeto feito de fragmentos da realidade.
A composição de imagens pode ser dividida em dois tipos distintos: a composição bidimensional e a composição temporal ou tridimensional. Na composição bidimensional de imagens convivem diferentes materiais (papel, plástico, madeira etc.) que representam símbolos para nossa sociedade. Tipografias, tecidos, pedaços de objetos, imagens de jornais e revistas são compostas em uma única imagem ou quadro. Encontramos compostos em maior quantidade em telas bidimensionais ou montados como esculturas tridimensionais estáticas ou automáticas. Como exemplo, podemos citar os ready-mades de Marcel Duchamp ou o método da colagem de papel, papier colé, muito utilizado pelos artistas cubistas e dadaístas.
Na composição temporal, quadros separados que registram uma determinada realidade geram por consecutividade um momento de tempo/espaço. A montagem cinematográfica é o exemplo mais utilizado desse tipo de composição visual. Grandes cientistas da imagem em movimento, como o russo Dziga Vertov, pesquisaram que o efeito de compor diferentes imagens, pensando em uma linha temporal sequencial, poderia produzir diversos tipos de construções e interpretações mentais. A montagem das sequências, escolhas das cenas ou imagens, é concebida intencionalmente através das características estéticas e semióticas. Estudos realizados por Lev Kulechov foram bastante aprofundados para o entendimento das diversas reações causadas pela combinação sequencial de diferentes imagens; sua ideia era a de que duas imagens, (A) e (B), são interpretadas e geram uma terceira síntese, inédita (A+B=C). Aqui vemos a similaridade do conceito da montagem cinematográfica com certos aspectos do hibridismo: a síntese, onde dois elementos são combinados para gerar um terceiro.
A composição temporal a partir do advento da imagem em movimento se tornou um paradigma instigante para a simulação do espaço/tempo. A criação das falsas realidades, efeito particular da composição temporal, foi e ainda é muito utilizada intencionalmente para criar conclusões preconcebidas em uma sequência de imagens.
Aspectos sociais e culturais são facilmente manipulados para deduções, montadas para induzir um resultado específico no espectador. Provocar uma síntese já estudada, atribuindo uma falsa premissa, torna-se bastante útil para a propagação de ideologias dominantes. Podemos evidenciar esse tipo de montagem ideológica nos filmes de propaganda de guerra, acentuados nas produções cinematográficas do comunismo e do nazismo. Também encontramos sutilmente nos filmes americanos, ambos logrando modificar a opinião dos espectadores com suas ideologias montadas. Percebemos estes índices em algumas produções norte-americanas, como a sugestão de nacionalidade mexicana dos vilões de Vida de inseto (A Bug’s Life, 1998), de John Lasseter, na cena em que as “cucarachas” se reúnem próximas à bala da revolução mexicana.
Com a introdução do computador como mais uma máquina de composição visual, esse paradigma ganha nova versão. Alguns métodos mais antigos de edição desenvolvidos por Serguei Eisenstein como a montagem métrica, que usa a duração das sequências para estabelecer uma batida, e a montagem rítmica, com base nos padrões de movimento da imagem, se tornam bases para as recentes composições em mídias digitais, desde os sampleamentos até a manipulação de imagens em tempo real.
Lev Manovich, outro grande cientista russo das mídias digitais, destaca um novo tipo de composição que é a espacial ou espacializada, originada pelo uso de hiperlinks dentro de uma sequência de imagens que podem ser visualizadas em janelas dispostas (compostas) na tela do computador. Essas janelas apresentam espaços fragmentados de tela, que desestruturam o significado da imagem única da tela.
Filmes como O homem que odiava as mulheres (The Boston Strangler, 1968), de Richard Fleischer, exemplificam bem esse tipo de composição que parece com a diagramação espacial das imagens nas histórias em quadrinhos. Outros tipos de composição visual, citados por Manovich, são interessantes de serem comentados: a composição estilística ou estética e a composição ontológica.
O processo de construção da animação O bloqueio, realizada como projeto final de graduação, de Cláudio Luiz de Oliveira e Fernando Rabelo, na Escola de Belas Artes da UFMG em 2000, posteriormente ganhadora de prêmios, um dos quais possibilitou sua finalização digital e transposição em película de 35mm, caracteriza-se pela composição de várias mídias: filme de 16 mm, fotografia, vídeo analógico e vídeo digital. Seu roteiro foi desenvolvido tendo como base o conto homônimo do escritor mineiro Murilo Rubião, especialista no gênero de literatura chamado de realismo fantástico, característica marcante das histórias que acontecem em ambientes “reais”, mas acrescentadas de situações inusitadas ou absurdas, ontologicamente impossíveis na realidade.
Na sua construção original, captamos todas as cenas em filmadora de vídeo analógica e usamos poucos recursos de interferência na imagem original. A composição final foi realizada com poucos efeitos, concentrados nas cenas nas quais desenhos dos personagens aparecem flutuando em uma camada (layer) acima do vídeo. Na sequência inicial de O bloqueio, o sonho do rato no labirinto, realizamos uma animação de tinta a óleo sobre vidro e papel, filmada em película de 16 mm. Essa animação foi construída tendo como referência de roteiro o conto “Um rato em seu labirinto”, de Franz Kafka. Sabíamos, por nossa pesquisa no Centro de Estudos Literários (CEL-Fale) e no Acervo de Escritores Mineiros da UFMG, que Oswald de Andrade havia citado um certo alemão, do qual esquecera o nome, que o impressionara em seus contos e disse a Murilo, em uma carta, que suas histórias eram similares com os contos escritos por Rubião na época.
Depois de finalizarmos o projeto de curso que culminou nessa animação, conseguimos realizar um segundo tratamento, que só foi possível com a premiação da animação no I Prêmio Estímulo à Produção de Curtas-metragens de Minas Gerais, criado pela Associação Curta Minas. Com essa premiação conseguimos realizar em O bloqueio uma homenagem póstuma ao grande escritor Murilo Rubião, mixando a estética das fotografias do escritor com o material já captado em vídeo.
A etapa seguinte foi a digitalização ou transferência do vídeo analógico para o computador, na época, um poderoso Powermac G4. Nesse processo, separamos para digitalização somente a sequência de imagens em que o ator estava presente, realizada através do programa da Pinnacle: Commotion (v4.1 PPC). Realizamos toda a composição de vídeo e fotografia em um programa que funcionava com composições em camadas (layers) e permitia visualizar, pintar, borrar e clonar áreas similares. Nesse trabalho foram gerados mais de 8.000 frames de vídeo tratados quadro a quadro, compostos com recortes das fotografias que retratavam o escritor na sua vida durante trinta anos (ontologia da vida) e com o filme em vídeo que tratava de um personagem que envelhecia rapidamente na sua própria estória (ontologia do filme). Para propor sequências de animação do personagem mais aproximadas ao estilo do realismo fantástico, decidimos usar as fotos que mais se enquadravam proporcionalmente à perspectiva do personagem filmado no vídeo, usado como referência temporal da animação.
A convivência de várias realidades distintas e distantes no tempo/espaço proporcionou uma montagem visual, denominada por Manovich como montagem ontológica, que se caracteriza principalmente pela coexistência de elementos ontológicos incompatíveis em uma mesma cena, tempo e espaço. Em O bloqueio coexistem, em um mesmo campo visual, a moldura que direciona o espectador, o mundo real, capturado em vídeo, um ator (Fernando Rabelo) e o próprio Murilo Rubião em imagens fotográficas (elemento usado como refutação “concreta” de pessoas e lugares).
Manovich, em seu estudo sobre os tipos de montagem, cita como exemplo de composição ontológica a animação criada por Zbigniew Rybczynski intitulada Tango (1980), na qual diferentes situações acontecem em um mesmo quarto; as situações são possíveis pois foram capturadas em separado, mas ao serem executadas ao mesmo tempo e no mesmo espaço tornam-se ontologicamente impossíveis.
Além do conceito de composição ontológica, percebemos que todos os elementos dúbios que denunciam e explicitam a ilusão de uma composição fragmentada, produzida pelas imagens manipuladas, também caracterizam o conceito literário do realismo fantástico. Em O bloqueio, cenas como a do personagem Gérion subindo a escada do edifício, com sua sombra projetada na parede denunciando que não é bem ele que está subindo, observável pela comparação da forma da sua cabeça com a forma projetada na parede, podem passar despercebidas pelos espectadores, mas fazem parte da realidade fantástica proporcionada pela montagem e pelo tratamento digital das imagens.
Outras cenas, que mostram objetos como balas de revólver, máquina de escrever, rascunhos etc., do próprio escritor, misturam-se na edição, contribuindo para a transposição do conceito literário do realismo fantástico para a linguagem visual.
Nas sequências do filme, todos os efeitos foram usados, não para esconder ou maquilar a cena ou torná-la verossímil para o público: usamos os mesmos efeitos para “mixar” dois mundos diferentes em um terceiro, de ontologia fantástica, que não esconde, mas abre, como no conto, possibilidades para diversas interpretações.
Outro elemento importante nessa composição foi o áudio, que reage conforme as preocupações e ou “delírios” do personagem, fazendo com que ele reaja as suas manifestações, levando-o ao clímax da história. O áudio pode ser considerado como um segundo personagem pela sua inserção, não apenas como ilustrador da imagem, mas como elemento incontrolável, onipresente e totalmente ativo, que desencadeia a história.
A poética do oroborus, o infinito, é um elemento marcante da obra de Murilo Rubião, como nos relatou a professora Vera Andrade, do curso de Letras-UFMG. Essa metáfora manteve-se constante em toda a animação na qual o próprio autor é em parte ator, e vice-versa, e as imagens mentem e confirmam sua presença de forma visual ou literária, compondo assim o ciclo da serpente que morde sua cauda: o autor inserido como personagem da sua própria obra literária.
Os processos de montagem com base na colagem de vários elementos distintos, cada um com seu significado, propõem uma ruptura com os sistemas de criação purista, que valorizam a habilidade de usar um tipo de técnica. As composições digitais potencializam a edição de múltiplas imagens nas diversas linhas de tempo e utilizam como matéria prima tudo o que é digitalizado pelo homem.
* Professor do Curso de Artes Visuais da UFRB em Cachoeira/ BA. Participou de várias exibições internacionais e nacionais e foi ganhador do 8º Prêmio Sergio Motta de Arte e Tecnologia em 2009/2010. Suas criações autorais têm base em possibilidades tecnológicas reconfiguradas de forma crítica, reflexiva e propositiva em que convivem animação, ilustração, projetos educativos e instalações com gambiarras domésticas interativas ou sistemas sofisticados de projeção digital em 360.
[1] Johnson, GLEN. http://faculty.cua.edu/johnsong/hitchcock/pages/kuleshov.html (acessado em 10/11/2012).
Referências:
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1993.
MANOVICH, Lev. The language of new media. Cambridge: Ed. MIT Press, 2001.
NAZARIO, Luiz. “Pós-modernismo e novas tecnologias”. In: O pós-modernismo. São Paulo: Editora Perspectiva, 2003.
SANTAELLA, Lúcia. Matrizes da linguagem e pensamento: sonora, visual e verbal. São Paulo: Ed. Iluminuras, 2001.