1. A potência da vida e o desenho urbano
“O desafio é substituir o regime mecânico de argumentação por um regime de verdade, de abertura, de sensibilidade ao que aqui está.”
Comitê Invisível, Aos nossos amigos: crise e insurreição
Os espaços de uso comum são determinantes para a experiência de se viver nas cidades. Análises sobre a sociabilidade urbana revelam a importância da comunicação e o potencial de vitalização que ocorre nesses ambientes onde o mundo nos atravessa e nos constitui (Bordreuil, 2002). No entanto, as práticas urbanas submetidas à dominação política muito frequentemente excluem a participação das comunidades nas decisões sobre a evolução dos espaços onde habitam, desconsiderando as demandas por uma maior equidade socioespacial. Como fator agravante, as discussões sobre a qualidade do viver na cidade são atravessadas frequentemente por ideias e convicções ideológicas muitas vezes binárias, desconectadas do contexto sociocultural e da realidade cotidiana, na espera de uma utopia (Comitê Invisível, 2016).
Outras leituras sobre os processos de evolução das cidades caminham no sentido de desmodernizar o campo de conhecimento urbanístico em sintonia com a ideia de descolonização (Mignolo, 2017), possibilizando a reavaliação de planos e projetos que ainda se embasam com frequência em abordagens técnicas simplificadoras da cultura moderna (Morin, 2008), sem uma compreensão holística essencial para proposições e ações no sentido de proporcionar uma maior equidade para os diferentes grupos e indivíduos. Esse caminho busca outros tipos de pensamento sobre os espaços urbanos a partir de ideias transformadoras e ações focadas no presente, no agora (Comitê Invisível, 2018), movimentando as subjetividades individuais e coletivas envolvidas nesses processos.
Conscientes de que não há um desenho de cidade que assegure uma vida tranquila para todos nem a perspectiva de uma equidade absoluta, muitos urbanistas desenvolvem estratégias que possibilitam transformações concretas em diferentes escalas no desenho urbano, conjugando abordagens culturais e socioespaciais, aspectos técnicos, critérios qualitativos e subjetivos, e tecnologias sociais. Dessa forma, buscam elevar o nível do debate na esfera pública, ampliando a visão das práticas urbanísticas, aproximando propostas transformadoras e mobilizações estratégicas embasadas na coragem, na autoconfiança e na energia coletiva, transformando modelos sociopolíticos opressores por meio da ação no presente. É nesse contexto que o conceito de biopolítica opera, entendendo a população como um problema político, considerando ao mesmo tempo aspectos biológicos, científicos e questões relacionadas às estruturas de poder (Foucault apud Garrison, 2017).
O desafio é trazer para situações concretas em andamento a discussão filosófica sobre a evolução da cidade e suas comunidades, liberando os atores sociais da autocolonização sociopolítica a partir do entendimento sobre quem se beneficia das decisões sobre o desenho e o desenvolvimento urbano, e das subjetividades que são ativadas nesses processos e projetos que envolvem solidariedades assimétricas de indivíduos e grupos que participam de diferentes formas da dominação política (Botelho, 2007). O conceito de biopolítica desenvolvido no campo da teoria social desde Michel Foucault contribui para analisar as estratégias e mecanismos que conduzem a vida em sociedade sob regimes autoritários, atuando sobre o conhecimento e influenciando os processos de subjetivação que configuram as relações de poder.
O reconhecimento de novos valores e sensibilizações tem o potencial de transformar as subjetividades coletivas, mudando a forma de participação das pessoas e grupos que agem ou se omitem no processo de construção da cidade. Esse movimento é uma operação complexa que envolve tanto os colonizadores como os colonizados, que, mesmo excluídos dos espaços elitizados da cidade, muitas vezes trabalham ou se manifestam no sentido da continuidade da submissão do seu grupo, apoiando decisões sobre as estruturas urbanas que contribuem para a perpetuação da inequidade social e espacial em troca de vantagens pessoais. Se os colonizadores não são os agentes naturais desse movimento, por outro lado grande parte dos que não têm os seus desejos e direitos respeitados nas decisões sobre o comum se omite, porque participa de alguma forma das relações de dominação política que se configuram no contexto das parcerias da gestão política com interesses econômicos.
Entender a manipulação da esfera subjetiva e a forma como ela afeta os grupos e comunidades além da esfera pessoal nos faz perceber o quanto estamos isolados, vivenciando uma subjetividade desvinculada das pessoas no nosso entorno. Por outro lado, as particularidades da dominação política em função de cada contexto, da situação específica em jogo e do momento vivido em cada lugar revelam a indeterminação do jogo político, permitindo-nos acreditar em cenários alternativos a partir de estratégias de ação que desestabilizem as estruturas de poder. As relações com as pessoas com quem compartilhamos as ruas e espaços de uso comum no nosso entorno e a visão coletiva das demandas locais podem motivar insurreições comunais (Comitê Invisível, 2016) a partir de uma mudança de percepção dos sentidos de vida e das formas de se viver que absorvemos no cotidiano de forma inconsciente através de fluxos de imagem e informações (Pelbart, 2008).
Transformações do espaço e de funções urbanas originadas em práticas comunais em escala local abrem espaço para ações em escalas maiores na cidade a partir da ampliação do conhecimento e do entendimento das questões em jogo. O front é o das pessoas na luta legítima pelos seus direitos e interesses que são específicos para cada comunidade, cujas possibilidades de evolução precisam ser imaginadas e visualizadas a partir de discursos verdadeiros, configurando espaços biopolitizados. Esses são os componentes das culturas que se transformam para evoluir, em que as novas ferramentas de comunicação têm um papel importante, embora não substituam as relações e afetos presenciais. Nessa discussão sobre fatos urbanos em andamento em um balneário turístico, observamos o insolidarismo social com fortes repercussões na evolução de ambientes ao mesmo tempo urbanos e naturais especialmente relevantes para a cidade, e apontamos as perspectivas de mudanças desse cenário a partir da resignificação das subjetividades individuais e coletivas no sentido de uma nova vitalidade social.
2. Uma lagoa perdida no meio da cidade
“Poderia falar de quantos degraus são feitas as ruas em forma de escada, da circunferência dos arcos dos pórticos… mas sei que seria o mesmo que não dizer nada. A cidade não é feita disso, mas das relações entre as medidas de seu espaço e os acontecimentos do passado…”
Italo Calvino, As cidades invisíveis
Muitos estudos enfocam a importância do contato com a sociedade local quando são desenvolvidos projetos para os espaços públicos nas cidades, permitindo uma avaliação sensível e uma visão que envolva não apenas os aspectos físicos do território, mas também a dimensão sociocultural, a partir do conhecimento das pessoas que vivem ou usam aquele espaço (Bloch, Costa, Kotaki, Katz, 2013). Essa abordagem participativa amplia a compreensão do lugar em vários sentidos que não seriam alcançados apenas pela interlocução com profissionais como arquitetos, engenheiros ou biólogos, contribuindo para evitar soluções que se contrapõem às demandas e desejos da comunidade local e decisões técnicas equivocadas no que se refere ao desenho urbano e à acessibilidade aos espaços de uso público (Cadiou, 2002; Tixier, 2002).
No entanto as práticas urbanísticas em Armação dos Búzios muitas vezes não adotam metodologias participativas e, mesmo quando a elaboração de planos e projetos busca envolver as comunidades locais, as decisões sobre as prioridades de investimento determinadas pela estrutura política adiam sine die a sua realização, pondo em risco a consolidação do desenho urbano concebido ou mesmo inviabilizando um futuro possível e desejado. Esse é o caso do Parque Lagoa de Geribá, cujo projeto foi desenvolvido e aprovado em 2002 e ainda não saiu do papel. Recentemente levei diversas pessoas que veraneiam em Búzios há mais de vinte anos para passear no entorno da Lagoa de Geribá e elas ficaram impressionadas com o seu tamanho (Figura 1, parte mais estreita da península) e com o fato de não a conhecerem, apesar de circularem sempre por ali, da Praia de Geribá à peixaria de Manguinhos, ou ao centro gastronômico na Barrinha (Bloch, 2019).
Essa é uma das áreas mais densas da cidade, e a “ocultação” dessa lagoa é um grave problema urbanístico. Uma lagoa que não participa da paisagem da cidade e não se torna uma área de lazer corre o risco de ser poluída, aterrada, e até desaparecer. A degradação da Lagoa de Geribá é o resultado das decisões e omissões dos gestores públicos e da incompreensão dos moradores sobre a importância desse ambiente natural.
Quando a paisagem natural não é valorizada pelo poder público acaba sendo desconsiderada até pelos moradores, que dão as costas para ela (Figura 2).
Os brejos e lagoas de Búzios são estruturas naturais que acumulam e infiltram as águas pluviais, alimentando o lençol freático, impedindo a salinização do subsolo e preservando o ecossistema local. A reversão do processo de degradação dessa lagoa demanda a superação do paradigma moderno (Morin, 2008) na gestão da(s) cidade(s), promovendo a interação dos diferentes campos profissionais relacionados ao urbano no sentido de rever os planos e as estruturas de drenagem, que se baseiam em técnicas hidráulicas sem atentar para a repercussão dessas intervenções nos sistemas naturais, desconsiderando o potencial desse local como espaço de lazer e sociabilização.
O projeto elaborado para o parque no entorno da lagoa (Figura 3) visa a sua preservação e também a promover conexões de caminhos para pedestres e ciclistas, valorizando a qualidade de vida dos moradores e a atividade turística. A criação do parque contribui ainda para induzir um processo de regeneração da paisagem natural, conjugando os sistemas da natureza e os sistemas da cultura na construção da paisagem urbana, considerando a relevância do sistema lagunar de Búzios para a paisagem (Bloch e Costa, 2014), e valorizando e inserindo no cotidiano da vida das pessoas os elementos naturais e culturais que já pertencem ao lugar (Corner, 1999). O acesso a essa lagoa possibilitaria também usos e apropriações diversas, motivando as pessoas e comunidades na busca de novas alternativas de valorização dos espaços urbanos.
3. Um imbróglio pode ser uma oportunidade
“Abrir-se ao mundo é abrir-se à sua presença aqui e agora… Se ‘o mundo’ deve ser salvo, será em cada um de seus fragmentos.”
Comitê Invisível, Motim e Destituição Agora
Muitos moradores da cidade foram surpreendidos com a ideia do governo municipal de construir uma Unidade Básica de Saúde (UBS) em uma área destinada a uma praça pública situada nas margens da Lagoa de Geribá. A praça nunca foi de fato construída, mas o terreno doado ao município quando da aprovação do loteamento “Ilhas de Búzios” tem inclusive o nome de Praça do Farol. O projeto para o parque não é apenas uma questão de funcionalidade e de estética, conjugando no seu desenho aspectos sociais e ambientais na forma de ocupação desse espaço natural, considerado de alta prioridade de preservação pela comunidade científica internacional.
No entanto, a cultura da gestão pública impõe o isolamento das diferentes secretarias que deveriam participar do planejamento da cidade, cada uma enfocando apenas a sua especialidade, e os gestores não têm nem buscam uma percepção da cidade como um todo (Bloch, 2010). Quando decidiram a localização da Unidade de Saúde, ignoraram o imenso valor urbanístico desse ambiente natural, que tem um papel fundamental para a biodiversidade e para a oferta de áreas públicas de lazer envolvendo atividades esportivas, recreacionais e educacionais. Embora seja complicado reconhecer a falta de planejamento e mudar o lugar já escolhido para a obra, o que precisa ser considerado é que será muito mais oneroso para a cidade dar prosseguimento à implantação da UBS na Praça do Farol, que é um dos acessos principais do parque, do que buscar alternativas para essa decisão.
Diversos moradores do bairro, arquitetos públicos e outros atores sociais contestaram a localização da UBS porque, embora o parque ainda não tenha sido implantado, a preservação dos terrenos públicos que fazem parte do projeto é que permitirá em algum momento a sua realização. A contestação foi ignorada pelos gestores públicos e a obra foi iniciada irregularmente, porque a Lei Orgânica do Município não permite a construção nos lotes destinados à implantação de praças públicas. Um grupo de moradores acionou o Ministério Público para impedir a continuidade da obra, e foi proposta a relocalização da UBS em terrenos mais bem localizados para os futuros usuários da UBS.
Foram realizadas duas audiências públicas para discutir o imbróglio, e as manifestações contrárias à obra mencionaram a importância da visibilidade e da acessibilidade da lagoa para a sua preservação: “Podemos mudar a construção da UBS para outro lugar, mas não podemos mudar a lagoa de lugar.” Um representante da vereadora que fez a indicação da obra argumentou que a instalação dessa unidade de saúde seria importante para os moradores pobres do bairro, alegando que o posto no qual eles são atendidos fica muito cheio, formando grandes filas. Para justificar a continuidade da construção naquele local, alguns vereadores argumentaram que as pessoas “endinheiradas” que moram perto da lagoa não querem a UBS no bairro porque não precisam dos serviços públicos de saúde e não se importam com as pessoas com menos recursos.
Na realidade, esse conflito não existia: as pessoas que se manifestaram nas audiências não se opuseram à construção da UBS no bairro, mas indicaram outra localização que não obstruísse o acesso ao parque e a visibilidade da lagoa. Ao mesmo tempo que contestavam a ocupação da praça, demonstraram aos apoiadores da vereadora que a vida de todos seria valorizada com a criação desse parque – independentemente de faixa de renda ou classe social –, tanto no aspecto da saúde, pela oportunidade de lazer e sociabilização nesse espaço de uso público, como na valorização das suas moradias, apontando alternativas de localização da UBS mais favoráveis aos usuários.
A discussão pública teria a função de resolver o impasse, proporcionando uma maior compreensão do problema, mas as audiências solicitadas pela sociedade civil não foram vinculantes, ou seja, as conclusões decorrentes das manifestações do público presente não foram consideradas, revelando a manipulação das ferramentas do sistema democrático pela simulação da participação da sociedade na decisão, que não considerou a necessidade de planejar as estruturas de saúde em sintonia com o desenho urbano nem com as necessidades da comunidade local. Os atendimentos de saúde nesses bairros se dão hoje na Policlínica, e as filas são resultado de uma forma arcaica de funcionamento desse setor. Por outro lado, uma readequação da Policlínica permitiria abrigar com qualidade e conforto tanto a Policlínica como a nova UBS com acessos independentes, resultando em uma economia importante para o município e proporcionando um melhor acesso aos usuários da UBS em comparação com a Praça do Farol.
Esse é o X do problema: os modelos de gestão pública que prevalecem nas cidades e as decisões sobre os investimentos públicos estão submetidos à dominação política envolvendo diferentes atores sociais que visam prioritáriamente a benefícios pessoais. Para prosseguir com a construção da UBS embargada pelo Ministério Público, os vereadores amplificaram esse gravíssimo erro de planejamento, alterando a Lei Orgânica Municipal. A mudança da Lei Orgânica para esse fim é um escândalo político e jurídico, e ainda assim não poderia retroagir para que se aprovasse o projeto em questão, mas o fôlego dos que contestavam acabou. A ideia de juntar um grupo de pessoas com a participação da imprensa e das mídias sociais para reverter a situação, impedindo o acesso dos construtores e o reinício da obra, não aconteceu. A alternativa de seguir investindo no trabalho de advogados privados para tentar novamente embargar a obra também foi abandonada, devido à descrença quanto ao resultado do prosseguimento da ação e ao medo de represálias contra os que se manifestavam a favor da praça e da lagoa.
Nesse imbróglio estão superpostas três principais dimensões e subjetividades: o contexto dos manifestantes que se opõem à ocupação da praça mas estão expostos a ameaças de represálias pessoais e diretas; as relações de solidariedades assimétricas dos cabos eleitorais, seus parceiros e familiares, que constituem sofisticadas modalidades de controle envolvendo a submissão da subjetividade; e a ilusão dos que se posicionaram a partir da visão utópica de uma sociedade igualitária, desconsiderando a complexidade das questões em jogo e desconectando-se do momento presente. A compreensão desses processos e o compartilhamento de novas percepções sobre as questões coletivas podem abrir espaços para a mudança desse estado de impotência social, em que as pessoas não se posicionam em relação às decisões que determinam a evolução dos espaços comuns da cidade em função dessa submissão que está subjetivada (Pelbart, 2008).
As mudanças podem acontecer quando nos damos conta de que não somos autônomos, e sim moldados pelas informações e comunicações que nos atravessam, e que podemos reinventar a nossa subjetividade, tanto a pessoal como a coletiva, transformando o contexto social no qual estamos inseridos a partir de uma nova percepção dos acontecimentos, e gerando ações fora do sistema institucional. A edificação em andamento na Praça do Farol poderá, por exemplo, ser readequada para abrigar a sede do parque com paredes e portas de vidro, um centro cultural voltado para a educação ambiental e para encontros entre as pessoas do bairro e da cidade, áreas para o lazer e atividades diversas, sem muros e cercamentos que obstruam a paisagem da lagoa.
4. Identificando obstáculos e caminhos possíveis
“Uma insurreição pode estourar a qualquer momento, por qualquer motivo, em qualquer país, e levar não importa aonde.”
Comitê Invisível, Aos nossos amigos: crise e insurreição
Manifestações a favor da continuidade da construção da UBS no terreno da praça foram motivadas principalmente pela rede de reciprocidades que dá forma e substância ao poder, envolvendo cabos eleitorais que intermedeiam as relações entre os políticos e os seus eleitores e buscam nessa atuação a perspectiva de acesso à liderança política e ascensão social na comunidade. Essas relações de solidariedade fazem com que os posicionamentos soem como se caminhassem no mesmo sentido, “e não como imposição da vontade do mais forte sobre a do mais fraco” (Botelho, 2007, p. 67-68). No contexto dessa decisão, o “mais fraco” foi pressionado no sentido de não considerar os argumentos que mostravam que a revisão da decisão discutida nas audiências públicas proporcionaria melhores resultados para si e para a cidade.
As tensões nessas relações são muitas vezes ocultas para os dominados, que não visualizam os papéis dos diferentes atores sociais. Ou ocultadas de forma consciente para manter os interesses – embora assimétricos – alinhados. No caso em questão, a decisão foi defendida posteriormente por alguns membros do PSOL (Partido Socialismo e Liberdade), reiterando o argumento de vereadores de que o impedimento da construção da UBS tinha origem em uma visão elitizada, que não considerava as demandas dos mais pobres, sem se darem conta de que estavam contribuindo para o sequestro da vitalidade social inerente à proposta da criação do parque. Essa situação expressa também uma forma de sujeição da subjetividade, na qual a ideologia exerce pressões deformadoras no processo de compreensão e de posicionamento em relação aos acontecimentos (Konder, 2002).
Por outro lado, diferentes pessoas e grupos criticam a gestão pública nas ruas e em encontros sociais, sem promover ações concretas, e seguem esperando uma mudança de contexto, um político “do bem”, uma transformação vinda de fora, não se sabe de onde. Essa espera é uma recusa de encarar o que acontece no nosso entorno, no presente, é se manter à margem do processo. É viver à espera da utopia, temendo os riscos das mudanças no presente (Comitê Invisível, 2016). A alternância política sem uma vitalização social apenas muda os atores e suas formas particulares de articular gestão pública e interesses privados, dando continuidade às relações de parceria entre atores sociais de diferentes classes cujos conflitos são eclipsados pelos ganhos compartilhados, mesmo que de forma assimétrica.
Mesmo os cenários desejados e compartilhados por um grande número de pessoas da cidade não se tornam objeto de reivindicações potentes: o enfrentamento das estruturas de poder que determinam o que é feito com o dinheiro público não faz parte da nossa prática social. As brechas existem, mas as pessoas têm medo de questionar ou propor alternativas às decisões da gestão política, principalmente porque são poucas as pessoas e estabelecimentos na cidade que estão legalizados ou regulares, quando muito obtêm autorizações provisórias para o funcionamento dos seus negócios, ficando expostos a represálias. Outra parte importante da população da cidade é contratada pelo poder público a partir de indicações políticas. Esse é o cenário que explica a nossa “acomodação” e a crença de que nada se pode fazer para mudar o rumo das coisas.
A dominação política não apenas regula a gestão pública de forma explícita em muitos aspectos e negócios, mas também se infiltra na esfera cultural e subjetiva, promovendo leituras e interpretações simplificadas dos acontecimentos, tanto na esfera da cidade formal quanto nas áreas de ocupações espontâneas. Propostas de transformação desse modelo precisam disseminar as ideias que podem promover mudanças concretas das estruturas funcionais que irão afetar o cotidiano, mas Pelbart (2008) reconhece que a libido coletiva que permitiria imaginar que algo diferente seja possível nos foi sequestrada. A condição que permitiria recusar essa decisão sobre a localização da UBS é a de não temer a ruptura, o dissenso, na busca de redesenhar a lógica da cidade e da vida em comum.
Uma insurreição sobre um tema em um espaço determinado, um acontecimento “fora da curva”, pode reintroduzir a ideia de mudança, quebrando um padrão histórico, liberando a força das pessoas para uma reação à dominação política que é ao mesmo tempo brutal e sutil. Não basta criticar o governo e as instituições que fazem parte do planejamento disfuncional. É preciso um outro plano de percepção e de movimentação, sair do vazio das estruturas discordantes e desconectadas e entrar no espaço em que nós somos “o local de passagem e de articulação e de uma quantidade de afetos, de linhagens, de histórias, de significações, de fluxos materiais” (Comitê Invisível, 2016, p. 94), a comunidade como experiência. A sublevação na escala de uma comunidade na qual se vive e interage é uma forma de enfrentamento que pode gerar transformações das formas de vida e das estruturas locais, contribuindo para a conceituação de planos e projetos, produzindo continuamente novos afetos e um espírito de autovalorização.
Em Búzios acontecem encontros e conversas em muitos lugares onde as pessoas compartilham seus desejos, crenças e descrenças. A criação da feira periurbana com produtos orgânicos na Praça da Ferradura foi uma invenção catalisadora desse processo de encontros e associações: grupos de leitura, música ao vivo, o dançar juntos, comidinhas especiais preparadas nas barracas. Se, por um lado, Botelho aponta o entrelaçamento de esferas sociais distintas na configuração da dominação enquanto princípio geral de regulação das relações sociais no Brasil, e indaga sobre a capacidade dos grupos subalternos de promover a ruptura daquilo a que estão submetidos, Pelbart busca revelar a potência do ser vivo para o exercício do poder sobre a vida, tendo por objeto as pessoas afetadas por processos de conjunto. Essa potência da vida no contexto contemporâneo se opõe às formas de submissão da subjetividade aos diferentes tipos de poderes, ao lado das lutas tradicionais contra a dominação e contra a exploração.
A partir da sinergia coletiva, da cooperação social e subjetiva, da inteligência, do afeto, e do desejo, as relações de poder são reavaliadas nessa busca pela transformação. A inteligência coletiva e a percepção de novos desejos produzem novas crenças, permitindo imaginar e articular formas de cooperação que podem promover as transformações desejadas. As relações criativas produzem, além das trocas de informações, o compartilhamento de cenários imaginados e desejados, motivando a participação da sociedade nos processos decisórios. Aproximar projetos coletivos das pessoas mais pobres e exploradas, cujos sentidos estão mais separados do poder de ação, contribui para a reinterpretação das suas identidades e condicionamentos em favor da vida – valorizando a criação de um parque que proporciona a inclusão e a mobilidade social – e não da doença ou da morte representadas pela unidade de saúde oferecida a essas comunidades carentes.
O desejo e a disposição de gozar do nosso pedaço de mundo na vida cotidiana pode tomar a forma de uma ação insurrecional, substituindo o etos sindical por um etos comunal (Comitê Invisível, 2016, p. 105-106). Quando ficamos vinculados às infraestruturas políticas formais, elas nos organizam sem que se abram possibilidades de experimentação que podem fazer acontecer um movimento a partir da sinergia coletiva, da cooperação social e da produção imaterial, subjetiva, no contexto do intelecto e do afeto. Insurreições focadas em propostas locais para o redesenho urbano se contrapõem ao processo que reproduz as desigualdades sociais, buscando a funcionalidade e a qualidade dos espaços de uso público nas diferentes partes da cidade.
A transformação de estruturas locais depende do entendimento das perspectivas de mudanças do cotidiano e dos ganhos para a vida em comunidade. São as comunidades conectadas entre si que possibilitam não apenas um enfrentamento contestador do ponto de vista ideológico, mas um movimento com propostas concretas para a reestruturação urbana, promovendo ações de curto prazo alinhadas com os cenários desejáveis de uma evolução que se realiza ao longo do tempo. Estamos falando do reconhecimento da quarta dimensão no processo de evolução urbana, da mudança das relações de poder a partir dos enfrentamentos que realizam ao longo do tempo o potencial de transformação da sociedade em cada acontecimento. A proposta de ampliar a visibilidade dessas questões busca promover a criação de um espaço político de interação e colaboração, em que exista abertura para discutir e mediar os conflitos.
5. A biopolítica e a transmutação da cidade: work in progress
Essa discussão sobre vivências e experiências na cidade de Armação dos Búzios busca aprofundar o entendimento das práticas urbanas a partir da observação dos acontecimentos que produzem o desenho dos espaços de uso público e conduzem a evolução da cidade. A ideia é atualizar o questionamento sobre decisões políticas em andamento, buscando superar as limitações da sociedade para a transformação do modelo de gestão autoritária que coopta muitas vezes técnicos e acadêmicos para dar credibilidade a projetos imediatistas que visam a favorecer parcerias políticas. O desinteresse das diferentes gestões políticas pela realização do projeto que propõe a inserção da Lagoa de Geribá na paisagem e na vida da cidade evidencia o desafio enfrentado pela sociedade buziana, que está associado à sequência do seu desenvolvimento histórico e cultural (Botelho, 2007), culminando na alteração da Lei Orgânica do Município por um motivo circunstancial.
A falta de planejamento e a precariedade da infraestrutura, que impactam principalmente a parcela mais pobre da população, se refletem no ambiente como um todo, na desconectividade de ruas e caminhos, no aterramento de áreas brejosas para a construção informal ou irregular, e na obstrução do caminho das águas, isolando os moradores das paisagens naturais e reduzindo a acessibilidade ao seu entorno imediato. Os personagens que questionam os gestores políticos se deparam com forças reativas que trabalham de forma pessoal, influenciando comportamentos e intimidando aqueles que buscam o esclarecimento e a transparência. Consultores contratados, ocultando o caráter segregador dos seus projetos “técnicos” e os seus reflexos no espaço urbano e na estrutura social, fazem prevalecer seus critérios para as decisões usando o seu prestígio, que “é uma maneira particularmente maliciosa de fazer valer a própria autoridade em vez das razões” (Schopenhauer, 2001, p. 66).
Reverter a decisão de implantar a UBS na Praça do Farol demanda um posicionamento decisivo da sociedade, contestando o funcionamento da atividade de planejamento urbano a partir do entendimento da sua natureza sistêmica. Pelbart se pergunta como detectar modos de subjetivação emergentes que podem agregar as pessoas e promover a visibilidade das inteligências grupais para criar novos cenários, novas formas de cooperação, e inspirar novos acontecimentos. É a desenvoltura social nos espaços de uso comum onde a vida acontece – ruas, calçadas, praças – que permite agregar valores à superconectividade proporcionada hoje pelas redes sociais. Os espaços públicos produzem territórios existenciais alternativos que vitalizam as conexões virtuais, alimentando o espírito de cooperação e de ativação das forças sociais, dando sentido e sentimento aos encontros virtuais.
A crítica das mídias sociais e das relações no espaço virtual não deve subestimar seus potenciais subutilizados, e sim reconhecer o espaço que essa evolução tecnológica proporciona para o agir local, para manifestações e insurreições no nosso entorno. Essas ferramentas são recursos para a ativação de uma positividade e uma potência política que estão desvitalizadas pela compartimentação da cidade em condomínios e guetos, pela individualização dos meios de transporte e pela precariedade dos espaços de uso público. Pelbart (2015) desenvolve a ideia de biopotência como oposição ao poder de dominação, como um espaço de possibilidades em que nada está decidido, em que a vitalidade social potente possibilita a transformação das estruturas objetivas e subjetivas que sustentam a dominação política, superando o medo e as tensões a partir da cooperação social, do compartilhamento intelectual, econômico e afetivo.
A disseminação do entendimento da importância do que acontece na Lagoa de Geribá e no seu entorno tem o potencial de ampliar as demandas por mais saúde, educação, serviços, a partir de uma vitalidade que envolve a linguagem, a inventividade, uma sensorialidade ampliada e a afetação recíproca, promovendo transparência e abrindo espaço para uma reforma do sistema político. Esse é o caminho para o espírito comunal que agrega grupos heterogêneos, menos hierarquizados, diferentes da liderança política que determina um rumo único para seus seguidores. Nesses espaços as pessoas vivenciam afetos ao mesmo tempo que constroem um território existencial subjetivo em sintonia com o seu entorno, em oposição à homogeneização cultural. As dinâmicas da sociedade refletem os movimentos das pessoas que convivem na cidade, e embora Mignolo ressalte a dificuldade de “mudar os termos da conversa”, de agir descolonialmente, ele acredita que as reflexões e “opções descoloniais” são o caminho para a mudança de rumo da matriz colonial de poder (Mignolo, 2007) que contribui para engendrar as nossas práticas de dominação política.
Essas práticas passam pela contratação de funcionários para as estruturas públicas técnico-administrativas voltadas para o atendimento dos interesses do grupo eleito e seus parceiros econômicos. Se, por um lado, essa característica da sociedade e a imaturidade institucional da administração pública no Brasil explicam muitas vezes a ausência de uma visão de longo prazo, por outro lado contribuem para mascarar as limitações na abordagem do problema urbano, que, a nosso ver, são decorrentes também do paradigma do pensamento moderno, ao mesmo tempo disjuntivo e colonialista. A falta de interação entre os saberes das estruturas técnicas vinculadas às diferentes áreas de conhecimento – sob a influência do paradigma da separação – transfere às estruturas políticas as atribuições de decisão sobre as intervenções na cidade.
A reversão desse quadro reside na progressiva resignificação das nossas subjetividades para a conquista do acesso aos processos decisórios, a partir da interação dentro do próprio campo social e entre os diversos campos sociais que coabitam na cidade. A perspectiva de superação das nossas subjetividades submissas passa pelos afetos solidários na nossa prática diária, desvendando o nosso desenvolvimento histórico e cultural colonialista e transformando as visões simplificadoras do paradigma moderno, que dissocia o conhecimento científico e a reflexão filosófica. Em Búzios – uma cidade turística que atrai trabalhadores, veranistas e visitantes de origens as mais variadas –, as subjetividades são múltiplas em função da diversidade de espaços de relacionamento na atividade profissional, na esfera familiar, na vizinhança, nas redes sociais, na prática de esportes e outras formas de lazer. Essas interações econômicas, culturais e afetivas podem ser recíprocas ou hierarquizadas, presenciais ou virtuais, mas sempre há uma forma de comunicação entre as pessoas e um potencial para afetos solidários e novos horizontes.
* Alberto Kerdman Bloch é M.Sc. em Engenharia do Meio Ambiente pela École Polytechnique Federale de Lausanne, doutor em Urbanismo pelo PROURB/UFRJ, arquiteto e ativista em Armação dos Búzios, com foco na harmonização da ocupação urbana com os sistemas naturais do lugar e no redesenho das estruturas de mobilidade, buscando a valorização dos deslocamentos ativos e das interações sociais nos espaços de uso comum.
Referências
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