Ano XII 0201
2º semestre de 2017
dossiê
Tempo de leitura estimado: 29 minutos

O SMARTPHONE NOS TRAJETOS COTIDIANOS: REFÚGIO, JOGO E PRESENÇA

Resumo: Este artigo descreve um experimento realizado com um grupo de estudantes com o objetivo de entender o impacto do uso do smartphone na experiência dos trajetos cotidianos. A metodologia aplicada junto a 13 estudantes de mestrado nos permitiu observar tendências comportamentais e diferentes modalidades de experiência em função da maneira de usar o smartphone nas situações analisadas.

Palavras-chave: Smartphone, experiência urbana, fotografia, cotidianidade.

Abstract: This paper describes an experiment carried out with a group of students in order to understand the impact of the use of Smartphones in the experience of everyday journeys. The methodology applied to 13 masters’ students allowed us to observe behavioral tendencies as well as different modalities of experience depending on the way the Smartphones were used in the analyzed situations.

Keywords: Smartphone, urban experience, photography, everyday life.

 

Introdução

Este trabalho apresenta os resultados de um experimento realizado com o objetivo de verificar tendências comportamentais relativas ao uso de smartphones na cidade, mais especificamente nos deslocamentos cotidianos. O experimento foi realizado entre os meses de fevereiro e abril de 2016 na região parisiense, com treze participantes. Os resultados foram apresentados no congresso Hyperurbain.6 (Chambéry, 2017). O caráter restrito da nossa amostra não nos impede de observar e destacar essas tendências, já que que nosso objetivo é identificar potencialidades no uso dos smartphones, de tal forma que qualquer incidência de um comportamento é suficiente para aceitá-lo como uma possibilidade.

Quando observamos um indivíduo em interação com um smartphone, testemunhamos o magnetismo da sua tela, sua capacidade de solicitar e manter o olhar e a atenção do usuário. A primeira hipótese que serve de sustento à elaboração do nosso experimento é o resultado dessa observação e repousa sobre a importância que toma o smartphone na experiência dos trajetos urbanos cotidianos.

Toda mídia, enquanto suporte de informação e, portanto, de realidade entretém uma competição com o mundo material circundante pela atenção do sujeito. Eis uma característica generalizável a qualquer mídia. Enquanto tela e, portanto, suporte de realidades, o smartphone compete com o real circundante pela atenção do usuário. Podemos pontuar aqui uma importante ruptura consumada pelos smartphones: uma ruptura espaço-temporal da experiência, uma ruptura da presença. A experiência de um indivíduo que interage com um smartphone é híbrida ao ocorrer simultaneamente em duas temporalidades, duas plataformas de experiência. Isso significa que o espaço-tempo vivido pela consciência se encontra raramente no “aqui e agora” (hic et nunc), em que a atenção, estando dividida entre duas temporalidades, é direcionada para outra temporalidade, híbrida e distraída. Falar de uma presença híbrida é aceitar a distinção entre o mundo tela e o mundo situado.

A segunda hipótese diz respeito à prática da fotografia de rua e suas implicações na natureza da experiência vivida. Flusser (2004, 2014) descreve o gesto fotográfico como uma busca de posicionamento em relação ao mundo circundante, uma alternância entre micro-hesitações e microdecisões pontuais. Segundo o autor, o gesto fotográfico é o gesto da dúvida fenomenológica, resultado de uma constante tensão interna/externa, de uma dialética entre intenção e situação.

O estado de disponibilidade mental, do qual falava Cartier-Bresson para descrever sua prática como fotógrafo, torna-se assim uma condição para a realização desse jogo fenomenológico de caça de imagens. Um indivíduo absorvido pelo prisma de intenções do jogo fotográfico atribui uma atenção crescente à realidade circundante pois essa é a fonte de todos os seus elementos de criação e de composição. Se, como proposto por Barthes (2016), a indicialidade é a ontologia da imagem fotográfica, o caráter situado é a ontologia do gesto fotográfico. A experiência do fotógrafo é estética na medida em que representa uma atenção extra atribuída ao mundo circundante, uma imersão no campo psicológico de experiência.

O fotógrafo desempenha um jogo circunstancial de presença, ele brinca com o espaço e o tempo e empreende um exercício de redescrição dos elementos de seu campo de experiência. Nesse sentido, a experiência do fotógrafo, além de fenomenológica e estética, é poética (Rorty, 2007). O espaço-tempo é subvertido em linguagem e o campo-linguagem é subvertido em espaço poético.

Em função da natureza fenomenológica dos gestos implicados, da natureza lúdica do rearranjo da dinâmica das intenções e da dimensão poética da experiência fotográfica, acreditamos que a função fotográfica dos smartphones contém os elementos necessários para catalisar outro tipo de experiência urbana, contrária às tendências de distração que inicialmente observamos.

O experimento

É a partir dessas observações e análises que elaboramos nossos experimentos, confrontados com o desafio de fornecer respostas empíricas às reflexões. As perguntas que orientaram o desenvolvimento do experimento são as seguintes: qual o lugar dos smartphones na experiência dos trajetos cotidianos? Quais efeitos pode ocasionar a prática fotográfica sobre a experiência dos trajetos cotidianos (para aqueles que não possuem veículos próprios, pedestres e usuários de transporte público)?

Desde o final de fevereiro de 2016 até meados de abril, no âmbito da disciplina Prospectivas Digitais do programa de mestrado Master 2 NET (Numérique: Enjeux, Technologies) na Universidade de Paris 8, executamos uma experiência a fim de trazer respostas às questões levantadas. O experimento a desenvolver com os estudantes deveria ser centrado no uso dos smartphones durante os trajetos cotidianos na cidade (Paris e entorno). Cada aluno, possuindo um smartphone e não se locomovendo com um veículo próprio (carro, moto, bicicleta), pôde participar do experimento.

O exercício que desenvolvemos consistia em escolher para cada participante um mesmo trajeto cotidiano (repetido a cada semana) e, durante um período de quatro semanas, abordar o uso do smartphone a cada vez de maneira diferente. A ideia era isolar o parâmetro smartphone tanto quanto possível. Para isso, era essencial que cada experiência fosse realizada nas condições mais semelhantes possíveis. Na primeira semana, os alunos podiam usar seus smartphones como eles queriam, como o faziam habitualmente. Na segunda fase do exercício, eles foram proibidos de usar seus smartphones ao longo do trajeto escolhida. Na terceira e quarta semana, eles foram orientados a usar seus smartphones por meio de uma única função: a fotografia. A repetição da terceira etapa revelou-se necessária no decorrer do experimento, uma vez que a orientação de tirar fotos gerou certa estranheza em alguns estudantes. Além de ter que escolher uma viagem diária para poder realizar todas as etapas do exercício em condições análogas, as únicas instruções foram essas, relativas aos diferentes usos dos smartphones.

Ao cabo de cada trajeto, o estudante devia gravar-se em vídeo selfie com seu próprio smartphone. Pedimos aos alunos que relatassem o trajeto, sem impor-lhes uma direção específica. “Fale sobre seu trajeto, o que você quiser, o que você reteve…”. Propomos as indicações mais genéricas possíveis, de modo a deixar aos estudantes a maior liberdade de reação. Isso causou uma perplexidade inicial, mas uma vez que o exercício começou, todos demonstraram tê-lo entendido. Alguns alunos preferiram descrever suas experiências escrevendo, em vez de filmando-se, o que complica a sistematização quantitativa dos dados recolhidos; um suporte diferente implica em diferentes escolhas retóricas. Ora, como ilustraremos mais adiante neste artigo, se eles foram filmados, escritos ou mesmo declamados em sala de aula sem qualquer suporte além de ouvidos e memórias, esses “relatos” revelaram diferenças cruciais entre as três etapas do experimento.

Estimamos que esses relatos poderiam nos fornecer elementos distintos que nos permitiriam comparar os diferentes trajetos e identificar, por meio do discurso, as divergências fundamentais entre as experiências vividas em cada uma das etapas. Mais especificamente, partimos da hipótese que os relatos revelariam:

  • a importância do dispositivo na experiência de deslocamento urbano quando utilizado de maneira habitual;
  • a importância do vazio deixado pela exclusão do dispositivo da situação;
  • uma mudança de atitude (e de percepção) em relação à realidade circundante para os trajetos realizados em modo fotográfico.

Análise qualitativa dos resultados

A partir da última semana de fevereiro e ao longo do mês de março de 2016, aplicamos a metodologia descrita. Cada etapa do exercício foi realizada (em Paris e no seu entorno), uma vez pelos alunos, exceto a terceira (fotográfico) que foi realizada duas vezes. Durante as aulas, os vídeos eram assistidos coletivamente e, após cada vídeo, os estudantes discutiam e compartilhavam suas impressões sobre a experiência e o depoimento de seu colega. Em cada sessão, um estudante era escolhido para gerar um relatório, um documento contendo os pontos essenciais de cada depoimento apresentado. Criamos um grupo Facebook, uma plataforma na qual os vídeos eram postados, bem como os depoimentos escritos e os relatórios das sessões. Dos 16 alunos inscritos na disciplina e frequentando as aulas, 13 participaram de pelo menos uma das etapas do experimento.

As análises que propomos aqui são o resultado da visualização dos vídeos projetados durante as sessões e compartilhados na plataforma online e da leitura dos depoimentos escritos. Também nos baseamos nos relatórios produzidos em cada sessão por um dos alunos.

A fim de manter o anonimato e preservar a privacidade dos estudantes, nos referiremos a cada um deles por “sujeito 1”, “sujeito 2”… até “sujeito 13”. Por coerência de memória e apesar da impessoalidade do anonimato, nos referiremos a cada um deles por “ele” ou “ela” de acordo com seus gêneros.

Etapa 1: trajetos com uso habitual do smartphone

Todos os participantes começaram por explicar o trajeto que eles haviam realizado, aonde eles estavam indo, quais rotas eles haviam empregado a pé e quais as linhas de metrô, ônibus ou trem eles haviam tomado. Em seguida, eles se puseram a descrever o que estavam fazendo com seus smartphones, pontuando, a cada vez, as grandes mudanças no trajeto, por exemplo, uma mudança de linha do metrô ou qualquer outra mudança substancial de cenário. Qualquer momento de passividade em relação ao ato de deslocamento foi descrito de maneira limitada à experiência do smartphone. Essa tendência foi observada para todos os alunos que participaram da atividade, com exceção do sujeito 11 que empreendeu um minucioso exercício de descrição das situações vivenciadas.

A principal tendência que emerge desses relatos é a importância atribuída ao smartphone ao longo da experiência de deslocamento urbano. A confirmação dessa tendência através dessa experiência era previsível. Esta etapa do experimento atua como uma amostra de controle. A partir dos relatos dos estudantes participantes, além de estabelecer a tendência geral descrita acima, pudemos identificar a importância dos smartphones no trajeto de cada participante. Geramos assim os dados necessários para identificar, pelo menos qualitativamente, os elementos de discrepância entre a experiência cotidiana habitual e as outras experiências que seriam realizadas nas próximas semanas.

Experiência 2: trajetos sem smartphone

Realizamos a segunda etapa do experimento, partindo da hipótese de que a exclusão do smartphone da experiência de trajeto cotidiano revelaria a importância do vazio deixado pela sua ausência e, dessa forma, confirmaria sua importância habitual.

Mais uma vez, a maioria dos depoimentos veio corroborar nossas suspeitas. Sem smartphones, alguns estudantes se viram confrontados com eles mesmos, por vezes angustiados, sem saber o que fazer das mãos, para onde olhar. O tempo vivido tomou uma outra dimensão.

Se a presença do smartphone revelou-se determinante nos depoimentos da primeira etapa, sua ausência exprimiu-se aqui de maneira evidente. Observamos um uso claro de um léxico da dureza, da dificuldade e do tédio. O sujeito 2, por exemplo, não conseguiu terminar o exercício frente à angústia de não poder usar seu smartphone durante longos minutos. Ela se gravou durante o trajeto para justificar: “fiz 30 minutos de trajeto, estava tão lento, tão entediante que retomo meu telefone”.

O depoimento do sujeito 5 contém diversos elementos que ilustram nossas observações. “A gente se sente vazia” diz ela, “todo mundo em volta da gente tem um celular”. Confrontada a uma espera de dois minutos na plataforma do metrô, o tempo lhe parecia “tão longo sem celular”. Ao longo de seu depoimento, ela pontua sua descrição das situações por frases adjetivadas, “foi duro”, “difícil”, “muito, muito longo”. “O fato de não ter nada nas mãos era uma sensação estranha. Então aproveitei para olhar em volta de mim”.

Outra característica desvelada nessa etapa do experimento é uma transferência da atenção do smartphone para a realidade circundante. Isso aparece de maneira clara no relato do sujeito 10 que se põe a descrever cada um dos passageiros presentes no vagão do metrô.

As principais conclusões que extraímos das discussões em aula após a projeção dos vídeos são as seguintes:

  • o smartphone nesse tipo de circunstância atua como uma ferramenta de evasão que permite ao sujeito uma ruptura drástica com sua experiência circundante, por meio de uma imersão no mundo da tela;
  • sem o smartphone, o sujeito se vê obrigado a se confrontar a outra coisa;
  • o sujeito se torna mais atento ao ambiente;
  • o sujeito se torna mais atento a si mesmo;
  • para alguns, pouco muda, pois eles substituem facilmente o smartphone, ocupando-se com outra atividade, como uma leitura ou um jogo como sudoku… o smartphone é para eles uma ferramenta de distração;
  • outros se sentiram desamparados e entregues aos seus pensamentos (para o bem e para o mal) e ao constrangimento do contato do outro. O smartphone é para eles um refúgio.

Experiência 3: trajetos com uso do smartphone enquanto máquina fotográfica

Com exceção do sujeito 7, que relatou já ser praticante de fotografia analógica e, portanto, familiarizada com o processo, o exercício fotográfico nos espaços públicos cotidianos era uma novidade para todos os outros participantes.

Para descrever esta etapa do exercício, selecionamos alguns depoimentos que contêm elementos a partir dos quais podemos inferir sobre a natureza da experiência. O sujeito 1 confrontou inicialmente a sua timidez diante dos outros. “Não ousava fotografar”. Ele fotografou pés, ele se escondia, dando-se conta da falta de naturalidade das posições que ele tinha que assumir para fotografar as pessoas, “estava tão na cara que eu tomava cuidado”. A partir de um certo momento do seu trajeto, ele começou a se impor desafios e a experiência adquiriu uma outra dimensão, uma dinâmica lúdica. Seu desafio era o de fotografar sem que as pessoas percebessem. “Eu fingia jogar um jogo no telefone mas eu tirava fotos. […] Até onde posso ir sem que suspeitem de mim?” Outro desafio era o de efetivamente enquadrar seus objetos, ainda que no canto do quadro, nos limites da fotografia. O sujeito 1 demonstrou satisfação no cumprimento dos desafios. “No começo, vivi com dificuldade o fato de ter que tirar fotos, realmente não me sentia bem; depois virou um jogo, então foi uma experiência mais agradável”.

Podemos enfatizar alguns pontos interessantes. Primeiramente, o reflexo inicial era fotografar pessoas, ainda que isso representasse um desconforto (veremos que quase todos os sujeitos apresentaram a mesma tendência de interessar-se quase automaticamente por alvos humanos). Em segundo lugar, em momento algum ele se referiu ao seu smartphone. Mesmo que o jogo fotográfico tenha sido jogado com seu smartphone, o dispositivo parece ter perdido importância na experiência. O sujeito 1 havia baseado todo seu depoimento da primeira etapa na descrição de atividades “dentro” de seu smartphone. Na segunda etapa, ele havia antecipado a falta de smartphone trazendo o necessário para substituí-lo.

Em terceiro lugar, o sujeito descreveu não somente sua realidade circundante, mas sobretudo sua relação mental e gestual com o espaço vivido. O sujeito questionou-se a respeito do seu lugar em relação aos outros, do seu processo de tomada de posição, do olhar dos outros e do seu próprio. Estas questões são naturais para alguém que caça imagens e a natureza fenomenológica deste tipo de questionamento é nítida.

O sujeito 1 faz parte dos que se prestaram ao exercício fotográfico duas vezes. Na segunda tentativa, alguns obstáculos e dúvidas que o haviam bloqueado na semana precedente pareciam ter-se dissipado no caráter lúdico do procedimento. “Eu me diverti mais tirando fotos dessa vez porque eu o vivi como um jogo, me diverti fotografando principalmente as pessoas”. Espremido contra os outros passageiros no metrô, ele relatou ter fotografado menos os pés e as pernas e ter ousado enquadrar rostos, mesmo que discretamente. “Tive menos o sentimento de desconforto do que na primeira tentativa. Ainda o tive, mas como eu tomei a experiência como um jogo, eu me diverti me escondendo, encontrando técnicas para fotografar as pessoas da maneira mais frontal possível, enquadrando-as ao máximo no centro da imagem”.

Mais uma vez, o sujeito 1 esquece completamente do seu smartphone no seu relato sem sequer referir-se ao dispositivo. Seus questionamentos são relativos ao seu posicionamento em relação às situações vividas e sua postura diante do mundo é mais ativa que passiva, em oposição às etapas anteriores do experimento. A dimensão lúdica foi decisiva na sua experiência. A relação com a alteridade, inicialmente vivida como um desconforto, se transformou em uma espécie de coreografia. O sujeito viveu sua experiência através de uma tomada de consciência de si em contexto.

O sujeito 2 constitui um caso particularmente interessante para analisar. Sua reflexão no final da primeira realização do exercício fotográfico é curta, porém reveladora: “hoje me diverti tirando fotos durante meu trajeto […], e me dei conta de que não é por falta de assunto em volta que a gente é absorvida pelo smartphone, mas talvez por excesso. Normalmente, estou totalmente no meu telefone e só levanto a cabeça para ver se tem alguma pessoa idosa para ceder meu lugar, mas dessa vez percebi que realmente tem muita coisa para ver. Foi interessante pois para mim são coisas que nunca percebo e aqui foi diferente. […] Cada foto representa uma pequena história, um pequeno assunto, uma coisinha engraçada ou séria”. O sujeito 2 chamou-nos a atenção desde a primeira aula por sua reação quando anunciamos que uma etapa do experimento constituía num trajeto sem smartphone. Ela logo nos avisou que ela entretinha uma relação de intenso apego afetivo com seu smartphone e que a antecipação da experiência de ausência já a angustiava. Na ocasião do trajeto sem smartphone, ela havia desistido de concluir o exercício. Se sua expressão facial no vídeo da etapa sem smartphone denotava claramente um sentimento de angústia e apreensão, depois do exercício fotográfico, seu olhar deixava transparecer a serenidade de alguém que acaba de descobrir algo de revelador. O exercício lhe permitiu transformar situações opressivas (das quais ela se esforçava em escapar por meio do seu smartphone) em uma nova fonte de diversão (com as quais ela pode brincar com seu smartphone). A evolução do comportamento do sujeito 2 ilustra com precisão nossas hipóteses; ela passou de um extremo ao outro.

O sujeito 3, na sua primeira realização da terceira etapa, relatou uma dificuldade em lançar-se no exercício, justificando o fato de ter tirado apenas uma fotografia ao longo do trajeto. Ela relatou ter se deixado desmotivar pela dificuldade em obter uma fotografia com foco. Na segunda realização, ela demonstrou ter superado os bloqueios da primeira tentativa. Ela explicou que estava “à espreita” do que lhe interessava. “No começo, fotografei pessoas nos corredores, tentando ser discreta. Em alguns momentos, eu olhava o reflexo das pessoas nos vidros, é mais fácil olhá-los assim”. Ela relatou seu trajeto apontando, em cada situação, os elementos que atraíam seu olhar, sempre justificando seu interesse e revelando as projeções mentais que as situações lhe ocasionavam. Sua atenção ali estava orientada para a realidade circundante e sua intenção orientava-se para a repercussão das imagens que ela produzia. Cada situação capturada, cada fotografia que ela escolheu tirar projetava para o futuro a experiência dos espectadores potenciais. A dinâmica de hesitações que se estabeleceu na primeira realização do exercício transformou-se em procedimento narrativo.

O sujeito 5 teve inicialmente uma experiência bastante difícil na medida em que o exercício exigia dela um comportamento que ia de encontro com seus hábitos e com suas premissas sobre como se deve usar um smartphone num trajeto cotidiano. No seu relato, ela empregou um tom de voz no limite do aborrecimento e anunciou incisivamente que não repetiria o exercício. Selecionamos alguns trechos de seu depoimento que ilustram seus sentimentos frente à imposição de tirar fotografias. “Não é um comportamento normal e habitual […]. Não estava nem um pouco à vontade com essa experiência, a gente tem um sentimento de estresse. […] Não ouso, é algo que não se faz. […] Eu fiz, mas não farei mais!”

Na sua segunda tentativa, ela conseguiu adaptar-se. Ela tomou decisões que lhe permitiram confrontar o exercício sem o embaraço que lhe havia acometido na primeira tentativa. Ela mudou seu centro de interesse; orientou seu olhar para fora, para além da janela, e não mais para as pessoas em volta dela. Ela explicou que, estando apressada, não tirou fotos, mas observou atentamente as situações identificando as fotografias que poderia tirar. “Quando a gente se diz que tem que tirar fotos, a gente se dá conta de todo ambiente”. Ela concluiu da seguinte maneira: “a experiência me permitiu observar a paisagem durante meia hora de trajeto de trem e de esquecer das pessoas em volta, porque o que me interessa é a paisagem, eu estava mais à vontade com o exercício e isso me permitiu olhar mais o ambiente”.

Desde o começo do seu depoimento, o sujeito 6 demonstrou ter-se entregue ao jogo. Ela entrou no metrô com sua “máquina” na mão (ela diz “máquina” e não “smartphone”). Ela se posicionou de maneira a ter uma vista ampla da cena, “bem lá onde eu tinha um bom ângulo” diz ela. “Fiquei de frente para as pessoas; tinha duas fileiras de 4 cadeiras e uma fileira de 3, então, de onde eu estava, eu podia ver todo mundo”. Na medida em que as pessoas entravam no vagão, ela ia identificando suas fotografias potenciais. Ela compartilhou sua dificuldade em concretizar sua intenção, seja por problema de timing, seja por excesso de opções, “no momento em que decidi tirar a foto, outra pessoa chegou e me travou”. Ela percebeu algo de “inquisitivo” no olhar dos outros frente ao seu comportamento. Depois, ela tentou ver o que os outros passageiros faziam com seus smartphones. Ela concluiu relatando hesitação frente às situações que ela queria fotografar, “me perguntei muito se devia tirar fotos ou não”.

O último participante cuja experiência escolhemos mencionar é o sujeito 13. Ela apresentou na aula uma gravação da ambiência sonora do metrô. A gravação (em toda sua banalidade), que não dura mais do que trinta segundos, não contém nenhuma informação objetiva sobre sua experiência senão que ela nos mostra que o sujeito se prestou à atividade de uma maneira diferente dos outros participantes, ao ponto de transcender o suporte previsto para registrar as situações vividas. Esse comportamento deixa transparecer uma atitude cuja intenção não é nem narrativa, nem informativa, nem uma resposta direta às instruções do exercício. Estimamos que tal gravação deriva de uma intenção poética; uma forma espontânea e subjetiva de capturar camadas informativas da realidade circundante e de se adaptar às imposições do exercício. A grande maioria dos participantes relatou uma verdadeira dificuldade em tirar fotografias no metrô; o sujeito 13 subverteu as indicações dadas prestando-se a uma ação que se materializa por um gesto consideravelmente mais discreto.

Interpretação dos resultados

Ao longo das quatro semanas do experimento, recolhemos uma série de dados que nos permitiram colocar à prova as hipóteses que levantamos. Nosso objetivo era estabelecer um experimento capaz de gerar dados a partir dos quais poderíamos empreender um tratamento analítico qualitativo. Dessa forma, as grandes tendências comportamentais (e as respostas às perguntas que formulamos no começo do experimento) apareceram de maneira clara durante as sessões de discussão sobre os exercícios.

A cidade e o smartphone constituem, ambos, plataformas de experiências e, nesse sentido, realidades distintas. Essas diferentes temporalidades entretêm uma competição pela atenção do sujeito. A cidade solicita o sujeito por meio dos estímulos mais significativos da dinâmica de deslocamento; o sujeito deve ir de um lugar até outro, idealmente sem se perder e sem perigos maiores à sua integridade física. O smartphone atrai o sujeito pelo magnetismo vigoroso da sua tela luminosa e pelo universo de possibilidades de atividades (lúdicas, produtivas, comunicativas etc.) acessíveis pela tela. A cidade é, na maior parte dos casos, percebida como um mal necessário a superar para poder chegar aonde se quer ir. O smartphone é uma ferramenta de evasão eficiente para o sujeito que procura extrair-se mentalmente de situações “desagradáveis” da cotidianidade compartilhada. A dureza do contato com a alteridade e a monotonia anônima dos ritmos urbanos são relegados ao plano de fundo neste tipo de experiência. A imersão no dispositivo parece inverter a dinâmica das realidades percebidas; o mundo na tela do smartphone se torna progressivamente a principal fonte de dados da experiência, enquanto a realidade circundante gradualmente se virtualiza em sua repressão periférica. Isso até o advento de um evento situado suficientemente estimulante (para os sentidos) para recuperar a atenção do sujeito, antes que as circunstâncias o permitam novamente deixar-se levar pelo seu mundo-smartphone.

As duas primeiras etapas do experimento lograram ilustrar essa reflexão. A primeira pela importância central dos smartphones no relato da experiência; a segunda pela importância do vazio deixado pela ausência dos smartphones.

A segunda etapa nos permitiu adquirir uma noção palpável da natureza da relação estabelecida entre sujeito e smartphone durante os trajetos urbanos. Essa se revelou de ordem afetiva mais do que prática. Sem os seus smartphones, os sujeitos não se perderam, eles não chegaram atrasados ​​às suas reuniões (não mais do que o habitual), nem perderam oportunidades de trabalho. Eles se sentiram desmunidos, entediados e ansiosos; o tempo custava a passar. Eles se viram confrontados a eles mesmos e à presença humana, por vezes, avassaladora. Aqueles que não substituíram o smartphone por outra coisa (um livro, um jogo etc.) viveram a experiência com grande dificuldade.

Essa experiência nos traz elementos tangíveis para uma observação que se estabelece de maneira axiomática na atualidade. Nos tornamos dependentes desses dispositivos de bolso. Não pela vitalidade das suas inúmeras utilidades, mas porque atribuímos a eles uma parte da nossa intimidade e nos apegamos como nos apegamos a um espaço íntimo. O smartphone se estabelece como um refúgio, um abrigo, fonte de uma temporalidade paralela. O smartphone opera uma distração, no sentido anglo-saxônico do termo, isto é, um processo de desvio da atenção do sujeito. A relação com o objeto é da ordem do fetiche. Este pequeno objeto não é apenas transformador de realidade, ele é criador de realidade.

De maneira mais ou menos manifesta, em função do caso, os quatro aspectos da experiência fotográfica que apontamos na introdução são identificáveis na terceira etapa do experimento. A dimensão lúdica é a primeira que aparece de maneira evidente e consciente por parte dos sujeitos. A partir do momento em que se adota um conjunto de intenções que divergem das habituais e, a partir do momento em que essas novas intenções se traduzem em ação, o processo torna-se lúdico. Isso até quando a experiência é vivida com dureza, pois compreendemos o processo lúdico aqui, não como uma busca pelo prazer, mas como uma subversão das regras de uso.

O aspecto estético é observável através da transferência de atenção de um suporte de realidade para o outro. A atenção que o sujeito (cooptado pelo jogo fotográfico) atribui à realidade circundante é exacerbada. A observação atenta dos fenômenos do mundo circundante é uma condição para a realização da experiência; e isso pode ser inferido dos depoimentos propostos pelos participantes. Muitos esqueceram completamente de mencionar seus smartphones quando relatavam a experiência. Uma participante, por exemplo, se referiu ao seu smartphone como “máquina fotográfica”. Mesmo que o jogo fotográfico tenha sido jogado com o smartphone, este foi sublimado e destituído da sua essência solicitante, até desaparecer da experiência, por momentos. O brilho nos olhos do sujeito 2 ao relatar a descoberta de uma nova fonte de prazer é característico das experiências de fascínio.

O aspecto poético se manifestou mais claramente no sujeito 13 que subverteu as instruções do exercício, registrando a atmosfera sonora de um momento do seu trajeto. Ela foi além das indicações, de modo a encontrar (ou pelo menos procurar) sua maneira pessoal de abordar a situação. Ela entendeu (mesmo que talvez inconscientemente) que o exercício poderia ser realizado à margem de suas próprias regras. Este salto, o atribuímos à intenção poética, que busca redescrever a experiência do mundo.

O aspecto fenomenológico pode ser observado em todos os depoimentos. Podemos identificá-lo quando os participantes se questionam acerca de seu lugar na situação, quando adicionam uma camada de consciência ao processo de tomada de decisão sobre as posições a serem assumidas, num jogo de tensões internas e externas. A corporeidade da experiência torna-se evidente. Essa mecânica de alternância entre hesitações e decisões, resultando em tomadas de posições em relação ao mundo e, neste caso, em capturas de fotografias, é a dinâmica da dúvida fenomenológica explicitada por Flusser (2004, 2014). O estado de consciência que decorre dessa dinâmica nem sempre foi vivido com apreço. O olhar fenomenológico (ou pelo menos sua sugestão) foi experimentado como um choque, uma avalanche de realidade, um transbordamento de alteridade.

A relação com a alteridade revelada nesse momento do experimento escapou das nossas hipóteses iniciais. “Fotografar” tornou-se, para muitos participantes, sinônimo de “fotografar pessoas”. Embora quase todos eles (com exceção do sujeito 2) tenham vivenciado isso como um mal-estar, um duro desafio ou até mesmo uma aberração comportamental, visar os elementos humanos das situações pareceu constituir uma regra implícita, suscitando vívidos questionamentos acerca do lugar de cada um na dinâmica corporal dos espaços públicos compartilhados, da intimidade e até mesmo do direito de imagem.

Todos esses aspectos nos permitem afirmar que os participantes que efetivamente jogaram o jogo fotográfico contrariaram (ainda que por vezes de maneira embrionária) uma tendência estrutural do smartphone, sua capacidade de solicitar o sujeito e de abrigar sua experiência.


* Gabriel Bursztyn é doutor Ciências da Informação e da Comunicação pela escola Cognição, Linguagem e Interação da Universidade de Paris 8 – Vincennes – Saint-Denis, mestre em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade de Paris 3 – Sorbonne Nouvelle e graduado em Comunicação Social pela Universidade de Brasília. É pesquisador associado ao Laboratório de Tecnologia e Desenvolvimento Social (LTDS) e ao Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC). É fotografo e videasta.

** Roberto Bartholo é professor titular da UFRJ na área de Gestão e Inovação (GI) do Programa de Engenharia de Produção (PEP) da COPPE. Chefe do Laboratório de Tecnologia e Desenvolvimento Social (LTDS).

*** Khaldoun Zreik é professor titular, coordenador do departamento de Humanidades Digitais da Universidade de Paris 8 – Vincennes / Saint-Denis, diretor do grupo de pesquisa Cibermídia, Interação, Transdisciplinaridade e Ubiquidade (CITU).

 

Referências

BACHELARD, Gaston. La poétique de l’espace. France: Quadrige PUF, 2012.

BARTHES, Roland. La chambre claire: notes sur la photographie. Mayenne: Gallimard, 2016.

BARTHOLO, Roberto. Desatando a imaginação: breves notas sobre ética no mundo contemporâneo. Educação e contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, 2013.

CARERI, Francesco. Walkscapes. La marche comme pratique esthétique. Arles: Jacqueline Chambon, 2013.

DEBORD, Guy. Théorie de la dérive. Publié dans Les Lèvres nues n° 9, décembre 1956 et Internationale Situationniste n° 2, décembre 1958. Disponível em: http://www.larevuedesressources.org/theorie-de-la-derive,038.html.

FLUSSER, Vilém. Les gestes. Sofia: Al Dante/AKA, 2014.

FLUSSER, Vilém. Pour une philosophie de la photographie [essai]. Bulgarie: Circé, 2004.

MONTIER, Jean-Pierre. Henri Cartier-Bresson, l’art sans art. Paris: Flammarion, 1995.

PARRET, Herman. Épiphanies de la presence: essais sémio-esthétiques. France: PULIM, 2004.

RORTY, Richard. Contingência, ironia, solidariedade. São Paulo: Martins, 2007.

STRÖHL, Andreas. Introduction. In: FLUSSER Vilém. Writings. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2002.

SONTAG, Susan. Sur la photographie. Paris: Seuil, 1992.

ZREIK, Khaldoun. Enjeux de l’aménagement de la ville hybridée: une 4ème dimension. In: Hyperurbain 3: villes hybrides et enjeux de l’aménagement des urbanités numériques. Paris: Europia, 2012.