Tempo de leitura estimado: 30 minutos

O tempo nos livros-imagem de Roger Mello | Thales Estefani e André Villas-Boas*

Diferentemente da espacialidade, a expressão da temporalidade é um paradoxo quando se refere a livros-imagem, por isso exige uma variedade de recursos e técnicas próprios para que possa ser percebida nas histórias narradas. Este trabalho focaliza a expressão do tempo na narrativa visual a partir da análise dos livros-imagem – obras que não utilizam o discurso verbal em suas narrativas – de autoria do premiado ilustrador Roger Mello. Os seis livros-imagem aqui analisados, destinados ao público infantil, demonstram este repertório, que depende da participação ativa do leitor – de sua bagagem estética e de sua experiência de mundo – para que essas estratégias sejam eficazes.

Roger Mello nasceu em Brasília, em 1965, e formou-se em design na Escola Superior de Desenho Industrial (Esdi/Uerj). Já fez ilustrações para mais de cem títulos, sendo que 19 deles têm textos ou roteiros de sua autoria. Também se dedicou à animação, à produção de vinhetas para televisão e à dramaturgia. É considerado hors-concours pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ), tendo obtido cerca de 15 menções “Altamente Recomendável”. Recebeu oito Prêmios Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro (CBL) e foi indicado para o Prêmio Hans Christian Andersen (2010), considerado o mais importante da literatura infanto-juvenil. Foi ainda premiado pelo conjunto da obra pela Academia Brasileira de Letras e pela União Brasileira dos Escritores. Em 2002, recebeu o prêmio internacional de melhor livro de 2002 da Fondation Espace-Enfants, pela obra Meninos do mangue.

A amostra definida para este estudo partiu do minucioso trabalho empreendido por Mendes (2011) que, entre 89 títulos com trabalhos de Mello, identificou 22 com autoria total ou em parceria com autores ou editores – dos quais 18 (cerca de 82%) foram premiados. A autora do estudo dividiu esses 22 títulos em três categorias: livros com ilustração, livros ilustrados e livros-imagem, encontrando cinco títulos nessa última categoria. A eles, para esta pesquisa, somou-se um sexto, publicado após a conclusão daquele trabalho. Assim, tendo como referência as datas das edições tomadas para análise (e não os anos de lançamento das primeiras edições), foram analisados: A flor do lado de lá (2004, Global); O gato Viriato (2002, Ediouro); O próximo dinossauro (1999, FTD); Viriato e o leão (1996, Ediouro); A pipa (2011, Rovelle) e  Selvagem (2010, Global).

Figura 1: Livros-imagem de Roger Mello, organizados por ano de lançamento das primeiras edições.
Figura 1: Livros-imagem de Roger Mello, organizados por ano de lançamento das primeiras edições.

O livro-imagem

O que caracteriza os livros-imagem é que eles possuem uma narrativa construída unicamente por ilustrações – ainda que em geral tenham em sua concepção um roteiro verbal e, quando editados, possam apresentar formas verbais nas partes pré-textuais e pós-textuais (folha de rosto, sumário, dedicatória, colofão, etc.). São relativamente recentes no mercado brasileiro, embora o primeiro deles tenha sido publicado ainda em 1976 (Ida e volta, de Juarez Machado, lançado no ano anterior na Europa, em uma coedição germano-holandesa). Até 1995, haviam sido publicados apenas 113 títulos no país (Camargo, 1995) – total que subiu para 153 em 2001 (Ferraro, 2001). Em 1981, a Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil passou a premiar os melhores livros-imagem de cada ano. O reconhecimento de seu valor para a formação da criança também é demonstrado pela alocação de verba destinada exclusivamente para a aquisição desse tipo de publicação pelo Programa Nacional de Bibliotecas Escolares (PNBE).

Derivado do livro ilustrado e diferenciando-se dele por assumir a imagem como elemento estrutural da narrativa, ele tende a instigar incisivamente o raciocínio e a imaginação do leitor: cabe a ele enunciadamente interpretar, sem a linearidade potencial dos signos convencionais da escrita, o significado de cada ilustração e, principalmente, das lacunas entre elas. O sentido apreendido num texto verbal tende a ser mais controlável do que aquele apreendido por meio de uma imagem: ela, sozinha, incita a uma multiplicidade de leituras, com maior potencialidade de polissemia.

Ao ilustrador, muitas vezes, é oferecida a tarefa árdua de tentar traduzir detalhadamente uma narrativa textual em ilustrações. As pesquisas teóricas e a crítica contemporânea concordam que isso não leva aos melhores resultados. O ilustrador trabalha com a linguagem das formas, das cores, dos espaços, e com diferentes escolhas compositivas ele pode conduzir o olhar do leitor para aquilo que quer mostrar ou ocultar, para um dado sentimento, para a sugestão de um conceito. Porém, por mais admirável que seja o seu trabalho, ele precisa sempre levar em conta o espaço de atuação da imaginação do leitor, capaz de completar os sentidos da história. E, mais do que isso, criar outros sentidos.

Tal como nos projetos de design gráfico, nenhuma ilustração apresenta a releitura perfeita de um texto, nenhum leitor terá exatamente a leitura da imagem pretendida pelo ilustrador e nenhum ilustrador conseguirá prever todas as diferentes leituras possíveis de quem visualiza uma ilustração. A imagem será sempre lida de forma parcial, segmentada e particularizada – ou, como observa Rui de Oliveira, outro ilustrador consagrado, ela funciona como um “ardil para resgatarmos nossa experiência vivida e projetarmos e criarmos sua memória futura” (Oliveira, 2008, p.32).

Embora os livros ilustrados não sejam uma categoria estritamente infantil – e há mesmo livros-imagem destinados a outras faixas etárias –, a maior parte dessa produção visa às crianças. Nesse contexto, um trunfo dos livros-imagem com relação às várias categorias de livros ilustrados infantis reside justamente no fato de não possuírem texto: ele permite uma maior possibilidade da interação direta entre a criança e o livro, sem um contador, um intermediário. No entanto, a ilustradora e também premiadíssima Ciça Fittipaldi observa que o processo de criação de um livro-imagem que respeite o espaço do leitor não prescinde da linguagem verbal:

A narrativa visual, nesse caso, é trabalhada também a partir de uma ferramenta verbal, semelhante a um roteiro, que organiza as sequências de ideias imagéticas a partir de noções consensuais ou de bom senso, tornando possíveis suas várias leituras e compreensões. (…) Não há como apagar contradições advindas de leituras impregnadas pela cultura e vivência, pessoalidade, personalidade e imaginação de cada leitor (Fittipaldi, 2008, p. 117).

Quando o roteiro também é de autoria do ilustrador – como é o caso dos seis livros-imagem aqui analisados –, sua liberdade de composição é maior e, em geral, as formas de apresentação da narrativa são pensadas graficamente desde o início.

O paradoxo do tempo no livro-imagem

Uma narrativa se desenvolve no tempo. Uma imagem, em contrapartida, é um elemento que se desenvolve no espaço, explorando possibilidades de composições com pontos, traços, planos, cores. Manguel (2001) destaca alguns pontos que diferenciam a palavra escrita da imagem e potencializam essa premissa de desenvolvimento no tempo e no espaço.

Segundo o autor, as palavras de um texto fluem livremente por meio das páginas de um livro, mas esse texto nunca existe como um todo indefectível: é possível recordar um trecho de um livro, nunca um romance inteiro. A existência total de um texto está no fluxo de palavras que o encerra, da capa até a contracapa, no tempo reservado à sua leitura.

Já as imagens apresentam-se instantaneamente como um todo, limitado por seus enquadramentos. Com o passar do tempo, é possível aprofundar a percepção sobre a imagem, descobrindo novos detalhes, aplicando outros sentidos. Porém, não importa o tempo reservado para contemplar uma imagem ou as criações imaginárias que isso pode despertar: ela sempre existirá no espaço que ocupa (Manguel, 2001, p. 25).

Na grande maioria das formas de contar uma história, o tempo é um elemento presente e determinado – como na literatura, no teatro, na ópera, na dança. Contar histórias a partir da imagem, porém, é um exercício de sugestão que estimula o leitor a apreender a expressão do espaço e a sensação de tempo decorrido a partir de elementos gráficos, recursos estilísticos e técnicas nascidas dos estudos da percepção e associação.

Quando as imagens em sua espacialidade incorporam a dimensão temporal, seja pela representação de ações e eventos, seja pela articulação de vários quadros ou cenas, em sequências, expondo uma ordem de acontecimentos temporal, são imbuídas da fluência narrativa (Fittipaldi, in Oliveira, 2008, p. 109).

Como a leitura de um livro-imagem é um processo ativo e espontâneo do leitor, é exigido do ilustrador que ele mergulhe de forma crítica e analítica no roteiro do livro. É preciso tentar alcançar as várias leituras possíveis. Depois, investir na produção de imagens que representem não apenas as espaciais, mas também as expressões temporais dos contextos ficcionais pretendidos.

Em geral, o que caracteriza a expressão do tempo nas narrativas são a sucessividade e a linearidade – que comumente não encontramos na imagem fixa. Como observa Linden (2011, p. 102), “nada predispõe uma imagem fixa a expressar o tempo”. Nikolajeva e Scott são mais incisivas:

Há dois aspectos essenciais da narratividade que são impossíveis de expressar de modo conclusivo usando apenas signos visuais: a causalidade e a temporalidade, pois o sistema de signos visuais só pode indicar o tempo por inferência (Nikolajeva e Scott, 2011, p. 195).

O recurso para expressar o tempo numa ilustração é a representação de elementos que se desenvolvam nesse tempo. Isso pode ser feito, a exemplo, por meio da representação de ações e movimentos – elementos que estão naturalmente vinculados a um tempo de execução e assim sugerem duração por meio da projeção do sentido no leitor.

Ao olhar para as ilustrações de um livro-imagem, deve ser possível perceber a ocorrência de uma ação, a representação de uma situação que se desenvolve – aquilo que Ciça Fittipaldi chamou de “personagens em devir” (Fittipaldi, 2008, p. 103). Percebendo esse instante, é possível, para o leitor, imaginar um antes e um depois: a conclusão da ação e a duração no tempo são completadas pela criatividade e pela experiência do leitor.

A percepção desse antes e desse depois pode ocorrer numa mesma ilustração. Mas, além disso, há o recurso das imagens em sequência, típico dos quadrinhos mas também presente em outras mídias, como nos livros-imagem. E, finalmente, a exploração do efeito causado pela própria relação entre as páginas. Assim, temos três categorias de análise: a unidade da ilustração, as imagens sequenciais e as relações entre páginas.

O tempo na unidade da ilustração

Analisar a temporalidade na unidade da ilustração quer dizer analisar os elementos expressivos do tempo em cada ilustração separadamente, ocupando uma página ou página dupla.

Figura 2: Página única e página dupla.
Figura 2: Página única e página dupla.

Linden (2011) reconhece três formas de expressar o tempo na unidade da ilustração: por meio do instante movimento, do instante qualquer ou do instante capital.

O instante movimento é uma das formas mais recorrentes de representação do movimento na narrativa visual, pois está intimamente relacionado com a perspectiva mais comum quando se trata de foco narrativo: a perspectiva objetiva (que tem foco na ação, diferentemente da perspectiva introspectiva, cujo foco está nos sentimentos). Ele é o que se pode chamar de “essência” da ação: a representação na ilustração do momento mais característico de um movimento completo – como se um fotograma fosse pinçado de um rolo de filme de cinema.

Essa ilustração, porém, não deve ser como uma simples imagem congelada, mas sugerir um encadeamento, como se reduzisse o tempo de duração de uma ação a um breve momento fugaz (Figura 3) – cuja eficácia depende do conhecimento anterior do leitor (experiências), que completará a ação mentalmente com um antes e um depois. Por isso, conforme Linden, é preciso escolher momentos específicos para serem representados. Os mais eficientes são aqueles que precedem o ponto culminante da ação (Linden, 2011, p. 104).

Figura 3: Representação do instante movimento em <i>O gato Viriato</i>. O pulo do gato, no susto que ele leva, se dá num instante muito breve e é ao mesmo tempo a essência da ação retratada: o susto.
Figura 3: Representação do instante movimento em O gato Viriato. O pulo do gato, no susto que ele leva, se dá num instante muito breve e é ao mesmo tempo a essência da ação retratada: o susto.
Figura 4: Instante movimento em <i>A flor do lado de lá</i>. O salto da anta é retratado no ponto culminante, anterior ao clímax da ação, ou seja, quando ela está no alto, antes de atingir a água.
Figura 4: Instante movimento em A flor do lado de lá. O salto da anta é retratado no ponto culminante, anterior ao clímax da ação, ou seja, quando ela está no alto, antes de atingir a água.

O instante qualquer também traz a sensação de um instante pinçado num continuum temporal (Linden, 2011, p. 103). Porém, ele traz a ideia de um desenvolvimento temporal lento, propondo mais apresentar uma situação do que sintetizar um movimento. Na Figura 5, Roger Mello não sugere uma ação e sim o tempo de contemplação de uma situação. Essa progressão lenta do tempo é ainda maximizada pela carga emotiva da ilustração.

Figura 5: Tempo dilatado e forte carga de emoção em <i>A pipa</i>.
Figura 5: Tempo dilatado e forte carga de emoção em A pipa.

O instante capital, por sua vez, é obtido por meio da fusão, numa única ilustração, de fragmentos pertencentes a momentos diferentes de um mesmo movimento. É uma representação simultânea de várias etapas envolvidas numa mesma ação. O termo capital se refere a essencial: esse tipo de ilustração busca recompor todas as etapas essenciais da ação. Recorrente no fim do século XIX (Linden, 2011, p. 102), esse recurso é no mais das vezes associado a situações de humor e atualmente é de uso quase restrito ao cartum e aos quadrinhos de massa para o público infantil. É sintomático que não haja qualquer exemplo na amostra estudada.

Outro tipo de recurso é a posição dos personagens na página e a sua expressão corporal e facial, muitas vezes nos indicando uma direção para olhar.

Figura 6: Os olhares de todos os personagens representados direcionam-se para a bola, que descreve um movimento, em <i>O próximo dinossauro</i>.
Figura 6: Os olhares de todos os personagens representados direcionam-se para a bola, que descreve um movimento, em O próximo dinossauro.

As linhas de movimento, presentes nos livros-imagem e amplamente utilizadas nos quadrinhos, também permitem acentuar a velocidade ou delinear a trajetória de um movimento.

Figura 7: A bola arremessada pelo lagarto na cabeça do gato descreve sua trajetória com uma linha de movimento, em <i>O gato Viriato</i>.
Figura 7: A bola arremessada pelo lagarto na cabeça do gato descreve sua trajetória com uma linha de movimento, em O gato Viriato.

A observação do comportamento da fotografia quando a velocidade do obturador é inferior à velocidade do movimento, criando uma imagem que se estende como linhas em um borrão, propiciou maior desenvolvimento da técnica, que alcançou seu ápice nos quadrinhos orientais. A técnica de borrar algumas partes das ilustrações é uma alternativa às linhas de movimento e caracteriza-se igualmente por representar velocidade ou direção de uma ação (Figura 8, mas identificável também na Figura 6). Enquanto as linhas são elementos emprestados dos quadrinhos, os borrões são inspirados diretamente nas fotografias de movimento.

Figura 8: A bola agarrada pelo dinossauro descreve sua trajetória e sugere velocidade com um borrão na imagem, em <i>O próximo dinossauro</i>.
Figura 8: A bola agarrada pelo dinossauro descreve sua trajetória e sugere velocidade com um borrão na imagem, em O próximo dinossauro.

Para além das linhas de movimento e borrões, uma técnica bastante interessante é a replicação de um mesmo personagem, em posições distintas, numa mesma imagem. Essa técnica, denominada sucessão simultânea, também segue a tradição das pesquisas artísticas de representação do tempo por meio de uma única imagem empreendidas por Duchamp (Linden, 2011, p. 105), mas pode ter uma raiz bem mais antiga: Nikolajeva e Scott (2011, p. 196) a identificam em elementos presentes nas hagiografias medievais – pinturas em painéis que narravam as histórias dos santos. A inexistência da sucessão simultânea nos livros-imagem de Roger Mello também parece ter relação com o minimalismo dos elementos de suas ilustrações, centradas no que é essencial à narrativa.

Na leitura das ilustrações, seja qual for o tipo de instante retratado ou a técnica de representação do movimento empregada, a decodificação é comumente feita da esquerda para a direita, seguindo o padrão da leitura verbal da sociedade na qual se insere. Esse movimento narrativo convencional também sugere uma progressão espaço-temporal (Figura 9) e, quando é revertido, ou seja, quando apresenta um fluxo da direita para a esquerda, na maioria das vezes vincula-se a um retorno no tempo ou no espaço. Mas, assim como o leitor é livre para traçar caminhos diversos na observação da imagem, o ilustrador tem também a liberdade de romper com os esquemas convencionais, principalmente quando a intenção narrativa exigir: é o que faz Roger Mello em O próximo dinossauro.

Figura 9: Em <i>A pipa</i>, Roger Mello faz a narrativa avançar para o fim com muitas ilustrações em que o protagonista aparece deslocando-se para a direita.
Figura 9: Em A pipa, Roger Mello faz a narrativa avançar para o fim com muitas ilustrações em que o protagonista aparece deslocando-se para a direita.
Figura 10: Em <i>O próximo dinossauro</i>, Mello parece brincar com a ideia de retratar um passado remoto ilustrando todos os deslocamentos para a esquerda.
Figura 10: Em O próximo dinossauro, Mello parece brincar com a ideia de retratar um passado remoto ilustrando todos os deslocamentos para a esquerda.

A expressão do tempo na unidade da ilustração do livro-imagem ocorre ainda em função da duração temporal percebida na imagem – que nada mais é do que a relação entre o tempo “real” da história e o do discurso. Recorrendo à narratologia própria do discurso verbal, Nikolajeva e Scott explicam:

Ela pode ser mais ou menos idêntica, “isocrômica” [isochronical]; em narratologia esse padrão é chamado de cena. Se o tempo da história é mais longo que o tempo do discurso, estamos diante de um resumo. A forma extrema do resumo é uma elipse: o tempo do discurso é zero. [Mas] (…) o tempo do discurso pode ser mais longo que o tempo da história, como nos casos de descrições (…) [Então,] estamos lidando com uma pausa (Nikolajeva e Scott, 2011, p. 218; grifos nossos).

Quando essas categorias são aplicadas a uma narrativa visual, e não verbal, há particularidades. Nikolajeva e Scott relembram o fato de uma imagem fixa conseguir representar, na maioria das vezes, apenas instantes curtos e, nesse sentido, sugerem que seu tempo de história é mínimo, “enquanto seu tempo de discurso é indefinidamente longo” (Nikolajeva e Scott, 2011, p. 218). Isso porque uma imagem é objeto de um tempo indeterminado de observação, podendo ser apreciada minuciosamente até por horas. O seu discurso se dá na espacialidade, mas quanto mais detalhes houver na imagem (informação), mais longo tende a ser o tempo desse discurso (Figura 11). Nesse sentido, seria possível classificar a duração narrativa de uma imagem como uma pausa (Figura 12).

Figura 11: Mais detalhes na imagem, tempo mais longo do discurso.
Figura 11: Mais detalhes na imagem, tempo mais longo do discurso.
Figura 12: Exemplo arquetípico da narrativa visual como uma relação de <i>pausa</i> entre história e discurso. O conjunto de detalhes e expressões que a imagem apresenta ao leitor permite uma duração maior no discurso de um instante que, na história, é bem mais breve: dois cães correndo atrás de um gato. Do livro <i>Viriato e o leão</i>.
Figura 12: Exemplo arquetípico da narrativa visual como uma relação de pausa entre história e discurso. O conjunto de detalhes e expressões que a imagem apresenta ao leitor permite uma duração maior no discurso de um instante que, na história, é bem mais breve: dois cães correndo atrás de um gato. Do livro Viriato e o leão.

Contudo, existem outras formas de duração possíveis mesmo numa narrativa por imagens. Uma ilustração com sucessão simultânea, por exemplo, pode retratar um tempo de história maior do que um instante e, se o tempo do discurso corresponder ao da história, isso conjugará uma cena. Em outro caso, se o tempo retratado na sucessão simultânea for muito longo, como o passar de dias ou anos, o tempo de história irá superar o tempo do discurso, configurando um resumo. Mais à frente, veremos que a elipse, mais do que também presente, é intrínseca aos livros-imagem.

Esses padrões de duração, mesclados e conjugados na unidade de um livro, dão ritmo à leitura das imagens, acelerando e desacelerando quando se faz necessário para a narrativa.

O tempo nas imagens sequenciais

A sucessividade e a linearidade – dois elementos que comumente não encontramos na unidade da ilustração – podem ser alcançadas na representação da narrativa por meio de quadros sucessivos, podendo ser referidas por um mesmo termo: sequencialidade. O termo imagens sequenciais faz referência aos quadros com ilustrações que podem estar distribuídos na unidade da página ou da página dupla, sem quantidade estipulada (Figura 13).

Figura 13: Imagens sequenciais.
Figura 13: Imagens sequenciais.

Quando essa técnica é utilizada em demasia, a diferenciação entre um livro-imagem e uma história em quadrinhos pode apresentar-se um tanto confusa, porque é um recurso intrínseco à linguagem da segunda. As imagens sequenciais são articuladas plástica e semanticamente e cada quadro expressa uma parte da narrativa, que se realiza durante a sequência. Assim, a sucessão e o próprio fluxo de tempo de leitura entre uma imagem e outra transmitem o fluxo do tempo da narrativa, apesar de os quadros fragmentarem o tempo e o espaço.

Figura 14: O salto do pato, na tentativa de voo entre a primeira e a segunda ilustração desta página, é inferido na sarjeta, no espaço vazio que as separa. Não é possível ver o salto, mas presume-se que ele tenha ocorrido. O ilustrador, nesse caso, conta com o leitor como um cúmplice.
Figura 14: O salto do pato, na tentativa de voo entre a primeira e a segunda ilustração desta página, é inferido na sarjeta, no espaço vazio que as separa. Não é possível ver o salto, mas presume-se que ele tenha ocorrido. O ilustrador, nesse caso, conta com o leitor como um cúmplice.

Linden observa que a progressão do tempo surge a partir da ligação de uma imagem após a outra realizada pelo próprio leitor, que é quem insere a continuidade. A expressão do tempo está vinculada a uma ação que não é sugerida por elementos gráficos como linhas de movimento, mas na imaginação de cada leitor, baseada ainda em seus conhecimentos e experiências.

O lapso temporal não é representado graficamente pelo ilustrador, mas é o elemento essencial das imagens sequenciais: ele está na sarjeta – o termo utilizado em quadrinhos para identificar o espaço entre as imagens sequenciais. É nele que está “grande parte da magia e do mistério que existem na essência dos quadrinhos” (McCloud, 2004, p. 66). É no espaço em branco, área de respiro da mancha gráfica entre os quadros, que a imaginação do leitor pode agir para unir as imagens em uma relação inferida, criando a partir daí uma ideia para a narrativa: a sarjeta funciona como a elipse da narrativa visual. Esse recurso foi amplamente utilizado por Roger Mello em O gato Viriato, que, apesar de não possuir molduras delimitando os quadros, recorre a várias técnicas de composição e expressão plástica dos quadrinhos.

A estrutura de apresentação (diagramação) de uma narrativa visual pode seguir um padrão fixo, como nos livros-imagem que contam toda a história numa sequência de grandes ilustrações de página dupla, ou podem variar as formas das imagens apresentadas. Essa liberdade de apresentação abre espaço para uma utilização pontual dos quadros de imagens sequenciais, que podem representar desde a evolução de um personagem numa ação até o avançar do tempo por meio da representação de elementos como relógios e calendários, nascer e pôr do sol, mudanças de estações do ano etc. (Figura 15). Em Viriato e o leão, Mello mescla ilustrações de página dupla, uma só página e quadros sequenciais.

Figura 15: Passagem da noite para o nascer do sol em <i>Viriato e o leão</i>.
Figura 15: Passagem da noite para o nascer do sol em Viriato e o leão.

Há seis tipos de transições de quadros, conforme McCloud (2004, p. 70-72). Momento-a-momento é quando os quadros apresentam uma diferença muito pequena de instantes. Já as sequências com momentos distintos da ação (dois instantes movimentos, por exemplo) são chamadas de ação-para-ação (Figura 16). Quando os quadros apresentam elementos diferentes uns dos outros, mas a sequência permanece no mesmo contexto, temos progressão tema-a-tema. Já na ocorrência de quadros que levam a uma progressão de distância significativa no tempo ou no espaço, temos a sucessão cena-a-cena (Figura 17). A mudança de enquadramento da imagem de um quadro para o outro caracteriza a transição aspecto-para-aspecto (McCloud, 2004, p. 72). E, quando não há nenhuma sequência lógica entre os quadros, ocorre o que é denominado de non-sequitur.

Figura 17: <i>Cena-a-cena</i> em quadros de <i>O gato Viriato</i>.
Figura 17: Cena-a-cena em quadros de O gato Viriato.
Figura 16: <i>Ação-para-ação</i> em quadros de <i>Viriato e o leão</i>.
Figura 16: Ação-para-ação em quadros de Viriato e o leão.

Essas possibilidades de transição dos quadros, quando conjugadas num livro, vão determinar o ritmo narrativo, pois cada uma delas pretende representar o avançar da história com menor ou maior rapidez. Nos livros de Mello, as formas de sucessão de quadros encontradas são a ação-para-ação, que é a mais comum nas revistas em quadrinhos, e a cena-a-cena.

A expressão da ação e do deslocamento no espaço por meio de quadros tem ainda outras formas. Linden (2011, p. 108) mostra que é comum expressar as etapas de uma ação com a repetição de cenários ou pela ausência deles, a fim de enfatizar a temporalidade, e ainda expressar um deslocamento por meio da evolução da figura e do plano de fundo em conjunto, a fim de enfatizar a mudança no tempo-espaço. Porém, uma maneira não tão comum é a segmentação de um mesmo cenário num conjunto de vários quadros, que mantém suas sarjetas, com cada um dos quadros mostrando o personagem numa etapa da ação. A autora chama a atenção para o fato de que essa técnica auxilia na percepção da continuidade e faz a elipse entre as etapas da ação parecer mais tênue, resultando em uma “impressão de fluidez de movimento e temporalidade” (Linden, 2011, p. 109).

Ainda que a função básica da moldura seja delimitar uma imagem em relação à outra, a organização de uma sequência de imagens com variações de molduras – formas e tamanhos – também pode influenciar no ritmo de leitura de um livro-imagem. A transgressão da moldura também é capaz de expressar movimento. Em Viriato e o leão, Mello utiliza esse recurso por três vezes, sempre como representação de um movimento de entrada ou fuga dos quadros.

Figura 18: Nesta imagem, Viriato desce as escadas olhando para trás, convidando o leão a segui-lo para fora do quadro.
Figura 18: Nesta imagem, Viriato desce as escadas olhando para trás, convidando o leão a segui-lo para fora do quadro.

O tempo nas relações entre páginas

Analisar a temporalidade nas relações entre páginas significa compreender a relação entre as várias ilustrações, considerando a oposição entre elas nas páginas par e ímpar e também o próprio virar das páginas, numa análise do conjunto (Figura 19). As imagens associadas apresentam expressões plásticas e semânticas em conformidade, porém seus significados, ações e representações do tempo são mais distantes do que nas imagens sequenciais.

A continuidade narrativa no virar de páginas do livro-imagem envolve técnicas e recursos que, juntos, permitem que a fluidez temporal da história contada não se perca no simples manuseio de uma folha. É interessante notar que a relação entre as páginas duplas ilustradas com grandes imagens é muito semelhante à relação entre quadros de imagens sequenciais, sendo o lapso da virada da página o correspondente direto para a sarjeta entre os quadros – o virar das páginas, em si mesmo, é uma elipse.

Figura 19: Relações entre páginas.
Figura 19: Relações entre páginas.

Linden (2011, p. 78-79) utiliza o termo montagem para tratar da organização da sucessão de páginas duplas, tarefa que a autora associa ao encadeamento de planos na narrativa audiovisual, que origina o termo. A montagem não pressupõe uma continuidade absoluta de uma página dupla à outra para alcançar o encadeamento narrativo. Para que uma página dupla seja compreendida como sequência daquela que a precede e expresse a progressão do tempo na narrativa, basta que haja uma conformidade plástica, a repetição de personagens ou a manutenção de um tema.

Ela identifica duas formas distintas de montagem: uma delas é a vetorização, que ocorre quando a sucessão de páginas representa o encadeamento de ações ou movimentos (Figura 20); a outra é quando a sucessão de páginas apresenta uma reconfiguração total do espaço da página dupla (Figura 21). Portanto, existe uma distinção entre a montagem que apresenta instantes que se sucedem diretamente, como num movimento, e aquela que desenvolve uma sucessão a partir de imagens com maior variação visual, denotando avanços mais longos no espaço-tempo.

                               
Figura 20: Quarta e quinta páginas duplas de <i>O próximo dinossauro</i>. A montagem segue o encadeamento de uma ação.
Figura 20: Quarta e quinta páginas duplas de O próximo dinossauro. A montagem segue o encadeamento de uma ação.
                               
Figura 21: Segunda e terceira páginas duplas de <i>A pipa</i>. A sucessão de páginas apresenta uma reconfiguração total do espaço.
Figura 21: Segunda e terceira páginas duplas de A pipa.
A sucessão de páginas apresenta uma reconfiguração total do espaço.

Criar continuidade entre a frente e o verso de uma página virada é sempre mais difícil do que criar continuidade entre página par e ímpar na unidade da dupla. É comum que os ilustradores concentrem-se em indicar na página ímpar elementos que estimulem o encadeamento narrativo (Figura 22), pois ela tende a ser a primeira página visualizada pelo leitor durante o folhear de um livro. Dentre os vários recursos utilizados, está a representação parcial (cortada) de personagens ou elementos da página dupla seguinte (Figura 23).

Figura 22: Em <i>A flor do lado de lá</i>, a anta aparece na página ímpar em quase todas as duplas. É um elemento recorrente de continuidade da narrativa.
Figura 22: Em A flor do lado de lá, a anta aparece na página ímpar em quase todas as duplas. É um elemento recorrente de continuidade da narrativa.
Figura 23: Segunda e terceira páginas duplas de <i>O próximo dinossauro</i>. A presença de metade do tricerátopo na dupla anterior anuncia a tomada da bola do tiranossauro, representada logo em seguida.
                               
Figura 23: Segunda e terceira páginas duplas de O próximo dinossauro. A presença de metade do tricerátopo na dupla anterior anuncia a tomada da bola do tiranossauro, representada logo em seguida.

Outra técnica é a manutenção de elementos contínuos na sucessão de páginas duplas, como linhas, rios ou ruas. Também há as referências visuais a elementos no extracampo (ou seja, o espaço sugerido para além da moldura da ilustração ou, nas ilustrações sangradas, para fora da própria página) – como um personagem que aponta para algo que o leitor, consequentemente, não tem como ver. Esses e outros recursos, que criam um efeito de suspense, são o que Nikolajeva e Scott chamam de viradores de páginas: um detalhe visual “que encoraja o espectador a virar a página e descobrir o que acontece a seguir” (Nikolajeva e Scott, 2011, p. 211).

O direcionamento de um movimento da esquerda para a direita também pode ser considerado um virador de página. Conforme foi explicitado anteriormente, um personagem representado em um deslocamento que segue o mesmo direcionamento da leitura tem a ilusão do movimento mais facilmente percebida e a apreensão da progressão do tempo privilegiada. Ao virar as páginas, em uma sucessão de elipses temporais, o leitor tem a impressão de caminhar para um objetivo: o final do livro como ponto de chegada. Então, todo deslocamento de um personagem para a direita é favoravelmente interpretado como uma progressão (Linden, 2011, p. 115).

O encadeamento do livro-imagem em páginas duplas se presta a superar a segmentação tradicional do livro como mídia, em páginas únicas. Porém, nem sempre essa segmentação é indesejada: nas narrativas visuais que se desenvolvem por meio da unidade da página, as relações de temporalidade entre página par e ímpar estão ainda mais próximas das existentes entre quadros de imagens sequenciais (Figura 24).

Figura 24: Páginas 1 e 2 de Viriato e o leão.
Figura 24: Páginas 1 e 2 de Viriato e o leão.

A leitura das ilustrações de um livro-imagem é determinante para a expressão do tempo, não importa se a partir de elementos gráficos sugestivos em uma única imagem, ou do encadeamento de imagens sequenciais, ou dos efeitos da sucessão de páginas. A expressão da temporalidade ocorre de todas essas maneiras em conjunto, pois o livro-imagem, plural em suas formas de representação, tem por objetivo final apenas um: contar uma história. O tempo que tenta, por meio de vários recursos, inscrever-se na imagem fixa, é reforçado pelo tempo da apreensão da imagem. Quando o leitor visualiza a sucessão de imagens de um livro, seu processo de interpretação também requer um tempo, mesmo que breve. E é nesse tempo do leitor que o tempo da história ganha vida.

*André Villas-Boas é doutor em Comunicação e Cultura, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisador associado do Programa Avançado de Cultura Contemporânea (Pacc). É autor de Utopia e disciplina e Identidade e cultura, entre outros livros. Thales Estefani é graduado em Comunicação Social, ilustrador e autor da pesquisa original que deu origem a este artigo.


Referências

CAMARGO, Luís. Ilustração do livro infantil. Belo Horizonte: Ed. Lê, 1995.

FERRARO, Mara Rosângela. O livro de imagens e as múltiplas leituras que a criança faz do seu texto visual. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação, 2001. Disponível em: http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=vtls000232612. Acesso em 17 de fevereiro de 2013.

FITTIPALDI, Ciça. “O que é uma imagem narrativa?” In: OLIVEIRA, Ieda de (Org). O que é qualidade em ilustração no livro infantil e juvenil: com a palavra o ilustrador. São Paulo: DCL, 2008, p. 93-121.

LINDEN, Sophie Van der. Para ler o livro ilustrado. São Paulo: Cosac Naify, 2011.

MANGUEL, Alberto. Lendo imagens – uma história de amor e ódio. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

McCLOUD, Scott. Desvendando os quadrinhos. São Paulo: Makron Books, 2004.

MENDES, Claudia. Singular e plural: Roger Mello e o livro ilustrado. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais). Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2011.

NIKOLAJEVA, Maria; SCOTT, Carole. Livro ilustrado: palavras e imagens. São Paulo: Cosac Naify, 2011.

OLIVEIRA, Ieda de (Org). O que é qualidade em ilustração no livro infantil e juvenil: com a palavra o ilustrador. São Paulo: DCL, 2008.

OLIVEIRA, Rui de. Pelos Jardins Boboli: reflexões sobre a arte de ilustrar livros para crianças e jovens. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.