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O “velho” bardo, uma nova tradução, um pequeno comentário | de Josely Vianna

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Há mais mitologia em torno de William Shakespeare do que necessita a nossa vã idolatria. O resultado é uma certa esquizofrenia (com o perdão da rima pobre). Pois enquanto a obra do “bardo” é felizmente encarada sem muita cerimônia, em versões várias para o teatro, o cinema etc., seu nome vive cercado por uma névoa de mitos que, essencialmente, comprazem-se em negar a possibilidade chã de certo cidadão inglês do século XVI, dedicado profissionalmente ao teatro, ser o autor das peças e dos poemas a ele desde sempre atribuídos. Se isto, somado ao título de “maior poeta da história”, de fato não compromete a recepção de seu teatro, de alguma forma impregna a de sua lírica.

Os sonetos de Shakespeare são, assim, cercados de questões extrapoéticas que ameaçam torná-los mais opacos do que o mais esotérico poeta barroco. Shakespeare, porém, era um classicista. A clareza e a relativa simplicidade sintática de seus sonetos costumam ser muito maiores que a da maioria de seus contemporâneos. Saber então quem foi a tão famosa quanto desconhecida “dark lady”, presumida destinatária de alguns sonetos, ou decidir se outros, cujo imputado destinatário é um homem jovem, possuem ou não viés homoerótico, pode ter algum interesse acadêmico, e mesmo muito interesse amador, mas pouco ou nada diz de sua poética. Além disso, e mais importante, tais mistérios não são capazes de alterar certos fatos intrínsecos, como o de que seus sonetos envelhecem mais que suas peças. Melhor dito: que seus sonetos envelhecem visivelmente (ao menos em alguns aspectos), enquanto suas peças parecem imunes à ação do tempo (em parte graças às próprias releituras).

O contrário acontece, por exemplo, com a obra de seu contemporâneo Luís de Camões. Enquanto seu épico nacional-imperial, Os Lusíadas, parece cada vez mais um épico nacional-imperial do século XVI (sem compromisso das magnificências de sua poética), muitos de seus sonetos soam surpreendentemente modernos. A ponto de um deles, há pouco tempo, ter sido musicado por um grupo pop brasileiro (se a grandeza poética do soneto nada perdeu, e se a pobreza musical típica do pop pouco ganhou, o resultado, em todo caso, não pareceu um híbrido absurdo ou impossível). Guardadas as proporções, principalmente quanto à distinta popularidade dos dois poetas, é o equivalente ao que acontece cotidianamente com as peças de Shakespeare. Mas não com seus sonetos. Um dos motivos fica claro ao se analisar, por exemplo, o “Soneto XIV”, recém traduzido por Josely Vianna Baptista.

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O “Soneto XIV” não apresenta, nas duas primeiras quadras, maiores dificuldades de interpretação. Mas apresenta algumas na terceira quadra e no dístico final – equivalentes, no soneto inglês, aos dois tercetos do soneto italiano. Equivalência que explica a divisão temática deste soneto. A forma soneto possui uma estrutura que pressupõe ou impõe um arranjo de silogismo, pelo qual a primeira estrofe apresenta os pressupostos ou argumentos, a segunda os desenvolve e as duas finais os resolvem. Se no caso do soneto italiano a divisão estrófica, em 4-4-3-3 versos, marca ou traduz tal estrutura temática, no caso do soneto inglês isto não acontece. Assim, se o soneto inglês seguisse sua própria divisão/organização, em 4-4-4-2 versos, teria três estrofes para apresentar e desenvolver os argumentos, e apenas dois versos finais para concluí-los, o que resultaria pesadamente desequilibrado (se o número total de versos da terceira quadra e do dístico final ingleses é o mesmo, seis, dos dois tercetos italianos, a igualdade de dimensão entre a terceira quadra e as duas primeiras a torna parte de seu conjunto, deixando apenas o dístico isolado – enquanto no soneto italiano as duas primeiras quadras formam um conjunto e os dois tercetos outro). Isto explica, afinal, que este soneto tenha uma estrutura inglesa, mas uma organização de argumentos claramente italiana.

As duas quadras iniciais, assim, apresentam e desenvolvem a tese de que o personagem em primeira pessoa não pratica ou não sabe praticar previsões habituais baseadas nos astros, o que não o impede, porém, de acreditar (methinks) que tenha alguma “astronomia”: “And yet methinks I have astronomy”. Tal “astronomia” (ou astrologia, em termos contemporâneos) particular será afinal apresentada, portanto, no primeiro verso da terceira estrofe (depois de o argumento inicial ocupar as duas primeiras). A explicação está nas “estrelas” em que essa “astronomia” peculiar se baseia, que são os olhos do interlocutor. Se isto explica o fato de o narrador ter e não ter “astronomia” (não tê-la no sentido habitual, e tê-la no sentido particular que é o próprio objeto do poema), não explica, porém, quem é esse interlocutor.

Tratando-se de Shakespeare, há aqui muitas interpretações correntes e concorrentes. Tratando-se, porém, de Shakespeare, há interpretações francamente dominantes. Neste caso, a maioria dos sonetos shakespearianos é lida como tendo por destinatário um jovem companheiro do poeta, que assume a posição e o ponto de vista do homem mais velho (enquanto uma minoria seria destinada à “dark lady”). É o caso do “Soneto XIV”. Seu tema retoma um antigo e conhecido topos medieval (Shakespeare, afinal, viveu na transição entre a Idade Média e a Moderna), o da efemeridade da carne – aqui referida, por metonímia, como “truth and beauty”. A equivalência entre carne e beleza não carece de explicação. Já o par “beleza e verdade” não carece de explicação trabalhosa: a identificação entre o belo e o verdadeiro, de matriz e matiz platônicos, é tradicional. O que, enfim, o poeta sabe ler nas “estrelas confiáveis” (“constant stars”) dos olhos, o conhecimento que deles deriva (“from thine eyes my knowledge I derive”), sua sapiência ou expertise (ou art, no original, no sentido medieval de engenho, aprendizado), é: ou aquele que possui a beleza e a verdade as preserva, ou se transforma em seu destruidor. Pois o seu fim é o fim das mesmas beleza e verdade, segundo o belíssimo e aliterante último verso: “Thy end is truth’s and beauty’s doom and date”.

O verso que introduz a condição de preservação diz: “If from thyself to store thou wouldst convert”. To convert, aqui, tem o sentido de virar (-se para). O verbo to store significa manter, estocar, preservar. Trata-se, então, de dizer para o interlocutor voltar-se, isto é, voltar sua atenção, para a preservação daquelas qualidades. Como, porém, preservá-las, se somos mortais e se, antes de morrer, envelhecemos? Daí, afinal, a leitura desse to store, de modo figurado, como mantê-las vivas, ou seja, semeá-las, procriá-las. Ou o destinatário se decide a se reproduzir, e assim reproduzir sua beleza e verdade, ou encara o fato de ter se tornar o veículo de sua destruição, depois de ter sido o de sua materialização. O poema é, em suma, uma exortação à procriação, à paternidade, ainda que o seja como uma convocação à perpetuação da beleza. De qualquer maneira, é inevitável a percepção de que se trata de algo estranho à nossa época, ao contrário, por exemplo, dos solilóquios de Hamlet. Em primeiro lugar, beleza e verdade há muito deixaram de ser sinônimos, complementares ou mesmo próximos. Entre inúmeros motivos, porque a beleza é hoje por construção falsa, no sentido de artificial, enquanto a verdade existe apenas no sentido e na dimensão comezinhos e cotidianos de sinceridade. Além disso, somos ambíguos quanto às excelências de nossa descendência. Se por um lado louvamos, por exemplo, sua enorme familiaridade com os instrumentos complexos da sociedade da informação, por outro lado lamentamos sua enorme familiaridade com os instrumentos complexos da sociedade da informação, que se dá em detrimento de inúmeras outras capacidades, desde o hábito de leitura até o da conversação civilizada. Por fim, os atributos tanto físicos quanto intelectuais de nossa prole são hoje creditados não tanto às excelências ao mesmo tempo morais e transcendentes dos progenitores (cuja beleza física costumava idealmente traduzir a beleza ou virtude de seu espírito, ou seja, sua Verdade), mas à qualidade dos genes e dos exames pré-natais. Isto dito, a beleza do poema parece tão verdadeira quanto duradoura.

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Seus pentâmetros iâmbicos, versos de cinco pés sem correspondência exata no português, têm como equivalente o decassílabo heróico (pois cada um dos cinco pés do pentâmetro possui duas sílabas), acentuado obrigatoriamente na sexta e na décima sílabas. Este é, portanto, o metro escolhido por Josely Vianna Baptista. A maior dificuldade tradutória talvez resida então no fato de que o inglês é uma língua rica em monossílabos e dissílabos, enquanto no português predominam os trissílabos e tetrassílabos. Como o pentâmetro tem grosso modo o mesmo número de sílabas que o decassílabo, a tendência é caber mais informação no verso inglês do que em seu equivalente em português. “Of plagues, of dearths, or season’s quality”: “Das pragas, das misérias ou da qualidade da estação”. Na tradução de JVB, “Ou o tempo, a miséria, a epidemia”: “a qualidade” do tempo, do clima, é portanto elidida.

O “Soneto XIV”, em todo caso, demonstra que Shakespeare é de fato mais simples do que se costuma supor. Ao menos em termos sintáticos. Pois tem a clareza (sintática) como objetivo, nos sonetos ainda mais do que nas peças, porque o texto destas é cercado de inúmeros recursos não-verbais, enquanto um poema conta apenas consigo próprio, e porque seus modelos eram os clássicos greco-romanos então em voga, nos quais a clareza era de rigor. Daí a simplicidade, a diretividade sintática dos oito primeiros versos, seguida de perto por JVB, que, isto resolvido, dedica-se a recuperar a beleza da sonoridade original com o ritmo e as rimas da língua portuguesa.

As maiores dificuldades, como referido, começam a partir do nono verso. Não porque então Shakespeare se torne “barroco”, mas porque passa a usar imagens menos diretas. A sintaxe, porém, continua simples, advindo a complexidade dos últimos versos da sutileza imagética e, principalmente, da densidade sonora. Exemplo maior é o verso final: “Thy end is truth’s and beauty’s doom and date”. “Seu fim é a condenação e a extinção da beleza e da verdade”, diz simplesmente. Porém a forma como materializa essa afirmação nada tem de simples. Ou seja, sua sonoridade e a organização dessa sonoridade.

Em primeiro lugar, o ritmo. Há aqui uma marcação quase marcial, pela qual cada par de palavras curtas recai quase perfeitamente sobre um dos pés duplos (feitos de uma sílaba breve e uma longa) do verso: Thy end / is truth’s / and beau / ty’s doom / and date (a última sílaba átona, -te, não entra na contagem). As separações entre as palavras e as divisões entre os pés têm, portanto, uma correspondência perfeita (o que não é necessário nem comum: “Or else of thee this I prognosticate”). Sobre esse ritmo ominoso, Shakespeare amarra uma densa trama sonora, feita, primeiro, pela repetição dos tt (“Thy end is TruTh’s and beauTy’s doom and daTe”), e, segundo, pelo par doom and date, que pela carga semântica, pelo ritmo marcado, pela aliteração e, afinal, pela gravidade de suas vogais, parece o bater de um tambor. Sem falar na perfeita interação entre significado e posição, esta reforçando aquele, pois a palavra date, data, no sentido de duração de tempo, logo, de seu fim, fecha o verso e o poema.

Como reproduzir ou recuperar tudo isso numa tradução? Não recuperando nem reproduzindo. A tradução de um poema, porém, é ainda assim a tradução de um poema, logo, deve traduzir o poema, objeto feito de significantes e de significados – e mais ainda, das relações particulares que podem adquirir na linguagem poética em geral e que de fato adquirem nas mãos de um grande poeta em particular. Enfim, se não se pode reproduzir tudo, deve-se recuperar o máximo (torna-se então notável, nos dois sentidos, a elegância e a clareza, na presente tradução, daquele complexo verso 12 – “Se o que te é dado dás a semear-te” –, ou a recuperação do par aliterante final doom and date pelo par anagramático termo e morte).

Traduzir, sabe-se, é um jogo de perdas e ganhos. Vence aquele cujos ganhos, sempre difíceis, equilibram as perdas sempre inevitáveis. Portanto todos perdem e todos ganham. Perde o poema o que tinha de irrecuperável, ganha a tradução o que havia de recuperável, ganha o tradutor ao não se deixar vencer, ganha a língua de chegada um novo poema, e ganham um novo poema os leitores dessa língua. Há perdas que não se pode deixar de querer ganhar. Pois se traduzir mal é, enfim, falhar simplesmente, traduzir bem, ou muito bem, é buscar a melhor, mais trabalhosa e mais bela maneira de fracassar. JVB “fracassa” belissimamente.

Luis Dolhnikoff

William Shakespeare, Sonnet XIV

Not from the stars do I my judgment pluck;
And yet methinks I have astronomy,
But not to tell of good or evil luck,
Of plagues, of dearths, or seasons’ quality;
Nor can I fortune to brief minutes tell,
Pointing to each his thunder, rain and wind,
Or say with princes if it shall go well,
By oft predict that I in heaven find:
But from thine eyes my knowledge I derive,
And, constant stars, in them I read such art
As truth and beauty shall together thrive,
If from thyself to store thou wouldst convert;
Or else of thee this I prognosticate:
Thy end is truth’s and beauty’s doom and date.

 

Soneto XIV (tradução Josely V. Baptista)

Não está nas estrelas o meu tino;
Sei um pouco, porém, de astronomia,
Mas não para prever qualquer destino,
Ou o tempo, a miséria, a epidemia:
Não posso em um minuto dar a sorte,
A cada qual seu raio, ou chuva, ou vento,
Nem por indícios a que o céu me aporte,
Ao príncipe augurar feliz intento.
Mas de teus olhos vem-me esse saber,
E os vejo (astros constantes) com tal arte,
Que o belo e o verdadeiro irão crescer
Se o que te é dado dás a semear-te:
Senão teu fim, prevejo a tua sorte,
Da beleza e verdade é o termo e a morte.
*Josely Vianna Baptista é poeta, editora e tradutora de literatura hispano-americana. Recebeu em 1999 o Prêmio Jabuti pela tradução de livros de Jorge Luis Borges para as Obras Completas. Sol sobre nuvens (Perspectiva, 2007) reúne parte representativa de sua poesia, que inclui os livros Ar (Iluminuras, 1991), Corpografia (Iluminuras, 1992; com arte visual de Francisco Faria) e Outro (Mirabilia, 2001, em colaboração com Maria Angela Biscaia e Arnaldo Antunes), entre outros.