Ano X 0201
1° semestre de 2015
Entrevista
Tempo de leitura estimado: 10 minutos

Os 10 anos da revista Vibrant por seu editor, Peter Fry

Entrevistadora: Patrícia Silveira de Farias*

Em 2004, quando as tecnologias digitais apenas começavam a virar febre no Brasil, a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) fez uma aposta ousada: lançou uma revista exclusivamente virtual. Era um outro caminho; na época, as revistas científicas seguiam a trilha mais confortável de criar uma versão digital para periódicos que seguiam sendo impressos. A ideia da então diretoria da ABA era fazer o conhecimento circular mais rápida e amplamente. Por isso mesmo, os editores optaram também por uma revista “poliglota”: artigos em português, inglês e francês de e sobre o Brasil. Hoje, com recém-completados 10 anos, a Vibrant (Virtual Brazilian Anthropology) acaba de lançar na rede mais um número, tem a mais alta avaliação dos periódicos da área e segue divulgando ensaios e estudos com temática brasileira – mas seus organizadores querem mais. Um de seus idealizadores e atual editor, o antropólogo Peter Fry, professor emérito da UFRJ, afirma que quer expandi-la ainda mais. Em conversa, Fry, autor de vários livros sobre sexualidade, relações raciais e estudos africanos, conta um pouco da trajetória da Vibrant e de suas conexões com o mundo digital, desde a importância do financiamento estatal para os periódicos brasileiros até o desafio que o excesso de informações acessíveis na rede apresenta para a investigação e disseminação do saber científico: “Em última instância, a confiança em relação a essas informações vai depender de fatores sociais”.

Peter Fry

Selfie de Peter Fry

A Vibrant comemorou 10 anos em 2014. Como foi a construção dessa iniciativa? Por que a aposta numa revista totalmente virtual?

Peter Fry Na verdade quem começou tudo foi Gustavo Lins Ribeiro, então presidente da ABA, especialista nos meandros da globalização e militante na concatenação das diversas antropologias nacionais. Não me lembro quem criou o nome, mas a ideia principal era poder compartilhar com o mundo não falante de português as pesquisas e o estado da arte da Antropologia brasileira, através de uma revista poliglota. E que isso fosse possível de ser desenvolvido e mantido dentro de uma realidade de poucos recursos. Não haveria como manter uma revista que fosse muito cara! Enfim, conversamos sobre essa ideia, e chegamos à conclusão de que uma revista virtual facilitaria o acesso e ao mesmo tempo baratearia os custos.

A Vibrant depende de financiamento do CNPq e eventuais contribuições da ABA, mas também conta com a ajuda de muitos sócios da Associação, sobretudo aqueles que assumem o papel de editores dos dossiês.  Nos primeiros números da revista, que foram editados por Omar Ribeiro Thomaz, dependemos de artigos de colegas convidados. Em seguida, publicamos textos recebidos em fluxo contínuo. Mas mesmo assim recebemos menos submissões do que imaginávamos. Além disso, eram sobre assuntos muito díspares. A partir do número 3, então, publicamos, além de textos recebidos em fluxo contínuo, dossiês aprovados pelo Conselho Editorial da revista.

Sendo uma revista da ABA, ela tem que necessariamente abraçar a diversidade de perspectivas e campos de estudos inerentes à Antropologia. As pessoas em geral me falam que estão satisfeitas com a revista do jeito que ela é, mas….eu não. Nem tanto. Eu queria que ela circulasse ainda mais internacionalmente. Ela precisa se inserir em mais redes, precisamos ir ainda mais longe. Torná-la mais conhecida, mais lida.

As novas tecnologias lançaram desafios para a Antropologia, assim como para todos os campos e pessoas, grupos. Uma das formas de lidar com elas é realmente usá-las para ampliar o acesso à informação, claro. Mas, na verdade, há uma série de meios envolvidos nisso, desde a webcam às redes sociais. Pensando em todo esse universo, o antropólogo Daniel Miller propõe o conceito de polymedia, para indicar a forma como estamos imersos e usamos vários meios de comunicação, ao mesmo tempo. E como eles participam da nossa vida diária. Então, não se trataria de como usamos a rede social, a internet, a webcam, mas como isso tudo faz parte do cenário. Como você lida com isso, pessoal e profissionalmente?

Peter Fry As redes sociais… eu tive muito pé atrás. Por exemplo, entrei, participei, depois me retirei… daí me coloquei de novo. Particularmente não gosto; acho muita exposição, estranho muito.

Sim, exposição e privacidade são um duo que estão em questão nas redes sociais. Fico pensando bastante no que falava Goffman sobre o gerenciamento da própria imagem; ao mesmo tempo em que você pode manipular esse self, controlá-lo mais que em outras formas de interação no tal tempo real, por exemplo, ao telefone, editando conversas e mostrando só o que deseja, você também está exposto a muito mais gente, formas de pensar etc.

Peter Fry Mas, profissionalmente, tenho grande curiosidade; examinei uma tese, na área da sexualidade, sobre o universo virtual gay. Foi um trabalho de Gilbran Teixeira, chamado Não sou nem curto prazer e conflito no universo do homoerotismo virtual. Claro, é um exemplo entre vários outros. Mas é muito interessante observar como um meio como esse, dos chamados “sites de relacionamentos”, tem um impacto na sociabilidade dos grupos – ou não. É preciso estudar mais por aí. Porque estamos habituados a pesquisar do ponto de vista dos grupos, mas é possível também investigar mais essas outras formas de interação, se e como elas mudam essas sociabilidades. Temos ainda muito o que saber por aí.

Em relação à Vibrant, novamente, como você a analisa dentro desse novo contexto da aposta na virtualidade como forma de interação entre pares?

Peter Fry A Vibrant ainda é “careta” em termos do mundo digital. Ela tem links, por exemplo, mas não permite comentários, o que não a torna muito interativa, pelo menos não em tempo real. Mas, enfim, isso também é um limite que é dado pelos próprios órgãos financiadores brasileiros. Você não pode fazer uma revista com comentários, que permita “interferências” por parte de seus leitores. E sua avaliação?

Bom, na verdade, também, ela não tem esse formato. Não é uma revista de comentários, não é um blog. Mas podemos explorar outras possibilidades de virtualidade. Tivemos um número, por exemplo, em que a “capa” era um vídeo etnográfico – muito bonito, por sinal. Também publicamos material audiovisual. Todos esses materiais, bem como os textos, são avaliados por pareceristas – enfim, nesse sentido é uma revista bem tradicional.

E ela não está mais só na virtualidade. Temos outras revistas de Antropologia, seguindo esse mesmo caminho. Ainda bem, eu acho.

O que imagina para o futuro da Vibrant e da Antropologia, a partir dessa inserção crescente do virtual nas nossas vidas?

Peter Fry Quando cheguei aqui, nos anos 1970, as bibliotecas eram poucas e fracas; apenas as pessoas mais abastadas tinham acesso aos livros e periódicos recentes. A informação circulava muito, muito pouco. Isto é, havia uma concentração do conhecimento. E isso muda muito nesse novo contexto. Já mudou. Foi uma revolução democrática, acho.

O futuro da comunicação acadêmica é virtual. Já é, de fato, mesmo se as grandes revistas estrangeiras ainda cobrem caro para o acesso. A política brasileira de apoiar revistas de acesso livre e aberto (Creative Commons) é da maior importância nesse sentido, pois aqui não se paga nada para ler toda a produção acadêmica em revistas nacionais. Tanto é que os produtores de revistas em papel acumulam estoques imensos que atraem poeira e estantes cada vez mais abarrotadas, inclusive.

Agora, claro, você tem acesso rápido à informação, o que não quer dizer necessariamente à informação útil; você na verdade tem acesso a todo tipo de informação. É realmente uma tabula rasa. Como selecionar?

Muito antes da popularização da internet, em 1965, Ely Devons e Max Gluckman organizaram uma genial coletânea, Closed systems and open minds: the limits of naïvety in Social Anthropology, na qual vários autores debateram sobre como lidar com as informações a que se tem acesso, principalmente em relação aos seus campos de pesquisa. Qual o limite entre o que você pode verificar, fazer, conhecer, por si mesmo, pelo trabalho de campo, por exemplo. E o que você vai ter de incorporar dessas novas informações que chegam de todo lado, realmente.

A confiança em relação a esse volume de informações vai depender de uma série de fatores sociais, que conferem autoridade de uma forma não randômica. E, em última instância, escapará da impessoalidade da internet, e até dos sofisticados sistemas de avaliação quantitativos, recaindo sobre as recomendações interpessoais. Talvez seja por isso que todas as revistas fazem questão de recrutar as personalidades mais reconhecidas em seu campo para compor os seus conselhos. A Vibrant não é exceção.

Mas, no fundo, somos apenas peças num mercado acadêmico cada vez maior e mais disperso.  Sobreviveremos se conseguirmos criar o que os marqueteiros chamam de fidelidade! A Vibrant escolheu como “nicho” a Antropologia brasileira em inglês e francês, sobretudo, na vã esperança de atingir os professores, alunos e pesquisadores interessados no Brasil que se encontram espalhados por todo o mundo; assim, ela está também criando e fomentando a nossa própria razão de existir. Mas não é assim com todas as mercadorias?

A diferença agora é que há um sistema centralizado de aferição das revistas onde a qualidade é medida quantitativamente através da computação do número de acessos e downloads, a frequência de citações etc. Além disso, grupos de sábios classificam as revistas (o sistema Qualis) que vai determinar o peso atribuído às publicações na hora de avaliar os programas de pós-graduação. Atualmente, a Vibrant é muito bem avaliada, com Qualis A internacional, é uma das mais lidas nacional e internacionalmente, em se tratando dessa área de conhecimento. Mas isso me preocupa bastante, porque o sistema centralizado adotado tende a criar uma hierarquia conservadora e permanente. Você vai me perdoar mais uma referência a um trabalho pioneiro publicado bem antes da invenção da internet. É um exemplo muito claro do “efeito de São Mateus”, identificado, descrito e analisado por Robert King Merton tantos anos atrás (no artigo “The Matthew effect in science”, publicado na edição 159 da revista Science, em 1968). Em Mateus 13: 12, lemos que Jesus falou as seguintes palavras: “Porque àquele que tem, se dará, e terá em abundância; mas àquele que não tem, até aquilo que tem lhe será tirado”.

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*Patrícia Silveira de Farias é antropóloga e professora adjunta da Escola de Serviço Social da UFRJ.