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OS VIDEOGAMES COMO NARRATIVAS SOBRE O PASSADO NA PÓS-MODERNIDADE

Resumo: Este artigo tenta compreender a presença de narrativas sobre o passado nos temas abordados nos jogos digitais produzidos pelo grupo de pesquisa Comunidades Virtuais, a partir da perspectiva da teoria da história. A discussão põe em questão o significado atribuído ao passado na pós-modernidade e conclui que a linguagem dos jogos digitais pode dialogar com narrativas oriundas da historiografia e da memória coletiva.

Palavras-chave: Videogame; historiografia; memória coletiva.

Abstract: This article tries to understand the presence of narratives about the past in s topics covered in digital games produced by the research Virtual Communities group, from the perspective of the theory of history. The argument calls into question the meaning attributed to the past in post-modernity and concludes that the language of digital games can dialogue with narratives arising from the historiography and collective memory.

Keywords: Video game; historiography; collective memory.

 

Introdução

A reflexão sobre o processo de produção do conhecimento científico é necessária e importante, uma vez que, à autorreflexividade está associada a construção da objetividade científica. No entanto, essa etapa raramente é construída concomitantemente à pesquisa em si. No campo das Ciências Sociais, a publicação das Regras do Método Sociológico por Durkheim se deu tardiamente. Os diários privados de Malinowski só vieram a público após a sua morte. Há uma boa razão para que isso tenha se dado: a historiografia nos ensina que a distância oferecida pelo tempo é um elemento importante na construção do entendimento, processo de reflexão que permite compreender o passado.

Ao longo dos últimos anos, o grupo de pesquisa Comunidades Virtuais se consolidou e obteve significativo reconhecimento como um importante centro de pesquisa e produção de jogos digitais educativos no Brasil. Parte importante dessa produção foi dedicada aos jogos com base em representações do passado, jogos concebidos para oferecer suporte ao ensino de História. São ao todo quatro deles: Tríade: liberdade, igualdade fraternidade (2008), zios: ecos da liberdade (2010), Dois de julho: tower defense (2013) e Industriali (2013).

Captura de tela do Jogo Tríade – Comunidades Virtuais
Captura de tela do Jogo Tríade – Comunidades Virtuais

Captura de tela do Jogo Tríade – Comunidades Virtuais

Mas por que um centro de pesquisa comprometido com o projeto de aproximar o futuro tecnológico da educação concentrou seus esforços na produção de narrativas e simulações digitais sobre o passado? Não é possível responder a essa pergunta sem entender o significado atribuído ao passado na cultura contemporânea.

Imagem promocional do jogo Búzios – Comunidades Virtuais
Imagem promocional do jogo Búzios – Comunidades Virtuais

Para responder a isso, é preciso dar conta da reconfiguração operada no campo da historiografia pela crítica pós-moderna. A proposta deste artigo é propor uma interpretação sobre o significado dos temas abordados nessa ludografia a partir da perspectiva da Teoria da História. Não se trata, portanto, de uma análise exaustiva desses jogos, mas de um primeiro movimento que tem a intenção de suscitar estudos mais aprofundados.

A história do conceito de História

O texto clássico de March Bloch (1965) ensina ao iniciante nos estudos históricos que definir a História, seu objeto e a finalidade do seu estudo, não é uma tarefa simples. Ele se deu conta dessa complexidade ao ter de responder à uma criança que lhe perguntou: “Para que serve a História?” Da metade do século XX para cá, a magnitude do problema foi consideravelmente ampliada juntamente com a intensidade das contradições sociais e a complexidade dos processos históricos sobre os quais os historiadores se debruçam, dando origem a novas perguntas ou ressignificando antigas questões. Desse modo, a finalidade da pesquisa e do ensino de História vem sendo intensamente discutida como indica o tema da Segunda conferência internacional da Rede Internacional para Teoria da História, a se realizar em 2016: “Passados práticos: vantagens e desvantagens da História para a vida”.  Esse tipo de inquérito leva ao esquadrinhamento histórico e cultural dos diversos e variados usos da História.

Referência obrigatória nessa discussão, o estudo de Koselleck (2013) sobre a história do conceito de História, revela que o significado que hoje atribuímos a ele é recente. Remonta ao século XVIII. Nasceu com a modernidade e, ao mesmo tempo, transformou-se em um dos seus conceitos mestres. A intelectualidade burguesa alemã construiu uma ciência histórica autônoma à medida em que forjava a sua própria identidade e consciência histórica. O conceito moderno de história adquiriu uma função social e política que fundia a história do Estado com a história do povo alemão. A partir desse momento, a dimensão histórica, pelo seu poder de articular estratégias que unificavam o passado e o futuro de um projeto político, passou a ser reivindicado por comunidades nacionais, classes e partidos. Essa era a época, nos diz Hartog (2014), da construção das grandes “cronosofias”, do surgimento do que conhecemos como história universal.

Correspondendo a uma nova forma de experiência diante do mundo, Koselleck (2013) afirma quem, na Alemanha, o significado moderno da expressão História foi o resultado da evolução semântica de dois termos distintos, a saber: história dizia respeito a um conjunto de acontecimentos. Aqui só era possível falar na história de alguma coisa. Já historie (as histórias) correspondia às narrativas e a um tipo de conhecimento utilizado para a formação e o enriquecimento moral. No final do século XVIII, os intelectuais promoveram uma migração do sentido individual plural para o coletivo singular, de modo que passa a ser possível falar  em “a própria História”, a “História como tal”, ou simplesmente “a História em si e para si’, sem a necessidade de lhe atribuir um sujeito. Trata-se da atribuição de um sentido, de uma interpretação a um larga série de eventos. É o surgimento da noção de processo histórico expressa na noção de História da razão humana:

Uma vez descoberta a História como autônoma e autoativa, ela passa a classificar sua própria representação (…) O Direito Natural e o Direito Internacional Público se baseiam nela, liberdade e moralidade não são viáveis sem ela (…) A fundamentação do Iluminismo histórico em uma História não mais derivada, mas na História como tal, tinha se definido com sucesso. A História se eleva a algo como última instância. Ela se transforma em agente do destino humano ou do progresso social (Koselleck, 2013, p. 124).

Desse modo, no repertório semântico do final do século XVIII, a expressão História   passou a ter três significados. Ela podia referir-se tanto aos acontecimentos (à situação objetiva), à representação ou narrativa sobre os acontecimentos e, por fim, à ciência que estuda e interpreta os conhecimentos sobre eventos. A História tornou-se o palco em que se desenrolam as diversas histórias e narrativas, cuja pluralidade foi assimilada pela unidade do discurso histórico. Nessa assimilação, a História passou a reivindicar um estatuto de verdade. Para dar conta dele, elementos como a poética, a literatura, a oralidade e o relato memorial foram excluídos do métier do historiador. A sobreposição de realidade e reflexão no campo histórico chegou até o pensamento científico do século XX, bem como as ambiguidades geradas por ela.

Regimes de historicidade e pós-modernidade

O conceito de regimes de historicidade foi proposto por Hartog (2014) com o objetivo de tornar mais inteligíveis as experiências humanas no tempo e entender “como uma sociedade trata o seu passado”. À maneira de um tipo ideal (e portanto não-empiricamente observável), ele não é debitário da civilização ou contido por uma época específica. Construída pelo historiador, essa categoria tem como objetivo auxiliar na compreensão de como opera a razão historiográfica, no sentido de conferir mais plausibilidade a certos procedimentos que a outros. Também ajuda a entender como se articulam os tempos (passado, presente e futuro). A importância dessa reflexão reside no fato de que a ausência de uma reflexão sistemática da historiografia sobre o tempo contribuiu para que, no século XIX, o evolucionismo o naturalizasse.

De acordo com Hartog (2004), a nossa época seria marcada por um contínuo sistemático “presentismo”. Expliquemos: fenômenos como a queda do muro e o fim do socialismo real levaram a um questionamento sobre a ordem do tempo. Trata-se de uma era de incertezas quanto ao futuro, incertezas que podem levar, por exemplo, ao mecanismo fundamentalista de reinventar tradições, como estratégia de responder à uma expectativa de um futuro incerto. Hartog recorre à noção de brecha entre o passado e o futuro proposta por Arendt (1972) para fazer referência a uma situação na qual o passado não é capaz de fornecer orientações para o presente, ao mesmo tempo em que não é possível imaginar um possível futuro produzindo a experiência de um tempo sem orientação. No “presentismo”, o tempo presente se dobra sobre os demais tempos.

Essa avaliação também é acompanhada por Lowenthal (2007) para quem o imediatismo é uma caraterística dominante na relação que hoje estabelecemos com o tempo, levando ao colapso do passado e do futuro. Se no imaginário medieval orientado por narrativas bíblicas o homem experimentava o presente e o futuro como uma continuidade do passado, o iluminismo secularizou o tempo, desenhou novas concepções do passado e do futuro. O desenvolvimento científico da geologia e da paleontologia ampliou o passado do homem de milhares para milhões de anos. Animado pelos progressos da ciências e pelo aumento do conhecimento, o homem moderno cultivou um intenso e utópico otimismo pelo futuro. Contudo, a partir da metade do século passado, uma espécie de colapso do futuro se instalou e tomou corpo e se consolidou a tal ponto que, nos anos 2000, o “futuro já era coisa do passado”. Os traços desse colapso são um crescente pessimismo quanto ao porvir, um encurtamento do tempo futuro no planejamento da ação humana, tomando como referência espaços de tempo cada vez mais breves. No caso dos jovens, pensar no futuro limita-se a imaginar o hoje, o amanhã e talvez, no máximo, o ano que vem. O encolhimento do futuro seria motivado pelo desaparecimento da crença no progresso, a insegurança quanto às possibilidades de emprego e a desconfiança crescente com os usos da tecnologia e da ciência e seus impactos sobre o meio ambiente.

No que diz respeito ao passado, Lowenthal (2007) afirma que se hoje as formas de concepção do passado foram ampliadas, muito se perdeu em ordem, consenso ou clareza  contextual. A mídia tende a estreitar o passado, privilegiando a ação em lugar da reflexão, os eventos sobre a continuidade, o indivíduo sobre a coletividade. Se não existe uma desvalorização do passado, existe uma desvalorização do conhecimento do passado, levando a uma situação de perda de referências culturais comuns. Não se trata do problema do desconhecimento de fatos históricos lamentado a cada geração. O que há de novo é um certo consenso de que a ignorância do passado é algo aceitável.

Em Jameson (2011), o  tema do presentismo, do encolhimento do futuro e da desvalorização do passado são tratados como o “fim da temporalidade”. Nessa abordagem, o fenômeno adquire consistência material e uma forma cultural e estética, a saber, a do capitalismo tardio com seu desdobramento cultural enquanto pós-modernidade ou cultura pós-moderna. Aqui não se trata apenas de uma supervalorização do presente, pois com o desaparecimento do futuro – entendido como o desaparecimento de projetos políticos  coletivos – e do passado, o próprio presente é desqualificado enquanto um tempo significativo, desqualificação que se prolonga sobre os próprios tempos existenciais dos indivíduos.

Os impactos da pós-modernidade sobre a produção do conhecimento científico são inúmeros, tendo se generalizado a ideia de uma crise nas ciências humanas. Para Santos (2011), trata-se de  um momento de ambiguidade  e complexidade, do fim da  hegemonia  de uma ordem científica que lança indagações sobre as relações entre ciência e virtude, conhecimento científico e senso comum, sobre as contribuições positivas e negativas da ciência à realidade. Para Lyotard (2011) está em curso uma modificação substancial da natureza da ciência e da universidade, provocado pelas transformações tecnológicas sobre o saber, dando origem a um cenário essencialmente cibernético e informacional, dominado pelos estudos sobre a linguagem. A derrocada da fundamentação metafísica da ciência moderna levou com ela conceitos fundamentais ao pensamento moderno como  razão, sujeito, totalidade, verdade e progresso. Ele anuncia a “crise  das  metanarrativas” que afirmavam  o sentido da História como o progresso da razão ou o triunfo da igualdade social. De um modo geral, remonta aos anos 1980 a ideia de uma crise da razão histórica, como parte de uma crise mais ampla das Ciência Humanas (D’Assunção Barros, 2011).

Segundo Marcus (1994), o pós-modernismo radicalizou  críticas internas  já existentes nas ciências humanas consolidando-as, a exemplo das tendências para questionar a linguagem   e suas convenções retóricas utilizadas no campo científico. Também estimulou o desenvolvimento de posições reflexivas e autocríticas que exploram as dimensões ético-políticas e epistemológicas da produção do conhecimento problematizando a construção da objetividade científica a partir da consideração da subjetividade do métier do pesquisador. A relevância do problema da reflexividade está em buscar evidenciar as razões que levam um pesquisador a assumir um determinado quadro de referência e uma perspectiva específica de avaliação (Featherstone,1995).

Na historiografia, a eclosão da reflexividade pós-moderna se manifestou de diferentes formas. Uma delas levou à problematização do estatuto científico da História a partir da sua relação com a retórica e com a narrativa. A discussão sobre a narratividade foi trazida para o primeiro plano, eliminando com isso, o cisma moderno entre literatura e história, realidade e ficção.

Outra mudança significativa foi o fim da posição hegemônica do discurso historiográfico como o detentor da verdade sobre o passado e a revalorização dos estudos sobre a memória e a oralidade. Em Vattimo (2007), falar em pós-modernidade é abandonar a ideia motriz da modernidade, a saber, a História universal e a sua contrapartida ideológica do progresso do espírito humano. Aqui, o tema do fim da História significa, não apenas o questionamento da historicidade, mas a tese da impossibilidade de sustentar uma história unitária. Ao contrário, o que surge é uma pluralidade narrativa, sustentada, em larga medida, pela disseminação planetária da mídia. No final do século XX a memória se tornou um dos objetos centrais para os historiadores do tempo presente, praticada sobretudo em países como a França, onde os atores históricos são os sobreviventes das tragédias do século XX. A história social da memória problematiza a memória através da inscrição na História. A memória tornou-se um dever do historiador num momento caracterizado por incertezas e imprevisibilidades (Silva, 2002). A política de memória é algo que se impõe ao historiador confrontado com a violência de crimes imprescritíveis (Ricoeur, 2007). Essa dimensão do passado eclodiu com as narrativas dos sobreviventes da Segunda Guerra Mundial. Se a memória havia sido excluída da História moderna, na pós-modernidade a História se torna uma subcategoria da memória, uma prática mnemônica (Tamm, 2008; Burke, 2006).

Jogos eletrônicos, representação histórica e políticas de memória

Procurando compreender os impactos epistemológicos das simulações e jogos eletrônicos sobre o pensamento histórico, Fogu (2009) afirma que o traço distintivo da mídia digital interativa é a sua capacidade de obscurecer o processo de mediação  (hipermediação) e produzir um “efeito envolvente de presença”. Ele explica que na narrativa histórica tradicional,  a experiência da historicidade era transmitida ao leitor através do recurso poético do  presente histórico, ou seja, fazia-se uso do presente do indicativo, ao invés do pretérito. Com isso era obtido um efeito retórico de presentificação do passado conferindo-lhe vivacidade e palpabilidade e colocando o leitor no papel de testemunha dos eventos narrados pelo historiador. Mais recentemente, com o cinema de atração, a experiência da presença foi ampliada e resignificada. A experiência da “presença”, antes construída através do texto, passou a ser produzida com o recurso à imagem em movimento, processo que deu origem ao papel do espectador-testemunha de eventos ao mesmo tempo distantes e simultâneos. A chegada da tecnologia digital no cinema representou uma guinada substancial, pois nas  histórias manipuladas digitalmente o efeito da tecnologia foi fazer diluir de modo intencional o limite entre o historicamente real e o historicamente ficcional. As simulações 3D, as reconstruções de realidade virtual com estímulos audiovisuais e os jogos digitais  promoveram uma mudança na experiência da “presença”, que migrou da ordem da   representação para a dimensão da imersão sensorial. A consequência foi a redefinição da história como “experiência prática do passado”. De acordo com Fogu (2009), quando a história é codificada em jogos de vídeo ocorrem simultaneamente dois processos, a  saber: a virtualização e a espacialização da  experiência histórica. Esses dois processos, conjuntamente, levam ao abandono do eixo temporal que antes caracterizava as narrativas históricas tradicionais.

Os jogos eletrônicos  e a memória

Adotar a perspectiva da memória coletiva ou social implica tomar a narrativa historiográfica como uma entre possíveis representações ou usos do passado, possuindo uma lógica específica de produção discursiva. Nos termos de Lowental (1985) isso significa dizer que “a história é mais e menos que o passado”. O trabalho de Santos (2009) procura mostrar a   relação entre os jogos eletrônicos a as políticas de memórias norte-americanas para a Segunda Guerra Mundial. Numa abordagem muito comum aos estudos culturais, o autor tenta estabelecer paralelos entre o exército norte-americano, a indústria de cinema e a indústria de jogos eletrônicos, procurando situar a narrativa do jogo eletrônico Medal of Honor (1999) no contexto de uma mitologia norte-americana que atribui significados heróicos às experiências de guerra. O papel do jogo é compreendido quando analisado em paralelo com outros produtos midiáticos que contribuem para a construção de uma memória heróica dos soldados que lutaram na Segunda Guerra Mundial, investindo em sua monumentalidade, descrita como a “Grande Geração”. Por outro lado, o fortalecimento mnemônico do heroísmo norte-americano está associado à uma política de esquecimento dos excessos e abusos de poder cometidos no Vietnã.

É possível citar outros exemplos desse processo memorativo. Na Espanha, o jogo Monturiol el joc, desenvolvido por Ruth Contreras na Universitat de Vic, toma por referência  narrativas significativas para a identidade catalã. Como indica a instituição do United Satates Holocaust Memorial Museum e o World  Memory Project, é crescente a utilização das tecnologias digitais para a consolidação de uma rede mundial mnemônica. Esses exemplos são bastante significativos para ilustrar o ponto de vista aqui defendido, a saber, o de que, no que diz respeito às representações do passado nos jogos eletrônicos, é preciso indagar tanto pela história quanto pela memória.

Considerações finais

Na trajetória do grupo Comunidades Virtuais, a reflexão sobre o tema das relações entre história e jogos eletrônicos deu origem a uma importante produção intelectual, a exemplo dos jogos com temática histórica orientados para a aprendizagem Tríade (2008), zios (2010),  Dois de julho (2013) e Industriali (2014).

A ideia do desenvolvimento de jogos digitais voltados para o ensino da História nasceu da paixão pelo desafio suscitado por ela: a construção da compreensão do presente a partir do passado e a valorização do papel ativo do sujeito nos processos históricos e na mudança social. Assim, a escolha recaiu na Revolução Francesa, resultando no jogo Tríade: igualdade, liberdade e fraternidade, que tem como tema a eclosão do ciclo das revoluções burguesas na Europa. A circulação dos ideais libertários da Europa para o Brasil foi abordada em um segundo momento, através do jogo zios: ecos da liberdade, que trata da Conjuração Baiana (Revolta dos Alfaiates). O  jogo Dois de julho tem como tema as batalhas travadas pelo fim do sistema colonial e pela independência do Brasil na Bahia. O último jogo, Industriali, tenta retratar a lógica da revolução industrial inglesa, através da compreensão dos impactos da modernização da produção industrial no processo produtivo.

A ideia era, através de uma mediação de linguagem midiática acessível aos alunos, desafiá-los através de missões a solucionar problemas envolvendo os fatos históricos, simulando e experimentando situações que exigem planejamento, antecipações e tomada de decisões para alcançar os objetivos propostos, além de exigir do jogador a busca por informações históricas para avançar e finalizar os jogos. Mas como entender os temas abordados nesses jogos à luz da discussão apontada previamente sobre as mudanças teóricas que tiveram lugar no campo da historiografia.

Gostaríamos de propor que o desenvolvimento desses jogos tende a refletir, em larga medida as reconfigurações operadas sobre o campo do pensamento e a experiência histórica nas últimas décadas. Nos jogos como Tríade e Industriali o tema é o nascimento da modernidade. Eles tratam dos processos históricos que fundaram a experiência moderna e a própria historiografia. Encontram-se diretamente associados à ideia de uma História Universal e ideologia do progresso da razão.

Entretanto, os outros dois jogos, zios e Dois de julho, ainda que tenham sido inicialmente concebidos enquanto desdobramentos da grande narrativa modernista, alinham-se com uma experiência pós-moderna de relação com o passado, uma vez que tratam de narrativas e tradições celebradas por uma memória regional. Dizem respeito a experiências culturais e identitárias bem específicas.

A Revolta dos Búzios recebeu, ao longo do tempo, várias designações como Conjuração Baiana ou Inconfidência, Revolta dos Alfaiates ou Revolta das Argolinhas, liderada pelos soldados Luiz Gonzaga e Lucas Dantas, e os alfaiates João de Deus e Manoel Faustino, todos executados em praça pública. Foi uma conspiração mal-sucedida que se deu na Capitania da Bahia, no Brasil contra o domínio português no Brasil. A pluralidade de designações reflete as diferentes leituras que o movimento recebeu ao longo do tempo, espelhando os sentidos atribuídos pela academia e pela cultura popular. Enquanto Conjuração ou Inconfidência foram utilizados predominantemente pela historiografia, a expressão Revolta dos Alfaiates, também de origem acadêmica, faz alusão à inserção social de grande parte dos participantes da conspiração. Outras expressões como Argolinhas e Búzios aludem a adereços utilizados pelos conspiradores para fins de identificação. Na Bahia, a última expressão foi consagrada pela tradição local enquanto termo que reforça as matrizes africanas e a avançada proposta igualitária do movimento.

Segundo Valim (2009), o movimento recebeu diversas interpretações pela historiografia. Os historiadores do século XIX procuraram desqualificar a relevância social e política do movimento, tanto em função da sua composição social, como pela sua inserção geográfica, posição conservadora que pode ser entendida como um reflexo dos processos de centralização política face aos conflitos regionais que atravessavam o Brasil. Com a fundação dos Institutos Históricos e Geográficos regionais, e uma consequente descentralização da produção do saber histórico, historiadores baianos da segunda década do século XX, como Francisco Borges de Barros e Braz do Amaral, revisaram as análises sobre o movimento, procurando destacar a participação da Bahia na construção do Estado Nacional. A partir dos anos 1930, essa posição foi revista por autores como Caio Prado Júnior e Affonso Ruy, que conferiram à Conjuração Baiana um estatuto nacional, enquanto movimento de afirmação das aspirações burguesas.

No século XXI, na Bahia, o caráter racial do movimento foi sublinhado por políticas de memória que resultaram na atribuição de um estatuto heróico aos insurgentes, através do projeto de lei 5.819/2009 de autoria do deputado federal baiano Luiz Alberto. Com a sanção da Lei 12.391, de 04 de março de 2011, os nomes de João de Deus do Nascimento, Lucas Dantas de Amorim Torres, Manuel Faustino Santos Lira e Luís Gonzaga das Virgens e Veiga foram inscritos no Livro de Aço dos Heróis da Pátria, depositado no Panteão da Pátria e da Liberdade, em Brasília. Nesse mesmo ano, a memória do movimento foi institucionalizada no dia comemorativo de 12 de agosto. Com base na Lei 10.639/031, o estudo do movimento se tornou obrigatório na rede municipal de ensino de Salvador. Instituições culturais como o Bloco Olodum celebram a narrativa da Revolta dos Búzios, enfatizando a sua importância para a memória afro-brasileira e para a luta contra a escravidão. Além disso, uma linha de continuidade entre zios e o processo de Independência do Brasil foi estabelecida, através da sua associação com um outro significativo movimento local, as lutas pela independência da Bahia, relembradas e celebradas no festejo do Dois de julho.

É preciso notar que, na Bahia, a independência do Brasil é celebrada duas vezes: a primeira comemoração, de caráter popular, é feita no dia Dois de julho. A segunda, enquanto festejo de Estado, ocorre no dia Sete de Setembro. Como aponta Viana-Telles (2008), há um embate entre a grande narrativa historiográfica da História do Brasil, que descreve o processo de independência destacando o protagonismo do Sudeste e situando o Nordeste como lugar do atraso, de resistência ao processo de independência, e a memória heróica do Dois de julho, que afirma que o Recôncavo baiano foi pioneiro na proclamação da independência, descrevendo a emancipação do Brasil como um intenso processo de lutas  populares, no qual mulheres, negros e caboclos se destacam. É precisamente essa narrativa que é ilustrada no jogo eletrônico Dois de julho: tower defense.

A experiência no desenvolvimento desses dois últimos jogos sugere a importância de que, no desenvolvimento dos jogos voltados para o ensino de história, haja o acolhimento e o diálogo com tradições orais locais, memórias e micro narrativas, criando assim, um espaço para a circulação da diversidade cultural que não encontra espaço nos livros didáticos de História, ainda produzidos a partir da lógica das grandes narrativas centralizadoras como a História Universal ou a História do Brasil.


* Helyom Viana Telles é doutor em Ciências Sociais pela UFBA; pós-doutor em Educação pela UNEB; professor do IHAC-UFBA; pesquisador do grupo Comunidades Virtuais / UNEB.

** Lynn Alves é pós-doutora em Jogos Digitais e Aprendizagem pela Universidade de Turim; professora e pesquisadora do Senai Cimatec e Uneb.

 

Referências

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Ludografias

Búzios: ecos da liberdade. Desenvolvedor: Grupo de Pesquisa Comunidades Virtuais – UNEB, cadastrado no Diretório do CNPq, 2010.

Dois de julho: tower defense. Desenvolvedor: Grupo de Pesquisa Comunidades Virtuais – UNEB, cadastrado no Diretório do CNPq, 2013

Industriali. Desenvolvedor: Grupo de Pesquisa Comunidades Virtuais – UNEB, cadastrado no Diretório do CNPq, 2013.

Medal of Honor: Alied Assault. Electronic Arts, 1999.

Tríade: Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Desenvolvedor: Grupo de Pesquisa Comunidades Virtuais – UNEB, cadastrado no CNPq, 2008.

Recebido em março de 2016.
Aprovado em maio de 2016.